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Igreja Reformada e os Desafios Teolgicos e Litœrgicos na Ps Modernidade 1 Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa INTRODU˙ˆO: Nªo hÆ estupidez mais brutal do que conscientemente ignorar a Deus Joªo Calvino, O Livro de Salmos, Sªo Paulo: Pa- racletos, 1999, Vol. 1, (Sl 14.1), p. 272. PudØssemos imaginar os homens vindo ao mundo no pleno exerccio da razªo e juzo, seu primeiro ato de sacrif- cio espiritual seria o de aªo de graas Joªo Calvino, O Livro de Salmos, Sªo Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl 50.14), p. 409. a) Escolhidos para Adorar: Paulo em sua maravilhosa doxologia (Ef 1.3-14), declara que Deus nos tem abenoado continuamente em Cristo. Ele bendiz a Deus com uma expressªo de a- ªo de graas, considerando as bŒnªos de Deus que recebemos por Cristo: que nos tem abenoado (eu) logh/saj) (3). O particpio aoristo (eu)logh/ saj), indica den- tro deste contexto, um fato consumado e a aªo continuada de Deus. Podemos in- terpretar que Deus na eternidade jÆ nos abenoou definitivamente; a sua bŒnªo Ø completa; todavia, ela Ø-nos comunicada constantemente atravØs da histria. Essas bŒnªos sªo multifacetadas: toda sorte (pa/sh), na realidade, todas e cada n- ªo que temos, sem exceªo, provØm do Senhor. As regiıes celestiais (e)n toi=j e)pourani/oij = lit. dos cØus, celestiais) 2 indicam a procedŒncia das bŒnªos. E- las provŒm de Deus, o Pai que habita os cØus (Mt 6.9) e, para onde Ele mesmo nos levarÆ (2Tm 4.18). Devemos estar atentos ao fato de que tudo que temos provØm de Deus, atravØs de Cristo, sendo comunicado pelo Esprito. De modo especial o texto destaca algumas dessas bŒnªos: a eleiªo (4-5), a redenªo (7), o selo do Esprito (13-14). Portanto, Ø uma tentaªo muito grave, ou seja, avaliar alguØm o amor e o favor divinos segundo a medida da prosperidade terrena que ele alcana. 3 As bŒnªos sªo espirituais porque se originam em Deus, sendo-nos 1 ConferŒncias ministradas na 23“ ConferŒncia Fiel para Pastores e Lderes em `guas de Lindia no perodo de 1 a 5 de outubro de 2007. 2 E)poura/nioj: Mt 18.35 (variante textual); Jo 3.12; 1Co 15.40,48,49; Ef 1.3,20; 2.6; 3.10; 6.12; Fp 2.10; 2Tm 4.18; Hb 3.1; 6.4; 8.5; 9.23; 11.16; 12.22. 3 Joªo Calvino, O Livro dos Salmos, Sªo Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 17.14), p. 346.

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Igreja Reformada e os Desafios

Teológicos e Litúrgicos na �Pós Modernidade�1 Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

INTRODUÇÃO:

�Não há estupidez mais brutal do que

conscientemente ignorar a Deus� � João

Calvino, O Livro de Salmos, São Paulo: Pa-racletos, 1999, Vol. 1, (Sl 14.1), p. 272.

�Pudéssemos imaginar os homens

vindo ao mundo no pleno exercício da

razão e juízo, seu primeiro ato de sacrifí-

cio espiritual seria o de ação de graças�

� João Calvino, O Livro de Salmos, São

Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl 50.14), p. 409.

a) Escolhidos para Adorar:

Paulo em sua maravilhosa doxologia (Ef 1.3-14), declara que Deus nos tem abençoado continuamente em Cristo. Ele bendiz a Deus com uma expressão de a-ção de graças, considerando as bênçãos de Deus que recebemos por Cristo: �que

nos tem abençoado (eu)logh/saj)� (3). O particípio aoristo (eu)logh/saj), indica den-tro deste contexto, um fato consumado e a ação continuada de Deus. Podemos in-terpretar que Deus na eternidade já nos abençoou definitivamente; a sua bênção é

completa; todavia, ela é-nos comunicada constantemente através da história. Essas

bênçãos são multifacetadas: �toda sorte� (pa/sh), na realidade, �todas� e �cada� bên-ção que temos, sem exceção, provém do Senhor. As �regiões celestiais� (e)n toi=j e)pourani/oij = lit. �dos céus�, �celestiais�)

2 indicam a procedência das bênçãos. E-las provêm de Deus, o Pai que habita os céus (Mt 6.9) e, para onde Ele mesmo nos

levará (2Tm 4.18). Devemos estar atentos ao fato de que tudo que temos provém de

Deus, através de Cristo, sendo comunicado pelo Espírito. De modo especial o texto destaca algumas dessas bênçãos: a eleição (4-5), a redenção (7), o selo do Espírito

(13-14). Portanto, �é uma tentação muito grave, ou seja, avaliar alguém o

amor e o favor divinos segundo a medida da prosperidade terrena que ele

alcança�.3 As bênçãos são espirituais porque se originam em Deus, sendo-nos

1 Conferências ministradas na 23ª Conferência Fiel para Pastores e Líderes em Águas de Lindóia no

período de 1 a 5 de outubro de 2007. 2E)poura/nioj: Mt 18.35 (variante textual); Jo 3.12; 1Co 15.40,48,49; Ef 1.3,20; 2.6; 3.10; 6.12; Fp 2.10; 2Tm 4.18; Hb 3.1; 6.4; 8.5; 9.23; 11.16; 12.22. 3João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 17.14), p. 346.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 2/108 comunicadas pelo Espírito. Essas bênçãos relacionam-se diretamente ao ministério

de Cristo, que é celestial (2Tm 4.18), tendo um alcance cósmico (Ef 3.10). Isso também denota a nossa nova condição: Deus �nos fez assentar nos lugares celesti-

ais (e)pourani/oij)� (Ef 2.6) juntamente com Cristo (Ef 1.20). Essa realidade é alta-mente estimulante: cada bênção de Deus, o Seu cuidado mantenedor e preservador constitui-se na administração de Sua graça, concedida em Cristo Jesus desde a e-ternidade. Devemos então, considerar que, �se desejamos refrear nossas paixões,

devemos recordar que todas as coisas nos têm sido dadas com o propósito

de que possamos conhecer e reconhecer o seu autor�.4

Considerando essas bênçãos, que ultrapassam em muito a nossa capacidade de pensar, sentir ou imaginar (Ef 3.20), devemos buscar o reino de Deus (Mt 6.33); as �coisas lá do alto� onde Cristo está à direita de Deus (Cl 3.1). Tudo que temos é �em Cristo�. �Vê-se então que a fé nos ensina que todo o

bem que nos é necessário e que em nós mesmos não existe está em Deus e

em Seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, em quem o Senhor constituiu toda a

plenitude das Suas bênçãos e da Sua liberalidade�.5 Neste texto, Ef 1.3-14, há

pelo menos doze referências direta a Cristo, indicando a verdade de que, fora de Cristo nada somos e nada temos; Ele é o fundamento da Igreja. Juntamente com os dons celestiais, Cristo dá-se a Si mesmo por nós (Rm 8.32). A eleição tem um senti-do escatológico: é da eternidade para a eternidade em santificação: até que a nossa

salvação seja consumada na glorificação.6

Paulo inicia a doxologia bendizendo a Deus, demonstrando que Deus é digno de ser bendito. A palavra bendito, (Eu)loghto\j = �louvado�, �bem-aventurado�) (Hebrai-co: Baruk; Latim: Benedictus) ocorre 8 vezes no Novo Testamento e é sempre usada

para Deus (Mc 14.61; Lc 1.68; Rm 1.25; 9.5; 2Co 1.3; 11.31; Ef 1.3; 1Pe 1.3).7 A fra-seologia desta saudação, também empregada em 2Co 1.3, assemelha-se à de Pe-dro em 1Pe 1.3. Na Epístola aos Coríntios, Paulo bendiz a Deus considerando o fa-to de que é Ele quem nos conforta em toda a nossa tribulação; Pedro, bendiz a Deus

tendo em vista a nossa regeneração efetuada pela misericórdia de Deus, para que

tenhamos uma viva esperança através da ressurreição de Cristo. Em Efésios, Paulo,

contemplando a extensão da obra do Deus Triúno de eternidade à eternidade efetu-ando a nossa eleição, dá graças a Deus. (Ver o Salmo 103).8 Paulo diz que Deus, o pai, tem, através da história, manifestado as suas bênçãos

eternas para conosco � Paulo, os efésios e todos os santos em todos os tempos � nas regiões celestiais em Cristo Jesus. Notemos aqui, que Deus é Pai do �nosso

Senhor Jesus Cristo� (path\r tou= kuri/ou h)mw=n )Ihsou= Xristou=).

4João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p. 72.

5 João Calvino, As Institutas, (1541), III.9.

6 Vd. J. Calvino, As Institutas, III.22.10.

7 Na Septuaginta, a única vez que a palavra é usada para referir-se ao homem é em Gênesis 24.31.

8Ver: R.C.H. Lenski, The Interpretation of St. Paul´s Epistles to the Ephesians, Peabody, Massachu-

setts: Hendrickson Publishers, 1998, (Ef 1.3), p. 349.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 3/108 Paulo dá graças a Deus considerando então as bênçãos de Deus derramadas

sobre o sue povo: No passado: (Eleição) (Ef 1.3,4); No presente: (Redenção) (Ef

1.7); No futuro: (Posse definitiva da vida eterna) (Ef 1.12-14). O mesmo Espírito que nos abençoa, orienta-nos em nossa adoração, a fim de

que ofereçamos a Deus «hinos e cânticos espirituais» (Ef 5.19), conforme acentuou Old: �Os hinos e salmos que são cantados na adoração sãos músicas espiri-

tuais, isto é, elas são as músicas do Santo Espírito (Atos 4.25; Ef 5.19)�.9 (Ver: Cl 3.16). Os eleitos bendizem a Deus pelo que Ele é e pelo que Ele fez por nós. A gratidão

deve nortear o nosso relacionamento com Deus. �Não há um caminho mais dire-

to (à gratidão), do que o de tirarmos nossos olhos da vida presente e meditar

na imortalidade do céu�.10

Deus deve ser sempre o alvo de nossa adoração sincera, resultante de um cora-ção consciente e agradecido, que reconhece a Sua Glória e os Seus atos salvado-res e abençoadores. (2Ts 2.13/Ef 5.20). Comentando o Salmo 6, Calvino assim se

expressa: �Depois de Deus nos conceder gratuitamente todas as coisas, ele

nada requer em troca senão uma grata lembrança de seus benefícios�.11 Fomos eleitos por Deus na eternidade para que O adoremos. Portanto, no culto a igreja vivencia o propósito de sua eleição: o fim principal do homem é glorificar a

Deus! A igreja é a comunidade de adoradores que se congrega para testemunhar

publicamente os atos graciosos de Deus. b) O Homem perante Deus: �Com que me apresentarei ao Senhor?� (Mq 6.6). Esta certamente é a grande

pergunta com a qual todo o ser humano se deparará um dia. O homem foi criado

para se relacionar com o Seu Criador. Deus ao criar o homem conferiu-lhe uma iden-tidade própria que o distinguiria de toda a criação. Enquanto os outros seres cria-dos (peixes, aves, animais domésticos, animais selváticos, etc.) o foram conforme as

suas respectivas espécies. O homem, diferentemente, teve o seu modelo no próprio Deus Criador � �Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, confor-

me a nossa semelhança....� (Gn 1.26); �e vos revistais do novo homem, criado se-

gundo Deus....� (Ef 4.24) � sendo distinto assim, de toda a demais criação, partilhan-do com Deus de uma identidade desconhecida por todas as outras criaturas, visto que somente o homem foi criado �à imagem e semelhança de Deus�. Somente o

homem pode partilhar de um relacionamento pessoal, voluntário e consciente com

Deus. Por isso, quando se trata de encontrar uma companheira para o homem com 9Hughes Oliphant Old, Worship: That Is Reformed According to Scripture, Atlanta: John Knox Press,

1984, p. 6. 10

João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 73. 11

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 6.5), p. 129. Por sua vez, �os ímpios e hipócritas

correm para Deus quando se vêem submersos em suas dificuldades; mas assim que se vêem

livres delas, olvidando seu libertador, se regozijam com frenética hilaridade� [João Calvino, O

Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 28.7), p. 608].

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 4/108 a qual ele possa se relacionar de forma pessoal � já que não se encontra em todo o

resto da criação �, a solução é uma nova criação, tirada da costela de Adão e, trans-formada por Deus em uma auxiliadora idônea, com a qual Adão se completará,

12 passando a haver uma �fusão interpessoal�, �unidade essencial�, constituindo-se os dois uma só carne(Gn 2.20-24; Mc 10.8),13 unidos por Deus (Mt 19.6).14 Mas se o homem e a mulher se completam física, psíquica e afetivamente, consti-tuindo assim a vida social � o que de fato está longe de ser isso irrelevante �,15 am-bos têm uma matriz metafísica, transcendente: ambos procedem de Deus para vive-rem com e para Deus. Por isso, a questão que permanece na tela das atenções do

homem, ainda que costumeiramente ele não saiba defini-la, é o seu encontro com

Deus. Pela perda da dimensão do eterno o homem trilha por atalhos que, quando

muito, servem como paliativos para as suas angústias, mas, que ao final, aumentam

ainda mais a sua dor e desilusão. Assim, o homem procura alento na filosofia, na ar-te, na filantropia, na religião, na diversão, no consumo, no sexo, no trabalho e nas

drogas. Ainda que algumas dessas fugas possam ser úteis intelectual e socialmen-te, elas, por si só não resolvem a questão fundamental do ser humano: �Com que

me apresentarei ao Senhor?� (Mq 6.6). Sem a dimensão metafísica da existência todo o nosso labor carece de sentido,

pois o sentido não é conferido intrinsecamente pelo que pensamos por nós mesmos

ou fazemos, mas em Deus, Aquele que confere significado ao nosso real. O homem como uma �síntese de infinito e de finito�

16 carece de um referencial que vá além

de si mesmo. Em outras palavras, como ser finito que é, �ele não representa um

ponto de integração suficiente para si mesmo�.17 Sem esse �ponto� o homem

buscará referência apenas em tendências, moda, estatísticas ou no seu �bom sen-so�; ou seja: carecerá de absolutos. Sem absolutos a vida transforma-se em uma

12

Ver: O. Palmer Robertson, Cristo dos Pactos, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1997, p. 69. 13�20

Deu nome o homem a todos os animais domésticos, às aves dos céus e a todos os animais sel-

váticos; para o homem, todavia, não se achava uma auxiliadora que lhe fosse idônea. 21

Então, o

SENHOR Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e este adormeceu; tomou uma das suas coste-

las e fechou o lugar com carne. 22

E a costela que o SENHOR Deus tomara ao homem, transformou-

a numa mulher e lha trouxe. 23

E disse o homem: Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da mi-

nha carne; chamar-se-á varoa, porquanto do varão foi tomada. 24

Por isso, deixa o homem pai e mãe

e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne� (Gn 2.20-24). �Por isso, deixará o homem a seu pai e mãe e unir-se-á a sua mulher, e, com sua mulher, serão

os dois uma só carne. De modo que já não são dois, mas uma só carne� (Mc 10.7-8). 14�.... o que Deus ajuntou não separe o homem� (Mc 10.9).

15 �O objetivo do reino temporal é fazer que possamos adaptar-nos à companhia dos ho-

mens durante o tempo que nos cabe viver entre eles; estabelecer os nossos costumes em

termos de uma justiça civil; viver em harmonia uns com os outros; e promover e manter paz e

tranqüilidade comum. Reconheço que todas estas coisas seriam supérfluas, se o reino de

Deus, que ora se mantém em nós, anulasse a presente existência. Mas se é da vontade de

Deus que caminhemos na terra enquanto aspiramos à nossa verdadeira pátria, e se, ade-

mais, tais acessórios são necessários nessa viagem para lá, os que querem separá-los do

homem vão contra a sua natureza humana� [João Calvino, As Institutas, (1541), IV.16]. 16

S.A. Kierkegaard Desespero Humano, Doença Até à Morte, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensado-res, Vol. XXXI), 1974, p. 337. 17

F.A. Schaeffer, O Deus que Se Revela, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 39-40.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 5/108 �novela das oito�: Tudo é permitido dentro do consenso do produtor, diretor e do grande público... No entanto Deus existe e o homem foi criado à sua imagem e semelhança. No re-lato histórico da criação do homem, encontramos o registro inspirado: "Também dis-

se Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança....�

(Gn 1.26). Deus Se aconselha consigo mesmo e delibera. Aqui podemos ver a sin-gularidade da criação do homem; em nenhum outro relato encontramos esta forma

relacional.18 Conforme acentua Bavinck (1854-1921), �Ao chamar à existência

as outras criaturas, nós lemos simplesmente que Deus falou e essa fala de

Deus trouxe-as à existência. Mas quando Deus está prestes a criar o homem

Ele primeiro conferencia consigo mesmo e decide fazer o homem à Sua i-

magem e semelhança. Isso indica que especialmente a criação do homem

repousa sobre a deliberação, sobre a sabedoria, bondade e onipotência de

Deus. (...) O conselho e a decisão de Deus são mais claramente manifestos

na criação do homem do que na criação de todas as outras criaturas�.19

Aqui temos o decreto Trinitário que antecede o tempo e, que agora, se executa his-toricamente conforme o eternamente planejado.

O �Façamos� de Deus, conforme usado em Gênesis 1.26,20 indica que o homem

foi criado após deliberação ou consulta, como explica Calvino: "Até aqui Deus tem

se apresentado simplesmente como comandante; agora, quando ele se a-

proxima do mais excelente de todas as suas obras, ele entra em consulta".21

O fato de Deus ter criado o homem após deliberação, tem dois objetivos na con-

cepção de Calvino (1509-1564): 1) nos ensinar que o próprio Deus se encarregou de fazer algo grande e maravilhoso; 2) dirigir a nossa atenção para a dignidade de nos-sa natureza.22 Assim, conclui ele: "Verdadeiramente existem muitas coisas nesta

natureza corrupta que pode induzir ao desprezo; mas se você corretamente

pesa todas as circunstâncias, o homem é, entre outras criaturas, uma certa

preeminente espécie da Divina sabedoria, justiça, e bondade, o qual é me-

recidamente chamado pelos antigos de microcosmos 'um mundo em minia-

tura��.23 18

Vd. Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p.

24. 19

Herman Bavinck, Our Reasonable Faith, 4ª ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1984, p. 184. 20he&A(an (na�aseh), qal, imperfeito.

21John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michigan:

Eerdamans Publishing Co., 1996 (Reprinted), Vol. 1, p. 91. 22

Cf. John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Vol. 1, p. 92. Cf. João

Calvino, As Institutas, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1985, I.15.3. 23

John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Vol. 1, p. 92. Comentando Gênesis 5.1, Calvino diz que Moisés repetiu o que ele havia dito antes, porque �a excelência e a

dignidade desse favor não poderia ser suficientemente celebrada. Foi sempre uma grande

coisa, que o principal lugar entre as criaturas foi dado ao homem�. [John Calvin, Commentar-

ies on The First Book of Moses Called Genesis, Vol. 1, p. 227. Vd. J. Calvino, As Institutas, II.1.1].

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 6/108 Davi, contemplando a majestosa criação de Deus, escreveu: �Graças te dou, vis-

to que por modo assombrosamente maravilhoso me formaste; as suas obras são

admiráveis, e a minha alma o sabe muito bem� (Sl 139.14). É justamente pelo fato do homem ter a impressão pessoal de Deus no mais alto

grau é que ele necessita voltar-se para Deus. A nossa fome espiritual nada mais é

do que o revelar o nosso vazio e a necessidade de que ele seja preenchido com al-go que ultrapassa as nossas possibilidades. Daí o vazio ser o tema recorrente da

humanidade.24 Algo nos falta, somos como que um recipiente rachado que não con-segue se completar; por isso, de certa forma podemos dizer que "o desejo é a

própria essência do homem".25 Mas, o trágico é que o que buscamos para nos satisfazer nos escapa, a felicidade que procuramos torna-nos vezes sem conta ainda mais frustrados. Aqui está algo desalentador: �Parte da cruel ironia da existência

humana parece ser que as coisas que, em nossa opinião, iriam nos fazer feli-

zes, deixam de fazê-lo�.26 "Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo; também

pôs a eternidade no coração do homem, sem que este possa descobrir as obras que

Deus fez desde o princípio até o fim" (Ec 3.11). �Com que me apresentarei ao Senhor?� (Mq 6.6). Este texto se propõe a respon-der esta e outras questões concernentes ao culto a Deus. 1. A RELIGIÃO COMO FENÔMENO UNIVERSAL: A Religião é um fenômeno universal. A Antropologia, a Sociologia, a Filosofia, a

Arqueologia e a História, entre outras ciências, têm demonstrado de forma convin-cente que a religião está presente em todas as culturas antigas e modernas. Por is-so, podemos falar do homem como sendo um ser religioso.27 O homem procura de-sesperadamente um significado para a sua vida, tentando encontrar um equilíbrio

entre os seus extremos existenciais: a vida e a morte, o ser e o nada, a ordem e o caos. Dentro desta perspectiva, o caminho religioso é, quase que invariavelmente

seguido pelo homem na busca de significado para o seu existir. A experiência religi-

24

Ver: Alister McGrath, O Deus Desconhecido: Em Busca da Realização Espiritual, São Paulo: Loyo-la, 2001, p. 7. 25

B. Espinosa, Ética, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XVII), 1973, IV.18. p. 244. �Por

desejo sempre se quer significar a ausência do objeto� [Thomas Hobbes, Leviatã, São Paulo:

Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XIV), 1974, I.6. p. 37]. 26

Alister McGrath, O Deus Desconhecido: Em Busca da Realização Espiritual, p. 9. Calvino (1509-1564) comenta que �.... enquanto todos os homens naturalmente desejam e correm após a fe-

licidade, vemos quão quanta determinação se entregam a seus pecados; sim, todos aque-

les que se afastam ao máximo da justiça, procurando satisfazer suas imundas concupiscên-

cias, se julgam felizes em virtude de alcançarem os desejos de seu coração.� [João Calvino, O

Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 1 (Sl. 1.1), p. 51]. 27�É uma verdade indiscutível que o sentimento religioso é conatural ao ser humano, pois

não existe nenhuma sociedade primitiva ou civilizada, que não acredite em seres sobrenatu-

rais ou que não pratique alguma forma de culto� (Salvatore D�Onofrio, Metodologia do Trabalho

Intelectual, São Paulo: Atlas, 1999, p. 13). Geisler e Feinberg dizem que o �o homem é incuravelmen-te religioso�. (Norman L. Geisler & Paul D. Feinberg, Introdução à Filosofia: uma perspectiva cristã,

São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 269, 278).

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 7/108 osa é universal, assumindo características pessoais e, ao mesmo tempo universais.

Do mesmo modo que minha experiência é particular e pessoal, ela tem em si os

mesmos ingredientes da experiência do outro: todos desejam o mesmo equilíbrio,

ainda que não pelos mesmos caminhos e com nomes diferentes. A religião é um a-panágio do ser humano. O grande etnólogo Bronislaw Malinowski (1884-1942), inicia o seu livro Magia, Ci-

ência e Religião, com esta afirmação: �Não existem povos, por mais primitivos

que sejam, sem religião nem magia.�28

Na Antigüidade, Cícero (106-43 a.C.), Plutarco (50-125 AD) e outros, constataram este fato. Cícero observou que não há povo tão bárbaro, não há gente tão brutal e

selvagem, que não tenha em si a convicção de que há Deus.29 Calvino (1509-1564)

acentua que, �A aparência do céu e da terra compele até mesmo os ímpios a

reconhecerem que algum criador existe. (...) Certamente que a religião nem

sempre teria florescido entre todos os povos, se porventura as mentes huma-

nas não se persuadissem de que Deus é o Criador do mundo�.30

�Portanto,

até os próprios ímpios são para exemplo de que vige sempre na alma de to-

dos os homens alguma noção de Deus�31

Mas, o que significa religião? Ainda que não possamos responder a questão a-penas pela simples explicação da palavra, acreditamos que esta pode fornecer-nos algumas pistas. A palavra �religião� é de origem incerta. Cícero (106-43 a.C.), asso-cia a palavra ao verbo latino �relegere� (reler, ler com cuidado).32 Cícero, assim ex-plicou: �Aqueles que cumpriam cuidadosamente com todos os atos do culto

divino e por assim dizer os reliam atentamente foram chamados de religiosos

de relegere, como elegantes de eligere, diligentes de diligere, e inteligentes

de intellegere; de fato, nota-se em todas estas palavras o mesmo valor de

legere que está presente em religião�.33 Deste modo, a religião seria o estudo di-

ligente acompanhado da observância das coisas que pertencem aos deuses.34

No entanto, a explicação mais famosa, relaciona a origem da palavra à �religio� e �religare� (religar) trazendo a idéia embutida de �religar-se com Deus�. Essa explica-

28

Bronislaw Malinowski, Magia, Ciência e Religião, Lisboa: Edições Setenta, (s.d.), p. 19. 29

Vd. Cicero, The Nature of the Gods, England: Pinguin Books, 1972, I.17; II.4 30

João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.3), p. 299. Em outro lu-gar: �.... tão belo é seu arranjo [dos céus], e tão excelente sua estrutura, que todo seu arca-

bouço é declarado como o produto das mãos de Deus.� [João Calvino, O Livro dos Salmos,

São Paulo: Parakletos, 2002, Vol. 3, (Sl 102.25), p. 585]. 31

João Calvino, As Institutas, I.3.2. 32

Cicero, The Nature of the Gods, II.72-74. p. 152-153. 33

Cicero, The Nature of the Gods, II.28. 34

Cf. Religio: In: Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, © 1985, p. 262.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 8/108 ção encontra-se em Lactâncio (c. 240-c. 320) � Divinae Institutiones, (c. 304-313) e Agostinho (354-430) � De Civitate Dei

35 e De Vera Religione.

Lactâncio que discorda da explicação de Cícero, diz: �Nós dissemos que o

nome religião (religionis) é derivado do vínculo de devoção, porque Deus li-

gou o homem a Ele, e o prende por devoção; porque nós O temos que servir

como um mestre, e ser-Lhe obediente como a um pai�.36

Agostinho, após falar do que não devemos adorar, afirma: �Que a nossa religi-

ão nos ligue, pois, ao Deus único e onipotente�.37

Thomas Hobbes (1588-1679) em 1651, vai um pouco além, concluindo que a reli-gião é exclusividade do ser humano: �Verificando que só no homem encontra-

mos sinais, ou frutos da religião, não há motivo para duvidar que a semente

da religião38

se encontra também apenas no homem, e consiste em alguma

qualidade peculiar, ou pelo menos em algum grau eminente dessa qualida-

de, que não se encontra em outras criaturas vivas�.39

35

Agostinho, A Cidade de Deus, 2ª ed. Petrópolis, RJ./São Paulo: Vozes/Federação Agostiniana Bra-sileira, 1990, (parte I), X.3. p. 373. Vd. também, Ibidem., X.32. p. 410-414. 36

Lactantius, The Divine Institutes, IV.28. In: Alexander Roberts & James Donaldson, eds. Ante-

Nicene Fathers, Peabody, Massachusetts: Hendrickson publishers, © 1994, Vol. VII, p. 131. 37

Santo Agostinho, A Verdadeira Religião, São Paulo: Paulinas, 1987, 55. p. 145. 38

Expressão já utilizada por Calvino (Ver: As Institutas, I.5.1). 39

Thomas Hobbes, Leviatã, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XIV), 1974, p. 69.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 9/108

2. O HOMEM COMO CENTRO DE TODAS AS COISAS?!:

�É perigoso fazer ver demais ao ho-

mem quanto ele é igual aos animais,

sem lhe mostrar a sua grandeza. É ainda

perigoso fazer-lhe ver demais a sua

grandeza sem a sua baixeza. É ainda

mais perigoso deixá-lo ignorar uma e

outra. Mas é muito vantajoso represen-

tar-lhe ambas� � Pascal.40

Uma das características do homem �pós-moderno� é a falta de referenciais. Atra-vés dos séculos ele tem destruído tudo o que foi apontado como modelo de orienta-ção e padrão de avaliação. Ele destruiu suas tradições e dogmas, esqueceu-se de Deus, alijando todas as suas referências... Assim, sem orientação, paradoxalmente,

sente-se livre e ao mesmo tempo inseguro diante das incertezas resultantes de suas escolhas. Aniquilou o que tinha e não sabe como recomeçar. Mondin resume:

�Perdeu a referência que lhe servia de orientação e não consegue mais

encontrar parâmetros válidos sobre os quais fundar seus juízos. Não sabe

mais distinguir entre o bem e o mal, entre o verdadeiro e o falso, entre o

belo e o feio, entre o justo e o injusto, entre o útil e o prejudicial, entre o líci-

to e o ilícito, entre o decente e o inconveniente etc. (...) As antigas certe-

zas culturais e morais jazem por terra; os valores sobre os quais se fundava

a nossa civilização foram como que esmagados e dissolvidos; os pontos

de referência do progresso e da ação perderam sua consistência�.41

A nossa época atingiu o clímax do humanismo que gerou algo tragicamente de-sumano. Vejamos algumas pinceladas de como isso se deu.

A) O Humanismo Renascentista: Se a Idade Média foi o �tempo� de Deus; a Renascença foi o �tempo� do ho-mem. Este conceito pode ser elaborado de muitos modos mas, esta perspectiva difi-cilmente pode ser questionada, exceto por dois aspectos: Na Idade Média o Deus

buscado, em muitos sentidos não era o Deus da revelação bíblica e, o Humanismo-Renascentista, graças à Reforma, não limitou o seu olhar ao homem como o fim de

todas as coisas. Aliás, a Reforma é sob muitos aspectos uma correção ao Huma-nismo-Renascentista, tão dominado pela visão grega. Creio que neste sentido a Re-forma foi mais revolucionária do que os historiadores, filósofos e sociólogos estão

dispostos a admitir.42 No entanto, acreditamos que essas duas perspectivas não in-

40

Blaise Pascal, Pensamentos, VI.418, p. 139. 41

Battista Mondin, Curso de Filosofia, São Paulo: Paulinas, 1983, Vol. III, p. 7. 42

Schaeffer (1912-1984) percebe isso ao dizer: "A Reforma foi revolucionária porquanto se apar-

tou tanto do humanismo católico-romano como do secular" (Francis A. Schaeffer, A Fe de los

Humanistas, 2ª ed. Madrid: Felire, 1982, p. 10). É digna de nota a observação do filósofo católico

Émile Bréhier (1876-1952): "A Reforma opõe-se tanto à teologia escolástica, quanto ao hu-

manismo. Nega a teologia escolástica, porque nega, com Ockham, que nossas faculdades

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 10/108 validam o princípio predominante enunciado: Se a Idade Média foi o �tempo� de

Deus; a Renascença foi o �tempo� do homem. No quinto século antes de Cristo, o filósofo sofista grego Protágoras (c. 480-410 a.C.) na sua obra, hoje perdida, A Verdade (A)lh/qeia) disse: Homo Mensura, ou na forma completa: "O homem é a medida de todas as coisas, da existência das

que existem e da não existência das que não existem".43 A Renascença se ca-racteriza pela tentativa de vivenciar este conceito. Neste período houve uma "vira-da antropológica". Deus cedeu lugar ao homem, deixando de ser o centro das aten-ções; o "homem virtuoso" passou a ocupar o trono da história. "O homem pelo

homem para o homem"; este é, de certa forma, o lema implícito do Humanismo

Renascentista. Este "antropocentrismo refletido", se retrata no homem renascentis-ta, profundamente otimista no que se refere à sua capacidade; ele se julga em

plenas condições de planejar o seu próprio futuro, sua existência individual, apro-ximar-se da perfeição; tudo está em suas mãos, nada lhe escapa. Marcílio Ficino

(1433-1499), considerava o homem como uma "síntese de todas as maravilhas do

universo"; ou, na sua expressão, "copula mundi" ("Nexo do mundo").44 O homem

passou a ser considerado como o centro do mundo, a imagem completa de todas as coisas; o livro da natureza.45 Pico della Mirandola (1463-1496), em seu panegíri-co sobre o homem, já no primeiro parágrafo, cita Hermes: �Grande milagre, ó As-

clépio, é o homem�.46

Schaeffer depois de interpretar o Davi (1504) de Miguel Ângelo (1475-1564) como uma declaração humanista,

47 conclui: �Os humanistas tinham certeza de que o

racionais possam conduzir-nos da natureza ao seio de Deus. Renega o humanismo, menos

por seus erros do que por seus perigos, posto que as forças naturais não podem comunicar

qualquer sentido religioso" (É. Bréhier, História da Filosofia, São Paulo: Mestre Jou, 1977-1978, I/3, p. 209). Semelhantemente, afirma o historiador francês Boisset: �A preocupação do humanista,

em suma, é afirmar e demonstrar a grandeza do homem; a do reformador, segundo a ex-

pressão de Calvino, é dar testemunho da �honra de Deus�� [Jean Boisset, História do Protes-

tantismo, São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1971, (Coleção �Saber Atual�), p. 17]. 43

Apud Platão, Teeteto, 152a: In: Teeteto-Crátilo, 2ª ed. Belém: Universidade Federal do Pará, 1988,

p 15. Citado também em Platão, Crátilo, 385e. Aristóteles, diz: "O princípio (...) expresso por Protá-

goras, que afirmava ser o homem a medida de todas as coisas (...) outra coisa não é senão

que aquilo que parece a cada um também o é certamente. Mas, se isto é verdade, con-

clui-se que a mesma cousa é e não é ao mesmo tempo e que é boa e má ao mesmo tem-

po, e, assim, desta maneira, reúne em si todos os opostos, porque amiúde uma cousa pare-

ce bela a uns e feia a outros, e deve valer como medida o que parece a cada um" (Metafí-

sica, XI, 6. 1 062. Vd. também, Platão, Eutidemo, 286). Platão diferentemente de Protágoras, enten-dia que a medida de todas as coisas estava em Deus. �Aos nossos olhos a divindade será �a me-

dida de todas as coisas� no mais alto grau� (Platão, As Leis, Bauru,SP.: EDIPRO, 1999, IV, 716c. p. 189). 44

Cf. Battista Mondin, Curso de Filosofia, São Paulo: Paulinas, 1981, Vol. II, p. 14. Expressão seme-lhante usada por Pico della Mirandola: �mundi copulam�. [Giovanni Pico Della Mirandola, Discurso

Sobre a Dignidade do Homem, (Edição Bilíngüe), Lisboa: Edições 70, (2001), p. 48 e 49]. Ele foi

grandemente influenciado por Marcílio Ficino (1433-1499), a quem conheceu em Florença (1484). 45

Vd. René Descartes, Discurso do Método, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XV),

1973, I, p. 41. 46

Giovanni Pico Della Mirandola, Discurso Sobre a Dignidade do Homem, p. 49. 47

Francis A. Schaeffer, Como Viveremos?, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 42-43.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 11/108

homem, partindo de si mesmo, seria capaz de resolver qualquer problema. A

fé no homem era total. O homem que, partindo de si mesmo, era capaz de

se esculpir a si mesmo na rocha, diretamente na natureza, poderia resolver

tudo. O brado humanista era �eu posso fazer o que bem quiser; espere só até

amanhã�. Mas Da Vinci, em seu brilhantismo, acabou, no final de sua vida,

vendo que o humanismo seria derrotado�.48

Assim, o homem não deve ficar olhando para as alturas mas, para dentro de

si mesmo; há uma mudança de ótica e perspectiva49 e, conseqüentemente de valo-

res. Deste modo, a metafísica é substituída pela introspecção, os olhares baixam do céu para o homem em sua concretude e beleza. Esta mudança refletiu-se em todas as áreas do conhecimento humano; o homem tornou-se o tema geral e central do saber: o corpo humano passou a ser reproduzido em telas; alguns artistas � visando conhecer mais exatamente os órgãos do corpo humano, para poder retratá-los melhor em suas obras [O luterano50 Albrecht Dürer (1471-1528), além de geôme-tra,51 tornou-se um especialista nesta arte]52 �, praticaram a dissecação de cadáve-

48

Francis A. Schaeffer, Como Viveremos?, p. 45. Aliás, o próprio trabalho de Miguel Ângelo na Ca-pela Sistina (Vaticano) (1512) revela uma obra de tal monta � tanto no aspecto físico como intelectual � que seria difícil conceber que um homem sozinho a pudesse realizar no espaço de 4 anos: �É mui-

to difícil a um mortal comum imaginar como foi possível a um ser humano realizar o que Mi-

guel Ângelo realizou em quatro anos de trabalho solitário nos andaimes da capela papal. O

mero esforço físico de pintar esse gigantesco afresco no teto da capela, de preparar e es-

boçar as cenas em detalhe, e de transferi-las para o teto, já era suficientemente fantástico.

Miguel Ângelo tinha de deitar-se de costas e pintar olhando para cima. De fato, habituou-se

de tal modo a essa posição acanhada que até quando recebia uma carta durante esse

período tinha que lê-la assumindo a mesma posição. Entretanto, a proeza física de um ho-

mem para cobrir esse vasto espaço sem ajuda nenhuma pouco representa em compara-

ção com a façanha intelectual e artística. A riqueza de novas invenções, a metria infalível

de execução em todos os detalhes e, sobretudo, a grandeza das visões que Miguel Ângelo

revelou aos pósteros proporcionaram à humanidade uma nova idéia de poder do gênio�

(E.H. Gombrich, A História da Arte, 16ª ed. São Paulo: Livros Técnicos e Científicos Editora, 1995, p.

307-308). 49

Vd. Ruy A. da Costa Nunes, História da Educação no Renascimento, p. 27. 50

Cf. N.V. Hope, Albrecht Dürer: In: J.D. Douglas & Philip W. Comfort, eds. Who�s Who in Christian

History, Wheaton, Illinois: Tyndale House Publishers, Inc. 1992, p. 217. Vejam-se extratos de seu diá-

rio (1521) e uma de suas cartas (1520) citados por Francis A. Schaeffer, Como Viveremos?, São Pau-lo: Cultura Cristã, 2003, p. 58-60. Do mesmo modo, Paul Romane Musculus, La Prière des Mains:

L�Église Réformée et L�Art, Paris: Editions �Je Sers�, 1938, p. 119-121. 51

Cf. John Hale, A Civilização Européia no Renascimento, Lisboa: Editorial Presença, 2000, p. 508. 52

�É emocionante observar Dürer experimentando várias regras de proporções, vê-lo distor-

cendo deliberadamente a compleição humana ao desenhar corpos demasiado longos ou

demasiado largos, a fim de descobrir o equilíbrio adequado e a harmonia perfeita� (E.H. Gombrich, A História da Arte, 16ª ed. São Paulo: Livros Técnicos e Científicos Editora, 1995, p. 347). Dürer pintou um quadro de Erasmo que se tornou famoso. Nele Dürer apresenta Erasmo como um

editor competente e criterioso. Quando Dürer morreu, Erasmo o homenageou em uma de suas obras realçando o seu brilho que, conforme declara Erasmo, faria com que Apeles, se ainda vivo o aplau-disse. (Ver. Roland H. Bainton, Erasmo da Cristandade, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,

(1988), p. 295-298). Não é demais lembrar que as contribuições artísticas na Renascença não estive-ram restritas à Itália [Ver: Peter Burke, As Fortunas d�O Cortesão: a recepção européia a O cortesão

de Castiglione, São Paulo: Editora da UNESP., 1997, p. 13].

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 12/108

res [Antônio Pollaiolo,53 Leonardo da Vinci (1452-1519)54 e Miguel Ângelo (1475-

1564)].55 No campo educacional, surgem grandes mestres, preocupados com a formação do homem; originando-se daí, obras sobre o comportamento humano; "a

escritura de tratados acerca da educação dos príncipes, outrora tarefa dos

teólogos, agora passa também a ser, naturalmente, assunto dos humanis-

tas".56 Não é sem razão, que Delumeau diz que o Renascimento �foi também

descoberta da criança, da família, no sentido estrito da palavra, do casa-

mento e da esposa. A civilização ocidental fez-se então menos antifeminista,

menos hostil ao amor no lar, mais sensível à fragilidade e à delicadeza da

criança�.57

O prazer "carnal" por sua vez, passa a ser apreciado em detrimento do propaga-

do "ascetismo" medieval: �O Renascimento foi, sem dúvida, sensual....�.58 En-

fim, o homem é o tema e senhor da história; já não espera favores divinos; antes,

pelo contrário, emprega seu talento pessoal para conseguir realizar os seus dese-jos; já não é mero espectador passivo do universo, mas seu agente, lutando para o modificar, melhorar e recriar. O humanismo renascentista é eminentemente ativista.

Este otimismo não era gratuito; ele estava acompanhado pela nova forma de ler,

entender e criticar a literatura e a arte antigas; as línguas da Europa tornam-se aos poucos, no grande veículo de comunicação das idéias, a imprensa floresce, a nave-gação conhece seu sucesso através das descobertas de novos continentes. Copér-nico (1473-1543)59 e Galileu Galilei (1564-1642) revolucionam a astronomia com uma nova compreensão do sistema solar,

60assinalando um marco importante dentro de uma transformação intelectual, causando uma revolução no retrato do mundo em

relação à compreensão medieval;61 enfim, tudo aponta para a capacidade do ho-

53

Cf. Pedro D. Nogare, Humanismos e Anti-Humanismos, p. 68. 54

Ele dissecou mais de trinta cadáveres (Cf. E.H. Gombrich, A História da Arte, p. 294). Ver também:

Daniel-Rops, A Igreja da Renascença e da Reforma: I. A reforma protestante, p. 195. 55

Cf. E.H. Gombrich, A História da Arte, p. 304-305. 56

J. Burckhardt, A Cultura do Renascimento na Itália: Um Ensaio, São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 163-164. 57

Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, Lisboa: Editorial Estampa, 1984, Vol. I, p. 23. 58

Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, Vol. I, p. 23. 59

Vd. Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, Vol. II, p. 144-146; Paolo Rossi, O Nascimen-

to da Ciência Moderna na Europa, Bauru, SP.: EDUSC, 2001, p. 115. 60

Vd. Philip Schaff & David S. Schaff, History of the Christian Church, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1996, Vol. VI, p. 561. 61

Referindo-se à teoria de Copérnico, escreve Hawking: �A ruptura que ela representou marcou

uma das maiores mudanças de paradigma da história mundial, abrindo caminho para a as-

tronomia moderna e afetando a ciência, a filosofia e a religião� (Stephen Hawking, Os Gênios

da Ciência: Sobre os ombros do Gigante: as mais importantes idéias e descobertas da física e da as-

tronomia, Rio de Janeiro: Elsevier Editora, 2005, p. 2-3). Ver também: Eugenio Garin, Ciência e Vida

Civil no Renascimento Italiano, São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996, p. 151-154.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 13/108 mem em seus avanços vitoriosos; aparentemente, para este não há limites; ele é o

centro de todas as coisas.62 Creio que Francis A. Schaeffer (1912-1984), resume bem o antropocentrismo do Humanismo, dizendo que o "Humanismo é a colocação do homem como

centro de todas as coisas, fazendo-o a medida de todas as coisas".63

O hu-manismo é fruto do orgulho de ser homem; de uma fé entusiasta em suas potenciali-dades. Berdiaeff (1874-1948) � em sua obra datada, é verdade �, propondo uma "Nova Idade Média", declara de forma patética, que o humanismo não alcançou o que de-sejava; por isso, a situação do homem moderno, é a pior de todas. Diz ele: "A história moderna é uma empreitada que não resultou bem, que não

glorificou o homem, como o fizera esperar. As promessas do humanismo não

foram cumpridas. O homem experimenta uma fadiga imensa e está pronto

a apoiar-se sobre qualquer gênero que seja de coletivismo, em que definiti-

vamente desaparecesse a individualidade humana. O homem não pode

suportar seu abandono, sua solidão".64

B) O Iluminismo: As respostas que buscamos ainda hoje, estão relacionadas às questões levan-tadas direta ou indiretamente pelos iluministas. A teologia ocorre dentro da história,

no tempo, com todos os seus conflitos, angústias e necessidades vitais de resposta. Realçando a atualidade das questões levantadas pelos iluministas, Tillich (1886-1965), conclui: �A maior parte de nossa vida acadêmica se baseia neles�.

65

�Os cristãos colocam a teologia em risco quando ignoram o iluminismo�, enfatizam Grenz e Olson.66 O iluminismo é, de certo modo, um filho tardio do huma-nismo renascentista. As concepções da Filosofia e da Ciência Moderna dentro de

um processo de evolução intelectual contribuíram para que surgisse um novo espíri-to, caracterizado pela autonomia da razão em detrimento da tradição ou de qualquer

outro padrão externo. A razão aqui pretendeu estender os seus limites para todos os ramos do saber, negando-se a reconhecer limites fora de si mesma; deste modo, ela num gesto sem-cerimônia, invade os �domínios� da ética, da epistemologia, da políti-

62

Ver: Bertrand Russell, História da Filosofia Ocidental, 2ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacio-nal, 1967, Vol. 3, p. 58-60. 63

F.A. Schaeffer, Manifesto Cristão, Brasília, DF.: Editora Refúgio, 1985, p. 27. 64

N. Berdiaeff, Uma Nova Idade Média, Rio de Janeiro: José Olympio, 1936, p. 12-13. 65

Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX, São Paulo: ASTE, 1986,

p. 47. 66

Stanley J. Grenz & Roger E. Olson, A Teologia do Século XX, São Paulo: Editora Cultura Cristã,

2003, p. 13.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 14/108

ca e da religião,67 tendo como elemento aferidor de toda a realidade a razão autô-

noma.68 Para isso, o Iluminismo rejeita qualquer �ajuda� transcendente; ele deseja somente o que pode conseguir com a sua razão, com seus próprios esforços: os

seus recursos são suficientes para entender e explicar o mundo ou o que quer que

seja que se lhe apresente como carente de explicação.69 O Iluminismo que durou

cerca de 150 anos (1650-1800),70 tem como uma de suas características fundamen-tais o retorno constante à razão, não mais à revelação; o homem racional é o centro

do universo... �A razão substituiu a revelação como árbitro da verdade�.71 O

homem é a medida de todas as coisas e a razão é o seu instrumento de medição; é

o cânon da verdade.72 �O século XVIII, o século do iluminismo, conserva intacta a confiança na

razão e é caracterizado pela decisão de se servir dela livremente�.73 A razão

não se opõe à experiência já que é ela que organiza esta, conforme a concepção

kantiana. . Este movimento originou-se na Inglaterra, expandindo-se pela França e Alema-nha, sendo então apelidado de �Aufklärung� (Iluminismo), justamente devido à sua

pretensão de iluminar o obscurantismo da tradição.74

67

Mackintosh diz que o Iluminismo, �.... deixou sua marca profunda não só na religião, senão

também na ciência, na filosofia e na filantropia....� (Hugh R. Mackintosh, Corrientes Teológicas

Contemporáneas, Buenos Aires: Methopress Editorial y Gráfica, 1964, p. 23). 68

Para uma interpretação da �autonomia� da razão iluminista, Vd. Paul Tillich, Perspectivas da Teolo-

gia Protestante nos Séculos XIX e XX, p. 48ss; Idem., História do Pensamento Cristão, São Paulo:

ASTE., 1988, p. 262-263. 69

Vd. E. Cassirer, A Filosofia do Iluminismo, Campinas, SP.: Editora da UNICAMP., 1992, p. 191. 70

Vd. Stanley J. Grenz, Pós-Modernismo: Um guia para entender a filosofia do nosso tempo, São

Paulo: Vida Nova, 1997, p. 97. 71

S.J. Grenz, Pós-Modernismo: Um guia para entender a filosofia do nosso tempo, p. 106-107. 72

Na Antigüidade, Aristóteles (384-322 a.C.), comentando a agudez do �homem bom� em discernir a

verdade, disse ser este a norma (Kanw/n) e a medida (M//e/tron) da verdade. (Aristóteles, Ética a Ni-

cômaco, III.4. 1113a 33). Protágoras (c. 480-410 a.C.), o filósofo sofista, já havia empregado o con-ceito de �medida�, aplicando-o ao homem, dizendo ser este, �a medida de todas as coisas�. (Cf. Platão, Teeteto, 152a; Aristóteles, Metafísica, XI.6.1 062. Vd. também, Platão, Eutidemo, 286). Con-forme já indicamos, Platão diferentemente de Protágoras, entendia que a medida de todas as coisas

estava em Deus. �Aos nossos olhos a divindade será �a medida de todas as coisas� no mais al-

to grau� (Platão, As Leis, Bauru, SP.: EDIPRO, 1999, IV, 716c. p. 189). 73

Nicola Abbagnano, História da Filosofia, 3ª ed. Lisboa: Presença, [1982], Vol. VII, § 476, p. 131. 74

Cf. U. Padovani, História da Filosofia, 13ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1981, p. 337; Idem., Filo-

sofia da Religião, São Paulo: Melhoramentos/EDUSP.: 1968, p. 109 e Michele F. Sciacca, História da

Filosofia, 3ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1968, Vol. II, p. 149. Aliás, este foi o grande objetivo de Chris-tian Wolff (1679-1723) em sua filosofia: �Iluminar o espírito humano de modo a tornar possível

ao homem o seu uso da atividade intelectual na qual consiste a sua felicidade. (...) Tal obje-

tivo não poderá ser atingido se não existir a �liberdade filosófica� que consiste na possibilida-

de de manifestar publicamente o que se pensa sobre as questões filosóficas� (Cf. Nicola Ab-bagnano, História da Filosofia, 4ª ed. Lisboa: Presença, 1994, Vol. VIII, § 504, p. 20-21). Aliás, este

ideal estaria bem próximo do que Kant chamaria posteriormente de �autonomia da razão�.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 15/108

�O Iluminismo, mais do que um sistema filosófico, é um movimento espiri-

tual, típico do século XVIII e caracterizado por uma ilimitada confiança na

razão humana, considerada capaz de dissipar névoas do ignoto e do mis-

tério, que obstruem e obscurecem o espírito humano, de tornar os homens

melhores e felizes, iluminando-os e instruindo-os. O Iluminismo é, em essên-

cia, um antropocentrismo, um ato de fé apaixonado na natureza humana,

considerada com seus caracteres universais e comuns a todos os homens,

e não na natureza individual e original de cada um. Os olhares são dirigi-

dos para o futuro; é um novo evangelho, uma nova era na qual o homem,

vivendo em conformidade com a natureza, será perfeitamente feliz�.75

(gri-

fos meus).

Bengt Hägglund resume tudo isto dizendo que o �Iluminismo caracterizou-se

por uma fé ingênua no homem e em suas potencialidades�.76

Kant (1724-1804), um dos maiores expoentes deste movimento, ilustrou bem o espírito da sua época, na sua famosa definição de Iluminismo. Em 1784, num artigo para uma revista, Kant se perguntou: "O Que é o Iluminismo?". Ele respondeu: "O Iluminismo é a emancipação de uma menoridade que só aos ho-

mens se devia. Menoridade é a incapacidade de se servir do seu próprio

intelecto sem a orientação de um outro. Só a eles próprios se deve tal me-

noridade se a causa dela não for um defeito no intelecto mas a falta de

decisão e de coragem de se servir dele sem guia. 'Sapere aude! Tem a co-

ragem de te servires do teu próprio intelecto!' é o lema do Iluminismo".77

Essa "maioridade" foi saudada jubilosamente por Nietzsche (1844-1900), que em 1882 escreveu:

"O mais importante dos eventos mais recentes � que 'Deus morreu',

que a crença no Deus cristão se tornou indigna de crédito � já começa

a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa... Na realidade, nós, os fi-

lósofos e 'espíritos livres' sentimo-nos irradiados como por uma nova au-

rora pelo relatório de que o 'velho Deus está morto'; nossos corações

transbordam de gratidão, de assombro, de pressentimento e de expecta-

tiva. Finalmente, parece que o horizonte está aberto de novo, ainda que

reconheçamos que não está brilhante; nossos navios podem finalmente

sair para o mar aberto, enfrentando todo o perigo; todo risco é permitido

outra vez para quem tiver discernimento; o mar, o nosso mar, mais uma

75

Battista Mondin, Curso de Filosofia, São Paulo: Paulinas, 1981, Vol. II, p. 153. 76

B. Hägglund, História da Teologia, Porto Alegre, RS.: Concórdia, 1973, p. 293. 77

E. Kant, Que es la Ilustracion?: In: E. Kant, Filosofía de la Historia, 3ª reimpresión, México: Fondo de Cultura Económica, 1987, p. 25. Tillich interpretando esta concepção de Kant, diz: �Kant achava

que as pessoas vivem mais despreocupadas quando se deixam guiar por líderes religiosos,

chefes políticos ou orientadores educacionais. Queria, porém, acabar com essa segurança.

Achava que essa dependência contradizia a verdadeira natureza humana� (Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX, p. 47).

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 16/108

vez fica aberto diante de nós, talvez nunca existisse antes semelhante

'mar aberto'�.78

Zilles comenta:

�A partir da morte de Deus tudo é reavaliado. A terra ocupa lugar de

deus. Convencendo-se de que Deus morreu, o homem se abre livremente

para suas possibilidades. No lugar do Deus cristão e do reino das idéias

platônicas põe a terra. Após a morte de Deus, o homem fala para o ho-

mem, invocando sua possibilidade suprema: o super-homem�.79

Prevalece a compreensão de que o homem, por meio de sua razão, é a lei para si

mesmo; é ele quem se governa não um outro (heteronomia).80 Kant (1724-1804),

assim escreveu: �Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças a

qual ela é para si mesma a sua lei.... Pela simples análise dos conceitos da

moralidade pode-se, porém, mostrar muito bem que o citado princípio da

autonomia é o único princípio da moral�.81 Neste caso, ser autônomo é ser re-gido única e exclusivamente pelas suas próprias leis.

Tillich (1886-1965), assim define este conceito: �Representa a vida humana vi-

vida segundo a lei da razão em todos os aspectos da atividade espiritual (...).

Para os indivíduos, autonomia é a coragem de pensar; coragem de se valer

dos próprios poderes racionais�.82 Dentro deste espírito, a tradição é rejeitada. �Na tradição, o Iluminismo vê uma

força hostil que mantém vivas crenças e preconceitos que é sua obrigação

destruir�.83 Na realidade, prevalece a compreensão de que tradição e erro coinci-

dem. O título de uma obra de Kant, escrita em 1793 � ainda que seja �simples abstra-

ção�84

�, retrata bem este período: A Religião Dentro dos Limites da Simples Ra-

78

Friedrich Nietzsche, The Joyful Wisdom, p. 275, Apud Colin Brown, Filosofia e Fé Cristã, São Pau-lo: Vida Nova, 1983, p. 94. Vd. Hermisten M.P. Costa, Deus em Nietzsche, São Paulo: 1996, 12p. 79

Urbano Zilles, Filosofia da Religião, São Paulo: Paulinas, 1981, p. 171. 80

Vd. Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX, p. 47ss.; Idem., His-

tória do Pensamento Cristão, p. 262-263; Laurence Thomas, Autonomia da Pessoa: In: Monique Can-to-Sperber, org. Dicionário de Ética e Filosofia Moral, São Leopoldo, RS.: Editora Unisinos, 2003, Vol.

1, especialmente, p. 142-143. 81

I. Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores,

Vol. XXV), 1974, p. 238. 82

Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX, p. 48. 83

Iluminismo: In: Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982, p.

510b. Tillich observa: �Para o iluminismo o passado se mantinha, até certo ponto, submerso

em superstição� (Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX, p. 95). 84

Ernst Cassirer observa que esta obra �transmite apenas a configuração ideal, a sombra de

uma genuína e concreta vida religiosa� (Ernst Cassirer, Antropologia Filosófica, 2ª ed. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1977, p. 51).

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 17/108

zão. Ela se tornou, conforme expressão de Braaten, o �manifesto religioso para o

iluminismo�.85 No entanto, deve ser dito que o Iluminismo carrega em seu bojo o germe de sua própria destruição. O escocês David Hume (1711-1776), embalado nestes conceitos, aplicou o ceticismo à religião e à capacidade da mente humana poder conhecer o

mundo externo; ele �empregava a razão até aos limites para mostrar as limita-

ções da razão�.86 Lembremo-nos, de que foi justamente Hume quem despertou Kant do �sono dogmático� e que este, mesmo fazendo da razão o único guia seguro para se chegar à verdade, impunha à razão limites rigorosos a fim de não cair no

precipício do naturalismo que exclui a idéia do absoluto: a razão é finita; ela não po-de conceber sozinha o infinito.87 Do Iluminismo confiante na razão, surge a crítica mais mordaz concernente à ca-pacidade da razão. Todavia, é necessário que não nos iludamos; em Kant, a razão

seria sempre o aferidor final e decisório. Num de seus escritos, enfatiza: �Amigos da humanidade e do que há de mais santo para ela, aceitai

também o que vos parecer mais digno de fé após um exame atento e

sincero, quer se trate de fato, quer se trate de princípios racionais, mas não

recuseis à razão o que a torna o bem mais alto sobre a terra: o privilégio

de ser a última pedra de toque da verdade�.88 De fato, a centralização do homem, a busca de sua essência como fim último de todas as coisas, não poderia nem pode gerar valores permanentes. Ainda hoje,

curiosamente, somos muitas vezes levados a pensar no homem "como a medida de todas as coisas": como se a solução de todos os seus problemas estivesse simplesmente na capacidade de olhar para dentro de si. Ora, não estamos dizendo

que a reflexão e a auto-análise não sejam relevantes, antes, o que estamos pro-pondo, é que a essência do homem não pode ser simplesmente determinada em si e por si; é preciso uma dimensão verdadeiramente teológica para que possamos

entender melhor o que somos. A genuína antropologia deve ser sempre e incondi-cionalmente teocêntrica!

89 Toda afirmação teológica tem implicações antropológicas, quer explícitas, quer implícitas.

90 85

Carl E. Braaten, Prolegômenos à Dogmática Cristã: In: Carl E. Braaten & Robert W. Jenson, eds.,

Dogmática Cristã, São Leopoldo, RS.: Sinodal, Vol. I, 1990, p. 59. Tillich diz que a obra de Kant pode-ria ser também chamada de �pequena teologia sistemática� (Paul Tillich, Perspectivas da Teolo-

gia Protestante nos Séculos XIX e XX, p. 81). 86

Colin Brown, Filosofia e Fé Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 48. Vd. também, C. Brown, Ilu-minismo: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida

Nova, 1988-1990, Vol. II, p. 308; Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e

XX, p. 78,83. 87

Cf. Nicola Abbagnano, História da Filosofia, Vol. VIII, §§ 531, 534, p. 129-131,144; P. Tillich, Pers-

pectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX, p. 78-79. 88

Kant, Was heisst: Sich im denken orientieren?, A 329 Apud Nicola Abbagnano, História da Filosofi-

a, Vol. VIII, § 531, p. 131. 89

Segundo me parece, uma compreensão semelhante pode ser encontrada em Wrigth, quando as-severa: �Como cristãos informados pela Palavra de Deus, percebemos que o mundo não

pode interpretar-se a si próprio. O verdadeiro conhecimento do �eu� envolve primeiro o ouvir

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 18/108 O homem moderno na sua pretensa auto-suficiência propõe-se a controlar to-das as coisas; e, quando ele considera o seu mundo perfeitamente elaborado dentro dos moldes daquilo que ele chama de "ciência", já não há mais lugar para

Deus; quando muito, este é retido em algum lugar sombrio da memória. Assim, Deus

torna-se uma "hipótese desnecessária",91 e até mesmo incômoda. O homem, esse

desconhecido para si mesmo, arroga-se no direito e na possibilidade de descartar o Senhor da Glória, assumindo uma postura secular autônoma.

92 E como conse-qüência disso, tornou-se escravo do seu próprio saber, tendo uma perspectiva e-quivocada da realidade, ficando encarcerado pelos próprios valores deste século, que ele consciente ou inconscientemente � mas não impunemente �, ajudou a formular. O homem tornou-se prisioneiro da sua própria concepção da realidade; o

seu conceito o aprisiona, não o real. Ao que parece com a Revolução Industrial, a ciência tornou-se cada vez mais "materialista", passando a estar preocupada com as necessidades aparentemente emergentes, distanciando-se da concepção de Deus, que soava para alguns como

um estorvo no caminho do verdadeiro pensar... A "moderna ciência moderna" seguindo esta linha de raciocínio, considerou

Deus desnecessário; "Deus não pertence ao campo da explicação científica

e portanto, na ciência como tal, essa hipótese não conta", conforme obser-vou Richardson.93 O irônico disso tudo, como assinala Hendrik van Riessen (1911-2000), é que a "todo-poderosa" ciência que não tinha lugar para Deus, também não

encontrou lugar para o próprio homem.94 Bavinck (1854-1921) comenta: �....a filo-

Deus falar na Escritura. Os cristãos também têm concluído que o valor da vida de uma pes-

soa não depende da capacidade de examinar-se a si mesma em termos de alguma filoso-

fia, mas do lugar que a pessoa tem no plano de Deus. Contudo, o auto-exame é tão difícil

agora como sempre foi, e todos nós temos áreas em nossa vida que não examinamos bem

de perto. As pressuposições ainda determinam nossos destinos, mesmo a despeito de algu-

ma inconsistência no caminho� (R.K. McGregor Wright, A Soberania Banida: Redenção para a

cultura pós-moderna, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 15). 90

Ver: J. Spykman, Teología Reformacional: Un Nuevo Paradigma para Hacer la Dogmática, Jeni-son, Michigan: The Evangelical Literature League, 1994, p. 218-221. 91

Vd. Hendrik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciencia, 2ª ed. Países Bajos: FELIRE, 1990, p.

42ss. "Sempre que a ciência, motivada por suas pressuposições, dê a solução definitiva e

determinada, não terá lugar para Deus. Não há lugar para a oração, nem para a graça di-

vina, nem para a bênção de Deus. Se uma sociedade planificada é cientificamente corre-

ta, já não necessita de Deus. Cada passo que se dá nessa direção, faz o mundo mais profa-

no e o distancia ainda mais de Deus" (Hendrik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciencia, p. 43). 92

Harold O.J. Brown, captou bem a polarização da mente moderna ao dizer que: "A mente secular

do século XX vacila entre dois extremos, sendo que os dois resultam na rejeição do Criador e

na negação da criação" (Harold O.J. Brown, A Opção Conservadora. In: Stanley Gundry, ed. Teo-

logia Contemporânea, São Paulo: Mundo Cristão, 1983, p. 367). 93

Alan Richardson, La Biblia En La Edad de la Ciencia, Buenos Aires: Editorial Paidos, (1975), p. 32. 94

Vd. Hendrik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciencia, p. 17. No século XX, homens da estatura de Martin Heidegger (1899-1976) e C.G. Jung (1875-1961), entre outros, atestam a ignorância con-temporânea do que seja o homem. (Vd. Hermisten M. P. Costa, Antropologia Teológica: Uma Visão

Bíblica do Homem, São Paulo: 1999, p. 5).

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 19/108

sofia, que depois de um período de decadência entra em período de forta-

lecimento, sempre cria uma expectativa extraordinária e exagerada. Nessas

épocas ela vive a esperança de que através de uma séria investigação ela

resolverá o enigma do mundo. Mas sempre depois dessa fervente expectati-

va chega a velha desilusão. Em vez de diminuir, os problemas aumentam

com os estudos. O que parece estar resolvido vem a ser um novo mistério, e

o fim de todo o conhecimento é então novamente a triste e às vezes deses-

peradora confissão de que o homem caminha sobre a terra em meio a e-

nigmas, e que a vida e o destino são um mistério�.95

Calvino (1509-1564), comentando o desejo humano por lisonjas, acrescenta que, quando o homem se detém em si mesmo, não prosseguindo em suas investiga-ções, permanece absorto na sua ignorância.

"...Nada há que a natureza humana mais cobice que ser afagada de

lisonjas. E, por isso, onde ouve seus predicados revestir-se de grande

realce, para esse rumo propende com demasiada credulidade. Portan-

to, não é de admirar que, neste ponto, se haja transviado, de maneira

profundamente danosa, a maioria esmagadora dos homens. Ora, uma

vez que é ingênito a todos os mortais mais do que cego amor de si mes-

mos, de muito bom grado se persuadem de que nada neles existe que,

com justiça, deva ser abominado. Destarte, mesmo sem influência de fo-

ra, por toda parte obtém crédito esta opinião de todo vã: que o ho-

mem é a si amplamente suficiente para viver bem e venturosamente (...).

Daí, porque tem sido, destarte, acolhido com o grande aplauso de quase

todos os séculos cada um que, com seu encômio, haja mui favoravel-

mente exaltado a excelência da natureza humana (...). Portanto, se al-

guém dá ouvidos a tais mestres que nos detêm em somente mirarmos

nossas boas qualidades, não avançará no conhecimento de si próprio, ao

contrário, precipitar-se-á na mais ruinosa ignorância".96

O Humanismo renascentista veio na esteira do pensamento grego cujos valores foram herdados pelo iluminismo e tem o seu clímax nos humanistas seculares mo-dernos.97 O trágico de tudo isso é que se a Idade Média foi pretensamente o tempo

95

Herman Bavinck, Our Reasonable Faith, 4ª ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1984,

p. 20. 96

J. Calvino, As Institutas, II.1.2. Ele contrapõe esta prática à real necessidade que temos de meditar na providência de Deus: �Por mais diligentemente uma pessoa se põe a meditar sobre as o-

bras de Deus, ela só pode alcançar as superfícies ou as bordas delas. Embora sendo assim

de tão grande altitude, muito acima de nosso alcance, devemos, não obstante, diligenciar-

nos, o quanto nos for possível, por aproximar-nos dela mais e mais em contínuo progresso; ao

vermos também a mão divina estendida para descortinar-nos, o quanto nos é oportuno,

aquelas maravilhas que por nós mesmos somos incapazes de descobrir� [João Calvino, O Livro

dos Salmos, Vol. 2, São Paulo: Paracletos, 1999, (Sl 40.5), p. 223]. 97

Cf. Gene Edward Veith, Jr., Tempos Pós-Modernos: uma avaliação cristã do pensamento e da cul-

tura da nossa época, São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 65. Veja-se exemplo disso em Erich Fromm, que sustenta que �o homem é capaz de saber o que é bom e de agir em conformidade, a-

poiado no vigor de suas potencialidades naturais e de sua razão�. Continua: �Seria insusten-

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 20/108 de Deus, o Renascimento foi o tempo do homem, o Iluminismo o tempo da razão,

hoje, não temos mais referências, o homem já não é o centro de todas as coisas,

visto que já não há mais centro.98 Estamos �perdidos no espaço�. Sem absolutos

não sabemos ao certo o valor do homem e o seu papel no universo. Sem princípios

universais não existem absolutos; sem estes, tudo é possível. O humanismo renascentista � do qual somos herdeiros � sem dúvida, tomou uma

parte importante da realidade, todavia, em geral, esqueceu-se da principal e, o mais lastimável de tudo, é que o esquecido é Aquele Quem dá sentido a tudo o

mais. O problema da existência é uma questão basicamente metafísica. Aliás, o ho-mem é um ser metafísico. A negação prática dessa realidade acarreta uma percep-ção errada e tristemente limitante da natureza humana. Por isso, o homem �pós-moderno� dispõe diante de si de todas as saídas possíveis, porém, nenhuma delas conduz ao �fim� necessário. Os seus pressupostos descartam o único caminho real

do significado da vida e do ser: O Deus transcendente e pessoal. O Deus que Se re-vela como tal conferindo sentido a todo o real e à nossa existência. Aqui, no entanto, vai uma advertência de Kuyper (1837-1920) especialmente a nós, Reformados:

�Se nos consolamos com o pensamento de que podemos sem perigo

deixar a ciência secular nas mãos de nossos oponentes, se somos bem-

sucedidos apenas em salvar a Teologia, nossas táticas serão as do aves-

truz. É realmente insensato limitar-se à salvação de seu quarto superior,

enquanto o resto da casa está em chamas�.99

3. O HOMEM, ESSE DESCONHECIDO:

�À medida que a crença em Deus se

torna mais rara, a crença no homem es-

tá tomando o seu lugar; assim, estamos

testemunhando o surgimento de um

novo Humanismo� � Anthony A. Hoeke-

ma.100

A Antropologia, a)/nqrwpoj & lo/goj, é o estudo do homem; a ciência do ho-mem em geral.101 Esta disciplina com suas várias ramificações, trata desse �frag-

tável se fosse verdadeiro o dogma da maldade natural nata do homem� [Erich Fromm, Análi-

se do Homem, São Paulo: Círculo do Livro, (s.d.), p. 182]. 98

Cf. Gene Edward Veith, Jr., Tempos Pós-Modernos, p. 68. 99

Abraham Kuyper, Calvinismo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 145. 100

Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 12. 101

Abbagnano define Antropologia como �A exposição sistemática dos conhecimentos que se

têm a respeito do homem.� (Antropologia: Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, 2ª ed. São

Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 63).

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 21/108

mentozinho da criação�,102

que aos olhos humanos é �incompreensível�103

e um �abismo�,104 uma �síntese de infinito e de finito�.

105

O grande filósofo Cassirer (1874-1945), inicia o capítulo de uma de suas obras,

com a seguinte afirmação: �Parece ser universalmente admitido que a meta

mais elevada da indagação filosófica é o conhecimento de si próprio�.106 No

campo filosófico, apesar da variedade e evolução de pesquisas neste assunto, há

evidente confissão da ignorância a respeito do homem. Max Scheller (1874-1928), admite: �Em nenhum tempo da história o homem se tornou tão problemático

como na atualidade�.107

Martin Heidegger (1889-1976), figura proeminente do e-xistencialismo, por exemplo, escrevendo em 1950 sobre Kant e o Problema da Meta-

física, assim se expressou:

�Nenhuma época acumulou sobre o homem conhecimentos tão nume-

rosos e diversos quanto a nossa. Nenhuma época apresentou tão bem e

sob forma mais tocante seu saber sobre o homem. Nenhuma época con-

seguiu tornar este saber tão pronta e facilmente acessível. Mas nenhuma

época também soube menos o que é o homem. Em nenhuma outra o

homem apareceu tão misterioso�.108

Braudel (1902-1985) conta-nos que quando o sociólogo Edgar Morin se despediu

do Partido Comunista, logo depois, disse: �O marxismo, meu velho, estudou a

economia, as classes sociais; é maravilhoso, meu velho, mas ele se esqueceu

de estudar o homem�.109

102

Agostinho, Confissões, 9ª ed. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1977, I.1. p. 27. 103

E. Young, Pensamentos Noturnos, p. 6231. 104

Agostinho, Confissões, IV.14. p. 102. 105

Soren A. Kierkegaard, O Desespero Humano, Doença Até à Morte, São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os Pensadores, Vol. XXXI), p. 337. 106

Ernst Cassirer, Antropologia Filosófica, 2ª ed. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1977, p. 15. Na se-qüência, o autor mostra a limitação em alcançar tal objetivo (p. 16). Na realidade, para Cassirer o co-nhecimento do homem é o primeiro passo para o conhecimento do universo. Ele demonstra isso em outro de seus textos: �Um dos traços característicos do século XVIII é a estreita relação, pode-

ríamos até dizer o vínculo indissolúvel que existe, no âmbito do seu pensamento, entre o

problema da natureza e o problema do conhecimento. O pensamento não pode dirigir-se

ao mundo dos objetos exteriores sem voltar-se simultaneamente para si mesmo, procurando

assim assegurar-se, num só e mesmo ato, da verdade da natureza e da sua própria verda-

de. Ao invés de o conhecimento ser simplesmente tratado como um instrumento e utilizado

de modo singelo como tal, vemos ser continuamente colocada, em termos mais prementes,

a questão da legitimidade desse uso e da estrutura desse instrumento.� (E. Cassirer, A Filoso-

fia do Iluminismo, Campinas, SP.: Editora da UNICAMP, 1992, p. 135). Contudo o seu método é ex-posto a partir da p. 116ss. 107

Max Scheller, Die Stellung des Menschen im Kosmos, p. 10. Apud Edvino A. Rabuske, Antropolo-

gia Filosófica: um estudo sistemático, 8ª ed. Petrópolis, RJ.: , Vozes, 2001, p.13. 108

Martin Heidegger, Kant und das Problem der Metaphysik, Frankfurt: 1950, nº 37, p. 189. Apud J.Y. Jolif, Compreender o Homem, São Paulo: Editora Herder, 1970, p. 15. Do mesmo modo, citado por:

R. Vancourt, A Estrutura da Filosofia: As Origens do Homem, São Paulo: Duas Cidades, 1964, p. 7. 109

Fernand Braudel, Gramática das Civilizações, 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 315.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 22/108

Carl G. Jung (1875-1961), do mesmo modo, disse: �O homem ainda é um

desconhecido, tanto para si mesmo como para os outros�.110

No mesmo diapasão, mais recentemente, escreveu Thomas Giles: �Nenhuma

época soube menos o que é o homem do que a nossa�.111

O grande prega-dor Reformado, Lloyd-Jones (1899-1981), pregando no início dos anos 60, disse: �O

problema principal de homens e mulheres ainda é que eles são tremenda-

mente ignorantes quanto a si mesmos�.112

Curiosamente, esta inquietação não

é apenas nossa; na Antigüidade, Diógenes de Sinope (c. 413-323 a.C.) da Escola Cínica,

113 com a sua proverbial sutileza, foi visto em Atenas em pleno dia com uma lanterna acesa e dizendo: �Procuro um homem�.

114 4. VALORES CONTEMPORÂNEOS: Com as descobertas de novas culturas e suas religiões (a partir do século XVII),

tentou-se fazer do cristianismo apenas mais uma religião, sendo um produto do gê-

nio inventivo do homem. Agora, fala-se das grandes religiões do mundo, surgindo

então, uma nova disciplina; a das religiões comparadas, objetivando fazer melhores estudos das religiões não-cristãs, analisando os seus pontos de contato com o cristi-anismo e suas distinções. A conclusão chegada destes estudos por parte dos iluministas, é que nenhuma

religião por si só pode reivindicar a verdade total na presença doutras religiões. Nes-te particular, a parábola dos três anéis contada por G.E. Lessing (1729-1781) na sua obra Natã, o Sábio (1779), é reveladora; diz ele:

�Havia, certa vez, um anel antigo que tinha o poder de transmitir ao seu

dono a dádiva de ser amado por Deus e pelos homens. O anel foi passa-

do de geração em geração por muito tempo, até vir a pertencer a um

pai que tinha três filhos igualmente queridos a ele. Para resolver este dile-

ma, mandou fazer duas réplicas, e deu um anel para cada filho. Depois

da sua morte, todos os três alegavam ser possuidores do anel verdadeiro.

Mas, como no caso da religião, o original não pode ser descoberto. A in-

vestigação histórica de nada adianta. Um juiz sábio, no entanto, aconse-

lha cada filho a comportar-se como se tivesse o anel verdadeiro, e a

110

Carl G. Jung, Psicologia e Religião, Petrópolis, RJ.: Vozes, 1978, § 140, p. 87. 111

Thomas R. Giles, Introdução à Filosofia, São Paulo: EPU/EDUSP., 1979, p. 101. Vd. também: J.Y.

Jolif, Compreender o Homem, p. 15ss.; Battista Mondin, O Homem, Que é Ele?, São Paulo: Paulinas,

1980, p. 7ss; H.W. Wolff, Antropologia do Antigo Testamento, São Paulo: Loyola, 1975, p. 9ss. David

M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, São Paulo: Fiel, 1984, p. 149-151. 112

.David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, 2ª ed. Rio de Ja-neiro: Textus, 2004, p. 15. 113

A Escola Cínica bem como as Escolas Cirenaica e Megárica, são as chamadas �Escolas Socráti-cas Menores�, em oposição à Escola de Platão, que fundou a sua �Academia� em 387 a.C., sendo es-ta considerada a primeira �universidade� do mundo. (Cf. Battista Mondin, Curso de Filosofia, São Pau-lo: Paulinas, 1983, Vol. 1, p. 56). 114

Cf. Hermisten M.P. Costa, Reflexões Antropológicas, Campinas, SP., 1979, p. 13.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 23/108

comprová-lo mediante atos de amor. Destarte não importará, afinal das

contas, quem tinha o original. Os três filhos representam o judaísmo, o cris-

tianismo e o islamismo. Um dia, transcenderão a si mesmos e se unirão nu-

ma única religião universal de amor�.115

Portanto, em questões de religião, a tolerância é a virtude suprema e, o dogma-tismo, é a atitude mais repreensível. A implicação destas concepções nos conduz ao ecumenismo de todas as religi-ões, procurando o que cada uma tem de bom. Este tipo de aproximação metodológica acarretava o fim de uma teologia vigorosa e forte, caracterizando-se por um desvio do estudo bíblico e teológico para uma a-bordagem apenas histórica; o ecumenismo decreta, de forma explícita ou não, o fim

da voz profética de uma Igreja, tendo como critério avaliativo apenas o que promove

a �unidade�, ainda que em detrimento da verdade. Esquecendo-se de que a genuína

unidade é produzida pelo Espírito! (Ef 4.3).116 No século XVI, Calvino (1509-1564), após argumentar contra aqueles que cha-mavam os reformados de hereges, ressalta que a unidade cristã deve ser na Pala-vra:

�Com efeito, também isto é de notar-se: que esta conjunção de amor

assim depende da unidade de fé que lhe deva ser esta o início, fim, a re-

gra única, afinal. Lembremo-nos, portanto, quantas vezes se nos reco-

menda a unidade eclesiástica, isto ser requerido: que, enquanto nossas

mentes têm o mesmo sentir em Cristo, também entre si conjungidas nos

hajam sido as vontades em mútua benevolência em Cristo. E, assim, Paulo,

quando para com ela nos exorta, por fundamento assume haver um só

Deus, uma só fé e um só batismo [Ef 4.5]. De fato, onde quer que nos ensi-

na o Apóstolo a sentir o mesmo e a querer o mesmo, acrescenta imedia-

tamente; em Cristo [Fp 2.1,5] ou: segundo Cristo [Rm 15.5], significando ser

conluio de ímpios não acordo de fiéis a unidade que se processa à parte

da Palavra do Senhor�.117

(grifos meus) Vejamos agora algumas das implicações desse pensamento na cosmovisão con-temporânea: A) Antidogmatismo: A palavra "Dogmatismo" vem do grego do/gma ("dógma"), que comporta as se-guintes traduções: opinião, certeza, proposição, enunciação, doutrina, verdade, de-

115

Lessing, Natã, o Sábio, Ato III. Cena 7. Apud Colin Brown, Filosofia e Fé Cristã, p. 60. Esta pará-

bola encontra-se também reproduzida in Colin Chapman, O Cristianismo no Banco dos Réus, p. 67. 116

Sobre a �Unidade Cristã�, Vd. Hermisten M.P. Costa, A Pessoa e Obra do Espírito Santo, São

Paulo: 2006. 117

J. Calvino, As Institutas, IV.2.5.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 24/108 creto, estatuto, ordenança, parecer. (Vejam-se: Lc 2.1; At 16.4; 17.7; Ef 2.15; Cl 2.14); "decreto real" (LXX: Et 4.8; 9.1; Dn 3.10,29). Do/gma é derivado de doke/w (do-kéõ), que pode ser traduzido por: pensar, cuidar, considerar, supor (Vejam-se: Mt 3.9; Lc 24.37; 1Co 3.18; Hb 10.29; Tg 4.5). O verbo dogmati/zw ("dogmatízõ�) não é

encontrado no grego clássico. Temos em Josefo, com o mesmo sentido do substan-tivo:118 "representar e afirmar uma opinião ou princípio"

119 e na LXX, "proclamar um edito" (Dn 2.13; Et 3.9; 2Mac. 10.8). Na Antigüidade, os gregos usavam a expressão para identificar qualquer opinião

aceita como verdadeira, e também, para se referirem a uma ordem ou decreto do

soberano ou da assembléia. No campo filosófico, o dogmatismo era o designativo

aplicado a todo sistema que aceitasse certas teses como sendo verdadeiras; neste caso, o dogmatismo era contraposto ao cepticismo. Os céticos denominavam de "dogmáticos", os filósofos que sem o estudo e exa-me criteriosos, se limitavam a afirmar suas teses ou opiniões. Desta forma, foi feita a

contraposição entre os dogmáticos que definiam sobre cada ponto a sua opinião, e

os filósofos céticos, que não a definiam, suspendendo o juízo. Platão (427-347 a.C.), emprega a palavra do/gma no sentido de "crer", "opini-

ão";120 "máximas acerca do justo e do honesto, nas quais fomos criados"; ou seja:

os bons princípios nos quais as crianças são instruídas121 e, "doutrina dos che-

fes".122 A palavra também foi usada no sentido religioso, referindo-se ao decreto de Deus.123 A partir de Kant (1724-1804), o termo adquiriu um sentido pejorativo,124 passando geralmente a significar a afirmação de uma doutrina, cuja validade, pretensamente,

não pode ser contestada. Numa forma mais depreciativa, dogmatismo tomou a conotação de toda e qual-quer posição doutrinária que afirma, sem declarar com evidências seguras, suas po-sições, tentando impô-las como algo verdadeiro e final.125 (Sl 10.4)

118

Josefo, Antigüidades, 14.249. 119

Cf. G. Kittel, do/gma: In: G. Kittel & G. Friedrich eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), Vol. II, p. 232. (Doravante, citado como TDNT). 120

Platão, Sofista, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, Vol. III), 1972, 265c. p. 200. 121

Platão, A República, 7ª ed. Porto: Fundação Calouste Gulbenkian, [1993], 538c. p. 358. 122

Platão, A República, 414b. p. 155. 123

Cf. G. Kittel, do/gma: In: TDNT., II, p. 231 124

Vd. I. Kant, Crítica da Razão Pura, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XXV), 1974,

(Prefácio à segunda edição), p. 17. 125�Por dogmatismo se entende a afirmação, explícita ou implícita, de que é final o que se

crê, incapaz de ser revisto, melhorado ou derruído� (E.S. Brightman, Introdução à Filosofia, São

Paulo: Imprensa Metodista, 1951, p. 306).

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 25/108 Nesta acepção, o dogmatismo assume um caráter ideológico e político, através

da imposição de uma idéia, que deve ser aceita sem maiores investigações. Deste

modo, podemos observar que ninguém está livre do dogmatismo. Por isso, pode-se falar do dogmatismo do Estado, da Religião, do grupo social, etc., os quais podem se valer do estabelecimento de um aparelho ideológico para perpetuar os seus dogmas e para punir os seus infratores. Na Epistemologia, considera-se dogmatismo � dogmatismo gnoseológico �, aque-la posição que afirma, que no contato entre o sujeito e o objeto temos um conheci-mento exato e verdadeiro, não pairando nenhuma dúvida sobre o mesmo. Neste caso, julga-se a razão humana como sendo capaz de atingir a verdade ab-soluta, não havendo de fato o problema do conhecimento. Normalmente quando definimos o dogmatismo, nos referimos ao "dogmatismo in-gênuo", que consiste em não duvidar do valor de seus conhecimentos. Esta é psico-lógica e historicamente a primeira posição do homem. O primeiro momento do ho-mem é de certeza; a dúvida só aparece quando ele começa a questionar a sua per-cepção dos fatos. Historicamente, foram os sofistas, os primeiros a identificarem o

problema do conhecimento. Desde então, a reflexão sobre esta questão se tornou

uma constante no pensamento filosófico. O dogmatismo tem por supostas a possibilidade e a realidade de contatos entre o sujeito e o objeto. É para ele evidente que o sujeito, a consciência cognoscente, a-preenda o objeto. Tal posição parte de uma confiança (ainda não enfraquecida pela

dúvida) firme na razão humana. Para o dogmatismo, aquilo que percebemos corresponde de fato à essência do

objeto percebido. Deste modo, ele confia em suas faculdades intelectuais, na reali-dade objetiva dos seus conhecimentos e em sua inteligência, como meio eficaz de se atingir as verdades relativas ao homem, ao universo e a Deus. O dogmatismo sustenta que os objetos do conhecimento nos são dados absolu-tamente e não meramente por obra da função intermediária do conhecimento. Pelo que ficou exposto, vimos que o dogmatismo não entende o fenômeno do co-nhecimento como que consistindo numa relação entre sujeito e objeto; contando, no

caso, apenas o intelecto. O fato de que todos os valores pressupõem uma consciência avaliadora, perma-nece tão desconhecido para o dogmatismo, como o de que todos os objetos do co-nhecimento implicam a existência de uma consciência cognoscente. O dogmático

passa por cima destas considerações, ignorando a subjetividade do sujeito e o "ruí-

do" de sua percepção. Por isso, nesta confiança cega na razão humana, ele aceita

despreocupadamente, por assim dizer, todas as afirmações da razão, ignorando os

seus limites. �Nenhuma filosofia humana pode ser a completa verdade divi-

na�.126

126

E.S. Brightman, Introdução à Filosofia, p. 306.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 26/108 Sem dúvida, o dogmatismo peca por sua exagerada confiança na razão. Todavia,

perguntamos: Não seria possível um dogmatismo, fruto de pesquisa e de observa-ção, que acredite nas suas conclusões, mas, que ao mesmo tempo, esteja disposto

a mudar de opinião se for convencido? Propomos um dogmatismo crítico que, embo-ra não alegue ser o proprietário da verdade, crê na verdade absoluta e na possibili-dade de alcançá-la.127 A atitude simplesmente antidogmática peca pela sua percepção, julgada correta,

de que não podemos ter certeza de nada. Caímos assim num tipo de dogmatismo negativo. Desta forma, qualquer posicionamento tido como certo e verdadeiro é rotu-lado desde modo. Obviamente, este tipo de raciocínio por si só mostra a sua fragili-dade visto que para eu chegar a uma conclusão antidogmática é preciso ter alguma certeza. Numa sociedade que preza imensamente a liberdade para fazer o que bem entender em cada circunstância sem maiores compromissos com o antes e o depois, sem nenhuma preocupação com a coerência de seus atos, a certeza por si só soará

como algo estranho e inibidor de seu comportamento. Deste modo qualquer atitude que sustente princípios e regras como verdadeiros será tido como dogmática e por

isso mesmo retrógrada ou reacionária. A certeza que contradiz o que desejo será

sempre dogmática! Portanto, não há espaço para os absolutos da Palavra que nos mostrem o que é correto e o que é errado. Falar desse modo, é ser fundamentalista. B) Relativismo, Subjetivismo, Pragmatismo e Utilitarismo:

�Essa é a sua verdade, não a minha...�; �tudo é relativo�; �para aquela época e cultura isso era verdadeiro...�. Quantos de nós já não nos deparamos com afirma-ções assim? Talvez já até tenhamos falado desse modo. Por trás dessas afirma-ções, via de regra, estão um ou mais destes quatro conceitos: o relativismo, o subje-

tivismo, o pragmatismo e o utilitarismo.

a) Subjetivismo: Ainda que este nome seja moderno (século XIX), a sua per-

cepção é bem antiga, sendo encontrada já nos Sofistas no 5º século a.C.128 Para

o subjetivismo, a validade da verdade está limitada ao sujeito que conhece e jul-ga. Desta forma, não podemos falar de uma realidade idêntica para todo o ser

humano. Toda certeza é pessoal, visto que toda a verdade é subjetiva. Os confli-tos nada mais são do que interesses e desejos diferentes. O bem e o mal é aquilo que desejo que seja, conforme resumiu Thomas Hobbes (1588-1679): �Seja qual

for o objeto do apetite ou desejo de qualquer homem, esse objeto é a-

quele a que cada um chama bom; ao objeto de seu ódio e aversão

chama mau, e ao de seu desprezo chama vil e indigno. Pois as palavras

127�Recusamos igualmente o ceticismo frívolo e o dogmatismo escolástico; somos dogmáti-

cos críticos. Cremos na verdade, embora não pretendamos possuir a verdade absoluta� (Er-nest Renan, O Futuro da Ciência, Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1950, p. 433-434). 128 �É com o declínio da crença religiosa nos séculos XVIII e XIX que o subjetivismo tornou-se

mais que uma simples curiosidade. A fraqueza do fundamento religioso da ética é, no en-

tanto, notória. (...) É (...) com o declínio da crença religiosa que o subjetivismo tornou-se uma

força real no pensamento europeu� (Simon Blackburn, Subjetivismo Moral: In: Monique Canto-Sperber, org. Dicionário de Ética e Filosofia Moral, São Leopoldo, RS.: Editora Unisinos, 2003, Vol. 2,

p. 645).

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 27/108

�bom�, �mau� e �desprezível� são sempre usadas em relação à pessoa que

as usa. Não há nada que o seja simples e absolutamente, nem há qual-

quer regra comum do bem e do mal, que possa ser extraída da natureza

dos próprios objetos�.129 O subjetivismo privilegia o fato de que os seres humanos são diferentes e com

compreensões díspares. Assim, toda a verdade encontra um âmbito limitado: In-dividual, quando a verdade está restrita ao indivíduo; Geral, quando ela se res-tringe a um grupo ou povo.

b) Relativismo: Para o relativismo, os conceitos considerados verdadeiros,

são produto dos valores de uma época, de uma cultura, de um povo. Assim, toda

verdade é relativa a uma sociedade, época, grupo ou cultura. Deste modo, não

existe um código moral universalmente válido, antes, há uma infinidade de códi-gos com reivindicações semelhantes. Este conceito já encontramos nos Sofistas

no 5º século a.C.130

A nossa capacidade cognitiva está limitada pelas nossas condições históricas

e, também, pelo nosso nível de desenvolvimento filosófico, tecnológico, econômi-co e social. Desta forma, não podemos conhecer a essência das coisas, mas, sim, como elas se nos apresentam em determinados contextos. Logo, não há um

padrão ético universal. Desta forma, qualquer juízo de valor baseia-se em nossa própria moral. Deste modo, de uma forma ou de outra, o relativismo moral contri-bui para um tipo de ambigüidade moral. O subjetivismo e o relativismo se forem absolutos negam a sua própria tese

visto que afirmam categoricamente a realidade como sendo subjetiva. Por outro lado se suas afirmações foram relativas, naturalmente perdem a sua pretensão à

universalidade visto que se constituem em apenas mais uma concepção particular

da realidade.

c) Pragmatismo: A palavra �Pragmatismo� é proveniente do grego Pra=gma,131 que significa, entre outras coisas, �negócio�, �ato, �ação�, �evento�. O termo �pragmatismo� foi �introduzido pela primeira vez em filosofia por Charles

129

Thomas Hobbes, Leviatã, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XIV), 1974, I.6. p. 37. 130

Veja-se Platão, Teeteto, Belém: Universidade Federal do Pará, 1988, 172a-b p. 43-44. Tucídides (c. 465-395 a.C.) observou em sua monumental obra, História da Guerra do Peloponeso, que: �A sig-

nificação normal das palavras em relação aos atos muda segundo os caprichos dos ho-

mens. A audácia irracional passa a ser considerada lealdade corajosa em relação ao parti-

do; a hesitação prudente se torna covardia dissimulada; a moderação passa a ser uma

máscara para a fraqueza covarde, e agir inteligentemente equivale à inércia total. Os im-

pulsos precipitados são vistos como uma virtude viril, mas a prudência no deliberar é um pre-

texto para a omissão....� (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, Brasília, DF.: Editora Uni-versidade de Brasília, 1982, II.82. p. 167). 131

NT.: * Mt 18.19; Lc 1.1; At 5.4; Rm 16.2; 1Co 6.1; 2Co 7.11; 1Ts 4.6; Hb 6.18; 10.1; 11.1; Tg 3.16. Pra=gma, por sua vez vem da palavra Pra/ssw, �fazer�, �realizar�, �observar� (Lc 3.13; 19.23; 22.23; Jo 3.20; At 3.17; 5.35; 16.28; Rm 1.32; 2.1,2,3; 1Co 5.2. etc.). É desta mesma palavra que vem

Pra=cij, �ato�, �ação�, �atividade�, �negócio�. (* Mt 16.27; Lc 23.51; At 19.18; Rm 8.13; 12.4; Cl 3.9).

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 28/108

Peirce [1839-1914], em 1878�, conforme nos informa W. James (1842-1910).132 No entanto, William James é considerado o fundador do Pragmatismo.

133Como sistema de pensamento, o pragmatismo parte da concepção de que o homem não

é essencialmente um ser teórico, com preocupações transcendentes; antes, a sua inteligência está voltada para a concretização dos seus propósitos, que são emi-nentemente práticos; por isso, todo o conhecimento tem um objetivo prático. No pragmatismo, o que importa é a funcionalidade. O correto é aquilo que fun-ciona ou satisfaz. Assim, o valor intrínseco foi substituído pela eficácia; ou seja, se

funciona tem valor; as idéias verdadeiras são as que funcionam, são valiosas.

Deste modo, não existem absolutos; tudo é relativo: Os conceitos que dentro de

nossa percepção não se mostram relevantes, são descartados. Neste sentido, a religião só pode ser avaliada pelos seus efeitos psicológicos e

morais. William James escreveu: �Se as idéias teológicas provam que têm valor para a vida concreta,

são verdadeiras, pois o pragmatismo as aceita, no sentido de serem

boas para tanto. O quanto serão verdadeiras dependerá inteiramente

de suas relações com as demais verdades, que têm, também, de ser

reconhecidas�.134

�O pragmatismo está disposto a tomar tudo, a seguir ou a lógica ou

os sentidos e a contar com as experiências mais pessoais e mais humil-

des. Levará em conta as experiências místicas se tiverem conseqüências

práticas. Acolherá a um Deus que viva no âmago mesmo do fato pri-

vado � se esse lhe parecer um lugar provável para encontrá-lo.

�O seu único teste de verdade provável é o que trabalha melhor o

sentido de conduzir-nos, o que se adapta melhor a cada parte da vida

e combina com a coletividade dos reclamos da experiência, nada

sendo omitido. Se as idéias teológicas podem fazer isso, se a noção de

Deus, em particular, prova que pode fazer isso, como pode o pragma-

tismo, em sã consciência, negar a existência de Deus? O pragmatismo

não pode ver sentido em tratar como �não verdadeira� uma noção que

foi tão bem sucedida pragmaticamente. Que outra espécie de verda-

de poderia haver, para o pragmatismo, que toda essa concordância

com a realidade concreta?�.135

Em carta a E.L. Godkin, datada de 17/08/1897, William James (1842-1910) reforça o seu conceito: �O que entendo por religião, para um homem, é

qualquer coisa que para ele seja uma hipótese viva136

nesse assunto,

apesar de para outro poder ser uma hipótese morta�.137

132

William James, Pragmatismo, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XL), 1974, p. 10.

James é quem deve ter usado a palavra pela primeira vez na forma impressa, ainda que Peirce a ti-vesse usada verbalmente anteriormente. (Vd. Correspondência de Pierce com James (10/11/1900),

In: Pragmatismo, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XL), 1974, p. 109 (Vd. também, nota 3). 133

Cf. Johannes Hessen, Teoria do Conhecimento, Coimbra: Arménio Amado - Editor, 1976, p. 51. 134

William James, Pragmatismo, p. 19. 135

William James, Pragmatismo, p. 22. 136

Em 1897, na sua obra A Vontade de Crer, James havia definido a expressão: �Uma hipótese vi-

va é aquela que se apresenta como possibilidade real àquele a quem é proposta. Se eu vos

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 29/108

d) Utilitarismo: Grosso modo, o utilitarismo ensina que uma ação é certa

quando promove (ou pelo menos procura promover) a maior felicidade do maior número possível de pessoas. Assim, a ação deve ser julgada a partir de suas

conseqüências boas ou más.138 Deste modo, as questões morais não precisam

ser resolvidas a partir de um referencial transcendente, antes na sua praticidade. O que for prático é moral.139

Jeremy Bentham (1748-1832), que era �hedonista�,140 seguiu o conceito de E-

picuro (341-270 a.C.), que entendia que a vida devia ser regida pelo �princípio do

prazer�. Epicuro conceitua: �Chamamos ao prazer princípio e fim da vida fe-

liz. Com efeito, sabemos que é o primeiro bem, o bem inato, e que dele

peço para crer em Mahdi, a noção não faz conexão elétrica com a vossa natureza � ele

recusa-se a cintilar com qualquer credibilidade. Como hipótese, é completamente morta.

Para um árabe, contudo (mesmo que não seja um dos seguidores de Mahdi), essa hipótese

é uma das possibilidades do seu espírito: é viva. Isto mostra que a morte e a vida numa hipó-

tese não são propriedades intrínsecas, mas relações com o pensador individual� [William Ja-mes, The Will to Believe, p. 1. In: A Filosofia de William James, (Seleção das suas obras principais), São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1943, p. 72]. Pouco mais tarde, na redação de suas preleções sobre As Variedades da Experiência Religiosa, James conclui que apesar das discrepâncias dos credos, há um testemunho unânime, �um certo

julgamento uniforme em que todas as religiões parecem encontrar-se�: uma inquietude; e sua solução. �.... a inquietude é um sentido de que existe alguma coisa errada a nosso respeito

tal como estamos naturalmente. A solução é um sentido de que estaremos salvos do erro se

fizermos uma conexão apropriada com os poderes superiores� (William James, As Variedades

da Experiência Religiosa: um estudo sobre a natureza humana, 10ª ed. São Paulo: Cultrix, 1995, p. 314). Na formulação da �essência� da �experiência religiosa�, James assim se expressa: �Na medida em que sofre em conseqüência do seu erro e o critica, o indivíduo, até esse

ponto, está conscientemente além dele e num contacto pelo menos possível com alguma

coisa mais elevada, se é que existe alguma coisa mais elevada. Juntamente com a parte

errada há nele uma parte melhor, ainda que seja tão-somente um germe impotente. Nessa

fase, não é de modo algum evidente a parte com que ele deve identificar o seu verdadeiro

ser; mas quando chega a fase 2 (a fase da solução ou salvação), o homem identifica o seu

verdadeiro ser com a parte germinal mais elevada de si mesmo; e fá-lo da seguinte manei-

ra. Torna-se consciente de que essa parte mais elevada é contínua e vizinha de um MAIS da

mesma qualidade, operativo no universo fora dele, e com quem ele pode manter um con-

tato ativo e, de certo modo, subir a bordo e salvar-se quando todo o seu ser inferior se hou-

ver estraçalhado no naufrágio� (William James, As Variedades da Experiência Religiosa: um es-

tudo sobre a natureza humana, p. 314). 137

William James, The letters of William James, Vol. II, p. 64. In: A Filosofia de William James, (Sele-

ção das suas obras principais), p. 117. 138

�O utilitarismo ensina que uma ação só pode ser julgada moralmente boa ou má se con-

sideradas suas conseqüências, boas ou más, para a felicidade dos indivíduos envolvidos� (Catherine Audard, Utilitarismo: In: Monique Canto-Sperber, org. Dicionário de Ética e Filosofia Moral,

São Leopoldo, RS.: Editora Unisinos, 2003, Vol. 2, p. 737a). 139

Cf. Gene Edward Veith, Jr., Tempos Pós-Modernos, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p.

27. 140

Hedonista é proveniente de h(donh/, �deleite�, �prazer� (*Lc 8.14; Tt 3.3; Tg 4.1,3; 2Pe 2.13). A pa-lavra é sempre usada negativamente no Novo Testamento. Quanto ao hedonismo de Bentham, ver:

Jean-Claude Wolf, Hedonismo: In: Monique Canto-Sperber, org. Dicionário de Ética e Filosofia Moral,

São Leopoldo, RS.: Editora Unisinos, 2003, Vol. 1, p. 718.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 30/108

derivamos toda a escolha ou recusa e chegamos a ele valorizando todo

bem com critério do efeito que nos produz�.141

Assim, Bentham escreve:

�A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senho-

res soberanos: a dor e o prazer. Somente a eles compete apontar o que

devemos fazer, bem como determinar o que na realidade faremos�.142

�Por princípio de utilidade entende-se aquele princípio que aprova

ou desaprova qualquer ação, segundo a tendência que tem a aumen-

tar ou a diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está em jogo, ou,

o que é a mesma coisa em outros termos, segundo a tendência a pro-

mover ou a comprometer a referida felicidade�.143

E o bem da comunidade, onde fica? A isto, Bentham responde:

�A comunidade constitui um corpo fictício, composto de pessoas in-

dividuais que se consideram como constituindo os seus membros. Qual

é, neste caso, o interesse da comunidade? A soma dos interesses dos

diversos membros que integram a referida comunidade.

�É inútil falar do interesse da comunidade, se não se compreender

qual é o interesse do indivíduo�.144 Analisando o primeiro aspecto do Utilitarismo (expresso por J.S. Mill), pergun-tamos: Como o homem com as suas limitações próprias, poderá determinar aquilo que resultará das suas ações? Há atitudes que a princípio parecem �funcionar�

bem; todavia, depois de um certo tempo, constatamos que fomos enganados pelo nosso imediatismo (Pv 14.12).

Quanto ao hedonismo, observamos que esta é a atitude natural do homem en-tregue aos seus pecados. Surgem daí, algumas perguntas: Todos os prazeres

são bons? O prazer sádico é mau. Toda a dor é má? A dor resultante do trabalho

ou estudo prolongado, pode ser boa. O princípio bíblico é totalmente oposto ao do utilitarismo (Mt 22.39; Rm 14.19;

1Co 10.23-24; 13.5).145 Jesus Cristo é o nosso modelo perfeito (1Jo 3.16; Fp 2.5-11). Veith resume: �O utilitarismo é um modo de enfrentar questões morais

sem Deus�.146

Finalizando este tópico, observamos que, levados às últimas conseqüências, o re-

lativismo, o pragmatismo, o subjetivismo e o utilitarismo se confundem com o ceti-

141

Epicuro, Antologia de Textos, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. V), 1973, p. 25. 142

Jeremy Bentham, Princípios da Moral e da Legislação, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XXXIV), 1974, I.1. p. 9. 143

Jeremy Bentham, Princípios da Moral e da Legislação, I.2. p. 10. 144

Jeremy Bentham, Princípios da Moral e da Legislação, I.4. p. 10. 145

��. Amarás o teu próximo como a ti mesmo� (Mt 22.39). �Assim, pois, seguimos as coisas da paz

e também as da edificação de uns para com os outros� (Rm 14.19). �Todas as coisas são lícitas, mas

nem todas convêm; todas são lícitas, mas nem todas edificam. Ninguém busque o seu próprio inte-

resse, e sim o de outrem� (1Co 10.23-24). �O amor (�) não se conduz inconveniente-mente, não pro-

cura os seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal� (1Co 13.4-5). 146

Gene Edward Veith, Jr., Tempos Pós-Modernos, p. 27.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 31/108

cismo,147 na negação, ainda que parcial, da verdade ou na compreensão de que não

existe verdade objetiva. Deste modo, qualquer declaração da existência de uma ver-dade objetiva torna-se arrogante. Assim sendo, a grande virtude é a tolerância,

148 no sentido de que sabemos de que nada sabemos. Quanto a este ponto em particular, vale a pena citar as palavras enfáticas de MacArthur: �Passividade em relação ao

erro conhecido não é uma opção para o cristão. A intolerância para com o

erro encontra-se permeada nas próprias Escrituras. E tolerância para com o

erro conhecido é tudo menos uma virtude�.149

Ainda que o ceticismo não seja de fato um determinante da tolerância, por ques-

tão de coerência � ainda que nem sempre valorizada �, ele contribui para ela.150 Partindo desses princípios é que surge a conceituação, até mesmo entre nós, de

"verdades relativas", "verdade de cada um", e assim por diante. Na realidade, a ver-dade como sendo o que é, não pode ser relativizada; o que ocorre, é que a nossa

compreensão da verdade sofre mutações, conforme as influências internas ligadas à

nossa personalidade e os elementos externos, relacionados, por exemplo, à nossa

cultura e à nossa época. Todavia, a verdade é o que é. A nossa percepção é que va-ria. Nada é mais importante do que Deus e a Sua Palavra; seja qual for o tipo de mu-dança que precisemos efetuar em nossa vida, não deixemos de considerar atenta-mente os ensinamentos de Deus. Não permitamos que o modo de viver contempo-râneo relativize a Palavra de Deus, que é viva e eficaz para sempre. Este é um peri-go constante para nós: substituir a verdade pela simples funcionalidade. �Numa

era de pragmatismo no mundo secular, onde os fins justificam os meios, exis-

te a tentação de prostituir o caráter cristão em favor do sucesso. E mais, nu-

ma cultura que aclama cada vez mais o sucesso a qualquer custo e renega

as virtudes como alvos valiosos, os líderes podem perseguir, sem perceber, os

147

O ceticismo, também conhecido como "dogmatismo negativo", é a doutrina que, partindo do prin-cípio de que a inteligência humana não pode apreender a verdade, sustenta que não devemos formu-lar qualquer juízo, mantendo, portanto, uma atitude de dúvida universal e sistemática. 148

Hughes chama-nos atenção para esta acepção de �tolerância�: �A atitude de tolerância com

relação a todos os outros pontos de vista passa a ser a regra básica de convivência dentro

de uma mentalidade pós-moderna. No entanto, a tolerância não é mais definida como

uma graciosa resposta individual para uma pessoa que sustenta pontos de vista errados. A

tolerância é agora definida como a expectativa de que toda pessoa chegue a abandonar

a idéia que sua compreensão da verdade tenha mais validade que a perspectiva de outra

pessoa� (John A. Hughes, Por que Educação Cristã e não Doutrinação Secular?: In: John MacArthur

Jr., ed. ger. Pense Biblicamente!: recuperando a visão cristã do mundo, São Paulo: Hagnos, 2005, p.

373). 149

John F. MacArthur Jr. Princípios para uma Cosmovisão bíblica: Uma mensagem exclusivista para

um mundo pluralista, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2003, p. 50. À frente: �Uma cosmovisão bí-

blica é incompatível com qualquer tipo de tolerância de mentiras� (John F. MacArthur Jr. Princípios para uma Cosmovisão bíblica, p. 68). 150

Veja-se: Suzan Mendus, Tolerância: In: Monique Canto-Sperber, org. Dicionário de Ética e Filoso-

fia Moral, São Leopoldo, RS.: Editora Unisinos, 2003, Vol. 2, p. 701.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 32/108

holofotes do sucesso e perder a alegria de servir a Cristo�.151 �Quando o

pragmatismo (...) é utilizado para formularmos juízos acerca do certo e do er-

rado ou quando se torna a filosofia norteadora da vida, da teologia e do mi-

nistério, acaba, inevitavelmente, colidindo com as Escrituras�.152 Dentro de um

culto relativista e pragmático, onde a Palavra é usada apenas como pretexto, não e-xiste lugar para absolutos morais e espirituais; os Dez Mandamentos, por exemplo, desaparecem. Só subsistem algumas porções bíblicas que, com a nossa interpreta-ção duvidosa, servem para nos dar conforto e alimentar os nossos desejos pecami-nosos. É necessário que não permitamos que critérios estranhos à Palavra de Deus

nos orientem em nossas práticas e decisões. Antes de adotarmos um conceito e as-sumir um novo comportamento, verifiquemos se isso se harmoniza com a Palavra de Deus; não nos permitamos simplesmente seguir modismos. Não tenhamos a preten-são de sermos diferentes ou iguais, antes, fiéis a Deus. C) Anomia e Suposta Total Liberdade: A palavra anomia é uma transliteração do termo grego a)nomi/a (= �sem lei�).

Dentro deste princípio, não pode haver nenhuma lei moral objetiva; portanto, não há

nada moralmente bom ou mau. Conseqüentemente, se não há padrões morais, não

pode haver julgamento moral: daí a tentativa de se destruir a dicotomia entre �moral�

e �imoral�; �normal� e �anormal�; �certo� e �errado�. A questão que salta aos olhos é: Como resolver conflitos morais e de valores se

não há nenhum padrão anterior que sirva de base absoluta? Este conceito está atre-lado ao conceito de liberdade. Liberdade pode ser definida como a: �Faculdade de cada um decidir ou agir

segundo a própria determinação�.153 Colocando em outros termos, podemos

dizer que a liberdade é a ausência de constrangimentos em suas decisões e ações.

Todavia, a liberdade envolve como tudo o mais, um aspecto negativo e outro positi-vo; e é sobre isto que trataremos posteriormente. A liberdade é um dos apanágios do ser humano; ela é um aspecto fundamental, essencial e indeclinável do homem; por isso mesmo, é que a liberdade nos distingue

como seres humanos. A liberdade é algo axiomático: não precisa de demonstração.

Falar do homem livre é emitir um juízo analítico ou explicativo; a liberdade atribuída

a ele nada acrescenta à idéia de �homem�. A Confissão de Westminster (1647) declara:

151

Alex D. Montoya, A Liderança: In: John MacArthur, Jr., et al. Redescobrindo o Ministério Pastoral, Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 1998, p. 321. 152

John F. MacArthur Jr., Com Vergonha do Evangelho, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel,

1997, p. 7. �Nossa época é de pragmatismo, obcecada com o que funciona e menos preo-

cupada com o que é verdadeiro� [John F. MacArthur, Jr., Muito Antes de Lutero: Jesus e a Dou-trina da Justificação: In: John F. MacArthur, Jr., et. al., A Marca da Vitalidade Espiritual a Igreja: Justi-

ficação pela Fé Somente, São Paulo: Editora Cultura Cristã, (2000), p. 14]. 153

Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 2ª ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

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�Deus dotou a vontade do homem de tal liberdade natural, que ela

nem é forçada para o bem nem para o mal, nem a isso é determinada

por qualquer necessidade absoluta de sua natureza� (IX.1).

A consciência da perda de parte da liberdade, tende a causar sérios males psi-cossomáticos ao homem, o qual, com a perda da sua autonomia diante de determi-nadas situações, reage de forma variada, que vai da total apatia à extrema violên-cia.154 O homem moderno consciente de sua liberdade, gosta de se ver e proclamar-se como sendo livre de qualquer princípio ou lei que tente regular a sua vida: ele se co-loca como um senhor determinante do seu próprio destino. Creio ter sido J.P. Sartre

(1905-1980), pensador francês, o grande difusor contemporâneo desta compreen-são, dizendo que �nenhuma moral geral pode indicar-vos o que há a fazer�.

155 Para Sartre, é o homem com sua liberdade quem deve escolher, criar e inventar

seus valores. A interpretação da realidade e sua escolha são totalmente subjeti-vas.156 O homem é aquilo que deseja ser; ele é o seu projeto;

157 é o homem quem legisla

o que quer ser:158 �O homem é livre, o homem é liberdade (...) o homem está

condenado a ser livre�.159

O existencialismo, do qual Sartre foi um dos maiores representantes, está preo-cupado com o homem como ser subjetivo, eminentemente livre. O homem, dentro desta perspectiva, não é até que se faça a si próprio. �O homem tal como o con-

cebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é na-

da. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há

natureza humana, visto que não há Deus para a conceber. O homem é, não

apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como se con-

cebe depois da existência, como ele deseja após este impulso para a exis-

tência; o homem não é mais que o que ele faz�.160

154

Vd. Paul Tillich, A Coragem de Ser, 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 40-41; Erich Fromm, A Revolução da Esperança, São Paulo: Círculo do Livro, (s.d.), p. 109; Idem, O Medo à Li-

berdade, 10ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, 235p.; Rollo May, Liberdade e Destino, Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987, p. 35ss.; Idem., O Homem à Procura de Si Mesmo, 5ª ed. Petrópolis, RJ.: 1976,

p. 121-144; Idem., Psicologia e Dilema Humano, 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p. 167-187; I-dem., A Arte do Aconselhamento Psicológico, 2ª ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1977, p. 44-45; Idem.,

Eros e Repressão, 2ª ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1978, p. 298-301. 155

Jean P. Sartre, O Existencialismo é um Humanismo, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. 45), 1973, p. 17. 156

Ibidem., p. 18. 157

Ibidem., p. 19. 158

Ibidem., p. 13. 159

Ibidem., p. 15. 160

J.P. Sartre, O Existencialismo é um Humanismo, p. 12.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 34/108 A liberdade do homem traz em seu bojo a angústia, resultante da responsabilida-de de se fazer a si mesmo no ato da escolha;161 deste modo, prevalece a expressão

de Sartre: �A existência precede a essência�.162 Se a essência precedesse a e-xistência, interpreta Sartre, nós não seríamos livres; a nossa vida estaria predeter-minada, o homem não poderia ser o seu projeto. Aqui, devemos observar que a afirmação da inexistência de uma �natureza huma-na�, fere frontalmente os ensinamentos bíblicos a respeito da criação do homem,

como possuidor da imagem e semelhança de Deus,163 bem como um princípio que

nos parece lógico. Se não há natureza humana e �a existência precede a essência�,

o quê então, determina a essência da minha existência que me permite escolher ser

�eu� e não �outro�? O meu �projeto� de ser é resultante da essência do meu existir, que me conduz diante da dialética social, a eleger o meu ideal como um �projeto� de

ser... A própria existência da possibilidade da escolha, determina a essência de um

ser livre. Agora, um existencialista, poderia nos perguntar: se por outro lado, a es-sência precede a existência, por que então a sociedade não é composta de �solda-dinhos de chumbo�, provenientes de uma mesma forma, denominada de �essência

humana�?... A resposta é simples: porque Deus criou o homem como um ser es-sencial dotado da capacidade de escolha, de construir a sua existência conforme lhe

aprouvesse, daí a variedade da �existência humana�, dentro da liberdade inerente à

sua essência.164

161

Sartre mostra que o peso da responsabilidade da escolha, traz consigo o sentimento de angústia:

�O existencialista não tem pejo em declarar que o homem é angústia. Significa isso: o ho-

mem ligado por um compromisso e que se dá conta de que não é apenas aquele que es-

colhe ser, mas de que é também um legislador pronto a escolher, ao mesmo tempo que a si

próprio, a humanidade inteira, não poderia escapar ao sentimento da sua total e profunda

responsabilidade.� (J.P. Sartre, Ibidem., p. 13). Sobre esta angústia já falara Kierkegaard (1813-1855): �A angústia pode ser comparada à vertigem. Quando o olhar imerge num abismo, e-

xiste uma vertigem, que nos chega tanto do olhar como do abismo, visto que nos seria im-

possível deixar de o encarar. Esta é a angústia, vertigem da liberdade, que surge quando,

ao desejar o espírito estabelecer a síntese, a liberdade imerge o olhar no abismo das suas

potencialidades e agarra-se à finitude para não soçobrar.

�Em tal vertigem a liberdade afunda....� (S.A. Kierkegaard, O Conceito de Angústia, São Pau-lo: Hemus, 1968, p. 66). 162

J.P. Sartre, O Existencialismo é um Humanismo, p. 11. 163

Vd. Hermisten M.P. Costa, Liberdade Cristã, São Paulo: 1997. 164

Aqui estamos nos referindo à �liberdade metafísica� do homem, conforme tratamos em outro lu-gar: �... Nada que é humano pode ser exaustivamente calculado (...) a metafísica do ho-

mem é a metafísica da sua própria transcendência corpórea. �A liberdade no sentido metafísico, indica que o comportamento humano ultrapassa o

esquema estímulo-reação (S-R); isto porque, o homem não simplesmente reage; ele respon-

de e, a resposta pode consistir num silêncio, indicando o seu grito eloqüente de liberdade.

�O reagir é um ato que se localiza na esfera do biológico. O responder, contudo, pertence à

esfera da liberdade�. (Rubem Alves, DA Esperança, Campinas, SP.: Papirus, 1987, p. 45). �A liberdade do homem se manifesta no fato dele poder fazer uma pausa entre o estímu-

lo e a resposta, optando pelo que lhe parece mais convincente.� (Hermisten M.P. Costa, Li-

berdade Cristã, p. 4-5).

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 35/108 Esta perspectiva coloca o homem como senhor da História e do seu destino, es-quecendo-se de que a �liberdade do homem é liberdade finita�;165 ignorando também, o pecado e a conseqüente escravidão da vontade aos �deuses� deste

mundo.166 (Rm 3.23; 6.23; Ef 2.1). Lloyd-Jones (1899-1981) observa com perspicácia que, "O homem do mundo

se jacta da sua liberdade e fala sobre 'livre pensamento'. A suprema realiza-

ção do diabo consiste em persuadir o homem de que, justamente naquilo

em que ele está mais estonteado e escravizado, é mais livre�.167

Quanto ao pressuposto da anomia, há a ignorância dos preceitos eternos de Deus

registrados na Sua Palavra que permanecem e, que nos mostram que a Palavra é

suficiente para todas as nossas necessidades, não havendo área em nossa vida pa-ra qual as Escrituras não tenham normas e princípios orientadores (Mt 5.17-19; 22.29; 2Tm 3.16; 2Pe 1.20-21). D) Pluralismo:

�Se não existe verdade, também

não existe heresia� � John Sittema, Cora-

ção de Pastor, São Paulo: Cultura Cristã,

2004, p. 76.

Como a verdade, caso exista, é plural, todas as coisas são possíveis dentro da

diversidade do real ou mesmo na falta de seu sentido. Há coisas diferentes, mas não

excludentes. Deste modo, alguns princípios da Lógica Formal são meramente igno-rados, tais como: a) O Princípio de Identidade, que afirma que �o que é, é� ou, �tudo que é idêntico

ao que já se pensou é necessariamente verdadeiro�, �toda proposição é equivalente a ela mesma� ou, ainda, �todo objeto é idêntico a si mesmo�. Este princípio pode

também ser resumido na fórmula: �A é A�, o que quer dizer que uma idéia ou con-ceito é igual a ele mesmo pelo menos no momento em que se está realizando o pensamento. O sentido fundamental, é que o predicado expressa alguma qualidade

do sujeito � �todo sujeito é predicado de si mesmo� �, caso contrário, teríamos uma

tautologia, como se disséssemos que São Paulo é São Paulo. Ao afirmarmos pelo

contrário, que Lutero foi o marco fundamental da Reforma Protestante, expressamos que o atribuído a Lutero lhe cabe totalmente, havendo então uma identidade. Este princípio que já era bem conhecido de Locke (1632-1704),168 foi colocado por Leibniz (1646-1716) da seguinte maneira: 165

Paul Tillich, Teologia Sistemática, São Paulo: Paulinas/Sinodal, (1984), II, p. 268. 166

Vd. L. De Koster, Liberdade Cristã: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da I-

greja Crista, São Paulo: Vida Nova, 1990, Vol. II, p. 429-431. 167

D.M. Lloyd-Jones, O Combate Cristão, São Paulo: PES., 1991, p. 76. 168

John Locke, Ensaio Acerca do Entendimento Humano, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XVIII), 1973, I.1.4. p. 151.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 36/108

�As verdades primitivas da razão são aquelas a que dou o nome geral

de idênticas, pois parecem não fazer outra coisa que repetir a mesma

coisa, sem nos ensinar nada de novo. Podem ser afirmativas ou negativas.

As afirmativas são como as que seguem: Cada coisa é aquilo que é, e em

quantos exemplos se quiser, A é A, B é B. Eu serei o que serei. Escrevi o que

escrevi....�.169

Kant (1724-1804) resumiu:

�Existem dois princípios absolutamente primeiros de todas as verdades,

um para as verdades afirmativas: �Tudo aquilo que é, é�, e outro para as

verdades negativas: �Tudo o que não é, não é�. Ambos são geralmente

chamados �Princípio de identidade��.170

b) O Princípio de Contradição,

171 formulado por Aristóteles (384-322 a.C.), que

dizia: �Nada pode simultaneamente ser e não ser�.172

Este princípio, que é decorren-te do anterior (ainda que Aristóteles não conhecesse aquele

173), pode ser assim e-nunciado: �Uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo as-pecto� ou, de duas contraditórias uma é necessariamente falsa. Se afirmo que �A é

A� e que �A não é A�, uma das duas afirmações será falsa. Resumindo: �Nenhuma

proposição é verdadeira e falsa ao mesmo tempo�. Aristóteles (384-322 a.C.) viu ne-le o mais importante princípio uma vez que os outros a ele se reduzem. Descartes (1596-1650), também o empregou na sua argumentação.

174 Leibniz (1646-1716) assim o formulou:

�O princípio de contradição é em geral: Uma proposição é ou verda-

deira ou falsa. Isto encerra duas enunciações verdadeiras, ou seja: a pri-

meira, que o verdadeiro e o falso não são compatíveis na mesma proposi-

ção, ou então, que uma proposição não pode ser ao mesmo tempo ver-

dadeira e falsa; a segunda, que o oposto do verdadeiro e do falso não

são compatíveis, ou que não há meio-termo entre o verdadeiro e o falso,

ou então: é impossível que uma proposição não seja nem verdadeira nem

falsa.�175

169

G.W. Leibniz, Novos Ensaios, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XIX), 1974, IV.2.1.

p. 246. 170

E. Kant, Nova Explicação dos Primeiros Princípios do Conhecimento Metafísico, 1755. In: Textos

Pré-Críticos, Porto: Rés-Editora, (1983), I.2. p. 37. 171

Que, como observa Ferrater Mora, deveria ser chamado de �Princípio de Não Contradição�. (Con-tradição: José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1982, p. 84). 172

Aristóteles, Metafísica. III,2,996 b 30; IV,2,1005 b 24. Cf. Princípio de Contradição: In: N. Abbag-nano, Dicionário de Filosofia, p. 188b. 173

Cf. Princípio de Identidade: In: N. Abbagnano, Dicionário de Filosofia, p. 504b. 174

Vd. R. Descartes, Princípios da Filosofia, 3ª ed. Lisboa: Guimarães Editores, 1984, VII.49. p. 90-91 175

G.W. Leibniz, Novos Ensaios, IV.2.1. p. 246-247. Vd. G.W. Leibniz, Monadologia, §§ 31-32. p. 66.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 37/108 Kant (1724-1804), o resumiu em duas proposições:

�1ª � é verdadeiro tudo aquilo cujo oposto é falso, isto é, tudo aquilo

cujo oposto é negado, deve ser afirmado; 2ª � é falso tudo aquilo cujo o-

posto é verdadeiro. Da primeira extraem-se as proposições afirmativas, da

segunda, as proposições negativas.�176

c) O Princípio do Terceiro Excluído, que fora formulado por Aristóteles (384-322 a.C.),177 mas que esteve durante toda a Idade Média fundido com o princípio de con-tradição, sendo dissociado apenas com Leibniz.

178 Ele é assim expresso: Toda coi-sa deve ser ou não ser; em outras palavras, com dois juízos contraditórios tais como

�A é A� e �A não é A�, não se dá uma terceira possibilidade; não existe um terceiro

modo de ser porque um dos dois deve ser necessariamente verdadeiro, uma vez que os dois não podem ser falsos ao mesmo tempo: �De duas proposições contradi-tórias uma é verdadeira e a outra falsa�. Em lógica não existe mais ou menos verda-deiro ou mais ou menos falso.179 Notemos, que este princípio não nos diz qual o verdadeiro, mas, tão só, que dois

juízos contraditórios não podem ser concomitantemente falsos. Resumindo: �Toda

proposição ou é verdadeira ou é falsa, não havendo intermediário entre a verdade e

a falsidade�. O conceito clássico de verdade utiliza-se do princípio da correspondência da ver-dade. Assim, a verdade consiste na correspondência entre a proposição e a realida-de. A verdade consiste na conformidade entre a afirmação e o fato.

180 Em nossa sociedade, porém, esses princípios parecem inexistir: Posso naturalmente gostar de

duas coisas excludentes e compatibilizá-las perfeitamente em minha mente e ações

sem que perceba nenhum dilema ou mesmo a necessidade de harmonização. No-temos que a incompatibilidade só é percebida a partir de uma compreensão de duas

os mais teses que se excluem mutuamente. No entanto, para compreendermos is-so, é necessário pensar e sinceramente desejar a coerência de pensamento, de va-lores e de comportamento. Como tudo isso parece irrelevante, passo então a viver

como se cada �verdade� fosse �a verdade� � ainda que a verdade não me importe �

176

E. Kant, Nova Explicação dos Primeiros Princípios do Conhecimento Metafísico, 1755. In: Textos

Pré-Críticos, Porto: Rés-Editora, (1983), I.2. p. 38. 177

Aristóteles assim o elaborara: �Entre os opostos contraditórios não existe um meio termo.

Esta, de fato, é a contradição: a oposição a uma ou à outra parte da qual é presente a ou-

tra parte, de forma que não existe um meio.� (Aristóteles, Metafísica, X,7, 1057 a 33. Cf. Princí-

pio do Terceiro Excluído: In: N. Abbagnano, Dicionário de Filosofia, p. 918a). 178

Leibniz, como vimos, observou que o �princípio de contradição, �...encerra duas enunciações

verdadeiras, ou seja: a primeira, que o verdadeiro e o falso não são compatíveis na mesma

proposição, ou então, que uma proposição não pode ser ao mesmo tempo verdadeira e

falsa; a segunda, que o oposto do verdadeiro e do falso não são compatíveis, ou que não

há meio-termo entre o verdadeiro e o falso, ou então: é impossível que uma proposição não

seja nem verdadeira nem falsa� (G.W. Leibniz, Novos Ensaios, IV.2.1. p. 246).

179 Vd. Mário Pinto, Elementos Básicos da Lógica, Belo Horizonte: UCMG/FUMARC, 1981, p. 72-73.

180 Veja-se: J.P. Moreland & William Lane Craig, Filosofia e Cosmovisão Cristã, São Paulo: Vida No-

va, 2005, p. 167ss.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 38/108 naquele momento. No campo político e religioso, esta prática é, talvez, uma das

mais visíveis em nosso país: não existe incompatibilidade real, apenas circunstanci-al. O pressuposto básico deste princípio é a falta de absolutos. Deste modo, cada um

deve viver como se aquele momento fosse o momento e que os conceitos não se

excluem; a diferença é a �verdade�; logo, não há princípios absolutos que possam

nos orientar em nossa vida e escolhas, exceto as minhas circunstâncias: não tenho

compromissos como minhas �escolhas� anteriores. Uma sociedade sem absolutos caminha para o caos moral. No entanto, os Mandamentos de Deus permanecem como norma absoluta de to-do o nosso pensar, crer e viver. Seremos avaliados por Deus não pelos nossos con-ceitos circunstancias, mas, pela Sua Palavra, que é viva e eficaz. (Rm 2.16). E) O Marxismo:

Para Karl Marx (1818-1883), toda a realidade (= história) deve ser interpreta-da através do materialismo dialético (as leis superiores que regem toda a realidade) e do materialismo histórico (leis particulares que governam as transformações eco-nômicas ao longo do curso da história: Os fenômenos históricos e sociais tem a sua

causa determinante em fatos econômicos). Para Marx, o fator fundamental na existência humana é o econômico. É através

da economia que se realiza a evolução social; e, através desta, a política. Assim

considerando, Marx tentou explicar toda a realidade dentro de um quadro de refe-rência no qual a economia detinha a primazia. Aplicando este referencial à religião, Marx concluiu que a religião é um produto do

homem, mas, que tem dominado o mesmo homem que a criou. Em 1846, Marx e F. Engels escreveram:

�Até o presente os homens sempre fizeram falsas representações sobre

si mesmos, sobre o que são ou deveriam ser. Organizaram suas relações

em função de representações que faziam de Deus, do homem natural

etc. Os produtos de sua cabeça acabaram por se impor à sua própria

cabeça. Eles, os criadores, renderam-se às suas próprias criações. Liberte-

mo-los, pois, das quimeras, das idéias, dos dogmas, dos seres imaginários,

sob o jugo dos quais definham. Revoltemo-nos contra este predomínio dos

pensamentos�.181

A conclusão de Marx, é que a religião deve ser suprimida. Na sua tese de douto-rado, procurou provar que no país da razão, não há lugar para Deus.

�Levai papel-moeda a um país no qual este uso do papel é desconhe-

cido, e todos rirão de vossa representação subjetiva. Ide com os vossos

181

Karl Marx & Friderich Engels, A Ideologia Alemã, 3ª ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Hu-manas, 1982, p. 17.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 39/108

deuses a um país no qual são adorados outros deuses, e lá vos demonstra-

rão que sois vítimas de imaginações e abstrações. E com razão. Se alguém

tivesse levado aos gregos antigos um deus migrador, teria tido a prova da

não existência deste deus, porque para os gregos ele não existia. O que

em um determinado país se dá com os deuses estrangeiros acontece no

país da razão com Deus em geral: ele é uma região na qual a existência

de Deus cessa�.182

Seguindo a lógica de seu argumento, Marx conclui que a religião irá desaparecer

conforme o homem for progredindo. Todavia, hoje ela funciona como �ópio do povo�:

�O sofrimento religioso é ao mesmo tempo uma expressão do sofrimento

real e um protesto contra o sofrimento real. A religião é o suspiro da criatu-

ra oprimida, o sentimento de um mundo sem coração, e a alma de con-

dições desalmadas. É o ópio do povo. A abolição da religião, como a feli-

cidade ilusória dos homens, é uma exigência que visa sua felicidade ver-

dadeira�.183

Portanto, lutar contra a religião significa lutar contra a escravidão do povo: �A luta

contra a religião é pois, indiretamente, a luta contra aquele mundo do qual

a religião é o aroma espiritual�.184 Podem realmente, os fatores econômicos explicar todos os nossos sentimentos?

Isso não consiste num reducionismo metodológico? Estou convicto de que sim. Um

fato obviamente não considerado por Marx, é a universalidade do instinto religioso. F) O Positivismo: O Positivismo surgiu na França, tendo como elemento fomentador os proble-mas econômicos e sociais que dominaram o século XIX.

185 Augusto Comte (1798-1857), considerado o Pai da Sociologia e do Positivismo, acreditava ter descoberto uma lei fundamental que regia a inteligência humana bem

como toda a história. Ele assim descreve:

182

Apud Battista Mondin, Curso de Filosofia, Vol. III, p. 105. 183

Karl Marx, Economic and Philosophical Manuscripts, p. 42. Apud Colin Brown, Filosofia e Fé Cris-

tã, p. 93. 184

Karl Marx, Crítica da Filosofia e do Direito Público, Introdução. Apud Battista Mondin, Curso de Fi-

losofia, Vol. III, p. 104-105. Veith resume: �O marxismo acabou com a propriedade privada,

buscou liquidar a religião, suprimiu as culturas que existiam na terra e tentou abolir o indivi-

dualismo em favor de uma vasta comunidade coletiva.� (Gene Edward Veith, Jr., Tempos Pós-

Modernos, p. 28). 185

Cf. Umberto Padovani, História da Filosofia, 13ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1981, p. 429-431; Carlos B. Martins, O Que é Sociologia, 2ª ed. São Paulo: Brasiliense (Coleção Primeiros Passos, Vol. 57), 1982, p. 10ss.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 40/108

�Estudando, assim, o desenvolvimento total da inteligência humana em

suas diversas esferas de atividade, desde seu primeiro vôo mais simples até

nossos dias, creio ter descoberto uma grande lei fundamental, a que se su-

jeita por uma necessidade invariável, e que me parece poder ser solida-

mente estabelecida, quer na base de provas racionais fornecidas pelo

conhecimento de nossa organização, quer na base de verificações histó-

ricas resultantes dum exame atento do passado�.186

Em seguida, Comte expõe a lei descoberta:

�Essa lei consiste em que cada uma de nossas concepções principais,

cada ramo de nossos conhecimentos, passa sucessivamente por três es-

tados históricos diferentes: estado teológico ou fictício, estado metafísico

ou abstrato, estado científico ou positivo�.187

Conforme ele mesmo detalha infra, Comte entende que o espírito humano em-prega em suas investigações, sucessivamente, três métodos diferentes e opostos entre si: 1) Teológico; 2) Metafísico e 3) Positivo. Esta teoria é conhecida como �lei dos três estados�. Em cada estado ou período,

há características próprias. 1º Estado � Teológico ou Fictício:

�O espírito humano, dirigindo essencialmente suas investigações para a

natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos

que o tocam, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, apresenta

os fenômenos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes

sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária expli-

ca todas as anomalias aparentes do universo�.188

2º Estado � Metafísico ou Abstrato:

Este consiste em apenas uma modificação geral do primeiro. Aqui, �os agen-

tes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras entida-

des (abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e

concebidas como capazes de engendrar por elas próprias todos os fenô-

menos observados, cuja explicação consiste, então, em determinar para

cada um uma entidade correspondente�.189

186

Augusto Comte, Curso de Filosofia Positivista, São Paulo: Abril Cultura, (Os Pensadores, Vol.

XXXIII), 1973, I.11. p. 9-10. 187

Augusto Comte, Curso de Filosofia Positivista, I.11. p. 10. 188

Augusto Comte, Curso de Filosofia Positivista, I.11. p. 10. 189

Augusto Comte, Curso de Filosofia Positivista, I.11. p. 10.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 41/108

3º Estado � Científico ou Positivo:

�O espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções

absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhe-

cer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em

descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação,

suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão e de simili-

tude. A explicação dos fatos reduzida então a seus termos reais, se resume

de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos fenômenos

particulares e alguns fatos gerais, cujo número e progresso da ciência ten-

de cada vez mais a diminuir�.190

Antonio Paim, discorrendo sobre o Positivismo, faz uma crítica pertinente:

�O positivismo pretende ser, antes de mais nada, uma filosofia das ciên-

cias, recusando simultaneamente a inquirição ontológica e a inquirição

epistemológica. Trata-se, na aparência, de erigir um tipo de saber segun-

do procedimentos análogos aos empregados pelas ciências, mas sem se

dar conta da mudança de plano, isto é, ignorando o caráter totalizante

da síntese pretendida. O postulado dos três estados, que escapa a qual-

quer verificação, asseguraria uma ordenação do saber apto a sustentar-

se pela simples coerência lógica�.191

Acrescentaríamos às palavras de Paim, o fato de que o Positivismo pretendia re-formar a sociedade, constituindo-se numa nova religião.

192 Essa pretensão pertenci-a, em especial, aos chamados positivistas �ortodoxos�.

193 Segundo Colin Brown, o próprio Comte �propôs uma religião da humanidade,

em que Deus era desentronizado e a humanidade, �O grande ser�, colocado

em Seu lugar. Até mesmo adaptou o culto, os sacramentos e os sacerdotes

do catolicismo para seus propósitos seculares. Foi produzido um �calendário

positivista� em que os nomes de cientistas e estudiosos seculares substituíam

os dos santos. E em 1848 uma �Sociedade Positivista� foi fundada, que se es-

forçava para aplicar os princípios positivistas à reforma da sociedade. A no-

va religião, no entanto, nunca tornou-se realmente popular. As reformas so-

ciais do século XIX foram levadas a efeito ou por cristãos dedicados ou por

aqueles que empreendiam programas sociais menos grandiosos�.194 O Posi-

190

Augusto Comte, Curso de Filosofia Positivista, I.11. p. 10. 191

Antonio Paim, História da Idéias Filosóficas no Brasil, 3ª ed. rev. aum., São Paulo: Editora Conví-

vio/Instituto Nacional do Livro Fundação Nacional Pró-Memória, 1984, p. 44. 192

Quanto a alguns aspectos da �religião� positivista, ver: Augusto Comte, Catecismo Positivista,

São Paulo: Abril Cultura, (Os Pensadores, Vol. XXXIII), 1973, p. 101-302. 193

Cf. Leonel Franca, Noções de História da Filosofia, 22ª ed. Rio de Janeiro: AGIR., 1978, p. 277. 194

Colin Brown, Filosofia e Fé Cristã, p. 96.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 42/108

tivismo apesar de ser amado e odiado no Brasil,195 ele é um �estado� superado co-mo sistema filosófico. Entretanto, os efeitos dele continuam em nossa cultura. Em nossa abordagem o que nos importa é o seu conceito de religião. No Positi-

vismo, a religião não é necessariamente combatida; apenas ela é olhada como um

estágio atrasado, contudo, necessário para o amadurecimento do homem; é o pri-meiro degrau da escalada humana, que culmina com o positivismo. Creio que ainda hoje esta idéia continua sendo vendida constantemente pelos meios de comunica-ção. É verdade que nesta passagem de milênio, isto se tornou mais discreto devido

à esperada explosão de manifestações religiosas, como costumeiramente ocorre

nas transições de séculos e milênio. Se por um lado não se combate abertamente a

religião, por outro, também não se estimula à religiosidade (exceto, à religiosidade

popular, que se manifesta através de superstições e crendices196 e, agora, reforçada

até mesmo por variadas comunidades ditas igrejas evangélicas). As manifestações

religiosas, em geral, são mostradas pelos meios de comunicação, com um ar de res-peito tolerante para com os mais ingênuos; digamos, com uma atitude chamada de

�politicamente correta�. Rui Barbosa fez uma constatação fácil de ser verificada: "Por toda a parte, até

hoje, tem sido o sentimento religioso a inspiração, a substância, ou o cimento

das instituições livres, onde quer que elas duram, enraízam, e florescem�.197

Daí a sua insistência quanto à autonomia da igreja em relação ao Estado e este em

relação àquela: "Desde 1876 que eu escrevia e pregava contra o consórcio da

Igreja com o Estado; mas nunca o fiz em nome da irreligião: sempre em no-

me da liberdade. Ora, liberdade e religião são sócias, não inimigas. Não há

religião sem liberdade. Não há liberdade sem religião. (...) Assim como não

admitíamos o Estado cativo à Igreja, não podíamos admitir a Igreja cativa ao

Estado�.198

Não podemos nos esquecer de que a religião é uma tentativa de resposta à inicia-tiva de Deus de se comunicar com o homem através da Criação (Revelação Geral) e da Revelação Especial (A Bíblia e Jesus Cristo). O que acontece, é que quando o

homem não tem o encontro salvador com Jesus Cristo, ele se perde no caminho de

volta pois, ninguém pode encontrar Deus fora de Cristo (Jo 14.6,9; 2Tm 2.5).

195

Vd. Antonio Paim, História da Idéias Filosóficas no Brasil, p. 172ss.; Geraldo P. Machado, A Filo-

sofia no Brasil, 3ª ed. São Paulo: Cortez e Moraes (acrescida de notas), 1976, p. 41ss. (com bibliogra-fia) e Leonel Franca, Noções de História da Filosofia, p. 277ss. 196

Curioso é que no século XIX, a Igreja Romana combateu com veemência o �Catolicismo Popular�. (Ver: Pedro A.R. de Oliveira, Religião e Dominação de Classe, Petrópolis, RJ.: Vozes, 1985, p. 12ss.;

113ss.; 239ss.; Boanerges Ribeiro, Protestantismo no Brasil Monárquico, São Paulo: Pioneira, 1973,

p. 49ss.). A ideologia da chamada �igreja popular� de hoje, é exposta com clareza por Dom Boaventu-ra Kloppenburg, igreja popular, 2ª ed. Rio de Janeiro: AGIR., 1983, 236p. e Pe. José Narino de Cam-pos, Brasil: uma Igreja diferente, São Paulo: T.A. Queiroz, Editor, 1981, 170p. 197

Ruy Barbosa, Cartas de Inglaterra, 2ª ed. São Paulo: Livraria Academica Saraiva & C. - Editores, 1929, p. 433. 198

Rui Barbosa, Discurso no Colégio Anchieta, Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa,

1981. In: O Liberalismo e a Constituição de 1988: textos selecionados de Rui Barbosa, organização

de Vicente Barretto, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p. 43.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 43/108 A constatação de Blaise Pascal (1623-1662) é correta:

�Todos os que procuram Deus fora de Jesus Cristo, e que se detêm na

natureza, ou não encontram luzes que o iluminem, ou acabam por encon-

trar um meio de conhecer Deus e de servi-lo sem mediador, e por aí caem

no ateísmo ou no deísmo, que são duas coisas que a religião cristã abomi-

na quase igualmente�.199

Conforme já mencionamos, o Positivismo foi superado. O sistema de Comte em menos de 100 anos tornou-se ultrapassado; no entanto, dois mil anos depois, as pa-lavras de Cristo continuam tão reais quanto antes, e com a mesma força: �Passará o

céu e a terra, porém as minhas palavras não passarão� (Mt 24.35).

5. O CULTO CRISTÃO�UMA PERSPECTIVA BÍBLICO-REFORMADA:

�Nós estudamos os Reformadores pe-

la mesma razão que os Reformadores

estudaram os Pais da Igreja. Eles são tes-

temunhas da autoridade da Igreja. Os

Reformadores estudaram os comentá-

rios patrísticos sobre a Escritura porque

eles enriqueceram o seu próprio enten-

dimento da Escritura. Hoje nós estuda-

mos os Reformadores porque eles lan-

çaram assim muito mais luz sobre as

páginas da Bíblia. Eles estavam apaixo-

nadamente preocupados em adorar a

Deus verdadeiramente e eles busca-

vam a Escritura para aprender como.

Nós estudamos os Reformadores porque

sua compreensão da Escritura é assim

profunda� � Hughes Oliphant Old, Wor-

ship: That Is Reformed According to Scriptu-

re, p. 5.

Introdução: O Culto como Labor Inteligente:

Um ponto pacífico para os Reformadores, é a concepção bíblica de que a Igreja é

vocacionada a prestar culto. Portanto, como povo de Deus ela encontra a sua reali-zação no ato de Culto, no qual revela publicamente o significado de Deus para a sua

vida, tornando patente o que Deus é, fez e faz. O culto é um testemunho solene e

público das "Virtudes de Deus" (1Pe 2.9-10; Hb 13.15).200

199

Blaise Pascal, Pensamentos, VIII, 556. p. 179. 200

�Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de

Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa

luz; vós, sim, que, antes, não éreis povo, mas, agora, sois povo de Deus, que não tínheis alcançado

misericórdia, mas, agora, alcançastes misericórdia� (1Pe 2.9-10). �Por meio de Jesus, pois, ofereça-

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 44/108 O culto dentro da perspectiva Reformada adquire uma condição de labor, visto

que envolve o homem todo, a sua mente, emoções e vontade. Não pode haver um

genuíno culto descompromissado, distante e dispersivo. Aqui temos um elemento de tensão: Dentro de uma sociedade extremamente pragmática e superficial, torna-se difícil falar e principalmente oferecer um culto que exija entendimento, concentração

e vontade de servir. Parece-nos mais fácil um culto elaborado dentro de uma pers-pectiva dispersiva e esquizofrênica, visto que qualquer parte pode ser entendida e

principalmente sentida em si mesma, já que nenhuma parte tem a ver com a anterior ou a posterior; seria como uma lógica existencialista na qual a história é composta

de eventos estanques que não tem relação de causalidade nem com o que vem an-tes nem com o que o sucede.201 Justamente por esta superficialidade é que o culto a Deus cada vez mais é entulhado com elementos estranhos e alienantes, visando a

tão-somente à distração dos participantes, enchendo o momento de culto com shows variados e personagens dos mais diversos matizes teológicos que narram

suas experiências ou aquelas que ainda que não experimentadas, sem dúvida ne-nhuma serão vividas por aquele auditório tão sugestionável; assim temos: �sopro do

espírito�; �arroto do espírito�; pessoas caindo, outras dando gargalhadas em meio a

um vozerio intenso onde predominam palavras de confirmação ou adoração: �a-mém�, �é verdade Senhor�; �cura a tua serva�, �restaura o teu servo�; �Tu és grande Senhor�, etc. Todo esse alvoroço litúrgico � conscientemente ou não � reforça a

prática do não-pensamento; afinal, dentro dessa lógica malévola, religião é uma

questão de �coração�; leia-se: de sentimento sem inteligência. Nesse arcabouço: to-me-se fazer gestinhos, frases de efeito, caretas piedosas, palavras mágicas: �foi ou

vai ser uma bênção�, �amém?�; �cumprimente o seu vizinho�, �palmas para Jesus�,

coreografias, trenzinho do espírito, etc. Em geral, muito disso acompanhado de um

fundo musical; já não basta orar; tem que ter música. Aliás, é muito contagiante falar com música que reforcem ou forjem sentimentos. Já imaginaram um filme de aventu-ra, de terror ou suspense sem sonorização? Creio que estamos trazendo isso para

dentro de nossas igrejas. Por outro lado, talvez conforme presunção implícita pela

prática explícita Deus não ouça sem música ou, a oração � falar com Deus �, já

não nos emocione mais... Estamos não acostumados com a subestimação de nossa

inteligência que não esperamos outra coisa quando vamos à Igreja. Por sua vez, os

líderes, mal preparados, acovardados ou ambas as coisas, na presunção de serem

�comunicadores� transformam o culto num show onde Deus é o ausente que, de

quando em quando é invocado para convalidar os seus desejos. E aí dele se não

gostar de nosso culto... Vamos para o �mundão� buscar um Deus mais compreensi-vo... Notemos que tudo isso nos conduz à infância espiritual, satisfazendo o nosso de-sejo lúdico. Acontece, que cultuar a Deus é algo extremamente sério, responsável e

alegre. Isso não significa que o culto Reformado seja ou deva ser algo morto, sem

vida e emoção. É justamente o contrário: a racionalidade do culto se revela em sua

emoção contagiante e no desejo de servir e agradar a Deus através do que Ele

mos a Deus, sempre, sacrifício de louvor, que é o fruto de lábios que confessam o seu nome� (Hb 13.15). 201

Vd. Otto A. Piper, A Interpretação Cristã da História, São Paulo: 1956, (Coleção da �Revista de

História�, VIII), p. 21; A.A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, p. 37.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 45/108 mesmo tem nos proposto na Sua Palavra e dentro das oportunidades que Ele tem nos oferecido em nossa cotidianidade. Em 1898, Abraham Kuyper, escreveu:

�O fato de hoje nossas igrejas calvinistas serem consideradas frias e u-

nheismish, e de uma reintrodução do simbólico em nossos lugares de ado-

ração ser ardentemente desejada, devemos à triste realidade de que a

pulsação da vida religiosa em nossos dias está muito mais fraca que esta-

va nos dias de nossos mártires. Mas longe de pedir emprestado desta o di-

reito de descer de novo ao nível inferior da religião, esta fraqueza da vida

religiosa deve inspirar à oração por uma obra mais poderosa do Espírito

Santo. A segunda infância em sua velhice, é um movimento retrógrado,

doloroso. O homem que teme a Deus e cujas faculdades permanecem

claras e inalteradas, não retorna do ponto de maioridade para os brin-

quedos de sua infância�.202

Comparemos as palavras de Kuyper, com outro contemporâneo nosso, James

Montegomery Boice (1938-2000). Dentro de outra perspectiva, escreve:

�A televisão não é um meio de bom ensino ou informação, como a

maioria das pessoas supõe. Na verdade é um meio de entretenimento

grandemente negligente. Devido ao fato de ser tão penetrante � a média

de lares americanos tem a televisão ligada mais de sete horas por dia � es-

tá moldando-nos a pensar que o objetivo principal do homem é comprar

coisas e ser entretido. Como podem pessoas, cujas mentes estão cheias

de baboseiras desmioladas dos programas de entrevistas da tarde ou seri-

ados cômicos da noite, ter qualquer coisa além de pensamentos triviais

quando vêm à casa de Deus nas manhãs de domingo � se, de fato, pelo

menos têm pensamentos sobre Deus? Como podem apreciar sua santi-

dade, se suas cabeças estão cheias de esterco moral dos programas de

entrevistas? Não podem. Assim, tudo que eles podem procurar na igreja,

se procurarem algo, é alguma coisa que os faça se sentirem bem por cur-

to espaço de tempo, antes de se dirigirem de volta à cultura da televi-

são�.203

A Igreja em sua caminhada apresenta-se ao Seu Senhor como oferta voluntária e

total, na qual está expressa uma atitude de adoração, gratidão e consagração: Ado-

ração pelo que o Senhor é; Gratidão pelo que Deus fez e continua fazendo � �.... a

principal parte do culto divino consiste nisto: que os verdadeiros crentes pú-

blica e solenemente reconhecem que Deus é o autor de todas as coisas ex-

celentes�;204 Consagração, como testemunho de que o Deus adorado é o seu

Deus. Assim, a Igreja vivencia a sua natureza litúrgica (Rm 12.1). "O culto é a es-

202

Abraham Kuyper, Calvinismo, p. 156. 203

James M. Boice, O Evangelho da Graça, p. 170. 204

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 22.25), p. 500.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 46/108

sência e o coroamento da atividade cristã".205 Por isso, é que podemos fazer

coro à declaração de que, "Adorar a Deus é a nossa mais alta atividade pois co-

loca o espírito humano em comunicação com Deus eterno. Atividade tão

essencial que é o próprio Deus quem busca adoradores".206

Na Reforma em nenhum momento houve de fato uma Liturgia Reformada fixa ou mesmo a tentativa de tal prática quer entre as Igrejas Luteranas, quer entre as Igre-jas genuinamente Reformadas. O que houve, foram tentativas de se adaptar os prin-cípios bíblicos, dentro de um quadro de referência exegético-hermenêutico Refor-mado, às necessidades de cada país, cidade e congregação. Este era o pensamen-to de Lutero e Calvino.207 Lutero (1483-1546), por exemplo, elaborou em 1523 A Ordem do Culto Divino na

Congregação, dizendo que �Se a Palavra de Deus não é pregada seria melhor

que os homens não cantassem ou lessem ou se reunissem�.208

Nesse mesmo ano, confeccionou em latim a Forma da Missa e Comunhão e, em 1526, após várias solicitações, publicou uma ordem de culto em alemão. Na introdução dessa obra, a-firmou que a ordem do culto por ele elaborada, não era rígida:

�Em primeiro lugar eu gostaria de pedir gentilmente e por amor de Deus

a todos os que vivem ou quiserem seguir esta nossa ordem no culto, que

de forma alguma façam dela uma lei rígida, nem enredem ou prendam a

consciência de ninguém, mas que a usem na liberdade cristã enquanto,

como, onde, quando e por quanto tempo acharem conveniente e útil.

(...) Mas não estou dizendo que aqueles que já têm sua boa ordem ou

que pela graça de Deus a possam melhorar, a abandonem para adotar a

nossa. Porque não sou da opinião que toda a Alemanha devia seguir nos-

sa ordem de Wittenberg. (...) Ordem é algo exterior. Por melhor que seja,

ela pode acabar em abuso. Então já não é ordem, mas desordem. Por isso

nenhuma ordem permanece em vigor nem vale por si mesma, como as

ordens papais foram consideradas até agora. Mas a validade, o valor, o

poder e a virtude de qualquer ordem está no seu uso adequado�.209

Analisaremos agora, através da compreensão de Calvino e das principais Confis-sões Reformadas, os princípios bíblicos e teológicos que devem nortear a adoração

do povo de Deus.

205

C.F.D. Moule, As Origens do Novo Testamento, São Paulo: Paulinas, 1979, p. 45. 206

B. Ribeiro, O Senhor que Se Fez Servo, São Paulo: O Semeador, 1989, p. 46-47. 207

Vd. Hermisten M.P. Costa, Nossa Herança Litúrgica Reformada, São Paulo: 1989, p. 7ss. 208

Apud Bengt Hägglund, História da Teologia, Porto Alegre, RS.: Concórdia, 1973, p. 202. 209

Missa e Ordem do Culto Alemão: In: Martinho Lutero, Pelo Evangelho de Cristo (Selecta de textos do Reformador), Rio Grande do Sul: Concórdia/Sinodal, 1984, p. 218,219,231.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 47/108

A) Culto Somente a Deus: A Segunda Confissão Helvética (1562-1564), no capítulo V, diz:

210

�Ensinamos que somente o verdadeiro Deus deve ser adorado e cultu-

ado. Esta honra não concedemos a nenhum outro, segundo o manda-

mento do Senhor. �Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a Ele darás culto�

(Mt 4.10). (...) Nós cremos em um só Deus, e só a Ele invocamos, e o faze-

mos mediante Cristo (1Tm 2.5; 1Jo 2.1)....

�Por essa razão não adoramos nem cultuamos nem invocamos os san-

tos dos céus, nem outros deuses, nem os reconhecemos como intercesso-

res ou mediadores perante o Pai que está no céu. Deus e Cristo, o Media-

dor, nos são suficientes. Nem concedemos a outros a honra que é devida

somente a Deus e ao seu Filho (Is 42.8; At 4.12)�.211

Confissão de Westminster (1647)212 XXI.2:

210

A Segunda Confissão Helvética foi primariamente elaborada em latim, pelo amigo, discípulo e su-cessor de Zuínglio (1484-1531), Henry Bullinger (1504-1575) em 1562. Em 1564, quando a peste vol-tou a atacar em Zurique, Bullinger perdeu a esposa e as três filhas. Ele mesmo ficou doente mas foi

curado. Neste ínterim ele fez a revisão da Confissão de 1562 e, como uma espécie de testamento

espiritual anexou-a ao seu testamento, para ser entregue ao magistrado da cidade, caso ele viesse a falecer. Esta confissão foi publicada, com algumas alterações � aceitas por Bullinger �, em latim e a-lemão em 12/03/1566. Ela foi traduzida para vários idiomas (inclusive o Árabe), tendo ampla aceita-ção em diversos países nos anos seguintes, sendo também adotada na Escócia (1566); na Hungria

(1567); na França (1571); na Polônia (1578). (Vd. P. Schaff, The Creeds of Christendom, I, p. 390-395; III, p. 233; R.V. Schnucker, Confissões Helvéticas: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Históri-

co-Teológica da Igreja Cristã, Vol. I, p. 341-342; K.S. Latourette, Historia del Cristianismo, Vol. II, p. 99; Archibald A. Hodge, Esboços de Theologia, p. 110; David S. Schaff, Nossa Crença e a de Nossos

Pais, p. 30). 211

In: O Livro de Confissões, São Paulo: Missão Presbiteriana do Brasil Central, 1969, §§ 5.023-5.025. 212 A Confissão de Westminster bem como os Catecismos Maior (1648) e Menor (1647), foram redi-gidos na Inglaterra, na Abadia de Westminster, conforme convocação do Parlamento Britânico

(12/06/1643). A Assembléia foi aberta no sábado, 01/07/1643, pregando o Dr. William Twisse (1575-1646) � que iria ser o moderador da Assembléia até a sua morte em julho de 1646 �, baseando o seu sermão no texto de Jo 14.18, "Não vos deixarei órfãos, voltarei para vós". A Assembléia funcionou de

01/07/1643 até 22/02/1649, realizando 1163 sessões regulares, sem contar as inúmeras reuniões de

comissões e subcomissões (Vd. P. Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. I, p. 753; Guilherme Kerr, A Assembléia de Westminster, São Paulo: E.F. Beda � Editor, 1984, p. 18). Trabalharam na elabora-ção da Confissão, 121 teólogos e trinta leigos nomeados pelo Parlamento, a saber: 20 da Casa dos Comuns e 10 da Casa dos Lordes (nomeação feita em 12/06/1643); e, também 8 representantes es-coceses � quatro pastores e quatro presbíteros, sendo que dois deles nunca tomaram assento (Cf. G.

Kerr, A Assembléia de Westminster, p. 12) �, que, mesmo sem direito a voto, exerceram grande influ-ência. Os principais debates desta Assembléia não foram de ordem teológica, já que praticamente to-dos eram Calvinistas, mas sim no que se refere ao governo da Igreja. "Embora houvesse diversida-

de quanto à Eclesiologia, havia unidade quanto à Soteriologia" (R. T. Kendall, A Modificação

Puritana da Teologia de Calvino: In: W. Stanford Reid, ed. Calvino e sua Influência no Mundo Ociden-

tal, p. 264). Neste particular havia quatro partidos representados; os Episcopais: James Ussher (1581-1656), Brownrigg, Westfield, Prideaux; Presbiterianos: T. Cartwright (1535-1603), Walter Travers (c. 1548-1635), etc.; Independentes: (Congregacionais) T. Goodwin, (1594-1665) P. Nye (1596-1672); J. Bur-roughs (1599-1646), W. Bridge (1600-1670), S. Sympson; Erastianos: Assim chamados por seguirem o pensamento do T. Erasto (1524-1583) � que defendia a supremacia do Estado sobre a Igreja �, J.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 48/108

�O culto religioso deve ser prestado a Deus o Pai, o Filho e o Espírito San-

to � e só a Ele; não deve ser prestado nem aos anjos, nem aos santos,

nem a qualquer outra criatura; nem, depois da queda, deve ser prestado

a Deus pela mediação de qualquer outro senão Cristo�.213

Comentando o primeiro Mandamento da Lei de Deus, Calvino diz que Deus proí-

be ter deuses estranhos, com isto significa que não transfiramos a outrem o que Lhe

é exclusivo.214 É impossível adorar a Deus corretamente sem o reconhecimento de

Seus atributos pessoais.215 Em outro lugar, acentua: �Toda verdadeira religião es-

tará arruinada, a menos que Deus seja o único invocado�.216 As orações não

dirigidas a Deus se constituem numa grave ofensa a Ele: �.... os papistas, saciem-

se o quanto possam em suas genuflexões diante de Deus, o fato é que o

roubam da principal parte de sua glória quando dirigem suas súplicas aos

santos�.217

Não pode haver culto hipotético (conforme as nossas hipóteses) a um Deus hipo-tético (conforme a nossa imaginação). Calvino observa que os homens �se afastam

do verdadeiro Deus porque julgam a Deus, não por sua infinita majestade,

mas pela vaidade tola e volúvel de suas próprias mentes�. Conseqüentemente, quando servem a este ser, �não adoram o Deus eterno, mas os sonhos e as

Selden (1584-1654), Whitelocke, J. Lightfoot (1602-1675). Prevaleceu no entanto, o sistema Presbite-riano de Governo. O Breve Catecismo foi elaborado mais especificamente para instruir as crianças; O Catecismo

Maior, para exposição no púlpito, ainda que não exclusivamente. Eles substituíram em grande parte os Catecismos e Confissões mais antigos adotados pelas igrejas Reformadas de fala inglesa. Apesar

da teologia dos Catecismos e da Confissão de Westminster ser a mesma, sendo por isso sempre a-dotados os três, parece que os mais usados são o Catecismo Menor e a Confissão. Estes Credos foram logo aprovados pela Assembléia Geral da Igreja da Escócia: [Confissão (27/08/1647); Catecismos Maior e Menor (28/07/1648)], sendo este ato homologado pelo Parlamento Escocês em 07/02/1649 (Cf. P. Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. I, p. 759 e 784). Eles tiveram e têm uma grande influência no mundo de fala inglesa, máxime entre os Presbiteria-nos � embora também tenham sido adotados por diversas igrejas batistas e congregacionais. (Vd. P. Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. I, p. 727ss.; D.F. Wright, Catecismos: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, Vol. I, p. 251-252; J.M. Frame, Confissão de Fé

de Westminster: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, Vol. I, p. 331-332; J.M. Frame, Catecismos de Westminster: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-

Teológica da Igreja Cristã, Vol. I, p. 252; Guilherme Kerr, A Assembléia de Westminster, 31 p.; A.A. Hodge, Esboços de Theologia, p. 111-112; Archibald A. Hodge, Confissão de Fé Comentada por A.A.

Hodge, p. 37-47). No Brasil, estes Credos são adotados pela Igreja Presbiteriana do Brasil, Presbite-riana Independente e Presbiteriana Conservadora. (Vd. Hermisten M.P. Costa, Eu Creio, São Paulo: Edições Parakletos, 2002). 213 Do mesmo modo, ver: Catecismo Maior, Pergs. 104-106 e o Breve Catecismo, Pergs, 45-48. 214

João Calvino, As Institutas, II.8.16. 215

Cf. John Calvin, Calvin�s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), Vol. II/1, (Dt 6.16), p. 422. 216

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 50.15), p. 411. 217

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 50.15), p. 412. Mais detalhes podem ser encontra-dos in: João Calvino, As Institutas, III.20.21-27.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 49/108

fantasias de seus próprios corações no lugar de Deus�.218 O Deus a quem ado-

ramos é real. Ele se revela e diz como quer ser adorado. O resto é idolatria, resultan-te de nossa imaginação pecaminosa. Textos Bíblicos: Ex 20.3-5; Is 42.8; Mt 4.10; Jo 4.23-24; Ap 22.8-9.219

B) O Culto é oferecido através de Cristo:

Fora de Cristo por melhor sejam as nossas oferendas elas são pecaminosas

porque carregam em si a mácula de nosso pecado que nos afasta de Deus. Além

disso, mesmo que nossos sacrifícios fossem aceitos, o que de fato não são, necessi-tariam ser repetidos constantemente. Isso poderia parecer algo natural dentro de uma perspectiva da antiga dispensação, na qual o povo vivia nas sombras, aguar-dando historicamente Aquele que conferira na eternidade sentido às ofertas do Anti-go Testamento. Contudo, essas oferendas não têm mais sentido e significariam a negação subjetiva da eficácia da obra de Cristo. Na realidade, na Sua oferta é que

fomos santificados de �uma vez por todas� (Hb 10.10). Portanto, todos precisamos ser reconciliados com Deus em Cristo, através de Quem oferecemos o nosso culto a

Deus. Calvino comenta: �A razão pela qual Deus ordenara que se ofereces-

sem vítimas como expressão de ações de graça foi, como é bem notório,

para ensinar ao povo que seus louvores eram contaminados pelo pecado, e

que necessitavam de ser santificados exteriormente. Por mais que propo-

nhamos a nós mesmos louvar o nome de Deus, outra coisa não fazemos se-

não profaná-lo com nossos lábios impuros, não houvera Cristo se oferecido

em sacrifício com o propósito de santificar a nós e às nossas atividades sa-

gradas [Hb 10.7]. É através dele, como aprendemos do apóstolo, que nossos

louvores são aceitos�.220

218

J. Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 2, p. 12. �Assim, não ado-

ram ao próprio Deus, mas sua própria produção� [João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Pau-lo: Parakletos, 2000, Vol. 1, (Dn 3.2-7), p. 188]. 219�Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança

alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não as

adorarás, nem lhes darás culto....� (Ex 20.3-5). �Eu sou o SENHOR, este é o meu nome; a minha gló-

ria, pois, não a darei a outrem, nem a minha honra, às imagens de escultura� (Is 42.8). �Então, Jesus

lhe ordenou: Retira-te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás, e só a ele darás

culto� (Mt 4.10). �Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em

espírito e em verdade; porque são estes que o Pai procura para seus adoradores. Deus é espírito; e

importa que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade� (Jo 4.23-24). �Eu, João, sou

quem ouviu e viu estas coisas. E, quando as ouvi e vi, prostrei-me ante os pés do anjo que me mos-

trou essas coisas, para adorá-lo. Então, ele me disse: Vê, não faças isso; eu sou conservo teu, dos

teus irmãos, os profetas, e dos que guardam as palavras deste livro. Adora a Deus� (Ap 22.8-9). 220

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 66.15), p. 631. �Visto que nos reconciliamos com

Deus, em Cristo, através de seu verdadeiro sacrifício, somos, todos nós, por sua graça, feitos

sacerdotes com o fim de podermos consagrar-nos a ele como sacrifício vivo e tributar-lhe

toda a glória por tudo o que temos e somos. Não resta mais nenhum sacrifício expiatório pa-

ra se oferecer, e não se pode fazer tal coisa sem trazer grande desonra para a cruz de Cris-

to� [João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 12.1), p. 424].

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 50/108 Insistimos: O sacrifício definitivo de Cristo confere sentido a todos os sacrifícios

do Antigo Testamento. Em Cristo eles foram aceitos e ao mesmo tempo revogados. Um novo sacrifício implicaria a não suficiência e eficácia da obra de Cristo. Fazê-lo é

uma atitude que desonra a Deus e à Sua providência eterna: �.... Em cada época,

desde o princípio, houve pecados que necessitavam de expiação. Portanto,

a menos que o sacrifício de Cristo fosse eficaz, nenhum dos [antigos] pais ha-

veria obtido a salvação. Visto que se achavam sujeitos à ira divina, qualquer

remédio para livrá-los teria resultado em nada, se Cristo, ao sofrer uma vez

por todas, não sofresse o suficiente para reconciliar os homens com a graça

de Deus, desde o princípio do mundo e até ao fim. A não ser que desejemos

muitas mortes, contentemo-nos com um só sacrifício. (...) Não está no poder

do homem inventar sacrifícios como lhe apraz. Eis aqui uma verdade expres-

sa pelo Espírito Santo, a saber: que os pecados não são expiados por um sa-

crifício, a menos que haja derramamento de sangue. Por conseguinte, a i-

déia de que Cristo é sacrificado muitas vezes não passa de uma invenção

diabólica�.221

�Nós cremos em um só Deus, e só a Ele invocamos, e o fazemos mediante

Cristo�, declara a Segunda Confissão Helvética.222

Do mesmo modo diz a Confissão Belga (1561):223 �Cremos, que não temos

nenhum acesso a Deus senão só pelo único [1Tm 2.5] Mediador e Advoga-

do, Jesus Cristo, o Justo [1Jo 2.1]�.224

221

João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 9.26), p. 245-246. �Cristo sofreu como homem, no en-

tanto, a fim de que sua morte pudesse efetuar nossa salvação, sua eficácia fluiu do poder do Espírito.

O sacrifício que produziu a expiação eterna foi muito mais que uma obra meramente humana� [João

Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 9.14), p. 231-232]. 222

O Livro de Confissões, § 5.024. 223 A Confissão Belga que se inspirou na Confissão Gaulesa (1559), foi escrita em francês em 1561

por Guido (ou Guy, Wido) de Brès (1523-1567), com a ajuda de M. Modetus, Adrien de Saravia (1513-1613) � um dos primeiros protestantes a advogar a idéia de missões estrangeiras (Cf. I. Bre-ward, Saravia: In: J.D. Douglas, ed. ger. The New International Dictionary of the Christian Church, 3ª

ed. Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 1979, p. 878) e G. Wingen, sendo revisada por Francis Juni-us (1545-1602) e, publicada a sua tradução em holandês em 1562. "O pastor Guy de Brès escre-

veu uma carta de defesa aos magistrados. Lançou-a juntamente com um exemplar de sua

recente 'Confession de Foy' por sobre o muro do castelo de Doornick, para assim ser levado

ao governador e ao rei. Se este jamais leu a confissão de fé, não se sabe, mas ela chegou a

ocupar um lugar de suma importância na Igreja Reformada holandesa." (Frans Leonard S-chalkwijk, Igreja e Estado no Brasil Holandês, (1630-1654), Recife, Pe.: FUNDARTE, (Coleção Per-nambucana, 2ª Fase, Vol. 25), 1986, p. 27. Quanto à parte do teor da carta, vd. Jorge P. Fisher, His-

toria de la Reforma, Barcelona: CLIE., (1984), p. 291. Ela juntamente com o Catecismo de Heidelberg (1563), foi aprovada no Sínodo de Antuérpia, rea-lizado secretamente (Cf. Igreja e Estado no Brasil Holandês, (1630-1654), p. 27), no Sínodo de Ambères (após revisão) (1566) (Cf. J.P. Fisher, Historia de la Reforma, p. 291), em Wessel (1568) e adotada pelo Sínodo Reformado de Emden (1571), pelo Sínodo Nacional de Dort (1574), Middelburg

(1581) e, também, pelo grande Sínodo de Dort (29/4/1619), o qual a sujeitou a uma minuciosa revi-são, comparando a tradução holandesa com o texto francês e latino. A Confissão Belga e o Catecismo de Heidelberg são os símbolos de fé das Igrejas Reformadas na

Holanda e Bélgica, sendo também o padrão doutrinário da Igreja Reformada na América. (Vd. P. Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. I. p. 502-508; Vol. III, p. 383; J. Van Engen, Confissão Belga: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, Vol. I, p. 330).

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 51/108 Textos Bíblicos: Jo 14.6; Cl 3.17; 1Tm 2.5; 1Pe 2.5.225 Paulo fala que nós, os crentes em Cristo, recebemos o Espírito de ousada confiança

em Deus, que nos leva, na certeza de nossa filiação divina, a clamar �Aba, Pai�.

�Porque não recebestes o espírito de escravidão para viverdes outra vez atemoriza-

dos, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai� (Rm 8.15). O fato de Paulo usar a mesma expressão de Cristo para nós �significa

que, quando Jesus deu a Oração Dominical aos Seus discípulos, também

lhes deu autoridade para segui-Lo em se dirigirem a Deus como �abbã�,

dando-lhes, assim, uma participação na Sua condição de Filho�.226 Somente

pelo Espírito poderemos nos dirigir a Deus desta forma, como uma criança que se lança sem reservas nos braços do seu Pai amoroso. Quando oramos sabemos que estamos falando com o nosso Pai. Desta forma, a oração é uma prerrogativa dos que estão em Cristo. Somente os que estão em Cris-to pela fé, têm a Deus como o seu legítimo Pai (Jo 1.12; Rm 8.14-17; Gl. 4.6; 1Jo 3.1-2). De onde se segue que a oração do Pai Nosso, apesar de não mencionar ex-plicitamente o nome de Cristo, é feita no Seu nome, visto que somos filhos de Deus

� e é nesta condição que nos dirigimos a Deus �, através de Cristo Jesus (Gl 3.26).227 Portanto, quando oramos o Pai Nosso sinceramente, na realidade estamos orando no nome de Jesus Cristo, pois, foi Ele mesmo quem nos ensinou a fazê-lo. Assim, devemos, pelo Espírito � nosso intercessor �, no nome de Jesus � nosso Mediador �, orar: �Pai nosso que estás no céu....�. Lutero (1483-1546), de modo enfático afirmou que, qualquer tipo de religião que

se proponha servir a Deus, excluindo a Cristo como o Mediador, a Palavra e os Sa-cramentos, é mera idolatria.

228 Calvino fazendo alusão ao encontro do Senhor com a

mulher Samaritana, conclui que �jamais culto algum haja agradado a Deus a

não ser aquele que contemplasse a Cristo�.229

Em outro lugar: �Todas as for-

mas de culto são defectivas e profanas, a menos que Cristo as purifique pela

aspersão de seu sangue�.230

Comentando Hb 13.15, Calvino escreve: �Como o

propósito do apóstolo era ensinar-nos qual é a forma legítima de cultuar a

Deus sob o regime do Novo Testamento, ele nos lembra que não podemos

224

Confissão Belga, XXVI. Vejam-se também: Confissão de Westminster, 21.2; Catecismo Maior de

Westminster, Perg. 105. 225�Respondeu-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por

mim� (Jo 14.6). �E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em ação, fazei-o em nome do Senhor

Jesus, dando por ele graças a Deus Pai� (Cl 3.17). �Porquanto há um só Deus e um só Mediador en-

tre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem� (1Tm 2.5). �Também vós mesmos, como pedras que vi-

vem, sois edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios es-

pirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo� (1Pe 2.5). 226

O. Hofius, Pai: In: NDITNT., Vol. III, p. 383. 227

Vd. João Calvino, As Institutas, III.20.36. 228

Vd. Martin Luther, �Table Take,� The Master Christian Library, Volume 6 [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1997), 171, p. 74. 229

João Calvino, As Institutas, II.6.1. 230

João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 9.18), p. 238.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 52/108

invocar honestamente a Deus e glorificar Seu nome, a não ser através de

Cristo como nosso Mediador. É Ele só quem santifica nossos lábios, que de

outra forma estariam impuros para cantar os louvores de Deus, que abre

caminho para nossas orações, que, em suma, exerce o ofício de Sacerdote,

apresentando-se diante de Deus em nosso nome�.231

�Por Jesus Cristo ofe-

recemos sacrifício de louvor a Deus, quer dizer, o fruto de lábios que confes-

sam o Seu nome, como nos disse o apóstolo. (Hb 13.15; 1Pe 2.5). Porquanto

com os nossos dons e presentes não poderíamos comparecer à presença de

Deus sem um intercessor. E Jesus Cristo é o Mediador que intercede por nós e

pelo qual nos oferecemos ao Pai, com tudo o que é nosso. Ele é o nosso su-

mo sacerdote, o qual, tendo entrado no santuário do céu, abre a porta para

nós e nos dá acesso. Ele é o nosso altar, sobre o qual colocamos as nossas

ofertas. Em suma, é Ele que faz de nós reis e sacerdotes para o Pai (Ap

1.6)�.232

Portanto: �Fora de Cristo nada existe senão ídolos�.233

Jesus Cristo é o único e último Mediador entre Deus e os homens. Nele o sacer-dócio se cumpre e permanece imutável e para sempre (Hb 7.15-17,24-28; 8.1-6;234 9.11-28). Quando Cristo regressar, consumando assim a salvação de seu povo, não

haverá mais santuário, �porque o santuário é o Senhor, o Deus Todo-poderoso e o

Cordeiro� (Ap 21.22). �Quando Deus e seu povo estiverem para sempre juntos,

então as profecias veterotestamentárias concernentes ao templo ideal se

231

João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 13.15), p. 393. 232

João Calvino As Institutas, (1541), IV.12. 233

João Calvino, Efésios, (Ef 2.12), p. 68. 234

�15 E isto é ainda muito mais evidente, quando, à semelhança de Melquisedeque, se levanta ou-

tro sacerdote,

16 constituído não conforme a lei de mandamento carnal, mas segundo o poder de vida indissolúvel.

17 Porquanto se testifica: Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque.

24 este, no entanto, porque continua para sempre, tem o seu sacerdócio imutável.

25 Por isso, também pode salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para

interceder por eles.

26 Com efeito, nos convinha um sumo sacerdote como este, santo, inculpável, sem mácula, separado

dos pecadores e feito mais alto do que os céus,

27 que não tem necessidade, como os sumos sacerdotes, de oferecer todos os dias sacrifícios, pri-

meiro, por seus próprios pecados, depois, pelos do povo; porque fez isto uma vez por todas, quando

a si mesmo se ofereceu.

28 Porque a lei constitui sumos sacerdotes a homens sujeitos à fraqueza, mas a palavra do juramen-

to, que foi posterior à lei, constitui o Filho, perfeito para sempre� (Hb 7.15-17, 24-28). �Ora, o essencial das coisas que temos dito é que possuímos tal sumo sacerdote, que se as-

sentou à destra do trono da Majestade nos céus, como ministro do santuário e do verdadeiro taber-

náculo que o Senhor erigiu, não o homem. Pois todo sumo sacerdote é constituído para oferecer tan-

to dons como sacrifícios; por isso, era necessário que também esse sumo sacerdote tivesse o que o-

ferecer. Ora, se ele estivesse na terra, nem mesmo sacerdote seria, visto existirem aqueles que ofe-

recem os dons segundo a lei, os quais ministram em figura e sombra das coisas celestes, assim co-

mo foi Moisés divinamente instruído, quando estava para construir o tabernáculo; pois diz ele: Vê que

faças todas as coisas de acordo com o modelo que te foi mostrado no monte. Agora, com efeito, ob-

teve Jesus ministério tanto mais excelente, quanto é ele também Mediador de superior aliança institu-

ída com base em superiores promessas� (Hb 8.1-6).

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 53/108

cumprirão plenamente em Jesus Cristo. Então a presença de Deus e de Cris-

to serve como seu templo�.235

C) O Culto deve ser em linguagem compreensível:

Coerente com o princípio da inteligibilidade do culto, as Confissões Reforma-

das enfatizaram algo natural: A língua e a linguagem devem ser conhecidas da con-gregação. A Segunda Confissão Helvética declara de forma incisiva: �Calem-se,

pois, todas as línguas estranhas nas reuniões de culto, e sejam todas as coisas

expressas na língua do povo, compreendida por todas as pessoas�.236 Do

mesmo modo, a Confissão de Westminster, especificando a oração pública, orienta:

�A oração com ações de graças, sendo uma parte especial do culto religio-

so, é por Deus exigida de todos os homens; e, para que seja aceita, deve ser

feita em o nome do Filho, pelo auxílio do seu Espírito, segundo a sua vontade,

e isto com inteligência, reverência, humildade, fervor, fé, amor e perseve-

rança. Se for vocal, deve ser proferida em uma língua conhecida dos cir-

cunstantes�.237

Portanto, o culto tem como componente indispensável a compre-ensão por parte do adorador. Não posso dizer �amém� a algo que não entendo e não

sei a respeito do que está sendo tratado. �Se aquele que compõe e recita as

orações em lugar do povo não for entendido pela congregação, como o

vulgo irá participar delas de maneira apropriada, e estará apto a perceber

no final que a oração inclui o que eles mesmos gostariam de pedir?�238

Conforme já citamos supra: �....as orações públicas devem ser formuladas

não em grego entre os latinos, nem em latim entre os franceses ou ingleses,

como até aqui a cada passo se tem feito, mas na fala popular, que possa

ser generalizadamente entendida por toda a assembléia, uma vez que, na

verdade, importa isso se faça para edificação de toda a Igreja, à qual de

um som não compreendido nenhum fruto absolutamente advém�.239

É fundamental que no culto haja comunicação. Para que isso ocorra, é necessário tornar compreensível cada ato do culto. Comunicar, etimologicamente, significa,

"tornar comum". Neste ato de comunicar, formamos uma comunidade, constituída

235

Simon Kistemaker, Apocalipse, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, (Ap 21.22-27), p. 719-720. Ver também: John M. Frame, Worship in Spirit and Truth, Phillipsburg, NJ.: P & R. Publishing, 1996, especialmente p. 27; William Hendriksen, Mais que Vencedores, São Paulo: Casa Editora

Presbiteriana, 1987, p. 239. 236

Segunda Confissão Helvética, XXII, § 5.217. 237

Confissão de Westminster, 21.3. 238

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 14.16), p. 420. 239

J. Calvino, As Institutas, III.20.33. Na edição de 1541, lemos: �Daí se vê também que as ora-

ções públicas não devem ser feitas em grego entre os latinos, e em latim entre os franceses

ou ingleses (como até aqui tem sido costume), mas na língua comum do país, de maneira

que toda a assembléia as possa entender. Sim, pois, a oração deve ser feita para a edifica-

ção de toda a igreja, a qual não receberá nenhum fruto de um palavrório não entendido� [João Calvino, As Institutas, (1541), III.9].

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 54/108 por aqueles que sabem, que partilham do mesmo conhecimento; assim, a comuni-cação é uma quebra de isolamento individual, para que haja uma comunhão.

240 �A

�comunhão� encontra-se em códigos partilhados mutuamente�,241 porque somente assim poderá o �código� ser �decodificado�, estabelecendo-se deste modo a comunicação. O Diretório de Culto de Westminster (1645), falando sobre a leitura dos livros da Bíblia no culto, prescreve: �serão lidos publicamente na língua do povo, na

melhor tradução permitida, distintamente, para que todos possam ouvir e

entender�.242

Texto Bíblico: 1Co 14.19.243

D) Orações espontâneas:

As orações devem ser feitas sem constrangimento, em nome de Cristo, pelo

auxílio do Espírito, segundo a vontade de Deus. Paulo discorrendo sobre a fraqueza humana, a exemplifica na vida cristã no fato

de nem ao menos sabermos orar como convém (Rm 8.26-27).244 Por isso o Espírito que em nós habita nos auxilia em nossas orações, fazendo-nos pedir o que convém,

capacitando-nos a rogar de acordo com a vontade de Deus. A oração eficaz é aque-la que tem o Espírito como seu autor. Sem o auxílio do Espírito jamais oraríamos

com discernimento. Calvino (1509-1564), analisando o fato de que pedimos tantas coisas erradas a Deus e que, se Ele nos concedesse o que solicitamos, traria muitos males sobre nós,

245 enfatiza: �Não podemos nem sequer abrir a boca diante

de Deus sem grande perigo para nós, a não ser que o Espírito Santo nos guie

à forma devida de orar�.246 A oração genuína é sempre precedida do senso de

necessidade e de uma fé autêntica nas promessas de Deus.247

240

Vd. José Marques de Melo, Comunicação Pessoal: Teoria e Pesquisa, 6ª ed. Petrópolis, RJ.: Vo-zes, 1978, p. 14. 241

David J. Hesselgrave, A Comunicação Transcultural do Evangelho, São Paulo: Vida Nova, 1994,

Vol. I, p. 39. 242

O Diretório de Culto de Westminster, p. 29. 243�Contudo, prefiro falar na igreja cinco palavras com o meu entendimento, para instruir outros, a fa-

lar dez mil palavras em outra língua� (1Co 14.19). 244�Também o Espírito, semelhantemente, nos assiste em nossa fraqueza; porque não sabemos orar

como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós sobremaneira, com gemidos inexprimíveis. E

aquele que sonda os corações sabe qual é a mente do Espírito, porque segundo a vontade de Deus é

que ele intercede pelos santos� (Rm 8.26-27). 245

Bernardo de Claraval (1090-1153), disse: "Não permitam que eu tenha tamanha miséria,

pois dar a mim o que desejo, dar a mim o que meu coração almeja, é um dos mais terríveis

julgamentos do mundo� (Apud Jeremiah Burroughs, Aprendendo a Estar Contente, São Paulo:

PES., 1990, p. 28). 246

J. Calvino, Institución, III.20.34. Comentando o texto de Romanos 8.26, Calvino diz: �O Espírito,

portanto, é Quem deve prescrever a forma de nossas orações� [João Calvino, Exposição de

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 55/108

Graças a Deus porque todos nós, em Cristo, temos o Espírito de oração (Zc

12.10),248 porque sem Ele jamais poderíamos orar de modo aceitável ao Pai. �A

própria oração é uma forma de adoração�.249 Por outro lado, o auxílio do Espí-

rito não deve servir de pretexto para a nossa indolência e irresponsabilidade espiri-tual. Interpreta Calvino: �Aqui não se diz que, lançando o ofício da oração so-

bre o Espírito de Deus, podemos adormecer negligentes ou displicentes, co-

mo alguns se acostumaram a blasfemar, dizendo: Devemos ficar à espera,

sem nenhuma preocupação, até que o Espírito chame a atenção da nossa

mente, até então ocupada e distraída com outras coisas. Muito ao contrário,

aqui somos induzidos a desejar e a implorar tal auxílio, com aversão e des-

gosto por nossa preguiça e displicência�.250

Exorta-nos: �Quando nos sentir-

mos frios, e indispostos para orar, supliquemos logo ao Senhor que nos infla-

me com o fogo de seu Espírito, pelo qual sejamos dispostos e suficientes para

orar como convém�.251

Muitas vezes estamos tão confusos diante das opções que temos, que não sa-bemos nem mesmo como apresentar os nossos desejos e as nossas dúvidas diante de Deus. Todavia o Espírito nos socorre. Ele �ora a nosso favor quando nós

mesmos deveríamos ter orado, porém não sabíamos para que orar�.252

Comentando o Salmo 91.12, Calvino conclui: �Nunca podemos aquilatar os

sérios obstáculos que Satanás poria contra nossas orações não nos sustentas-

se Deus da maneira aqui descrita�. 253 Orar como convém é orar segundo a von-

tade de Deus, colocando os nossos desejos em harmonia com o santo propósito de

Deus;254 isto só é possível pelo Espírito de Deus que Se conhece perfeitamente

(1Co 2.10-12).255 Assim, toda oração genuína é sob a orientação e direção do Espí-

rito (Ef 6.18; Jd 20). O Catecismo Maior de Westminster, diz: �Não sabendo nós o

Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 8.26), p. 291]. Ver também, J. Calvino, O Catecismo de

Genebra, Perg. 254. 247

Vd. João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, p. 34. 248�E sobre a casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém derramarei o espírito da graça e de

súplicas....� (Zc 12.10). 249

R.C. Sproul, O Ministério do Espírito Santo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1997, p. 187. 250

João Calvino, As Institutas, (1541), III.9. 251

J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 245. 252

Edwin H. Palmer, El Espiritu Santo, Edinburgh: El Estandarte de la Verdad, (s.d.), Edição Revista, p. 190. 253

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 3, (Sl 91.12), p. 454. 254

"A oração não é um recurso conveniente para impormos a nossa vontade a Deus, ou para dobrar a Sua vontade à nossa, mas, sim, o meio prescrito de subordinar a nossa vontade à de Deus. É pela

oração que buscamos a vontade de Deus, abraçamo-la e nos alinhamos com ela. Toda oração ver-dadeira é uma variação do tema, �Faça-se a tua vontade'." (John R.W. Stott, I,II e III João, Introdução

e Comentário, São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1982, p. 159). 255

Leenhardt comenta: �Para orar �como convém� é preciso orar �segundo a vontade de

Deus�; isto, entretanto, não pode advir senão de Deus, Que só Se conhece. O mais é ação

estéril� (Franz J. Leenhardt, Epístola aos Romanos, São Paulo: ASTE., 1969, p. 226).

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 56/108

que havemos de pedir, como convém, o Espírito nos assiste em nossa fraque-

za, habilitando-nos a saber por quem, pelo quê, e como devemos orar; ope-

rando e despertando em nossos corações (embora não em todas as pesso-

as, nem em todos os tempos, na mesma medida) aquelas apreensões, afe-

tos e graças que são necessários para o bom cumprimento do dever�.256

O Espírito ora conosco e por nós; Ele, juntamente com Cristo, em esferas diferen-tes, intercede por nós: �Cristo intercede por nós no céu, e o Espírito Santo na

terra. Cristo nosso Santo Cabeça, estando ausente de nós, intercede fora de

nós; o Espírito Santo nosso Consolador intercede em nosso próprio coração

quando Ele o santifica como Seu templo�, contrasta Kuyper (1837-1920).257 A intercessão de Cristo respalda-se nos Seus merecimentos, obtendo para os Seus eleitos, os frutos da Sua Obra expiatória (Rm 8.34; Hb 7.25; 1Jo 2.1

258).259 O Espírito intercede por nós considerando as nossas necessidades vitais e costumei-ramente imperceptíveis aos nossos próprios olhos. Calvino (1509-1564) observou que na oração, "a língua nem sempre é neces-

sária, mas a oração verdadeira não pode carecer de inteligência e de afeto

de ânimo",260 a saber: "O primeiro, que sintamos nossa pobreza e miséria, e

que este sentimento gere dor e angústia em nossos ânimos. O segundo, que

estejamos inflamados com um veemente e verdadeiro desejo de alcançar

misericórdia de Deus, e que este desejo acenda em nós o ardor de orar�.261

Spener (1635-1705), falando sobre a oração, segue uma linha semelhante: �Não

é suficiente que se ore exteriormente, com a boca, pois a oração verdadeira

e mais necessária acontece no nosso ser interior, podendo expressar-se em

palavras ou permanecer na alma, mas, de qualquer maneira, lá acha e en-

contra Deus�.262

256

Catecismo Maior de Westminster, Perg. 182. 257

Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, Chattanooga: AMG. Publishers, 1995, p. 670. 258�Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu ou, antes, quem ressuscitou, o qual está à di-

reita de Deus e também intercede por nós� (Rm 8.34); �Por isso, também pode salvar totalmente os

que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles� (Hb 7.25); �Filhinhos meus,

estas coisas vos escrevo para que não pequeis. Se, todavia, alguém pecar, temos Advogado junto ao

Pai, Jesus Cristo, o Justo� (1Jo 2.1). 259

�Não temos como medir esta intercessão pelo nosso critério carnal, pois não podemos

pensar do Intercessor como humilde suplicante diante do Pai, com os joelhos genuflexos e

com as mãos estendidas. Cristo contudo, com razão intercede por nós, visto que compare-

ce continuamente diante do Pai, como morto e ressurreto, que assume a posição de eterno

intercessor, defendendo-nos com eficácia e vívida oração para reconciliar-nos com o Pai e

levá-lo a ouvir-nos com prontidão� [J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.34), p. 304]. 260

J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 240. 261

J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 243. 262

Ph. J. Spener, Mudança para o Futuro: Pia Desideria, Curitiba, PR./São Bernardo do Campo,SP.: Encontrão Editora/Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1996, p. 119.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 57/108 O Espírito, que procede do Pai e do Filho, é Quem nos guia em nossas orações,

fazendo-nos orar corretamente ao Pai. De fato, Deus propiciou para nós todos os e-lementos fundamentais para a nossa santificação (2Pe 1.3); a ação do Espírito a-ponta nesta direção, indicando também, que as nossas orações são �imperfeitas,

imaturas, e insuficientes�, por isso Ele nos auxilia, nos ensinando a orar como con-vém, conferindo-nos sabedoria e discernimento espiritual para que oremos motiva-dos por santos propósitos e com um coração piedoso. Calvino depois de falar sobre a necessidade de termos grande zelo pelo nome de Deus, zelo este que fez com que o salmista pedisse o castigo de Deus contra os Seus inimigos que profanaram o templo, destruíram Jerusalém e mataram seus fi-lhos de forma cruel, acrescenta: �Se este sentimento reinasse em nossos cora-

ções, o mesmo facilmente moderaria o desgoverno de nossa carne; e se a

sabedoria do Espírito lhe fosse acrescida, nossas orações estariam em estrita

concordância com os justos juízos de Deus�.263

O Espírito que em nós habita e nos leva à oração, testemunha em nós que somos filhos de Deus. �O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de

Deus� (Rm 8.16); Por isso, podemos dizer que a oração do Pai Nosso, é a �Oração

dos Filhos�.264 Orar ao Pai não significa simplesmente usar o Seu nome, mas, sim, dirigir-nos de fato a Ele conforme os Seus preceitos, em submissão à Sua vontade. Uma oração

francamente oposta aos ensinamentos de Jesus não pode ser considerada de fato

uma oração dirigida ao Pai, por mais que usemos e repitamos o nome de Jesus. Bonhoeffer (1906-1945) comenta: �Uma criança aprende a falar porque seu

pai fala com ela. Ela aprende a falar a língua paterna. Assim também nós

aprendemos a falar com Deus, porque Deus falou e fala conosco. Pela pala-

vra do Pai no céu seus filhos aprendem a comunicar-se com Ele. Ao repetir

as próprias palavras de Deus, começamos a orar a Ele. Não oramos com a

linguagem errada e confusa de nosso coração, mas pela palavra clara e pu-

ra que Deus falou a nós por meio de Jesus Cristo, devemos falar com Deus, e

Ele nos ouvirá�.265 �Orar é exercitar a nossa confiança no Deus da Providência, sabendo que

nada nos faltará, porque Ele é o nosso Pai�.266 A oração tem sempre uma cono-

tação de submissão confiante. Portanto, orar ao Pai, significa sintonizar a nossa von-

263

João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Edições Parakletos, 2002, Vol. 3, (Sl 79.12), p. 260. 264

Conforme expressão de Lloyd-Jones (1899-1981) (D.M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do

Monte, São Paulo: FIEL., 1984, p. 358). Veja-se a relação feita por Calvino entre a oração e a convic-ção de nossa filiação divina [João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.16), p. 279-280]. 265

Dietrich Bonhoeffer, Orando com os Salmos, Curitiba, PR.: Encontrão Editora, 1995, p. 12-13. 266

Hermisten M.P. Costa, Providência de Deus: Governo ou Fatalismo? São Paulo, 1989, p. 27.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 58/108 tade com a dEle; sabendo que Ele é santo e a Sua vontade também o é (Mt

6.9,10).267 A presença e direção do Espírito na vida do povo de Deus é uma realidade. Des-considerar este fato significa desprezar o registro bíblico e o testemunho do Espírito

em nós (Rm 8.16).268

O Espírito em nós é uma fonte de consolo e estímulo à perseverança e obediên-cia devida a Deus. Consideremos este fato � à luz da Palavra e da nossa experiên-cia � em todos os nossos caminhos, e o Espírito mesmo nos iluminará. Entre outras verdades, podemos destacar os seguintes princípios estabelecidos

pelas Confissões Reformadas: as orações devem ser públicas e privadas, espontâ-

neas, não devem ser longas nem repeticiosas, sendo feitas em nome de Cristo, pelo

auxílio do Espírito Santo, segundo a vontade de Deus, com inteligência, reverência,

humildade, fervor, fé, amor e perseverança, em língua conhecida da congregação,

acompanhadas de ações de graças e, objetivando um fim lícito.269

E) A Leitura e exposição da Palavra têm a primazia:

�Nosso louvor e orações precisam es-

tar de acordo com as Escrituras, e, aci-

ma de tudo, a Palavra pregada tem de

servir ao propósito de agradar a Deus,

porque o sermão é o aspecto mais im-

portante da adoração, visto que atra-

vés dele o Criador do universo fala a se-

res insignificantes� � Geoffrey Thomas, Cultos Agradáveis aos Incrédulos: In: Fé pa-

ra Hoje, São José dos Campos, SP.: Fiel, nº

20, 2003, p. 2. Comentando 1Co 11.4, Calvino explica o que entende por profecia: �Explicar os mistérios de Deus visando à instrução daqueles que ouvem�.

270 Em outro lugar: �Profecia é simplesmente o correto entendimento da Escritura e o dom particular de

explicá-la, visto que todas antigas profecias e todos os oráculos divinos já foram

concluídos em Cristo e seu evangelho�.271 Portanto, o profeta é �o mensageiro de

267�Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome; venha o

teu reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu� (Mt 6.9-10). 268

�O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus� (Rm 8.16). 269

Vejam-se: João Calvino, As Institutas, III.20.28,29,30; Confissão de Westminster, 21.3-4; Confis-

são Belga, 26; Segunda Confissão Helvética, XXIII, §§ 5.219-5.220. Ver: Charles W. Baird, A Liturgia

Reformada: Ensaio histórico, Santa Bárbara D�Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 23-24; Charles H. Spur-geon, Lições aos Meus Alunos, São Paulo: PES., 1982, Vol. 2, p. 65ss. 270

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 11.4), p. 331-332. 271

João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 12.6), p. 431.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 59/108

Deus aos homens�.272 Desse modo, �a profecia não é o dom da predição�.273 Pode-

mos perceber então, que a profecia tem uma ligação dupla e indissolúvel. A sua fon-te é a Palavra de Deus; na outra ponta, temos o seu objetivo especial: a edificação

da Igreja274 e, de modo geral, o bem de todos.275 �Um profeta será o intérprete e

ministro da revelação. (...) [A] profecia não consiste na simples interpretação da Es-critura, mas também inclui o conhecimento para fazer aplicação às necessidades do momento, e isto só pode ser obtido por meio da revelação e da influência especial

de Deus�.276 Dentro da visão Reformada, a Palavra de Deus ocupa o lugar central do Culto, visto que é através dela que Deus nos fala.

277 Deus se dignou em revelar a Si mes-mo como Palavra e através da Palavra: �No princípio era o Verbo� (Jo 1.1). �No

princípio, não era a música, nem o teatro. Deus identifica seu Filho, que é

Deus, com a Palavra. Isso é tremendamente importante�.278

�Um dos objeti-

vos do sermão, sem dúvida, o mais elevado, deve ser a adoração de Deus e

a exaltação do seu nome�.279

A pregação não deve ser rejeitada (1Ts 5.19-21); ela deve ser entendida como a Palavra de Deus para nós; recusá-la é o mesmo que rejeitar o Espírito (Cf. 1Ts

4.8).280 O mundo por sua vez, deseja ansiosamente ouvir, porém, não a Palavra de

Deus (1Jo 4.5/Sl 73.4-10). Há uma carência frenética por ouvir experiências daquilo que conduz a um sucesso fácil, ainda que não real e, portanto, não duradouro (Sl

73.1-10). Perseverar no caminho sólido dos princípios da Palavra pode se tornar

muito difícil quando os resultados não são perceptíveis. Sempre há a tentação,

mesmo para os fiéis, de não perseverarem �com firmeza na verdade reta�.281

272

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 12.10), p. 378. 273

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 14.3), p. 410. Do mesmo modo, ver: João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 12.28), p. 390. 274

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 14.22), p. 425. 275

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 14.24), p. 426-427. 276

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 14.6), p. 413. 277

Vejam-se: Segunda Confissão Helvética, XXIII, § 5.220; Confissão de Westminster, 21.5; João

Calvino, As Institutas, IV.1.5. 278

John Piper, O Lugar da Pregação na Adoração: In: Fé para Hoje, São José dos Campos, SP.: Fiel, nº 11, 2001, p. 20. �O sermão tem um lugar central no culto reformado� [Walter L. Liefeld, Ex-

posição do Novo Testamento: do texto ao sermão, São Paulo: Vida Nova, 1985, p. 22]. 279

Walter L. Liefeld, Exposição do Novo Testamento: do texto ao sermão, p. 22. 280

Vd. J. Calvino, As Institutas, I.9.3. 281

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 3, (Sl 73.10), p. 102. Sobre a perseverança, em outro lu-gar Calvino escreveu: �A melhor evidência da genuína piedade é quando anelamos por Deus

sob a pressão de nossas aflições, e mostramos, mediante nossas orações, uma santa perse-

verança na fé e na paciência; enquanto a seguir damos vazão à nossa gratidão� [João Cal-vino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 66.13), p. 630]. �Todos os homens reconhecem que o mun-

do é governado pela providência divina; mas quando daí surge uma lamentável confusão

de coisas a perturbar a tranqüilidade deles e os envolve em dificuldades, poucos são os que

conservam em sua mente a inabalável convicção dessa verdade� [João Calvino, O Livro dos

Salmos, Vol. 1, (Sl 11.4), p. 240].

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 60/108 Como há falsos pregadores e falsos mestres, é necessário �provar� o que está

sendo proclamado; exercitar o �ceticismo cristão� � que não aceita tudo, contudo,

não rejeita a procura da verdade282� para ver se o conteúdo da pregação se coa-

duna com a Palavra de Deus (At 17.11,12/1Jo 4.1-6). No entanto, neste período de

grandes e graves transformações, torna-se evidente que os homens, de forma cada vez mais veemente, querem ouvir mais o reflexo de seus desejos e pensamentos, a homologação de suas práticas. Assim sendo, a palavra que deveria ser profética,

tende com demasiada freqüência � mesmo assinando o seu obituário �, a se tornar apenas algo apetecível ao �público alvo�, aos seus valores e devaneios,283 ou, en-tão, nós pregadores, somos tentados a usar de nossa �eloqüência� para compartilhar generalidades da semana, sempre, é claro, com uma alusão bíblica aqui ou ali, para

justificar a nossa �pregação�;284 o fato é que uma geração incrédula, é sempre acin-

tosamente crítica para com a palavra profética.285 À Igreja foi confiada a Palavra de Deus, a qual ela deve preservar em seus ensi-namentos e prática (Rm 3.2; 1Tm 3.15). Calvino entendia que �a verdade, porém,

só é preservada no mundo através do ministério da Igreja. Daí, que peso de

responsabilidade repousa sobre os pastores, a quem se tem confiado o en-

cargo de um tesouro tão inestimável!�.286

Comentando a expressão �coluna da

verdade�, continua falando da responsabilidade dos pastores: �Deus mesmo não

desce do céu para nós, nem diariamente nos envia mensageiros angelicais

para que publiquem sua verdade, senão que usa as atividades dos pastores,

282 Ver: Gene Edward Veith, Jr., De Todo o teu entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p.

129-131. 283

R.B. Kuiper, com indisfarçável e justa tristeza, diz: "Os membros das igrejas querem que lhes

falem do púlpito sobre o que fazer, mas raramente sobre o que crer. A maioria deles não se

interessa por teologia, e dos poucos que se interessam, cada qual quer o seu próprio doutor

em teologia. Seus pastores de boa vontade os deixam seguir seu caminho. Houve tempo em

que os filhos da aliança eram instruídos por seus pastores nas verdades da religião cristã. Ho-

je são poucos os que tentam fazer isso" (R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, São Paulo:

PES., 1976, p. 146). 284

Vd. D. Martyn Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: PES., 1992, p. 52. 285

Vd. D. Martyn Lloyd-Jones, Do Temor à Fé, Miami: Editora Vida, 1985, p. 46-47. 286

João Calvino, As Pastorais, (1Tm 3.15), p. 97. Vd. também, As Institutas, IV.1.5; João Calvino, E-

fésios, (Ef 4.12), p. 124-125]. Comentando sobre a necessidade de o bispo ser apegado à Palavra fi-el, diz: �Este é o principal dote do bispo que é eleito especificamente para o magistério sa-

grado, porquanto a Igreja não pode ser governada senão pela Palavra�. [J. Calvino, As Pas-

torais, (Tt 1.9), p. 313]. �A erudição unida à piedade e aos demais dotes do bom pastor, são

como uma preparação para o ministério. Pois, aqueles que o Senhor escolhe para o ministé-

rio, equipa-os antes com essas armas que são requeridas para desempenhá-lo, de sorte que

lhe não venham vazios e despreparados� (João Calvino, As Institutas, IV.3.11). �Não se requer

de um pastor apenas cultura, mas também inabalável fidelidade pela sã doutrina, ao ponto

de jamais apartar-se dela� [J. Calvino, As Pastorais, (Tt 1.9), p. 313]. �O pastor é aquele a cujos

cuidados são confiadas almas. Não é apenas um homem fino e agradável que visita as pes-

soas, toma uma chávena de chá com elas à tarde ou se entretém com elas. Ele é o guardi-

ão, o vigia, o preceptor, o organizador, o diretor, que governa o rebanho. O mestre ministra

instrução na doutrina, na verdade� (David M. Lloyd-Jones, A Unidade Cristã, São Paulo: PES.,

1994, p. 167).

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 61/108

a quem destinou para esse propósito�.287 �.... Em relação aos homens, a Igre-

ja mantém a verdade porque, por meio da pregação, a Igreja a proclama,

a conserva pura e íntegra, a transmite à posteridade�.288 �Paulo dá a saber

que, para que não pereça a verdade de Deus no mundo, fiel depositária lhe

é a Igreja, porquanto por seu ministério e obra quis Deus se conserve pura a

pregação de Sua Palavra e, enquanto de alimentos espirituais nos nutre e

procura tudo quanto à salvação nos consulta, um pai de família se nos nu-

tre�.289

Portanto, �um bom pastor deve estar sempre alerta para que seu si-

lêncio não propicie a invasão de doutrinas ímpias e danosas, e ainda propi-

cie aos perversos uma irrefreada oportunidade de difundi-las�.290

Daí a fideli-dade inarredável à Palavra que deve ter o ministro: �Quão arriscado é afastar-se

mesmo que seja um fio de cabelo da doutrina. (...) Em razão da fragilidade

da carne, somos excessivamente inclinados a cair, e o resultado é que Sata-

nás pela instrumentalidade de seus ministros, pronta e facilmente destrói o

que os mestres piedosos constróem com grande e penoso labor�.291

Em outro lugar, comentando Gálatas 5.9, insiste: �Essa cláusula os adverte de quão dano-

sa é a corrupção da doutrina, para que cuidassem de não negligenciá-la

(como é costumeiro) como se fosse algo de pouco ou nenhum risco. Satanás

entra em ação com astúcia, e obviamente não destrói o evangelho em sua

totalidade, senão que macula sua pureza com opiniões falsas e corruptas.

Muitos não levam em conta a gravidade do mal, e por isso fazem uma resis-

tência menos radical. (...) Devemos ser muito cautelosos, não permitindo que

algo (estranho) seja adicionado à íntegra doutrina do Evangelho�.292 Escre-

vendo a Cranmer (jul/1552?) diz: �A sã doutrina certamente jamais prevalecerá,

até que as igrejas sejam melhor providas de pastores qualificados que pos-

sam desempenhar com seriedade o ofício de pastor�.293

Por isso, �É quase

impossível exagerar o volume de prejuízo causado pela pregação hipócrita,

cujo único alvo é a ostentação e o espetáculo vazio�.294

Recordemos um pouco o caso de Amós. O profeta Amós localiza bem o período de sua mensagem, indicando o reinado de Uzias em Judá e Jeroboão II em Israel.

Uzias começou a reinar no ano 27 de Jeroboão (2Rs 15.1). Jeroboão reinou 41 a-nos (2Rs 14.23). Amós viveu num período de grande riqueza e, ao mesmo tempo

imoralidade. Jeroboão conseguira restaurar as fronteiras do Reino do Norte; havia riqueza e abundância no seu reino, resultantes dos despojos de guerra e de negó-

287

João Calvino, As Pastorais, (1Tm 3.15), p. 97. Do mesmo modo: John Calvin, �Commentary on the Book of the Prophet Isaiah,� John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), (Is 41.27), p. 112. 288

João Calvino, As Pastorais, (1Tm 3.15), p. 98. Vd. também, As Institutas, IV.1.5. 289

João Calvino, As Institutas, IV.1.10. 290 João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.11), p. 316. 291J. Calvino, As Pastorais, (Tt 1.11), p. 317. 292

João Calvino, Gálatas, (Gl 5.9), p. 158-159. 293

Calvin to Cranmer, Letter 18. In: John Calvin Collection, The AGES Digital Library, 1998. Do mesmo modo, Letters of John Calvin, Selected from the Bonnet Edition, p. 141-142. 294

João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.3), p. 164.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 62/108 cios vantajosos feitos com Damasco e com principados ao norte e ao nordeste. Con-tudo, juntamente com a prosperidade � da qual a classe baixa não participou em na-da �, havia um materialismo dominante, caracterizando-se pela exploração dos po-bres e imoralidade, tentando aplacar a ira de Deus com cerimoniais vazios.295

A mensagem de Deus através do profeta é destinada mais especificamente ao Reino Norte, com capital em Samaria, comumente chamado de Israel (Am 7.11/1.1). Ela foi proferida pelos menos dois anos antes da sua redação; agora, após o terre-moto predito, ele relembra o que aconteceu e mostra o que ainda está por vir. (Am

1.1; 2.13; 7.10; 8.8/Zc 14.5). O seu Livro foi escrito por volta do ano 760-755 a.C. A sua mensagem é um lamento pela situação do povo (Am 5.1-2). A métrica utilizada

em seu registro, própria dos cantos fúnebres, testemunha a tristeza do poeta diante da mensagem que leva ao povo.296 Amós era um homem simples, do campo, cuida-va de bois e colhia sicômoros

297 (Am 1.1/7.14). Vivia em Tecoa, que ficava a 10 km ao sul de Belém, sendo uma região de pastoreio, privilegiada por montanhas com

uma altitude de 850 metros. Deus está profundamente aborrecido com o seu povo eleito; por isso o disciplina-ria (Am 3.1-2). Amós descreve de forma vívida a situação de Judá e, principalmente

de Israel. O ponto capital da questão estava no fato de que eles rejeitaram a Lei de

Deus e não guardaram os Seus Estatutos; portanto não agiam retamente; transfor-maram a mensagem de Deus em algo amargo, atirando-a ao chão (Am 5.7/6.12):

�...rejeitaram a lei do Senhor, e não guardaram os seus estatutos, antes as suas

próprias mentiras os enganaram, e após elas andaram seus pais� (Am 2.4). �....Israel

não sabe fazer o que é reto, diz o Senhor, e entesoura nos seus castelos a violência

e a devastação� (Am 3.10). Como resultado da desobediência à Lei de Deus, todas as relações estão trans-tornadas, marcadas pelo domínio do pecado: a) Vida Familiar: Imoralidade: Pai e filho coabitando com a mesma mulher (Am 2.7). b) Vida Social, Política e Econômica: a) Juizes corruptos: Am 2.6-7; 5.12. b) Injustiça de todo tipo: Am 5.7; 6.12. c) Opressão: Am 3.9; 4.1/8.4-6; 5.11-12. d) Exploração dos pobres: Am 5.11-12; 8.4-6. e) Insensibilidade para com o sofrimento alheio: Am 4.1; 6.6.

295

Cf. G. Archer Jr. Merece Confiança o Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1974, p. 358-359. 296

Ver: J.A. Motyer, O Dia do Leão: A Mensagem de Amós, São Paulo: ABU Editora, 1984, p. 100-101. 297

Sicômoros, �ou figueiras bravas, uma árvore donde se extraía um tipo de seiva, ao serem

feitas incisões na época certa, quando então essa seiva formaria um tipo de bola endureci-

da que os pobres compravam como frutas� (G. Archer Jr. Merece Confiança o Antigo Testamen-

to, p. 358).

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 63/108 c) Vida Religiosa: a) As ofertas eram apenas mecânicas; não alteravam em nada o seu compor-tamento; eles apenas gostavam do ritual: Am 4.4-5. b) Aborreciam a instrução: Am 5.10. Aqui, vem o ponto central: Não queriam ouvir a Palavra de Deus; para tanto

procuravam corromper os mensageiros de Deus (Am 2.11-12; 5.10/7.14-16). A Men-sagem profética era entendida como conspiração (Am 7.10). O trágico de tudo isso,

é que a mensagem que eles não queriam ouvir era justamente a que lhes poderia

salvar, porque Deus lhes falava através do profeta; no entanto, eles não queriam

que este profetizasse: �Certamente o Senhor Deus não fará cousa alguma, sem pri-

meiro revelar o seu segredo aos seus servos, os profetas� (Am 3.7). �Aborreceis na

porta ao que vos repreende, e abominais o que lhe fala sinceramente� (Am 5.10). Amós, fiel ao seu chamado, testemunha contra a tentativa do povo em silenciá-lo: �Mas o Senhor me tirou de após o gado, e me disse: Vai e profetiza ao meu povo Is-

rael. Ora, pois, ouve a palavra do Senhor: Tu dizes: Não profetizarás contra Israel,

nem falarás contra a casa de Isaque� (Am 7.15-16)(Ver Am 2.12). Enquanto o povo não ouvia o profeta, alimentava-se de mentiras: (Am 2.4). Deus aponta para a insensibilidade espiritual do povo em se converter a Ele: (Do mesmo modo Ageu 1.9-11): a) Fome não adiantou: Am 4.6. b) Seca não adiantou: Am 4.7-8. c) Praga não adiantou: Am 4.9. d) Peste não adiantou: Am 4.10. e) Catástrofe não adiantou: Am 4.11. Deus diz que puniria o seu povo (Am 3.2,14); o abandonaria (Am 6.8). Ele não era

subornável mediante cultos mecânicos que não alteravam em nada o seu compor-tamento; o povo apenas gostava do ritual (Am 4.4-5 5.21-23; Mq 6.6-8; Os 6.6/1Sm 15.22; Os 8.13). O culto inclui necessariamente a obediência a Deus.

O ritualismo vazio pode ser ilustrado na vida de Israel. Os povos costumam ter seus lugares sagrados, marcos de grandes acontecimentos ou da existência de

grandes personagens. Para lá se dirigem objetivando prestar seu culto ou mesmo

buscar inspiração. O povo de Israel também tinha esta prática; o livro de Amós nos

fala de três lugares (Am 5.1-6): a) Betel: Jacó teve uma visão de Deus e conclui dizendo que Deus estava na-quele lugar (Gn 28.16). Aqui Jacó saiu com uma nova perspectiva de vida amparada

na promessa de Deus (Gn 28.13-15). Mais tarde Jacó foi a Betel lembrando-se de que Deus se revelara a ele anteriormente (Gn 35.7) e agora, teve uma nova experi-ência; Deus lhe falara (Gn 35.15), mudou seu nome; ele já não mais se chamaria

Jacó mas Israel (Gn 35.10). � Betel significava a presença de Deus e o Seu poder

renovador.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 64/108 b) Gilgal: Josué erigiu um monumento com doze pedras após atravessar a pé

enxuto o rio Jordão. Também ali os homens que nasceram no deserto foram circun-cidados e o povo participou da páscoa (Js 4 e 5)

298 � �Gilgal era o santuário que

proclamava a herança e a posse da terra prometida de acordo com a von-

tade de Deus�.299

c) Berseba: Abraão fez aliança com Abimeleque e invocou o nome do Senhor.

Abimeleque disse a Abraão: �Deus é contigo em tudo o que fazes� (Gn 21.22) � Ber-seba nos reporta à Bênção de Deus. Deus não deseja que o povo procure mecanicamente os lugares de culto, por eles mesmos corrompidos (Am 5.5/4.4), mas que O busque, para que tenham vida (Am 5.6). Buscar a Deus é o oposto a meras peregrinações a lugares sagrados, a santu-ários como em Betel, Gilgal ou Berseba (Am 3.14; 4.4-5; 8.14); estes santuários jun-tamente com o povo estavam sob julgamento. Por causa de seus pecados, Israel seria destruído (Am 3.11-12; 5.3; 6.16), sendo levado cativo (Am 4.2-3; 6.7; 7.11,17). Israel deve se preparar para se encontrar com o Senhor, e prestar contas a Ele (Am 4.12-13). No entanto, a mensagem de Deus permanecia até o último instante conclamando o povo a uma atitude de arrependi-mento e de busca de Deus. A única solução para Israel estava na proclamação de

Amós: �Buscai ao Senhor e vivei� (Am 5.6). É necessário que não permitamos que uma religiosidade estereotipada caracteri-ze a nossa vida; Deus deseja não que cumpramos simplesmente rituais; Ele quer

que O busquemos. Os ritos só têm valor quando realizados conforme à Palavra e

com sinceridade. A nossa única chance real de salvação é buscar a Deus. Como vimos, o povo não queria saber da mensagem profética. No século XIX,

Spurgeon (1834-1892), comentando sobre a relevância do sermão na adoração, es-creve: �Ouvir corretamente o evangelho é uma das partes mais nobres da

adoração ao Altíssimo. É um exercício mental em que, quando corretamen-

te praticado, todas as faculdades do homem espiritual são chamadas à rea-

lização de atos de devoção. Ouvir reverentemente a Palavra exercita a nos-

sa humildade, instrui a nossa fé, engolfa-nos em raios de fulgente alegria, in-

flama-nos de amor, inspira-nos zelo, e nos eleva até o céu�.300

298�Gilgal se tornou a base de operações de Israel, depois da travessia do rio Jordão (Js

4.19), e foi foco de uma série de acontecimentos durante a conquista: doze pedras come-

morativas foram estabelecidas quando Israel armou acampamento ali (Js 4.20); a nova ge-

ração cresceu no deserto e só em Gilgal foi circuncidada; a primeira Páscoa celebrada em

Canaã foi efetuada ali (Js 5.9,10). De Gilgal, Josué liderou as forças israelitas contra Jericó (Js

6.11,14ss.). (...) Gilgal tornou-se ao mesmo tempo um lembrete sobre a libertação outorgada

por Deus no passado, um sinal de vitória presente, debaixo de sua orientação, e viu a pro-

messa da herança que ainda seria apossada� (K. A. Kitchen, Gilgal: In: J.D. Douglas, ed. ger. O

Novo Dicionário da Bíblia, Vol. II, p. 671a). 299

J.A. Motyer, O Dia do Leão: A Mensagem de Amós, p. 100. 300

Charles H. Spurgeon, Lições aos Meus Alunos, São Paulo: PES., 1982, Vol. 2, p. 64.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 65/108 No Livro de Amós vemos exemplificado o desprezo à profecia e, ao mesmo tem-po, a fidelidade do profeta. Parece-me, no entanto, correto o comentário de Vincent

quando declara que �A demanda gera o suprimento. Os ouvintes convidam e

moldam os seus próprios pregadores. Se as pessoas desejam um bezerro pa-

ra adorar, o ministro que fabrica bezerros logo é encontrado�.301

É preciso a-tenção redobrada para não cairmos nesta armadilha já que não é difícil confundir os

efeitos de uma mensagem com o conteúdo do que anunciamos: a pregação deve

ser avaliada pelo seu conteúdo; não pelos seus supostos resultados. Esse assunto

está ligado à vertente relacionada ao crescimento de igreja. Iain Murray está correto

ao afirmar: �O crescimento espiritual na graça de Cristo vem em primeiro lu-

gar. Onde esse crescimento é menosprezado em troca da busca de resulta-

dos, pode haver sucesso, mas será de pouca duração e, no final, diminuirá a

eficácia genuína da Igreja. A dependência de número de membros ou a

preocupação com números freqüentemente tem se confirmado como uma

armadilha para a igreja�.302

A confusão entre conteúdo e resultado é fácil de ser feita porque, como acentua MacArthur: �O pregador que traz a mensagem que mais necessitam ouvir é

aquele que eles menos gostam de ouvir�.303

Portanto, a popularidade pode em muitos casos, ser um atestado da infidelidade do pregador na transmissão da voz

profética. Lembremo-nos: �Toda a tarefa do ministro fiel gira em torno da Pala-

vra de Deus � guardá-la, estudá-la e proclamá-la�.304e: �Ninguém pode pre-

gar com poder sobrenatural, se não pregar a Palavra de Deus�.305

Quanto mais confiarmos no poder de Deus operante através da Palavra, menos estaremos dispostos a confiar em nossa suposta capacidade. A nossa oratória pode e certa-mente não é totalmente adequada; no entanto, a Palavra que pregamos, jamais será

ineficaz no seu propósito. Neste sentido, escreveu Chapell: �Quando os pregado-

res percebem o poder que a Palavra possui, a confiança em seu chamado

cresce, da mesma forma que o orgulho em seu desempenho murcha. Não

precisamos temer nossa ineficácia quando falamos das verdades que Deus

revestiu de poder para a realização dos seus propósitos. Ao mesmo tempo

trabalhar como se nossos talentos fossem os responsáveis pela transformação

espiritual, torna-nos semelhantes a um mensageiro que reivindicava mérito

por ter posto fim à guerra por haver ele entregue a declaração escrita de

paz. O mensageiro tem uma nobre tarefa a realizar, mas porá em risco sua

missão e depreciará o verdadeiro vitorioso se atribuir a si façanhas pessoais.

301

Marvin R. Vincent, Word Studies in the New Testament, Peabody, MA.: Hendrickson Publishers, [s.d.], Vol. 4, (2Tm 4.3), p. 321. 302

Iain Murray, A Igreja: Crescimento e Sucesso: In: Fé para Hoje, São José dos Campos, SP.: Fiel,

nº 6, 2000, p. 27. 303

John F. MacArthur Jr., Com Vergonha do Evangelho, p. 35. Packer faz uma pergunta inquietante: �Costumamos lamentar, hoje em dia, que os ministros não sabem pregar; mas não é igual-

mente verdadeiro que nossas congregações não sabem ouvir� (J.I. Packer, Entre os Gigantes

de Deus: Uma visão puritana da vida cristã, São José dos Campos, SP.: FIEL, 1996, p. 275). 304

John F. MacArthur Jr., Com Vergonha do Evangelho, p. 29. 305

John F. MacArthur Jr., Com Vergonha do Evangelho, p. 30.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 66/108

Mérito, honra e glória com relação aos efeitos da pregação pertencem a-

penas a Cristo, pois somente a Palavra produz renovação espiritual�.306

Lembremo-nos de que o pregador não �compartilha� opiniões nem dá suas �opi-niões� sobre o texto bíblico, nem faz uma paráfrase irreverente do texto, antes, ele

prega a Palavra. O seu objetivo é expressar o que Deus disse através de Seus ser-vos. Pregar é explicar e aplicar a Palavra aos nossos ouvintes. O aval de Deus não

é sobre nossas teorias e escolhas, muito menos sobre a �graça� de nossas piadas,

mas sobre a Sua Palavra. Portanto, o pregador prega o texto, de onde provém a

verdade de Deus para o Seu povo. �Quando nos propomos a expor um texto,

precisamos declarar exatamente o que o texto afirma�.307

No final, quando Cristo retornar, certamente Ele não se interessará pela nossa

escola homilética ou, se fomos �progressistas� ou �conservadores� mas sim, se fo-mos fiéis à Palavra em nossa vida e pregação. Insistimos: devemos estar sinceramente atentos ao que o Espírito diz à Igreja a-través da Palavra, a fim de praticar os Seus ensinamentos. E isto é válido tanto para

quem ouve como para quem prega... Por outro lado, aquele que prega deve ter consciência de que o púlpito não é o

lugar para se exercitar as opiniões pessoais e subjetivas mas sim, para pregar a Pa-lavra,308 anunciando todo o desígnio de Deus, sob a iluminação do Espírito. Alexan-der R. Vinet (1797-1847) definiu bem a pregação, ao dizer ser ela �a explicação

da Palavra de Deus, a exposição das verdades cristãs, e a aplicação dessas

verdades ao nosso rebanho�.309

Na mesma linha Calvino escrevera: �A Escritura

é a fonte de toda a sabedoria, e os pastores terão de extrair dela tudo o que

eles expõem diante do seu rebanho�.310

Sem a Palavra, o púlpito torna-se um lugar que no máximo serve como terapia para aliviar as tensões de um auditório

cansado e ansioso em busca de alívio para as suas necessidades mais imediata-mente percebidas. Ele pode conseguir o alívio do sintoma, mas não a cura para as

suas reais necessidades.

306

Bryan Chapell, Pregação Cristocêntrica, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 22. 307

Kenneth A. Macrae, A Pregação e o Perigo do Comprometimento: In: Fé para Hoje, São José dos

Campos, SP.: Fiel, nº 7, 2000, p. 4. 308

Agostinho (354-430), o grande bispo de Hipona, em sua obra De Doctrina Christiana (397-427), tomando Paulo como �modelo de eloqüência� (Agostinho, A Doutrina Cristã, IV.7.15), seguiu de perto a Aristóteles e Cícero. Ele estabeleceu uma relação entre os princípios da teoria retórica com a tarefa da pregação, fazendo as adaptações necessárias (Vd. Por exemplo, Agostinho, A Doutrina Cristã,

IV.19.35 e 37). Insistiu, também, � seguindo a Cícero �, que a pregação tem três propósitos: Instruir

(docere); Agradar (delectare) e Persuadir (flectere), enfatizando este último. (Agostinho, A Doutrina

Cristã, IV.12.27ss.). Agostinho, afirmou � e é este ponto que queremos destacar �, que �O pregador

é o que interpreta e ensina as verdades divinas.� (Agostinho, A Doutrina Cristã, São Paulo: Pau-linas, 1991, IV.4.6. p. 217). 309

A.R. Vinet, Pastoral Theology: or, The Theory of the Evangelical Ministry, 2ª ed. New York: Ivison, Blakeman, Taylor & Co. 1874, p. 189. 310 João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 4.13), p. 123.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 67/108 Uma outra verdade que precisa ser ressaltada, é que apesar de muitos de nós

não sermos �grandes� pregadores311 ou existirem pregadores infiéis, Deus fala: A

Palavra de Deus é mais poderosa do que a nossa incompetência ou a infidelidade

de outros. Por isso, há a responsabilidade de ambos os lados: Quem prega, pregue

a Palavra; quem ouve, ouça com discernimento a Palavra do Espírito de Deus. Re-centemente li Chapell dizendo: �Os esforços pessoais dos maiores pregadores

são ainda demasiado fracos e manchados pelo pecado para serem respon-

sáveis pelo destino eterno das pessoas. Por essa razão Deus infunde sua Pa-

lavra com poder espiritual. A eficácia da mensagem, mas que qualquer vir-

tude do mensageiro, transforma corações�.312

À frente: �A glória da prega-

ção é que Deus realiza sua vontade por intermédio dela, mas somos sempre

humilhados e ocasionalmente confortados com o conhecimento de que Ele

age além das nossas limitações humanas�.313

Ainda: �Pode ser que você ja-

mais ouça elogios do mundo, ou seja pastor de uma igreja com milhares de

membros, mas uma vida de piedade associada a uma clara explanação da

graça salvadora e santificadora da Escritura garantem o poder do Espírito

para a glória de Deus�.314

Devemos ter sempre em mente que a pregação foi o meio deliberadamente esco-lhido por Deus para transformar pessoas e edificar o Seu povo, preservando a sã

doutrina através da Igreja que é o baluarte da verdade.315

A pregação é uma tarefa de ínterim; ela ocorre num locus temporal: entre a reali-dade histórica do Cristo encarnado e a volta do Cristo glorificado e, é nesta condição

311

É-nos alentadora a observação de Spurgeon: "O pregador do evangelho pode não ser um

bom pregador. Mas o Senhor fala aos pecadores mesmo por meio de pregadores incultos." (C.H. Spurgeon, Sermões Sobre a Salvação, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas,

1992, p. 46). Do mesmo modo, Chapell: �Grandes dons não o tornam grande pregador. A ex-

celência técnica da mensagem pode repousar nas suas habilidades, mas a eficácia espiri-

tual da sua mensagem reside em Deus� (Bryan Chapell, Pregação Cristocêntrica, p. 25). 312

Bryan Chapell, Pregação Cristocêntrica, p. 18. À frente continua: �Pregação que é fiel à Escri-

tura converte, convence e amolda o espírito de homens e mulheres, pois ela apresenta o

instrumento da compulsão divina, e não que pregadores tenham em si mesmos qualquer

poder transformador� (Bryan Chapell, Pregação Cristocêntrica, p. 19). 313 Bryan Chapell, Pregação Cristocêntrica, p. 25. 314

Bryan Chapell, Pregação Cristocêntrica, p. 33. 315

Como já fizemos menção, MacArthur acentua com veemência em lugares diferentes: �.... Não

ousemos menosprezar o principal instrumento de evangelismo: a proclamação direta e cris-

tocêntrica da genuína Palavra de Deus. Aqueles que trocam a Palavra por entretenimento

ou artifícios descobrirão que não possuem um meio eficaz de alcançar as pessoas com a

verdade de Cristo� (John F. MacArthur Jr., Com Vergonha do Evangelho, p. 117-118). �Os que

desejam colocar a dramatização, a música e outros meios mais sutis no lugar da pregação

deveriam levar em conta o seguinte: Deus, intencionalmente, escolheu uma mensagem e

uma metodologia que a sabedoria deste mundo considera como loucura. O termo grego

traduzido por �loucura� [1Co 1.21] é mõria, de onde o idioma inglês tira a sua palavra moro-

nic (imbecil). O instrumento que Deus utiliza para realizar a salvação é, literalmente, imbecil

aos olhos da sabedoria humana. Mas é a única estratégia de Deus para proclamar a men-

sagem� (Ibidem., p. 130).

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 68/108

que ela se realiza e se desenvolve.316 A Igreja prega a Palavra cumprindo assim o seu ministério ordenado pelo próprio Deus; para tanto ela se prepara da melhor for-ma possível, usando de todos os recursos disponíveis que se harmonizam com os

princípios bíblicos, recorrendo de modo indispensável ao auxílio do Espírito na con-cretização de sua missão. Tendo sempre em vista que, �a fé não admite glorifi-

cação senão exclusivamente em Cristo. Segue-se que aqueles que exaltam

excessivamente a homens, os privam de sua genuína grandeza. Pois a coisa

mais importante de todas é que eles são ministros da fé, ou seja: conquistam

seguidores, sim, mas não para eles mesmos, e, sim, para Cristo�.317

F) �Cantar Salmos com graças no coração�:318

�Louvor cristão é isso, e nos envolve a

todos. Portanto, Paulo não pode estar

falando sobre a congregação ficar sen-

tada e ouvindo o belo cântico de um

coral. Isso é quase diretamente o opos-

to do que ele está dizendo. Todavia, é

a isso que chegamos. É pior quando o

canto é executado por um coral pago,

e pior ainda quando os membros do

coral pago ou do quarteto especial

nem cristãos são, mas são introduzidos

na igreja porque têm boa voz. Às vezes,

neste país, e mais frequentemente nou-

tros, eles chegam ao culto justo na hora

de cantar, e logo depois se retiram!� � D.M. Lloyd-Jones, Cantando ao Senhor,

São Paulo: Publicações Evangélicas Sele-cionadas, 2003, p. 50.

1) O JÚBILO COMEÇA NO CORAÇÃO:

�A pregação determina o foco e profundidade da adoração�.319 O nosso culto é determinado basicamente pelo conhecimento e prática da Palavra. O nosso louvor é a expressão de um coração alegre diante de Deus: O júbilo começa

no coração e os lábios apenas o expressam. �Pois, não se jubila com palavras;

mas somente se emitem sons de alegria, que de certo modo são concebidos

e gerados pelo coração, como expressão da idéia que for impossível mani-

316

Anthony A. Hoekema observou que: �O período entre a primeira e a segunda vinda de Cris-

to é a era missionária por excelência. Este é o tempo da graça, um tempo em que Deus

convida e insta com todos os homens para serem salvos� (A.A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, p. 187). 317

J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 3.5), p. 101-102. 318

O Diretório de Culto de Westminster, p. 65; Confissão de Westminster, 21.5. 319

Michael Horton, As Doutrinas da Maravilhosa Graça, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p.

87.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 69/108

festar por palavras�.320 O nosso culto começa por uma vida de obediência com um

coração sincero; o ato público de adoração é a complementação indispensável de

nosso culto cotidiano a Deus. �Porquanto Deus preceitua, em primeiro lugar,

que o adoremos interiormente, e em seguida também verbalizemos uma

profissão de fé externa. O principal altar, no qual Deus é adorado, deve estar

situado dentro de nós, pois Deus é adorado espiritualmente através da fé, de

orações e de outros ofícios de piedade. A confissão externa deve ser forço-

samente acrescentada, não só para que nos exercitemos na adoração a

Deus, mas também para que nos ofereçamos inteiramente a Ele, tanto no

corpo quanto na mente, assim como Paulo preceitua (1Co 7.34; 1Ts 5.23) �

em suma, para que Ele nos possua inteiramente�.321

2) OS CÂNTICOS REFLETEM NOSSA EXPERIÊNCIA COM DEUS:

É natural e até desejável que usemos de nossos talentos para servir a Deus

com novas composições que reflitam a nossa fé decorrente da Palavra. Lloyd-Jones está correto ao enfatizar: �O canto cristão não deve ser uma repetição enfa-

donha�.322 Portanto, a nossa fé por proceder da Palavra deve ser orientada pela

Palavra em nossas experiências cotidianas. O Livro de Salmos se constitui num mo-delo majestoso e singular deste emprego. No entanto a novidade do que cantamos não estará circunscrita à data da composição ou à atualidade do ritmo, mas sim à

forma como cantamos. Com �graça no coração�. Agostinho (354-430) colocou esta questão em termos belos: �Quem canta com parcialidade, canta canções an-

tigas; qualquer de seus cânticos é velho, é o velho homem que canta. Está

dividido, é carnal. Certamente, enquanto é carnal é velho, e à medida em

que é espiritual, é novo�.323 Devemos cantar ao Senhor com novidade de vida e integridade; somente assim cantaremos um �cântico novo� (Sl 96.1; 98.1; Is 42.10). Os cânticos devem ser a expressão de uma experiência com Deus, �porque é

certo que jamais agradarão a Deus os louvores que não procedam desta

fonte de amor�.324 É natural que com o tempo, os hinos passem a fazer parte de

nossa história de vida: Eles, sem dúvida, retratam verdades bíblicas; contudo, estas verdades, cridas por nós, assumem um significado subjetivo quando são vivencia-das, muitas vezes � ainda que não exclusivamente �, em nossas crises, angústias e mesmo júbilo. Deste modo, assim como há textos das Escrituras marcantes, que fa-lam de modo especial à nossa experiência de vida, há hinos que realçam momentos

de nossa comunhão com Deus e, também, às vezes a dura realidade cotidiana. Se

vocês pararem por um instante para refletir sobre isso certamente se lembrarão de

hinos que estiveram associados à sua conversão, a momentos alegres e dolorosos,

320

Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, (Patrística, 9/2), 1997, Vol. II, (Sl (66)

67.2), p. 335. 321

João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000, Vol. 1, (Dn 3.2-7), p. 192. 322

D.M. Lloyd-Jones, Cantando ao Senhor, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 41. 323

Agostinho, Comentário aos Salmos, Vol. II, (Sl (65) 66.6), p. 371. 324

João Calvino, As Institutas, III.20.20.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 70/108 à determinadas épocas de sua vida: infância, mocidade ou mesmo à atualidade.

Obviamente, a nossa experiência não esgota o sentido dos hinos, mas, sem dúvida,

elas resignificam a mensagem. De passagem, podemos entender também, que a le-tra que cantamos é fundamental na compreensão, fixação e expressão do nosso

louvor. Lloyd-Jones, fazendo eco a Agostinho e a Calvino, acentua: �Sempre nos com-

pete lembrar-nos de que não devemos concentrar-nos só em cantar a me-

lodia. No momento em que fazemos isso, já nos afastamos da instrução do

apóstolo [Ef 5.19]. As palavras vêm em primeiro lugar � elas são mais impor-

tantes que a melodia. Naturalmente, as palavras e a melodia devem vir jun-

tas, consorciadas e fundidas para darem expressão ao nosso louvor. Mas

não há nada que seja tão fatal como entoar a melodia somente, sem dar

atenção às palavras�.325 O meditar nos feitos de Deus é um imperativo ao louvor. O salmista louva a Deus considerando o seu livramento: �Bendito seja o Senhor, porque me ouviu as

vozes súplices! O Senhor é a minha força e o meu escudo; nele o meu coração con-

fia, nele fui socorrido; por isso, o meu coração exulta, e com o meu cântico o louva-

rei� (Sl 28.6-7). �Quando Deus esparge alegria em nossos corações, o resulta-

do deve ser que nossos lábios se abram para entoar seus louvores�.326 �Visto

que o salmista mais adiante trata das obras portentosas de Deus, e particu-

larmente da preservação da Igreja, não causa surpresa que ele exorte os jus-

tos a cantarem um cântico novo, isto é, um cântico raro e selecionado.

Quanto mais atenta e diligentemente os crentes consideram as obras de

Deus, mas eles se aplicarão aos seus louvores�.327 3) O CANTAR ESTÁ ASSOCIADO À NOSSA FÉ �EM BUSCA DE COMPRE-

ENSÃO�:

O nosso louvor está também associado à nossa fé. Davi angustiado, fugindo de uma perseguição implacável de Saul, assim mesmo vislumbrava alegremente o seu salvamento: �Regozije-se o meu coração no teu salvamento� (Sl 13.5). O curio-so é que o salmista além de olhar para o futuro, não perde o contato com a realidade presente, enxergando que apesar de todas as suas dificuldades, Deus lhe tem feito

muito bem (Sl 13.6). No verso 3, ele pede a Deus: �.... Ilumina-me (Қ҇҂) ('¶r) os o-

lhos....� . �Iluminar os olhos, no idioma hebraico, significa o mesmo que soprar

o fôlego de vida, porquanto o vigor de vida transparece principalmente nos

olhos�, interpreta Calvino.328 Analisando de outra perspectiva, muitas vezes o que

325

D.M. Lloyd-Jones, Cantando ao Senhor, p. 42. 326

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 28.7), p. 608. 327

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 33.3), p. 58. 328

João Calvino, O Livro de Salmos, Vol. 1, (Sl 13.3), p. 265. O abatimento evidencia-se nos olhos. Há uma passagem reveladora sobre este ponto: O exército de Saul perseguia aos filisteus e Saul

conjurou o povo a nada comer enquanto ele não se vingasse dos seus inimigos: os seus homens es-tão com fome; Jônatas que não ouvira a ordem de seu pai, quando passando pelo bosque viu mel,

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 71/108 de fato necessitamos é ter os olhos iluminados para poder enxergar a situação com

mais clareza. Aqui o salmista pede a Deus que ilumine os seus olhos para que ele, tomando alento, possa ver as coisas com mais clareza, já que no momento a reali-dade parecia-lhe extremamente aflitiva e tenebrosa. Notemos que somente Deus pode iluminar os nossos olhos para que vejamos os Seus feitos em nossa vida e as-sim, nos alegremos na esperança (Rm 12.12). �É possível que não vivamos to-

talmente livres do sofrimento, não obstante é necessário que essa fé regozi-

jante se erga acima dele e nossa boca se abra em cântico por conta da a-

legria que está reservada para nós no futuro, embora ainda não seja expe-

rimentada por nós....�.329 Deste modo, o Salmo que começa com perguntas an-

gustiantes e dolorosas (Sl 13.1-2), termina com um cântico de confiante fé e alegria radiante. O seu desânimo transforma-se em alegre confiança. Tendo os olhos ilumi-nados, conforme pediu a Deus, pôde ver com mais clareza as bênçãos de Deus; por

isso diz: �[Deus] me tem feito muito bem (ҎҐᚮ)330 (gâmal)� (Sl 13.6).331 Assim,

assume o compromisso: �Cantarei ao Senhor� (Sl 13.6). A alegria do salmista se manifesta em cântico. Davi ainda não pode enxergar completamente o livramento

futuro, no entanto, confia em Deus, por isso, O louva firmado na fé que vê o invisível;

experiencia o que descreve o Livro de Hebreus: �Ora, a fé é a certeza de cousas que

se esperam, a convicção de fatos que se não vêem� (Hb 11.1). Deste modo o nosso louvor é um testemunho de nossa confiança no cuidado providente de Deus. Este discernimento só é possível através da Palavra. Uma esperança fundamentada sim-plesmente em otimismos resultantes de um �pensar positivo� pode, quando muito,

dar uma sensação momentânea de alívio, contudo, não muda a realidade dos fatos. Deus, no entanto, nos convida a um exame de Sua Palavra; nela temos os Seus en-sinamentos e promessas que, de fato, podem iluminar os nossos olhos, apontando e nos capacitando a seguir o Seu caminho. �Porque o mandamento é lâmpada, e a

instrução, luz (Қ҇҂) ('¶r)....� (Pv 6.23). Esta é a experiência do salmista: �Os preceitos

do SENHOR são retos e alegram o coração; o mandamento do SENHOR é puro e

ilumina (Қ҇҂) ('¶r) os olhos� (Sl 19.8). A Palavra de Deus nos dá discernimento com

clareza: �A revelação das tuas palavras esclarece (Қ҇҂) ('¶r) e dá entendimento (ґҋᚭ)

(bi ɪyn)332 aos simples� (Sl 119.130). �Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e,

tomou e bebeu. Assim diz as Escrituras: �... estendeu a ponta da vara que tinha na mão, e a molhou

no favo de mel; e, levando a mão à boca, tornaram a brilhar (Қ҇҂) ('¶r) os seus olhos� (1Sm 14.27) (Vd. Pv 29.13). 329

J. Calvino, O Livro de Salmos, Vol. 1, (Sl 13.6), p. 268. 330lmg (gâmal) significa os benefícios provenientes da graça de Deus. [Cf. João Calvino, O Livro de

Salmos, Vol. 1 (Sl 13.6), p. 268. Vd. também: Albert Barnes, Notes on the Old Testament, 11ª ed.

Grand Rapids, Michigan: Baker, 1973, Vol. 1, p. 112]. 331

Do mesmo modo: �Volta, minha alma, ao teu sossego, pois o SENHOR tem sido generoso (ҎҐᚮ) (gâmal) para contigo� (Sl 116.7). 332

O verbo (ґҋᚭ) (biɪyn) e o substantivo (҆Ғҋᚭ) (biɪyna ɪh) apresentam a idéia de um entendimento, fruto

de uma observação demorada, que nos permite discernir para interpretar com sabedoria e conduzir

os nossos atos. �O verbo se refere ao conhecimento superior à mera reunião de dados. (...)

Bîn é uma capacidade de captação julgadora e perceptiva e é demonstrada no uso do

conhecimento� [Louis Goldberg, Bîn: In: Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teolo-

gia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 172].

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 72/108

luz (Қ҇҂) ('¶r) para os meus caminhos� (Sl 119.105).333 Jesus Cristo, a Palavra en-carnada, nos diz: �Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará nas trevas;

pelo contrário, terá a luz da vida� (Jo 8.12/Is 49.6).334 Somente a Palavra de Deus pode transmitir a alegria real e duradoura ao nosso coração. Ela dispersa as nuvens

de incertezas e contradições de uma sociedade pervertida, nos mostrando os verda-deiros valores. No ato de seguir as veredas de Deus, vamos descobrindo a sensatez e alegria da obediência: os nossos caminhos vão se aclarando: �.... a vereda dos

justos é como a luz (Қ҇҂) ('¶r) da aurora, que vai brilhando (Қ҇҂)335 ('¶r) mais e mais

até ser dia perfeito� (Pv 4.18). Assim, gradativamente, esta alegria vai se refletindo até mesmo em nosso semblante: �Quem é como o sábio? E quem sabe a interpreta-

ção das coisas? A sabedoria do homem faz reluzir (Қ҇҂) ('¶r) o seu rosto, e muda-se

a dureza da sua face� (Ec 8.1).

*** O Diretório de Culto de Westminster (1645) orienta:

ґҋᚭ��� (bi ɪyn) permite diversas traduções (ARA):

Acudir (Sl 5.1) (No sentido de considerar); Ajuizado (Gn 41.33,39); Atentar (Dt 32.7,29; Sl 28.5); Atinar (Sl 73.17; 119.27); Considerar (Jó 18.2; 23,15; 37.14); Contemplar (Sl 33.15); Cuidar (Dt 32.10); Discernir (1Rs 3.9,11; Jó 6.30; 38.20; Sl 19.12); Douto (Dn 1.4); Ensinar (Ne 8.7,9); Enten-der/entendido/entendimento (Dt 1.13;4.6; 1Sm 3.8; 2Sm 12.19; 1Rs 3.12;1Cr 15.22; 27.32; 2Cr 26.5; Ed 8.16; Ne 8.2,3,8,12; 10.28; Jó 6.24;13.1; 15.9; 23.5; 26.14; 28.23; 32.8,9; 42.3); Fixar no sentido de pensar detidamente (Jó 31.1); Inteligência (Dn 1.17); Mestre (no sentido de expert) (1Cr 25.7,8); Penetrar (com o sentido de discernir) (1Cr 28.9; Sl 139.2); Perceber (Jó 9.11;14.21; 23.8); Perito (Is 3.3); Procurar (Sl 37.10); Prudentemente (2Cr 11.23); Reparar (1Rs 3.21); Revistar (procurar atenta-mente) (Ed 8.15); Saber/Sabedoria (Ne 13.7; Pv 14.33); �Sisudo� em palavras (1Sm 16.18); Superin-tender (por ter maior conhecimento) (2Cr 34.12). A LXX geralmente emprega a palavra Suni/hmi (sy-niêmi) para traduzir o verbo hebraico. Suni/hmi (syniêmi) envolve a idéia de reunir as coisas, analisá-las, tentando chegar a uma conclusão através de uma conexão das partes. (*Mt

13.13,14,15,19,23,51; 15.10; 16.12; 17.13; Mc 4.12; 6.52; 7.14; 8.17,21; Lc 2.50; 8.10; 18.34; 24.45; At 7. 25 (duas vezes); 28.26,27; Rm 3.11; 15.21; 2Co 10.12; Ef 5.17). Paulo instrui aos efésios:

�...Vede prudentemente como andais, não como néscios, e, sim, como sábios, remindo o tempo, por-

que os dias são maus. Por esta razão não vos torneis insensatos, mas procurai compreender (Su-ni/hmi) qual a vontade do Senhor� (Ef 5.15-17). 333

Nas Escrituras, seguir a instrução de Deus é o mesmo que andar na luz: �Irão muitas nações e di-rão: Vinde, e subamos ao monte do SENHOR e à casa do Deus de Jacó, para que nos ensine os

seus caminhos, e andemos pelas suas veredas; porque de Sião sairá a lei, e a palavra do SENHOR,

de Jerusalém (...) Vinde, ó casa de Jacó, e andemos na luz (Қ҇҂) ('¶r) do SENHOR� (Is 2.3,5). �Aten-dei-me, povo meu, e escutai-me, nação minha; porque de mim sairá a lei, e estabelecerei o meu direi-

to como luz (Қ҇҂) ('¶r) dos povos� (Is 51.4). [Para um estudo mais pormenorizado do emprego da pa-lavra no Antigo Testamento, ver: Herbert Wolf, �ôr: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Interna-cional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 38-42; William Gesenius, Hebrew-Chaldee Lexicon to the Old Testament, 3ª ed. Michigan: WM. Eerdmans Publishing Co. 1978,

p. 23]. 334�Sim, diz ele: Pouco é o seres meu servo, para restaurares as tribos de Jacó e tornares a trazer os

remanescentes de Israel; também te dei como luz (Қ҇҂) ('¶r) para os gentios, para seres a minha sal-

vação até à extremidade da terra� (Is 49.6). 335

A grafia de �luz�, �ser luz�, �tornar-se luz� e �brilhar� é a mesma no hebraico.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 73/108

�É dever dos cristãos louvar a Deus publicamente cantando salmos jun-

tos na Igreja, e também em particular na família.

�Ao cantar os salmos, a voz deverá ser afinada e ordenada com serie-

dade; mas o cuidado maior precisa ser o de cantar com o entendimento

e com graça no coração, erguendo melodias ao Senhor�.336 Devemos, portanto, cantar com sinceridade, meditando naquilo que cantamos como expressão de nossa fé, com integridade e moderação. Como vimos, os cânti-cos são didáticos; através deles aprendemos a Palavra de Deus, expressamos a

nossa fé e, eles também nos ajudam a fixar os ensinamentos bíblicos.337 Os cânti-

cos que não nos conduzem à Palavra, por mais emocionantes, �alegres�, cativantes

e contagiantes que sejam, não edificam. Precisamos ter sempre diante de nós o fato

insubstituível de que é impossível ser edificado espiritualmente fora da Palavra. A

Palavra de Deus deve ser sempre o critério aferidor de todas as nossas experiên-cias, emoções e gosto. Insistimos: fora da Palavra não há edificação, nem cresci-mento espiritual. Deus não requer de nós simplesmente criatividade; Ele requer fide-lidade. Agostinho (354-430), de forma poética, mostra que o nosso louvor a Deus é o fru-to do trabalho do Agricultor em nós. Embora o nosso louvor nada acrescente a Deus,

nós crescemos quando sinceramente bendizemos o Senhor atestando o resultado

de Sua obra em nós:

�Quando Deus nos abençoa, nós crescemos, e quando bendizemos ao

Senhor, também crescemos; ambas as coisas são para o nosso proveito.

Ele nada ganha quando o bendizemos, nem diminui por nossas maldições.

(...) A bênção do Senhor vem-nos em primeiro lugar, e por conseqüência

também nós bendizemos ao Senhor. A primeira é a chuva, e esta é o fruto.

Por isso estamos entregando a Deus, o agricultor, que nos manda a chuva

e nos cultiva, o fruto que produzimos. Cantemos estas palavras com devo-

ção, mas não estéril, nem só de voz, mas com um coração sincero�.338 No nosso louvor Deus é quem deve ser engrandecido, a Sua glória é que deve

ser buscada: �Se, pois, jubilais de tal modo que Deus ouça, salmodiai também

de sorte que os homens vejam e ouçam; mas não a vosso nome. (...) Presta

atenção ao fim, conta com certa finalidade; considera qual o fim que te

move. Se ages assim para seres glorificado, foi o que proibi; se, porém, para

que Deus seja glorificado, foi o que mandei. Salmodiai, portanto, não a vosso

336

O Diretório de Culto de Westminster, p. 65. 337

Vejam-se: João Calvino, As Institutas, III.20.28,31,32; Confissão de Westminster, 21.5; Segunda

Confissão Helvética, XXIII, § 5.221. Também a Confissão Luterana: Confissão de Augsburgo (1530), XXIV. Esta Confissão foi escrita por Philip Melanchthon (1497-1560), com a aprovação de Lutero, que a leu em maio de 1530. (Vejam-se: Philip Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. I, p. 225-230; In-trodução de Martin Dreher à Confissão, publicada pela Editora Sinodal em 1980, p. 7-11; J.M. Dric-kamer, Confissão de Augsburgo: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja

Cristã, Vol. I, p. 328-329). (Vd. Felipe Fernández-Armesto & Derek Wilson, Reforma: O Cristianismo e

o Mundo 1500-2000, Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 163-164). 338 Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, (Patrística, 9/2), 1997, Vol. II, (Sl (67)

66.1), p. 361.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 74/108

nome, mas ao nome do Senhor vosso Deus. Salmodiai vós; Ele seja louvado;

vivei bem e Ele seja glorificado�.339 G) Com ordem e decência: A espontaneidade não é sinônimo de anarquia; a Igreja deve manter ordem em

tudo o que faz, não podendo ser diferente no culto a Deus; tudo deve ser feito visan-do a edificação. A liberdade concedida por Cristo não pode servir de pretexto para a desordem; a Palavra de Deus é o parâmetro para conduzir as nossas mentes naqui-lo que é correto e contribui para a edificação.

340 Para Calvino o conceito de ordem envolve organização e regularidade.

341 Mais especificamente, nos instrui Calvino: �Durante o tempo do sermão reine

tranqüilidade e silêncio; que se cantem salmos, e que haja dias fixos para celebrar a Ceia do Senhor�.342 H) O Culto deve ser conforme as prescrições divinas: No segundo semestre de 1559, Calvino expondo o Livro de Daniel, após mais

uma preleção, como sempre, encerra com uma oração: �Deus Todo-Poderoso, vis-

to que sempre e de maneira desgraçada nos perdemos em nossos pensa-

mentos e, quando tentamos te adorar; não fazemos nada a não ser profanar

a pura e verdadeira adoração de Tua divindade e somos mais facilmente

levados a superstições depravadas, permite, pois, que permaneçamos na

obediência pura da Tua Palavra e nunca nos desviemos para lado al-

gum....�.343 Esta oração reflete de modo claro a perspectiva e o desejo de Calvino. A Palavra se constitui no princípio orientador do culto oferecido a Deus. A Palavra, e somente

Ela, pode nos conduzir de forma correta na adoração agradável a Deus. Consciente

de nossas limitações, ele suplica ao Deus Todo-Poderoso a capacitação para obe-decer fielmente a Palavra.

339

Agostinho, Comentário aos Salmos, Vol. II, (Sl (66) 65.3), p. 336, 337. 340

Vd. João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 14.40), p. 44. 341

Vd. J. Calvino, As Institutas, II.8.32. 342

João Calvino, As Institutas, IV.10.29. Vejam-se também: J. Calvino, As Institutas, IV.10.27ss; Se-

gunda Confissão Helvética, XXIII, § 5.216. 343

João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, Vol. 1, (Dn 3.2-7), p. 195.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 75/108 1) AGRADÁVEL A DEUS:

�A primeira e mais importante coisa

a ser dita sobre verdadeiro culto é que

ele é para honrar a Deus. Se o que cha-

mamos culto não é centralizado em

Deus e não dá honra a Deus, não é cul-

to� � James M. Boice.344

Conforme vimos anteriormente, o culto é a resposta do homem a Deus, com

fé e gratidão; isto indica que é Deus Quem dá o primeiro passo na forma como Ele deve e quer ser adorado (Ex 29.38-46). Começamos por honrar a Deus levando a

sério a Sua Palavra. Não importa o que façamos no chamado �culto�, não importa o

quanto cantemos, oremos, choremos ou gesticulemos. Se a Palavra de Deus não for levada a sério, se os preceitos de Deus não forem determinantes em nossa adora-ção, não houve culto; Deus não foi adorado. Ele não é servido de modo estranho à

Sua Palavra. Devemos ter sempre diante de nós a convicção e propósito de que o culto é ofe-recido a Deus. Pode parecer estranho o que estamos dizendo, visto que podemos simplesmente pensar que o culto que prestamos é obviamente dirigido a Deus. No

entanto, no verso 14 do salmo 50, o escritor enfatiza: �Oferece a Deus sacrifício de

ações de graça�. Em outro lugar, Calvino faz menção a este salmo, dizendo:

�À luz do Salmo 50, o sacrifício de louvor não é só igualmente agradá-

vel a Deus, senão que é muito mais agradável do que todas as coisas ex-

ternas utilizadas pela lei. Ali Deus rejeita todas essas coisas como sendo de

nenhum préstimo, e ordena que o sacrifício de louvor lhe seja oferecido.

Vemos, pois, que essa é a mais excelente forma de culto divino e a única

que deve ser preferível a todos os demais exercícios, ou seja: que cele-

bremos a munificência divina através de ações de graça. Digo que esse é

o ritual de sacrifício que Deus nos recomenda hoje. Ao mesmo tempo, não

há dúvida de que todo o ato de invocar o Nome de Deus se encontra in-

cluído nesta parte singular, porque não podemos dar-lhe graças, a menos

que sejamos justificados por Ele; e ninguém obtém coisa alguma, senão

aquele que ora. Em suma, o apóstolo está dizendo que, excluindo a ofe-

renda de animais irracionais, temos algo muito mais excelente a oferecer

a Deus, e que dessa maneira Ele é correta e perfeitamente adorado por

nós�.345 Para nós protestantes, essa recomendação pode passar despercebida ou apenas

servir para confirmar a nossa prática: nós não adoramos imagens, nem outros seres

criados; estamos cumprindo rigorosamente os primeiros mandamentos: �Não terás

344

James M. Boice, O Evangelho da Graça, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 169. 345

João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 13.15), p. 392-393.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 76/108 outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem de escultura, nem seme-

lhança alguma do que há em cima nos céus, nem em baixo na terra, nem nas águas

debaixo da terra. Não as adorarás, nem lhes darás culto....� (Ex 20.3-5). Podemos, quem sabe, pensar de forma aliviada: deste pecado estamos livres!... De fato, devemos dar graças a Deus por não incorrermos nesta forma de pecado.

Contudo, há outras formas de cometer o mesmo pecado. E para estas é necessário

que estejamos mais atentos. No Novo Testamento Jesus Cristo nos mostra que muitas das orações suposta-mente dirigidas a Deus, na realidade não o eram... �E, quando orardes, não sereis como os hipócritas; porque gostam de orar em pé,

nas sinagogas e nos cantos das praças, para serem vistos dos homens. Em verdade

vos digo que eles já receberam a recompensa. Tu, porém, quando orares, entra no

teu quarto, e, fechada a porta, orarás a teu Pai que está em secreto; e teu Pai que

vê em secreto, te recompensará.... Portanto, vós orareis assim: Pai nosso que estás

nos céus....� (Mt 6.5-6,9). (Destaques meus). O problema, dentro do contexto vivido por Jesus, é que muitos dos judeus, na

realidade, ofereciam as suas orações aos homens, mesmo usando o nome de Deus.

Usar o nome de Deus não é garantia de estarmos nos dirigindo a Ele. Do mesmo

modo, podemos estar tão preocupados com a forma de nossas orações que nos es-quecemos do Pai;346 é a Ele que a nossa oração é destinada; portanto, cabe a Ele,

que vê em secreto, julgá-la. A nossa oração não necessita ter publicidade para que Deus a ouça; Ele vê em secreto e nos recompensa conforme o que vê (Mt 6.6). Isso

se aplica perfeitamente ao nosso culto e à advertência feita por Deus: �Oferece a

Deus sacrifício de ações de graça....� (Sl 50.14). Por intermédio de Isaías, Deus recrimina os judeus dizendo que eles sacrificavam simplesmente porque gostavam de fazê-lo, não porque quisessem agradá-lo: �Como

estes escolheram os seus próprios caminhos, e a sua alma se deleita nas suas a-

bominações, assim eu lhes escolherei o infortúnio e farei vir sobre eles o que eles

temem; porque clamei e ninguém respondeu, falei, e não escutaram; mas fizeram o

que era mau perante mim, e escolheram aquilo em que eu não tinha prazer� (Is 66.3-4). (Destaque meu). O culto não visa agradar pessoas ou satisfazer os nossos desejos pecaminosos

de apresentar uma �aeróbica cultual� ou um �show-culto�. Não usamos do culto para

nos promover, dar destaque a �autoridades� ou angariar votos ou simpatias. O culto

é oferecido a Deus conforme as próprias prescrições divinas; e Ele mesmo julgará a

nossa oferta: buscamos o prazer de Deus, a Sua santa satisfação (Is 66.4).347 O

346�Ele só reconhece aquilo que é recebido em obediência ao que Ele determina e ordena.

Saibamos que Deus é esquecido tão-logo os homens se desviem da Sua pura Palavra, e que

apostatam todos os que se desviam para cá e para lá, e não seguem ao que Deus aprova� [John Calvin, Commentaries on the Prophet Jeremiah and the Lamentations, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin�s Commentaries, Vol. IX), 1996 (reprinted), Vol. 2, (Jr 19.4-5), p. 438]. 347�.... Precisamos ensinar que o critério pelo qual avaliamos a adoração pública não é o

nosso prazer. É verdade que não há maior alegria do que glorificar e desfrutar de Deus de

todo o coração, alma, mente e força, e honrá-lo através da atenção à sua Palavra; mas o

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 77/108 senso de humor de Deus é bastante diverso do nosso; a nossa sutiliza pode ser o

caminho mais fácil e objetivo para o cadafalso. Deus pega os sábios em sua própria

�esperteza�: �Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus; porquanto

está escrito: Ele apanha os sábios na própria astúcia deles� (1Co 3.19/Jó 5.13). Não

tentemos manipular Deus para os nossos interesses pessoais: Deus não se presta a

isso. Ele é o Senhor e juiz. A falta do temor de Deus é que tem em muitas ocasiões

nos conduzido à irreverência e irresponsabilidade espiritual. Lembremo-nos: �O te-

mor do Senhor é o princípio da sabedoria; revelam prudência todos os que o prati-

cam. O seu louvor permanece para sempre� (Sl 111.10); �O temor do Senhor é o

princípio da sabedoria, e o conhecimento do Santo é prudência� (Pv 9.10). 2) NA LIBERDADE DO ESPÍRITO E NOS PARÂMETROS DA PALAVRA:

Portanto, a criatividade humana, que é um dos reflexos da imagem de Deus

em nós,348 deve estar submissa à instituição divina, pois, o Deus Trino que é ado-

rado, estabelece os princípios e as normas para este ato; deste modo, o que deter-mina a forma do culto, não pode ser um critério puramente estético ou sentimen-tal;349 mas sim, espiritual, teológico e racional; todos subordinados à Revelação: O

Culto cristão deverá ser sempre na liberdade do Espírito, dentro dos parâmetros da

Palavra e na integridade de nosso ser350 (Jo 4.23-24; Fp 3.3).351 Não existe culto

�em verdade� divorciado das Escrituras, a qual prescreve a forma, o conteúdo e a in-tegridade de nossa adoração a Deus. Kuyper comenta: �....Quando este ministé-

rio de sombras cumpriu os propósitos do Senhor, Cristo vem para profetizar a

hora quando Deus não mais será adorado no monumental templo em Jeru-

salém, pelo contraio, será adorado em espírito e em verdade. E em confor-

midade com esta profecia vocês não encontram nenhum vestígio ou som-

bra de arte com propósito de adoração em toda literatura apostólica. O sa-

cerdócio visível de Arão dá lugar ao sumo sacerdócio invisível segundo a or-

dem de Melquisedeque no céu. O puramente espiritual abre caminho atra-

teste da adoração é: Nossos corações estão se curvando, Deus está sendo honrado? Não

�estamos sendo satisfeitos?�, mas �Deus está sendo glorificado?��. (Peter White, O Pastor Mes-

tre, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 82). 348

Cf. Harold M. Best, Christian Responsability in Music. In: Leland Raken, ed., The Christian Imagi-

nation: essays on literature and the arts, 2ª ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1986, p. 403. 349

"O culto cristão contemporâneo é motivado e julgado por padrões diversos: seu valor de

entretenimento, seu suposto apelo evangélico, sua fascinação estética, até mesmo, talvez,

seu rendimento econômico. A herança litúrgica da Reforma nos recorda a convicção de

que, acima de tudo, o culto deve servir para o louvor do Deus vivo" (Tymothy George, Teologia

dos Reformadores, São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 317). 350

�Porque Deus é espírito, a adoração deve também ser praticada com integridade em

relação à fidelidade para com a revelação própria de Deus, porque ela deve ser �em ver-

dade�.� (Terry L. Johnson, Adoração Reformada: A adoração que é de acordo com as Escrituras, p. 29). 351

�Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em

espírito e em verdade; porque são estes que o Pai procura para seus adoradores. Deus é es-

pírito; e importa que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade� (Jo 4.23-24). ��.nós é que somos a circuncisão, nós que adoramos a Deus no Espírito, e nos gloriamos em

Cristo Jesus, e não confiamos na carne� (Fp 3.3).

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 78/108

vés da neblina do simbólico�.352 O culto espiritual é estabelecido por Deus mes-

mo.353 Portanto, a genuína adoração é submissa à auto-revelação de Deus, tanto

quanto à forma como quanto ao espírito. Não podemos separar o Espírito da Pala-vra. O Espírito honra exclusivamente a Sua Palavra, não a nossa. Calvino, conforme vimos, comentando o Livro de Isaías, escreve: �Da mesma forma, �a Palavra�

não pode ser separada �do Espírito�, como imaginam os fanáticos, que, des-

prezando a palavra, ufanam-se do nome do Espírito, e incrementam coisas,

como confidenciais, em suas próprias imaginações. É o espírito de Satanás

que é separado da palavra, a qual o Espírito de Deus está continuamente

unido�.354

Lembremo-nos o que já vimos na Confissão de Westminster (1647): �... O modo aceitável de adorar o verdadeiro Deus é instituído por Ele mesmo, e

é tão limitado pela sua própria vontade revelada, que Ele não pode ser ado-

rado segundo as imaginações e invenções dos homens, ou sugestões de Sa-

tanás, nem sob qualquer representação visível, ou de qualquer outro modo

não prescrito nas Santas Escrituras� (XXI.1). Por mais impressionante que seja a adoração planejada pelo homem, se ela não

for dirigida por Deus, através do Seu Espírito, não será aceita; não passará de uma

tentativa de boa obra humana no afã de conseguir o favor divino. O culto ao Senhor não pode ser a nosso bel-prazer, como quis Jeroboão e, também, de certa forma

Uzias, pois Deus o rejeita (1Rs 12.33-13.5; 2Cr 26.16-21).355 �Do Seu caminho

estão bem longe aqueles que pensam que podem agradar-lhe com obser-

352

Abraham Kuyper, Calvinismo, p. 155. 353

Vd. João Calvino, As Institutas, II.8.17. 354

John Calvin, Commentary on the Book of the Prophet Isaiah, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, (Calvin's Commentaries), 1996, Vol. VIII/4, (Is 59.21), p. 271. 355�No décimo quinto dia do oitavo mês, escolhido a seu bel-prazer, subiu ele ao altar que fizera em

Betel e ordenou uma festa para os filhos de Israel; subiu para queimar incenso. Eis que, por ordem do

SENHOR, veio de Judá a Betel um homem de Deus; e Jeroboão estava junto ao altar, para queimar

incenso. Clamou o profeta contra o altar, por ordem do SENHOR, e disse: Altar, altar! Assim diz o

SENHOR: Eis que um filho nascerá à casa de Davi, cujo nome será Josias, o qual sacrificará sobre ti

os sacerdotes dos altos que queimam sobre ti incenso, e ossos humanos se queimarão sobre ti. Deu,

naquele mesmo dia, um sinal, dizendo: Este é o sinal de que o SENHOR falou: Eis que o altar se fen-

derá, e se derramará a cinza que há sobre ele. Tendo o rei ouvido as palavras do homem de Deus,

que clamara contra o altar de Betel, Jeroboão estendeu a mão de sobre o altar, dizendo: Prendei-o!

Mas a mão que estendera contra o homem de Deus secou, e não a podia recolher. O altar se fendeu,

e a cinza se derramou do altar, segundo o sinal que o homem de Deus apontara por ordem do SE-

NHOR� (1Rs 12.33-13.5). �Mas, havendo-se já fortificado, exaltou-se o seu coração para a sua pró-

pria ruína, e cometeu transgressões contra o SENHOR, seu Deus, porque entrou no templo do SE-

NHOR para queimar incenso no altar do incenso. Porém o sacerdote Azarias entrou após ele, com oi-

tenta sacerdotes do SENHOR, homens da maior firmeza; e resistiram ao rei Uzias e lhe disseram: A

ti, Uzias, não compete queimar incenso perante o SENHOR, mas aos sacerdotes, filhos de Arão, que

são consagrados para este mister; sai do santuário, porque transgrediste; nem será isso para honra

tua da parte do SENHOR Deus. Então, Uzias se indignou; tinha o incensário na mão para queimar in-

censo; indignando-se ele, pois, contra os sacerdotes, a lepra lhe saiu na testa perante os sacerdotes,

na Casa do SENHOR, junto ao altar do incenso. Então, o sumo sacerdote Azarias e todos os sacer-

dotes voltaram-se para ele, e eis que estava leproso na testa, e apressadamente o lançaram fora; até

ele mesmo se deu pressa em sair, visto que o SENHOR o ferira. Assim, ficou leproso o rei Uzias até

ao dia da sua morte; e morou, por ser leproso, numa casa separada, porque foi excluído da Casa do

SENHOR; e Jotão, seu filho, tinha a seu cargo a casa do rei, julgando o povo da terra� (2Cr 26.16-21).

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 79/108

vâncias formuladas ao bel-prazer dos homens�.356 Se quisermos agradar o Se-nhor através do Culto somente a Ele devido, devemos procurar saber através da

Sua Palavra como Ele deseja ser cultuado... Na Antigüidade, o filósofo Sócrates (469-399 a.C.), fez uma pergunta, que revela uma percepção correta: "Haverá culto mais sublime e piedoso que o que pres-

creve a própria divindade?".357

Calvino (1509-1564) comentando o segundo Mandamento, diz:

�Portanto, o fim deste mandamento é que Deus não quer que Seu legí-

timo culto seja profanado mediante ritos supersticiosos.358

Pelo que, em

síntese, Ele nos recambia e afasta totalmente das insignificantes observân-

cias materiais que nossa mente bronca, em razão de sua crassitude, cos-

tuma inventar quando concebe a Deus. E, daí, nos instrui a Seu legítimo

culto, isto é, ao culto espiritual e estabelecido por Si Próprio. Assinala, a-

demais, o que é mais grosseiro defeito nesta transgressão: a idolatria exte-

rior�.359 Segundo Calvino, o problema está no padrão que o homem estabelece para

Deus: ele O analisa partindo de si mesmo, do seu gosto e preferências, não perce-bendo o salto qualitativo entre nós, pecadores que somos, e o soberano Deus, o

Senhor da Glória. �Os homens se dispõem naturalmente a exibição exterior da

religião, e, medindo Deus segundo a própria medida deles, imaginam que

alguma atenção para as cerimônias constitui a suma de seu dever�.360

�Tal é

a característica do mundo, sempre imaginando que Deus pode ser cultuado

de uma forma carnal, como se Ele mesmo fosse carnal�.361

Comentando Is 29.13 � �O Senhor disse: Visto que este povo se aproxima de mim e com a sua bo-

ca e com os seus lábios me honra, mas o seu coração está longe de mim, e o seu

temor para comigo consiste só em mandamentos de homens, que maquinalmente

aprendeu� �, escreve:

�Eu considero que (hrmlm) (melummadah) tem um sentido de passivi-

dade, pois Ele quer dizer que fazer dos �mandamentos dos homens�, e não

da Palavra de Deus, a regra para adorá-Lo, é uma subversão da ordem. A

vontade do nosso Deus, entretanto, é que o �temor� e a reverência com

que O adoramos devam ser regulados pela Sua Palavra, e Ele não exige

mais que uma mera obediência, pela qual devamos nos conformar e a

356

João Calvino, As Institutas, (1541), IV.15. 357

Xenofonte, Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, IV.3.16. p. 149. 358

�[Davi] mostra que não dava, como muitas pessoas inconstantes fazem, importância supersticiosa

às meras práticas externas da religião� [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 61.4), p. 564]. 359

João Calvino, As Institutas, II.8.17. Do mesmo modo, ver também: John Calvin, Calvin�s Commen-

taries, Vol. II/1, (Dt 18.9), p. 424-425; João Calvino, As Institutas, II.8.16; Breve Catecismo, Pergs. 49-52; Catecismo Maior, Pergs. 108-110; Confissão Belga, 7; Confissão de Westminster, 21.1. 360

João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 8.5), p. 208. 361

João Calvino, As Pastorais, (1Tm 4.3), p. 110.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 80/108

todas as nossas atitudes à Palavra sem nos desviarmos para direita ou pa-

ra a esquerda.

�Isso prova suficientemente que todos os que aprendem, por meio das

�invenções dos homens�, como deveriam adorar a Deus, não são apenas

néscios incontestes, mas desgastam-se em destrutivo labor, pois não fazem

mais que provocar a ira de Deus. Ele, portanto, não poderia demonstrar

mais claramente quão grande abominação sente pelo falso culto, do que

pela tremenda severidade dessa punição�.362 No dia 4 de julho de 1562, pregando no Segundo Livro de Samuel sobre a morte de Uzá, disse:

�Devemos por isso concluir que nenhuma de nossas devoções será a-

ceitável a Deus a menos que esteja conformada à Sua vontade. Tal pre-

ceito lança por terra todas as invenções humanas do assim chamado cul-

to a Deus do papado, que é tão cheio de pompa e tolice. Diante de Deus

tudo isso nada mais é que puro lixo e verdadeira abominação. Tenhamos

em mente, portanto, essa inequívoca regra: querer adorar a Deus segun-

do as nossas próprias idéias é simplesmente abuso e corrupção. Antes, pe-

lo contrário, precisamos ter o testemunho da Sua vontade para seguirmos

e submetermo-nos àquilo que nos tem ordenado. É assim que a adoração

que prestamos a Deus será aprovada�.363 Alhures, aludindo ao texto de 1Sm 15.22,364 escreve:

�Se tivéssemos de oferecer da nossa parte um sacrifício designado e

aceitável, argumentaríamos que não nos cabe inventar o que nos parecer

bom, nem obedecer ao que pode ser inventado pela mente de outra

pessoa, mas limitar-nos-íamos simplesmente à pureza da Escritura. (...)

Quando supomos poder servir a Deus ao nosso próprio modo, Ele o repu-

dia como corrupção�.365

Calvino entende que quando os homens enveredam pelas tradições, mais se per-dem dentro de um emaranhado de superstições:

362

John Calvin, Commentaries on the Book of the Prophet Isaiah, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin�s Commentaries, Vol. VII), 1996 (Reprinted), Vol. 2, (Is 29.13), p. 324-325. �To-

dos quantos querem servir a Deus com suas novas fantasias, honram e adoram seus desati-

nos, pois nunca se atreveriam a defraudar a Deus desta maneira, se antes não houvessem

forjado um Deus que fora igual aos seus desatinados desvarios� [Juan Calvino, Institución, I.4.3]. Ver também: J. Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 2, p. 12-13. 363

John Calvin, Sermons on 2 Samuel, Carlisle, Pennsylvania: The Banner of Truth Trust, 1992, p. 246. 364�Porém Samuel disse: Tem, porventura, o SENHOR tanto prazer em holocaustos e sacrifícios

quanto em que se obedeça à sua palavra? Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar, e o aten-

der, melhor do que a gordura de carneiros� (1Sm 15.22). 365

John Calvin, �Brief Form of a Confession of Faith,� John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), Cap. 17, p. 141.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 81/108

�Pois desde que os homens começaram a criar leis para regularem o

ato de culto a Deus e para subjugarem a consciência, não há mais fim

nem conta delas, ao passo que, por outro lado, Deus tem punido tal teme-

ridade, cegando-os com ilusões tais que podem fazê-los estremecer.

Quando nos prestamos a examinar de perto o que são realmente as tradi-

ções humanas, descobrimos que são um abismo, e que o número delas é

infindável. E há, contudo, abusos tão absurdos e enormes, que é espanto-

so o quanto os homens são estúpidos � não fosse Deus ter levado a efeito

a vingança que anunciou pelo Seu profeta Isaías (Is 29.14), cegando e en-

fatuando o sábio que pretendesse adorá-Lo observando mandamentos

de homens�.366

A insolência humana está em pretender que Deus se agrade de algo contrário ao

que Ele mesmo prescreveu, como se pudéssemos ensinar algo a Deus e ainda me-lhor do que aquilo que Ele mesmo nos ensina. Precisamos nos lembrar que a Lei de Deus é perfeita e nela temos as prescrições de Deus para nós e para nossos filhos,

para que as cumpramos (Dt 29.29/Sl 119.4): �O pior de tudo, entretanto, é que,

não obstante tenha Deus com tanta freqüência e rigor interditado todos os

modos de culto prescritos pelo homem, a única forma de adoração que Lhe

foi prestada consistiu de invenções humanas�.367 �Vemos a extraordinária in-

solência que os homens demonstram quanto à forma e à maneira de adorar

a Deus; pois estão perpetuamente criando novos modos de culto, e quando

alguém quer ser considerado mais sábio que os outros, demonstra a sua ca-

pacidade inventiva nesse assunto. (...) Deus declarou o modo pelo qual de-

seja que devamos adorá-Lo, e incluiu na Sua lei a perfeição de santidade.

Contudo, um grande número de homens, como se obedecer a Deus e

guardar o que Ele ordena fosse uma questão leve e trivial, coleciona para si

mesmos muitos acréscimos advindos de todo lugar. Os que ocupam posição

de autoridade apresentam as suas invenções com esse propósito, como se

possuíssem alguma coisa mais perfeita que a Palavra do Senhor. (...) O mun-

do não suporta a legítima autoridade, e revela-se mais violentamente contra

o jugo do Senhor, não obstante é docilmente e de boa-vontade que se em-

baraça nas ciladas das tradições inúteis; ou melhor, tal escravidão parecer

ser, no caso de muitos, um objeto de desejo, ao passo que o culto a Deus,

do qual o primeiro e supremo princípio é a obediência, é corrompido. Prefe-

re-se a autoridade de homens aos mandamentos de Deus. (...) Todos os

momentos de culto inventados pelos homens não agradam a Deus, porque

Ele determina que Ele apenas é que deve ser ouvido, para nos treinar e ins-

truir na verdadeira piedade conforme o Seu agrado�.368

Em outro lugar:

366

John Calvin, �Brief Form of a Confession of Faith,� John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), Cap. 18, p. 142. 367

John Calvin, �The Necessity of Reforming the Church,� John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), p. 217. 368

John Calvin, Commentary on a Harmony of the Evangelists, Mattew, Mark, and Luke, Grand Rap-ids, Michigan: Baker, (Calvin�s Commentaries, Vol. XVI), 1981, Vol. 2, (Mt 15.1), p. 245-246.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 82/108

�Paulo sabia, de fato, que todas as maneiras de servir a Deus inventa-

das pelos homens estavam condenadas, e que, quanto mais deleite pro-

piciasse à natureza humana, mais tidas por suspeita seria aos fiéis; ele sa-

bia que a falsa aparência de humildade exterior está tão distante da ver-

dadeira humildade quanto é facilmente reconhecida como tal�.369

Conforme já fizemos menção, Calvino acrescenta: �É evidente, à luz desse fato,

que os homens cultuarão a Deus inutilmente, se porventura não observarem

o modo correto....�.370 �Pelo que, nada de surpreendente, se o Espírito Santo

repudie como degenerescências a todos os cultos inventados pelo arbítrio

dos homens....�.371 �Deus só aceita a aproximação daqueles que o buscam com

sincero coração e de maneira correta�.372 �Em vão é Deus adorado, quando a

doutrina é substituída pela vontade do homem.373

(...) É Deus quem estatui

que não será adorado de nenhum outro modo exceto conforme à Sua pró-

pria determinação. Ele não pode tolerar a invenção de outros novos modos

de culto. Tão logo os homens permitam a si mesmos andarem errantes para

além dos limites da Palavra de Deus, quanto mais labor e ansiedade de-

monstrem a adorá-Lo, tanto mais pesada é a condenação que trazem sobre

si mesmos, porque, por tais invenções, é que a religião é desonrada. (...) To-

dos os tipos de culto inventados pelos homens não têm, a Seus olhos, a me-

nor valia; mais ainda, que, assim, como declara o profeta [1Sm 15.22,23], eles

são malditos e detestáveis�.374 �Precisamos escutar a voz de Deus, e ouvir a

sua consideração quanto à profanação do culto que se dá quando os ho-

mens, ultrapassando os limites da Sua Palavra, atiram-se à larga em suas

próprias invenções�.375 �São abomináveis todas as formas de culto que os

homens inventam de si próprios�.376

369

J. Calvino, As Institutas, I.10.11. 370

João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 11.6), p. 305. 371

João Calvino, As Institutas, I.5.13. 372

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 50.23), p. 420. 373

�Não devemos buscar no homem a verdadeira doutrina do culto a Deus, porque Deus

tem fiel e plenamente nos instruído de que modo devemos adorá-Lo. (...) No final do capítu-

lo ele [Paulo] condena mais vigorosamente toda religião auto-imposta, isto é, a todo culto

fingido, que os homens criaram por si mesmos ou receberam de outros, e a todos os precei-

tos que se atrevem a promulgar no que respeita ao culto a Deus (Cl 2.16-23)� (João Calvino,

As Institutas, IV.10.8). 374

John Calvin, Commentary on a Harmony of the Evangelists, Mattew, Mark, and Luke, Vol. XVI/2, (Mt 15.9), p. 253-254. 375

John Calvin, �The Necessity of Reforming the Church,� John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), p. 250. 376

João Calvino, As Institutas, I.11.4.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 83/108 3) O PRAZER DA OBEDIÊNCIA APRENDIDA:

Se de fato desejamos adorar a Deus de forma agradável a Ele, precisamos

meditar séria e sinceramente nas Escrituras. A meditação é o prelúdio à ação. A Pa-lavra foi-nos dada, conforme nos ensinam as Escrituras, para que a cumpramos. O que Deus nos revelou e fez registrar nas Escrituras tem este objetivo expresso: "As cousas encobertas pertencem ao Senhor nosso Deus; porém as reveladas nos

pertencem a nós e a nossos filhos para sempre, para que cumpramos todas as pala-

vras desta lei� (Dt 29.29). A Josué, quando inicia o seu comando do povo de Israel, Deus ordena: "Não ces-

ses de falar deste livro da lei; antes medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado

de fazer segundo a tudo quanto nele está escrito; então farás prosperar o teu cami-

nho e serás bem sucedido� (Js 1.8). O Salmista, inspirado por Deus, escreve: "Tu ordenaste os Teus mandamentos,

para que os cumpramos à risca� (Sl 119.4. Vd. Sl 119.8,51,106,167). Portanto, "a

Bíblia não foi dada para satisfazer a vã curiosidade, mas para edificar nossas

almas�.377 Desta forma, não basta ouvir e meditar; esses devem ser passos conducentes à

prática; temos que treinar os nossos pés na vereda da justiça. A obediência a Deus

deve ser exercitada diariamente: "Quanto às ações dos homens, pela palavra dos

teus lábios eu me tenho guardado dos caminhos do violento. Os meus passos se a-

fizeram às tuas veredas, os meus pés não resvalaram� (Sl 17.4-5). "Bem-

aventurados os irrepreensíveis no seu caminho, que andam na lei do Senhor� (Sl 119.1. Vejam-se: Dt 30.14; Rm 2.13; Tg 1.22-25). A Bíblia usa diversas expressões que indicam o cumprimento da Palavra de Deus

por parte dos seus servos; entre elas, citamos: 1) Fazer a vontade de Deus (Sl 40.8); 2) Andar sem se desviar, nem se afastar (Js 1.8; 22.5; 23.6; Jó 23.12; Sl 18.22; Sl

119.1); 3) Perseverar (Tg 1.25); 4) Considerá-La por inteiro (Tg 2.10,11); 5) Habita neles (Cl 3.16); 6) Cumpri-la (Dt 30.14; Js 1.8); 7) Observá-la (Sl 119.9, 17). Notemos que este praticar percorre muitas vezes o caminho de uma análise in-trospectiva, através da qual vemos o nosso comportamento e o avaliamos a partir da

Palavra, para que pela misericórdia de Deus, possamos corrigi-lo: "Considero os

meus caminhos, e volto os meus passos para os teus testemunhos� (Sl 119.59). O exercício da prática da Palavra de Deus nos leva invariavelmente à satisfação

de poder cumpri-la. Quando nos submetemos a Deus, encontramos a alegria de o-bedecer-Lhe, descobrindo a agradabilidade da vontade de Deus na submissão a ela,

no seu exercício. Deste modo, temos o testemunho de alguns servos de Deus, entre

os quais destacamos três: Davi pôde escrever: �Agrada-me fazer a tua vontade, ó

Deus meu; dentro em meu coração está a tua lei� (Sl 40.8). O prazer do salmista em praticar a Palavra era precedido pelo guardar a Lei de Deus no coração. A medita-ção precede a ação e o meditar deve levar à sedimentação do que aprendemos. O

377 A.W. Pink, Deus é Soberano, São Paulo: Fiel, 1979, p. 137.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 84/108 Espírito age dirigindo os nossos pés pela vereda da verdade, fazendo com que, e-ducados por Ele, adquiramos novos hábitos, nova perspectiva através da prática da verdade.378 O salmista descreve assim o caminho dos justos: �Antes o seu prazer

está na lei do Senhor, e na Sua lei medita de dia e de noite� (Sl 1.2). Em outro lugar o salmista diz: �Com efeito, os teus testemunhos são o meu prazer, são os meus

conselheiros� (Sl 119.24. Vd. Sl 119.16,47,77,92, 111,143,174) Nós só poderemos nos alegrar nas veredas da justiça se tivermos os nossos co-rações educados na compreensão e prática da Palavra de Deus. O salmista ora nes-te sentido: "Dá-me entendimento, e guardarei a Tua Lei; de todo o coração a cumpri-

rei� (Sl 119.24/Sl 119.18). Calvino, corretamente estava convencido de que ninguém

pode �provar sequer o mais leve gosto da reta e sã doutrina, a não ser aque-

le que se haja feito discípulo da Escritura�.379 Em outro lugar, insiste: �Se, pois,

tivermos uma boa norma para governar-nos, quando nossos inimigos, através

de suas ações nocivas, nos provocam a tratá-los de modo semelhante, a-

prendamos, à luz do exemplo de Davi, a meditar na Palavra de Deus e a

manter nossos olhos fixos nela. Com isso nossas mentes serão preservadas de

perene cegueira, e evitaremos sempre as veredas da perversidade, visto que

Deus não só manterá nossos sentimentos restringidos por seus mandamentos,

mas também exercitará nossa paciência frente às suas promessas�.380

O obedecer a Deus envolve o aprendizado da fé. Paulo diz que a vontade de

Deus é �boa� (Rm 12.2), mas, num plano imediato, ela nem sempre nos parece �a-gradável�. A rigor, ela nunca nos parecerá agradável enquanto não submetermos os

nossos desejos ao desejo de Deus, a nossa mente à mente de Deus, a nossa von-tade à vontade de Deus. A nossa adoração deve ser aperfeiçoada com o objetivo fi-nal de ser mais agradável a Deus e, deste modo, num segundo plano, sem dúvida,

será agradável a nós. Precisamos aprender a pensar, a sentir e a desejar biblica-mente; educar a nossa mente, emoções e vontade à luz da Palavra; somente assim

poderemos nos agradar no agrado de Deus; nos aprazer no caminho de Deus. Por-tanto, a questão é: agradável a quem? A nossa alegria e prazer devem estar na sa-tisfação de Deus. �Quando nos distraímos de nosso Senhor da aliança e nos

preocupamos com nosso próprio conforto e prazer, algo seriamente errado

aconteceu com nosso culto�.381 A palavra usada por Paulo (Eu)a/restoj)382 prescreve sempre o sentido de agra-dável a Deus; quer direta, quer indiretamente � por estarmos obedecendo aos Seus preceitos. A vontade de Deus não tem o propósito de nos agradar num plano pura-

378

Vd. J.I. Packer, Na Dinâmica do Espírito, São Paulo: Vida Nova, 1991, p. 104-105; Russel P. Shedd, Lei, Graça e Santificação, São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 98-103. 379

J. Calvino, As Institutas, I.6.2. 380

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 17.4), p. 332-333. 381

John Frame, Em Espírito e em Verdade, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 25. 382

*Rm 12.1,2; 14.18; 2 Co 5.9; Ef 5.10; Fp 4.18; Cl 3.20; Tt 2.9; Hb 13.21. O verbo Eu)areste/w o-corre apenas três vezes indicando especificamente agradar a Deus (*Hb 11.5.6; 13.16). Na LXX este verbo é usado basicamente com o sentido de �andar com Deus� ou na presença de Deus (Vd. Gn

5.22,24; 6.9; 17.1; 24.40; 48.15; Sl 26.3). O advérbio eu)are/stwj ocorre uma única vez, com o mes-mo sentido de servir a Deus de modo agradável (Hb 12.28).

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 85/108 mente superficial, antes ela nos agrada quando a conseguimos entender pelo Espíri-to de Deus ou, numa primeira instância, quando, pelo Espírito, podemos nos alegrar

na esperança que emana de Deus (Rm 12.12). A Palavra de Deus é toda-inclusiva: a obediência a Deus não tem contra-indicação. Nunca seremos infelizes por obedecer a Deus. A obediência não gera

equívocos, desequilíbrio ou frustração. A Palavra de Deus e Suas promessas per-manecem para sempre. Deus mesmo levará a cabo Seus desígnios. A vontade de Deus sempre será agradável àqueles que desejarem viver em co-munhão com Ele. Portanto, quando assim oramos, �faça-se a Tua vontade�, estamos dizendo: Senhor, faze a Tua vontade, pois sei que na medida em que eu me consa-grar a Ti, mais prazer terei na Tua Palavra, mais agradável ela será a mim, como é

para Ti. Antes do povo de Israel entrar na Terra Prometida, Deus o adverte para que não

imite o modelo pagão. Então, Deus o exorta estabelecendo um princípio positivo que deveria seguir: �Tudo o que eu te ordeno, observarás; nada lhe acrescentarás nem

diminuirás� (Dt 12.32). Este é o princípio que deve governar todo o nosso relaciona-mento com Deus: a obediência. Deus é glorificado através de nossa obediência à

Sua Palavra. Deus tem prazer em que Lhe obedeçam: �Aqueles que O invocam,

Lhe fazem súplicas e O louvam têm um grande consolo em saber que, fa-

zendo isso, obedecem ao Seu mandamento e à Sua vontade, e que fazem

algo agradável a Ele, uma vez que Ele declara que nada Lhe é mais aceitá-

vel que a obediência�.383 �Ninguém é verdadeiro adorador de Deus senão

aqueles que reverentemente obedecem a Sua Palavra�.384 A desobediência

será sempre estéril em nos conduzir a Deus em submissão, adoração e gratidão. No

culto a Deus, portanto, �o primeiro e supremo princípio é a obediência....�.385 A salvação é por graça e a nossa gratidão se manifesta em santificação. Por outro la-do, a desobediência é pródiga na geração de superstição, idolatria e dissolução. A-partar-se de Deus caminhando em direção à superstição e idolatria consiste numa

�fornicação espiritual�.386 Portanto, não nos iludamos; o amor a Deus é mais do

que mero sentimento, é obediência em amor. O conhecimento de Deus é uma expe-riência de amor, que se revela em nossa obediência aos Seus mandamentos. Calvi-no comentando o texto de Deuteronômio diz: �Nesta pequena cláusula Ele ensina

que não há outro ato de culto considerado lícito por Deus a não ser aquele

que Ele deu Sua aprovação na Sua Palavra, e que a obediência é a mãe da

piedade; é como se Ele tivesse dito que todos os modos de devoção são ab-

surdos e infectados com superstição, quando não são dirigidos por esta re-

gra. (...) Ao proibir o acréscimo ou a diminuição de qualquer coisa, Ele cla-

ramente condena como ilegítimo tudo o que os homens inventam pela sua

383

João Calvino, As Institutas, (1541), III.9. 384

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 3, (Sl 103.18), p. 603. 385

John Calvin, Commentary on a Harmony of the Evangelists, Mattew, Mark, and Luke, Vol. XVI/2, (Mt 15.1), p. 246. �Em vão se tentam novas modalidades de obras para ganhar-se o favor de

Deus, Cujo culto genuíno consta da só obediência� (João Calvino, As Institutas, II.8.5). 386

Juan Calvino, O Catecismo de Genebra, Perg. 152. In: Catecismos de la Iglesia Reformada, Bue-nos Aires: La Aurora, 1962.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 86/108

própria imaginação�.387 �Porque sempre que entra no coração dos homens

a superstição de querer adorar a Deus com as suas próprias invenções, todas

as leis decretadas com esse propósito degeneram imediatamente nesses

graves abusos�.388 �Os que primeiramente inventaram novas formas de cul-

to, seguiram sem dúvida às suas próprias e tolas imaginações; como quando

se pergunta hoje aos papistas por que se fatigam tanto com suas supersti-

ções, o escudo deles sempre é a boa intenção. �Oh achamos que isso seja

agradável a Deus�. Deus, portanto, repudia as invenções deles como total-

mente inúteis, pois nada possuem de sólido ou permanente�.389 �Deve-se

defender a obediência como a base de toda verdadeira religião. Se, então,

por outro lado, desejamos apresentar a Deus o nosso culto por Ele aprovado,

aprendamos a lançar fora tudo que for de nós mesmos, de modo que a Sua

autoridade prevaleça acima de todas as nossas razões�.390

Em outro lugar in-siste na necessidade de sermos obedientes a Deus se quisermos apresentar-Lhe um culto agradável: �Deus só é corretamente servido quando sua lei for obe-

decida.391

Não se deixa a cada um a liberdade de codificar um sistema de

religião ao sabor de sua própria inclinação, senão que o padrão de piedade

deve ser tomado da Palavra de Deus�.392 �Portanto, em nosso curso de a-

ção, deve-se-nos ter em mira esta vontade de Deus que Ele declara em Sua

Palavra. Deus requer de nós unicamente isto: o que Ele preceitua. Se inten-

tamos algo contra o Seu preceito, obediência não é; pelo contrário, contu-

mácia e transgressão�.393 �Nosso louvor só pode ser aprovado por Deus se o

mesmo repousar sobre a pura verdade�.394

Em síntese, como vimos: �Todas as formas de culto são defectivas e profa-

nas, a menos que Cristo as purifique pela aspersão de seu sangue�.395

387

John Calvin, Commentaries on the Four Last Books of Moses, Vol.II/1, (Dt 12.32), p. 453. 388

João Calvino, As Institutas, IV.10.16. 389

John Calvin, Commentaries on the Prophet Jeremiah and the Lamentations, Vol. IX/2, (Jr 19.4-5), p. 439. �Uma parte da reverência que Lhe é devida consiste simplesmente em adorá-Lo da

forma que Ele ordena, sem misturar as nossas próprias invenções. (�) Não obstante muitas

vezes no culto inventado pelos homens a impiedade não seja claramente vista, ainda assim

ela é condenada severamente pelo Espírito, porque desvia-se do preceito de Deus. (�) As

invenções humanas no culto a Deus são outras tantas corrupções. E quanto mais a vontade

de Deus nos é revelada, tanto menos inescusável é a nossa ousadia ao tentar alguma coi-

sa� (João Calvino, As Institutas, IV.10.23). 390

John Calvin, Commentaries on the Prophet Jeremiah and the Lamentations, Vol. 1, (Jr 7.21-24), p. 398. Ver também: O Catecismo de Genebra, Pergs. 149,152. In: Catecismos de la Iglesia Reformada, Buenos Aires: La Aurora, 1962. 391

�Ninguém, pois, será tido como (verdadeiro) discípulo da Lei, a não ser os que somente

dela obtêm sua sabedoria� [John Calvin, Commentaries on the Four Last Books of Moses, Vol.II/1, (Dt 4.1), p. 345]. 392

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 1.2), p. 53. 393

João Calvino, As Institutas, I.17.5. 394

João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000, Vol. 1, (Dn 3.8-13), p. 199. 395

João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 9.18), p. 238.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 87/108 Portanto meus irmãos, Deus requer unicamente de nós a fidelidade aos Seus

preceitos: nada acrescentemos, nada tiremos. I) Culto espiritual: O culto é no espírito e pelo Espírito Santo. O homem foi criado para prestar culto e isto o distingue dos animais.396 O culto deve ser dentro da iluminação do Es-pírito, com o dinamismo que Lhe é próprio, em harmonia com a Palavra de Deus re-gistrada conforme a inspiração do mesmo Espírito (2Tm 3.16; 2Pe 1.20-21). �O úni-

co que verdadeiramente adora a Deus em espírito é aquele cujo espírito es-

tá sob o controle do Espírito Santo�.397

Hendriksen (1900-1982), comentando o texto de Filipenses 3.3, diz:

�Sua adoração religiosa é guiada pelo Espírito. Ela procede de persona-

lidades renovadas e energizadas pelo Espírito Santo. Portanto, ela emana

completamente do coração, e não é afetada por considerações físi-

cas�.398

J) Culto é Adoração:

A Igreja é vocacionada por Deus para prestar-Lhe culto (1Pe 2.9-10).399 No culto, mais do que cânticos, orações e ofertas, nós oferecemos a nós mesmos a

Deus. Somos chamados por Deus para esta gloriosa e específica tarefa que envolve

toda a nossa existência: cultuar é a razão de ser da Igreja. No entanto, o que tenho

observado, digo isso com bastante cautela, é que a Igreja tem se �especializado� em

�evangelização� e não em �adoração�. O novo convertido é direcionado psicologica-mente (recrutado), mas do que teologicamente, a �evangelizar�, não à adoração e ao

crescimento espiritual.400 Parece-me que em nossas igrejas � especialmente quan-do há metas e propósitos estrategicamente estabelecidos para o Espírito Santo �, o culto é todo organizado para atingir os visitantes, propiciar emoções cativantes, am-biente agradável e bem cronometrado. Note bem: não estou sustentando que evan-gelizar seja algo acidental na vida da Igreja, que o culto não deva ser biblicamente

agradável e que não tenha hora para começar nem para terminar... O que estou

querendo dizer é que temos corrido o sério risco de esvaziar o sentido de adorar a Deus, submetendo a adoração ao que chamamos de evangelização: anunciar a sal-

396

João Calvino, As Institutas, I.3.3. 397

R.B. Kuiper, El Cuerpo Glorioso de Cristo, p. 332. 398

William Hendriksen, Exposição de Filipenses, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, p. 198. Vejam-se: João Calvino, As Institutas, III.20.30; IV.10.14; Confissão de Westminster, 21.6. 399

�Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de

Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa

luz; vós, sim, que, antes, não éreis povo, mas, agora, sois povo de Deus, que não tínheis alcançado

misericórdia, mas, agora, alcançastes misericórdia� (1Pe 2.9-10). 400 Vejam-se as pertinentes críticas de Tozer. (A.W. Tozer, O Poder de Deus, 2ª ed. São Paulo:

Mundo Cristão, 1986, p. 114).

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 88/108 vação aos incrédulos. Ou, incorrer numa inversão de valores, conforme acentua Kui-per: �O que deveria ser secundário, com freqüência é tomado como princi-

pal. O que deve servir de meio é considerado como fim. Os cristãos se reú-

nem na igreja para alegria dos santos. Isso, por certo é bom, na medida que

é assim, porém isso não é suficiente. Os cristãos devem ir à igreja para ter

comunhão com Deus. Se celebram os cultos de adoração com a esperança

de que os pecadores sejam salvos através da pregação da Palavra de Deus,

não há dúvida que isto é bom; porém, não podemos nos esquecer que a

salvação dos pecadores é um meio para glorificar a Deus�.401 A meta funda-

mental da Igreja é adorar a Deus como Ele mesmo ordenou, e levar o Evangelho a todos os povos. Todas as nossas demais atividades devem se adequar a essas.402 Aiden W. Tozer (1897-1963) enfatiza: �O que passamos por alto é que ninguém

pode ser um trabalhador, se primeiro não for um adorador. O trabalho que

não procede do culto é fútil, e não passará de madeira, feno e palha no dia

que há de julgar as obras dos homens. Pode-se afirmar como axioma que, se

não adorarmos, não poderemos trabalhar aceitavelmente�.403

Para Calvino, o culto cristão oferecido conforme a vontade de Deus é a síntese da

vida cristã: �Então, se se questionar quais são as principais razões por que a re-

ligião cristã tem uma duradoura existência entre nós, saber-se-á que as duas

seguintes não são apenas as principais, mas compreendem em si mesmas

todas as outras partes e, por conseguinte, toda a substância do cristianismo,

a saber: primeiro: o conhecimento do modo pelo qual Deus é devidamente

adorado; e segundo, de qual fonte deve-se obter a salvação. Quando essas

duas são mantidas fora de perspectiva, embora possamos nos gloriar no

nome de cristão, a nossa profissão será vazia e vã�.404

Dentro daquela visão limitante de culto, o cantar, orar, participar da Ceia, ler as

Escrituras, consagrar os nossos dízimos e ouvir o sermão, não tem valor se não for

marcado por �conversões�. Meus irmãos, Deus deve ser adorado não simplesmente

pelo que Ele faz mas, pelo que Ele é.405 O fazer de Deus é sempre uma manifesta-

ção daquilo que Ele é na Sua essência. Por isso, nós cultuamos a Deus na beleza de Sua santidade. Nunca a Igreja é tão edificada do que quando ela glorifica a

Deus!406 O nosso culto deve ser, essencialmente, um ato de glorificação a Deus;407

401 R.B. Kuiper, El Cuerpo Glorioso de Cristo, p. 327-328. 402 Vd. Terry L. Johnson, Adoração Reformada: A adoração que é de acordo com as Escrituras, p. 20-21; Michael S. Horton, O Cristão e a Cultura, p. 83. 403

A.W. Tozer, O Poder de Deus, 2ª ed. São Paulo: Mundo Cristão, 1986, p. 114. 404

John Calvin, �The Necessity of Reforming the Church,� John Calvin Collection, [CD-ROM], (Al-bany, OR: Ages Software, 1998), p. 196. 405 �O verdadeiro culto é louvor a Deus por quem Ele é e pelo que ele tem feito e, se isto

não for o centro e coração do que estamos fazendo, o nosso, assim chamado, culto, não é

um verdadeiro culto� (James M. Boice, O Evangelho da Graça, São Paulo: Editora Cultura Cristã,

2003, p. 166). 406

Vd. R.B. Kuiper, El Cuerpo Glorioso de Cristo, p. 328. 407

�Não busquemos as coisas que nos agradam, mas sim as que agradam a Deus e que se

prestam para exaltar a Sua glória� [João Calvino, As Institutas, (1541), IV.17]. �Não busquemos

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 89/108 ou seja: o reconhecimento de Sua majestade em Si mesmo e nos Seus atos. �Tribu-

tai ao SENHOR a glória devida ao seu nome; trazei oferendas e entrai nos seus á-

trios; adorai o SENHOR na beleza da sua santidade.(1Cr 16:29).408 Quando nos fal-ta esta compreensão e o desejo de contemplar a �beleza� do Senhor, só nos resta,

numa atitude pagã, buscar a �beleza� que se acomode ao nosso gosto pecaminoso,

contratando para isso quem possa nos entreter. �O sacerdote idólatra escolhe

(rAhfB)409 madeira que não se corrompe e busca um artífice perito para assentar uma

imagem esculpida que não oscile� (Is 40.20/Is 44.14). �O artífice em madeira estende

o cordel e, com o lápis, esboça uma imagem; alisa-a com plaina, marca com o com-

passo e faz à semelhança e beleza de um homem, que possa morar em uma casa/� (Is 44.13). Através do profeta Isaías Deus fala da loucura de servir a outros deuses, mostrando que �Todos os artífices de imagens de escultura são nada, e as suas coi-

sas preferidas são de nenhum préstimo; eles mesmos são testemunhas de que elas

nada vêem, nem entendem...� (Is 44.9). Conforme já citamos, �A demanda gera o

suprimento. Os ouvintes convidam e moldam os seus próprios pregadores. Se

as pessoas desejam um bezerro para adorar, o ministro que fabrica bezerros

logo é encontrado�.410

Creio que a observação de Stott está correta: �A igreja nem sempre é conhe-

cida pela realidade profunda de sua adoração. De maneira especial, nós,

os que nos denominamos �evangelicais�, não sabemos bem como adorar.

Nossa especialidade é evangelizar � mas adorar, não. Parece que não te-

mos muita consciência da grandeza e da glória de Deus. Nós não sabemos

prostrar-nos diante dele em temor e admiração�.411

John Piper, escrevendo sobre Missões, inicia o seu livro de forma surpreenden-temente objetiva: as cousas que são nossas, mas aquelas que não somente sejam da vontade do Senhor, co-

mo também contribuam para promover-lhe a glória� (João Calvino, As Institutas, III.7.2). 408�Uma coisa peço ao SENHOR, e a buscarei: que eu possa morar na Casa do SENHOR todos os

dias da minha vida, para contemplar a beleza do SENHOR e meditar no seu templo� (Sl 27.4). �Tribu-

tai ao SENHOR a glória devida ao seu nome, adorai o SENHOR na beleza da santidade� (Sl 29.2). �Adorai o SENHOR na beleza da sua santidade; tremei diante dele, todas as terras� (Sl 96.9). 409 A principal palavra usada no Antigo Testamento para designar eleição é o verbo rAhfB (�Bãhar�),

que significa, �escolher�, �eleger�, �decidir por�, etc. O verbo e os seus derivados ocorrem 198 vezes

no Antigo Testamento (Vd. John N. Oswalt, Bãhar: In: R. Laird Harris, et al. eds. Theological Word-book of the Old Testament, 2ª ed. Chicago: Moody Press, 1981, Vol. I, p. 100; G. Quell, E)kle/gomai: In: G. Kittel & G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michi-gan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), Vol. IV, p. 146), havendo o predomínio do seu emprego na modali-dade �qal� (146 vezes). (Cf. H. Wildberger, Elegir: In: Ernst Jenni & Claus Westermann, eds. Dicciona-

rio Teologico Manual Del Antiguo Testamento, Madrid: Ediciones Cristiandad, 1978, Vol. 1, p. 409a) que indica uma ação completa (Cf. A.B. Davidson, An Introductory Hebrew Grammar, 24ª ed. Edin-burgh: T. & T. Clark, (Revised Throughout by John Edgar McFadyen), (Reprinted), 1934, § 20, p. 71-72). �Bãhar�, apesar de não ser necessariamente teológico, apresenta sempre a idéia de uma escolha criteriosa, bem pensada �� daí, também o seu sentido de �testar�, �examinar� (Is 48.10; Pv 10.20) �, levando em consideração as opções (1Sm 17.40; 1Rs 18.25; Is 1.29; 40.20); o que não significa que

as escolhas humanas sejam sempre as melhores como a ilustrada na passagem de Is 40.20. 410

Marvin R. Vincent, Word Studies in the New Testament, Peabody, MA.: Hendrickson Publishers, [s.d.], Vol. 4, (2Tm 4.3), p. 321. 411 John R.W. Stott, Ouça o Espírito, Ouça o Mundo, São Paulo: ABU Editora, 1997, p. 252.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 90/108

�As missões não representam o alvo fundamental da igreja, a adoração

sim. As missões existem porque não há adoração, ela sim é fundamental,

pois Deus é essencial e não o homem. Quando esta era se encerrar e os

incontáveis milhões de redimidos estiverem perante o trono de Deus, não

haverá mais missões. Elas representam, no momento, uma necessidade

temporária. Mas a adoração permanece para sempre.

�A adoração é, portanto, o combustível e a meta das missões. É a meta

das missões porque nelas simplesmente procuramos levar as nações ao

júbilo inflamado da glória de Deus. O alvo das missões é a alegria dos po-

vos na grandiosidade de Deus (Sl 97.1; 67.3-4)....

�As missões começam e terminam com a adoração.

�Se a busca da glória de Deus não for colocada acima da busca do

bem do homem nas afeições do coração e nas prioridades da igreja, o

homem não será bem servido e Deus não será devidamente honrado.

Não estou pleiteando por uma diminuição de missões, mas pela exaltação

de Deus. Quando a chama da adoração arder com o calor da verdadei-

ra excelência de Deus, a luz das missões brilhará para os povos mais remo-

tos da terra. Eu anseio para a chegada desse dia!

�Onde a paixão por Deus é fraca, o zelo pelas missões será fraco�.412

�As missões não são a meta suprema de Deus, a adoração, sim�.413

�A razão mais importante para a adoração ser o alvo das missões é por-

que ela é a meta de Deus�.414

A nossa perspectiva começará a mudar quando pudermos, independentemente

do pregador, dizer como Davi: �Alegrei-me quando me disseram: Vamos à casa do

Senhor� (Sl 122.1).

412

John Piper, Alegrem-se os Povos: a supremacia de Deus em missões, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, p. 13-14. 413

John Piper, Alegrem-se os Povos: a supremacia de Deus em missões, p. 17. 414

John Piper, Alegrem-se os Povos: a supremacia de Deus em missões, p. 18.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 91/108

6. O DESAFIO REFORMADOR: A PALAVRA DE DEUS COMO ÓCU-

LOS:

�Um edifício inclinado � aquele que

é construído sobre fundações instáveis,

quer seja a ênfase unilateral à trans-

cendência ou à imanência � não pode

ser �consertado� com uma simples re-

forma, procurando-se incluir o elemento

que estava faltando. Pelo contrário, o

engenheiro da construção teológica

deve começar do zero. Isso porque,

quando as fundações não são lança-

das corretamente, não há mudanças

cosméticas que sejam capazes de criar

uma estrutura durável� � Stanley J. Grenz

& Roger E. Olson.415

A) A Verdade Objetiva de Deus:

Na Oração Sacerdotal Jesus Cristo diz ao Pai que proclamou a Sua Palavra a qual é a verdade (Jo 17.17,19). Analisemos aspectos desta verdade.

1. Verdade Real:

A Filosofia de Platão (427-347 a.C.) dizia que o nosso mundo é apenas

de aparências; todavia, havia um modelo superior, imutável e eterno, do qual o nos-so mundo é apenas uma cópia. Esta idéia permaneceu em Cícero (106-43 a.C.) e Fílon (c. 20 a.C. � c. 42 d.C.).416

415

Stanley J. Grenz & Roger E. Olson, A Teologia do Século XX, São Paulo: Editora Cultura Cristã,

2003, p. 11. 416

Vd. Platão, A República, 7ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, [1993], 382e; 499c; 522a;

Platão, Timeu, São Paulo: Hemus, (s.d.), 22d. Platão, (A República, 499c) usa esta expressão para

referir-se a genuinidade de um sentimento: �verdadeiro (a)lhqino/j) amor da filosofia verdadeira

(a)lhqino/j)�. Platão entendia que �Deus é absolutamente simples e verdadeiro em palavras e

atos� (A República, 382e). A palavra também de refere àquilo que está de acordo com a verdade (A

República, 522a). A verdade é contrastada pela lenda (Platão, Timeu, 22d). No AT. (LXX: a)lhqino/j) é apresentado como um atributo de Deus (Ex 34.6; 2Cr 15.3). [Para maiores detalhes, ver: a)lhtino/j: In: William F. Arndt & F.W. Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early

Christian Literature, 2ª ed. Chicago: University Press, 1979, p. 36; R. Bultmann, a)lhqino/j: In: G. Friedrich & G. Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982, Vol. I, p. 249-250; A.C. Thiselton, Verdade: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicio-

nário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1983, Vol. IV, p. 708-711; William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1974, Vol. 5, (Juan I), p. 16-17; William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1975, Vol. 13, (Hebreos), p. 9-10].

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 92/108

No texto lido, Jesus nos diz que a Palavra de Deus é a verdade = realidade. O curioso, é que a palavra que os gregos usavam para se referirem ao mundo real

(a)lhqino/j), é da mesma raiz da palavra verdade (a)lh/qeia).417 No Novo Testamen-to Jesus Cristo se autodesigna de verdadeiro pão do céu (Jo 6.32), videira verdadei-ra (Jo 15.1); sendo enviado pelo Deus verdadeiro (Jo 7.28; 1Ts 1.9/1Jo 5.20), que deve ser conhecido (Jo 17.3). No Apocalipse Jesus Cristo é identificado como o ver-dadeiro (Ap 3.7,15, 6.10), sendo as suas palavras e juízos fiéis e verdadeiros (Ap 15.3; 16.7; 19.2; 21.5; 22.6). O termo contrasta aquilo que é verdadeiro, genuíno,

com o que é terreno (Hb 8.2; 9.24). Deus procura os verdadeiros adoradores (Jo 4.23/Hb 10.22).

Assim, em sua oração, Jesus Cristo, em certo sentido, nos diz que a Palavra de

Deus é real, não apenas aparentemente. Se me permitirem usar tal expressão, diria

que a Palavra de Deus é a verdade verdadeira!. Acontece que muitas vezes o crente vive como se a Palavra de Deus fosse ape-

nas uma aparente verdade ou uma verdade distante e sem sentido para homens e mulheres desse novo milênio. Quando Jesus diz que a Palavra é a verdade, Ele de

fato afirma que ela é a verdade para todas as esferas de nossa vida: casamento, vi-da profissional, educacional, vocacional, lazer, ética, espiritualidade.

Às vezes afirmamos crer na Bíblia como verdade, mas a negamos com o nosso comportamento. Não aplicamos os seus ensinamentos ao nosso viver cotidiano. A

Palavra é a verdade de Deus para a totalidade de nossa existência, quer aqui, quer

na eternidade. 2. Verdade Autoritativa:

A Bíblia não precisa de nosso testemunho para ser o que é. Ela é a ver-

dade de Deus; quer creiamos quer não, aceitemos ou não. A autoridade da Palavra

é decorrente da sua origem divina. �Nunca jamais qualquer profecia foi dada por

vontade humana; entretanto, homens santos falaram da parte de Deus, movidos pe-

lo Espírito Santo� (2Pe 1.21)(destaque meu). Deste modo, a autoridade da Palavra é

proveniente do Deus da Palavra, não daqueles que a proclamam. A Confissão de Westminster declara: "a autoridade da Escritura Sagrada, ra-

zão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende do testemunho de

qualquer homem ou igreja, mas depende somente de Deus (a mesma ver-

dade) que é o seu Autor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a palavra

de Deus".418 Calvino (1509-1564), atento a isso, escreveu em lugares diferentes: �É

chocante blasfêmia afirmar que a Palavra de Deus é falível até que obtenha

417

Vd. A.C. Thiselton, Verdade: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia

do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1983, Vol. IV, p. 708-711. 418

Confissão de Westminster, I.4.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 93/108

da parte dos homens uma certeza emprestada�.419 Em outro lugar: �.... a Pa-

lavra do Senhor é semente frutífera por sua própria natureza�.420 Um padre romano, analisando os Puritanos nos Estados Unidos, concluiu: "Os

nossos puritanos não estudavam a Bíblia como exegetas, ainda menos como

racionalistas. Ela era a sua vida."421 De fato, se, pelo Espírito recebemos a Bíblia

como a Palavra autoritativa de Deus, não há lugar para relativismos; ela é a nossa

vida; a Constituição de nosso crer e agir. 3. Verdade que Permanece:

Como vimos, hoje fala-se muito de minha verdade, sua verdade e, ver-

dade de cada um. Não se fala mais em a verdade norteadora do nosso comporta-mento. O homem moderno relativizou a verdade; não considera mais a existência de

absolutos: �Os homens não mais crêem nem mesmo na possibilidade da ver-

dade absoluta�, constata Schaeffer.422 Isso tem implicações éticas, como obser-vou Packer: �A cultura ocidental pós-cristianismo duvida que haja absolutos

morais�.423 E isso é obvio. Se não há princípio orientador e regulador que permane-ça, como pautar a nossa conduta por aquilo que é simplesmente subjetivo, relativo e, portanto, provisório?

A Palavra de Deus é a verdade que permanece, cumpre-se cabalmente; não ape-nas no passado, nem simplesmente no futuro; mas sempre. Na declaração de Je-sus, percebemos a seriedade da Palavra: �Quando eu estava com eles, guardava-

os no teu nome, que me deste, e protegi-os, e nenhum deles se perdeu, exceto o fi-

lho da perdição, para que se cumprisse a Escritura� (Jo 17.12). (destaque meu). Em outros contextos, Ele já dissera: �Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras

não passarão� (Mt 24.35); �.... a Escritura não pode falhar� (Jo 10.35).

Um sinal de que a Palavra permanece, está no fato de nos reunirmos aqui para

estudar a Palavra de Deus, a qual permanece como a Palavra eterna de Deus para a nossa vida, sobre qualquer questão e, em qualquer tempo. �A verdade é aquele

puro e perfeito conhecimento de Deus, o qual nos livra de todo e qualquer

erro e falsidade. Devemos considerar que não há nada mais miserável do

que vagar ao longo de toda a nossa vida como ovelhas perdidas.�424

�Ain-

da que o mundo inteiro fosse incrédulo, a verdade de Deus permaneceria

inabalável e intocável�,425

conclui Calvino.

419

João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 3.15), p. 98. 420

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 3.6), p. 103. 421

Padre R.L. Bruckberger, A República Americana, Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1960, p. 31. 422

Cf. Francis A. Schaeffer, O Sinal do Cristão, Goiânia, GO.: ABU/APLIC., 1975, p. 25. 423

J.I. Packer, O que é santidade e por que ela é importante?: In: Bruce H. Wilkinson, ed. ger. Vitória

sobre a Tentação, 2ª ed. São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 34. 424

João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.1), p. 300. 425

João Calvino, Gálatas, (Gl 2.2), p. 48-49.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 94/108 4. Verdade Reveladora:

A verdade proclamada por Cristo revela o Pai (Jo 17.1,3-9,11,15,17,21-25) e aponta para o Filho (Jo 17.8,20). Além destas genuínas revelações, a Palavra

nos diz o que somos e o que poderemos ser. A Palavra de Deus é o espelho que

nos mostra tal qual somos � pecadores irremediavelmente perdidos �; no entanto, também nos mostra o que poderemos ser pelo Espírito que nos capacita. Ela é uma

espécie de �geografia do coração� ou, uma �anatomia da alma�. Essa é uma das razões porque os homens odiaram a Cristo e a Sua Palavra: A

imagem do que somos, muitas vezes se mostra terrível! O Senhor mesmo nos diz: �Não pode o mundo odiar-vos, mas a mim me odeia,

porque eu dou testemunho a seu respeito de que as suas obras são más� (Jo 7.7). João registra: �O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram

mais as trevas do que a luz; porque as suas obras eram más. Pois todo aquele que

pratica o mal aborrece a luz e não se chega para a luz, a fim de não serem argüidas

as suas obras� (Jo 3.19-20). (destaque meu) Por outro lado, a Bíblia também nos ensina aquilo que Paulo expressou enquanto preso em Roma: �Tudo posso naquele que me fortalece� (Fp 4.13). Deus torna pos-sível os nossos impossíveis, fazendo-nos novas criaturas, gerando-nos espiritual-mente para uma viva esperança em Cristo (Jo 3.3,5/Tg 1.18; 1Pe 1.3,23). B) A Verdade como um todo unificado: A verdade é um todo unificado que cabe a cada um de nós descobrir através

da pesquisa � dentro de nossa contingência histórica �, dispondo do Mundo, que a-lém de �palco da glória divina�,

426 é o grande laboratório concedido por Deus ao homem. Portanto, a verdade ou é essencialmente verdade ou é um logro absoluto.

O que estamos falando poderá parecer um absurdo visto que, conforme dissemos

acima, o homem moderno não mais crê na possibilidade da verdade absoluta. To-davia, o que a Bíblia nos ensina é um sistema unificado de verdade; por isso, a

verdade cristã ou é verdade absoluta ou é um engano completo: não existe ver-dade enquanto apenas verdade cristã, como não existe arte apenas enquanto �arte

cristã�. Schaeffer (1912-1984) está correto ao dizer que, "O cristianismo não é

apenas uma série de verdades mas é a VERDADE � a Verdade sobre toda

realidade".427 Desta forma, não precisamos "forçar" a verdade, visto que isto seria um esforço inútil; à luz da eternidade, a verdade permanece de pé como verdade ou

cai como engano ou mentira. "Porque nada podemos contra a verdade, senão em

favor da própria verdade" (2Co 13.8), como sabiamente escreveu o apóstolo Paulo.

426

Ver: João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.3), p. 300-301. 427

F.A. Schaeffer, Manifesto Cristão, Brasília: DF.: Refúgio, 1985, p. 25.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 95/108

Calvino compreendeu bem este fato ao dizer que, "Visto que toda verdade

procede de Deus, se algum ímpio disser algo verdadeiro, não devemos rejei-

tá-lo, porquanto o mesmo procede de Deus�.428 O nosso compromisso primei-ro é com Deus: A Verdade Absoluta e Eterna. Desta forma, cabe a nós aplicar os princípios bíblicos a toda à realidade de forma coerente, piedosa e sincera. Devemos estar atentos ao fato de que ser Reformado envolve uma cosmovisão

unificada que se reflete em nossa maneira de ver e atuar no mundo; toda e cada fa-ceta de nossa existência. Ser Reformado não significa uniformidade, mas uma pers-pectiva semelhante da vida e da eternidade. Assim sendo, não nos parece razoável,

nem possível fazer sincretismos teológicos e éticos e, ainda assim sobrevivermos como Reformados. Não é possível uma teologia Reformada esquizofrênica! C) A Igreja Como Templo de Deus no Mundo: A Historificação do

Reino: No Antigo Testamento, �o santuário era o penhor ou emblema do pacto

de Deus�;429

era o sinal concreto e visível da presença de Deus que, obviamente,

ultrapassava em muito os limites do templo. Assim como no Antigo Testamento o templo era o símbolo da presença de Deus

no meio de Israel, a Igreja, constituída de todos os eleitos de Deus, deve refletir na atualidade a realidade da presença de Deus entre os homens. A Igreja é o testemu-nho da presença e da atuação de Deus entre os homens. A Igreja é o reflexo da presença de Deus. A Igreja diz ao mundo através de sua realidade histórica e testemunho, que ain-da há esperança de salvação. A Igreja como luz do mundo e sal da terra, constitui-se numa bênção inestimável para toda a humanidade.430

"A Igreja, portanto, é a presença de Jesus Cristo por meio de seu povo,

em prol do mundo. Embora provisória, essa presença é real, humana e

histórica. Cristo age por meio da Igreja realizando sua obra e confirman-

do sua vitória. Nesse sentido, não há salvação fora da Igreja, desde que

esta se disponha a servir e glorificar Jesus Cristo".431

Neste sentido, a Igreja também assume uma função Escatológica. A Igreja anun-cia a presença de Cristo e, ao mesmo tempo, vive de forma embrionária as delícias

do Reino. O Espírito faz com que hoje desfrutemos das bênçãos da Era futura po-rém, não em toda sua plenitude. O Apóstolo Paulo escreveu: �.... Nós que temos as

primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção

428

J. Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 1.12), p. 318. 429

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 28.1), p. 601. 430

Vd. R.B. Kuiper, El Cuerpo Glorioso de Cristo, Grand Rapids, Michigan: Subcomision Literatura Cristiana de la Iglesia Christiana Reformada, 1985, p. 242-247. 431

Jacques de Senarclens, Herdeiros da Reforma, p. 357.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 96/108 de filhos, a redenção do nosso corpo� (Rm 8.23). O Espírito comunica as �primícias� das bênçãos � sendo Ele próprio a principal �, concedidas por Deus, as quais serão

plenamente manifestadas na eternidade. O Espírito em nós revela-nos as venturas futuras que agora, apenas vislumbramos pela fé, e que já desfrutamos apenas em-brionariamente. O Espírito testifica que somos filhos de Deus e, que por maior que seja a nossa pobreza material; por mais insignificantes que sejamos considerados social e eco-nomicamente, somos súditos do Reino, sendo herdeiros de Deus, tendo o sinal de

nossa cidadania e herança � sinal este concedido por Deus. (Rm 8.16,17; Gl 4.6,7; Ef 1.14,18; Cl 3.24; Tt 3.7/1Jo 3.1,2). Outra realidade escatológica que já usufruímos aqui, é a certeza da nossa salva-ção. O Espírito é chamado de penhor (a)rrabw/n)432 da nossa salvação (2Co 1.22;

5.5; Ef 1.14) � indicando assim, o �primeiro pagamento�, �depósito�, o �sinal� de

compra com o compromisso solene de efetivar a transação;433 e, também é dito que

fomos selados com Ele (2Co 1.22; Ef 1.13; 4.30) � como indicativo de propriedade, autenticidade e inviolabilidade dos eleitos. O Espírito é o sinal e penhor daquilo que teremos no futuro. O Espírito é o adiantamento da compra já efetivada e que não se-rá desfeita. O Espírito é a garantia de que os eleitos o são para sempre; ninguém

pode nos arrancar das mãos de Deus. Ambas as figuras � �penhor� e �selo� �, assi-nalam o fato de que pertencemos a Deus e, que a Obra que Ele mesmo iniciou será

plenamente cumprida em nós (Fp 1.6). Desta forma, o �penhor� e o �selo� do Espírito

têm implicações escatológicas, porque apontam para o futuro, quando a Obra do Deus Triúno será concluída em nós. (1Pe 1.3-9). Objetivamente considerando, o penhor assinala a garantia oferecida pelo próprio Deus a respeito de nossa salva-ção, tendo como amostragem, o próprio Espírito em nós. O penhor é da mesma es-sência da herança. Hoje nós já temos uma amostragem do que será a nossa vida

com Cristo, quando o Espírito será tudo em todos nós, os que cremos. Subjetiva-

mente, temos a certeza que o Deus onipotente e fiel cumprirá as Suas promessas,

preservando-nos até o fim. �Enquanto vivemos neste mundo, necessitamos de

um penhor, porque combatemos em esperança; mas quando a possessão

mesma se manifestar, então cessará a necessidade e o uso do penhor�.434

Comentando o texto de Efésios 1.13, escreveu Calvino:

�Os selos imprimem autenticidade tanto aos alvarás como aos testa-

mentos. Além disso, o selo era especialmente usado nas epístolas, para i-

dentificar o escritor. Em suma, um selo distingue o que é genuíno e indubi-

tável do que é inautêntico e fraudulento. Tal ofício Paulo atribui ao Espírito

Santo, não só aqui, mas também no capítulo 4.30 e em 2 Coríntios 1.22.

Nossas mentes jamais se fazem suficientemente firmes, de modo que a

432

Palavra tomada emprestada do hebraico. 433

�A presença do Espírito Santo é a primeira prestação dos benefícios da redenção de

Cristo, concedidos àqueles para quem foram adquiridos, e assim a garantia e penhor da

consumação dessa redenção no devido tempo� (Archibald A. Hodge, Confissão de Fé West-

minster A.A. Hodge, p. 328). 434

João Calvino, Efésios, (Ef 1.14), p. 37.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 97/108

verdade prevaleça conosco contra todas as tentações de Satanás, en-

quanto o Espírito não nos confirme nela. A genuína convicção que os

crentes têm da Palavra de Deus, acerca de sua própria salvação e toda

religião, não emana das percepções da carne, ou de argumentos huma-

nos e filosóficos, e, sim, da selagem do Espírito, o que faz suas consciências

mais seguras e todas as dúvidas removidas. O fundamento da fé seria

quebradiço e instável, se porventura ela repousasse na sabedoria huma-

na; portanto, visto que a pregação é o instrumento da fé, por isso o Espírito

Santo torna a pregação eficaz�.435

O Espírito em nós, é a garantia presente e maravilhosamente real, de que partici-paremos da plenitude da Sua herança reservada para os Seus.

436 Assim, podemos dizer com H. Berkhof que, �o Novo Testamento nada sabe de uma escatolo-

gia futurista ou de uma escatologia realizada, senão de uma escatologia em

realização�.437

Através da Igreja o mundo pode ter uma noção do que significa a salvação eterna

(Rm 8.17; Ef 1.15-18; 2.6; 1Ts 2.12; Cl 1.13). Entretanto, a Igreja reconhece que a sua pátria está nos céus (Fp 3.20). Ela sabe que a alegria proporcionada por Cristo

nesta dimensão de vida, é apenas uma sombra da que Ele mesmo nos concederá

no céu (1Co 2.9; Ef 3.20). �A igreja (...) não é o reino, é menor que o reino, po-

rém é seu expoente central�.438

�O Reino se revela na Igreja�.439 Portanto, a condição presente da Igreja, é de contínua e profícua tensão:

�Nós estamos no Reino e, mesmo assim, aguardamos sua manifestação

completa; nós compartilhamos de suas bênçãos mas ainda aguardamos

sua vitória total; nós agradecemos a Deus por ter-nos trazido para o Reino

do Filho que Ele ama, e ainda assim continuamos a orar: �Venha o teu rei-

no��.440

435

João Calvino, Efésios, (Ef 1.13), p. 36. 436

Vd. A.A. Hoekema, Salvos pela Graça, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1997, p. p. 38. 437

Hendrikus Berkhof, La Doctrina del Espíritu Santo, p. 118. Do mesmo modo entende Morris: "Uma

escatologia puramente 'realizada' é calamitosa, tanto por não se ajustar à mensagem do

Novo Testamento como por suas trágicas conseqüências" (Leon Morris, A Doutrina do Julga-mento na Bíblia: In: Russel P. Shedd & Alan Pieratt, eds. Imortalidade, São Paulo: Vida Nova, 1992,

p. 53). 438

Enrique Stob, Reflexiones Éticas: Ensayos sobre temas morales, p. 68. 439

Herman Ridderbos, La Venida del Reino, Buenos Aires: La Aurora, 1988, Vol. 2, p. 66. 440

A.A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, p. 72.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 98/108

D) Em Busca de uma Epistemologia Reformada:

"O conhecimento de todas as ciên-cias não passa de fumaça quando se-parada da ciência celestial de Cristo� João Calvino.

441

1) MÉTODOS E PRESSUPOSTOS

Descartes (1596-1650), após dizer que �o bom senso é a coisa do mun-

do melhor partilhada�, admite que �não é suficiente ter o espírito bom, o prin-

cipal é aplicá-lo bem�.442 De fato, bom senso, a boa maneira de conduzir o pen-samento na avaliação dos fatos, é indispensável, contudo, se ele for provido de um

bom método, a possibilidade de obter êxito é bem maior.443

Mas, o que é um método? Este termo é uma transliteração do grego me/qodoj, pa-lavra formada por meta/ (�no meio de�, �no centro de�)

444 e o(do/j (�caminho�). Em A-ristóteles (384-322) a palavra tinha o sentido de �investigação�, sendo por vezes u-sada como sinônimo de �teoria� (qewri/a) e �ciência� (e)pisth/mh).445 Etimologica-mente, portanto, �método� é o emprego de um caminho, andar dentro e através dele. Podemos definir operacionalmente método, como o conjunto de elementos e pro-cessos necessários a se obter determinado objetivo; é o caminho para a consecução

de um objetivo proposto. Lalande (1867-1963) acentua que etimologicamente a pa-lavra significa �demanda� e, �por conseqüência, esforço para atingir um fim, in-

vestigação, estudo....�.446

Hodge com simplicidade e clareza afirma que �Se uma pessoa adota um falso

método, ela é semelhante a alguém que toma uma estrada errada que ja-

mais a levará a seu destino�.447 Obviamente a Teologia, como todas as demais

441

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.20), p. 60. 442

R. Descartes, Discurso do Método, São Paulo: Abril Cultural, 1973, (Os Pensadores, XVI), p. 37. 443

Lalande define �bom senso�, como a �faculdade de distinguir espontaneamente o verda-

deiro do falso e de apreciar as coisas pelo seu justo valor� (Bom Senso: In: A. Lalande, Vocabu-

lário Técnico e Crítico da Filosofia, p. 996a). 444

Este é o significado original da palavra, variando conforme a conjunção com outras (Vd. entre ou-tras obras, H.E. Dana & Julius R. Mantey, Manual de Gramatica del Nuevo Testamento Griego, Bue-nos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1975, p. 104-105). Uma curiosidade bíblica: Paulo exorta

aos efésios: �Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para poderdes ficar firmes contra as ciladas

(meqode/ia) do diabo� (Ef 6.11). Esta palavra envolve um �plano ou sistema deliberado�. meqode/ia é da mesma raiz da nossa palavra �método�. As ciladas de Satanás visam sempre nos induzir ao erro. Ele, portanto, atua de forma metódica, seguindo sempre um plano para obter êxito nos seus propósi-tos... 445

Vd. Aristóteles, Física, III, 1; 200 b 13; VII, 1; 251 a 7, etc. Cf. Método: In: A. Lalande, Vocabulário

Técnico e Crítico da Filosofia, p. 678. (observações de R. Eucken e J. Lachelier) 446

Método: A. Lalande, Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, p. 678. 447

Charles Hodge, Teologia Sistemática, p. 2. Esta declaração de Hodge é amplamente citada (Ver

por exemplo: Cornelius Van Til, An Introduction to Systematic Theology, Phillipsburg, New Jersey:

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 99/108 ciências, também tem os seus métodos. E isto é fundamental. Não existe neutralida-de metodológica.448 Todo método carrega consigo seus pressupostos. Portanto, os

pressupostos, como também em qualquer outra ciência, são fatores determinantes

em sua pesquisa, na aproximação dos fatos.449 Todos trabalham com os seus pres-

supostos, explícitos ou não, plenamente conscientes deles ou apenas parcialmente. Schaeffer (1912-1984) coloca a questão nestes termos: �Todas as pessoas têm

seus pressupostos, e elas vão viver de modo mais coerente possível com es-

tes pressupostos, mais até do que elas mesmas possam se dar conta. Por

pressupostos entendemos a estrutura básica de como a pessoa encara a vi-

da, a sua cosmovisão básica, o filtro através do qual ela enxerga o mundo.

Os pressupostos apóiam-se naquilo que a pessoa considera verdade acerca

do que existe. Os pressupostos das pessoas funcionam como um filtro, pelo

qual passa tudo o que elas lançam ao mundo exterior. Os seus pressupostos

fornecem ainda a base para seus valores e, em conseqüência disto, a base

para suas decisões�.450 Silva argumenta com precisão que �quer tenhamos ou

não a intenção de fazê-lo, quer gostemos ou não, todos lemos o texto con-

forme interpretado por nossas pressuposições teológicas. Aliás, o argumento

mais sério contra a idéia de que a exegese deve ser feita independente da

teologia sistemática é que tal ponto de vista é irremediavelmente ingênuo. A

mera possibilidade de entender qualquer coisa depende de nossas estrutu-

ras anteriores de interpretação. Se observarmos um fato que faz sentido para

nós, é simplesmente porque conseguimos encaixá-lo dentro de um conjunto

complexo de idéias que assimilamos anteriormente�.451

Presbyterian and Reformed Publishing Co. 1974, p. 8; Morton H. Smith, Systematic Theology, Greenville, South Carolina: Greenville Seminary Press, 1994, p. 24). 448

Vd. Hendrik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciencia, p. 19ss; 53,54,58. A �neutralidade� é

impossível tal qual a �objetividade� completa, no entanto, deve ser buscada. Gilberto Freyre expres-sou bem isto, ao dizer: "A perfeição objetiva nas Ciências do homem ou nos Estudos Sociais

talvez não exista. Mas o afã de objetividade pode existir. É a marca do historiador intelectu-

almente honesto. E sua ausência, o sinal do intelectualismo desonesto� (Gilberto Freyre, na Apresentação da obra de Davi Gueiros Vieira, O Protestantismo, A Maçonaria e a Questão Religiosa

no Brasil, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980, p. 9). Ver: Hermisten M.P. Costa, Raízes

da Teologia Contemporânea, São Paulo: Cultura Cristã, 2004. 449

Sobre este ponto, vejam-se: Charles Hodge, Teologia Sistemática, p. 1-13; Cornelius Van Til, An

Introduction to Systematic Theology, p. 8-20. 450 Francis A. Schaeffer, Como Viveremos?, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 11. McGre-gor Wright demonstra isso em sua obra quando parte para analisar os textos bíblicos que acredita se-rem o fundamento de sua posição. Escreve então: �.... devemos todos orar para que o Espírito

Santo sonde os nossos corações, em busca de indícios de que nossa exegese esteja sendo

controlada por suposições e pressuposições das quais não estejamos plenamente cônscios,

porque elas tendenciam nossa leitura da Palavra de Deus. Contudo, a questão não é se

podemos ser não-tendenciosos ou não, mas se estamos conscientes de nossas pressuposi-

ções. Realmente percebemos como elas nos afetam, e realmente estamos desejosos de ver

essas pressuposições julgadas pelas Escrituras?� (R.K. McGregor Wright, A Soberania Banida: re-

denção para a cultura pós-moderna, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 122). 451

Moisés Silva, Em Favor da Hermenêutica de Calvino: In: Walter C. Kaiser Jr. & Moisés Silva, In-

trodução à Hermenêutica Bíblica, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 255.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 100/108 São estes pressupostos que determinam a nossa maneira de ver e, portanto, agir

no mundo.452 A nossa percepção e ação fundamentam-se em nossos pressupostos os quais sãos reforçados, transformados, lapidados ou abandonados em prol de ou-tros, conforme a nossa percepção dos �fatos�. A questão epistemológica antecede à

práxis. 2) DEUS COMO FONTE DE TODO CONHECIMENTO:

Enquanto que o conhecimento humano é limitado, só alcançando um conhe-cimento científico das coisas e suas relações através de um processo laborioso de

pensamento dialético, o conhecimento que Deus tem, é imediato e completo; Ele co-nhece todas as coisas em suas relações e na sua essência: �Deus é a origem e a

fonte de todo nosso conhecimento. Possui um conhecimento arquetípico de

todas as coisas criadas, abarcando todas as idéias que estão expressas nas

obras de sua criação�.453

Deus como fonte de todo conhecimento tem, naturalmente, a consciência total da

perfeição e amplitude do Seu conhecimento. Ele Se conhece perfeitamente, tendo ciência de toda a Sua perfeição: �Em si mesmo Ele é sujeito e objeto de todo

conhecimento�.454 Qualquer tipo de conhecimento parte de Deus, que é a sua fon-

te inesgotável; portanto, podemos concluir daí algumas coisas: 1) Deus é o principi-

um essendi de todo conhecimento, inclusive o científico; logo, 2) toda verdade é pro-veniente de Deus,455 porque "todas as coisas procedem de Deus";

456 portanto,

452 �Seria atenuar os fatos dizer que a cosmovisão ou visão de mundo é um tópico impor-

tante. Diria que compreender como são formadas as cosmovisões e como guiam os limitam

o pensamento é o passo essencial para entender tudo o mais. Compreender isso é algo

como tentar ver o cristalino do próprio olho. Em geral, não vemos nossa própria cosmovisão,

mas vemos tudo olhando por ela. Em outras palavras, é a janela pela qual percebemos o

mundo e determinamos, quase sempre subconscientemente, o que é real e importante, ou

irreal e sem importância� (Phillip E. Johnson no Prefácio à obra de Nancy. Pearcey, A Verdade Ab-

soluta: Libertando o Cristianismo de Seu Cativeiro Cultural, Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 2006, p. 11). 453

L. Berkhof, Introduccion a la Teologia Sistemática, Grand Rapids, Michigan: T.E.L.L., (1973), p. 96. 454

H. Hoeksema, Reformed Dogmatics, 3ª ed. Grand Rapids, Michigan: Reformed Free Publishing Association, 1976, p. 15. Barth acentua: �A revelação é um círculo fechado onde Deus é o su-

jeito, o objeto e o termo médio� (Karl Barth, La Proclamacion del Evangelio, p. 19). 455

Esta compreensão esteve sempre presente no pensamento teológico da Igreja; cito alguns e-xemplos: Justino Mártir (c. 100-165): �... Tudo o que de bom foi dito por eles (filósofos), pertence

a nós, cristãos, porque nós adoramos e amamos, depois de Deus, o Verbo, que procede do

mesmo Deus ingênito e inefável.� (Justino, Segunda Apologia, São Paulo: Paulus, 1995, XIII.4. p.

104); Agostinho (354-430): �Todo bom e verdadeiro cristão há de saber que a Verdade, em

qualquer parte onde se encontre, é propriedade do Senhor. Essa verdade, uma vez reco-

nhecida e professada, o fará rejeitar as ficções supersticiosas que se encontram até nos Li-

vros sagrados� (Agostinho, A Doutrina Cristã, São Paulo: Paulinas, 1991, II.19. p. 122); Calvino (1509-1564): "Se reputamos ser o Espírito de Deus a fonte única da verdade mesma, onde

quer que ela haja de aparecer, nem a rejeitaremos, nem a desprezaremos, a menos que

queiramos ser insultuosos para com o Espírito de Deus.� (Calvino, As Institutas, II.2.15); "... visto

que toda verdade procede de Deus, se algum ímpio disser algo verdadeiro, não devemos

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 101/108 não pode haver contradição em Deus mesmo; 3) A ciência e a fé não se contradi-zem;457 o mesmo doador da fé (Ef 2.8) é o criador das verdades científicas, logo

quando ambas parecem contraditórias, é porque ou há uma compreensão errada da

fé ou, a ciência não é ciência; está laborando em erro. Por isso é preciso que haja humildade de ambas as partes: do teólogo na interpretação da Palavra de Deus,

sempre em submissão ao Espírito de Deus,458 sem cair num dogmatismo ingênuo

nem num relativismo dogmático, que corre sempre atrás dos modismos científicos e

filosóficos para adaptar a Teologia.459 É preciso que nós teólogos entendamos que

trabalhar com a teologia não significa dizer sempre coisas novas;460 embora reco-

nheçamos �as situações novas que ameaçam a salvação dos homens�461

pa-ra as quais devemos buscar na Palavra a resposta. Por outro lado, precisamos en-tender, que a Palavra de Deus é mais rica do que qualquer dogma; portanto, o nos-so sistema doutrinário, por melhor que seja � e eu estou convencido de que é �, não

pode ser mais rico do que a Palavra de Deus, como bem observou Berkouwer (1903-1996): "Porventura a Escritura não é mais rica do que qualquer pronun-

ciamento eclesiástico, por mais excelente e atento ao Verbo divino que este

rejeitá-lo, porquanto o mesmo procede de Deus. Além disso, visto que todas as coisas pro-

cedem de Deus, que mal haveria em empregar, para sua glória, tudo quanto pode ser cor-

retamente usada dessa forma?� [Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 1.12), p.

318]; Strong (1835-1921): �A Ciência e a Escritura lançam luz uma sobre a outra. O mesmo Es-

pírito divino que deu revelação a ambas está ainda presente, capacitando o crente a in-

terpretar uma pela outra e então progressivamente chegar ao conhecimento da verdade.� (A.H. Strong, Systematic Theology, 35ª ed. Valley Forge, PA., The Judson Press, 1993, p. 27); A.A. Hodge (1823-1886): �Toda verdade é um só todo� (A.A. Hodge, Esboços de Theologia, p. 7). Ver também a citação nesta mesma direção de alguns puritanos em Leland Ryken, Santos no Mundo,

São José dos Campos, SP.: FIEL, 1992, p. 177-179. 456

João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.12), p. 318. 457

Tomás de Aquino, com acuidade, comentou: �Já que a palavra de Deus ultrapassa o enten-

dimento, alguns acreditam que ela esteja em contradição com ele. Isto não pode ocorrer.�

[Tomás de Aquino, Súmula Contra os Gentios, São Paulo: Abril Cultural, 1973, (Os Pensadores, VIII), VII, p. 70]. Vd. A.A. Hodge, Esboços de Theologia, p. 7; Abraham Kuyper, Calvinismo, p. 137-138. 458

�Não devemos supor que temos toda a verdade e que não estamos enganados em na-

da.� (A.W. Tozer, O Poder de Deus, 2ª ed. São Paulo: Mundo Cristão, 1986, p. 71). 459

Em 1921 Machen (1881-1937) propunha-se a mostrar �que a tentativa liberal de reconciliar o

cristianismo com a ciência moderna tem realmente abdicado de tudo o que é peculiar ao

cristianismo e, assim, o que permanece é, em essência, apenas aquele mesmo tipo indefini-

do de aspiração religiosa que havia no mundo antes do cristianismo entrar em cena.� Acres-centa de forma gravemente contundente: �Ao tentar remover do cristianismo tudo o que possi-

velmente poderia ser objetado em nome da ciência, ao tentar subornar o inimigo através

das concessões que este mais deseja, o apologista realmente abandona o que começou a

defender� (J.G. Machen, Cristianismo e Liberalismo, São Paulo: Editora os Puritanos, 2001, p. 18-19). �A teologia tem a tendência de ajustar-se a modas, como a filosofia� (A.W. Tozer, O Po-

der de Deus, p. 70). 460

Cf. G. C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo, São Paulo: ASTE, 1964, p. 71. �O Espírito sempre diz

a mesma coisa a todo aquele a quem Ele fala, e absolutamente sem atentar para as ênfa-

ses doutrinárias ou as modas teológicas que passam. Ele faz cintilar a beleza de Cristo no co-

ração surpreso, e o reverente espírito a recebe com um mínimo de interferência.� (A.W. To-zer, O Poder de Deus, p. 70). 461

G. C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo, p. 72.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 102/108

possa ser?".462 Por isso, o critério último de análise, será sempre "O Espírito Santo

falando na Escritura".463 O mundo do conhecimento pertence a Deus, pois, Ele é o Seu autor e revelador;

logo, todo e qualquer conhecimento científico que o homem tenha é parte do conhe-cimento de Deus expresso na Sua criação; desta forma, podemos dizer, que não e-xiste conhecimento fora de Deus. Quando, então nos referimos ao conhecimento

que podemos ter do próprio Deus, do Seu caráter e majestade, temos de reafirmar a

verdade bíblica, de que este conhecimento provém do próprio Deus. �Somente

quando há fé na conexão orgânica do Universo, haverá também a possibili-

dade para a ciência subir da investigação empírica dos fenômenos especi-

ais para o geral, e do geral para a lei que governa acima dele, e desta lei

para o princípio que domina sobre tudo�.464

Jesus Cristo declara: �Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o Fi-

lho senão o Pai; e ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o

quiser revelar� (Mt 11.27). A Pedro, que confessara ser Jesus o Filho de Deus, ex-clama o Senhor Jesus: �Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne

e sangue quem to revelou, mas meu Pai que está nos céus� (Mt 16.17). Deus é o Autor e o conteúdo do conhecimento. Sem Deus não há conhecimento;

sem a Sua revelação livre e soberana, o conteúdo do conhecimento permaneceria oculto a nós; e é justamente o que acontece conosco em relação as coisas não re-veladas; permanecem ignoradas por nós, até que Deus mesmo nos dê a conhecer

de acordo com a Sua vontade (Dt 29.29; At 1.7; 1Co 2.6-16). Acreditamos na coerência de toda a realidade, considerando inclusive o peca-do humano conforme registrado nas Escrituras; por isso, a ciência genuína nunca

nos afastará de Deus, antes ela só encontrará o seu sentido pleno nAquele que é o

462

G. C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo, p. 72. Dentro desta mesma linha de pensamento, escreveu Kuiper (1886-1966): �.... Todos juntos, os credos do cristianismo, de nenhuma maneira se apro-

ximam de esgotar a verdade da Sagrada Escritura� (R.B. Kuiper, El Cuerpo Glorioso de Cristo,

Grand Rapids, Michigan: SLC., 1985, p. 99). Com grande satisfação li a declaração de Packer: �A

tradição nos permite ficar sobre os ombros de muitos gigantes que pensaram sobre a Bíblia

antes de nós. Podemos concluir pelo consenso do maior e mais amplo corpo de pensadores

cristãos, desde os primeiros Pais até o presente, como recurso valioso para compreender a

Bíblia com responsabilidade. Contudo, tais interpretações (tradições) jamais serão finais;

precisam sempre ser submetidas às Escrituras para mais revisão.� (J.I. Packer, O Conforto do

Conservadorismo: In: Michael Horton, ed. Religião de Poder, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998,

p. 235). 463

Confissão de Westminster, I.10. Conforme já citamos, Timothy George observa que, "Os refor-

madores eram grandes exegetas das Escrituras Sagradas. Suas obras teológicas mais incisi-

vas encontram-se em seus sermões e comentários bíblicos. Eles estavam convencidos de

que a proclamação da igreja cristã não poderia originar-se da filosofia ou de qualquer cos-

movisão auto-elaborada. Não poderia ser nada menos que uma interpretação das Escritu-

ras. Nenhuma outra proclamação possui direito ou esperança na igreja. Uma teologia que

se baseia na doutrina reformada das Escrituras Sagradas não tem nada a temer com as

descobertas precisas dos estudos bíblicos modernos." (Timothy George, Teologia dos Reforma-

dores, p. 313). 464

Abraham Kuyper, Calvinismo, p. 123.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 103/108 Seu Senhor e para onde todo o real converge e encontra o seu verdadeiro signifi-cado. Aliás, como bem acentuou Bavinck (1854-1921): �Qualquer ciência, filosofia

ou conhecimento que suponha poder firmar-se em suas próprias pressuposi-

ções, deixando Deus de fora de suas considerações, transforma-se em seu

próprio opositor e desilude a todos que constróem suas expectativas nis-

to�.465

Portanto, nós não temos medo dos fatos,

466 porque sabemos que os fatos são de

Deus; nem temos medo de pensar porque sabemos que toda verdade é verdade de Deus e, a razão corretamente conduzida e o exercício da genuína ciência, não ofe-recem perigo à fé, antes, são suas aliadas.

467 Contudo, devemos estar atentos ao fato de que as Escrituras não se propõem a fazer ciência; o próprio Calvino (1509-1564) destacou isso quando comentando, Gênesis 1.14, disse: �É necessário re-

lembrar, que Moisés não fala com agudez filosófica sobre os mistérios ocul-

tos, porém relata aquelas coisas que em toda parte observou, e que igual-

mente são comuns aos homens simples�.468 Ou seja, Moisés, inspirado por

Deus, escreveu do ponto de vista fenomenológico, sem a preocupação � já que este

não era o seu objetivo �, de registrar com terminologia científica os fatos.469 Acres-

centaríamos: Na hipótese de Moisés ter escrito conforme os padrões científicos de

sua época � o que de fato não fez, sendo isso extremamente impressionante se

considerarmos que ele teve uma formação primorosa dentro dos moldes egípcios e

conseguiu romper com ela �, certamente o que dissesse seria ridicularizado hoje

465

Herman Bavinck, Our Reasonable Faith, p. 20. 466

�Os cristãos não precisam temer os fatos, mas devem buscá-los até à ultima fonte� [John Edward Veith, Jr, De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 57]. 467

Vd. J.I. Packer, �Fundamentalism� and the Word of God, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1988 (Reprinted), p. 34. 468

John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1981 (Reprinted), Vol. I, (Gn 1.14), p. 84. Do mesmo modo, ver Gn 1.15, p. 85-86; John Calvin, Commentary on the Book of Psalms, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House (Cal-

vin�s Commentaries, Vol. VI/4), 1996 (Reprinted), (Sl 136.7), p. 184-185. Curiosamente Tomás de A-quino (1225-1274) havia usado argumento semelhante ainda que com propósitos diferentes, referin-do-se aos leitores de Moisés como �ignorantes�, daí a sua condescendência. Após tratar de Gn 1.6,

acrescenta: �Deveríamos antes considerar que Moisés estava a falar para gente ignorante, e

que condescendendo à sua fraqueza só lhes apresentou coisas tais que fossem aparentes

aos sentidos. Ora, mesmo os menos instruídos podem perceber pelos seus sentidos que a Ter-

ra e a água são corpóreos, embora não seja evidente para todos que o ar também é cor-

póreo. (...) Moisés, então, embora mencionasse expressamente a água e o ar, não faz qual-

quer menção explícita do ar pelo nome, para evitar apresentar a pessoas ignorantes algo

que estava para além do seu conhecimento� (Thomas Aquina, �Summa Theologica,� The Mas-

ter Christian Library, Verson 8.0 [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Sofware, 2000), Vol. 1, Primeira Parte, Questão 68, Argumento 3, p. 819. Ver no mesmo volume: Questão 61, p. 724 e Questão 66, p. 791-792 (Ver também: Philip Schaff & David S. Schaff, History of the Christian Church, Vol. VIII. p. 680). 469

��. Teria sido perda de tempo para Davi haver ensinado os segredos da astronomia ao

rude e iletrado; e, portanto, ele reputou por suficiente falar num estilo familiar, para que pu-

desse acusar o mundo inteiro de ingratidão caso, ante a visão do sol, não aprendesse o te-

mor e o conhecimento de Deus. (...) Ele não discorre aqui em termos científicos (como entre

os filósofos se diz que ele o fez) concernente à completa evolução que o sol executa; mas,

acomodando-se aos rudes e mais obtusos, ele se limita às aparências ordinárias que se a-

presentam aos olhos....� [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 19.4-6), p. 420-421].

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 104/108 por ser considerado fruto de uma concepção pré-científica. Por outro lado, se redi-gisse o relato da Criação de forma científica absoluta, que certamente não era a dos

egípcios e, também, não é a nossa, pergunto: entenderíamos hoje o que ele teria di-to? A resposta é não; as Escrituras continuariam sendo ridicularizadas, nesse caso, simplesmente pela nossa ignorância científica. A linguagem descritiva dos fatos con-forme se apresentam à nossa percepção, é o melhor modo de tornar algo compre-ensível a todas as épocas; assim, Deus Se designou fazer e O fez.

Charles Hodge (1797-1878), um dos grandes teólogos Calvinistas norte-

americanos do século XIX, escreveu:

"Ele [Deus] não ensinou astronomia ou química aos homens, porém Ele

deu-lhes os fatos externos sobre os quais aquelas ciências são construídas.

Tampouco ensinou-nos teologia sistemática, porém Ele deu-nos na Bíblia

as verdades que, propriamente compreendidas e organizadas, constituem

a ciência da Teologia".470

Dentro da perspectiva de Calvino, por exemplo, a ciência dirigida pela fé, nos a-proximaria de Deus, concedendo-nos uma compreensão mais adequada Dele.

471

E) A Heteronomia: A Autonomia Teológica ou Teonomia:

�Na verdade, a utopia futura na qual

o eu autônomo achará cumprimento

perfeito é o inferno. Para os cristãos, o

verdadeiro humanismo deve ser basea-

do na única Pessoa que era verdadei-

ramente humana, da mesma maneira

que era verdadeiramente divina. O

caminho para a utopia passa por ele e

encontra-se além deste mundo. Não é

o Reino do Homem � temos tido bastan-

te disso �, mas o Reino de Deus� � Gene Edward Veith, Jr., De Todo o teu entendi-

mento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 128.

470

Charles Hodge, Systematic Theology, Grand Rapids, Michigan: Wm. Eerdmans Publishing Co. 1986, Vol. I, p. 3. Do mesmo modo Calvino escrevera: �O Espírito Santo não teve intenção de en-

sinar astronomia; e, com o propósito de instruir procurou ser comum às pessoas mais simples

e iletradas. Ele fez uso de Moisés e de outros Profetas que empregaram uma linguagem po-

pular, de tal modo que ninguém poderia se abrigar sob o pretexto de obscuridade, como

nós às vezes vemos muito prontamente homens fingindo uma incapacidade para entender,

quando qualquer coisa profunda ou misteriosa é submetida à sua consideração.� [John Cal-vin, Commentary on the Book of Psalms, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House (Calvin�s Com-

mentaries, Vol. VI/4), 1996 (Reprinted), (Sl 137.7), p. 184-185]. 471 Ver: João Calvino, As Institutas, I.5.2. Ver também: André Biéler, O Pensamento Econômico e

Social de Calvino, p. 571-573.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 105/108 Como vimos, desde o lIuminismo prevalece a compreensão de que o homem,

através da sua razão, é a lei para si mesmo; é ele quem se governa não um outro

(heteronomia).472

Dentro desta perspectiva otimista, cria-se uma religião humanista, �centralizada

pela idéia do homem e de suas potencialidades�. Deste modo, �o homem

deve desenvolver a força da sua razão, para que possa entender a si pró-

prio, as suas relações com os seus semelhantes e o lugar que ocupa no uni-

verso. (...) Dentro do esquema da religião humanista, Deus aparece como

símbolo dos próprios poderes humanos,473

do que o homem procura realizar

na vida, e não como símbolo de força e dominação, escravizando o ho-

mem pelo seu poder�. Isto é o que sustenta o psicanalista Erich Fromm (1900-1980).474 Para ele, a religião que parte do Outro, de Deus, ele considera um �senti-mento teísta autoritário�, tão bem representado por Calvino.475

O secularismo consiste na pretensão humana em ser autônomo, reduzindo a rea-lidade à nossa percepção limitada do concreto: O real é o concreto ou o que do con-creto se pode perceber. Aqui temos uma questão epistemológica. No secularismo a

criatura assume o lugar de Criador (Rm 1.25); Deus é descartado ou, no mínimo co-locado num lugar decorativo onde a sua presença não é notada nem a sua falta

sentida.476 Aqui temos um "ateísmo prático." Notemos que a autonomia sempre se-rá heteronômica, visto que não há alternativa: ou servimos ao pecado ou seja, a nós mesmos e à nossa perspectiva distorcida da realidade

477 , ou servimos a Deus, em Quem de fato temos uma "autonomia teológica".

Num mundo amplamente secularizando, onde os valores terrenos tendem a cada vez mais não simplesmente ter a hegemonia, mas a totalidade da existência huma-na, creio que a Teologia Reformada tem um papel muito especial a desempenhar na sociedade em apontar de forma concreta para o sentido da vida humana e a neces-sidade do homem relacionar-se com o seu Criador. "Somente quando há fé na

472

Vd. Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX, p. 47ss.; Idem., His-

tória do Pensamento Cristão, p. 262-263. 473

Cf. Erich Fromm, Psicanálise e Religião, 2ª ed. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, Ltda., 1962, p. 61. 474

Erich Fromm, Psicanálise e Religião, 2ª ed. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, Ltda., 1962, p. 47-48. 475

Erich Fromm, Psicanálise e Religião, p. 46. 476

O que denominamos de �secularismo� assemelha-se ao que Jones chama de �mundanismo�: �Ser do mundo pode ser assim resumido � é vida, imaginada e vivida, separadamente

de Deus. Noutras palavras, o que decide definitiva e especificamente se eu e vocês so-

mos do mundo ou não, não é tanto o que podemos fazer em particular como a nossa a-

titude fundamental. É uma atitude para com todas as coisas, para com Deus, para com

nós mesmos, e para com a vida neste mundo; em última análise, ser do mundo é ver to-

das estas coisas separadamente de Deus [...]

�Ser do mundo � e isso é repetido pelos apóstolos � significa que somos governados

pela mente, pela perspectiva e pelos procedimentos deste mundo no qual vivemos� [D. Martyn Lloyd-Jones, Seguros mesmo no Mundo, São Paulo: Publicações Evangélicas Seleciona-das, (Certeza Espiritual, Vol. 2), 2005, p. 28-29].

477Ver Emil Brunner, O Escândalo do Cristianismo, São Paulo: Novo Século, 2004, p. 10.

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 106/108

conexão orgânica do Universo, haverá também a possibilidade para a ciên-

cia subir da investigação empírica dos fenômenos especiais para o geral, e

do geral para a lei que governa acima dele, e desta lei para o princípio que

domina sobre tudo", conclui Kuyper.478

O homem partilha de duas identidades: uma divina e outra animal. Em certo sen-tido nós não somos diferentes dos cães, gatos, macacos e de outros animais, visto

que todos nós fomos criados por Deus; neste sentido há, digamos assim, uma igual-dade: toda criação é proveniente da vontade de Deus.

Salomão, na velhice, mostrando a nulidade da sabedoria do homem e a fragilida-de da vida humana,479 escreve: "Porque o que sucede aos filhos dos homens, su-

cede aos animais; o mesmo Ihes sucede: como morre um, assim morre o outro, to-

dos tem o mesmo fôlego de vida, e nenhuma vanglória tem o homem sobre os ani-

mais; porque tudo é vaidade. Todos vão para o mesmo lugar; todos procedem do

pó, e ao pó tornarão" (Ec 3.19,20).

Se por um lado o homem partilha com os outros animais de uma identidade de criação, por outro, estabelece-se biblicamente uma grande distância entre o homem e o resto da criação porque fomos criados à imagem de Deus, por isso, somos seres pessoais como Deus é, temos uma personalidade que permite não nos limitarmos

ao nosso corpo, embora este faça parte de nós e não lhe seja algo mau, inferior ou

desprezível: a alma e o corpo são criações de Deus e, Ele mesmo pelo Seu poder

ressuscitará o nosso corpo na vinda gloriosamente triunfante de Jesus Cristo.

Entretanto, o homem tem seus limites físicos, intelectuais, morais e espirituais; is-to se deve basicamente por ser ele criatura e não Criador e, também, em decorrên-cia do seu pecado que trouxe como conseqüência a morte (Rm 6.23). A Bíblia apre-senta com freqüência as limitações do homem e, em muitas das vezes, a nossa de-bilidade é manifesta em decorrência da comparação feita entre nós criaturas e Deus

Criador e Senhor de todas as coisas. A Teologia deve acenar de forma contundente para a questão da necessidade do homem que agoniza em seus referenciais secula-res, mostrando o caminho do transcendente, do Deus da revelação bíblica como A-quele que confere sentido à existência e a todo saber.

A Palavra nos diz que Jesus Cristo morreu, segundo a vontade de Deus, para nos libertar do domínio do mundo, dos valores da mundanidade que contaminam nossa

maneira de perceber e atuar na realidade, a fim de que vivamos para Ele. Paulo es-creve: "O qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos desarraigar

deste mundo perverso, segundo a vontade de nosso Deus e Pai" (GI .4).

Numa sociedade onde a �realidade� é socialmente construída através da �lingua-gem cultural�480 não há lugar para absolutos; tudo torna-se relativo. Deste modo, tu- 478

Abraham Kuyper, Calvinismo, p. 123. 479

Vd. Hermisten M.P. Costa, Eclesiastes: Uma Investigação da Vida, Belo Horizonte, MG., 1980, passim. 480�A realidade não é apenas uma construção social observada através da linguagem cul-

tural. Os historiadores podem estudar o passado e fazer afirmativas verdadeiras sobre ele,

mesmo se não puderem reconstruí-lo perfeitamente� (Clyde P. Greer, Jr., Refletindo Honesta-

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 107/108

do é possível dentro dos significados conferidos pelas pessoas individualmente.481

Acontece, que o homem em sua finitude envolto no paradoxo482 de sua animalidade e prodigialidade, tão bem descrito por Pascal (1623-1662)483 precisa de uma refe-rencial para si fora de si mesmo e da sociedade na qual está inserido. Nesta altura,

parece-nos oportuno o comentário de Lloyd-Jones (1899-1981), quando observa que Jesus Cristo viveu séculos depois de um período de exuberância intelectual, marca-do pelos maiores luminares do pensamento grego Sócrates, Platão e Aristóteles , no entanto, diante de um auditório de formação modesta e em geral de recursos dé-

beis, Jesus diz: "Vós sois a luz do mundo" (Mt 5.14).484 Na realidade, e isto é extre-mamente estimulante, a Igreja como povo de Deus é desafiada em sua própria exis-tência e testemunho a ser o sal da terra e luz do mundo; e isso ela faz, não pelo a-cúmulo de conhecimento que sem dúvida através da história tem revelado de mo-do indelével a "graça comum" de Deus , nem pela acomodação aos valores hodier-nos buscando uma maior popularidade, mas no discernimento dado por Deus para agir no mundo, com a sabedoria do alto, aquela que dá sentido e utilidade eficaz ao

conhecimento. Sem a sabedoria concedida por Deus, o conhecimento humano to-ma-se motivo de pretensão frívola ou um fardo que nos permite ver mais claramente aspectos da realidade sem, contudo, ter a solução definitiva. O iluminismo sobre

muitos aspectos trouxe não a luz, mas as trevas.485 Ele propôs uma autonomia que

jamais poderia ser alcançada, visto que a genuína "autonomia" exige a coragem da "teonomia", a submissão aos princípios de Deus expressos em Sua Palavra. Sem o discernimento concedido por Deus, não temos condições de avaliar a nossa época e

apresentar a resposta cristã ao desespero do homem sem Deus e sem valores defi-nidos. Os valores reais não são simplesmente socialmente construídos, antes pro-vém do Deus transcendente e pessoal que Se revela e Se relaciona conosco.

mente sobre a História: In: John F. MacArthur, Jr. ed. ger. Pense Biblicamente!: recuperando a visão

cristã do mundo, São Paulo: Hagnos, 2005, p. 417). 481

�Os pós-modernistas rejeitam totalmente a verdade objetiva. A verdade não é uma des-

coberta feita a partir do mundo externo. Antes, a verdade é uma construção� (Gene Edward Veith, Jr., De Todo o teu entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 55-56). �Ao criar uma

crise epistemológica, os questionamentos pós-modernistas rejeitam até a possibilidade da

verdade, histórica ou qualquer outra� (Clyde P. Greer, Jr., Refletindo Honestamente sobre a His-tória: In: John F. MacArthur, Jr. ed. ger. Pense Biblicamente!: recuperando a visão cristã do mundo, São Paulo: Hagnos, 2005, p. 411). 482

�O ser humano tende a ser paradoxal� (Gene Edward Veith, Jr., De Todo o teu entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 123). 483

"É perigoso fazer ver demais ao homem quanto ele é igual aos animais, sem lhe mostrar a

sua grandeza. É ainda perigoso fazer-lhe ver demais a sua grandeza sem a sua baixeza. É

ainda mais perigoso deixá-Io ignorar uma e outra. Mas é muito vantajoso representar-lhe

ambas" [Blaise Pascal, Pensamentos, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XVI), 1973, V1.418. p. 139]. 484

D.M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, São Paulo: FIEL., 1984, p. 151. 485

�No tocante ao reino de Deus e a tudo quanto se acha relacionado à vida espiritual, a

luz da razão humana difere pouquíssimo das trevas; pois, antes de ser-lhe mostrado o cami-

nho, ela é extinta; e sua perspicácia não é mais digna que a cegueira, pois quando vai em

busca do resultado, ele não existe. Pois os princípios verdadeiros são como as centelhas; es-

sas, porém, são apagadas pela depravação da natureza antes que sejam postas em seu

verdadeiro uso� [João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.17), p. 134-135].

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Igreja Reformada e os Desafios Teológicos e Litúrgicos na �Pós-Modernidade� � Hermisten � 3/4/2008 � 108/108 Portanto, a esperança para o mundo em última instância, não está na ciência,

mas nos homens fiéis a Deus, que usam dos recursos fornecidos por Deus para a

Sua Glória. Deste modo, a Igreja como luz do mundo e sal da terra, se constitui nu-ma bênção inestimável para toda a humanidade. Esta verdade precisa ser procla-mada que pela palavra quer, principalmente pela nossa perspectiva do mundo que se materialize em nossas ações.

Águas de Lindóia, 3/4 de outubro de 2007.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa