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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Lilian Corrêia Pessôa O papel do outro na atuação do Professor Coordenador MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO SÃO PAULO 2010

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Lilian Corrêia Pessôa

O papel do outro na atuação do Professor Coordenador

MESTRADO EM EDUCAÇÃO:

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO

SÃO PAULO

2010

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Lilian Corrêia Pessôa

O papel do outro na atuação do Professor Coordenador

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Educação: Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação da Professora Doutora Laurinda Ramalho de Almeida.

SÃO PAULO

2010

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FICHA CATALOGRÁFICA

PESSÔA, Lilian Corrêia. O papel do outro na atuação do Professor Coordenador. Dissertação de Mestrado – PUC – São Paulo, 2010.

Área de concentração – Educação: Psicologia da Educação

Orientador(a): Profª Drª Laurinda Ramalho de Almeida

1. Professor Coordenador.

2. Formação de Professores.

3. Psicogenética de Henri Wallon.

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BANCA EXAMINADORA

________________________________________

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Dedico este trabalho a duas mulheres. 

À Aline... 

Que  no  auge  dos  seus  oito  anos  suportou  com bravura minhas ausências e o pouco  tempo para ficarmos juntas. Apoiou, me deu colo e todo o seu carinho. Mas, acima de tudo, me ensinou, e ainda ensina, a ser mãe... a sua mãe! Onde quer que eu esteja você sempre está no meu coração. Te amo muito.  À Luiza...  Que me embalando num berço de amor, colocado sempre  à  frente  de  tudo,  me  fez  entender  o sentido da vida. Com a sua sabedoria aprendi aquilo que a ciência não explica e não se encontra nos  livros, mas que é essencial para viver. Você  alimentou  meus  sonhos  mesmo  sem compreendê‐los...  Obrigada, mãezinha. 

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Agradecimento

Por todos os caminhos trilhados nesta pesquisa, pelas muitas dificuldades

enfrentadas, pela queda e pela mão estendida na hora certa, por toda a

aprendizagem obtida nessa trajetória, só há um agradecimento a fazer... a Deus!

Pela Profª Dra. Laurinda Ramalho de Almeida, orientadora desta pesquisa

que, com competência e dedicação, guiou-me nos caminhos wallonianos,

colocando-se à frente para desbravar regiões mais difíceis de serem adentradas e

encorajando-me a fazer o mesmo. Se cheguei até aqui foi porque tive o privilégio de

contar com ela...

Pela Profª Dra. Vera Maria Nigro de Souza Placco que, pelo compromisso

com a qualidade da pesquisa acadêmica, exigiu que eu fosse além do que

imaginava conseguir. Não sei se cheguei até onde deveria mas, olhando para o

ponto do qual parti, sei que caminhei muito. Agradecer me parece tão pouco...

Pela Profª Dra. Regina Célia de Almeida Rego Prandini que, com toda a

habilidade que lhe é puculiar, mostrou-me aquilo que estava tão próximo de mim,

sem que eu pudesse enxergá-lo. Contar com as suas considerações neste trabalho

foi um presente que eu não imaginava receber...

Pela Profª Dra. Mitsuko Aparecida Makino Antunes e pela Profª Dra. Maria

Regina Maluf que durante as suas aulas não se limitaram ao ensino de um

conteúdo, de um método, de um fato... a alegria de poder contribuir com a

aprendizagem e o desenvolvimento dos seus alunos é uma marca que levarei para

sempre comigo...

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Pelo meu marido, João Carlos Hoffmann, pelo apoio constante aos projetos

que me proponho a realizar e pelo investimento nesta etapa da minha vida. Contar

com tudo isso foi fundamental para chegar até aqui...

Pela minha mãe, Luiza Correia Araujo, modelo de superação das limitações

impostas pela vida, sua maneira de acreditar que há sempre uma força que

desconhecemos dentro de cada um, nos dirige para avante. Como foi bom contar

com o seu carinho e compreensão nos meus momentos de crise. Você sabe me

fazer sair da sua presença mais feliz...

Pela minha filha, Aline Pessôa Hoffmann, que precisou lidar com a minha

ausência e, muitas vezes, para contar com a minha companhia no período da

realização desta pesquisa, pegou cadernos e canetas para “estudar” comigo... Sua

existência dá sentido à minha luta pelo mundo melhor que você merece...

Pelos meus irmãos, cunhados e sobrinhos, que por serem muitos não seria

possível falar de cada um individualmente, apesar de merecerem tal destaque.

Foram eles que, inúmeras vezes, foram buscar a minha Aline na escola para que eu

não perdesse aula; eles não me deixaram ir para as aulas a pé quando o meu carro

apresentava problemas; foi na porta da casa deles que eu bati quando a minha

impressora não funcionou e eu precisava imprimir um trabalho... ainda que fosse

num domingo às 23h. Suportaram a minha ausência nos almoços de família,

aniversários e confraternizações que sempre foram tão importantes na família. Sei

que teriam feito muito mais se preciso fosse... eles são demais!

Pelo participante desta pesquisa, Moreira, cuja história de vida aqui

compartilhada tem sido referência para diversas reflexões, não só no âmbito desta

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pesquisa mas também sobre a minha prática como profissional da educação.

Entrevistá-lo foi para mim um grande aprendizado...

Pelas verdadeiras amizades constituídas durante o mestrado, dentre as

quais destaco Ana Lúcia Pereira, parceira em todos os momentos dessa caminhada.

Nas horas difíceis sempre pude contar com a sua mão estendida... Pelas amigas

Adriana Soares Souza e Soraya Ramirez, cujo apoio no desenvolvimento desse

trabalho foram de extrema importância...

Pelos amigos da EE Pasquale Peccicacco, a qual pertenço, representada

aqui pela diretora Débora Finocchiaro, pessoa de extrema importância na minha ida

para a Diretoria de Ensino por ocasião da minha aprovação no mestrado...

Pelos parceiros profissionais e amigos da Diretoria de Ensino Norte 1,

destacando aqui o Prof. Michel Abou Assali, Dirigente de Ensino, pelo incentivo

constante ao estudo, à formação e pela exigência de uma prática pedagógica de

qualidade. Na Oficina Pedagógica, setor desta diretoria onde hoje atuo, é impossível

não agradecer a todos os colegas que acompanharam cada passo dessa trajetória,

alguns deles desde o seu início, e com os quais sempre pude contar, como é o caso

do Coordenador Luiz Carlos Tozetto, Robson Cleber da Silva, Marta Raquel Bonafé,

Adriana dos Santos Cunha, Luiz Fernando Vagliengo, Milton Álvaro Menon. Eles

presenciaram a minha chegada à diretoria, trazendo na bagagem o desejo de

consertar o mundo inteiro e puderam acompanhar o amadurecimento desta

pesquisa...

Pela bolsa de estudo recebida pela Secretaria de Educação do Estado de

São Paulo, sem a qual o desenvolvimento desta pesquisa não teria sido possível...

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A todos aqueles que de alguma forma estiveram comigo na construção desse trabalho, deixo essa poesia que diz muito mim...

Metade

Que a força do medo que tenho não me impeça de ver o que anseio. Que a morte de tudo em que acredito não me tape os ouvidos e a boca. Porque metade de mim é o que eu grito... mas a outra metade é silêncio. Que a música que ouço ao longe seja linda ainda que tristeza. Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada, mesmo que distante. Porque metade de mim é partida... mas a outra metade é saudade. Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor, apenas respeitadas como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos. Porque metade de mim é o que ouço... mas a outra metade é o que calo. Que essa minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço. Que essa tensão que me corrói por dentro seja um dia recompensada. Porque metade de mim é o que eu penso... mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável. Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso que eu me lembro ter dado na infância. Por que metade de mim é a lembrança do que fui... a outra metade eu não sei. Que não seja preciso mais do que uma simples alegria pra me fazer aquietar o espírito. E que o teu silêncio me fale cada vez mais. Porque metade de mim é abrigo... mas a outra metade é cansaço. Que a arte nos aponte uma resposta, mesmo que ela não saiba. E que ninguém a tente complicar porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer. Porque metade de mim é platéia... e a outra metade é canção. E que a minha loucura seja perdoada. Porque metade de mim é amor e a outra metade... também.

(Oswaldo Montenegro)

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O temor do Senhor é o princípio do saber, mas os loucos desprezam a 

sabedoria e o ensino.  

Provérbios 1, 7 

Tradução: João Ferreira D’Almeida 

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Resumo

Partindo do pressuposto de que o outro desempenha papel de relevância na

atuação de um profissional, esta pesquisa busca compreender o papel que este

outro exerce na atuação de um Professor Coordenador. Entende-se que, desse

modo, seja possível apreender aspectos relevantes que possam contribuir para uma

atuação cada vez melhor desse profissional junto à sua equipe docente. A

metodologia adotada para a realização desta pesquisa foi a narrativa autobiográfica

por entender-se que a análise de uma trajetória particular pode desvelar aspectos da

categoria como um todo. Para tanto, selecionou-se um Professor Coordenador, cujo

trabalho realizado foi considerado de sucesso durante o tempo em que atuou nesta

função, expresso por aqueles que com ele trabalharam. A teoria psicogenética de

Henri Wallon, mais especificamente no que se refere à relação eu-outro, meios e

integração (das dimensões funcionais: afetividade, ato motor, conhecimento e

pessoa, bem como organismo-meio), foi desencadeadora da questão de pesquisa e

ofereceu recursos para iluminar os dados na análise. Como resultado da forma de

análise proposta, alguns pontos se destacaram: a relação eu-outro pressupõe troca,

reciprocidade; a relação eu-outro pautada em negociações propicia condições mais

favoráveis ao desenvolvimento; o outro íntimo, parceiro constante do eu, torna-se

aparente nas situações de decisão e mudança de rumo. Compreender a pessoa

numa perspectiva integradora permite reavaliar a prática pedagógica do Professor

Coordenador junto à sua equipe docente, tornando-a mais adequada ao

desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem.

Palavras-chave: Professor Coordenador; Formação de Professores; Psicogenética

de Henri Wallon.

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Abstract

Supposing that the other exerts relevant influence at a professional actuation, this

search looks for to understand the figure that this other exerts on a Coordinator

Teaching actuation. From this point of view, we believe to be possible to catch

relevant aspects which may contribute for an improvingly better actuation of this

professional with his teaching staff altogether. The methodology adopted to compose

this search was an autobiographic narrative since we understand that the analysis of

a particular trajectory may disclose aspects of that category as a whole. Thereby we

selected a coordinator Teacher, whose work has been considered outstanding during

all the time he exerted that function, as expressed by those who had worked with

him. The psychogenetic theory of Henry Wallon, more specifically the section

referring to the me-other relationship, means and integration (of functional

dimensions, affectivity, motion act, knowledge and person, as well as organism-

mean), was the reason for the question of this search, and offered resources to

illuminate the analysis data. As a result of the proposed analysis, some points

excelled: the relationship me-other, implies changes, reciprocity; the relationship me-

other based on negotiations propitiates more favorable conditions to the

development; the intimate other, constant partner of me, turns apparent at decisions

situations and course changes. To understand the person at an integrator

perspective, permits re-evaluate the Coordinator Teacher pedagogic practices

together with his teaching staff, turning it to a more adequate to the teaching-learning

process development.

Key words: Coordinator Teacher; Teachers Graduation; Psychogenetic of Henri

Wallon.

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Lista de Ilustrações

Figura 1

A Rua da Barragem........................................................................ 84

Figura 2

O vilarejo em que Moreira morava: a região sem iluminação ...... 90

Figura 3

O marceneiro que Moreira gostava de observar na sua infância... 93

Figura 4

A Barragem..................................................................................... 98

Figura 5

As mulheres lavavam a louça e a roupa na barragem enquanto as crianças nela brincavam.............................................................

100

Figura 6

Parte da Barragem de onde geralmente as crianças retiravam a argila para construir os seus brinquedos........................................

103

Figura 7

Moreira ao chegar em São Paulo, na 1ª série................................ 113

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Apêndices

Apêndice A

Transcrição da 1ª entrevista........................................................... 131

Apêndice B

Transcrição da 2ª entrevista........................................................... 148

Apêndice C

Síntese esquemática da 1ª entrevista............................................. 167

Apêndice D

Síntese esquemática da 2ª entrevista............................................. 172

Apêndice E

Sistematização dos dados da narrativa.......................................... 182

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Sumário

Introdução.................................................................................. 16

1. Origem do problema e delineamento da pesquisa................ 24

1.1 Objetivo do Estudo...................................................................... 28

1.2 Delimitação da Pesquisa............................................................. 29

1.3 Relevância do Trabalho.............................................................. 30

1.4 Perspectiva da Pesquisa............................................................. 31

1.5 Narrativa Autobiográfica.............................................................. 33

1.6 A realização da pesquisa............................................................ 36

1.7 A definição de uma trajetória....................................................... 38

1.8 O percurso metodológico............................................................ 41

2 O referencial teórico de Henri Wallon..................................... 46

2.1 O desenvolvimento do psiquismo humano................................. 48

2.2 Integração................................................................................... 49

2.3 Afetividade................................................................................... 50

2.4 Ato Motor..................................................................................... 57

2.5 Conhecimento............................................................................. 61

2.6 Pessoa......................................................................................... 63

2.7 Os meios..................................................................................... 65

2.8 Os grupos.................................................................................... 70

2.9 O outro, os outros e o outro íntimo.............................................. 74

2.10 Princípios wallonianos de desenvolvimento................................ 79

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3. Apresentação e análise dos dados......................................... 81

3.1 Fato e cenário: a construção de uma visão panorâmica............. 82

3.2 A questão sobre o outro na narrativa autobiográfica.................. 88

3.2.1 Um contador de histórias, um marceneiro, um artesão... marcas desses outros reais........................................................

89

3.2.2 A barragem, as brincadeiras, a escola... implicações dos meios também chamados de outros......................................................

98

3.2.3 Conflitos, escolhas, desafios... o outro íntimo na construção de uma trajetória...............................................................................

111

4. Uma conclusão possível.......................................................... 120

Referências................................................................................ 128

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Introdução

A  escola  não  pode  esquecer  que  toda  prática  verdadeiramente pedagógica tem por finalidade o desenvolvimento da pessoa e o fortalecimento do eu. Sua  intenção, portanto, tem de ser  levar o aluno  a  fortalecer  sua  autoestima,  ter  confiança  em  si  e  nos outros,  ter  respeito  próprio.  E,  assim  fortalecido,  pode  ser solidário em suas relações. 

(ALMEIDA, 2009, p.85) 

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Atuando desde o ano 2000 nas séries iniciais do ensino fundamental (1º ao

5º ano), nas redes particular e pública estadual paulista, como Professora e

Professora Coordenadora, foi possível perceber em diferentes momentos o quanto

do meu proceder assemelhava-se com muitos daqueles com os quais convivi

durante a vida. Percebi também que as decisões por mim tomadas, as quais

delinearam a minha trajetória de vida, também revelavam o eco dessas outras

pessoas em mim. Um exemplo disso é a própria opção que fiz pela carreira docente.

Recordo-me que, ainda criança, muito me aprazia ouvir o meu irmão Laércio

explicar sobre os princípios básicos do funcionamento de um aparelho de televisão...

sobre o que é o sistema solar... o buraco negro... como se forma o arco-íris... como a

imagem era projetada numa tela de cinema... Para cada explicação havia uma série

de desenhos e objetos que se transformavam em planetas, estrelas, mecanismos,

enfim, no que fosse necessário para que eu pudesse compreender o assunto em

pauta. A verdade é que eu não chegava a compreender aquelas ideias complexas,

mas isso não era motivo de frustração para mim. O que considerava fascinante era

vê-lo “transformar” os materiais disponíveis ao nosso redor tecendo suas

considerações e exemplificações sobre algo, repetindo quantas vezes fossem

necessárias, com modificações que pudessem auxiliar o meu entendimento, sem

demonstrar indícios de impaciência. Sentia sua determinação ao ensinar, seu

empenho, percebia que o desafio de conseguir com que eu entendesse aquilo que

ele se propôs a explicar-me era algo que o empolgava. Admirava-o e pensava:

“quando crescer, quero ser assim”. Ainda que não soubesse disso na época acredito

que, desde então, intimamente alimentei o desejo de lecionar, pois, como

professora, teria a oportunidade de também realizar essas “transformações mágicas”

para explicar algo a alguém.

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Somente aos 28 anos foi possível ingressar numa universidade com o

propósito de me preparar para a realização desse desejo de tornar-me professora.

Cursei Pedagogia contando com o apoio fundamental de toda a minha família.

Contudo, destaco duas pessoas extremamente importantes: minha mãe (que

sempre acreditou nos meus sonhos e os alimentou com a sua fé, coragem e crença

num futuro melhor – esperança inabalável de uma das tantas migrantes que viajou

com sua família de Alagoas para São Paulo, na década de 50, para tentar uma vida

melhor, trazendo na bagagem um mundo de sonhos pueris...) e meu marido (que

dissipou meus medos e se colocou ao meu lado disposto a transpor comigo – e não

por mim – todos os obstáculos que dificultassem o meu caminho; ao lado dele tudo

parecia possível).

Em 2000 comecei a lecionar para uma turma da então 1ª série (atualmente

2º ano) do ensino fundamental em uma escola particular. O início da docência é um

período em que os medos e as inseguranças imperam. Foi assim que, no cotidiano

escolar, nos momentos em que as teorias mostravam suas lacunas e as incertezas

se faziam presentes, fui percebendo o quanto do meu irmão Laércio havia em mim.

Ele era o meu referencial para buscar soluções a partir daquilo que havia na sala de

aula ou daquilo que pudesse aproximar-se do que os alunos conheciam bem,

ilustrando o assunto que estava sendo tratado. É sabido que existem aportes

teóricos que embasam essa prática pedagógica, entretanto, o que as minhas

lembranças apontavam-me não eram apenas os estudos realizados, havia também

a imagem do meu irmão, com as estratégias e a paciência que lhe eram peculiares.

E isto não era tudo. Havia na minha atuação como professora, ações que me

remetiam também a: outros professores que tive ao longo da minha formação

(desde a Professora Valdete, na 1ª série (atual 2º ano) até a Professora Consuelo –

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de Filosofia – na Universidade); aos meus outros cinco irmãos (o jeito de brincar do

Luciano, a habilidade manual da Maria Aparecida – Tuca, a praticidade da Luci –

Cica, o bom humor da Lúcia, a garra do Luiz); ao meu pai; aos amigos da infância,

adolescência e juventude (especialmente a inseparável Maria da Penha).

Mais surpreendente, ainda, foi perceber que mesmo aqueles pelos quais eu

não nutria nenhuma admiração ou até mesmo cujas atitudes eu reprovava, também

se faziam presentes na minha prática como referências daquilo que eu não gostaria

de fazer. Em momentos mais críticos, prestes a perder o controle da situação, dizia a

mim mesma: não posso ser como aquele(a) professor(a); vou respirar fundo e

buscar uma outra solução. Ou então, ao refletir sobre uma atitude inadequada já

realizada, pensava: por que agi deste modo se eu mesma já disse a alguns colegas

que este não é o jeito mais adequado de lidar com essa situação?

Recordo-me que a diretora de uma escola disse que eu precisava ter um

filho logo. Ela dizia gostar muito do meu trabalho, mas acreditava que ter um filho

era fundamental para o professor que atua nas séries iniciais pois, nas palavras

dela, como pai ou mãe este profissional teria “um outro olhar” para o aluno. Anos

depois, já com uma filha, eu dizia aos alunos coisas como: “Coloque a blusa, está

frio!” ou “Não tome gelado, você não estava muito bem ontem”. Nesses momentos,

recordava-me das palavras daquela diretora, pois antes de ter a minha filha, esses

cuidados até existiam na minha prática, mas eram como formalidades a serem

cumpridas; eu não me preocupava muito com eles, pois não tinha a dimensão das

suas possíveis consequências.

Numa outra etapa profissional, ou seja, na minha atuação como Professora

Coordenadora, reconhecia em mim mesma alguns professores que participaram da

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minha formação. Eu procurava imitá-los pela competência de suas aulas, pelo

respeito ao aluno, pelo comprometimento com a educação. Outros, entretanto,

serviam para lembrar-me daquilo que eu não gostaria de fazer sob o risco de faltar

com o compromisso assumido como educadora.

Uma experiência marcante na minha trajetória profissional ocorreu quando

conheci a professora Cida que lecionava Geografia. Era o meu primeiro ano como

professora e eu a admirava pela forma como havia me acolhido no grupo, bem como

pelo modo como lidava com os alunos: sempre com muito respeito, carinho e

paciência, de modo a permanecer, por onde quer que estivesse na escola, sempre

rodeada de alunos. Nas formaturas de todas as turmas era certa a homenagem à

professora Cida. De certa forma eu me espelhei nela e quis tornar-me também uma

professora cujos alunos estivessem sempre ao seu redor. Esforcei-me para

conquistar o carinho dos meus alunos do mesmo modo que a professora Cida o

havia conquistado junto aos seus. No afã de tornar-me “igual” a ela perdi o controle

da situação, pois não era eu mesma. Eu havia conseguido alunos à minha volta

mas, ao contrário do que eu imaginava, aquilo não me deixava numa situação

confortável. Eu sentia o meu espaço invadido por eles e ficava incomodada; eu

sentia falta e necessidade dos meus momentos de privacidade. Percebi, então, que

apesar de muito admirar a relação da Professora Cida com os seus alunos eu não

poderia ser “igual” a ela. Abandonei a ideia de imitá-la e os alunos demonstraram

que gostavam mais de mim do jeito que realmente eu era.

Entretanto, não pude (nem quis) “apagar” a professora Cida da minha vida.

Ela é uma referência pessoal e profissional para mim até hoje. Trabalhamos em

outra escola juntas e a nossa parceria sempre foi muito produtiva. Mas compreender

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que nem tudo que é admirável em uma pessoa o será também em mim mesma foi

uma valiosa lição.

Por vezes a minha atuação como professora também me remetia às

pequenas e ingênuas histórias que a minha mãe contava, as quais lhe tinham sido

narradas pela minha avó como expressão da verdade, para delas serem retirados

ensinamentos que orientassem o convívio social. Também recordava a sensação de

felicidade quando a professora substituta das séries iniciais nos deixava desenhar e

pintar livremente. Invadia-me, em diversos momentos, a lembrança da liderança

exercida pelo gerente das empresas para as quais trabalhei antes de ingressar no

magistério; as diferentes atitudes dos meus amigos de outrora que me deixavam

triste ou alegre e que, portanto, serviam, em alguns momentos, como reguladoras da

minha conduta social.

Hoje, observando a minha filha de sete anos, percebo o quanto de suas

ações são parecidas com as minhas (na época em que eu tinha a sua idade) e como

as minhas atitudes como mãe se assemelham com as da minha mãe. Por outro

lado, como avó, a minha mãe é com a minha filha muito diferente do que foi comigo

como mãe: é mais permissiva, paciente, tolerante... Essa reflexão me fornece

elementos para inferir que é provável que, quando me tornar avó, terei um

comportamento análogo ao da minha mãe... Não porque esteja determinado que a

história se repita ou porque haja uma transmissão hereditária de comportamentos,

mas porque na nossa convivência vamos nos constituindo mutuamente de modo

processual, dinâmico, contínuo... Não sou a mesma pessoa todos os dias e as

experiências vivenciadas na relação com os outros me constituem a cada dia (posso

apresentar um comportamento parecido com o da minha mãe) ao mesmo tempo em

que desses outros me diferencia (não posso ser “igual” à professora Cida). De modo

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concomitante a esta diferenciação individual, há também a permanência de certos

padrões relacionados ao comportamento humano, à cultura em que se está inserido,

às regras que são estabelecidas em prol do bem comum.

Transpondo essas reflexões para a minha atuação profissional, sobretudo

como Professora Coordenadora, onde as relações que ocorrem no processo de

formação de professores revelam aspectos que corroboram com a premissa de que

os outros exercem papel de relevância na formação do indivíduo, surgiu o desejo de

investigar a relação eu-outro a partir do princípio que doravante torna-se o

pressuposto desta pesquisa, ou seja: se o outro desempenha papel de relevância na

atuação de um profissional, refletir sobre o papel que este exerce na atuação de um

Professor Coordenador, buscando compreender tanto quanto possível como se

constitui essa trama, pode desvelar aspectos significativos que possam contribuir

para uma atuação cada vez melhor do Professor Coordenador junto à sua equipe

docente.

Considerando o fato de que a análise da trajetória particular de um

profissional pode desvelar aspectos da categoria e, no caso deste estudo, das

relações que se estabelecem na atuação do Professor Coordenador junto à sua

equipe docente, a metodologia adotada para a realização desta pesquisa foi a

narrativa autobiográfica, pois ela permite explicitar a singularidade, e com ela,

vislumbrar o universal... (WARSCHAUER In JOSSO, 2004, p.10).

Eu desconhecia, até o ingresso no mestrado, as possibilidades teóricas para

o trabalho com esse tema. Ao me deparar com o texto O papel do outro na

consciência do eu (WALLON, 1973a), vislumbrei o estudo que ora se materializa na

forma desta dissertação. Seu fundamento teórico é, portanto, a teoria psicogenética

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walloniana e são utilizadas as narrativas autobiográficas em seu percurso

metodológico.

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1 Origem do problema e

delineamento da pesquisa Compreender  como  se  dá  o  desenvolvimento  das  funções  do 

domínio  do  conhecimento  e  o  papel  do  movimento  e  da afetividade  para  sabermos  canalizá‐las  a  favor  do  processo  de aprendizagem  é  essencial  para  o  desenvolvimento  da  atividade docente. 

(PRANDINI In MAHONEY E ALMEIDA, 2004, p.45) 

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Assumir a Coordenação Pedagógica do ensino fundamental em uma escola

da rede particular foi uma experiência significativa na minha trajetória profissional.

De fato, o trabalho pedagógico realizado para além da sala de aula, na perspectiva

do Professor Coordenador, possibilita a ampliação dos conhecimentos referentes à

prática pedagógica: o seu planejamento, o seu discurso, o seu trabalho como um

todo não tem uma relação direta com o aluno, sua relação é mediada pela ação dos

professores. O Professor Coordenador, portanto, lida de forma mais direta com a

equipe docente, o que é algo bastante complexo, um desafio constante no cotidiano

escolar; contudo, é uma relação de aprendizagem recíproca.

Enquanto participava de cursos de formação e especialização fora do

ambiente da minha atuação profissional, como Professora Coordenadora, durante

debates e discussões que realizávamos em grupos, surpreendi-me defendendo

ideias e posicionamentos que outrora me foram expostos por um ou mais

professores da minha equipe de trabalho. Naqueles momentos (em que reconhecia

o outro no meu discurso) e a partir deles, sentia o quanto aquela argumentação por

mim proferida passava a expressar também o meu ponto de vista, o meu jeito de ver

as coisas. E no meu discurso era notável o retumbar das palavras proferidas por

este outro em mim, este outro que era eu.

Desde então, passei a refletir sobre a importância do outro no processo

contínuo da constituição humana. Compreender que o outro exerce papel de

relevância na minha atuação pessoal e profissional exerceu certo impacto na minha

prática pedagógica: passei a ouvir os professores com mais atenção, propiciar

espaços para discussão e debate, tomar decisões de modo coletivo sempre que

possível, estabelecer objetivos articulando o perfil da equipe docente com os

desafios da educação. Na medida em que tais práticas foram se tornando

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frequentes, a relação dos professores com a Coordenação Pedagógica tornou-se

mais intensa. Os professores tornaram-se mais receptivos em relação às propostas

de trabalho que lhes eram apresentadas, envolviam-se mais nas atividades que

realizavam, procuravam a Coordenação para expor ideias que pudessem melhorar

as atividades desenvolvidas na escola, evitavam faltar nas reuniões agendadas e,

quando era necessário fazê-lo, avisavam com antecedência, na maioria das vezes.

De um modo geral, a compreensão de que o outro exerce um papel relevante na

minha atuação profissional modificou significativamente a minha prática pedagógica.

A afirmação de Fullan e Hargreaves (2000, p.56), encheu-se de sentido para mim:

Nosso desenvolvimento dá-se através de nossas relações, em especial daquelas que estabelecemos com pessoas importantes para nós. Essas pessoas agem como uma espécie de espelho para nossos “eus” em desenvolvimento. Se em nossos locais de trabalho há pessoas que são importantes para nós e estão entre aquelas por quem temos consideração, eles (sic) terão uma enorme capacidade para, positiva ou negativamente, influenciar a espécie de pessoas e, por conseguinte, a espécie de professores que nos tornamos.

De um lado uma constatação pessoal sobre a importância do outro na atuação do

indivíduo, numa outra perspectiva a concepção de Wallon sobre o papel do outro. A

realização desta pesquisa surge, então, do desejo de articular um pressuposto

pautado em reflexões pessoais, o de que o outro exerce um papel relevante na

minha atuação profissional, com o referencial teórico de Wallon para validá-la. Para

quê? Para que possa contribuir com uma atuação progressivamente melhor do

Professor Coordenador junto à sua equipe docente.

São muitas as relações que se estabelecem na rotina do Professor Coordenador:

alunos, pais, professores, comunidade, profissionais que atuam na secretaria, na

direção, na diretoria de ensino, enfim... há uma rede da qual o Professor

Coordenador faz parte e com a qual precisa saber lidar. Dentre todas essas relações

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e outras tantas que possam ser estabelecidas no seu locus de atuação, a escola,

urge que se reflita sobre as relações entre Professor Coordenador e equipe docente,

em especial, porque é nessa relação que se insere o processo de formação

continuada, uma das principais atribuições do Professor Coordenador.

Placco (2008, p.62), referindo-se à relação Professor-Aluno, afirma que:

Na sala de aula, a especificidade da relação professor-aluno precisa ser mais bem compreendida enquanto aspecto do desenvolvimento dos atores da prática social da educação. Essas relações, ao mesmo tempo pessoais/ interpessoais e sociais, têm, em sua origem, a preocupação pedagógica e educativa.

Penso que esse mesmo princípio apresentado por Placco para referir-se à relação

Professor-Aluno pode ser utilizado para compreender a relação Professor

Coordenador-Equipe Docente que também tem, em sua gênese, uma preocupação

de caráter pedagógico. É por esse motivo que tais relações precisam ser analisadas

à luz de uma teoria que possa oferecer possibilidades para potencializá-las e,

consequentemente, melhorar a prática educativa.

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1.1 Objetivo do Estudo

Este estudo propõe-se a investigar o papel do outro na atuação de um

Professor Coordenador. Utilizando-se da narrativa autobiográfica, busca analisar

retrocessos e avanços, inspirações e modelos, caminhada e trajetória, fracassos

e sucessos... Seu propósito final é compreender, à luz da teoria walloniana, a

importância do outro na sua atuação profissional, articulando reflexões que

possam propiciar melhorias no cotidiano do Professor Coordenador com a

equipe docente.

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1.2 Delimitação da Pesquisa

Sabe-se que são muitas as atribuições sob a responsabilidade de um

Professor Coordenador na escola. Sua atuação inclui, além do trabalho

pedagógico propriamente dito, atividades administrativas, atendimento aos pais,

aos alunos, à comunidade, participação na organização de eventos que

acontecem no âmbito escolar, acompanhamento das excursões e outras saídas

dos alunos, etc. Contudo, para tornar possível a realização deste estudo foi

preciso demarcar, fazer escolhas, ou seja, definir sua abrangência, deixando de

lado uma série de possibilidades e informações que poderiam contribuir com o

propósito de uma pesquisa acadêmica que tenha por meta refletir sobre a

atuação do Professor Coordenador. Deste modo, a delimitação dos aspectos

aqui priorizados reconhece os seus limites por não tratar de “todas” as

atribuições definidas para o Professor Coordenador, mas acredita que tal

restrição permite aprofundar a investigação no seu campo de estudo, apontando

um caminho possível, dentre outros. Assim, esta pesquisa foca as relações

vivenciadas pelo Professor Coordenador com o outro (numa perspectiva

walloniana), sobretudo aquelas que apresentam reflexos na sua prática

pedagógica. É mister que se esclareça o fato de que será utilizada a expressão

Professor Coordenador no lugar de Coordenador Pedagógico devido ao fato de

ser esta a nomencletura atualmente utilizada pela Secretaria Estadual de

Educação do Estado de São Paulo, a qual pertenço e onde foi realizada esta

pesquisa.

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1.3 Relevância do Trabalho

Entende-se que os resultados obtidos na investigação que esta pesquisa

se propôs a realizar podem ser relevantes na medida em que, por meio da

reflexão e análise realizada a partir dos relatos de um Professor Coordenador,

fornecem indicadores para compreender e potencializar a atuação deste

profissional junto à sua equipe docente, podendo, inclusive, apresentar

elementos a serem considerados nos programas de formação de professores.

Isto porque, com a possibilidade de “enxergar” caminhos já trilhados por outrem,

o desgaste com alguns equívocos podem ser evitados e, consequentemente, o

Professor Coordenador poderá potencializar a sua atuação junto à sua equipe

de professores. Nesta perspectiva, experiências de sucesso merecem um olhar

atento que possa verificar a sua aplicabilidade junto à equipe sob a sua

Coordenação, buscando sempre as adaptações necessárias à sua realidade, à

sua especificidade, ao seu objetivo.

É neste contexto que se insere este estudo, buscando desvelar aspectos

facilitadores que possam contribuir para a construção de uma prática

pedagógica mais eficaz para o Professor Coordenador.

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1.4 Perspectiva da pesquisa

A narrativa autobiográfica está imersa num contexto de formação de

adultos, onde o participante da pesquisa, a partir de seus relatos experienciais1,

vai traçando um itinerário que o permite: refletir sobre os acontecimentos

significativos neles presentes; compreender com mais clareza as escolhas que

se sucederam; planejar ações futuras com mais propriedade. Por esse motivo,

há autores que adotam a narrativa autobiográfica numa perspectiva de

pesquisa-formação, assim denominada visto que os participantes envolvidos na

investigação são, concomitantemente, autores e atores da formação, conforme

assinala Nóvoa, quando afirma que:

O seu contributo principal passa pela definição das histórias de vida como metodologia de pesquisa formação, isto é, como metodologia onde a pessoa é, simultaneamente, objeto e sujeito da formação. (NÓVOA In JOSSO, 2004, p.15)

Assim, é mister que se esclareça que esta não é a perspectiva aqui

adotada, visto que os conhecimentos, experiências e relações pessoais que uma

pessoa estabelece ao longo da sua trajetória podem ou não ser transformados

em formação. A aprendizagem, o conhecimento e, portanto, a formação

dependem de elaborações pessoais para que possa obter o êxito esperado.

Este é também um dos grandes motivos pelo qual Wallon já não admitia a

separação entre afetividade e conhecimento, pois um não ocorre sem o outro e

a autoridade conferida a outra pessoa ou situação de ensino é também uma

questão afetiva.

                                                            1 Neologismo derivado do vocábulo experiência. 

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Outra consideração igualmente relevante a ser enfatizada relaciona-se

com a questão temporal, ou seja, com o período necessário a cada um para

compreender-se a si mesmo e optar ou não pelo investimento próprio em

mudanças, em formação. Este tempo poderia compreender o período em que

esta pesquisa se realiza ou necessitar de um intervalo maior para ganhar outra

perspectiva por parte do entrevistado, podendo, ainda, os aspectos tratados no

estudo não se tornarem significativos para ele e, consequentemente, não

mobilizá-lo. Não obstante, admite-se também a opção que faz o autor do relato

autobiográfico em tornar ou não pública a sua decisão sobre mudança ou

formação. A propósito, vale ressaltar que tal decisão é válida para toda narrativa

realizada durante a pesquisa, visto que coube ao participante selecionar o que

iria explicitar e até que ponto, bem como escolher de que forma o faria.

Assim, ainda que a metodologia adotada para esta pesquisa propicie ao

seu participante a possibilidade de formação, este não é o seu intento primeiro,

nem motivo de preocupação que levasse a pesquisadora a buscar estratégias

com vistas a promovê-la. Entende-se que a formação pode surgir como

consequência da reflexão sobre os relatos autobiográficos, mas não numa

relação de causa e efeito e sim como uma possibilidade que pode ou não ser

adotada pelo participante da pesquisa ao qual pertence a decisão da

autoformação.

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1.5 Narrativa Autobiográfica

A narrativa autobiográfica é, muitas vezes, entendida como análoga à

história de vida. No entanto, Josso (2004, p.31) apresenta uma diferenciação

entre ambas:

Notar esta diferença é salientar que as histórias de vida postas ao serviço de um projeto são necessariamente adaptadas à perspectiva definida pelo projeto no qual elas se inserem, enquanto que as histórias de vida, no verdadeiro sentido do termo, abarcam a globalidade da vida em todos os seus aspectos, em todas as suas dimensões passadas, presentes e futuras e na sua dinâmica própria.

Longe de querer estabelecer níveis de relevância entre as duas

modalidades, tal distinção visa esclarecer as especificidades de cada uma delas,

bem como os objetivos que se propõem a cumprir, de modo a fornecer à

pesquisadora a possibilidade de realizar escolhas que estejam de acordo com a

sua proposta.

No caso desta pesquisa, as histórias de vida postas a serviço de um

projeto, que Josso também denomina abordagem autobiográfica ou abordagem

experiencial, são aqui entendidas como narrativas autobiográficas, uma vez que,

a partir dos relatos coletados, foram selecionados para fins de análise aqueles

considerados significativos na sua relação com o tema “O papel do outro na

atuação do Professor Coordenador”.

Entende-se, portanto, que a definição do tipo de abordagem

autobiográfica a ser utilizada na pesquisa tem por meta focalizar o objeto do

estudo, evitando que as informações não relacionadas com o tema ofusquem ou

obscureçam os aspectos da narrativa que são relevantes para o tema proposto.

Há relatos interessantes e há relatos importantes que surgem durante a coleta

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de dados. Para a análise foram selecionados aqueles que se articulam com o

tema central da pesquisa.

Paradoxalmente, ainda que muitas informações tenham sido

descartadas para efeito de análise dos dados, elas não foram evitadas; tiveram

espaço garantido durante o tempo necessário para que o seu autor as

rememorizasse de modo satisfatório. Esta decisão deve-se ao fato de se

reconhecer que a pessoa2 tem uma constituição psíquica integrada. Sendo

assim, as experiências que vivenciou não estão compartimentalizadas, mas

relacionam-se direta ou indiretamente com outras experiências. Esta articulação

sugere admitir que, para que seja possível resgatar na narrativa autobiográfica

um aspecto que remeta à questão central deste trabalho, pode ser necessária

uma incursão em outras áreas da vida do participante desta pesquisa. É como

desembaraçar um emaranhado de fios: é preciso encontrar pelo menos uma das

extremidades, afrouxar os nós e passar a ponta por dentro deles, refazendo um

caminho oposto àquele que culminou na situação atual. Este “retorno”, contudo,

ocorre a partir de trajetórias diferentes que dependem de vários fatores, como o

olhar de quem está a desatar os nós, o que este entende por ser o caminho

mais fácil, as experiências anteriores com esta tarefa, dentre outros. Tal

“retorno”, muitas vezes, deixa a impressão de que a situação está ficando mais

complicada (e não se pode negar que esse é realmente um risco). Porém, sem

desfazer cada um dos nós, não se obtém o resultado esperado que, no caso

deste exemplo, é esticar os fios.

                                                            2 Pessoa é um  conceito genérico, uma abstração utilizada por Wallon em oposição ao  sujeito  concreto. Ele constrói o conceito de pessoa que é o conjunto funcional resultante da integração dos outros três (afetividade, ato motor e  conhecimento).  “Pessoa é  todo diante do qual  cada um dos outros domínios deve  ser visto...” (PRANDINI, 2004, P.20) 

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Isto posto, delimita-se um foco a ser observado na narrativa do

participante da pesquisa, o que não significa dizer que serão considerados

somente os aspectos significativos contados a partir da sua formação

profissional ou atuação como Professor Coordenador. As diferentes razões,

motivos, influências e modelos podem ser encontrados, por exemplo, ainda na

infância.

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1.6 A realização da pesquisa

A entrevista autobiográfica, instrumento prioritariamente utilizado neste

estudo para potencializar o relato oral, oferece vantagens e limitações como,

aliás, todo instrumento de pesquisa. Uma de suas consideráveis vantagens em

relação a outros instrumentos está no fato de permitir uma relação face a face

(entrevistado/entrevistador), o que possibilita à pesquisadora a exploração

imediata dos aspectos que a pesquisa se propõe a investigar, bem como o

esclarecimento pontual dos fatos que sugerem mais de uma interpretação ou

cuja compreensão inicial por parte da pesquisadora não foi suficiente. Contudo,

tem como limitação justamente a possibilidade do entrevistado sentir-se

intimidado ou pouco à vontade para revelar-se devido a esta interação face a

face, ou seja, por causa da presença da pesquisadora.

Considerando, ainda, a análise que faz Bolívar (2002, p. 183-184) sobre

a entrevista autobiográfica, quando revela que “numa entrevista não-diretiva de

tipo biográfico o que se procura é encontrar grandes linhas que marquem uma

lógica nos relatos de vida”, foram realizadas duas entrevistas com um Professor

Coordenador, sendo que no primeiro encontro lhe foi solicitado que discorresse

a respeito da sua infância e, no segundo encontro, iniciasse a partir do início da

sua trajetória docente, sendo essas as duas “grandes linhas” em torno das quais

discursou o entrevistado.

Sabe-se, porém, que apesar de toda a tentativa de garantir a obtenção

de informações de modo mais fidedigno possível, há que se considerar, mais

uma vez, que a decisão de se autorrevelar e até que nível isto será feito,

pertence ao entrevistado. Não se trata de afirmar que, deliberadamente, o

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participante da pesquisa vá fornecer informações equivocadas durante as

entrevistas. Este comportamento, que pode ou não ser apresentado de forma

intencional, é compreendido de modo natural, sob a ótica da necessidade

humana de se autoproteger. Qualquer pessoa, numa situação que apresente

algum risco à sua imagem, tende a defender-se com os recursos dos quais

dispõe e, a presença e a escuta de um outro (neste caso, a pesquisadora) pode

ser tranquila ou ameaçadora, dependendo da relação que se estabelece entre

ambos. Ou, ainda, nas palavras de Bolívar (2002, p.183):

...a qualidade do relato biográfico é dependente do grau de relação recíproca que se estabelece entre entrevistador e narrador. E, em certa medida, a própria qualidade e profundidade do relato obtido dependerá do grau de significação humana (empatia) conseguido, de modo que se possa chegar, nos melhores casos, à uma construção mútua de um relato compartido.

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1.7 A definição de uma trajetória

O resultado das duas entrevistas realizadas foi a reunião de um valioso

material, propício a uma diversidade de análises e discussões. Por esse motivo,

é preciso um cuidado redobrado para que não haja desvios quanto ao objetivo

inicialmente proposto, ou seja, compreender o papel do outro na atuação do

Professor Coordenador.

A seleção dos dados das entrevistas não foi uma tarefa fácil. Várias

leituras do material coletado foram realizadas, mas a definição de um ponto

inicial a partir do qual toda a discussão pudesse ser desenvolvida, continuava a

apresentar-se como um caminho difícil de ser trilhado, pois conferir um

tratamento acadêmico a um relato autobiográfico é um trabalho complexo.

Entretanto, a afirmação de Ferrarotti (1986, p. 27) sobre esse aspecto, aponta

para uma forma de iniciar esse trabalho. Diz ele:

Da subjectividade reivindicada à ciência: o que torna único um acto ou uma história individual propõe-se como uma via de acesso – por vezes a única possível – ao conhecimento científico de um sistema social. Via não linear, frequentemente críptica, que exige a invenção de chaves e de métodos novos para ser percorrida.

Desse modo, foram destacados os aspectos da narrativa que, na

perspectiva do Professor Coordenador entrevistado, fossem relevantes ou que,

na visão de Ferrarotti, tornassem “único um acto ou uma história individual...”.

Foram, portanto, consideradas algumas palavras ou expressões, proferidas pelo

participante da pesquisa na 1ª entrevista, que pudessem desvelar esses fatos

significativos, ou seja, “isso ‘marca’ sem dúvida nenhuma”, “é interessante

lembrar”, “minha infância foi marcada dessa forma”, “uma das coisas que me

marcou bastante...”.

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Há, ainda, aqueles fatos para os quais expressões similares não foram

utilizadas e que, ainda assim, foram selecionados devido à importância dada

pelo entrevistado à situação em si no decorrer do seu relato. É preciso

considerar que, todos os aspectos presentes na narrativa do Professor

Coordenador já foram intencionalmente por ele selecionados, o que faz com que

seja possível compreender que todos mereceriam uma análise em profundidade

(tal análise, entretanto, torna-se inviável devido às limitações que envolvem uma

pesquisa de natureza acadêmica no nível do mestrado, além de não ser

compatível com o objetivo do trabalho).

Desse modo, as tabelas 1 e 2 (Apêndices A e B), chamadas de “Síntese

Esquemática da Entrevista”, foram constituídas (a tabela 1 elaborada após a

primeira entrevista e a tabela 2 após a segunda entrevista – ambas seriam

utilizadas na devolutiva ao entrevistado, mas este as dispensou), apresentando

o fato tal como captado pela pesquisadora, bem como o trecho da narrativa que

sustenta essa possibilidade de compreensão.

Após a seleção inicial dos fatos narrados verificou-se, durante a análise,

a necessidade de incluir outros que pudessem explicitar melhor ou validar a

análise em questão. É mister que se resgate que uma narrativa autobiográfica

constitui-se num material de complexidade ímpar, sendo este o motivo pelo qual

impera a necessidade de realizar um trabalho com parâmetro flexível.

A sistematização dos dados nas duas tabelas propiciou uma melhor

visualização e organização das informações selecionadas pela pesquisadora. A

partir de então, foi possível construir a tabela 3 (Apêndice C) para que fosse

possível relacionar os aspectos das experiências narradas com a atuação

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profissional do entrevistado e possibilitar uma articulação inicial com a teoria que

fundamenta este trabalho.

Uma vez selecionados os aspectos da narrativa a serem analisados,

procurando neles identificar a presença do outro, foi preciso buscar um “eco”

desses aspectos na atuação profissional do entrevistado, conforme foram

apresentados no relato da 2ª entrevista. Findada esta etapa, outros aspectos da

teoria walloniana foram relacionados com os dados a serem analisados,

constituindo-se, dessa forma, a tabela 3.

Portanto, entendendo que seria preciso desbravar um caminho a ser

percorrido ou, como afirmou Ferrarotti, inventar chaves e métodos, já que cada

narrativa autobiográfica é única e possui configuração própria, jamais realizada

do mesmo modo por outrem (nem pelo seu autor), foi preciso uma análise

criteriosa dos fatos e ousadia para eleger um início que não se apresentou como

tal durante a narrativa mas que, de acordo com a compreensão desta pesquisa

sobre ele, assim foi definido.

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1.8 O percurso metodológico

O meu intento não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir a sua razão, mas somente mostrar de que maneira procurei conduzir a minha.

(DESCARTES apud SANTOS, 1989, p.11)  

Assim como Wallon concebe o psiquismo humano como uma unidade

que resulta de diferentes domínios funcionais, este estudo entende que não é

possível fazer uma cisão entre os aspectos pessoais e profissionais de um

indivíduo, neste caso, do Professor Coordenador. Ainda que admita a existência

de ambos, também reconhece que suas manifestações ocorrem de modo

articulado, imbricado. Deste modo, a atuação profissional do Professor

Coordenador não é isolada de sua atuação no âmbito pessoal e, para que seja

possível compreender a primeira, torna-se indispensável incluir o estudo da

segunda.

Neste sentido, a narrativa autobiográfica foi a metodologia adotada

devido ao fato de permitir a investigação das relações estabelecidas nas

experiências vividas pelo Professor Coordenador, considerando aspectos de

âmbito profissional e pessoal, na medida em que estes se revelam significativos

no processo de sua atuação.

Para que fosse possível uma análise mais minuciosa dos dados obtidos,

optou-se pela seleção de um Professor Coordenador, com quem foram

realizadas duas entrevistas autobiográficas com intervalo de seis meses entre

elas. A seleção deste participante deu-se a partir de uma aproximação com o

mesmo em uma das Diretorias de Ensino da Capital Paulista, onde a

pesquisadora passou a atuar desde o início do mestrado. Observando os breves

relatos que realizava de modo espontâneo sobre a sua atuação na Coordenação

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Pedagógica (projetos realizados, conflitos, conquistas, frustrações, propostas...),

bem como o reconhecimento profissional de professores e outros colegas que

com ele atuaram e/ou atuam, compreendeu-se que este poderia ser um

representante significativo para o estudo ora realizado. Soma-se a isto o fato

deste Professor Coordenador demonstrar muito interesse e disponibilidade para

participar de estudos e pesquisas que tenham como propósito contribuir para a

melhoria das práticas pedagógicas atuais. Cabe, ainda, ressaltar que o

entrevistado é titular de cargo efetivo na rede pública municipal e estadual

paulista, tendo, portanto, uma visão considerável sobre as esferas do ensino

público em algumas regiões do Estado de São Paulo. Por sua escolha, será

chamado nesta pesquisa por Moreira, pois alega sentir-se mais confortável

desse modo. Este Professor Coordenador tem 45 anos de idade, é graduado em

Geografia, possui complementação em Pedagogia, é mestre em Didática e

doutorando em Currículo. Sua experiência como Professor Coordenador é de 5

anos na rede de ensino estadual paulista.

No primeiro encontro que tivemos para a realização da entrevista

(17.04.2009)3, optou-se pela utilização de uma das salas de reunião da Diretoria

de Ensino, após o nosso horário de trabalho, visto que neste local seria possível

permanecer o tempo que nos fosse necessário, sem as rotineiras interrupções,

além do fato de que esta tranquilidade favoreceria a utilização do gravador.

Nesta oportunidade, Moreira levou seu notebook onde havia instalado

um programa que, segundo ele, reconheceria a sua voz e criaria uma versão

escrita da entrevista, facilitando o trabalho da pesquisadora. Após alguns testes

                                                            3 A transcrição integral desta entrevista encontra‐se no Apêndice D. 

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foi constatado que o resultado não era o esperado, por esse motivo a ideia de

utilizar esse equipamento foi abandonada, passando-se à utilização do gravador

digital levado pela pesquisadora.

Apesar de demonstrar empolgação com a entrevista, Moreira revelou um

nervosismo inicial, uma ansiedade que o impedia de organizar suas lembranças.

A gravação foi reiniciada três vezes a seu pedido, o que surpeendeu a

pesquisadora pois, por se tratar de doutorando, ela achou que Moreira estivesse

habituado com procedimentos como uma entrevista. E talvez estivesse mesmo,

mas ocupando a posição de entrevistador e não de entrevistado. De qualquer

modo, naquele momento inicial a entrevista deixava a ambos tensos, afetando-

os de modo diferente: ele talvez preocupado com os reais objetivos da

pesquisadora e com a exposição dos aspectos pessoais da sua vida; ela estava

diante de uma situação de fundamental importância para a sua pesquisa e o

entrevistado revelava uma ansiedade não prevista que exigia dela uma atitude

para contorná-la, sob o risco de que todo o trabalho fosse comprometido.

Fica evidente, neste caso, o quanto a dimensão afetiva interfere na

situação de entrevista que, segundo Almeida e Szymanski (2010, p.87):

...é um momento de encontro entre duas pessoas, com diferentes histórias, experiências, expectativas e com diferentes disposições afetivas. Se por um lado, para quem pesquisa a intenção clara é a de colher informações para sua investigação, para quem é entrevistado as intenções subjacentes à sua participação podem variar e serem ou não explicitadas.

Diante dessa situação que se configurou, a pesquisadora valeu-se da

experiência da entrevista piloto realizada com outro participante para verificação

da validade do método adotado, bem como de outras entrevistas realizadas por

ocasião da sua participação no grupo de pesquisa juntamente com a sua

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‐ 44 ‐ 

professora orientadora, além das valiosas contribuições da banca examinadora,

por ocasião do exame de qualificação desta pesquisa.

Depois desse início um tanto turbulento para ambos, houve um

reencontro o propósito da entrevista e pesquisadora e entrevistado ficaram mais

a vontade na ocupação desses papéis. É como revela, ainda, Almeida e

Szymanki (2010, p.87): “Afetar e ser afetado é condição inerente às interações

humanas e a situação de entrevista não escapa dessa condição.”

Assim a narrativa de Moreira começou a fluir. Em pouco tempo, já

transitava pela sua história com as idas e vindas que julgava necessárias, com

naturalidade. A partir de então, não foram necessárias intervenções por parte da

pesquisadora, apenas aquelas indispensáveis para o esclarecimento de alguns

aspectos não compreendidos.

Considerando a importância de propiciar ao entrevistado um momento

de reflexão sobre os aspectos que emergiram da sua narrativa e que foram

considerados significativos para a pesquisa, foi programada uma devolutiva por

meio de um quadro esquemático4 inspirado no biograma proposto por Bolívar

(2002).

O biograma, conforme apontam Sá e Almeida (2004, p.186), constitui-se

de uma síntese esquemática que confere certa organização e cronologia aos

acontecimentos narrados, além de oferecer ao entrevistado a oportunidade de

corrigir eventuais equívocos ou preencher lacunas, conferindo maior

credibilidade à investigação.

                                                            4 Tabelas I e II. 

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‐ 45 ‐ 

Entretanto, no segundo encontro, ocasião em que a tabela esquemática

(inspirada no Biograma proposto por Bolívar) foi apresentada, Moreira não

demonstrou interesse em rever as informações que já haviam sido dadas.

Informou que gostaria de dispensar esta etapa. Por outro lado, encontrava-se

ávido pela realização da segunda entrevista, uma vez que ao final do primeiro

encontro havia dito o quanto lhe foi prazeroso relembrar fatos que julgou

significativos na sua vida. Esse foi, então, o motivo pelo qual as tabelas

elaboradas nas duas entrevistas não foram utilizadas no seu propósito inicial.

Neste segundo encontro (15.10.2009) a entrevista5 foi iniciada um pouco

antes das 18h com o propósito de encerrá-la em 1h pois, como era dia dos

professores, Moreira havia marcado com alguns colegas uma comemoração às

19h. Entretanto, a exemplo do que aconteceu no primeiro encontro, começou a

sua narrativa e um fato foi puxando outro de modo que só se apercebeu do

horário após o encerramento da entrevista, quando se despedia e olhou para o

relógio que já marcava 19h15.

                                                            5 A transcrição integral desta entrevista encontra‐se no Apêndice E. 

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2 O referencial teórico

de Henri Wallon

Temos  dito  que  a  formação  do  sujeito  se  dá  no  seio  da  cultura,  em parceria e em presença do outro. O que  isso  significa? Se, por um  lado, isso se traduz por uma articulação de saberes, por uma troca, que mobiliza e  permeia  os  processos  cognitivos,  por  outro  isso  também  significa considerar que cada um, nessa  interação, expõe seus pensamentos, seus modos de interpretar a realidade, suas perspectivas de ação e reação, seus motivos e intenções, seus desejos e expectativas – seus afetos, enfim. 

(PLACCO In PLACCO e ALMEIDA, 2008, p.64) 

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A teoria psicogenética walloniana apresenta informações e conceitos de

grande importância para a compreensão do desenvolvimento humano. No que se

refere a este estudo, serão destacados os conceitos sobre o outro (conceito

genérico empregado por Wallon para referir-se ao outro de modo abstrato e ao

meio), o outro íntimo (também chamado de socius, entendido como o parceiro

permanente na vida psíquica), os meios e os grupos para fundamentação do

trabalho e análise dos dados. Entretanto, para estudá-los de modo mais adequado,

faz-se necessária uma compreensão prévia de outros conceitos que com eles se

articulam, tais como: domínios funcionais, integração, predominância e alternância.

Este é, portanto, o objetivo que este capítulo se propõe a cumprir.

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2.1 O desenvolvimento do psiquismo humano

A formação psíquica do indivíduo tem início no seu nascimento (quando

se iniciam as interações) e ocorre durante toda a sua existência, ou seja, até a

sua morte. Para Wallon (1973a, p.53), “A psicologia genética é a psicologia que

define o psiquismo na sua formação e nas suas transformações.” Por isso, é no

período que compreende a infância que Wallon realiza observações sistemáticas

sobre como se dá o processo de desenvolvimento por meio do qual,

gradativamente, constituem-se os pilares dessa formação da psíquica.

Chamando-os de domínios funcionais este autor apresenta, então,

quatro grandes conjuntos: afetividade, ato motor, conhecimento e pessoa.

(WALLON, 2007, p.117)

Todos esses domínios são constitutivos da pessoa e articulam-se

constantemente no seu processo de desenvolvimento, com suas especificidades

e características próprias. Nenhum deles, no entanto, pode ser compreendido

isoladamente, mas na ação conjunta com os demais e na interação do indivíduo

com o outro e com o meio em que está inserido.

Faz-se necessário, contudo, situar cada um dos domínios funcionais

(também chamados de campos, dimensões ou conjuntos funcionais, de acordo

com a tradução ou opção feita pelo estudioso da obra walloniana) neste contexto

teórico.

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2.2 Integração

Sabendo-se que para Wallon o psiquismo humano não é

compartimentalizado, mas um todo articulado e dinâmico, a concepção de

integração que permeia sua proposta ocorre de duas formas (igualmente

articuladas e dinâmicas): a integração organismo-meio e a integração entre os

conjuntos funcionais. A primeira é entendida no âmbito da interação do indivíduo

com os meios com quais se relaciona, sejam eles reais ou virtuais. A segunda

relaciona-se com os domínios funcionais (afetividade, ato motor, conhecimento e

pessoa).

A integração, desta forma, confere certa regularidade e coerência às

ações do indivíduo (que varia de acordo com a cultura em que vive), ampliando

as suas possibilidades de desenvolvimento.

No entanto, para melhor compreender a integração entre os domínios

funcionais, uma cisão entre eles é realizada na tentativa de ampliá-los e explicá-

los, recorte este que só ocorre teoricamente, conforme alerta Wallon (2007,

p.114): “As exigências da descrição obrigam a tratar de forma distinta alguns

grandes conjuntos funcionais, o que não pode ser feito sem certa artificialidade

(...)”.

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2.3 Afetividade

Na teoria walloniana a constituição do domínio funcional afetividade

origina-se nas sensações de prazer ou desprazer, conforto ou desconforto,

tensão ou alívio. Manifesta-se precocemente no bebê, de modo rudimentar e, de

acordo com o meio em que está inserido e com as interações sociais

experienciadas, apresenta um tipo de evolução durante a sua vida. Compreende

emoção, sentimento e paixão, cujas especificidades tornam necessária,

minimamente, uma breve análise.

Emoção

As emoções consistem essencialmente em sistemas de atitudes que, para cada uma, correspondem a certo tipo de situação. (WALLON, 2007, p.121)

Wallon entende que a emoção é o substrato orgânico da afetividade. Os

espasmos iniciais do bebê vão, progressivamente, adquirindo formas próprias de

expressão, que variam de acordo com as interações que se estabelecem entre

ele e as pessoas do seu entorno, ou seja, os outros6. Os espasmos iniciais

(como o choro e a cólica) e as formas de expressão da emoção (tal como o

sorriso ou a cócega) implicam-se diretamente com a motricidade do indivíduo,

com o seu tônus (contração e descontração), ou seja, manifestam-se

corporeamente e são, portanto, observáveis empiricamente.

A emoção7, portanto, é corpórea; adquire visibilidade por meio da sua

manifestação no corpo. Nota-se, deste modo, quando o indivíduo está nervoso

                                                            6  Considera-se sempre os outros no meio em que estão inseridos; o outro nunca está desvinculado do meio e, na perspectiva walloniana, ambos estão imbricados e se constituem mutuamente. 

7 A emoção não é em si mesma visível, aceita ou reprimida, são as atitudes que dela decorrem que perpassam essa percepção e interpretação de caráter individual e social. Entretanto, como Wallon define que a “emoção é

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porque apresenta mãos trêmulas ou sudorese; está encabulado porque há rubor

na face; está triste porque chora (ainda que para todas essas manifestações

possam existir outras interpretações sociais/culturais). Para Zazzo (1978, p. 98):

A emoção é uma linguagem antes da linguagem.(...) Assim, a emoção esboça o pensamento, a representação que lhe é contraditória e não contrária e dá também início à distinção do eu e de outrem, preludia as afirmações da personalidade.

Pautados nesta afirmação diz-se que a emoção é a via pela qual ocorre

a passagem do orgânico para o social, sustentando o princípio de que a emoção

é o substrato orgânico da afetividade, pois ela precede do organismo e se

manifesta nele. Entretanto, na medida em que se expressa socialmente, a

emoção está sujeita a interpretações de cunho social/cultural e individual que

vão, paulatinamente, modulando-a e constituindo a dinâmica deste todo indiviso

que é o psiquismo humano. As atitudes que decorrem da emoção passam,

necessariamente, pela percepção e interpretação do outro. Um sorriso durante

um discurso, por exemplo, pode ser considerado por alguém como

exteriorização de descontração; outro, entretanto, pode considerar que o mesmo

sorriso, na mesma situação, revela um estado de tensão, de nervosismo.

Este movimento da emoção na vida psíquica do indivíduo possibilita, de

modo contínuo, o seu desenvolvimento, a sua sofisticação, o seu refinamento,...

Nesta relação, a emoção passa a ter um caráter social e não apenas expressivo.

Assim, às expressões iniciais do bebê vão sendo agregados significados e

interpretações de caráter social e individual a partir da sua interação com o

outro. Gradativamente tais manifestações deixam de ser involuntárias e passam

                                                                                                                                                                                          um sistema de atitudes”, infere-se que, quando se fala de atitude emocional está se falando de emoção, sendo o contrário também verdadeiro.

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a ser reproduzidas com intencionalidade, visando obter um resultado específico.

Deste modo, um bebê que chora por causa de algum desconforto (tem fome,

está molhado, sente dor, encontra-se em posição incômoda,...) e obtém

atendimento, tende a relacionar o seu choro com a presença do outro e passa a

utilizar-se dele não somente por causa de algum desconforto, mas para

conquistar a companhia desse outro.

Wallon (2007, p.122) também afirma que “O contágio da emoção é um

fato já muitas vezes assinalado”. Pode-se facilmente identificar esse contágio no

cotidiano das pessoas. Ao chamar os pais de um determinado aluno para

conversar a respeito do seu desempenho insatisfatório nas atividades propostas,

o Professor Coordenador pode deparar-se com informações a respeito da

história de vida deste aluno que, imbuídas da emoção de quem as revela,

contagiam-no de forma a suscitar também as suas próprias.

Existe uma espécie de mimetismo emocional que explica até que ponto as emoções são comunicativas, contagiosas e como elas se traduzem facilmente nas massas por impulsões gregárias e pela abolição em cada indivíduo do seu ponto de vista pessoal, do seu autocontrolo. (WALLON, 1973a, p.154).

O caráter contagioso da emoção manifesta-se até mesmo quando a

situação em questão é forjada e a emoção que se apresenta teve uma origem

sabidamente artificial, como no caso de encenações teatrais, tramas de filme ou

novela, em que o espectador, mesmo ciente de que a cena a qual assiste não é

real, torce vigorosamente por um final feliz para um determinado personagem e

revela-se inconformado, e pode até mesmo chorar, quando situações de perda

ou injustiça são apresentadas.

Ainda sobre o contágio da emoção, Galvão (1995, p.65) revela:

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Devido a seu poder de contágio, as emoções propiciam relações interindividuais nas quais diluem-se os contornos da personalidade de cada um. Essa tendência de fusão própria às emoções explica o estado de simbiose com o meio em que a criança se encontra no início do desenvolvimento. E explica também a facilidade pela qual a atmosfera emocional domina eventos que reúnem grande concentração de pessoas, como comícios, concertos de música, rituais religiosos, situações nas quais apagam-se, em cada um, a noção de sua individualidade.

Isto posto, verifica-se o quanto é preciso cautela nos eventos promovidos

no cotidiano escolar, pois os grupos se fortalecem nestas ocasiões em que estão

reunidos. É o caso de uma reunião pedagógica, por exemplo, ou de uma reunião

de pais, onde os participantes podem expressar ideias ou comportamentos que

não apresentariam numa situação em que estivessem sozinhos. É preciso,

contudo, ter clareza de que este contágio também passa pela percepção e pela

interpretação que os outros têm da emoção em pauta; o que explica o fato de

várias pessoas se envolverem numa determinada situação e outras pessoas

simplesmente não aderirem a este movimento.

Entendendo que a emoção apresenta um desenvolvimento contínuo na

vida psíquica, é possível compreender que, a partir de um dado momento desta

evolução, o indivíduo possa nomeá-la, controlá-la ou reprimi-la. A partir de

então, surgem os dois outros aspectos da afetividade: o sentimento e a paixão.

Sentimento e paixão

Wallon se refere às representações objetivas como traduções da

emoção que podem ser elaboradas pelo indivíduo de forma variável, ou seja,

utilizando-se da linguagem, da gestualidade de compreensão social, da arte, da

literatura,... A representação é sempre elaborada no plano mental, é modulada

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mentalmente e pode ou não ser objetivada, ou seja, tornar-se conhecida.

Quando de alguma forma a emoção é representada atingiu então o plano dos

sentimentos. No cotidiano das diferentes sociedades é possível identificar os

sentimentos presentes em diversas áreas, como é o caso da poesia, por

exemplo, uma vez que esta tem como traço característico a expressão de

emoções vivenciadas ou sonhadas.

Os sentimentos, portanto, permeiam as relações sociais que acontecem

em diferentes meios, como é o caso da atuação do Professor Coordenador na

sua unidade escolar.

A paixão, por sua vez, pressupõe o autocontrole do indivíduo. Está

ligada à capacidade de tornar secreta a emoção que se faz presente, tornando

velado aquilo que o sentimento publicaria; para Wallon a paixão torna a emoção

silenciosa. Contudo, é preciso compreender que, ainda que não haja

exteriorização, ou seja, uma manifestação objetiva da emoção, esta não deixa

de existir e de ser constitutiva do indivíduo, podendo, em algum momento, vir à

tona e tornar-se pública (muitas vezes até de modo inadequado).

Na paixão, tal como a compreende Wallon, a razão é regida pela

emoção que, silenciada, conduz a situação. É possível afirmar que a razão está

“a serviço” da emoção. Considerando o contexto escolar, locus da atuação do

Professor Coordenador, a paixão pode ser identificada quando, por exemplo, um

professor propõe uma ação ou um projeto numa reunião pedagógica, mas não

obtém a autorização ou o apoio do Professor Coordenador. Na incapacidade de

lidar com a frustração gerada por esta negativa, o professor aguarda uma

oportunidade para que também possa recusar uma proposta advinda do

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Professor Coordenador. Neste caso, sua frustração foi silenciada e a razão

cumpre o papel de criar estratégias e mecanismos para aguardar a hora certa de

dar vazão àquela frustração inicial.

No rol das paixões podem ser encontrados os amores não

correspondidos, os ciúmes alimentados, os apegos injustificáveis, os

preconceitos reprovados socialmente, as preferências inadequadas,... Por ser

uma elaboração interna, subordinada à capacidade de autocontrole do indivíduo,

a paixão geralmente está relacionada com algo que pode ter uma dose de

reprovação, proibição, exposição de si. Caso contrário, não seria reprimida. O

que não se pode afirmar é que toda paixão provém de uma emoção proibida.

Nos casos em que um jovem, por exemplo, se vê numa situação em que precisa

optar por um curso que vai prepará-lo para a sua carreira profissional (tal como

ocorre no ingresso a um curso universitário), sabe-se que muitos aspectos

precisam ser considerados e este indivíduo precisa “dominar” a sua ânsia por

aquilo que é do seu desejo e considerar aquilo que poderá lhe ser promissor, ou

seja, precisa refletir sobre as possibilidades de atuação relacionadas àquela

profissão, perspectiva salarial, equipamentos necessários, mercado de trabalho,

entre outros. Em tal situação, a razão (reflexão sobre a melhor opção de curso)

atua em favor da emoção (expectativa de obter uma formação profissional).

Assim, a paixão encontra-se intrinsecamente ligada à personalidade do

indivíduo que, de acordo com a sua disposição ou tolerância para expor-se em

seu meio, pode utilizar-se dela como uma forma de proteção, evitando

constrangimentos, justificativas, julgamentos, ou como um modo de tomar

decisões de modo mais racional, analisando possibilidades e limitações,

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refletindo sobre os aspectos positivos e negativos que envolvem a questão em

pauta.

Pela exigência do autocontrole, Wallon alerta para o fato de que a

paixão não se manifesta na criança antes dos três anos:

A paixão pode ser intensa e profunda na criança. Mas com ela aparece a capacidade de tornar a emoção silenciosa. Portanto, para se desenvolver, pressupõe o autocontrole da pessoa e não pode vir antes da oposição claramente sentida entre si mesmo e o outro, cuja consciência não se dá antes dos 3 anos. Então a criança se torna capaz de alimentar secretamente frenéticos ciúmes, apegos exclusivos, ambições talvez vagas, mas nem por isso menos exigentes. (2007, p.126)

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2.4 Ato Motor

Wallon se refere ao ato motor além do deslocamento físico do corpo no

tempo e no espaço. Para ele, o movimento também é compreendido na sua

expressão simbólica, sendo o homem o único ser a possuir tal capacidade.

Galvão (1995, p.69) assinala que “Além do seu papel na relação com o mundo

físico (motricidade de realização), o movimento tem um papel fundamental na

afetividade e também na cognição”.

Essa perspectiva apresenta o desempenho de duas funções na

musculatura: a cinética e a tônica ou postural. A primeira cumpre o papel do

movimento propriamente dito, ou seja, é ela que permite o deslocamento do

corpo no espaço; a segunda, por sua vez, relaciona-se com a intensidade dos

movimentos. Entende-se que o primeiro papel que o movimento desempenha no

desenvolvimento infantil é de caráter afetivo, ou seja, é pelo que expressa o

bebê nos seus movimentos que o adulto irá mobilizar-se para atendê-lo nas suas

necessidades. No decorrer do seu desenvolvimento, quando começa a utilizar os

movimentos para apertar, segurar, abrir, fechar, etc., estes já se relacionam com

o aspecto cognitivo do movimento.

Tal como todos os conceitos na teoria walloniana, não se pode entender

a função cinética do movimento dissociada da função postural ou tônica; ambas

desempenham, conjuntamente, papel de relevância no movimento humano. A

integração dessas duas funções pode ser melhor compreendida se for possível

pensar que, sendo a função tônica ou postural a responsável pelo equilíbrio do

corpo e sua consequente sustentação, numa atividade de caminhada, por

exemplo, a função cinética irá comandar o deslocamento do corpo, contudo,

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este precisa manter o equilíbrio para que possa continuar o seu deslocamento, o

que será garantido pela função postural ou tônica. Entretanto, existem situações

em que uma das funções é mais exigida que a outra, como no caso de ficar

parado em pé, atividade em que a função cinética é mínima, sendo a função

postural ou tônica muito mais exigida.

Além de regular o equilíbrio do corpo, a função postural relaciona-se

com as atividades cognitivas, mentais e de percepção, ou seja, com as

atividades que estão no domínio do conhecimento. Numa situação em que se

realiza uma leitura considerada de difícil compreensão, podem-se notar

mudanças na expressão do rosto, como franzir a testa ou “apertar” os olhos.

Quando o olfato percebe um odor que seja agradável ou desagradável, o corpo

adota uma postura que revela indícios da sensação vivenciada. Um

Coordenador Pedagógico pode notar a atividade da função postural numa

reunião pedagógica, por exemplo. Se a pauta que está sendo desenvolvida

desperta o interesse da sua equipe de professores para refletir sobre a atuação

na sala de aula, se há indiferença ou rejeição sobre o tema tratado, notam-se as

diferentes posturas adotadas pelos indivíduos. Há pessoas que, de tão

interessadas num determinado assunto, inclinam-se na direção do seu

interlocutor; há outros que, por não entenderem a proposta em discussão ou por

ela não estarem interessados, agitam-se em seus lugares ou acomodam-se de

tal forma que abandonam-se nos seus assentos (é quase como se estivessem

deitados). Não se deve, contudo, considerar apenas a atividade postural

apresentada como fator determinante de interesse ou desinteresse sobre um

assunto. Ela precisa estar associada com outros fatores para que essa

compreensão seja validada, pois alguém muito interessado num tema, mas que

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teve um dia intenso, pode demonstrar uma postura mais abandonada, o que não

significa que não está interessado por aquilo que está sendo apresentado.

Outro aspecto de relevância que se refere ao movimento centra-se nas

atividades simbólicas. Quando a criança fecha a mão e a coloca próximo à boca

como se fosse um microfone, nota-se que o movimento substitui o objeto,

passando a simbolizá-lo. De acordo com Galvão (1995, p. 73) esses “gestos

simbólicos, chamados de simulacro, estão na origem da representação. Com o

fortalecimento das funções intelectuais (do processo ideativo) reduz-se o papel

do movimento na atividade cognitiva.”

Essa redução no movimento decorre da integração entre este e a

cognição ao longo do desenvolvimento humano, o que possibilita à criança

antecipar intelectualmente certas ocorrências, valendo-se cada vez menos do

movimento exterior. Galvão (1995, p.75) revela que esse controle voluntário

sobre o ato motor foi chamado por Wallon de “disciplinas mentais”. A teoria

walloniana aponta para o fato de que o surgimento de tais disciplinas mentais

ocorre por volta dos 6 ou 7 anos, uma vez que depende de condições

neurológicas que se formam durante este período, bem como a aprendizagem

dos seus efeitos, conforme afirma o autor:

... esse edifício de disciplinas só pode se realizar gradualmente na criança, pois exige ao mesmo tempo a conclusão de estruturas anatômicas e a aprendizagem dos efeitos que podem ser tirados delas. (WALLON, 2007, p.75)

Sabe-se, contudo, que com a participação da criança nas práticas

sociais, cujo início se dá cada vez mais cedo, essas idades variam de acordo

com as possibilidades de interação da criança com o outro e com o meio.

Atualmente, crianças de 4 ou 5 anos já começam a apresentar algum domínio

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sobre o ato motor. Assim, há que se considerar que, para a criança com idade

inferior a 7 anos, é grande a dificuldade de se manter quieta, em estado de

concentração por muito tempo. Ainda não há um controle mais elaborado sobre

suas ações motoras, ou seja, suas disciplinas mentais estão sendo

desenvolvidas e, por esse motivo, ela não consegue permanecer durante muito

tempo numa mesma posição ou numa mesma atividade.

Portanto, o conhecimento sobre a integração motora-afetiva-cognitiva,

que se fundamenta nesta fase do desenvolvimento infantil e acompanha o

indivíduo durante toda atividade humana, permite uma reflexão mais acurada

sobre o que tem sido proposto como atividade para as crianças e o que podem

esperar como retorno, evitando frustrações de ambas as partes. Num espaço de

formação de professores, como uma reunião pedagógica, por exemplo, o

Coordenador Pedagógico pode analisar as atividades que têm sido planejadas

pelos professores e orientá-los sobre a melhor forma de conduzi-las,

considerando-se a faixa etária dos alunos.

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2.5 Conhecimento

Os processos cognitivos intervêm na aquisição e no uso da linguagem, na memória, na capacidade de prestar atenção, na imaginação, na aprendizagem, na solução de problemas. (AMARAL, 2004, p. 77)

Wallon atribui grande valor à aquisição da fala quando se refere ao

domínio funcional conhecimento. A possibilidade de comunicar-se por meio da

linguagem coincide, segundo ele, com um período em que ocorre um intenso

desenvolvimento das capacidades práticas. Desse modo, há uma significativa

ampliação nas relações sociais, no resgate e expressão de acontecimentos

passados (fatos relacionados à história individual ou coletiva) na representação

para além do “aqui e agora”, na descrição do objeto ausente, na habilidade de

comunicar relações, generalizações e diferenciações, enfim, na forma de lidar e

compreender o mundo prático e simbólico.

Antes de dominar a fala, o relacionamento da criança com o outro e com

o meio se dá por meio de sua inteligência prática, uma vez que esta lhe permite

a resolução de muitos problemas (como alcançar um objeto do seu interesse)

utilizando, essencialmente, a atividade sensório-motora.

Retomando a explicação dada anteriormente (2.4 Ato Motor), ratifica-se

que, com o domínio da linguagem, surge também a redução da necessidade de

comunicação gestual, tão necessária antes da fala, onde há a “preponderância

persistente do aparelho motor sobre o aparelho conceitual” (WALLON, 2007,

p.158). A linguagem evolui para formas mais complexas e elaboradas de

representação e comunicação, que estão diretamente relacionadas com uma

diversidade de fatores que fazem parte da vivência do indivíduo (como os meios,

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os grupos, os outros,...). Na conformidade desta evolução, quando a linguagem

vai sendo refinada, constitui-se a capacidade de lidar com os mais variados

símbolos e signos; o pensamento, então, pode ganhar expressão e tornar-se

conhecido. O ingresso da criança no sistema simbólico lhe confere o surgimento

da inteligência discursiva que, por sua vez, minimiza a expressão da inteligência

prática.

A inteligência discursiva só poderá ter seu desenvolvimento pleno a partir da emergência da linguagem. A passagem a uma nova forma de atividade mental só ocorre quando a criança entra no universo dos signos, com o advento da linguagem, por volta dos dois anos. É a linguagem que abre a possibilidade de substituir a ação motora direta sobre as coisas, abreviando a aprendizagem, que já não depende da manipulação imediata e concreta. (AMARAL, 2004, p.84)

No processo de aprendizagem, conhecimento e afetividade compõem

uma díade que se alterna com mais clareza durante os estágios iniciais do

desenvolvimento humano8, mas que permanece durante toda a vida. Sendo a

escola o locus da aprendizagem formal, torna-se imprescindível ao Professor

Coordenador, no seu papel de formador de professores, buscar formas de

compreender as características desses domínios funcionais, o que poderá

potencializar a sua prática educativa.

                                                            8 Conforme explicitado neste trabalho em: 4.1.4  Princípios wallonianos de desenvolvimento 

 

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2.6 Pessoa

...nossa educação nos ensinou a separar e a isolar as coisas. Separamos os objetos de seus contextos, separamos as realidades em disciplinas compartimentadas umas das outras. Mas, como a realidade é feita de interações, nosso conhecimento é incapaz de perceber o complexus – o tecido que junta o todo. (MORIN, 1997)

O domínio funcional denominado por Wallon como pessoa é

compreendido como aquele que se configura a partir da integração dos demais

(afetividade, ato motor e conhecimento). O dinamismo e o imbricamento desses

domínios conferem movimento ao psiquismo humano (um jeito próprio de ser).

Tal movimento, contudo, não se dá a partir de uma simples junção dos domínios.

É a forma pela qual se combinam e se articulam que configura a unicidade do

domínio funcional pessoa. Prandini (2004, p. 30) esclarece que:

Pessoa é o conceito empregado por Wallon para definir e nomear o domínio funcional resultante da integração dos três primeiros: ato motor, afetividade e conhecimento. Pessoa é o todo diante do qual cada um dos outros domínios deve ser visto, pois para Wallon cada parte deve ser considerada diante do todo do qual é parte constitutiva, sob pena de, ao contrário, perder seu significado essencial.

Para clarificar o entendimento sobre este domínio funcional, que se

reconhece ser mais complexo, pode-se recorrer à utilização de metáforas.

Contudo, não se pode deixar de ressaltar que a metáfora, ao mesmo tempo em

que ilustra os conceitos mais abstratos facilitando a compreensão dos mesmos,

limita-os, uma vez que a analogia realizada não contempla a totalidade dos

conceitos em questão. Desse modo, a metáfora que será apresentada deve ser

compreendida como uma referência, uma possibilidade. Nesse sentido, o

conjunto funcional pessoa pode ser comparado a um caleidoscópio. Os espelhos

presentes no seu interior podem ser entendidos como os domínios afetividade,

ato motor e conhecimento. As contas coloridas representam características e

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especificidades de cada um dos domínios. A bela imagem que pode ser vista a

partir do seu orifício corresponde, portanto, ao domínio funcional pessoa. A

figura que se forma com o deslocamento deste instrumento não mais se repete

na sua exatidão; ela será diferente a cada movimento, sendo muitas as suas

possibilidades de combinação. No caleidoscópio há, ainda, a possibilidade de

inclusão ou exclusão de peças que exigem uma reconfiguração das demais do

conjunto, alterando a figura que se forma a partir da integração dessas contas

que nesta metáfora representam os elementos constitutivos do domínio funcional

pessoa. Tal como o caleidoscópio, a pessoa também articula de maneira ímpar

os domínios funcionais, o que confere individualidade ao psiquismo humano.

Tal como os demais domínios funcionais pessoa é um constructo

teórico, uma abstração. Na teoria walloniana, além de referir-se a um dos

domínios funcionais, o termo pessoa também é utilizado para referir-se à

humanidade de modo generalizado, em oposição ao homem como indivíduo.

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2.7 Os meios

O conceito de meio é outro ponto que merece uma reflexão cuidadosa

para que seja possível compreender a teoria walloniana. Wallon (1973a, p.163)

apresenta três tipos de meios, quais sejam:

1) meio físico-químico: meio básico que correspondente às condições

ambientais necessárias à sobrevivência dos seres vivos, como oxigênio, água,

temperatura,...;

2) meio biológico: refere- se ao espaço em que convivem várias espécies

(florestas, oceanos, desertos,...);

3) meio social: ambiente de convivência coletiva diversificada, de caráter móvel

e transitório (empresa, clube, igreja,...).

Deve-se atentar para o fato de que estas três grandes classes de meios

não são percebidas da mesma forma pelos indivíduos de uma mesma espécie.

Há, entretanto, uma progressão dessa percepção individual, que é menor no

meio físico-químico (já que a formação orgânica de uma espécie apresenta

variações pequenas), maior no meio biológico (uma vez que a coexistência de

diferentes espécies num mesmo espaço pressupõe relações que estabelecem

possibilidades e limitações que equilibram o meio) e maior ainda no meio social

(onde a coletividade imprime um alto grau de transitoriedade às relações, sem

que se perca de vista a expressão individual).

Para que seja possível articular a proposta desta pesquisa com as

premissas wallonianas, é necessário realizar continuamente o exercício de

refletir sobre a atuação do Professor Coordenador à luz destes preceitos. Desse

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modo, entende-se que o Planeta Terra refere-se ao meio físico-químico e, como

tal, fornece as condições básicas de existência aos indivíduos que atuam na

escola. Como a constituição orgânica da espécie humana é semelhante, a

relação de cada um com esse meio apresenta poucas variações, mas elas

existem. Uma pessoa, por exemplo, que tem problemas respiratórios, sentirá os

dias em que a qualidade do ar está comprometida, está ruim, de forma mais

intensa do que os demais companheiros. Contudo, não se pode desconsiderar o

fato de que as possibilidades que os diferentes meios proporcionam, bem como

as escolhas pessoais alteram as condições naturais de uma pessoa. É o caso

daquele que, por saber de suas dificuldades respiratórias faz uso de

medicamente sob orientação médica e/ou pratica atividade física que favoreça o

funcionamento do seu sistema. Sobre esta questão Wallon (1973a, p.165) já

afirmava que:

A constituição biológica da criança ao nascer não será a lei única do seu futuro destino. Os seus efeitos podem ser amplamente transformados pelas circunstâncias sociais de sua existência, donde a escolha pessoal não está ausente.

Tais possibilidades e escolhas pessoais são ainda mais presentes nos

meios biológico e social, onde as relações entre os indivíduos são mais intensas,

no entanto, mais efêmeras. Não é difícil para o Professor Coordenador encontrar

na escola um professor com habilidade para desenvolver pesquisa acadêmica,

por exemplo, mas que, devido às suas condições atuais não pode se dedicar a

esta tarefa (está casado e tem como prioridade a criação dos filhos que ainda

são pequenos; comprou um bem ou imóvel e não pode abrir mão de algum

tempo do seu trabalho para dedicar-se aos estudos, pois isso comprometeria

sua renda mensal;...). Neste caso, é possível notar possibilidades e limitações

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que o meio lhe oferece e que não podem ser analisadas sem considerar que

elas também refletem as escolhas pessoais realizadas anteriormente.

Por motivos como este é que não se pode entender que o meio é

percebido por todos da mesma forma. A percepção que se tem dele envolve

possibilidade, limitação e escolhas pessoais.

Há que se considerar também que, apesar de Wallon ter definido três

grandes tipos de meios, ele mesmo alerta para o fato de que: “Não existem

meios compartimentados.” (1973, p.164). O ser humano não está ora no meio

social, ora no biológico, ora no físico-químico. Ele está imerso em todos eles e

neles estabele relações que são essenciais para si, a partir das quais podem ser

compreendidos outros tantos meios.

Assim, os meios não existem isoladamente na sua relação com os

indivíduos. Eles estão de tal maneira articulados com outros tipos de meio que

estão em constante processo de modificação, de acordo com a dinâmica da

transformação do ambiente físico, da cultura, da evolução tecnológica, do

avanço da ciência,...

O próprio Wallon apresenta meios que não se referem a um local

específico, como os meios funcionais (o profissional, a escola e a família), que

são muito mais abrangentes, mais amplos e, por esse motivo, não estão fixos

num lugar específico. Neste caso, quando se refere à escola, por exemplo, como

um meio, não está considerando um prédio em especial, mas a escola de um

modo generalizado onde importam os interesses comuns existentes, ou seja,

interesses que se relacionam com a educação.

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Sendo o meio imprescindível para o ser vivo, faz-se necessário

considerar a existência de uma multiplicidade de meios com os quais as

espécies se relacionam para a satisfação de suas necessidades. Nas palavras

de Wallon “O meio não é outra coisa senão o conjunto mais ou menos

duradouro de circunstâncias onde se desenrolam existências individuais.

“(1973a, p.165)

Na interação de tais existências individuais reside o caráter social do

meio. Assim, o homem se insere em meios coletivos e individuais de natureza

diversa. Ou seja, a sua necessidade de conviver com seus pares, de partilhar

experiências, de aprender, de se divertir, o encaminha para espaços de

convivência coletiva; no seu oposto, há o esforço para manter em evolução o

seu processo de diferenciação, o que o faz buscar meios individuais. Para

atender a estas necessidades, a sociedade cria meios artificiais que são

representações da cultura, marcas de um determinado momento histórico, que

ampliam as possibilidades humanas e modificam o seu modo de agir

(considerando-se, para tal, as escolhas individuais nesta relação). É como revela

Wallon:

Mas não é menos verdade que a sociedade põe o homem em presença de novos meios, de novas necessidades e de novos poderes que aumentam as suas possibilidades de evolução e de diferenciação individual. (1973a, p.165)

Os meios simbólico e de comunicação, criados pelo homem, como a

literatura, o teatro e o telefone, por exemplo, possuem uma longa trajetória ao

lado do homem. Acompanham-no desde muito tempo e, ao longo de sua

trajetória vem sendo modificado na medida das suas necessidades. É o caso do

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surgimento da internet, que é um meio virtual e uma sofisticação dos meios de

comunicação até então utilizados.

Neste cenário a escola onde atua o Professor Coordenador é situada

como um meio ao mesmo tempo local e funcional. O meio local refere-se ao seu

espaço físico, à estrutura específica de uma unidade, à organização e estrutura

desse espaço. Já o meio funcional remete ao conceito mais abstrato de escola e

à sua finalidade, quer seja a de proporcionar a apropriação de conhecimentos e

informações válidos na cultura em que se insere.

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2.8 Os grupos

Ainda que reconheça o fato de que o conceito de meios e o conceito de

grupos possam coincidir em muitos casos, Wallon estabelece uma diferenciação

clara entre ambos. Nessa teoria, os grupos são entendidos como uma reunião

de indivíduos com uma hierarquia ou papéis conhecidos e aceitos pelos seus

integrantes, com um propósito ou uma finalidade comum a todos. No grupo,

cada um exerce um papel específico durante um tempo determinado pela sua

própria dinâmica e finalidade. É na sua estrutura, no seu funcionamento que

reside a ideia de grupo.

Nessa perspectiva, afirma Wallon, alguns meios são facultativos, ou

seja, o indivíduo pode ou não nele se integrar, de acordo com interesses e

necessidades que lhe são próprios. Este não é, por exemplo, o caso da família,

já que esta é:

...um grupo natural no sentido de que para a criança a “razão de ser ou não ser” se encontra colocada pelo nascimento num grupo distinto que lhe assegura a alimentação, a segurança necessária, a primeira educação. (WALLON, 1973a, p.168)

O grupo familiar, que também é um meio (já que oferece, com certa

estabilidade, condições para o desenvolvimento individual) cada um dos seus

membros tem papéis específicos, quais sejam: o de pai, o de mãe, o de irmão

mais velho... Em outros tipos de grupo poderá haver outros papéis a serem

ocupados, como de comando, de submissão, de apoio, de oposição, de

iniciativa, de instrução, de administração, de execução,... É o caso da atuação

do Professor Coordenador na escola, onde desempenha o papel de líder.

Porém, o que a teoria walloniana não reconhece é que haja chefes natos, visto

que esta visão, que acaba desconsiderando os interesses e objetivos inerentes

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ao grupo sob o pretexto de uma liderança nata, acaba por suscitar discórdia e,

consequentemente, a sua dissolução.

Cada grupo tem uma dinâmica que lhe é própria, mas não estável.

Poder-se-ia comparar a estabilidade do seu funcionamento com uma superfície

aquática: a intensidade do vento altera (com maior ou menor intensidade) o seu

movimento. Há, ainda, outros fatores de ordem natural ou artificial que podem

afetá-lo, como a chuva, a presença de embarcações, as espécies que habitam

nas suas profundezas, a poluição,... O grupo com o qual atua o Professor

Coordenador na escola pode ser composto por professores que estão juntos há

um tempo considerável e, por isso, acreditam que possuem certa estabilidade,

sendo esse o motivo pelo qual conseguem obter bons resultados no seu

trabalho. Entretanto, se for solicitado que cada um dos seus membros relate

como tem sido o trabalho desde que passou a fazer parte do grupo, certamente

surgirão os conflitos, os interesses individuais, as dificuldades enfrentadas, as

lembranças daqueles que por diferentes motivos não permaneceram, as

mágoas, as vitórias... Ou seja, os ventos, as chuvas, as embarcações, as

espécies... que fazem parte do passado, do presente e que são inevitáveis no

futuro.

Na análise que Wallon realiza sobre os grupos destacam-se duas

tendências: a individual, cuja relação com o grupo visa atender aos seus

interesses pessoais; e a coletiva, cuja preocupação centra-se no cumprimento

dos objetivos do grupo e na integridade dos indivíduos que o compõem. A

existência dessas duas relações abre espaço para conflitos e disputas que,

longe de dissociar o grupo, mantêm-no atuante, visto que se configuram como

vivências complementares do mesmo processo, seja ele coletivo ou individual. É

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neste contexto que se insere as disputas que ocorrem no grupo que lidera o

Professor Coordenador na escola, uma vez que os seus componentes possuem

interesses pessoais amalgamados com interesses coletivos, o que não pode ser

considerado, a priori, nem bom nem ruim, pois fazem parte do funcionamento do

grupo. Um exemplo disso é a existência de professores que desejam ocupar a

função do Professor Coordenador. Isso não é algo ruim. Os professores devem

se preparar para ocupar outras posições hierárquicas que sua formação possa

permitir. Este é um entrelaçamento dos interesses individuais (tornar-se

Professor Coordenador) com os interesses coletivos (assessorar

pedagogicamente a equipe de professores). Entretanto, a maneira como cada

profissional busca alcançar esse intento poderá ser propícia para a geração de

conflitos e disputas. Um professor que almeja atuar como Professor

Coordenador e que, por esse motivo, aproxima-se dos trabalhos da

Coordenação com o intuito de aprendê-los, de auxiliar ou de contribuir,

buscando estar preparado caso haja uma necessidade ou oportunidade de

ocupar o posto é muito diferente daquele que investe em diminuir o trabalho do

Coordenador atual, procurando destacar somente os seus pontos negativos,

discordando de tudo o que é proposto para que possa haver um

descontentamento com a Coordenação vigente.

É nesse âmbito coletivo que, tal como a criança em desenvolvimento, o

professor deve perceber sua semelhança com os demais, ou seja, compreender

a similaridade entre objetivos, interesses, preferências, hábitos. Por outro lado,

por exercer um papel específico neste grupo, saberá que é diferente dos

demais, perceberá a si mesmo como indivíduo. É no grupo que necessidade de

regular as suas ações em relação ao outro será compreendida e será possível

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exercer esse controle como se estivesse frente a um espelho; as diferentes

situações irão lhe mostrar a necessidade de sobrepor um interesse coletivo ao

individual; vivenciará o cumprimento de normas e regras (e de suas

consequências, no caso de infração); ampliará o conhecimento de suas

capacidades e sentimentos. Tais experiências contribuirão para o

desenvolvimento da sua personalidade e da conhecimento que se tem dela. As

relações grupais modificarão constantemente a imagem exterior de si, como se

fosse um outro a enxergar-se a si mesmo.

A estrutura de um grupo, no entanto, não se pauta unicamente nessas

relações de afetividade que os seus membros mantêm entre si. O grupo impõe

exigências a serem cumpridas levando-se em conta os diferentes papéis que

exercem seus integrantes, bem como a hierarquia que nele se estabeleceu.

Desse modo, toda a relação grupal prevê possibilidades e limites nos âmbitos

coletivo e individual, o que o mantém atrativo e em funcionamento.

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2.9 O outro, os outros e o outro íntimo

Wallon entende que o psiquismo humano se constitui a partir de um todo

sincrético. Considerando as possibilidades biológicas individuais, bem como as

condições do meio em que está inserido e com o qual se relaciona, o

desenvolvimento paulatinamente evolui para a diferenciação. Nesta perspectiva,

é possível encontrar nas origens do desenvolvimento psíquico o eu e o outro

ainda confundidos ou, nas palavras de Zazzo (1978, p.58), “ainda inexistentes”.

Na medida em que o indivíduo vai reconhecendo a si mesmo como eu,

também passa a perceber o outro. A diferenciação que se dá no

desenvolvimento humano e que se refere à compreensão da dimensão eu-outro

ocorre de modo concomitante. Refutando o princípio de que no processo inicial

dessa diferenciação há um período de supremacia do eu, Wallon afirma que:

A elaboração do Eu e do Outro por parte da consciência faz-se simultaneamente. São dois termos conexos cujas variações são complementares e as diferenciações recíprocas. (1973, p.159)

Entende-se, desse modo, que a relação eu-outro é uma relação que

permeia toda a constituição psíquica do indivíduo, desde o seu nascimento (de

modo sincrético) até a sua morte. Tendo a duração de uma vida, para

compreendê-la é preciso considerar as especificidades de tal relação, ou seja,

as possibilidades biológicas do indivíduo (alguém que é mudo, por exemplo, não

poderá cantar, ainda que possa lidar com a música de diversas formas, como

tocar um instrumento musical ou compor uma música), o meio em que está

inserido e o seu momento histórico-cultural.

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Ao estudo desta relação eu-outro, de acordo com Zazzo (1978, p.60),

Wallon dedicou apenas dois artigos, ambos publicados pela revista Enfance9,

com intervalo de dez anos. São eles: O papel do “outro” na consciência do “eu”

(1946) e Níveis e flutuações do eu (1956). Cabe aqui destacar que o título desta

pesquisa foi inspirado nesse primeiro artigo de Wallon sobre a temática eu-outro.

A análise do conceito de outro íntimo realizada a seguir tem como principal

fundamento o estudo desses dois documentos. Contudo, antes de dar

prosseguimento a esta análise, é necessário realizar a distinção que Wallon faz

quando se refere ao outro, aos outros e ao outro íntimo.

A leitura da obra walloniana fornece elementos para que seja possível

inferir que o outro remete a um conceito geral que o caracteriza de modo mais

abrangente, mais amplo. Trata-se de um constructo teórico que contempla o

outro de um modo genérico (em oposição ao real, ao específico) e também o

meio, pois o outro é parte, é integrante, é constitutivo do meio. Os outros

relacionam-se àqueles com os quais o indivíduo interage concretamente; indica

o outro real (em oposição ao geral) na sua pluralidade.

Também chamado de socius, o outro íntimo, devido à complexidade da

sua definição, será analisado (tanto quanto possível) de modo mais detalhado

na sequência. Antes, porém, verifica-se que Zazzo (1978, p. 60) corrobora essa

distinção entre estes três tipos de outro, quando afirma que Wallon “qualifica-o

de outro íntimo para o opor (sic) aos outros e ao conceito geral de Outro, e diz

ainda que ele é, em nós, o fantasma de outrem”.

                                                            9 A Revista Enfance foi fundada por Wallon em 1948 e continua circulando até hoje. Alguns números especiais foram transformados em  livros. Dentre eles, “Psicologia e Educação da  Infância” e “Objectivos e Métodos da Psicologia”, utilizados neste trabalho. 

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Desde o momento em que nasce o indivíduo já traz, em si mesmo, o

outro integrado no seu eu. Não existem as delimitações entre o recém-nascido e

os outros; seu psiquismo é um todo sincrético, como foi visto anteriormente, que

caminha para diferenciar-se. Para tornar a compreensão deste processo um

pouco mais clara e concreta, Wallon compara o primeiro estágio de consciência

a uma nebulosa;

Poder-se-ia comparar o primeiro estado da consciência a uma nebulosa onde estariam sem delimitação própria acções sensitivo-motoras de origem exógena ou endógena. Na sua massa acabaria por se desenhar um núcleo de condensação, o eu, mas também um satélite, o sub-eu, o outro. (WALLON, 1973a, p. 157)

Assim, na medida em que o eu e o outro vão se tornando distintos,

formam-se concomitantemente, nesse aglomerado cósmico (a consciência), um

núcleo de condensação, que seria o eu e um satélite, ou seja, o outro.

Entretanto, a delimitação que ocorre durante o desenvolvimento do indivíduo e

que fundamenta o estabelecimento das fronteiras necessárias entre o eu e o

outro, não são fixas, mas dinâmicas. Desse modo, nos momentos de crise, aos

quais Wallon também se refere como “obnubilações mentais” (algo que se torna

turvo, enevoado, obscurecido), que marcam o desenvolvimento humano, tais

delimitações podem fundir-se novamente. Nestes casos, a preponderância do

eu, antes definida pela diferenciação, pode dirigir-se ao outro. É quando, por

exemplo, o indivíduo percebe-se com certa autenticidade em determinadas

situações, reconhecendo-se a si mesmo no contexto e, em outros casos, nota a

artificialidade de suas atitudes, verificando a sua vulnerabilidade a influências de

outros.

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...um adulto pode ter momentos, em que se sente mais deliberadamente ele mesmo e outros em que se sente sujeito a um destino menos pessoal e mais submetido às influências, vontades, fantasias dos outros ou às necessidades que fazem recair sobre ele as situações em que está empenhado perante os homens. (WALLON, 1973a, p.158)

Assim, as ações do indivíduo em relação ao seu meio real são sempre

mediadas pelo outro que cada um traz em si mesmo.

Contudo, quando o eu se afirma, quando percebe a sua delimitação em

relação ao outro, surge o que Pierre Janet definiu como socius ou um duplo eu.

“Wallon sublinha fortemente que o outro íntimo não é uma imagem, uma

interiorização dos outros. Não é, diz, ‘um decalque das relações habituais que o

sujeito possa ter tido com pessoas reais’.’’ (ZAZZO, 1978, p. 61)

Entende-se, portanto, que o socius é esse outro íntimo que surge a partir

do processo de diferenciação eu-outro. Tem em sua constituição elementos das

relações com o outro, com a cultura e com os diferentes tipos de meio. Sendo

ele um parceiro constante na vida psíquica do indivíduo, cuja constituição se dá

de forma dinâmica, sua formação também ocorre de modo contínuo, processual,

obtendo uma nova configuração a partir dessas relações que se estabelecem no

decorrer da vida humana. Assim, o outro íntimo (socius) articula elementos

novos e antigos da experiência do indivíduo, não numa simples agregação ou

sobreposição de características, mas numa nova combinação que lhe confere,

constantemente, um novo perfil.

Entretanto, o socius, de acordo com Wallon (1973a, p. 159):

É normalmente reduzido, inaparente, contido e como que negado pela vontade de dominação e de integridade completa que acompanha o eu. No entanto, toda deliberação, toda indecisão é um diálogo às vezes mais ou menos explícito entre o eu e um objectante.

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Assim como a delimitação eu-outro pode ficar indefinida nos momentos

de crise, o outro íntimo (socius), normalmente silente e reprimido no indivíduo,

ganha expressão em momentos de insegurança e de dificuldade. Em tais

situações, o diálogo que se trava entre o eu e o outro íntimo pode até se tornar

explícito, audível. É como se houvesse vontades ambivalentes, decisões

ambíguas, atitudes antagônicas: é uma disputa travada entre o eu e o outro

íntimo para resolver uma situação. Wallon considera que esses momentos de

diálogo com o socius lembram aqueles de diálogo da criança consigo mesma, os

quais tendem a diminuir a partir dos três anos, mas não chegam a desaparecer

completamente, apenas a reduzir os episódios de sua ocorrência,

permanecendo secundário.

O socius, portanto, exerce um papel de extrema importância na vida do

indivíduo, podendo revelar aquilo que o eu cuida para reprimir, refrear, omitir.

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2.10 Princípios wallonianos de desenvolvimento

Perpassam a teoria de desenvolvimento de Wallon os princípios de

integração (nas suas duas ocorrências, quais sejam: na relação organismo-meio

e no imbricamento dos domínios funcionais), alternância e predominância. Por

ter sido a integração abordada no item que se refere aos meios10, serão aqui

enfatizados os conceitos de alternância e predominância.

É mister que se esclareça, mais uma vez, que todos os constructos

teóricos que fundamentam e dão sustentação à proposta walloniana, não são

compreendidos na sua singularidade, de modo isolado. Não se trata do

sincretismo tal como se dá no início do psiquismo humano, mas de uma

articulação própria, que difere em cada situação, indivíduo e cultura.

Assim, entende-se que não há, em relação aos domínios funcionais

(afetividade, ato motor, conhecimento e pessoa) uma relação de hierarquia ou

de escala de importância entre eles. Há, isto sim, a predominância de um sobre

os outros, que varia de acordo com os diferentes estágios do desenvolvimento,

bem como com o processo de interação do indivíduo com o outro e com o meio.

Apesar da predominância de um dos conjuntos sobre os demais, não se pode

compreender que estes estejam anulados, inoperantes.

A ideia de alternância funcional relaciona-se intrinsecamente com a

predominância, conferindo ao psiquismo a dinâmica que é peculiar ao seu

processo de desenvolvimento. A predominância da afetividade evoca a

alternância funcional centrípeta (quando o sujeito volta-se para a exploração e

                                                            10 4.1.2 Os meios e os grupos 

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conhecimento de si mesmo). Quando o predomínio é do conhecimento, a

alternância funcional é centrífuga (quando o sujeito volta-se para a exploração e

conhecimentos externos a ele).

A integração funcional se faz presente em todos os estágios do

desenvolvimento; ela independe da alternância ou da predominância funcionais,

uma vez que seu propósito é integrar os domínios afetividade, ato motor e

conhecimento, constituindo, desse modo, o quarto domínio chamado pessoa.

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‐ 81 ‐ 

3 Apresentação e

análise dos dados ... os problemas do presente e os que vislumbramos para um futuro próximo impõem à Psicologia tarefas cada vez maiores e mais desafiadoras; disso decorre a  imperativa necessidade  de  reflexão  sobre  seu  significado  e  sua responsabilidade na construção do devir histórico. 

(ANTUNES, 2007, p. 9) 

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Este capítulo apresenta as informações relevantes para a insvestigação que esta

pesquisa se propôs a realizar, articulando-as com o referencial teórico walloniano

anteriormente apresentado. É neste espaço que as discussões, reflexões e análises

encontram o seu ápice.

3.1 Fato e cenário: a construção de uma visão panorâmica.

Nenhuma narrativa ocorre sem as marcas do seu tempo, do seu espaço

e daqueles que nele conviveram. Experiências resgatadas, acontecimentos

marcantes, emoções suscitadas, trazem consigo elementos que os localizam

historicamente. Mas não é só isto: trata-se da integração organismo-meio,

conforme a concebe Wallon, impossibilitando a cisão entre um fato e os aspectos

que com ele se articulam. Segundo o autor (WALLON, 1973a, p. 164): “O meio é

o complemento indispensável do ser vivo”, ou seja, dele não é possível separar-

se; não há formas de torná-lo nulo. Para compreender essa concepção de

integração é preciso considerar o fato de que, além de indispensável para o ser

vivo, o meio revela as marcas das interações nele vivenciadas, constituindo-se

ele mesmo nessas relações, ao mesmo tempo em que também o outro é

constituido por ele.

Justifica-se, desse modo, a necessidade que o Professor Coordenador

entrevistado tem de “situar” primeiramente o local em que viveu a sua infância

para, então, relatar as suas experiências. Logo no início da sua narrativa ele

descreve, com as informações que julga necessárias, o cenário no qual passou a

sua infância.

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...minha infância até os 10 anos de idade ocorreu lá no Ceará. No sul do estado do Ceará, no meio das caatingas mesmo, no polígono da seca, uma região pobre. Foi lá que eu fiquei até os 10 anos, até vir para São Paulo.

É certo que, por mais que haja um esforço no sentido de aproximar-se

da realidade apresentada na entrevista, alguns aspectos podem ser distorcidos,

mal compreendidos ou lacunas podem permanecer sem explicação. No entanto,

entender a narrativa do entrevistado sem considerar os aspectos que se referem

ao meio em que as situações ocorreram é aumentar, consideravelmente, as

possibilidades de um entendimento deformado. Para que tal deformação possa

ser (tanto quanto possível) minimizada, outras linguagens, como a imagem,

podem contribuir significativamente para que este fim seja alcançado.

É o caso das fotografias trazidas por Moreira que, ao ser indagado sobre

a possibilidade de publicá-las neste trabalho não hesitou, concedendo

prontamente a sua autorização11. Essas fotografias aproximam o leitor deste

estudo da realidade relatada pelo entrevistado.

                                                            11  As imagens apresentadas não se referem à época da infância do entrevistado. Elas foram por ele captadas, já na fase adulta, por ocasião de suas visitas à região, onde ainda residem alguns parentes e amigos.  

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Figura 1 – A Rua da Barragem. 

Durante o seu relato, Moreira afirma que a divisão social, expressa pela

forma em que os moradores estavam dispostos nas duas ruas do vilarejo12, foi

marcante para ele. Mesmo que reconheça o fato de que como criança não sentia a

discriminação, destaca esse contexto como algo que merece ser registrado ou, nas

suas palavras, “isso marca, sem dúvida nenhuma”.

Vou situar um pouco esse local: eram duas ruas, uma rua principal

que era a Rua da Barragem, como a gente fala, e a outra era a Rua

da Jumenta (a gente não sabe por que... provavelmente morreu uma

jumenta). Mas uma das características é que uma era a rua dita das

pessoas que tinham mais dinheiro e a tal da Rua da Jumenta a rua

em que moravam os negros. Talvez isso seja interessante dizer

                                                            12 O vilarejo era composto por essas duas ruas: a Principal ou da Barragem e a da Jumenta. 

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porque isso “marca” sem dúvida nenhuma. (...) como criança a gente

acabava brincando com todo mundo, não havia essa discriminação.

Mais uma vez Moreira situa o meio em primeiro lugar e depois disso

localiza o fato vivido. Olhando para o conceito de integração organismo-meio há

como compreender o motivo pelo qual não foi possível para ele fazer uma ruptura

entre as experiências que constituiriam a sua narrativa e o meio em que viveu. Foi

preciso recriar oralmente uma visão panorâmica para que os acontecimentos que

seriam narrados pudessem ser compreendidos do modo mais próximo possível

daquele contexto.

A ideia de uma visão panorâmica parte do pressuposto de que as

informações sobre um determinado fato são apreendidas de um modo mais geral

para que, então, possa ser ampliada, o máximo possível, a compreensão que se tem

sobre ele. Se necessário for, uma análise mais aprofundada sobre aspectos

específicos possa ser realizada.

Na prática profissional do entrevistado, nota-se semelhante importância

dada à integração organismo-meio, visto que valorizava e propiciava à sua equipe

docente, nos espaços de formação, conhecer o entorno da unidade escolar,

acreditando ser esta uma prática que auxiliaria o professor na compreensão das

possibilidades e limitações dos seus alunos, com vistas a promover uma prática

pedagógica mais adequada para aquele grupo de alunos. É por isso que no seu

relato destaca:

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...a gente foi no bairro e a gente conheceu todo o bairro do SN com

os professores. Andamos! Os professores não queriam, muitos não

queriam: “é... eu não estou preparado” ou “ eu estou de salto”.

“Quem mandou vir de salto, professora? Vamos lá!” E fomos,

andamos. No outro dia discutimos aqui lá e os professores ficaram

abismados, não achavam que era aquilo. Viram que as casas eram

muito bem feitas e, então, não era um bando de mendigos que

estavam lá, nem de favelados. A gente discutiu todo esse contexto

pra que eles soubessem onde é que eles estavam. Por que a

comunidade estava dentro da escola? Por que era tão política

aquela situação? Discutimos a questão dos movimentos populares e

o que significa o Movimento Sem-Terra, a organização dele e onde

que a gente estava. A partir dessa metodologia eu investi em todas

as outras saídas com formação para o aluno e para o professor.

O que Moreira revela com atitudes como esta é que precisa haver um

esforço no sentido de compreender o aluno considerando-se os diferentes meios

nos quais se insere. Não bastam os comportamentos observados em sala de aula

para nortear a prática do professor. Por outro lado, há que se considerar a grande

dificuldade que seria para esse profissional observar todos os alunos (e na escola

pública as classes são possuem uma média de quarenta estudantes) inseridos nos

mais diversos meios. Entretanto, conhecer a comunidade em que se localiza a

escola, como propõe Moreira à equipe docente que coordena, é algo significativo já

que este é um meio comum à maioria dos alunos e pode desvelar aspectos a partir

dos quais o professor deve reorientar a sua prática pedagógica.

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Em outros casos, como nas situações em que o aluno apresenta um

comportamento inadequado na escola, uma dificuldade de aprendizagem ou

qualquer atitude que mereça uma ação pontual, uma intervenção por parte do

professor, faz-se necessário observar o seu comportamento em diversos meios, ou

seja: nos diferentes espaços da escola, em casa, nos lugares em que gosta de

brincar, etc.

O Professor Coordenador, portanto, deve propiciar condições para que

os professores entendam a necessidade de investir na compreensão do aluno de

modo integral, sem desconsiderar os diferentes meios que o constituem mas, ao

mesmo tempo, sem pender para a outra extremidade da questão achando que o

meio necessariamente determina essa constituição. É preciso cuidado quando se

toma por princípio uma concepção extremada: nem ignorar a importância dos meios,

nem acreditar que ele determina o indivíduo. Nesse sentido, Wallon esclarece:

Os meios onde a criança vive e os que ambiciona são o molde que dá o cunho à sua pessoa.  Não  se  trata  de  um  cunho  passivamente  suportado.  O  meio  de  que depende começam (sic) certamente por dirigir as suas condutas e o hábito precede a escolha, mas a escolha pode impor‐se quer para resolver discordâncias quer por comparação dos seus próprios meios com outros (1973a, p.167) 

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3.2 A questão sobre o outro na narrativa biográfica

Considerando-se o que define a concepção walloniana no tocante à questão

sobre o outro, os outros e o outro íntimo, é preciso salientar que toda e qualquer

narrativa é permeada desses elementos, ou seja, todas elas trazem à tona esse

outro que é inerente à condição humana.

Assim, identificar tais elementos na narrativa do entrevistado é uma tarefa

relativamente tranquila. O grande desafio que se apresenta é analisá-los à luz

da teoria de Wallon, buscando compreender o seu papel na atuação do

Professor Coordenador, propósito que esta pesquisa se pôs a investigar. Com a

finalidade de oferecer certa organização textual e clareza nas informações, sem

as quais a compreensão do leitor fica prejudicada, organizou-se esta discussão

sobre o papel do outro considerando-se três vertentes. É preciso salientar que

esta é apenas uma maneira de organizar as informações a partir das quais se

pretende suscitar algumas reflexões, entretanto, este estudo não acredita que

esta seja uma cisão possível na realidade humana. Não há como separar

sociedade, cultura e indivíduo; não há como separar o outro, o meio e o seu

momento histórico, pois um é constituinte do outro, portanto, inexiste sem o

outro. Desse modo, ao referir-se a qualquer um desses aspectos,

necessariamente os demais estarão presentes, considerando-se, de acordo com

a informação destacada, a predominância de um sobre o outro.

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3.2.1 Um contador de histórias, um marceneiro,

um jovem artesão... marcas desses outros reais.

Toda a narrativa de Moreira é permeada por pessoas que lhe servem de

referência, de modelo que ele aprecia e busca imitar. Os outros que ele

mesmo destaca na sua narrativa revelam o quanto tais referências exercem

papel de relevância na sua vida. É o caso do senhor que contava histórias à

noite, quando voltavam da casa de alguém do vilarejo em que moravam.

Eu lembro que a gente ia mas queria voltar com um senhor porque

ele contava histórias pra gente. Eu lembro que uma vez, em torno de

quinze crianças, meus irmãos, primos, amigos e tudo o mais, e ele

contando histórias macabras, de lobisomem... E falava que o

lobisomem ficava nas moitas, nas árvores, no escuro... E tinha

várias moitas pra gente passar. E era interesse que, conforme ia

passando, ele ia contando a história e a gente ia se juntando a esse

adulto. Ninguém o dispensava. Quando ele parava de contar, cada

um ia por si e ficava bem distante. Aí ele dizia: “Opa, olha a história,

ali pode ter um lobisomem!” Aí a gente juntava novamente.

Tanto o senhor que contava histórias como as crianças que o acompanhavam

são os outros reais com os quais Moreira interagia concretamente num meio

comum, mas que permanece em constante interação até hoje. Isto porque ao

relatar esta situação, o entrevistado a analisa de um ponto de vista diferente

daquele que tinha na época em que a vivenciou, conferindo-lhe uma nova

interpretação. É quando diz:

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Hoje eu fico pensando: acho que era uma estratégia dele pra manter

todo aquele “bando” próximo, não brigando e não fazendo qualquer

outra coisa e não se perdendo. Então as histórias também serviam

pra unir as pessoas.

Isto ocorre porque o meio ou o outro pode ser distinto dependendo da

percepção que se tem dele. É por isso que, na infância, Moreira não

imaginava que aquelas histórias de assombração eram utilizadas como

estratégia para manter as crianças reunidas, uma vez que, naquela região,

não havia energia elétrica e a situação ficaria complicada se elas se

dispersassem.

Figura 2 – O vilarejo em que Moreira morava: a região sem iluminação.

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No entanto, no entendimento do adulto em que se constituiu, ele percebe o

mesmo fato de um modo diferente; consegue notar a intencionalidade do

outro diante de uma situação. É como afirma Wallon:

Não existe apropriação rigorosa e definitiva entre o ser vivo e o seu meio. As suas relações resumem-se a uma transformação mútua; os períodos de estabilidade correspondem a momentos de equilíbrio que subsistem, sem modificação aparente, durante o tempo em que as forças em presença se mantêm suficientemente constantes. (1973a , p.164)

Esses outros também ecoam na sua atuação profissional. Moreira interfere

“estrategicamente” nas decisões que acredita devam ser tomadas pelos

professores, “escondendo” o que sabe para que sua equipe possa mobilizar-

se na procura autônoma das informações necessárias.

Em alguns momentos a gente fechava mesmo a escola, literalmente.

“Tal dia vai todo mundo lá pro... Instituto Butantan. Vamos conhecer

primeiro. Vamos ver o que dá pra gente trabalhar. Vamos verificar

como fazer. Alguém tem alguma ideia?” A maioria não conhecia.

“Ah... eu conheço alguma coisinha lá, Moreira.” “Então, tá bom. Já é

um bom começo.” Mas a gente nunca falava que sabia, né?

Pode-se dizer que a interação com o outro refletiu na sua atuação profissional

como exemplo de que é possível criar estratégias para que o grupo sob sua

liderança alcance o objetivo almejado.

Outros exemplos das implicações desses outros na sua atuação como

Professor Coordenador podem ser extraídos do relato sobre o marceneiro

que transformava a matéria bruta em utensílios e do jovem artesão que

confeccionava reproduções “com perfeição”.

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Até hoje me assusta lembrar: ele vivia no mato, cortava uma árvore

imensa, trazia aquela tora de madeira bruta, passava dias e dias

serrando aquela tora de madeira e fazendo várias tábuas “na mão”,

serrando, serrando... Um trabalho lento, devagar... Sem falar que ele

riscava tudo direitinho. Aquilo eu achava o máximo! Como que ele

conseguia riscar tudo aquilo igual, certinho... ele usava os esquadros

e eu ia observando tudo aquilo. Então eu começava as fazer as

coisas. Depois ele plainava tudo aquilo, deixava lisinho, riscava

novamente, passava ali tudo o que tinha que fazer, cortava

perfeitamente, encaixava aquelas coisas, depois a lixa, enfim, todos

os processos que ele ia fazendo eu via. Vira e mexe eu estava lá

também usando a plaina, usando isso e aquilo de uma outra forma.

(...) Eu via as coisas sendo transformadas em algo novo, em algo

diferente, com uso. Hoje a gente pode dizer sobre o uso real, social

das coisas.

Todo esse trabalho, essa transformação a qual se refere Moreira o afetou de

tal modo que ela passa a imitar o marceneiro, usando algumas ferramentas,

tentando construir também algo últil. Foi como quando resolveu tornar-se

Professor Coordenador: transformou uma decepção que teve na escola em

que lecionava (cujos princípios eram muito diferentes daqueles que

acreditava e defendia) em possibilidade de contribuir para um processo

educativo melhor, atuando como Professor Coordenador. A decepção, que

está no domínio da afetividade, é sentimento, o mobilizou a buscar uma forma

útil de atuação. Pode-se dizer que a decepção foi, portanto, a matéria bruta

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Figura 3 – O marceneiro que Moreira gostava de observar na sua infância.

que foi trabalhada até que se tornasse algo útil, ou seja, o ingresso na

Coordenação Pedagógica.

A questão afetiva posta nesse relato é de tal forma marcante que Moreira

guarda até hoje uma foto do marceneiro entre os seus pertences. É a

intensidade desse afeto que possibilita a sua permanência na vida psíquica

do entrevistado, mesmo depois de muito tempo, conforme revela Wallon:

Os sentimentos, sem dúvida, e a paixão, sobretudo, serão tanto mais tenazes, perseverantes e absolutos quanto mais irradiarem uma afetividade mais ardente, na qual continuam operando algumas das reações, ao menos vegetativas da emoção. (2007, p.126)

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A perfeita reprodução de objetos realizada por um jovem artesão do vilarejo

em que morava no sul do estado do Ceará é também citada na narrativa do

entrevistado como um fato marcante. Moreira se refere a ele com admiração e

respeito. Lembra-se dos seus feitos como quem desejou ser como ele:

E tinha um rapaz que fazia as coisas muito bonitas, muito bem

feitas. Enquanto a gente estava com aqueles carrinhos horríveis, a

coisa mais feia do mundo, em geral, tudo o que ele batia o olho ele

fazia. Se ele visse uma carreta passando pelo vilarejo, que era a

coisa mais difícil do mundo, ele reproduzia. Pegava tudo aquilo e

transformava numa miniatura. E isso me trouxe essa ideia de fazer,

imitar algo bonito, bem feito também. Claro que eu não conseguia

chegar lá, mas era essa a nossa ideia. A mesma coisa no

artesanato: ele fazia coisas maravilhosas!

Os outros que Moreira admirava, buscava imitar. Bons modelos e boas

referências davam-lhe suporte para um desempenho criativo. Ele mesmo

define que era “a imitação para a criação.” É como constata Ronca (2007,

p.57):

...acredita-se que não existe educação sem a participação de modelos, mas modelo é aqui entendido como uma fonte de inspiração, apoio ou parâmetro de recriação; ele instiga o aluno a construir sua autonomia e a produzir pensamento original.

É nesse sentido que é possível perceber, na sua atuação profissional, Moreira

imitando o jovem artesão da sua infância, quando busca reproduzir, o mais

fiel possível, o tipo de moradia predominante na comunidade em que se

localiza a escola.

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Aí eu lembro que eu cheguei lá num dia no intervalo.

Peguei as minhas coisinhas, serrote, faca, uns

engradados que eu peguei lá com um cara que vendia

frutas e ele ficou bravo que tinha quebrado as coisas

dele... peguei... e os alunos olhavam, juntou aquele bando

atrás de mim. E eu bem no meio da quadra, num cantinho

lá... medi aqui... E eles “o que você está fazendo? Ô, seu

“Governador”, o que o senhor está fazendo?...” (risos) E

eu: “fica quieto, sai pra lá pra não se machucar.” Daqui a

pouco eles começavam a dizer: “é uma casa!” E o outro:

“é um barraco que ele está fazendo.” E eu ia lá serrava,

colava, de repente... eu fiz um barraquinho.

É interessante notar que, ao mesmo tempo em que Moreira imitava o artesão

que admirava na infância, atuava como modelo para a sua equipe de

professores e para os alunos. Assim, ao mesmo tempo em que resgatava as

referências desse outro da infância que reflete na sua atuação profissional

era, ele mesmo, um outro para aqueles que estavam no seu entorno. Isso

porque na relação eu-outro não há supremacia de um dos pólos. Ambos

constituem-se mutuamente.

Na tentativa de buscar uma forma de sensibilizar a sua equipe de professores

para o trabalho junto aos alunos com o tema moradia, ou seja, pensando em

formas para afetá-los, Moreira mobiliza seus conhecimentos e habilidades,

interpretando-os à luz da necessidade que ora se impõe, bem como das

experiências vividas até o momento nos diferentes meios, resultando numa

configuração psíquica diferente daquela que havia antes de tal mobilização.

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Por outro lado, os professores percebem essa atuação do Professor

Coordenador, cada qual de acordo com o conjunto de experiências,

possibilidades e conhecimentos de que dispõe, conferindo-lhe uma

interpretação que é, concomitantemente, pessoal/ social/ cultural, podendo

afetar-se por ela positiva ou negativamente.

Diante dessa situação, vale destacar o papel do líder nesse processo.

Conforme discutido anteriormente (item 2.8 Os grupos) o líder é aquele que

se constitui no grupo onde cada qual tem seu papel conhecido pelos seus

componentes. Se Wallon refuta a ideia de liderança nata, há que se ressaltar

a importância de uma atuação pautada na sensibilidade para observar e

conhecer o outro. Sem essa habilidade o Professor Coordenador corre o risco

de não ter a sua liderança validada pelo grupo, o que seria prejudicial ao

trabalho pedagógico pois,

...a autoridade baseia-se na confiança adquirida por meio do desempenho de quem a exerce, de modo que se torne legítima e legitimada pelo grupo no qual – e pelo qual – essa “autoridade” se exerce. (...) a falta de “competência” ou de condições de desempenho necessários à autoridade conferida, legitimada pelo grupo, pode, sem dúvida – ainda observando-se a perspectiva arendtiana –, gerar o autoritarismo, sustentado por desvios que têm contornos de insegurança e arbitrariedade. (RANGEL, 2001, p.60)

Refletindo sobre a questão da autoridade na Coordenação Pedagógica,

Trevisan-de-Souza e Placco (2006, p.28) realizam um estudo que apresenta

as considerações de diferentes autores sobre o tema, resgatando em cada

um deles a concepção de autoridade. Findada essa etapa, as autoras

revelam que:

Das considerações dos autores supracitados, dois tipos de autoridade podem ser, portanto, identificados: um que se contrói nas relações entre as pessoas, pelo reconhecimento de que aquela que exerce o papel de autoridade tem qualificações pessoais e profissionais para tal, como o conhecimento e saberes institucionais específicos, por exemplo; e um tipo

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em que a autoridade é dada pelo cargo de quem a exerce em dada organização, independente das qualificações da pessoa, qualificações que podem ou não estar presentes.

A essência do que revelam as duas autoras é o fato de que a autoridade de

um líder deve ser legitimada pelo grupo no qual ele se constitui. Esse

princípio corrobora a premissa walloniana de que não há líderes natos, pois

estes são constituídos no grupo onde exercem a sua liderança. É por isso que

o primeiro tipo de autoridade apresentado por Trevisan-de-Souza e Placco

destaca que esta “...se constrói nas relações entre as pessoas...”, ou seja,

nas relações que se estabelecem com os outros.

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Figura 4 – A Barragem. 

3.2.2 A barragem, as brincadeiras, a escola...

implicações dos meios também chamados de outro.

Para iniciar esta reflexão é importante resgatar o conceito de que o outro é

um constructo teórico que Wallon utiliza para referir-se ao homem de modo

abstrato, de maneira generalizada. Por isso abarca, também, a ideia de meio,

visto que esse homem abstrato, esse outro, está necessariamente inserido

num meio.

Em vários trechos da sua narrativa Moreira faz referência à barragem que

ficava ao final da rua em que morava. A cada vez que é citada, a barragem

revela as diferentes interpretações que se tem dela.

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É apresentada, ao mesmo tempo, como:

- lugar que marcava as diferenças sociais existentes:

...eram duas ruas, uma rua principal que era a rua da barragem,

como a gente fala, e a outra era a rua da jumenta (a gente não sabe

por que... provavelmente morreu uma jumenta). Mas uma das

características é que uma era a rua dita das pessoas que tinham

mais dinheiro e a tal da rua da jumenta a rua em que moravam os

negros.

- lugar onde as brincadeiras de que gostava aconteciam:

A gente brincava muito lá, nadávamos, ficávamos uma boa parte do

tempo lá...

- lugar que acolhia quando estava sozinho:

Quando não deixava ir nem pra um nem pro outro canto eu ficava

sozinho no meio da mata, da cachoeira, ia pra barragem, correndo

atrás de cobra, a cobra correndo atrás de mim, outra hora matando

passarinho, essas eram as brincadeiras que a gente tinha, pegando

calango e fazendo briga um com o outro... de tudo tinha um pouco.

- lugar de onde se pode tirar o alimento e o sustento:

O fato, por exemplo, do meu pai ser pescador, também me marcava

muito.(...) Eu lembro que até ajudei uma vez. Acordei quatro horas

da manhã pra gente ir lá na barragem; vi sair fumaça da água...Eu

lembro que nesse momento a traíra mordeu o dedo dele. Nossa!

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Figura 5 – As mulheres lavavam a louça e a roupa na barragem, enquanto as crianças nela brincavam. 

Quase decepou o dedo. E ele me xingou porque era pra remar pra

direita e eu fui pra esquerda. Mas, enfim... a gente continuou... e foi

legal aquele momento. Ele me deixou remar a canoa, puxar a

tarrafa,...

- lugar permitia a realização dos trabalhos domésticos:

enquanto as mães lavavam as roupas a gente ficava brincando,

fazendo os bonecos, tomando banho, pescando...

Fica claro, no relato de Moreira, como um mesmo meio pode ser interpretado

de diferentes formas até pelo mesmo indivíduo. Esse outro, que nesse

momento é a barragem, adquire diversas expressões durante a sua narrativa

por causa das diferentes interações que se tornam possíveis por meio dele

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(demarcar um espaço social, brincar, nadar, lavar utensílios e roupas, banhar-

se, e outras).

Assim, um meio pode ser compreendido de diferentes formas por um mesmo

indivíduo. Há, para tanto, uma dependência estreita entre as possibilidades e

limitações que este meio oferece e a interpretação que o indivíduo lhe

confere, considerando-se as suas necessidades naquele momento, bem

como as experiências até então vivenciadas.

Transpondo esta reflexão para o espaço escolar, nota-se que essas

diferentes interpretações podem ser percebidas observando-se as

representações de cada um dos professores que compõem a equipe de uma

determinada escola. É muito provável que, indagados sobre como definem a

Coordenação Pedagógica daescola em que atuam, as respostas variem de

um professor para outro. Se forem questionados em momentos diferentes do

ano, por exemplo, possivelmente serão obtidas respostas variadas de um

mesmo professor, o que é plenamente compreensível, já que as interações

estabelecidas no intervalo que contempla o período de um questionamento ao

outro, reestruturam o indivíduo que, por sua vez, modifica a sua relação com

aquele meio e, consequentemente, o define de modo diferente do

anteriormente realizado.

Entretanto, há que se tomar o cuidado de não permanecer somente num dos

pólos dessa relação, o que levaria à compreensão equivocada de que o meio,

o ambiente, define o individúo. Não. É mais do que isso: a relação eu-outro

pressupõe troca, reciprocidade. Na medida em que as interações ocorrem e o

indivíduo vai percebendo esse outro de modo diferente, a maneira como

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passa a lidar com ele também se altera, ou seja, a relação vai sendo

delineada, configurada, a partir da última concepção que se tem a respeito do

outro. Mas, na medida em que o modo de lidar com esse outro foi modificado,

suas possibilidades e limitações compreendidas numa perspectiva diferente

daquela havia antes, ele já não é mais o mesmo. Diz-se, então, que o outro

foi modificado pelo eu.

Recorrer a Wallon para tratar desse assunto é de fundamental importância.

Portanto, há que se resgatar a ideia (citada em 3.2.1) de que não há uma

definição ou uma configuração entre o eu e o outro que se possa afirmar

definitiva. O que há, entre ambos, é uma constituição mútua.

Por outro lado, quando Moreira cita as diversas brincadeiras da sua infância é

preciso uma leitura cuidadosa e sensível dos sinais que são revelados: a

recorrência ao assunto, a ênfase dada, a empolgação durante o relato,

denunciam uma relação eu-outro com toda a complexidade de uma

constituição mútua, mas que evidencia uma relação repleta de afeto,

congnição e ato motor.

Bem, alguma dificuldade... não é dificuldade porque eu acho que foi

interessante, é o fato da gente não ter brinquedos. Ninguém tinha

brinquedos, nem de uma rua nem da outra. Era muito difícil,

pouquíssimas eram as crianças que podiam gozar realmente de

algum tipo de brinquedo. Então, nós tínhamos que fazê-los. Esses

brinquedos eram feitos a partir de argila, de terra, de madeiras que

estavam por lá, restos de pneus, de chinelos, de lata de óleo, enfim,

de tudo isso nós construíamos os nossos brinquedos.

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Como não havia brinquedos na região as crianças utilizavam tudo aquilo de

que dispunham nas brincadeiras, ou seja, envolviam-se com esse outro

(enfatizando-se agora a brincadeira, sem desprezar os meios que com ela se

articulam) de maneira completa, como afirma Wallon, “O brincar resulta do

contraste entre uma atividade liberada e aquelas a que normalmente ela se

integra. É entre oposições que evolui, é superando-as que se realiza.” (2007,

p.64)

Quando relata o fato de conhecer todas as letras do alfabeto, mas não

conseguir “formar palavras” é indagado sobre o sentimento que havia em

relação a tal situação. Sua resposta, então, revela o quanto lhe era

significativo o brincar e, ao mesmo tempo, o quanto a escola não fazia sentido

para ele que vivia numa região onde as pessoas eram analfabetas. Sobre a

escola diz:

Figura 6 – Parte da barragem de onde geralmente as crianças retiravam a argila para construir os seus brinquedos.

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Eu não consigo nem pensar nisso. Eu queria estar é brincando,

pulando, então eu não tinha interesse nenhum. Eu acho que parte

por aí. Se eu juntasse as palavras ou não, isso fazia com que eu

odiasse mais ainda a escola, talvez... Mas, na realidade eu não

queria nem estar lá. Eu ia porque eu era obrigado, às vezes. Minha

mãe me obrigava a ir. Eu queria estar brincando: sozinho, com

amigo, sem amigo... eu entrava no meio da mata, ficava a manhã

toda, voltava, sentia fome, voltava, comia e voltava novamente pra

outro lugar. Essa era a minha vida. Eu não via sentido no meio

daquele interior, acho que seja isso, não havia sentido pra mim num

mundo de analfabetos que existia lá.

O brincar destaca-se no relato de Moreira, mas também nesta pesquisa que o

entende como um aspecto importante a ser discutido porque envolve todas as

dimensões funcionais que constituem a pessoa: afetividade, ato motor e

conhecimento.

Em alguns pontos da sua narrativa o entrevistado refere-se à brincadeira em

oposição à escola, como no trecho anteriormente citado: não via sentido em

frequentar a escola, o que ele queria mesmo era brincar. É interessante notar

que, ao discorrer sobre o brincar, Wallon também apresenta uma

contraposição que, no seu caso, é o trabalho.

O brincar é sem dúvida uma infração às disciplinas ou às tarefas que impõem a todo homem as necessidades práticas de sua existência, a preocupação com sua posição, com sua imagem. Mas, longe de ser sua negação ou renúncia, ele as pressupõe. (...) Só há brincadeira se houver satisfação de subtrair momentaneamente o exercício de uma função às restrições ou limitações que sofre normalmente de atividades de certa forma mais responsáveis, ou seja, que ocupam um lugar mais eminente nas

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condutas de adaptação ao meio físico ou ao meio social. (WALLON, 2007, p.59)

O brincar, entendido nesta perspectiva, permite um retorno à narrativa de

Moreira para compreendê-la na sua relação com a escola.

Quanto aos estudos, eu não tinha o menor prazer de participar lá.

(...) Uma das coisas que me marcou bastante foi uma das cenas de

estudo: você está em roda e o professor pergunta, por exemplo, a

tabuada, 5X8, e você não acerta. Aí vai perguntando, um para o

outro, até alguém acertar. Quando esse acertava, ele vinha e

ganhava o privilégio de bater com a palmatória na gente, aqueles

que erraram. Fora isso, existem outros momentos “prazerosos”

também, como ficar em cima de caroços de milho, de feijão, com a

cara batida na parede...

A ironia ao falar dos momentos “prazerosos” indica que, além de não ter

motivos para ir à escola, esta lhe propiciava experiências desagradáves, o

que complicava ainda mais a sua relação com ela.

Não se pode ignorar o fato de que as punições utilizadas nas aulas, que

incluíam situações de humilhação e castigos físicos eram, minimamente,

abusivas. Infelizmente, práticas como estas eram frequentes nas escolas em

vários lugares do país. A falta de autoridade do professor (pautada numa

atuação competente e legitimada pelo grupo) cede espaço para o

autoritarismo (fundamentado numa relação hierárquica verticalizada e na

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imposição daquilo que se pretende realizar). E o que permanece nas

lembranças do aluno sobre a sua vida escola é, precisamente, as interações

que ali são estabelecidas, como afirma Haidt (2001, p.56):

Se, por um lado, a matéria e o conteúdo do ensino, tão racional e cognitivamente assimilados, podem ser esquecidos, por outro, o “clima” das aulas, os fatos alegres ou tristes que nelas se sucederam, o assunto das conversas informais, as idéias expressas pelo professor e pelos colegas, a forma de agir e de se manifestar do professor, enfim, os momentos vividos juntos e os valores que foram veiculados nesse convívio, de forma implícita ou explícita, inconsciente ou conscientemente, tudo isto tende a ser lembrado pelo aluno durante o decorrer de sua vida e tende a marcar profundamente sua personalidade e nortear seu desenvolvimento posterior.(...) Portanto, neste momento de interação, de convívio, de vida em conjunto, o aluno torna-se presente por inteiro, pois a razão e os sentimentos se unem, guiando o seu comportamento.

Entretanto, observa-se que, apesar de ter vivenciado tais experiências, a

relação que Moreira estabelece com a escola depois de algum tempo não é

de revolta ou rebeldia. As sensações desagradáveis, o desconforto, o mal-

estar, o medo, denunciam a maneira pela qual a escola o afetava. Poder-se-ia

imaginar, numa perspectiva atual sobre a educação, que Moreira tenderia a

permanecer afastado da escola por toda a sua vida. Porém, o seu relato

revela o oposto dessa ideia: ele não só permanece na escola (seu nível atual

de estudo é doutorando em Educação) mas, na posição de Professor

Coordenador, cerca-se de cuidados para que os professores da sua equipe

não esqueçam que o foco do seu trabalho é a aprendizagem dos alunos,

conforme relata:

Chega um momento que eu ia dizer alguma coisa e eles: “não, não,

não. Não dá ideia. Nós vamos resolver.” Eu falava: “que bom! Vocês

não querem uma ideia?” “Não. O senhor já bagunçou demais, não

precisa.” Aí o outro: “o ideal seria...” E eu: “o ideal não... vamos com

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calma. Nós temos que pensar nos nossos alunos. Nós já vimos que

se o aluno sair da sala ele se estica, não fica todo o tempo

sentadinho... ele se move, ele tem outro ambiente... ele vê a classe

da professora que é bonita, toda ambientalizada, um espaço de

formação pra ele... vai ter atlas e tal, tal, tal. Não vamos esquecer

isso: como a gente fez pra chegar até aqui. Não foi por acaso, né?”

Sua preocupação com a aprendizagem considera a perspectiva do aluno.

Quando dirige a atenção do professor para os aspectos que precisam ser

considerados, do ponto de vista do aluno, Moreira apresenta uma

compreensão diversa daquela que vivenciou, o que permite pensar que os

modelos com os quais nos deparamos durante a vida servem de referência

para segui-los ou refutá-los, dependendo da forma como afeta o indivíduo.

Dois outros fatores nesse trecho do relato precisam ser considerados. O

primeiro deles trata da importância de olhar para o aluno de modo integral,

qualquer que seja a sua idade. Quando fala sobre a importância de tirar um

pouco o aluno da sala para que possa se esticar, se movimentar, evidencia o

quanto esses movimentos, o ato motor, pode ser um entrave ou um facilitador

no processo de aprendizagem, dependendo de como este assunto é

conduzido pelo professor. O segundo aspecto a ser considerado é o fato de

que, partindo do que afirma Wallon sobre o brincar (citado anteriormente),

pode-se verificar que, de fato, a oposição que Moreira apresenta entre o

brincar (atividade pela qual é afetado com pelas sensações agradáveis e

prazerosas que dela demandam) e a escola (lugar cujas práticas suscitam

sensações e emoções relacionadas ao desconforto, ao desprazer e ao medo)

não significam negação ou renúncia. Ele não somente prossegue os seus

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estudos naturalmente, como escolhe por profissão a docência e, mais tarde,

como Professor Coordenador, torna-se formador desses docentes. Isto ocorre

porque “A desintegração passageira pressupõe a integração habitual.”

(WALLON, 2007, p.59)

Moreira também ressalta o fato de que as brincadeiras traziam consigo o

caráter inventivo e criativo, competências valorizadas na cultura atual e que

se relacionam diretamente com a dimensão cognitiva, com o conhecimento.

Atuando como Professor Coordenador revela uma atuação imbuída dessas

características e que, efetivamente, fizeram diferença na sua prática junto à

formação dos professores que compunham a sua equipe. É quando Moreira:

- institui uma rotina uma prática dos professores, o que não existia antes:

Eu lembro que numa primeira reunião lá eu falei: “gente, eu fico feliz

por vocês terem lido a minha proposta de coordenação...” E o

pessoal: “haha... Moreira, quem que leu? A gente ficou sabendo na

hora.” Eu falei: “então eu gostaria de ler a minha proposta com

vocês. Eu quero deixar claro o trabalho que eu pretendo. Até pra que

vocês me avaliem sobre essa questão.” Aí o vice-diretor falou: “não,

não tem avaliação sua”. Eu falei: “mas eu gostaria. Eu venho de um

ambiente que tem avaliação no final do ano e a gente avalia a

permanência ou não. E eu gostaria sim que tivesse no final do ano.”

E eu sempre fiz. Todo ano eu fazia uma avaliação do meu trabalho,

do que eles achavam, do que poderia acrescentar se eu fosse ficar.

Nos cinco anos que eu fiquei lá eu fiz essa parte.

- quando institui mudanças nas formações das salas de aula:

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E no outro ano os professores esperavam exatamente que

retornassem algumas coisas e não! A gente continuava com outro

grau de dificuldade na nossa formação, no trabalho... A gente foi

pensar a sala de aula, a disposição delas e o que precisava fazer...

Chegamos a discutir a grade curricular, mudamos... demos quatro

aulas pra História, quatro aulas pra Geografia, quatro aulas pra

Arte... mudamos um monte de coisa. Mudamos a aula de Língua

Portuguesa, dividimos a aula de Português em aula de biblioteca, de

leitura, de laboratório disso e daquilo, os professores começaram a

trabalhar entre eles. Um pegava a parte de matemática porque

dominava mais, o outro pegava a parte de Língua Portuguesa e

virou o “satanás” naquela escola, uma bagunça... e tudo registrado,

bonitinho. Sala de vídeo: tinha lá um horário. A aula do professor é

tal dia e a sala de vídeo é dele. Mesmo que ele não fosse usar, o

espaço era dele. Se ele não fosse usar e quisesse usar com outro

professor... que fosse! Mas era pra dar uma vez por semana um

vídeo para o aluno. E tinha que levar pra sala de leitura também... e

estava lá: Sala de Leitura... Então foi uma loucura, mas é muito legal

isso aí.

- quando desenvolve um projeto de formação para que os professores

conheçam a realidade da comunidade em que a escola está situada:

Então a primeira coisa foi, dentro das falas dos professores: “a

comunidade é muito pobre e tal, tal, tal”. Então a gente criou um jeito

em que nós saímos e foram uns três dias lá pra discutir a

metodologia de pesquisa e o que seria isso: investigar, analisar, tal,

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tal. No segundo dia a gente foi no bairro e a gente conheceu todo o

bairro do S.N. com os professores. (...) No outro dia discutimos aqui

lá e os professores ficaram abismados, não achavam que era aquilo.

Viram que as casas eram muito bem feitas e, então, não era um

bando de mendigos que estavam lá, nem de favelados. A gente

discutiu todo esse contexto pra que eles soubessem onde é que eles

estavam.

Esses aspectos da atuação desse Professor Coordenador foram

constiuidos na sua relação com o outro (a barragem, as brincadeiras, a

escola) desde a sua infância e manifestam-se na sua prática pedagógica

de diferentes formas, sendo o modo a partir do qual Moreia compreende

e interpreta essas interações, ou seja, a maneira como delas se

apropria, configuram o seu eu e a sua trajetória profissional.

Eis-no de novo face à pessoa e ao profissional, ao ser e ao ensinar. Aqui estamos. Nós e a profissão. E as opções que cada um de nós tem de fazer como professor, as quais cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de ensinar e desvendam na nossa maneira de ensinar a nossa maneira de ser. É impossível separar o eu profissional do eu pessoal. (NÓVOA, 2007, p.17)

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3.2.3 Conflitos, escolhas, desafios... o outro íntimo

na construção de uma trajetória.

A identificação do outro íntimo numa narrativa só é possível por meio da

expressão de suas manifestações, o que é uma tarefa complexa. O outro ou

os outros que, durante o transcorrer de uma vida, interagem com o indivíduo,

findam por constituirem-se em aspectos do seu eu, podendo suas expressões

revelar aspectos que se alternam entre o eu e o outro, nas situações de crise

ou conflito, como afirma Wallon:

Entre o eu e o outro, a fronteira pode ter novamente tendência para desaparecer em certos casos de choque ou de obnubilação mental. O que era atribuído ao outro pode ser novamente reabsorvido pelo eu. Enfim, a preponderância pode passar do eu ao outro. (1973a, p.157)

Assim sendo, o que se busca na narrativa de Moreira é a identificação

de alguns desses momentos de crise, de incertezas, de escolhas, a fim

de que se possa estabelecer relações com o tema em questão.

Um desses momentos ocorre quando Moreira cita que, cansado de

apanhar para ir à escola propõe um acordo à sua mãe:

...todo dia pra ir pra escola, seis horas da manhã, eu estava

agarrado no pé da mesa e apanhando. Apanhava até a minha

mãe cansar. Ela suava, tomava fôlego e voltava a bater

novamente. Era surra feia. Não era pequena, não. Até eu sentir

dó dela, aí eu ia pra escola.

(...) Eu acho que foram meses nessa brincadeira. Eu lembro

somente do momento de rompimento. Foi quando ela falou:

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“como é que você não quer estudar se todo mundo estudou?”

Eu perguntei “estudou até quando?” Ela falou “fiz a quarta

série”. “E meu pai?” “Também fez a quarta série.” Eu falei “é

isso que vocês fizeram? Então se eu fizer até a quarta série eu

fico livre disso?” Ela falou “sim.” Eu falei “então tudo bem. Eu

vou estudar até a quarta série. No final da quarta série, igual a

vocês, eu paro de estudar.” A partir de então eu fiz as vontades

dela porque eu fiz um acordo.

O acordo que Moreira faz com sua mãe é pautado na cultura na qual está

imerso. Querendo cessar as surras recorrentes que recebia da mãe, ele

entende que precisa abandonar o seu desejo (não ir à escola) para atender a

uma necessidade que, ao menos naquele momento, não é sua, é externa, é

desse outro que precisa ser por ele introjetado, é dessa cultura que lhe é

imposta.

Quando entende que é inútil resistir às pressões externas, surge uma atitude

para organizar a situação: uma proposta, um acordo. De onde ele surge?

Quem o sugere? Quando foi elaborado? Se Wallon afirma que os momentos

de crise podem invalidar a delimitação eu-outro, são também nessas ocasiões

que o outro íntimo (o outro já tornado próprio pelo eu) manifesta-se. No caso

deste fato narrado pelo entrevistado, o outro íntimo manifesta-se sob a

expressão de um acordo. A partir de então, Moreira passa a frequentar a

escola sem resistir e, portanto, sem as surras que eram cotidianas.

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Uma vez proposto e cumprido o acordo (apesar do entrevistado afirmar que

não o cumpriu, já que estudou muito além da 4ª série), este se torna

significativo na vida de Moreira. Tanto que, quando narra sobre o momento

em que decide tornar-se Professor Coordenador, destaca o fato de que fez

um acordo consigo mesmo, pois isso costuma funcionar. Diz ele:

E quando eu entrei no magistério foi interessante que eu coloquei na

cabeça: eu vou ser professor, então, eu vou ter que saber as coisas.

A primeira coisa é: eu vou parar de colar. Esse foi um acordo que eu

fiz comigo mesmo e quando eu faço alguns acordos, não sei, parece

que funciona.

Figura 7 – Moreira ao chegar em São Paulo, na 1ª série.

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Sua decisão a respeito da atitude de não mais “colar” ecoa aquilo que a

cultura tem como expectativa a respeito de um professor. É ela quem define

que um professor precisa saber, de fato, para ensinar. É ela quem instituiu

que copiar as respostas dos outros no momento da avaliação formal não é

uma boa conduta. São os sinais da cultura, com a sua bagagem de normas,

regras, valores e costumes que se expressam no relato de Moreira.

Assim, mais uma vez, num momento decisivo de sua vida, num momento em

que é preciso decidir, o acordo (desta vez consigo mesmo) manifesta-se. No

seu relato, não estabelece nenhuma relação entre o acordo da sua infância e

aquele que ocorre durante a sua formação para a docência. Entretanto, por

meio dos pressupostos wallonianos utilizados neste estudo, é possível

clarificar tais manifestações, compreendendo que ambas ocorrem em etapas

diferentes da vida do entrevistado (a primeira na infância e a segunda na

juventude), porém em situações similares no sentido de que é a decisão (vou

frequentar a escola para não apanhar mais) e a escolha (quero ser professor,

portanto, não posso mais colar) que suscitam tais manifestações, revelando,

portanto, a expressão do outro íntimo.

Quais são os motivos que levam a afirmar que o acordo, nas situações

apresentadas, pode ser compreendido como o outro íntimo? É justamente o

fato do mesmo ter sido expresso numa situação definida pela crise, pela,

indecisão, mobilizando o entrevistado a agir de forma não habitual. Ou,

retomando as palavras de Wallon (1973b, p.164):

Ele é o suporte da discussão interior, da objecção às determinações ainda duvidosas. Por vezes emancipa-se e torna-se eco ou tomada de pensamento, premonição, ameaça. Está de tal modo ligado ao exercício da

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reflexão, que os seus fundamentos orgânicos parecem implicar-se mutuamente13.

Outra situação em que o outro íntimo pode ser identificado surge quando

Moreira relata as brigas constantes entre os pais.

Eu acho que todos os casais brigam e os meus (pais) não foram

diferentes, não. (...) Meu pai veio bravo, falou que ia embora. E por

esse fato de ir embora, eu lembro que falei que odiava ele, não

gostava dele, ou seja, sempre vou ficar do lado da minha mãe, né.

Então acho que teve essa cena... é uma cena que marcou.

Moreira não odiava realmente o pai, entretanto, nesses momentos em que é

preciso esolher entre duas pessoas de envolvimento afetivo tão intenso (o pai

e a mãe), vem à tona um discurso que não é exatamente o seu, mas que ao

longo do seu desenvolvimento lhe foi inculcado. Quem é que odeia o pai?

Quem é que reprova as suas atitudes? Seu discurso, na verdade, retratou o

outro presente na cultura com todo o seu conjunto de normas e valores. E

esse choque de valores o mobiliza a tomar uma decisão. É quando diz:

sempre vou ficar do lado da minha mãe, né.

Em outra fase do seu desenvolvimento, já com 18 anos, o pai o chama e diz

vai embora e que, a partir daquele momento, Moreira seria o homem da casa.

Discordando mais uma vez da atitude do pai, o entrevistado é mobilizado a

posicionar-se diante desse conflito instalado e afirma:

                                                            13 Esta citação tem como nota de rodapé as seguintes informações: “Le Rôle de l’Autre dans la Conscience du Moi”, Revista Egípcia de Psicologia, Junho de 1946. 

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Eu falei “é, está na hora do senhor parar, eu acho que chega. O

senhor não tem mais idade pra isso. Essa história de homem da

casa, isso não existe. O senhor é o homem da casa. Quando eu tiver

a minha casa eu serei o homem da casa. Até então eu prefiro ser eu,

filho.

Na infância ou na juventude, as atitudes de Moreira em situações de conflito

dão vazão ao outro íntimo, silente e reprimido nas situações do cotidiano,

como é o caso do posicionamento que adota perante as ameaças que o pai

faz de ir embora. Quando criança, devido ao repertório de interações e,

consequentemente, de experiências que possui, posiciona-se ao lado da mãe,

afirmando que odeia o pai. Mais tarde porém, quando inúmeras interações já

ocorreram, modificando constantemente o seu eu e a sua relação eu-outro, o

seu posicionamento diante do conflito é diferente do anterior, pois chama o

pai à responsabilidade e dá um basta na recorrência daquela situação.

Transpondo essa reflexão para a sua atuação profissional, observa-se que o

mesmo ocorre quando, ao chegar em uma escola onde atuaria como

professor, depara-se com princípios e práticas muito diferentes daquelas que

acreditava e defendia. Esse fato permite-lhe refletir sobre a situação para a

tomada de decisão que a sucede:

Chegando lá, foi uma loucura, um desencontro, tudo contrário àquilo

que eu pregava existia. Uma coordenação largada, uma direção nem

aí com as coisas. (...) E o que eu pensei foi: acho que sou muito

mais útil numa coordenação do que numa sala de aula nesse

momento.

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Há diversas outras formas de posicionar-se frente à uma determinada

situação. Entretanto, o relato de Moreira revela que desde a sua infância

costuma olhar para um conflito, para um momento de crise, com vistas a

resolvê-lo, a impedir a sua permanência, modificando a situação. De fato,

como o outro íntimo que cada um traz em si é também constituído nas

interações do indivíduo com o outro, suas manifestações estão de acordo

com a constituição desse indivíduo.

Todavia, como na teoria walloniana nada pode ser compreendido

isoladamente, as situações de crise e de conflito são também situações em

que a dimensão afetiva predomina. Caso contrário, como entender o fato de

que Moreira, que defende intensamente a troca e circulação de informações,

a divulgação de trabalhos que possam inspirar professores a refletir sobre a

sua prática, modificando-a se necessário for, não tenha permitido que a

escola em que não foi aprovado para atuar como Professor Coordenador

tenha permanecido com a sua proposta? Eis a situação:

Passei por algumas escolas em que não foi aceita a minha proposta.

Algumas delas já estava formalizado quem já seria o Coordenador.

Em alguns casos, alguns colegas chegavam e falavam: “olha,

Moreira, você está apresentando a proposta, mas já fique ciente de

que a diretora já falou pra gente votar em fulano.” “Ah, tudo bem.

Não tem problema não, mas eu apresento a minha proposta.” Aí eu

apresentava a minha proposta. (...) Aí, no final, a direção “é, Moreira,

venho te dar o retorno... Eu dizia “sem problema”. E ela “então, a

gente votou numa pessoa que já era da casa e tal.” E eu: “não tem

problema nenhum. Fica pra próxima. Poderia devolver a minha

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proposta?” “Ah... é que a gente adorou a sua proposta, então se

pudesse ficar aqui... até a Coordenadora comentou assim...” Eu

falei: “Então mas, eu desejo ficar com a minha proposta. Ela não foi

aceita não é? Então...não dá certo.”

A situação descrita revela a predominância da dimensão afetiva, mais

especificamente no que se refere à paixão. Deste modo, infere-se que a

emoção investida na elaboração da proposta de trabalho que permitiria a

Moreira alcançar o seu objetivo (atuar como Professor Coordenador), era

intensa. Uma vez rejeitada a sua proposta, não por falta de competência, mas

por políticas internas, essa emoção é aparentemente deixada de lado, dando

lugar à razão que passa a justificar o desejo da emoção por via racional, ou

seja: Moreira não aprova a encenação que a escola faz na seleção dos

candidatos a Professor Coordenador, quando em vão as pessoas se

apresentam expondo suas expectativas e projetos, como é o seu caso, mas o

candidato já foi selecionado previamente pelo diretor. Entretanto, essa é uma

situação que ocorre com mais frequência do que se possa imaginar e os

professores em geral sentem-se impotentes diante dela. A maioria dos

candidatos, ao descobrir todo enredo, é invadida por sentimentos como

indignação ou revolta e com Moreira não foi diferente.

Entretanto, diante do sentimento de impotência para mudar essa situação, o

único modo de puni-los surge na forma de impedir que, além de realizar um

processo de seleção injusto, a escola coloque em prática uma proposta de

trabalho consistente de fato.

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É nesse momento, então, que as emoções que decorrem da indignação

precisam ser dominadas para que a situação possa ser resolvida pautada

num ato de razão. Moreira demonstra uma aceitação passiva diante da

situação que se instalou. Demonstra tranquilidade e autocontrole diante de

cada argumentação que lhe é apresentada na tentativa de justificar o motivo

pelo qual ele não foi o escolhido. Depois de aguardar calmamente o final do

discurso da diretora, Moreira pede a sua proposta de volta, argumentando

que não há motivo para a escola permanecer com ela pois, se não foi

aprovada, não servirá para aquela realidade.

Esse foi um exemplo do que ocorre quando a paixão se manifesta. Ela

silencia a emoção que, se fosse expressa, impediria que o indivíduo atingisse

o seu objetivo. Entretanto, a razão coloca-se a serviço desta emoção silente.

É por meio dela que os argumentos de Moreira convencem a diretora a

devolver a sua proposta. Há que se observar que o autocontrole exigido para

suportar uma situação que lhe era tão desfavorável quanto desconfortável é

realmente muito grande. Mas todo este investimento para calar a emoção tem

uma recompensa, uma contrapartida que vem por via racional. Neste caso, “o

sabor”, ou seja, “o prazer” de pedir a devolução da sua proposta de trabalho,

que Moreira já supunha estar sendo pretendida pela diretora da escola em

questão.

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‐ 120 ‐ 

4 Uma conclusão

possível...

Sabemos, porém, que nossas primeiras  lembranças variam com a  idade em  que  são  evocadas,  e  que  toda  lembrança  trabalha  em  nós  sob  a influência  de  nossa  evolução  psíquica,  de  nossas  disposições  e  das situações. A menos  que  esteja  solidamente  inserida  num  complexo  de circustâncias  objetivamente  identificáveis,  o  que  raramente  ocorre quando sua origem é infantil, é muito mais provável que uma lembrança seja à imagem do presente e não do passado. 

(WALLON, 2007, p.10) 

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‐ 121 ‐ 

Ao receber um tecido para confeccionar uma peça de roupa a costureira realiza

medições, dobras, cortes, alinhavos, provas, até que se sinta satisfeita com o

resultado. É quando, então, passa para a costura definitiva e detalhes finais, o que

exige dela uma retomada cuidadosa de todo o processo. Esse é o ponto em que se

encontra esta pesquisa. Muito foi feito até aqui e tudo está alinhavado. Agora é

preciso realizar a costura definitiva, o que não quer dizer que nada mais há para ser

feito, significa apenas que é preciso concluir este trabalho. Para tanto, é

imprescindível resgatar alguns aspectos apresentados no seu início, visto que foram

eles os mobilizadores para o desenvolvimento deste estudo.

A pesquisa foi projetada a partir do pressuposto de que o outro desempenha

papel de relevância na atuação de um profissional. Isto posto, sua proposta foi

compreender, tanto quanto possível e à luz da teoria wallonina, o papel que este

outro exerce na atuação de um Professor Coordenador, para que tal compreensão

possa contribuir para uma atuação cada vez melhor deste junto à sua equipe

docente.

Dos dados coletados e das reflexões realizadas durante a análise, entende-

se o quão importante é observar um profissional, neste caso um Professor

Coordenador, considerando-o de modo integral. Nesta perspectiva, muito daquilo

que surge nas relações eu-outro pode ser potencializado ou minimizado, por meio

da formação, principal atribuição do Professor Coordenador.

Neste momento, amplia-se um pouco mais a relação que foi estudada, ou

seja, Professor Coordenador-Professores, para perceber que, na verdade, o

princípio de que os outros devem ser compreendidos de forma integral é válido para

todas as instâncias da escola. Assim, é mister que o Professor Coordenador

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compreenda os professores com os quais atua na sua totalidade mas, estes, por sua

vez, devem ter o mesmo olhar cuidadoso para lidar com o seu aluno que é também

uma pessoal integral. Urge que alguém inicie esse movimento no espaço escolar. É

preciso perceber o quanto as pessoas não estão compartimentalizadas e, a partir de

então, modificar a prática docente de modo a obter resultados satisfatórios no

processo de aprendizagem do aluno, carência do atual sistema brasileiro de ensino.

Qualquer pessoa que tenha tal compreensão na escola poderá iniciar esse

movimento em direção à totalidade da pessoa. Entretanto, devido à estrutura

hierárquica verticalizada que impera na maioria das escolas, muito se espera das

lideranças que nela atuam. É preciso modificar esse modo gestão e já existem

estudos e projetos que buscam investir em propostas de gestão fundamentadas

numa relação horizontal, participativa e dialógica. Contudo, como as mudanças

ocorrem de modo processual, enquanto não se efetivam é preciso que o Professor

Coordenador tome iniciativas que mobilizem a equipe docente a refletir sobre a sua

prática pedagógica.

O relato de Moreira ilustra bem a importância dessa atuação pautada no

rompimento com alguns modelos que já não atendem mais as necessidades da

escola. Ele institui avaliação anual do trabalho do Professor Coordenador, ou seja,

do seu trabalho; organiza as salas de aula por áreas do conhecimento (Língua

Portuguesa, Geografia, História,...); propõe saídas com os professores para

conhecer o entorno da escola, por exemplo; estabelece parceria com a direção; etc.

Sabe-se, no entanto, que o processo de implantação de um novo jeito de Coordenar

não é tarefa fácil. Para isso, Moreira afirma que tinha alguns professores “aliados”.

Esses parceiros, esses outros, desempenham um papel de suma importância pois,

são eles que validam a proposta da Coordenação Pedagógica, apoioando-a no seu

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intento. Além disso, por serem professores como os demais, possibilitam que estes

possam repensar a sua atitude e aderir à proposta de trabalho quando for oportuno,

sem maiores desconfortos.

Mas, ainda assim, quando todos resistiam às suas propostas de atuação

junto aos alunos, sob a alegação de que estas seriam complexas ou dariam muito

trabalho, Moreira tomava a necessária iniciativa e mostrava como fazer. É quando

decide construir, ele mesmo, o estilo de moradia mais presente na comunidade

escolar (o barraco) no pátio da escola. O modelo apresentado, como foi visto

anteriormente, é uma referência importante, a partir da qual o indivíduo pode

compreender o processo, apropriando-se da situação em questão, não como

decalque desse modelo, mas como norteadora do trabalho que será desenvolvido e

sobre o qual poderá intervir e modificar. Nesta perspectiva, bons modelos são

fundamentais no processo de aprendizagem.

Entretanto, não se pode perder de vista a totalidade da pessoa, o que

justifica afirmar que a aprendizagem pressupõe uma relação afetiva. Por esse

motivo, não é o modelo oferecido por qualquer pessoa que será significativo para

quem aprende, mas aquele a partir do qual o indivíduo estabeceu uma relação de

confiança, de afeto. Sobre esse cuidado, Wallon alerta que:

A imitação não é qualquer uma, é muito seletiva na criança. Dirige-se aos seres que têm com ela maior prestígio, aqueles que interessam a seus sentimentos, que exercem uma atração da qual geralmente seu afeto não está ausente. (2007, p.67)

Talvez tenha sido esse o motivo que causou tanta estranheza a Moreira

quando ingressou numa escola em que alunos e professores não se entendiam, não

havia diálogo entre eles. De que modo uma instituição que tem por finalidade a

educação, a aprendizagem dos alunos, pode realizar o seu trabalho se os

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protagonistas desse processo (professores e alunos) não se entendem? Para intervir

numa situação como esta (facilmente encontradas nas escolas), é preciso um olhar

que considere tanto professor quanto aluno na sua totalidade.

Os aspectos que são facilitadores da aprendizagem precisam também ser

conhecidos pelo professor e é o Professor Coordenador quem deve propiciar

condições para que eles sejam discutidos; é ele quem deve buscar mecanismos

para tematizá-los nos momentos da formação que realiza na escola. Mas, como

fazer isso quando o Professor Coordenador desconhece a articulação de todos

esses princípios fundamentais para as interações que ocorrem no âmbito da escola?

Outro fator importante que o delineamento dessa pesquisa evidenciou foi a

compreensão da integração organismo-meio, essencial para uma prática

pedagógica que considere os alunos a partir daquilo que sabem, pois os alunos não

são como um receptáculo a ser preenchido pelo conhecimento do professor. Nesta

perspectiva, conhecer algumas experiências relatadas por Moreira na sua narrativa,

situando-as num tempo e espaço determinados, nas diferentes relações que com ela

se estabeleceram (a barragem, o marceneiro, as brincadeiras,...), permitiu

compreender aspectos da sua narrativa, como o fato de elaborar soluções criativas

para as situações do cotidiano escolar, de estabelecer uma relação dialógica com a

sua equipe de professores, considerar a relevância dos conhecer os espaços físicos,

seja no entorno da escola, seja em outras localidades, a condução de um trabalho

em equipe, dentre outras.

Se o propósito desta pesquisa fosse a elaboração de um programa de

formação de Professores Coordenadores, seria possível considerar algumas

reflexões realizadas ao longo deste trabalho, uma vez que a compreensão dos

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aspectos da narrativa pessoal de um Professor Coordenador podem revelar

características que são comuns à profissão. E, sobre esse assunto, Nóvoa assinala

que:

...o campo da formação de formadores não pode limitar-se apenas às dimensões técnicas e tecnológicas e necessita de uma compreensão mais profunda dos processos através dos quais as pessoas se formam. (In JOSSO, 2004, p.11).

Entretanto, este é um encaminhamento possível a pesquisas posteriores. O

que corresponde, de fato, ao objetivo deste estudo é a importância de compreender

a pessoa de modo integrado: quer seja na integração dos domínios funcionais

(afetividade, conhecimento e ato motor), quer seja na integração organismo-meio.

Aliás, vale ressaltar que ambas não estão separadas, estão também integradas. Tal

como Wallon, Nóvoa também alerta para a importância de compreender a pessoa de

modo integral:

...percebi melhor as dificuldades de mobilizar as dimensões pessoais nos espaços institucionais, de equacionar a profissão à luz da pessoa (e vive-versa), de aceitar que por trás de uma –logia (uma razão) há sempre uma –filia (um sentimento), que o auto e o hetero são dificilmente separáveis, que (repita-se a formulação sartriana) o homem define-se pelo que consegue fazer com o que os outros fizeram dele. (2007, p.25)

Ao refazer toda essa trajetória na qual este estudo foi delineado, observa-se

que muita coisa poderia ter sido diferente. Se fosse realizada novamente, pela

mesma pessoa, não teria a estrutura e as considerações que ora se materializam. A

princípio isso pode parecer assustador, mas há uma explicação: a tarefa de analisar

uma narrativa autobiográfica, destacando fatos significativos (na perspectiva da

pesquisadora), para ampliá-los e interpretá-los a partir de uma lente walloniana,

favoreceu a construção de uma trajetória única que é resultante da interação de

todos os envolvidos na sua realização: a pesquisadoraa, o Professor Coordenador

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entrevistado, a teoria walloniana, a Professora Orientadora, o local em que ocorreu a

entrevista, etc. Porém, tais interações modificaram a todos mutuamente, tornando-

os, hoje, diferente do que eram no seu início. E é por esse motivo que, ao chegar ao

final desta pesquisa, tem-se a sensação de que a sua condução poderia ter sido

diferente. E, de fato, poderia. Entretanto, tal percepção não ocorreria se o estudo

não tivesse sido desenvolvido nas condições em que ocorreu.

Por fim, é preciso salientar que a constituição de uma pessoa é algo de

extrema complexidade e este estudo tratou apenas de alguns de seus aspectos,

sem a pretensão de esgototá-los. Wallon, a partir dos seus estudos e registros

publicados na forma de textos, artigos, livros, deixou uma grande contribuição para a

humanidade entender-se a si própria. Há, contudo, que haver continuidade do seu

trabalho. Outro Wallon não haverá, mas outras considerações e avanços em relação

ao seu trabalho, sim. É, ao mesmo tempo, uma grande ousadia e responsabilidade,

mas ele deixou-nos um modelo a seguir, uma referência que pode servir de guia

para ampliar o trabalho que realizou.

A parte que compete a esta pesquisa esforçou-se para articular informações

da narrativa autobiográfica de um Professor Coordenador com a teoria walloniana.

Compreendeu, essencialmente, a importância de lidar com os outros, considerando-

os de forma integral (organismo-meio e dimensões funcionais). Pode ser que, no afã

de abarcar o todo da pessoa, conforme proposto por Wallon, tenha se estendido

demais em alguns aspectos; por outro lado, alguns fatores podem ter sido tratados

com superficialidade. São os riscos aos quais a pesquisadora está exposta, mas que

não devem servir de impedimento para estudos desta natureza.

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Os equívocos fazem parte do aprendizado, assim como o avançar, o

retroceder, o redirecionar, o modificar, o transformar,... Os riscos foram aqui

assumidos. Que possam ser superados por outros, pois assim se constrói ciência

ou, como afirma Morin:

O desenvolvimento do conhecimento científico é poderoso meio de detecção dos erros e de luta contra as ilusões. Entretanto, os paradigmas que controlam a ciência podem desenvolver ilusões, e nenhuma teoria científica está imune para sempre contra o erro. (MORIN, 1997, p.21)

Que o resultado obtido possa ser útil para aqueles que se dedicam ao

estudo das temáticas afins mas, sobretudo, que possa ser um contributo significativo

para uma prática pedagógica de qualidade. Eis o que foi pretendido.

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Apêndice A - Transcrição da 1ª entrevista

17.04.2009

 

Vamos começar a nossa conversa... Eu vou pedir pra você contar como foi a sua infância de um modo geral: quais foram as situações que te marcaram de modo agradável ou desagradável, quem foram as crianças com as quais você brincou; os adultos que te marcaram de alguma forma, os lugares, as lembranças que você tem, enfim, de um modo geral, como foi a sua infância.

Bem... minha infância até os 10 anos de idade ocorreu lá no Ceará. No sul do estado do Ceará, no meio das caatingas mesmo, no polígono da seca, uma região pobre. Foi lá que eu fiquei até os 10 anos, até vir para São Paulo.

Durante esse período convivi com toda a minha família: pai, mãe, irmãos, tios, ou seja, a família toda estava lá, num vilarejo pequeno. Por volta de 90 a 100 famílias viviam nesse vilarejo; até hoje esse lugar continua com as mesmas características. Vou situar um pouco esse local: eram duas ruas, uma rua principal que era a rua da barragem, como a gente fala, e a outra era a rua da jumenta (a gente não sabe por que... provavelmente morreu uma jumenta). Mas uma das características é que uma era a rua dita das pessoas que tinham mais dinheiro e a tal da rua da jumenta a rua em que moravam os negros. Talvez isso seja interessante dizer porque isso “marca” sem dúvida nenhuma.

Mas as pessoas de uma e outra rua se relacionavam ou havia mesmo uma separação?

Eram separadas. Elas se relacionavam de diferentes formas, no trabalho, a forma que trabalhavam, o fato de ir pra casa fazer uma faxina e ganhar um quilo de arroz, um quilo de farinha, um quilo de açúcar, enfim...

Você era de qual rua?

Eu era da rua principal. Num primeiro momento morava na rua da jumenta e depois vim pra essa outra rua após a construção da casa. Mas, indiferente, como criança a gente acabava brincando com todo mundo, não havia essa discriminação.

Bem, alguma dificuldade... não é dificuldade porque eu acho que foi interessante, é o fato da gente não ter brinquedos. Ninguém tinha brinquedos, nem de uma rua nem da outra. Era muito difícil, pouquíssimas eram as crianças que podiam gozar realmente de algum tipo de brinquedo. Então, nós tínhamos que fazê-los. Esses brinquedos eram feitos a partir de argila, de terra, de madeiras que estavam por lá, restos de pneus, de chinelos, de lata de óleo, enfim, de tudo isso nós construíamos os nossos brinquedos.

E é interessante lembrar agora com essa fala que muitos dos brinquedos nossos eram reproduções das brincadeiras ou das festas que os adultos realizavam... a questão do “bumba-meu-boi”, os caretas, tinha várias brincadeiras (pra nós era brincadeira) e a gente reproduzia isso. A gente confeccionava a nossa roupa, fazíamos o boi, algumas delas... A outra questão mesmo era a da barragem, uma barragem imensa, então a gente não tinha esse problema da seca lá. A gente

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brincava muito lá, nadávamos, ficávamos uma boa parte do tempo lá enquanto as mães lavavam as roupas a gente ficava brincando, fazendo os bonecos, tomando banho, pescando... E a minha infância foi marcada dessa forma.

Quanto aos estudos, eu não tinha o menor prazer de participar lá. Até porque numa vida tão gostosa e prazerosa igual a essa quem queria ficar enfurnado dentro de algum local? Uma das coisas que me marcou bastante foi uma das cenas de estudo: você está em roda e o professor pergunta, por exemplo, a tabuada, 5X8, e você não acerta. Aí vai perguntando, um para o outro, até alguém acertar. Quando esse acertava, ganhava o privilégio de bater com a palmatória na gente, aqueles que erraram. Fora isso existem outros momentos “prazerosos” também como ficar em cima de caroços de milho, de feijão, com a cara batida na parede... E uma dessas professoras era a minha tia (maravilhosa a minha tia). E é isso: uma classe multisseriada, com idades diferentes, variando até vinte e cinco anos, crianças de 3 anos, então eu não tinha o menor prazer em participar da escola. Minha opção era ir pra roça. Meu pai concordava com isso, eu chorava, ele me pegava e a gente ia pra roça. Isso não quer dizer que eu trabalhava, eu ficava comendo as frutas e outras coisas mais. Então eu acho que a minha infância foi marcada dentro dessas relações.

Você disse que a sua tia foi professora e que foi “maravilhosa”. Você foi aluno da sua tia? Como era essa relação?

A relação era de tia mesmo. Onde fosse preciso apanhava dela, em outros locais. Agora na escola era como professora. Eu não sei se era muito imaturo... eu não consigo precisar que idade era essa que eu fui pra escola, não tenho... porque iam crianças, com três anos já estavam lá, então eu não sei em alguns momentos quantos anos eu tinha. Só sei que foi até os dez anos, porque aos dez anos eu vim para São Paulo. Agora, minha tia também era professora, então eu participei de alguns momentos lá e o castigo vinha do mesmo jeito. Era a relação professor e a relação tia lá fora.

Uma outra cena que me marcou foi quando chegaram os livros do MOBRAL. Isso foi muito legal porque foi uma correria pra ver quem queria estudar, e era à noite. Isso foi muito legal. E eu fui pra esse MOBRAL, à noite. Imagina: não estudava nem de manhã, criança... eu fui pro MOBRAL. Não sei se era por causa de ter tido a influência da minha tia... mas eu ganhei o livro e só podia participar da aula quem tinha o livro. E eu tinha esse livro, então eu ia à noite. Na realidade eu não assistia as aulas. Eu lembro até hoje que tinha um rapaz, não sei precisar também quantos anos ele tinha, mas era um rapaz, já formado (hoje eu acho que ele devia ter em torno dos seus dezoito, vinte anos), e ele queria estudar muito. Então ele veio conversar comigo pra eu dar o livro pra ele porque ele precisava estudar e já que eu não estava estudando... E eu dei o livro pra ele. Ele foi estudar e continuei fazendo o que sempre gostava, à noite: brincando com os adultos, com as crianças e tudo o mais.

E ele foi estudar com o seu livro?

Foi estudar com o meu livro. Olha que maravilha!

Você disse que desse período da escola você não gostava porque tinha essa prática da palmatória, dos castigos,...

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...de aprender. É um B com A BA, B com e BE, B com I BI, B com o BO, BA BA BE BE BI BI BO BO BU BU... Tanto é que quando eu vim do Ceará pra cá, nossa! O BODE era presente. Quando falava em estudar eu lembrava do BODE; eu sabia escrever BODE, CABRA, que é o que se chama de palavras simples e a gente conseguia juntar. Ou seja, eu sabia todo o abecedário de trás pra frente, do meio pra esquerda, pra cima e pra baixo, na vertical e na horizontal, juntar todas as sílabas, de todas as formas, mas não conseguia formar palavras... Acho que isso é interessante.

Isso de alguma forma fazia com que você tivesse algum sentimento em relação à escola, em relação aos amigos, em relação à professora... O fato de você ter alguns conhecimentos mas não conseguir formar a palavra, como você disse, ou escrever ou ler... Qual era o seu sentimento diante dessa impossibilidade naquele momento?

Eu não consigo nem pensar nisso. Eu queria estar é brincando, pulando, então eu não tinha interesse nenhum. Eu acho que parte por aí. Se eu juntasse as palavras ou não, isso fazia com que eu odiasse mais ainda a escola, talvez... Mas, na realidade eu não queria nem estar lá. Eu ia porque eu era obrigado, às vezes. Minha mãe me obrigava a ir. Eu queria estar brincando: sozinho, com amigo, sem amigo... eu entrava no meio da mata, ficava a manhã toda, voltava, sentia fome, voltava, comia e voltava novamente pra outro lugar. Essa era a minha vida. Eu não via sentido no meio daquele interior, acho que seja isso, não havia sentido pra mim num mundo de analfabetos que existia lá.

O brincar pra você era bem importante. Você citou também que vocês construíam os brinquedos com argila e com outros materiais que eram encontrados lá...

...e eram bonitos, hein!

Mas era sobre isso que eu ia perguntar: de onde é que surgiam as ideias para a construção desses brinquedos? Havia alguém que ensinasse vocês a fazerem esses brinquedos? Quem eram essas pessoas?

Ah... sim... Aí a gente vai longe agora, hein!...

Então vamos!

Acabou o feriado pra nós!14

Primeiro, tinha a criançada mais velha sabia fazer as coisas. Até hoje eu observo as pessoas fazendo e tudo o que eu tenho a fazer eu faço se eu vir alguém fazendo. Claro que é um trabalho leigo, jamais vai ser como um profissional, mas é interessante fazer. E isso eu trago comigo até hoje. A imitação para a criação, vamos dizer assim. Tinha a molecada que fazia. Eu queria os brinquedos deles, mas eu via que eles não me davam porque eles faziam os brinquedos deles, então, eu tinha que fazer os meus também. Uns saiam uma porcaria, na hora eles vinham me ajudar aqui, ali, tal, tal... chegava o momento em que a gente estava trocando os                                                             14 A entrevista ocorreu numa sexta‐feira (17.04.2009) que antecedia um final de semana prolongado devido ao feriado de 21 de abril. 

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nossos boizinhos, porque é muito comum a questão do gado até hoje, e a gente trocava o gado, fazia uns “hominhos”... essa é uma cena. A outra é que tinha gente que trabalhava mesmo com artesanato. Tinha pessoas, eu acho que mais velhas do que a gente uns 10 ou 20 anos no mínimo, que acabavam brincando também. Porque nessa brincadeira tinha tanto o adulto, o adolescente e a criança no meio. Então, a gente acabava brincando, eu acho que é essa a realidade. Fora as pessoas que também fazia panelas de barro para o seu próprio consumo ou às vezes faziam para vender. Eles faziam as coisas e a gente ia aprendendo, como se fosse uma tribo indígena onde as pessoas fazem aquelas coisas e os outros vão observando... Era isso que eu fazia: observar. Além do barro eles utilizavam umas latas de óleo, essas coisas assim. Então eles cortavam, faziam tudo aquilo e eu criança fazia a mesma coisa: abria a lata de óleo (tanto é que minhas mãos são marcadas pelos cortes de faca, imagina uma criança com faca!).

Você abria a lata com a faca.

Abríamos a lata, a lata cortava e até a gente se tocar que a lata cortava...enfim, tinha que modelar toda essa lata... Eu lembro: com cinco anos de idade eu sabia fazer panelas, panelas de lata e tudo o mais.

E você aprendeu só observando as outras pessoas fazerem?

Observando as outras pessoas fazerem e às vezes a gente errava e perguntava também: “Como que o senhor fazia isso?” “Ah, sim, usava um molde, usava isso e aquilo...” Você prestava atenção e ia pelo ensaio. Aí não funcionava, a gente tinha que voltar, remodelar...

E essas pessoas quem eram: da família, da comunidade, do vilarejo?

Pessoas da comunidade e do vilarejo como um todo. Distante um pouco da casa. Distante pra um moleque... Mas isso está me remetendo mais a uma família que tinha lá: bem distante, uma família muito pobre e que fazia essas coisas. E a gente ficava o dia todo, mas eles não sabiam que eu estava colado no quintal. E tinha um rapaz que fazia as coisas muito bonitas, muito bem feitas. Enquanto a gente estava com aqueles carrinhos horríveis, a coisa mais feia do mundo, em geral, tudo o que ele batia o olho ele fazia. Se ele visse uma carreta passando pelo vilarejo, que era a coisa mais difícil do mundo, ele reproduzia. Pegava tudo aquilo e transformava numa miniatura. E isso me trouxe essa ideia de fazer, imitar algo bonito, bem feito também. Claro que eu não conseguia chegar lá, mas era essa a nossa ideia. A mesma coisa no artesanato: ele fazia coisas maravilhosas! Eu chegava à noite e ia lá roubar os brinquedos dele. E aí, criança é complicado...

Eu lembro de uma cena em que tudo aquilo que a gente não conseguia pegar a gente quebrava. Criança é maldosa, né? Não sei por que. Mas a gente chegava lá quebrava tudo e o restante levava embora. Depois ia brincar novamente tudo junto. “Quem será que fez isso?” E a gente ficava quieto, depois ia brincar novamente. “Me dá esse boizinho?” “Vamos trocar?” “Eu vou fazer uns pra vocês.” E daí por diante...

E o material principal para esses brinquedos era a argila, com a qual vocês faziam esses boizinhos, a carreta,...?

...argila, lata... até porque não tinha muita coisa pra ser utilizada. Então era carretel de linha, os pneus eram feitos com sola de chinelo velho, usávamos gilete pra fazer

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os cortes nas rodas direitinho, usávamos molas nos carrinhos, que eram aquelas fitas que vinham enroladas em caixas antigamente (depois passou para o nylon, mas até então eram aquelas fitas metálicas, de aço, inclusive).

Mas tinha alguma brincadeira predileta?

Várias. Agora vamos pra noite. À noite... à noite era uma coisa maravilhosa...Primeiro que o céu à noite não existia. Não tinha energia... energia só em algumas casas e só quando funcionava o gerador. Então a noite era clara. As estrelas... nossa... maravilhoso... a lua... Eu lembro que a gente ficava correndo pra um lado e pro outro pra ver se a gente passava da lua, mas aonde quer que a gente fosse a lua estava no mesmo local. E era muito legal! Os adultos queriam mostrar pra gente que não adiantava e ninguém entendia nada disso. Nesse momento a gente tinha: os adultos contando histórias pra gente, fazendo roda, cantigas de roda tinha demais,...

E quem eram esses adultos?

Ah... eram da família. Minha própria tia, a professora, as outras, outros jovens que lá se encontravam ou outras crianças mais velhas um pouquinho... Então nós encontrávamos crianças do vilarejo quase inteiro. Ficávamos na calçada que era alta e concretada, uma das poucas que havia lá, e a gente brincava de “passa anel”, cantigas de roda, de bandeira e tantas outras brincadeiras, de músicas, enfim...a noite era assim até dormir. Ou ouvir também os adultos conversarem, porque todos eles vinham pra fora nas calçadas, colocavam suas cadeiras e vinha gente de diferentes locais. E ficavam contando aquelas histórias e eu lá ouvindo, aqueles sonhos...

Uma cena... posso?

Pode, por favor.

Era comum, também, da mesma forma que vinha gente fazer parte dessas rodas, às vezes as pessoas também convidavam e a gente ia pra um jantar... eu acho que era jantar naquela época. Tinha uns que andavam umas léguas pra isso. Eu lembro que a gente ia mas queria voltar com um senhor porque ele contava histórias pra gente. Eu lembro que uma vez, em torno de quinze crianças, meus irmãos, primos, amigos e tudo o mais, e ele contando histórias macabras, de lobisomem... E falava que o lobisomem ficava nas moitas, nas árvores, no escuro... E tinha várias moitas pra gente passar. E era interesse que, conforme ia passando, ele ia contando a história e a gente ia se juntando a esse adulto. Ninguém o dispensava. Quando ele parava de contar, cada um ia por si e ficava bem distante. Aí ele dizia: “Opa, olha a história, ali pode ter um lobisomem!” Aí a gente juntava novamente. Hoje eu fico pensando: acho que era uma estratégia dele pra manter todo aquele “bando” próximo, não brigando e não fazendo qualquer outra coisa e não se perdendo. Então as histórias também serviam pra unir as pessoas.

Ele era uma pessoa do vilarejo também...

Era uma pessoa que resolveu contar histórias e a gente gostava de ir com ele.

Se a gente for voltar na questão da brincadeira predileta eu posso entender que eram aquelas que aconteciam à noite?

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Não. Isso era só o que acontecia à noite. Brincadeira tinha a todo momento seja qual fosse: uma cantiga de roda ou o que ela propusesse e a gente resolvesse fazer, fazia com o mesmo espírito de alegria das outras. E a escola também era encarada dessa forma. Só que chegava lá e a gente não conseguia fazer o que queria.

E essas pessoas, esses amigos com os quais você estava durante o dia brincando ou durante à noite na contação de histórias ou durante os momentos de brincadeira... eles também iam pra escola com você ou na escola eram outros amigos, outras crianças?

Ah, eu acho que sim. Na verdade eu não tenho nem ideia de quem é que estudava comigo. Eu sei que a minha irmã estava nesta sala de aula. Minha irmã é mais velha do que eu dois anos, o meu irmão dois anos também mais novo... acho que quatro... quatro anos mais novo do que eu e os três estudavam no mesmo lugar, pra você ter uma ideia.

Você tem quantos irmãos?

Dois.

Uma irmã e um irmão? Vocês são três?

Isso. Somos três. E os três estudavam na mesma classe. Então minha irmã estudava na quarta série, eu estaria na primeira, porque nunca saí de lá, e o meu irmão na primeira também. Tanto é que, quando chegamos aqui em São Paulo...

Com quantos anos você veio pra São Paulo?

Com dez. Minha irmã entrou na quarta série e eu e o meu irmão na primeira série, ou melhor, no prezinho, porque nessa escola tinha o prezinho. De lá eles faziam uma seleção, tinha o primeiro ano fraco, o forte e o médio. Aí o meu irmão foi pro primeiro ano, se eu não me engano, fraco e eu fui pro mais forte. Olha que chique! Afinal de contas eu sabia todo um BEABÁ, B com A BA, B com e BE, B com I BI, B com o BO, BA BA BE BE BI BI BO BO BU BU...

Mas ficaram todos na primeira série, com exceção da sua irmã que foi pra quarta série? O seu irmão na primeira série fraca, você na forte, mas os dois na primeira série?

Exatamente. Eu acho que ganhei na força.

Seu irmão é mais novo, sua irmã mais velha, você é o filho do meio...

Exato. O cascudo.

Quando vocês vieram pra São Paulo, veio a família toda?

Veio a família: minha mãe veio na frente com o meu irmão, depois meu pai e minha irmã, depois eu voltei, ficamos eu e o meu pai... e depois a gente veio. Aí ficamos.

E como foi aos dez anos conhecer a cidade de São Paulo, deixar toda essa vida lá: essa noite, essas brincadeiras, esses brinquedos que você construía e vim pra uma cidade desconhecida... Você nunca tinha estado aqui antes? Como é que foi isso?

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Ah... maravilhoso! Continuei brincando do mesmo jeito, com novos colegas, novos amigos, vendo outras coisas. Eu lembro de uma cena em que eu nunca tinha visto pipa. Aí eu vi o pessoal soltando pipa e eu fiz o pipa. Olhando eu resolvi fazer o meu pipa e não coloquei rabiola. E não descobria porque o meu pipa não subia. Ele só rodava. Depois de muito eu descobri que precisava da rabiola pra ter uma base, uma sustentação. Mas era interessante, em alguns momentos das minhas brincadeiras, que o pessoal até me colocou um apelido, num primeiro momento, de Professor Pardal (eram muito comuns as leituras do Walt Disney aqui). Tudo eu resolvia fazer! Eu lembro que na nossa rua a gente queria fazer um avião. Um avião que pudesse carregar alguém. Então a molecada colocava aquela capa e queria voar, ser o Superman, na época do lançamento do Superman. Eu falei “não, a gente precisa fazer um planador pra gente voar!”. Aí a gente começou todo um projeto e tal... mas não foi pra frente. Faltou material. Não tinha o dinheiro. Ninguém tinha dinheiro no meio de “Osasco”, naquela periferia brava lá, pior ainda do que o Ceará. Mas a gente inventava, a gente continuou criando as nossas brincadeiras, inventando, brincando... E eu continuei odiando a escola, apanhando pra ir pra escola, ficou mais feroz ainda.

Era diferente a escola que você frequentou no Ceará da escola que você frequentou aqui em São Paulo?

Mais ainda... Porque aqui em São Paulo eu acho que eu vivenciei mesmo. Eu tive que ficar. Lá não. Lá eu entrava de vez em quando, saía, ficava uma semana (eu acho) ou meses sem ir, voltava no outro dia, ficava um pouco e saía. Então, havia uma “frouxidão”, vamos dizer assim. A surra “comia solto”, mas havia uma “frouxidão”. Agora, aqui em São Paulo não: você tinha que ir, “fechavam os muros”, fechava a escola e você não tinha como sair. Você ia e você tinha que ficar o dia todo lá. Interessante que quando eu estava na escola eu gostava. Mas sair e retornar... não! Não fazia parte da minha vida, não. Então, eu acho que o fato de sentir saudade de algumas brincadeiras acontecia. E aqui em São Paulo também tinha a questão dos muros. Então na casa havia muitos medos, colocavam muitos medos na gente... a gente não podia sair, alguém podia pegar a gente e não sei mais o que...Então uma criança com dez anos vindo de um mundo pequeno e ouvindo isso num mundo monstruoso desse. Até sair na rua, começar a achar algumas amizades, brincar, não foi fácil, não. Mas, mesmo assim, todo dia pra ir pra escola, seis horas da manhã, eu estava agarrado no pé da mesa e apanhando. Apanhava até a minha mãe cansar, suava,tomava fôlego e voltava a bater novamente. Era surra feia. Não era pequena, não. Até eu sentir dó dela, aí eu ia pra escola.

Por quanto tempo esse comportamento se repetiu: você resistiu ir à escola e sua mãe teve que te mandar à força.

Eu acho que foram meses nessa brincadeira. Eu lembro somente do momento de rompimento. Foi quando ela falou: “como é que você não quer estudar se todo mundo estudou?” Eu perguntei “estudou até quando?” Ela falou “fiz a quarta série”. “E meu pai?” “Também fez a quarta série.” Eu falei “é isso que vocês fizeram? Então se eu fizer até a quarta série eu fico livre disso?” Ela falou “sim.” Eu falei “então tudo bem. Eu vou estudar até a quarta série. No final da quarta série, igual a vocês, eu paro de estudar.” A partir de então eu fiz as vontades dela porque eu fiz um acordo.

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Mas eu descumpri esse acordo. Depois da quarta série eu vi que precisava fazer a quinta e fui embora15. Eles ficaram desapontados (risos).

Que bom que esse acordo foi descumprido... Você destacou na sua fala que quando veio pra São Paulo foi chamado de Professor Pardal na sua rua. Como você se sentia com o fato das pessoas vê-lo como uma pessoa que cria coisas, como um inventor?

Normal. Eu os achava uns idiotas por não fazer as coisas. De uma certa forma, indiferente a tudo isso eu fazia as coisas. A gente inventava e ia embora. E não me preocupava se sabia mais ou sabia menos. Algumas pessoas aprendiam, faziam algumas coisas e eu aprendia outras com eles. E ia havendo essa interação. E ia embora!

Você gostava?

Gosto de fazer as coisas até hoje. Eu vivo inventado.

Os materiais eram diferentes ou você os conseguia a partir dos mesmos. Porque lá no Ceará você tinha a argila, você tinha a espiga de milho,... porque era uma área mais rural. Como foi aqui em Osasco?

Ah... as coisas mudam. Não eram as mesmas características. A argila já era mais difícil. Eu conhecia a argila e a molecada não conhecia. Então, às vezes eu ia buscar nas grotas (no caso, aqui, chamados córregos). A gente ia nos córregos e conseguia argila pra fazer algumas coisas. Aqui tinha outros tipos de madeira. Mas aqui se resumia muito na questão do estilingue, das brincadeiras mais violentas... Não que lá no Ceará não fosse. Lá eram violentas também... A gente pulava de árvore, de barranco, andávamos no meio de espinhos, era feio o negócio. Mas aqui era um outro tipo de violência. O fato de brincar com estilingue não quer dizer que lá a gente não tivesse também, mas aqui a gente brincava com mamona, por exemplo, com pedra, atirando no outro, então é uma violência mais forte. Lá, por exemplo, no Ceará, os mais velhos colocavam a gente pra brigar um com o outro. Isso era normal. Eles ficavam lá, naquela roda, e quando vinham os moleques eles falavam “olha, o outro está mexendo com você” e provocavam até a gente brigar. Aí eles nos separavam, a gente tomava fôlego e eles colocavam a gente pra brigar de novo. Às vezes estava o meu tio lá, às vezes estava o meu primo, brigava com o nosso próprio primo,... Tinha essa brincadeira, mas era uma coisa vigiada. Tinha sempre um adulto, alguém mais velho com a gente. Aqui não tinha isso, não. Eu lembro de algumas coisas, hoje, perigosas. Eu tinha tudo pra ter entrado na malandragem, vamos dizer assim. Você começa a conviver na inocência com outras pessoas, o cigarro começa a fazer parte da vida, as drogas, enfim, é difícil... A gente conseguia romper com isso, acabava não indo pra essa “área”. Mas eram umas brincadeiras um pouquinho pesadas.

Resgatando agora as tuas lembranças desse período da infância, se você tivesse que destacar uma pessoa que você acha que foi marcante nesse período (pode ser mais de uma também, estou me referindo a uma pra gente começar a pensar nisso)... se tivesse que destacar alguém da sua infância

                                                            15 O entrevistado atualmente é doutorando e realiza pesquisa na área de Currículo. 

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como um todo, alguém que acha que foi marcante na sua infância, quem você poderia destacar?

Eu acho que essa pessoa que fazia... copiava as coisas com perfeição, fazia as coisas muito bem feitas. Eu acho que esse foi um grande exemplo. Ele construía tudo.

Era aquele rapaz... Era um jovem, não é isso? Lá do Ceará...

Era um jovem, devia ter no máximo uns vinte e cinco anos, no máximo (acho que nem isso devia ter). Quando criança você vê as pessoas muito grandes, então acha que são muito velhas. Então acho que devia ser um jovem, no máximo com dezoito anos. Eu brincava demais com o irmão dele, então ele acabava ficando meio distante, ele sempre estava trabalhando porque tinha que ajudar os pais. Ah... uma cena da minha infância que eu jamais posso esquecer! Posso?

Por favor!

Eu entrando na carpintaria. Carpintaria? Será que esse o termo? Não. Tem o serralheiro, o carpinteiro e tem o outro...

Marceneiro?

Marceneiro! Era um senhor quer morava próximo de casa e isso me chamava a atenção: a beleza dos móveis e das coisas que ele fazia. Era interessante porque eu via a possibilidade... eu lembro de uma vez que eu me aproximei dele e falei “nossa você faz isso!” E aí foi um monte de perguntas só pra chegar numa sinuca... “Você sabe fazer uma sinuca?” Ele falou “sei fazer”. Aí eu falei “e você sabe fazer uma sinuca menor? Pra criança?” Ele falou “ah, eu acho que eu sei sim, se tiver material acho que eu acabo fazendo.” E eu fiquei nessa... não lembro se eu pedi pra ele fazer. Eu sei que eu queria que ele fizesse e todo dia eu visitava ele. Aí comecei a ver como que ele fazia e, de vez em quando, ele deixava eu fazer alguma coisa. Até hoje me assusta lembrar: ele vivia no mato, cortava uma árvore imensa, trazia aquela tora de madeira bruta, passava dias e dias serrando aquela tora de madeira e fazendo várias tábuas “na mão”, serrando, serrando... Um trabalho lento, devagar... Sem falar que ele riscava tudo direitinho. Aquilo eu achava o máximo! Como que ele conseguia riscar tudo aquilo igual, certinho... ele usava os esquadros e eu ia observando tudo aquilo. Então eu começava as fazer as coisas. Depois ele plainava tudo aquilo, deixava lisinho, riscava novamente, passava ali tudo o que tinha que fazer, cortava perfeitamente, encaixava aquelas coisas, depois a lixa, enfim, todos os processos que ele ia fazendo eu via. Vira e mexe eu estava lá também usando a plaina, usando isso e aquilo de uma outra forma.

Você gostava de acompanhá-lo.

Gostava. “Posso pegar esse pedaço de madeira?” “Pode.” Eu ia lá e tal, tal. Eu lembro de um desses momentos em que eu cheguei lá e ele me mostrou uma sinuca pequena que ele fez pra mim. Fez até o taco também pra jogar com bolinha de gude. Nossa, aquilo foi o máximo! Eu não lembro se eu voltei, acho que eu sumi de lá (risos).

Você disse que ia lá, o visitava sempre, e em momento nenhum ele te deixou perceber que estava preparando isso pra você?

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Não. Pensando hoje, não sei se o meu pai não estava envolvido também... se o meu pai encomendou com ele... não sei. Não vem ao caso, também. Ficou o que apareceu naquele momento: toda revestida... nossa, uma coisa fantástica! Eu via as coisas sendo transformadas em algo novo, em algo diferente, com uso. Hoje a gente pode dizer sobre o uso real, social das coisas. Então o que marcou... acho que foi tudo, Lilian. Não foi só o colega. Porque o colega... ora você está com um e brinca; na outra brincadeira o outro é melhor então não queria brincar com esse, queria brincar com outro... adorava brincar com as meninas. Havia vários modelos. Para cada criança, havia um tipo de brincadeira que se relacionava e quando precisava de outros a gente estava junto. E dependia muito também de onde a mãe da gente deixava a gente brincar. Se fosse pro lado esquerdo, vamos dizer assim, era o lado mais central. Se fosse pro lado direito tinha um outro sentido. Quando não deixava nem pra um nem pro outro eu ficava sozinho no meio da mata, da cachoeira, ia pra barragem, correndo atrás de cobra, a cobra correndo atrás de mim, oura hora matando passarinho, essas eram as brincadeiras que a gente tinha, pegando calango e fazendo briga um com o outro... de tudo tinha um pouco. E com as próprias meninas também. Com as meninas a gente acabava brincando do mesmo jeito: brincando. Porque éramos criança, acabávamos brincando, participando das brincadeiras delas, diversas...

Quando a gente fala de brincadeira você se remete lá pro Ceará, no lugar onde você nasceu e passou a maior parte da sua infância (você disse que veio pra São Paulo com dez anos, portanto, ainda era criança). Você destaca duas pessoas como marcantes nesse período: o rapaz que criava os brinquedos com “perfeição” e o marceneiro pela transformação da madeira em objetos. É por causa da produção artesanal deles, por causa da criação?

A arte. Claro que, naquele momento, eu não pensava assim, mas era a arte como um todo. Tudo me atraía naquilo que era novo e diferente. O fato, por exemplo, do meu pai ser pescador, também me marcava muito. O fato dele ser motorista também e ter comprado no passado um carro, um caminhão, eram poucas pessoas que tinham. Então eu via também isso, ficava mexendo no carro, reproduzia... enfim...

E quando o seu pai ia pescar? Você o acompanhava?

Várias vezes, sim. Eu lembro que até ajudei uma vez. Acordei quatro horas da manhã pra gente ir lá; vi sair fumaça da água...Eu lembro que nesse momento a traíra mordeu o dedo dele. Nossa! Quase decepou o dedo. E ele me xingou porque era pra remar pra direita e eu fui pra esquerda. Mas, enfim... a gente continuou... e foi legal aquele momento. Ele me deixou remar a canoa, puxar a tarrafa,...

Já que a gente chegou aqui na profissão do seu pai e na sua relação com ele, como era o Moreira situado dentro da família? Você disse que tem dois irmãos, o pai e a mãe, e tinha ainda os tios, os primos, os avós,...

Era uma assembleia geral (risos).

Como era a dinâmica da família?

E eu que sei? (risos) Deixa eu pensar aqui, agora... Ah...família grande, a mulherada conversava o tempo todo e a gente ficava mais com a mulherada, até porque éramos crianças então ficávamos mais com as mulheres, fazendo comida, aquele

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negócio todo, um entra e sai, conversa daqui, conversa de lá, lava daqui, lava dali,... a gente só andando de um lado e do outro... Agora, com os meus irmãos a gente brincava e ninguém tinha nem conhecimento de que a gente fazia isso: a gente subia no telhado da casa. Ela queria dar uma surra na gente, nos três. Eu era moleque, então imagina os meus irmãos. A gente subia em cima dos oitões da casa, ela ia pra um cômodo e a gente corria pro outro lado de trás. Isso por cima das guias, das paredes lá de cima, a gente ficava um tempão lá, até acharem a gente e darem uma surra. Porque a gente tinha que descer, né? Dava fome. Mas a gente se escondia, brincava demais pelos cômodos, na rede... Brincadeira normal, acho... dentro de uma família. Mas meu irmão era pequeno, então, quer dizer, não havia tanto relacionamento assim; minha irmã, por ser menina, então já havia distanciamento. Quanto à minha mãe, vigiava o tempo todo; meu pai trabalhando e ela vigiava a gente vinte e quatro horas por dia. Dava a impressão de que a gente estava só, mas o “olho” estava sempre lá acompanhando. Hoje a gente percebe isso. Tanto é que vira e mexe eu ouvia “Ô, Moreira, onde é que você está? Vem pra cá.” Então é como se ela soubesse onde a gente estava, não sei. E parece que havia também um acordo, ou seja, eu ia até onde eu ouvia a voz dela porque, se chamasse, eu estaria próximo. E é isso... minha avó costurava, minha mãe costurava, então era aquela reunião de tias e pessoas, muita gente sempre... sempre cheio de gente. Em casa, primos sempre vinham... final de semana, então, era um inferno, cheio de gente. Primos que vinham, a gente brincava. Tinha festa no final de semana e a gente se arrumava pra ir pra festa. Ai, que chique...

Desta dinâmica familiar da tua infância, você conseguiria falar de algum momento que te marcou?

Ah... eu acho que as brigas, né Lilian? Eu acho que todos os casais brigam e os meus (pais) não foram diferentes, não. Eu me lembro de uma vez em que eu falei pro meu pai que eu o odiava. Porque na realidade, parece que ele estava tendo um caso com outra pessoa, enfim, e eu vivenciei isso, essa cena. Vi minha mãe preparar o terreno pra que essa mulher viesse... Porque ela comprava galinha que a minha mãe criava também. E eu lembro que acordei com aquela gritaria toda. Minha avó gritando “bate, bate mesmo!” Na realidade a minha mãe a convidou pra ver umas galinhas, fechou o portão do quintal, pegou uma cinta e desceu a lenha na mulher. E a mulher gritava, e ela batia... Minha avó, minhas tias, todo mundo gritava: “é isso mesmo”. Meu avô: “bate mesmo.” Eu lembro da figura do meu avô: “isso, numa sem vergonha pode bater mesmo”. E eu olhando de lá a minha mãe batendo... a mulher escapa e vai embora. Aí eu descobri... Meu pai veio bravo, falou que ia embora. E por esse fato de ir embora, eu lembro que eu falei que odiava ele, não gostava dele, ou seja, sempre vou ficar do lado da minha mãe, né. Então acho que teve essa cena... é uma cena que marcou. Não só essa, várias outras.

Depois de muito tempo eu lembro que, com dezoito anos, meu pai uma vez me chamou e falou que eu era o homem da casa a partir daquele momento e que ele ia embora. Eu falei “é, está na hora do senhor parar, eu acho que chega. O senhor não tem mais idade pra isso. Essa história de homem da casa, isso não existe. O senhor é o homem da casa. Quando eu tiver a minha casa eu serei o homem da casa. Até então eu prefiro ser eu, filho. Então acho que é bom o senhor parar com essas brincadeiras que já chega, né? Não tem mais idade pra isso... ficar dormindo na perua. Dormindo na outra casa. Eu acho que está na hora de repensar isso”. Mas foi interessante. A partir de então acho que não houve mais tantos conflitos. Até hoje

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eles vivem. E no mesmo instante em que estão contentes, brigam de novo. E por aí vai... As cenas familiares que me marcaram foram essas. Os namorados da minha tia...

O que aconteceu?

Era namoradeira demais, nossa! Era sempre uma animação. Quando vinha o namorado estava sempre alegre, contente, sempre tinha festa e tudo mais. Nós, a molecada, adorávamos essas coisas. Porque tinha distribuição de balas, presentinhos daqui e dali. Quando eles começavam a namorar a gente dizia “é a nossa professora!” E foi isso... da família... normal. O que me interessava era brincar. Tanto que eu não guardo essas visões (lembranças); eu não tenho outras visões da família, a não ser o fato de acolher. Todos acolhiam de uma forma tremenda. E eu acho que até hoje a gente reproduz isso. Meu também era o mesmo formato, tudo é de todos, nada é só de fulano. Eu também tento reproduzir isso de uma certa forma, tudo é de todos, a família junto...

Quer falar mais alguma coisa que você acha que esqueceu ou que eu não perguntei?

Acho que não... acho que do fato de gostar... eu gostava muito da natureza no sentido de pássaros. Matava muito, prendia muito. Tinha hora que o meu viveiro tinha mais de cinquenta pássaros. Eu saía à noite com uma lanterna que eu ganhei e capturava os passarinhos à noite. É uma loucura...

Por que você fazia isso?

Ah... era bom demais.

Mas, como você fazia isso?

Era porque os outros faziam isso.

Mas de que modo? Você fazia armadilha?

Não. Eu aprendi: metia a lanterna na cara do passarinho, o bicho ficava sem enxergar nada. A gente ia lá e pegava o bichinho.

Com a mão?

É. Ele ficava parado. Não enxergava nada. Tinha hora que alguns voavam, saiam batendo nas árvores, morriam, iam embora... Mas durante alguns segundos eles ficavam meio cegos. Aí a gente ia lá e pegava. E durante o dia a gente armava arapuca. Fui o primeiro a fazer minhas arapucas. “Armei minha arapuca na beira da estrada (cantando).” (risos)

Você gosta de pássaros hoje?

Ah... adoro pássaros soltos. Adoro animais soltos. Tanto é que na minha chácara, vira e mexe aparecem alguns e é maravilhoso. Hoje eu não tenho coragem de fazer isso, não. Mas quando você é moleque não tem noção. Você vê os outros fazendo e você reproduz... De São Paulo, acho que eu não falei tanto porque foi um momento de transição, não me vejo mais como moleque. Eu me vejo uma parte muito

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pequena como moleque... com treze anos eu já estava trabalhando também. Treze. Treze pra catorze anos eu já estava trabalhando.

Do quê?

Trabalhei num mercado. Comecei a trabalhar num mercado. E aí eu lembro que fiquei dos catorze – de treze pra catorze anos – até os meus dezenove anos trabalhando no mercado. Então eu trabalhava de segunda a segunda, domingo até meio-dia e eu adorava estudar porque eu saía mais cedo também do serviço. Eu acho que havia um pretexto também aí. Eu queria sair dali, não queria trabalhar ali. Então eu via nos estudos a possibilidade mesmo de cair fora e sair cedo. No dia que eu não ia pra escola eu ficava até oito, oito e meia, nove horas trabalhando. Então quando eu saía... saía seis horas, me arrumava, via meus colegas, meus amigos, conversávamos, enfim, não tinha aula mas a gente ficava brincando, tomando vinho... aquela adolescência doida, paquerando...

Teve alguma coisa que você gostou muito de ter aprendido na escola? Ou que você gostaria de ter aprendido naquela época e se frustrou porque não aprendeu?

Escola pra mim, Lilian... aí é que tá... é um ambiente de brincadeira. Eu ia pra brincar, conversar com os meus amigos. A gente levava bola, jogava bola e se perguntava a gente fazia as coisas. O professor pedia e a gente fazia. Claro que tinhas as coisas boas, o fato de acertar, mas no geral eu era daquele que fazia as coisas rapidamente pra ficar bagunçando. E sobrava tempo pra fazer outras coisas. Eu sempre fui desse tipo. Por ser mais velho, eu acho que a sexualidade já estava muito na pele, claro que as meninas eram mais velhas ainda do que eu, boa parte, então imagina a loucura, né. Então era brincadeira o tempo todo: brincar, paquerar, incomodar... A professora ficava doida. Cada hora era uma paixão. Agora, aprender... eu me lembro de uma vez, mas eu não tive muita participação nisso, acho que cheguei na escola e parei de inventar as coisas... Era pra fazer, por exemplo, uma experiência, aquelas experiências de medir o tempo, a velocidade, tal, tal. Eu não via sentido naquilo. Era muito simples aquele negócio. E eu não tinha tempo de fazer u não queria fazer, alguma coisa acontecia. Aí meus colegas fizeram, ficou tão bonito o trabalho. Gostei daquilo que foi feito. E eu aprendi a fazer, porque eu não tinha nem ideia de como pegar aquilo do papel e fazer... não tinha estímulo nenhum pra fazer. Mas depois de pronto ficava legal.

O que era pra ser feito?

Eu lembro que era uma biruta, por exemplo.

E por que você disse que chegou na escola e parou de inventar?

E eu que vou saber? Vou fazer uma terapia pra descobrir isso (risos). Acho que foi o fato de ficar adulto. Ficando adulto você vai largando as brincadeiras de crianças porque tem outras coisas pela frente. A mulherada queria namorar comigo, era um inferno. É sério. Não sei se é porque eu era mais velho da turma. Então tinha dia que eu faltava na escola porque sabia que aquela menina não ia me perturbar, me encher a paciência. Olha que maluquice... Eu lembro dos bailes. O pessoal perguntava “você vem?” “Venho.” “O que você vai trazer?” “Eu vou trazer tudo.” O pessoal dizia “não vai trazer nada. Ele nem vai aparecer.” Dito e feito. Eu não ia.

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Chegava lá o pessoal ia querer dançar comigo e eu não sabia dançar... e nem queria... era um inferno. Não sei, acho que a gente acabou perdendo mesmo... faz parte do ser humano. Acho que vai se enturmando de uma outra forma e vai perdendo algumas coisas, que são da brincadeira. Até mesmo no exemplo do Ceará, os jovens mais velhos brincavam também. Então você vai perdendo essa inocência, o senso, enfim... a televisão também, coisa que não existia começa a fazer parte, começa a assistir desenho, filme... Gene Kelly dançando, eu não aguentava mais aquilo, toda sessão da tarde aquelas histórias de Cinderela, sapateado, O Gordo e o Magro, Os Três Patetas... sei lá, acho que isso serviu pra emburrecer mesmo. E aí era o tempo da escola: dormia tarde, acordava cedo. Não. Dormia tarde, acordava tarde, praticamente na hora de ir pra escola, voltava da escola... era a rotina. Assistia televisão...

E aí com a televisão acabava ficando mais tempo em casa...

...vira e mexe a gente inventava alguma brincadeira na rua. Mas eu era mais solto, nem todos os meninos podiam ir pra rua brincar. Sobravam algumas rodas de algumas pessoas mais velhas. Era interessante, eu gostava de ficar próximo dos jovens ou dos adultos, não gostava de ficar muito com a molecada. Eu achava a molecada muito idiota.

Isso era aqui em São Paulo, já?

Aqui em São Paulo. Aquelas brincadeiras... eu já tinha passado por isso. E os jovens não. Falavam de outras coisas, de ir na discoteca, de dançar, de ter visto aquela moça bonita, dos filmes que assistiam...

Mas eram os jovens da escola?

Não, não.

Porque você disse que com eles você não queria o baile...

Não, a molecada servia pra estar lá na escola e a gente brincava durante o dia. Mas à noite, não. À noite eu queria estar com os jovens porque sempre na segunda, terça eles tinham os feitos: eles tinham ido no baile, eles tinham ido “não sei aonde”, tinham namorado não sei com a outra... eles tinham as namoradas pra ficar conversando. Era um pessoal interessante naquele momento. E a molecada estava lá na mesma. Qualquer hora que eu fosse lá estaria do mesmo jeito. Então eu sempre gostei de ficar junto com os adultos. Tanto é que eles brincavam também de falar “ô, rapaz! Você parece já um adulto. Você gosta de ficar demais com a gente, qualquer dia a gente vai levar você pro baile. Quantos anos você tem?” “Treze, cartorze.” “Ih, é novo demais! Não entra em lugar nenhum.”

Me corrija se eu estiver errada: é como se com o pessoal da escola você não tivesse muito o que aprender e com os mais velhos fossem te lançado alguns desafios pra você enfrentar, então, por isso, você se sentia mais atraído. É isso mesmo?

É eu acho que é isso, sim. Até porque lá no Ceará era bem assim: os adultos eram o exemplo das coisas. Até hoje, nas questões sociais gerais com os adultos é tudo muito bem tratado. É tratado com sabedoria, no geral. Indeferente se tem estudo ou se não tem estudo, ele é o sábio, ele é aquela pessoa e ponto final. Não há

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questionamento. Não por ser autoritário, mas é algo adquirido mesmo, cultural, vamos dizer assim, toda criança sabe que tem que respeitar o mais idoso e ponto final. Não há discussão, ninguém vive melhor, ninguém vive pior por causa disso. Agora, na molecada mais velha a gente “descia o couro” também. Vai ter que respeitar a gente!

Você sabia respeitar?

É... então aqui em São Paulo eu era muito atraído por isso. Essas coisas novas. Nossa, uma discoteca! Como seria uma discoteca? Então imaginava, via na novela, mas não condizia com o que os meu amigos falavam. E logo mais a gente começou a se enturmar. Aí era com colega de escola ou não era, indiferente, todos jovens. A gente corria atrás de baile, andava a noite toda até o final do mundo pra achar um baile. Quando chegava lá a gente se divertia, bebia, comia, paquerava, namorava, brigava, voltava. Meus pais me deixaram muito solto... pensando agora. Coitados, também não podiam parar, não. Mas a gente passava a noite toda fora. Aí, nesses caminhos a gente começou a se afastar mais da família. É do jovem mesmo, não tem como, não. Se afastava um pouquinho mais. O pessoal que gostava de festas também, de bailes... hora ficava lá, hora não... (silêncio)

Muito bom! Quer falar mais alguma coisa sobre a infância?

(...)

Encerramos quando você quiser.

Encerramos.

Olha foi muito bom lembrar dessas coisas. Eu ainda quero fazer um trabalho literário mesmo... de pensar o que foi um jovem ou vários jovens que morreram ao longo do tempo na década de setenta, no meio da Baronesa, lá em Osasco, na periferia, onde foi considerada a região mais violenta da cidade de São Paulo, se não foi do Estado de São Paulo. E eu vivenciei esse momento. Era bandido pra tudo quanto é lado. Quando a gente ia jogar... tinha uma turma que jogava, outra turma que se drogava, outra turma que fumava... então tinha categorias diferentes de drogas. Com bandidões a gente convivia, e a gente moleque, né... Convivia com esses bandidos, com mortes. Você via lá aquele tal de Mão Branca que mataram... e a gente frequentava as ruas mais perigosas que tinha, como moleque. E era normal. Normal porque a gente era daquele espaço, a gente não diferenciava de nada. Qualquer pessoa que chegasse lá próximo era reconhecido automaticamente.

Eu lembro que quando eu estava no quartel eu fui separado, por exemplo, de uma briga, por pessoas que eu nunca imaginei. Uma briga que o meu irmão arrumou (só pra contextualizar) na escola, eu já tinha saído, já tinha concluído a minha oitava série e meu irmão estava estudando. Aí os moleques vieram, eu paquerando lá na quadra (as meninas adoravam um soldado naquela época, então a gente ficava na quadra namorando com as meninas), e disseram “seu irmão está brigando”. Eu fui separar a briga lá e o moleque não parava... hoje eu lembrando que ele reclamava que eu tinha dado uma cotovelada nele e eu nunca lembrei dessa cotovelada e hoje eu consigo lembrar dessa cotovelada. Realmente, pra tirar ele eu dei uma cotovelada no sentido de empurrar. Aí... ele era irmão de bandido e não sei mais o que... e eu vendo essa briga e na briga tinha um outro soldado lá... eu sei que veio

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mais de quinze pessoas querendo pegar. E a gente foi pro meio dessa briga. Na realidade eu não sei nem o que aconteceu. Sei que o pessoal deixou quieto, não aconteceu a briga. Mas num outro momento eu voltei, fui chamar um colega meu na escola, isso já no Ensino Médio, e eu só vi a rasteira por trás, então ele me derrubou e eu lembro que caiu mais de... eu não tenho nem ideia de quantos caíram em cima de mim dando pancada. E eu, como estava no quartel, os músculos todos enrijecidos, fiquei numa posição em que protegi a cabeça e tudo o mais e foi pontapé... na realidade eu nem senti aqueles pontapés. Acho que a raiva estava tão grande também. Até a hora em que eu levantei. Quando eu levantei o cara foi lá e separou. Um dos maiores bandidos lá da Baronesa. Ele falou “ó fio, conheço você. Vai embora que ninguém vai mexer com você. Eu falei, não acredito que eu fui salvo, vamos dizer assim, por um bandido. Aí lá na frente eu encontrei um outro e falei “quem são esses caras?” Nem sabia se ele tinha batido em mim ou não. Ele falou “ó, deixa quieto, esses caras não são gente boa... você não me conhece, você não conhece eles. Não volta mais aqui, não. Rapaz você teve sorte hoje. Mas não volta mais aqui, não.” Olha que maluquice...

E você acha que isso aconteceu por causa dessa separação da briga do seu irmão e porque “cutucou” o irmão de um bandido?

Foi. Foi por isso com certeza. Mas, na realidade eu estou só exemplificando isso que é um momento de sobrevivência. E como eu consegui sair disso? Pensando hoje, querendo ou não, no meio acadêmico, ensinando, como eu vejo isso? Ao mesmo tempo eu estou distante disso também... eu estou muito longe da periferia hoje em dia. Apesar de dar aula na periferia eu estou muito distante dessa periferia. Eu lembro de uma vez, em 2005, chegando com o meu carro, um aluno que nem meu era, falou “você tem cara de rico”. Rico? “Você tem cara de gente importante.” Traduzindo: com aquilo eu me senti tão distante... e pensar que as minhas origens de pobre (isso não quer dizer que eu tenha saído disso, né), de uma periferia brava, de conviver com bandidos e tudo o mais, todo um movimento histórico, por outro lado você está tão distante disso... E fora isso, tem todo um processo político que envolveu esse período de setenta, oitenta, noventa... Então eu acho que num trabalho contextualizando a minha pessoa, de repente... Amigos que viveram nesse momento. “Cadê o fulano?” “Morreu.” “Cadê sicrano?” “Ih, entrou nas drogas.” “E fulano?” “Ih, rapaz, continua a assaltar.” “E fulano?” “Morreu.” “E...” “Morreu também.” “E fulano, está estudando, casou?” “Não. Morreu.” Então, se for fazer um estudo dos meus amigos de infância aqui em São Paulo, eu acho que mais de cinquenta por cento morreu. Morreram pela violência em geral...

Quando você diz assim: “ me sinto muito longe da periferia.” Parece que tem um certo pesar na sua fala...

Tem. Porque é algo que eu não gostaria de ter acontecido... enfim.... as raízes. Mas, não tem como. Você está distante mesmo, né. Não tem como. Você entra numa questão cultural diferente. Não tem como voltar uma situação daquela e eu acho que também nem eu desejo isso. Mas eu acho que o fato de ser professor, o fato de você voltar, de conquistar, de salvar, vamos dizer, o sentimento de salvar vidas, salvar outros, então, pensando hoje, quantos amigos meus de repente, com uma interferência que pudesse ter acontecido, talvez estivessem vivos? Pode ser algo nesse sentido. Mas pensando também naquele momento, o que que eu tinha pra oferecer? Nada. Naquele momento eu não seria a diferença. Talvez sim com a

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cabeça de hoje, o que seria impossível. Pensando no hoje... hoje talvez eu pudesse interferir. Acho que sim. Mas ao mesmo tempo os jovens de hoje me veem muito distante, não faço parte da vida deles. Eu sou o professor. Sou a pessoa que estou muito distante, vamos dizer assim.

É isso!

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Apêndice B – Transcrição da 2ª entrevista

15.10.2009

Começamos quando você quiser.

Então vamos lá! Como ser professor?... Num primeiro momento acho que foi por causa da família. Minha mãe, por ter a quarta série, ela foi professora; minha tia também, por ter conseguido fazer a quarta série ela foi professora. Então da família já vieram alguns exemplos. Mas deixa eu pensar mais claramente... Bem, sem dúvida nenhuma eu adorava os professores que falavam muito bem, explicavam,... Nossa! Eu ficava apaixonado pelos meus professores... e praticamente todos! Não tinha nenhum que eu chegasse e falasse “professor eu não gosto por isso ou por aquilo...” Não. Só por dificuldade, mas no geral eu os admirava, ficava assistindo eles falando. Às vezes eu acho que eu ficava mais olhando a atenção de como eles controlavam, articulavam a sala de aula e aquela parte toda do que a própria matéria em si. Eu achava legal aquelas tomadas, o chamar... foi algo que me chamou a atenção. Bem... terminada a oitava série, influenciado por um grande amigo, o Carlinhos (que faleceu faz alguns meses), ele me convenceu para ir pro BG, que é atrás do EXTRA, da escola Federal. E aí foi muito legal: eu não sabia de nada, não sabia nem o que era escola.

Mas você foi pra estudar.

Pra estudar. Fui fazer o vestibulinho. E foi uma “gangue” e a partir disso a gente convenceu bem uns quinze ou até mais. Íamos aquela tropa pra fazer a inscrição e foi legal. No dia da prova não batia nada com o que a gente fez, tal e tal. E batia daqui e dali. Ficávamos eu, meus colegas e um outro. “É... não bateu nada o nosso, né?” Na realidade só uns três passaram. O restante não passou.

Mas você estava entre os três ou não?

Estava entre os três! Passamos. Eu lembro que um passou no nonagésimo nono lugar, eu no centésimo, o outro no centésimo e... alguma coisa assim. Foi muito gostoso, até hoje eu lembro disso (risos). A gente estava preparado. Mas aí eu comecei a fazer eletrotécnica. Eu não sabia nem o que era eletrotécnica na minha vida. Então eu fiz o primeiro ano, um terror, uma matemática fortíssima, o seno, o cosseno, a tangente, aquilo me deixou louco, doido. Um inglês puxado, etc. e etc.... Enfim... chegou no segundo ano eu já estava casado. Eu lembro que eu fechei a matrícula, voltei depois do quartel pra fazer o primeiro ano e na metade do primeiro ano eu acabei casando, juntando os trapos como se diz aí. No segundo ano que eu comecei a fazer... aí eu desisti. Eu tranquei a matrícula porque não aguentava: trabalhava das seis horas da manhã às seis da tarde, enfim... no final de semana... E, também, eu não estava vendo significado, aí eu desisti simplesmente. Aí começamos a discutir o que fazer, não só eu, mas a minha esposa também. Começamos a pensar, porque ela estava querendo retomar os estudos. Mas uma coisa era certa, influenciado até pelas políticas do momento, do tecnicismo e tudo o mais, a gente tinha que fazer alguma coisa, já que ia fazer o ensino médio, que o ensino médio fosse um curso técnico pra sair com alguma profissão, com alguma

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coisa. Então a gente ficou pensando “o que fazemos?”. Com tanta coisa... O meu irmão também ficou junto, pensando, fazendo... havia colegas também, todos na mesma situação... Foi um monte de gente pensando. Aí alguém falou: “Olha, na Vila Jaguara, no GEPAM (Grupo Escolar Professor A.M.), no A.M., tem o magistério.” E eu pensei: “Não é que é interessante o magistério...” Aí começamos a pensar, a vislumbrar, por exemplo, na educação, de repente montar uma escolinha... porque eu acho que muita gente se formou mediante isso. De repente pensar uma escola, pensar a atividade, os jovens,... eu acho que eu estava influenciado também pelo fato de ter uma menina, ter uma filha naquele momento, ser um jovem, enfim, eu sei que foi uma “gangue” pra fazer o magistério. Fui eu, minha esposa, o meu irmão até tentou, mas ele viu que não era a dele e saiu fora. Outro colega também tentou e falou: “Não, eu não vou não. Não é minha área.” Legal. Mas eu e a minha esposa fomos pra frente. Ela desistiu no meio do caminho, mas eu continuei, depois ela concluiu o magistério. A gente fazendo o magistério... eu ADOREI. Era algo que eu aprendia com o pessoal, havia um interesse. Até então eu colava, eu era um ótimo colador. Colava de todas as formas e tudo o mais, né... E quando eu entrei no magistério foi interessante que eu coloquei na cabeça: eu vou ser professor, então, eu vou ter que saber as coisas. A primeira coisa é: eu vou parar de colar. Esse foi um acordo que eu fiz comigo mesmo e quando eu faço alguns acordos, não sei, parece que funciona. E a partir de então, fomos lá. Notas baixas, mas vamos em frente e tudo o mais. Eu lembro que teve uma cena em que eu estava escrevendo não sei o que na mão que era pra não esquecer. Mas não era uma cola. Era algo que era necessário, o link, aí chegou o professor: “colando, hein”. Nossa, eu me senti tão mal naquele momento que eu cheguei e falei: “professor eu não estou colando”. “Mas você está passando na mão.” “Professor, eu não estou colando. Vou dizer claro pra você, na realidade...” Ele falou “Sim, mas se você está colocando isso aí, concorda comigo que é algo pra colar?” Eu falei “eu até concordo, mas no caso aqui são três palavras que eu acho que sejam fundamentais pra eu amarrar e que não estão claras ainda....” Enfim, ficou ruim essa cena, eu me senti mal. E a partir de então eu nunca mais colei mesmo. Não teve interesse, me dediquei totalmente, de corpo e alma ao magistério. Isso eu fiz e queria mais. Encontrei também uma grande amiga lá que era legal. Ela me fez ver outras coisas, principalmente me enxergar como homem naquele período. Machista que era e que sou ainda... mas ela mostrava outras coisas. Eu brinco, falo isso pra ela... ela foi uma outra professora pra mim naquele momento. Pessoa de bom senso, daquela que enfrentou polícia. Lá no BG... era ela de lá, só tinha seis mulheres e ela era uma delas. Ela desistiu também porque não tinha nada a ver. Eu lembro que uma vez a gente ficou preso no salão em cima e a polícia embaixo (a polícia de choque) querendo bater na gente. Porque a gente queria mudanças na direção e a líder era ela. E foi legal no magistério quando a gente começou a se apresentar: “Eu sou do B.”. Ela olhou... “você é do B.? Eu acho que eu lembro de você!” E tal... aí ficou aquele negócio... a partir de então: juntos. Até porque a gente veio de uma outra escola e aí fomos até o final do com isso. É professora, hoje ela é doutora...é exigente. Só pra ter uma ideia... eu preciso falar dela só pra você ter uma ideia do que foi essa influência. Uma mulher que lia livros, ela devorava livros, de qualquer tipo. A gente estava no magistério, no segundo ano, ela lia livros universitários, ferozes... da ditadura, política. No terceiro ano ela desistiu e entrou na escola de sociologia e política, aqui de São Paulo. Três meses depois eu a vi e ela falou: “Não, eu vou voltar pro magistério, concluir o magistério e a universidade eu fechei porque é muito fraca pra mim”. Ela falou que discutiu com o pessoal porque o ensino era uma porcaria e não

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chegava nem aos pés do segundo grau. Aí saiu. Concluiu e depois a gente se encontrou num outro momento, eu falei que eu tinha concluído e estava dando aula. Ela falou: “Ah, que legal! Eu entrei na USP.” Ela era desse tipo. Então fez sociologia na USP. Depois de muito tempo fui procurar por ela, a encontrei e falei: “Então, estou tentando entrar no mestrado.” Ela falou: “Que legal, Moreira! Eu terminei meu mestrado, na UNICAMP.” Mais pra frente encontrei com ela e falei: “Olha, consegui, entrei no mestrado, estou concluindo...” Ela falou: “Que legal, Moreira, estou indo pra Itália pra fazer um intercâmbio pra eu terminar meu doutorado.” Enfim... a última vez que eu a encontrei soube que ela era professora da USP.

Como é que ela chama?

Maria Goreti16. Deu aula em diferentes faculdades, é uma pessoa batalhadora, casou várias vezes, não deu certo... a última vez teve um Moreira. Deu a luz a um Moreirinha. Mas, enfim, ela foi uma pessoa que me influenciou bastante e a partir daí eu comecei a ouvir muito. Deixei de ir pro ataque, eu acho que eu comecei a ouvir mais.

E foi ela que te chamou a atenção pra isto...

Pra muita coisa... ela chegava e falava “como você é idiota! Presta atenção, Moreira!” Então, era mais ou menos nesse sentido a chamada de ordem dela. Eu dizia: “Como idiota, minha querida?” “Moreira, presta atenção, olha. O que a gente está discutindo é isso, por isso, isso e aquilo.” Então, tanto a matéria, como também na vida, uma reportagem, esse negócio... é nesse sentido que eu falo que ela foi uma grande professora. E por falar nisso, na minha vida eu sempre tive isso. No CEFAM foi a Isis17. Nossa! Foi uma figuraça também.

O magistério que você fez foi no CEFAM?

Foi na escola em que o CEFAM foi criado.

Na época em que você fez não tinha o CEFAM?

Não, era só o magistério. Mas eu participei das discussões e aprovação desse curso, como aluno. Porque eles quiseram nos ouvir. Mas, enfim, foi aí o primeiro passo. E, ao longo do tempo, foi minha grande discussão (eu discuto isso no mestrado, desde os projetos iniciais), a minha briga foi: “porque o magistério tinha metodologias diferentes pra se trabalhar e as áreas de humanas não eram trabalhadas de jeito nenhum?” As únicas metodologias... tinha uma professora com oito aulas de prática de ensino, de didática, ela só trabalhava a língua portuguesa e a matemática. Isso sempre me irritou demais porque a formação eu acredito que não seja só isso. Então nosso grupo era muito mal visto por isso. Porque nas discussões nossas, a gente achava que tinha que ter a sociologia, a psicologia,... e todas essas discussões... e o curso de magistério era muito fraco. Fraco por quê? Porque faltava a parte política dos professores, comprometimento político... desenvolver os alunos na discussão mais política e o magistério ficava só na questão do “amor”...”Ah... o amor para com a criança.” Eu lembro de um discurso em que eu falei: “O problema

                                                            16 Aqui é utilizado um nome fictício para preservar a identidade da professora citada pelo entrevistado. 17 Aqui é utilizado um nome fictício para preservar a identidade da pessoa citada pelo entrevistado.  

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nosso do mundo é que a gente tem muito amor. Tem que acabar com isso, tem que entrar ódio pra ver se muda alguma coisa.” Ficavam só “Ai, a criancinha... e não sei mais o quê.” Então eram bem assim as discussões nossas, eram ferozes. O nosso grupo era: eu, a Maria Goreti (extremamente política) e uma moça que era “sapatão”. Imagina eu, o avesso: casado, com filho e tal... imagina a loucura que era naquele magistério. As mulheres olhavam e cada vez que elas apresentavam a gente sempre discutia isso: “a gente quer saber isso...a gente gostaria disso...

Discutia com os professores...

Com os professores e com os alunos na hora das apresentações. Às vezes as alunas falavam: “gente, por favor, eu preciso de nota não questionem!” “ Tudo bem.” (risos) Era um barato... mas não era nesse sentido, naquela discussão nossa a gente queria que o pessoal aprendesse mais um pouquinho sobre isso. Aí a gente criou palestras, momentos de discussão na escola, tínhamos o apoio de alguns professores, da direção, então íamos em frente. Era legal! Esse foi um ponto. E por achar que o curso era fraco, lembro que como todos (eu também não fui diferente) eu não me sentia capaz de alfabetizar, não tinha condições de alfabetizar, enfim, me faltava algo. Então a faculdade veio exatamente pra isso. Eu queria buscar uma faculdade que fosse exatamente na área que faltava. Eu não via a alfabetização nesse momento, eu via a parte política.

Mas você terminou o magistério?

Terminei o magistério com muito sufoco e tudo o mais. E aí minha intenção era fazer filosofia... filosofia ou psicologia. Eram duas coisas que eu pretendia fazer. A Maria Goreti entrou em solciologia, isso me abriu um outro campo, quando ela me falou o que era. Mas aí eu estava mais pendendo pra filosofia ou psicologia, era minha influência. Uma colega minha tinha entrado na Faculdade T.M., no terceiro ano, ela fazia o magistério, quarto ano e, ao mesmo tempo, fazia a faculdade. Nossa... aí eu fui conversar com ela...uma colega meiga, nossa... muito ativa no geral e ela me explicou: “é Moreira é assim.” Eu falei “mas eu não tenho condição de entrar numa faculdade.” Ela falou “tem sim, Moreira, onde já se viu...” Até então, eu entrei na Arapuã e, na época a Arapuã pagava os cursos de acordo com a nota que você tinha eles pagavam. Então, se sua nota fosse 80% eles pagavam 80% da faculdade. Aí eu descobri que acima de sete eles pagavam 100% da faculdade pra incentivar. Enfim, aí eu juntei tudo e descobri que no Tereza Martin tinha: no primeiro ano você prestava pra História, Geografia ou pra Ciências Sociais – Sociologia. Eu pensei: esta aí. A Maria Goreti falou: “Moreira, tenta o primeiro ano e qualquer coisa você pede transferência pra USP e vem estudar comigo ou alguma coisa assim.” Aí o que aconteceu? Juntando tudo isso eu prestei, pra Ciências Sociais, minha opção foi Ciências Sociais, Sociologia. Aí descobri que quando entrava você fazia os três ao mesmo tempo, não era claro se era isso ou aquilo. Só no final do segundo ano você fazia essa opção. Eu fui fazendo... foi tudo o que eu queria... as discussões políticas...

Você entrou em Ciências Sociais...

Em Ciências Sociais e foi indo... No segundo ano tinha que fazer essa opção. Aí Sociologia não era mais a opção. Tentei transferir pra USP não consegui, eles não aceitavam, o currículo todo batia, mas eles só aceitavam da PUC, das UNESPs, enfim... Não tive nem como competir lá com aquele processo seletivo. Então eu

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abandonei essa parte aí. Mas, minha opção não era mais Sociologia por causa do mercado. Então eu falei, vou fazer História. Eu já estava decido desde o primeiro ano, praticamente, final do primeiro ano que ia fazer História porque é algo maravilhoso, né? Foi quando um colega me abriu o olho: “Olha, História é lindo e maravilhoso mas, e aí, você quer ser professor?” Eu falei “a ideia é essa! A ideia é ser professor, voltar e trabalhar no curso de magistério formando professores.” Eu já estava traçando ali essa questão. O meu colega me falou: “na realidade é o seguinte, Moreira, Sociologia não tem campo aí fora. É muito difícil conseguir nessa área, aula de Sociologia praticamente não existe no Estado. É difícil, é raro. História também não. Geografia tem um campo imenso. Falta professor de Geografia em tudo quanto é lugar. Isso é um fato.” Aí eu comecei a ver... será que eu vou gostar de Geografia? Então comecei a olhar os professores de Geografia e tal... e me identifiquei demais com Geografia, a partir desse olhar, com o professor Lauro Fonseca18 que era o Coordenador do Curso. Ele pregava toda a Geografia crítica, do movimento crítico no geral que estava passando na década de 70, década de 80, e a Geografia não ficou foram também. Uma Geografia crítica que abandonasse de certa forma as questões e as discussões, vamos dizer aí, da memorização e cartografar os aspectos naturais e tudo mais, do determinismo e etc, etc. Aí foi uma visão mais ampla que tivesse o homem como sujeito transformador dessa natureza, dos espaços, como alguém que faz política. Era essa a Geografia e eu adorei o curso de Geografia... ao longo... maravilhoso. Só o quarto ano que foi muito cansativo. No primeiro ano de faculdade eu comecei a dar aula já. Dei aula de OSPB – Organização Social e Política do Brasil.

No Estado?

No Estado. Peguei aula também de Educação Moral e Cívica e algumas aulas de História. Geografia não tinha, eu queria, mas não tinha. Aí eu peguei porque eles estavam pegando qualquer um a laço pra dar aula, não tinha professor na rede. Isso em 89, durante uns seis meses, logo depois da grande greve. Em 90 eu não dei aula. Isso me deixou meio neurótico porque aí me tirou aquele negócio que eu tinha de dar aula... e ainda pagava bem, comparado com o que eu tinha como salário.

Você ainda estava trabalhando na Arapuã?

Estava trabalhando na Arapuã por seis horas como digitador mas foi algo que nunca me acrescentou e a sala de aula me atraía demais. E em 89 eu mandei uma proposta para o CEFAM. Foi muito legal, a Coordenadora falou: “Moreira, o seu currículo é maravilhoso, a sua proposta de trabalho é... nossa! Utópica também, mas... a gente esta precisando de professor que seja formado. Porque o curso começava em 89... do CEFAM. Aí tudo bem. Na realidade eles não conseguiram também professores e acabaram contratando um professor de Geografia que também era aluno. Só que eu já estava, acho que no terceiro ou quarto ano, com muito mais experiência que eles. Eles não achavam mas eu tinha a experiência do magistério, eles não. Então isso me deixou assim num estado meio neurótico, bravo... eu pensei assim “como é que eles pegam...”, enfim, quis discutir isso. Teriam que estar analisando propostas. Mas, enfim... Em 91 eu decidi que ia dar aula. Aí larguei a Arapuã e investi tudo pra ser professor mesmo, saí de lá. Tinha proposta pra trabalhar o dia todo lá, acho que ia ganhar o dobro, no mínimo. Ia                                                             18 Nome fictício. 

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ganhar muito bem, ia fazer um trabalho super tranquilo mas, não. Não aceitei, não era o que eu queria e fui dar aula. Fui trabalhar mesmo na periferia de Osasco e... isso aconteceu. Está longa essa história?

Não! Não...

Eu estou encurtando. Então...

Pode falar, claro!

Então eu fui dar aula na escola na qual eu fui aluno, eu fui fundador lá como aluno. Na quarta série primária eu fui pra lá. A escola foi fundada e nós fomos transferidos de uma escola pra lá. No quarto ano eu fui pra lá. E eu voltei pra essa escola... muito legal... com raízes fortes lá...enfim... me realizei. Dei aula lá em 91, 92, 93 e 94. Até 94, acho que em 95 eu resolvi mandar... e foi interessante porque eu comecei numa reunião de final de ano, com os professores perguntando: “e aí, Moreira, como vai ser a sua vida...” e coisa e tal. Todo mundo falava um pouquinho das perspectivas para o próximo ano. Aí eu falei: “gente, eu estou com intenção de trabalhar lá no curso de formação de professores, já há muito tempo... eu vou tentar mais uma vez entrar lá no GEPAM, que é a escola que eu estou querendo. Quero trabalhar lá com formação de professores de 1ª a 4ª série. Isso foi muito legal, né? A partir de então... eu fui o único que falei lá. Aí eu peguei e montei minha proposta de novo, fui lá no CEFAM e falei: “gente, e aqui no magistério, está precisando de professor?” Aí a Marcia19, que era ex-diretora minha também, da época de aluno, falou: “Olha, Moreira, nós estamos sem professor. Se você tiver interesse, faz uma propostinha simples, passa pelo processo normal, mas aí eu te atribuo duas, três salas do magistério. Mas, mesmo assim é pouco. Agora o CEFAM está sem professor. O professor está largando as aulas. Se você tiver interesse, vai passar por uma entrevista, tal, tal, tal.” Eu falei “sem problema!” Aí marcamos a entrevista. Foi uma sabatina, uma coisa que eu nunca tinha passado. Entrei na sala da coordenação e tinha acho que dez professores e eu pra apresentar a minha proposta. Pedagogos, psicólogos, entre eles eu não lembro se o Rogério estava junto nesta sala nesse dia, eu acho que não. Tinha uma outra professora...

Como se fosse uma banca pra te entrevistar e analisar a sua proposta.

Uma banca. E começaram a analisar o que eu coloquei, mas não a minha proposta. Eles faziam perguntas que de um certo modo não tinha... eu não estava entendendo. Mas ao longo eu fui compreendendo. Uma delas é: “Moreira, você se relaciona bem com os alunos?” “Sim, eu sempre me dei bem com os alunos, sem dúvida nenhuma. O trabalho que eu faço e tal, tal.” “E com as meninas?” Eu falei: “Como assim ‘eu me relaciono com as meninas’?” “É... com as mulheres, as alunas mulheres.” “Sim, são alunas iguais aos homens, a gente trata aluno como aluno.” “Não... sabe o que é, Moreira... são mulheres e, praticamene, a maioria é adolescente...” E me explicou tal, tal. Aí eu comecei a entender o que estava por trás do que estava sendo colocado. E eu era jovem também e acho que até um pouquinho bonitinho ainda, naquele momento (risos). Eu falei: “Então, deixa eu esclarecer algumas coisas. Eu sou professor, tento ser professor... minha opção é trabalhar com formação de professor...” Eu falei tudo isso que eu já disse. “Sou

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casado, tenho filhos, sou muito bem casado, não tenho intenção de largar minha esposa tão cedo. Isso pode acontecer amanhã ou depois, me desculpe, mas é esse o momento em que eu estou. Então, pela fase da adolescência eu já passei.” Eles disseram: “não, não, Moreira, isso a gente precisa saber.” Eu sei que foi uma sabatina de coisa... trabalho em grupo, trabalho com isso e aquilo e um monte de coisa que eu não entendia nada, porque o CEFAM era diferenciado. Enfim, não lembro se a Isis estava, eu acho que não estava também nesta entrevista. E era um pessoal novo, tinha a Arileia... tinha o que... 26, 28 anos no , máximo... estava nessa faixa. E tinha gente mais novo que eu e era professor do CEFAM, cobrando algumas coisas minhas e eu já tinha cinco anos e meio de magistério, de professor e que boa parte ali eu sabia, eles tinham falado que não fizeram o magistério. Eu achava meio esquisito aquele pessoal novo me cobrando alguma coisa, uma situação constrangedora. Eu me sentia daquele jeito. Mas, enfim... no final eu falei: “e aí gente? Passei? Não passei?” Eles falaram: “então, Moreira, a gente vai ligar pra você.” Eu falei: “sabe o que é... eu tenho até tal dia pra fazer a minha inscrição lá na Diretoria de Ensino ou a inscrição na escola, pra garantir na escola a atribuição para o próximo ano. Caso eu seja aceito aqui, o que acontece... eu já descarto lá. Então, eu não estou apressando vocês mas é uma relação profissional que eu preciso resolver.” Eles disseram: “Mas a sua intenção não é aqui?” Eu falei: “minha intenção é aqui, continua sendo aqui, mas eu quero ter certeza.” E eles: “ah... pode ficar sossegado, nós estamos tranquilos e resolvidos: primeiro porque você é o único professor de Geografia que está aqui (precisamos avaliar também os pesares, né), eu acho que você deve ter sentido também como foi a reunião”. Aí me aceitaram e fui pro CEFAM. Aí era tudo o que eu queria. Trabalhei no magistério, mas o meu olhar foi pro CEFAM. A Isis tem uma fala muito interessante. Ela fala que o CEFAM foi uma segunda faculdade pra ela e eu também me coloco nessa fala dela, roubo essa frase... lá eu aprendi mais, aprendi a trabalhar em grupo, aprendi a trabalhar com o outro, a aceitar algumas coisas, principalmente a rever as minhas práticas... aquelas práticas que eu achava bonitas, considerava maravilhosas não serviam pra nada dentro de um processo de construção do conhecimento. Então o primeiro ano no CEFAM foi um ano conturbado, complicado e eu também estava no movimento dos Sem-Terra, então eu tinha que faltar de vez em quando. Então a questão do compromisso que a gente cobrava dos alunos mas nós professores também tínhamos que ter esse compromisso... feroz! No final do ano tinha as avaliações que a gente passava... eu fui colocado numa mesa redonda lá... feio o negócio, ou seja, uma inquisição em que eu fui lá e eu lembro que a Isis me detonou lá... foi feio... O Rogério foi se posicionar e eu não gostei da fala do Rogério de jeito nenhum também. Porque me dava a impressão de que o que eu tinha conversado com o Rogério me serviu como arma pra ser usada naquele momento.

E era um momento de avaliação mesmo...

É. Então... antes de começar a reunião a gente conversou tal, tal. Mas, na realidade, é perceber nesse movimento que estava num contexto maior... é indiferente. A minha prática, a minha fala ela foi posta lá e coube como carapuça, não só pra mim mas para um monte de professores. Mas eu fiquei muito nervoso porque um monte de outras coisas não foram consideradas. E ficaram eles falando, falando, falando, principalmente os pedagogos, o pessoal que já era mais velho lá. Eu cheguei e falei: “Bem, eu já ouvi. Agora gostaria de estar falando também, gostaria de estar me posicionando porque eu estou numa inquisição e estão sendo considerados só alguns aspectos negativos e eu queria de saber sobre as coisas

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boas que a gente realizou também. Gente, mudou um monte de coisas. A gente ousou mexer nas aulas da tarde pra o enriquecimento curricular, a gente criou um monte de atividades e muitos de vocês cruzaram os braços e não entraram nos projetos que a gente fazia. E foi muito legal vocês ficarem de fora enquanto a gente ficava com seiscentos alunos quase, tomando conta naquela quadra... nós tomamos conta de toda essa turma e boa parte de vocês ficaram de braços cruzados só esperando o barco cair. E nós controlamos tudo aquilo porque o grupo gostava. É muito legal vocês ficaram aí. E a gente sabe também que vocês ficavam conversando com os alunos, ouvindo algumas coisas aí e não prestavam em nós. Ficavam ouvindo mais os alunos. Não que isso sejam ruim, mas é um desrespeito a nós.” Aí eu lembro que não sei quem falou: “Moreira, então cita nomes, se você acha isso.” Eu falei: “então está bem. A Erilene, a Isis, fulando... ficam de braços cruzados esperando o barco pegar fogo. E não basta isso. Eles chegam e ficam conversando com os alunos, criando coisas sem conversar com a gente sobre esse negócio.” E a Isis falou: “Moreira, você me citou aí e eu gostaria de estar falando. Gostei do jeito que você falou e se posicionou. Eu acho isso legal. Algumas coisas, lógico, eu não concordo com você. Essa história de ficar ouvindo tal, tal.” Teve aquele cinismo... Eu falei: “pois é, Isis, você é sincera... cobra por trás disso.” Então foi isso. Legal essa conversa. Até ela diz isso: “Olha, Moreira, o que mudou a minha visão sobre você foi exatamente a sua sinceridade naquele momento por você ter falado isso.” Aí eu falei: “então... eu aceito todas essas críticas sobre o que aconteceu, mas tem umas partes boas nas quais eu gostaria de investir. Se eu continuar aqui eu vou rever tudo isso que foi dito, feito... até porque no primeiro ano ninguém ensina e ninguém aprende nada.” E aí... (eu vou chegar na Coordenação). A partir de então, no CEFAM, o segundo ano meu no CEFAM foi de encontros, desencontros, foi de mudanças, lutando com um grupo de professores... nesse momento a Isis também participou com a gente e a gente nos projetos deles, inventando estudo do meio, então as pessoas começaram a me ver também como alguém que colocava propostas. E a gente tinha um trio muito legal, vamos dizer assim, a Arlete que tinha as ideias, a Isis com a parte teórica, teorização e eu era aquilo... se eu topasse e eles topassem a gente sabia que o barco ia. Então os três se encontravam nesses momentos, nessas loucuras, nas s. “Professora Erilene, dá pra fazer?” A gente pesava e... “Vamos, vamos embora! Quem topa?” “Então vamos!” As coisas aconteciam. Outros professores cruzaram e tal... professores maravilhosos, donos de uma competência tremenda. Mas, também, no final desse primeiro ano conturbado, houve um contato com o pessoal da FEUSP com alguns professores no sentido de que os professores viessem os auxiliar... até porque era uma escola de formação professores que precisávamos estar junto a uma universidade e a universidade ajudando lá. O que a universidade vai fazer, tal, tal, tal? E aí foi legal porque eu fui convidado pra participar desse grupo. Se eu não me engano foi até a Isis que me convidou: “olha, Moreira, vai ter um encontro assim, assim... a USP vai vir tal, tal. E a gente está convidando alguns professores, você não quer participar?” Eu estranhei aquilo, né... mas vamos lá, vamos ver que bicho dá. A partir de então o barco rolou. Começamos a fazer trabalhos práticos, iniciação científica, qualificação do ensino público, formação de professores, enfim, todo um processo lá com a USP durante quatro anos...cinco! Foi um ano pra arrumar o projeto e quatro anos como bolsista. E aí, nossa... isso foi usado pra muitas coisas: mudava-se as práticas, voltava e analisávamos essa prática, voltava à sala de aula, escrevia sobre, relatório pra FAPESP, relatório pra USP, líamos, buscávamos literatura, foi todo um processo, uma escola de aprendizagem mesmo; os alunos

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estavam no meio... a mesma coisa que os professores da USP tentavam fazer com a gente de sermos investigativos, pesquisadores... a gente também fazia isso com os alunos, ao mesmo tempo... então tinha todo um movimento e foi muito legal. Mas só que em 2000... em 98 teve o concurso, em 99 eu entrei, consegui passar no concurso do Estado, ingressei e já foi complicado me afastar pro CEFAM porque eu só queria me afastar pelo mesmo número de aulas ou um número maior de aulas. Isso aconteceu em 99, 2000... No ano 2000. Aí já ficou mais complicado porque eu me afastei só por 20 aulas, então não pude completar a minha jornada de trabalho. Meu salário foi lá embaixo... uma situação complicada. Aí eu me vi... a Isis nesse ano de 2009 não aguentou, perdemos aí uma colega, a Andreia, anteriormente, ela teve problema e saiu do Estado e aí a Isis na metade do ano 2000 foi pra uma escola do ensino médio porque lá ela tinha a jornada completa e precisava sobreviver também. E foi dar aula no ensino médio. E eu não fui nesse momento. Continuei lá no CEFAM, aí chegou o final do ano e eu saí. No último ano no CEFAM, fiquei de 95 até o ano 2000, e fui dar aula também. Chegando lá, foi uma loucura, um desencontro, tudo contrário àquilo que eu pregava existia. Uma coordenação largada, uma direção nem aí com as coisas.

Isso onde?

Lá na escola do ensino médio na qual... AMR. Não se mudou também. Mas, ou seja, uma direção ausente... não se pode dizer isso, né...mas esse não é um fato daquela escola, são todas. A gente vinha de um momento muito crítico, por ter passado por processos diversos, contínuo o processo, de repente a gente entrou num retrocesso tão grande. Com professores a gente não tinha como conversar, com aluno também não. A gente vinha com um problema e ele era maior e além da nossa sala de aula os alunos estouravam na minha aula ou da Isis. Chutavam a porta “Pá!”. Diziam palavrões. Eu chegava e dizia: “Pô, meu! O que é isso? Quebrando a porta?” “Ô professor, não é com o senhor não. Fica tranquilo aí na sua. E com aquela... daquela professora. Eu vou arrancar os cabelos dela.” Então era feio o negócio. Era um ambiente que não ouvia o aluno, não respeitava, como diziam eles, chegava lá a lousa já estava cheia e eles tinham que copiar, terminar e no outro dia novamente... todos os dias era só copiar. Então eles estouravam nas nossas aulas que eram aulas em que a gente conversava, dialogava, tal, tal, tal. Nisso surgiu a , no período de prestar a provinha pra Coordenador, eu prestei. Passei, fui habilitado e resolvi mandar algumas propostas pra algumas escolas. Passei por algumas escolas que não foi aceita a proposta. Algumas delas já estava formalizado quem já seria o Coordenador. Em alguns casos, alguns colegas chegavam e falavam: “olha, Moreira, você está apresentando a proposta, mas já fique ciente de que a diretora já falou pra gente votar em fulano.” “Ah, tudo bem. Não tem problema não, mas eu apresento a minha proposta.” Aí eu apresentava a minha proposta. Olha a ideia é essa, assim e assado, tal, tal, venho lá do CEFAM do curso de formação, acho que posso contribuir muito com vocês, já fiz isso e isso, tal, tal, tal. Você via que os professores se interessavam e outros que me conheciam baixavam a cabeça, como se dissessem “eu não quero nem ouvir porque...” Aí, no final, a direção “é, Moreira, venho te dar o retorno... Eu dizia “sem problema”. E ela “então, a gente votou numa pessoa que já era da casa e tal.” E eu: “não tem problema nenhum. Fica pra próxima. Poderia devolver a minha proposta?” “Ah é que a gente adorou a sua proposta, então se pudesse ficar aqui... até a Coordenadora comentou assim...” Eu falei: “Então mas, eu desejo ficar com a minha proposta. Ela não foi aceita né, então...não dá certo.” Isso foi lá no J.A. que aconteceu.

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E te devolveram a proposta?

Devolveram. Minha proposta não ia ficar ali não. Proposta bonitinha, organizada, dentro dos ideais do que a universidade, a USP, pregava, com os autores que estavam na crista da onda e com propostas possíveis porque era de um momento que eu visualizei, eu vivi, eu vivenciei aquilo, portanto, aquilo que estava lá era possível. Aí eu fui pra uma outra escola e também não consegui porque eles queriam um outro professor ou queria que eu ficasse manhã, tarde e noite. Nenhum doido ia. E a Coordenadora que lá estava, que era lá do Z., não tinha condição, enfim, eu retirei a minha proposta e chegou um professor: “não tira, não. Eu vou votar em você, por que você vai tirar a sua proposta? Não só eu, um monte de gente gostou da sua proposta.” Eu falei: “Mas eu não posso ficar manhã, tarde e noite.” Ele falou: “não interessa! A gente vai discutir e você vai ficar num horário que você puder aqui.” Eu falei: “não. Tem outra pessoa que pode ficar no Z., né professor?” Ele falou: “Isso é, ele se propôs.” “Então, não vou concorrer. É um amigo meu, um professor que deu aula no CEFAM também.” Enfim, não era do nosso grupo, mas... Aí fui numa outra escola que foi o A.B. Apresentei minha proposta, o pessoal adorou, alguns professores não gostaram porque... foi um professor do CEFAM, que era do A. também, e falou: “o Moreira quer voltar agora, mas dentro disso e daquilo...” Então eu sabia que ia entregar só por entregar e que não ia dar em nada. E apresentei no S.N. e o pessoal aceitou. Logo de cara me viram lá, tinha sete professores concorrendo e ninguém gosta disso, né...”por acaso, dentre vocês, tem alguém que ‘manja’ de internet porque eu preciso imprimir um documento e a impressora não está configurada?” E eu sempre na minha, pensei “deixa os outros irem”. Aí um “eu não ‘manjo’”, o outro “não entendo” e não sei o que... “Poxa vida, o que que eu faço?” Eu falei: “se quiser que eu dê uma olhada... mas não prometo nada.” “Então olha, professor.” E foi só configurar a impressora que era nova. E ele: “ah, tem isso aqui também”. Eu falei: “é assim”, tal, tal. Ele falou: “por mim você já está dentro. Só pelo fato de fazer isso. Fica aquele bando de idiota lá, em mexer no computador sabem. São como eu. Mas que droga.” E a Doroti é uma pimenta nesse sentido, ela é isso mesmo. Aí eu fui lá, apresentamos a proposta e tal. O pessoal fez algumas lá pra mim. Eu lembro que o Wanderlei fez algumas perguntas. Uma delas é: “professor, o senhor gosta de criança?” “De criança? Mas, é claro. Se não, não estaria aqui. Acho que gosto tanto que estou com três filhos (risos).” O pessoal deu risada. Eu falei “é brincadeira”. Mas, sem dúvida nenhuma e com o que a gente mexe. Ele falou: “é bom saber disso porque tem muita gente que não gosta de criança. Vem trabalhar numa escola, mas não gosta de criança. Quanto à sua proposta eu achei ótima. Excelente.” O homem fez filosofia, teologia, então, e ele foi meu mestre também me ensinando como fazer uma dissertação de mestrado. E ele me queria, olha que bom! (risos) Aí foi legal porque o A.B. me chamou: “Moreira, o conselho vai ser tal dia! Você tem que vir aqui.” Eu falei: “Eu já passei numa escola.” E o pessoal: “Não, Moreira, pelo amor de Deus, a gente passou a sua proposta, o pessoal adorou, se fosse qualquer outro do CEFAM ninguém queria nem ver, mas você... se você vier...” “Não posso, já me comprometi nessa escola e aí vai ser muito distante pra mim, aqui é mais próximo...” E é verdade, né. “E já está certo, eu já me comprometi”. E aí ligaram outros professores também: “Por que você não quis? Por que você não veio aqui?” No dia ligaram... foi legal isso aí.

E você já tinha aceitado lá no S.N. ...

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No S.N. Compromisso é compromisso. E eu adorei a escola, adorei os professores e tal. Enfim, minha Coordenação chegou aí. Ela foi fruto de uma decepção com uma escola, vamos dizer assim. Eu já estava na prefeitura, eu entrei em 2000 na prefeitura, então eu já sabia o que era o público. Nunca esperava é que o ensino médio... isso quando eu retornei, né... o ensino médio normal. Então foi uma decepção e eu acabei pensando o seguinte: “puxa vida, tanto investimento que o Estado fez, foi honeroso e tal, tal, tal...” Igual ela falou “...e você não é reconhecido.” Estou pensado nisso hoje, talvez amanhã também vou pensar a mesma coisa e não há valorização, não há nada nessa história, quer dizer, um investimento que se larga, joga e tudo o mais. E o que eu pensei foi: eu acho que sou muito mais útil numa coordenação do que numa sala de aula nesse momento. Eu pensei: em sala de aula eu acho que qualquer um vai fazer a mesma coisa, tomar conta de criança. Dá na mesma, ou cuidar de adolescente. Eu posso até acrescentar alguma coisa, como um outro professor também pode acrescentar muito mais. Então eu vou pra coordenação e se eu não gostar eu volto. Mas, eu fui com uma clara. Eu lembro que numa primeira reunião lá eu falei: “gente, eu fico feliz por vocês terem lido a minha proposta de coordenação...” E o pessoal: haha... Moreira, quem que leu? A gente ficou sabendo na hora.” Eu falei: “então eu gostaria de ler a minha proposta com vocês. Eu quero deixar claro o trabalho que eu pretendo. Até pra que vocês me avaliem sobre essa questão.” Aí o vice-diretor falou: “não, não tem avaliação sua”. Eu falei: “mas eu gostaria. Eu venho de um ambiente que tem avaliação no final do ano e a gente avalia a permanência ou não. E eu gostaria sim que tivesse no final do ano.” E eu sempre fiz. Todo ano eu fazia uma avaliação do meu trabalho, do que eles achavam, do que poderia acrescentar se eu fosse ficar. Nos cinco anos que eu fiquei lá eu fiz essa parte. Então eu deixei claro e falei: “a é trabalhar com a formação com vocês. A gente vai trabalhar um monte de formas em que vocês podem pensar sobre as práticas, que vocês venham trazer aquelas suas ideias da sala de aula pra que a gente possa discutir aqui, vendo no grupo, aqui no coletivo, qual seria a melhor saída pra isso. Porque o seu problema é o problema dos outros. Então, numa cultura mesmo de formação. A gente vai trabalhar para que o HTPC seja o que é: a formação do professor que vocês são aqui.” E aí foi muito legal porque as coisas foram acontecendo...

Como é que o grupo recebeu isso?

Traquilo. Num primeiro momento eu acho que eles até ficaram assustados também porque eles não sabiam que iam dialogar, tal, tal. E quando eu li a proposta que íamos refletir sobre, num segundo momento a reflexão sobre isso e isso. Eu contextualizava muito bem em cima dos autores, a gente lia Schön, e muitos outros autores, a Garrido e tal, e a intenção não era exatamente deixar também esse foco. Então, às vezes, eu notava e parava de usar esse autor. E eu falava: “tá muito engraçado quando ele fala algumas palavras aqui... não sei nem quem é...” Aí o outro: “não seria fulano, Moreira?” “Pode ser.” Aí o Wanderlei: “não, não é isso não. É a Selma, Moreira, que fala isso aí. Eu li o texto dela.” E aí eu tinha os aliados. O Wanderlei era um desses... os outros... pessoas maravilhosas na escola. A maioria era maravilhosa. Tinha um meio-termo mas, enfim... a gente ia conciliando isso. O grupo era aquele com quem a gente conseguia fazer as atividades. E o que acontecia no HTPC, acontecia na sala, de uma forma ou de outra, e a gente valorizava. Ou então um professor dizia: “o fulano não está fazendo nada disso!” Aí você chegava: “ Oi, Fulando, como é que você está fazendo o seu trabalho?” “Ah... a gente está fazendo aqui... mas não comecei ainda, Moreira... não me senti à

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vontade.” Eu falava: “então faça na hora em que você se sentir à vontade.” “Ah, tá bom. Amanhã eu acho que faço... Mas você me ajuda?” “Ajudo! Vamos lá.” A gente ia lá e desencadeava e mostrava: “olha, professor, o que o senhor está fazendo é isso... e se fizesse isso...” Enfim...

Esse trabalho seu de coordenação era com professores de 1ª a 4ª ou ciclo II e ensino médio?

1ª a 4ª séries. Eu acho que no meu percurso está tudo direcionado à 1ª a 4ª séries. Pra ciclo II eu não apresentei proposta. No Z. tinha ciclo II, mas tinha ciclo I também. E o que eu estava buscando era escola de 1ª a 4ª série. Era o que eu dominava, vamos dizer assim. Ciclo II e Ensino Médio têm outras pessoas que dominam de outra forma. A alfabetização eu acho que... o professor alfabetizador ainda era e é o meu foco ainda hoje. Acho que continua... E eu tinha algumas preocupações na Coordenação. Uma delas é: registrar tudo. Então se via no livro de registros de Coordenador que tinha uma fase: “hoje fizemos isso e isso. Amanhã... tal, tal.” E eu usava as falas dos professores, o que eles diziam, como se posicionavam, erros que cometiam... Então minhas pautas davam, no mínimo, uma página... eram duas páginas, três páginas. O livro ficava “dessa” grossura. Digitado, ainda! Digitado, direitinho, colava no livro, eles assinavam, contava as falas um por um. Em alguns casos a gente até lia as atas, se fosse o caso... “Olha o livro de ata está aqui pra vocês...” Eles não conseguiam entender...e eu falava: “isso é material pra vocês...” Então eles verificavam. E que não fosse algo perdido, que tinha que retomar...não. A gente estava sempre num processo crescente. Tudo direcionado à formação, os textos amarrados para a discussão, significar as datas cívicas... então, a gente nem discutia isso. Era uma prática dos professores mesmo e a gente continuava dentro de um processo pra construção de um coletivo, tornar as decisões mais democráticas,... muito Paulo Freire por aí. Enfim... foi dentro disso. E no outro ano os professores esperavam exatamente que retornassem algumas coisas e não! A gente continuava com outro grau de dificuldade na nossa formação, no trabalho... A gente foi pensar a sala de aula, a disposição delas e o que precisava fazer... Chegamos a discutir a grade curricular, mudamos... demos quatro aulas pra História, quatro aulas pra Geografia, quatro aulas pra Arte... mudamos um monte de coisa. Mudamos a aula de Língua Portuguesa, dividimos a aula de Português em aula de biblioteca, de leitura, de laboratório disso e daquilo, os professores começaram a trabalhar entre eles. Um pegava a parte de matemática porque dominava mais, o outro pegava a parte de Língua Portuguesa e virou o “satanás” naquela escola, uma bagunça... e tudo registrado, bonitinho. Sala de vídeo: tinha lá um horário. A aula do professor é tal dia e a sala de vídeo é dele. Mesmo que ele não fosse usar, o espaço era dele. Se ele não fosse usar e quisesse usar com outro professor... que fosse! Mas era pra dar uma vez por semana um vídeo para o aluno. E tinha que levar pra sala de leitura também... e estava lá: Sala de Leitura... Então foi uma loucura mas é muito legal isso aí. Discutíamos isso e tantas outras coisas... uma pena que depois eu tive que sair. O meu acúmulo não permitiu continuar. Mesmo assim a gente segurou seis meses. Eu lembro da fala do Wanderlei e outros professores que falaram: “pô, Moreira, agora que a gente ficou bom, né?” Eu lembro dele falar desse jeito: “pô, agora que você terminou o seu mestrado, conseguiu sintetizar algumas coisas, alguns pontos que a gente discutiu e tantos outros e a gente teria agora condições de dar um outro salto aqui.” Eu falei: “pois é, Wanderlei, infelizmente... parece aquela história de você fazer pesquisa, encerrou e vai embora...” “Mas a gente sabe que não é isso. Foi bom ter a sua passagem aqui.” E eu: “É isso! Eu

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quero deixar a minha passagem e que o outro faça a sua história também.” Tanto é que, pra receber as propostas dos outros professores, mesmo eu não estando lá, eu que recebia as propostas dos Professores Coordenadores.” Eles diziam: “Eu vim aqui deixar a minha proposta...” E eu dizia: “Legal! Você vai entrar no meu lugar.” E eles: “ai, meu Deus, você está aqui, puxa...” Eu falava: “Não! Eu já saí faz uma semana. Só estou aqui pra acertar pra você entrar ou um outro entrar.” A Zenilda apresentou proposta lá e eu falei: “Zenilda, você lava as mãos aqui... aqui é um paraíso.”

Você ficou quanto tempo lá?

Eu acho que quatro anos e meio... quatro anos ou foi cinco anos? Não lembro direito... cinco anos! Foi um quinquênio.

O que você pode dizer que foi um desafio... ou quais foram os desafios que você sentiu que precisava “encarar” nessa escola? Na coordenação como um todo.

Eu acho que o desafio foi significar um trabalho realmente como Coordenador que o Coordenador fosse um Coordenador mesmo, um Professor Coordenador. Que ficasse a história dos professores. O Coordenador poderia aparecer, mas não ser o foco. O grupo de professores tinha que se ver dentro desse processo, que eles estivessem refletindo sobre as suas práticas constantemente, revendo-as, buscando parcerias com os colegas, amarrando essas coisas, que revissem o seu currículo e entendessem o que estava atrapalhando, porque que era aquelas “caixinhas” e buscar saídas, por exemplo, pra uma aula de informática. Nós tínhamos dois computadores e levávamos os aluninhos lá. T O D O S! A gente levava todos os alunos lá naquela salinha com dois computadores. Eu ficava lá e o professor ia mandando dois, eles faziam alguns exercícios e voltavam; vinha mais dois... aquilo era um inferno naquela escola, mas tudo organizado e direitinho. Precisa ver que delícia os alunos irem lá, mexer um pouquinho, voltar, enfim... Eu acho que o desafio foi todo ele, Lilian. Foi todo ele. Desde o primeiro dia, aquele comprometimento disso e disso... e tinha as festas nossas que eram maravilhosas. Tinha churrasquinho de vez em quando, saíamos e íamos no pesqueiro, tinha de tudo lá. Investir na saída da escola... isso é outra coisa: significar o espaço. A primeira formação nossa mesmo, que teve no primeiro bimestre... no segundo semestre... porque eu entrei em junho, dia vinte e seis de junho seu eu não estou enganado... alguma coisa assim, então foi logo no recesso. Voltando do recesso tinha um momento de formação, aqueles quatro dias, três dias. Então a primeira coisa foi, dentro das falas dos professores: “a comunidade é muito pobre e tal, tal, tal”. Então a gente criou um jeito em que nós saímos e foram uns três dias lá pra discutir a metodologia de pesquisa e o que seria isso: investigar, analisar, tal, tal. No segundo dia a gente foi no bairro e a gente conheceu todo o bairro do S.N. com os professores. Andamos! Os professores não queriam, muitos não queriam: “é... eu não estou preparado” ou “ eu estou de salto”. “Quem mandou vir de salto, professora? Vamos lá!” E fomos, andamos. No outro dia discutimos aqui lá e os professores ficaram abismados, não achavam que era aquilo. Viram que as casas eram muito bem feitas e, então, não era um bando de mendigos que estavam lá, nem de favelados. A gente discutiu todo esse contexto pra que eles soubessem onde é que eles estavam. Por que a comunidade estava dentro da escola? Por que era tão política aquela situação. Discutimos a questão dos movimentos populares e

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o que significa o Movimento Sem-Terra, a organização dele e onde que a gente estava. A partir dessa metodologia eu investi em todas as outras saídas com formação para o aluno e para o professor. Então, na realidade, o desafio foi do primeiro dia até o último dia em que eu fiquei. Foi de nunca entrar em contradição e, é claro que entramos várias vezes, mas não perder esse foco, que não tivesse um sentido de repetição, mas sim de retomada e avanços constantes e não fosse sempre aquela mesmice e todos os HTPC tivesse registro de tudo o que fosse feito, dito, quem se comprometeu... eu acho que esses foram os grandes desafios. A Coordenação como um todo. Me dediquei de corpo e alma... eu adorava aquela escola. Ah... e deixar claro: quando eu entrei lá eu não estava fazendo o meu mestrado. Quando eu entrei lá... no outro ano, ou seja, depois de um ano e pouco, foi novembro de 2002... de 2001... aí sim eu avisei pra turma: “olha, gente, passei no processo seletivo da USP e vou fazer o meu mestrado.” Então eu não deixei nada... não teve nada disso.

E a sua pesquisa você fez na escola?

Teve a ver com a escola.

E você como Coordenador...

O que eu queria fazer era: como levar duas redes e um mestrado? Então, foi uma adequação de um projeto que eu fiz em que, ao mesmo tempo, o que eu estivesse fazendo no mestrado também servisse como... se eu ia discutir a formação de professores, então como também buscar em toda a literatura que eu estava vendo... ir buscando coisas novas que pudessem servir para a prática também na escola. Os dois andavam juntos. Nunca cruzei um com o outro. Jamais deixei para os professores que eles eram cobaias minhas ou objetos... jamais! Até porque pelo trabalho eles já me conheciam, depois de um ano e três meses, eles viam como é que era o andamento e não mudou nada, continuou o mesmo. Nunca usei de dizer “olha, estou saindo porque eu estou fazendo o mestrado, estou sendo mestre tal, tal.” Muito pelo contrário. Mas abriu portas. Eu consegui levá-los no laboratório de informática da USP. Nós fizemos verdadeiros encontros lá durante o dia de sábado. Eles foram conhecer a brinquedoteca, depois levaram os alunos. Foram em vários outros espaços da USP e eu acho que isso favoreceu essas questões. E é isso...

Você poderia me contar um dia típico de um Coordenador? Quando você resgata lá do seu dia-a-dia no SN, como era um dia típico do Moreira como Coordenador?

Não existia isso: dia típico. Não existia uma rotina, vamos dizer assim... Mas, claro, em outros momentos não teria como. Eu acho que o primeiro deles acho que era eu que recepcionava os alunos. Então, fazia a entrada. Eu esperava os alunos entrarem, ficava no portão, nas filas até o professor vir, o que atrasava e tal, tal, tal. Depois disso a gente começava a “matutar” o que foi discutido no HTPC: o que tinha que ser colocado em prática naquela semana e discutir sobre o que seria discutido durante o HTPC. Eram leituras aqui, leituras acolá, eu lia muito. Tinha que buscar muitas leituras. Depois que eu tivesse aquela aí eu ia lá e conversava, como se não quisesse nada, com a direção. “Olha, no HTPC eu estava pensando nisso... porque a gente viu isso e eu estava pensado assim.” Aí a direção dava uma : “Legal, Moreira, é isso mesmo e tal. Mas, e se você fizesse isso? Você está considerando isso?” Essa era a primeira conversa que clareava muito e te dava força. Uma outra

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coisa era deixar sempre a direção ciente do que eu estava fazendo ou acontecendo naquele movimento doido, maluco. E ele sempre sentiu muita firmeza naquilo que eu estava fazendo, segurança. Como disse a Doroti no primeiro momento: “Moreira, é você quem vai cuidar da parte pedagógica. Eu não quero nem me meter nisso.” Então foi sossegado nessa parte. No segundo momento a gente conseguiu convencer uma professora para ser diretora. E ela não queria. Aí eu e o Wanderlei e outros professores sustentamos a e ela falou: “eu vou por causa de vocês. Se vocês me abandonarem eu estou fora.” E ela era muito pedagógica. Nossa! Uma excelente professora. A Marilena, né... e quando eu ia conversar ela dizia: “Moreira, você toma cuidado com os meus professores.” E eu: “são meus também.” E ela: “são mais meus... e tem os meus alunos que estão lá... não são seus.” E quando eu ia conversar, ela dizia: “Moreira, você toma cuidado com isso... Da outra vez você falou isso e nós entendemos aquilo. Não ficou claro. Então eu acho que deveria investir nisso.” E eu: “é mesmo?” “É. Está faltando isso.” Então a gente organizava lá até que ela falava: “perfeito.” Depois, no final, quando estava pronto e eu mostrava ela falava: “Beleza!” Mas ela falava: “L I N D O !” (risos) “Maravilhoso. Mas eu quero participar do HTPC. Me chama.” E ela ia e participava como professora.

Ela era diretora...

Diretora... mas participava como professora e não como diretora. E o pessoal não via a figura dela como diretora lá dentro.

Ela estava preocupada na verdade com a formação e em participar do pedagógico, né?

Isso, com a formação. Porque ela dizia: “eu não conheço isso, eu quero conhecer. Eu quero ver como é que vocês vão buscar saída pra isso.” Então ela sentava por lá. Tanto é que quando eu não estava lá ela respondia com a maior tranquilidade sobre a Coordenação e o que estava acontecendo...”sobre mais coisas eu pergunto pro Moreira. Se precisar confirmar eu confirmo... quer que eu assine agora por ele?” Era bem assim. E depois disso eu chamava sempre um professor, dois professores... ou ia na sala e falava: “olha, eu estou pensando nisso... assim...” Às vezes ia contra, um a favor... os aliados, os inimigos... então a pauta era sempre construída por todos. Essa era uma rotina diária que tinha. As duas direções que passaram sempre disseram. “Moreira, a indisciplina você deixa comigo. Pode deixar a indisciplina comigo. Cuida dessa parte aí... cuida do professor, cuida da aula no geral e a indisciplina deixa comigo.” Então, era muito raro eu cuidar de algum aluno, de alguma indisciplina nesse sentido. Eu ficava livre disso. Por isso eu ficava matutando, arquitetando, escavando coisas... eu conversava com o professor aqui e ali. Queria ver o que estava dando certo: “e aí? E aquela atividade? Como é que ficou?” “Ih... Moreira, não deu certo não.” “Por quê?” “Ah... o aluno aqui.... não sei mais o quê... e eu tenho que decidir outras coisas.” E era esse o movimento. O movimento era disso: conversar sobre o trabalho que a gente estava desenvolvendo, sobre o HTPC que ia acontecer e o que ia desencadear a partir disso. Teve um processo da saída... e etc, etc.

E a partir dessa fala, então, dos professores você buscava subsídio nos textos, buscava fundamentação pra transformar isso em formação no HTPC?

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Sim. Em formação. Então, quando ia discutir o HTPC praticamente todos os professores já sabiam o que ia acontecer. A gente sempre levava um texto e isso era muito legal. Eles liam, a gente lia, cada um lia pro outro...

Lia no HTPC?

No HTPC. Liam, discutiam e se posicionavam. Não era sempre também. Tinha aquelas vezes em que o professor falava: “Moreira, a gente está sentido tanto a falta daquele momento que a gente possa corrigir um monte de prova...” E eu dizia: “então o HTPC hoje é só para a correção de prova porque vocês estão precisando de ajuda.” Mas isso era muito raro. Na realidade, os professores não tinham coragem de pedir isso. E a gente ficava com uma lacuna. Depois a gente retomava: “Retornando... no último HTPC a gente parou aqui. Durante a semana aconteceu alguma coisa?” “Ah... isso e isso.” “Legal. Então vamos lá.” Fora isso, discutimos os Parâmetros Curriculares e uma das ideias foi que cada um ficou com um pedaço e apresentava na aula... O dia é isso... Outras vezes a gente ia lá na sala e a sala estava tranquila demais, aí pegava bexiga e jogava no meio da sala...os alunos ficavam gritando e a professora: “Moreira, eu te mato! Você não sabe quanto tempo foi pra eles ficarem quietos. E agora? Pode arrumar essa sala aí enquanto eu estou aqui fora.” E eu dizia: “Professora, pode ir tomar um café que eu fico com a sala sua um pouquinho.” Aí a professora saía e depois voltava: “Sai fora! Se eu tenho que arrumar a minha sala o primeiro que eu tenho que por pra fora é você. Vai cuidar de alguma coisa aí e me deixa arrumá-los. Chega, chega, o Moreira já foi embora e ai dele se voltar. Vamos lá.” (risos)

E aí ela retomava, né?

Retomava. Aí eles passavam pelo corredor e tinha alguns professores que não me conheciam e diziam: “Quietos. Silêncio.” E corriam: “Com licença, professora. Eu vi a senhora correndo ali da sala da professora. Está tudo bem?” “Não... é que eu fui só conversar porque eu estava com uma dúvida aqui.” E eu falava: “Que bom! A gente valoriza isso. O professor estar conversando com o parceiro, com aquele que mais gosta,... pra acertar do trabalho, ver como é, tal,tal. E às vezes também dar uma fofocadinha também funciona. Porque às vezes o aluno deixa a gente tão doido, né?” “Ah... é mesmo, Moreira!” “Então, isso faz parte. Aí dessa conversa com o colega, logo mais vocês estão em cinco, sete conversando e discutindo o que é melhor para os alunos.” Era muito legal dessa forma brincalhona, como eu sou e tal. A gente se divertia... era legal. Eu me divertia todos os dias... dava risadas... e eles também. Isso era legal. E o aluno era problema deles, né? Vamos dizer bem claro. A não ser alunos com outros problemas, outras dificuldades que aí a gente revia. Mas eram pouquíssimos. De 1ª a 4ª série não tem muito problema com aluno. São raros os problemas. Então, quem tem acesso direto com esse é o aluno. Às vezes a gente forçava alguma coisa. Chegava com alguma que eu acreditava que tinha que acontecer. Os professores ficavam meio assim, aí eu ia nos aliados. E ouvia: “Ah, Moreira, não dá. Isso vai dar muito trabalho pra mim e não sei mais o que.” Eu lembro de uma atividade sobre moradia. “Vamos discutir o que é moradia.” E eu: “E essa casinha ridícula, com aquele telhadinho? Onde é que tem essa casa na favela?” E o professor: “Eu conheço um monte.” E eu: “isso tem lá na sua terra. Lá em Presidente Prudente.” “É. Lá tem.” “Pois é, aqui não tem. Aqui é laje.” “Tá, Moreira. Você vai acabar me dizendo também que existem os barracos.” E eu: “Hum, hum.... o que mais? Tem as casas dos índios também. Então veja como a

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moradia é diversificada. E têm os prédios, muitos moram em prédios.” “Não, aí não. Vai dar muito trabalho fazer tudo isso. Eu não vou fazer não.” E eu falava: “Olha dá pra fazer maquetes.” “Não. Não tenho tempo pra fazer isso.” Aí eu lembro que eu cheguei lá num dia no intervalo. Peguei as minhas coisinhas, serrote, faca, uns engradados que eu peguei lá com um cara que vendia frutas e ele ficou bravo que tinha quebrado as coisas dele... peguei... e os alunos olhavam, juntou aquele bando atrás de mim. E eu bem no meio da quadra, num cantinho lá... medi aqui... E eles “o que você está fazendo? Ô, seu “Governador”, o que o senhor está fazendo?...” (risos) E eu: “fica quieto, sai pra lá pra não se machucar.” Daqui a pouco eles começavam a dizer: “é uma casa!” E o outro: “é um barraco que ele está fazendo.” E eu ia lá serrava, colava, de repente... eu fiz um barraquinho. Quando chegava o professor ele dizia: “eu mato você, Moreira. Eu te mato!” (risos) E eu: “o que foi?” “Os alunos querem fazer casinha. Como é que eles tiveram a de fazer casinha?” Eu falava: “eu não sei. Talvez seja alguma coisa que eles viram.” (risos) E esse barraco ficou lá durante muito tempo.

Ele foi feito em tamanho natural?

Era uma maquete de um barraco com os materiais de um barraco mesmo. Com madeirite, o telhado com... enfim com tudo o que tinha lá naquele momento. Aí eu deixei na exposição e eles passavam, olhavam. Porque aquilo despertava a curiosidade deles para ousarem a fazer outras coisas e tal. Então... eram essas as rotinas malucas nossas.

Muito bom.

Em outros momentos a gente fechava a escola mesmo pra ter formação. E às vezes essa formação tinha que ser em outro lugar e a gente fazia isso. O turno da manhã segurava e a turma da tarde ia pra formação em outro local. Ia pro cinema, ia pra onde quer que fosse. No outro momento invertia. Em alguns momentos a gente fechava mesmo a escola, literalmente. “Tal dia vai todo mundo lá pro... Instituto Butantan. Vamos conhecer primeiro. Vamos ver o que dá pra gente trabalhar. Vamos verificar como fazer. Alguém tem alguma?” A maioria não conhecia. “Ah... eu conheço alguma coisinha lá, Moreira.” “Então, tá bom. Já é um bom começo.” Mas a gente nunca falava que sabia, né? Eu falei: “eu fui uma vez... faz muito tempo... e você?” Tinha professor que era de Santana do Parnaíba, outro do final do mundo. Então faltava a parte cultural também... então a gente ia lá. Aí eles vinham: “olha, Moreira, eu já perguntei, já conversei com o guarda e ele falou que é R$ 1,50 por aluno mas tem um dia que não paga.” Eu acho que era isso ou alguma coisa parecida em que tais dias não precisava pagar. E a outra: “Moreira, além daqui em que a gente vê as cobras, tem um museu da bacterologia ou sei lá do que...virologia, alguma coisa assim.” E eu: “que legal!” Fomos lá conhecer tal. Então, na realidade, fechava o tour. Aí, no HTPC, a gente retornando, todo mundo visitou, o Wanderlei adora isso, então falou e pontuou algumas coisas. “Bem, vamos montar, gente. Primeira coisa: que dias que a gente tem que fazer mesmo isso pra não pagar?” “Tal dia.” “Legal. Ônibus?” “Opa, tem um ônibus ali... eu tenho o telefone e já conversei. É gente boa. Porque a outra empresa não funcionou.” Então, cada um tinha uma informação. Outro dizia: “olha, não é bom ir pra lá, não. Além de não ter muita coisa fiica um pessoal lá meio estranho... é bom as crianças não irem pra lá.” Então... segurança. Item segurança tal, tal. Quando você via estava montado. Você não

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precisava montar. As pessoas conheciam o local, sabiam o que fazer e chagavam lá seguros daquilo que iam fazer. Esse era um item de formação. Bom... era isso.

Quer falar algo mais que eu não perguntei e que você queira dizer?

Tinha os momentos de conflito também. Às vezes algumas ideias, mas isso por quê? Porque não estava claro pra eles... significava mudar aquilo que estava muito seguro neles... Então a era: “vamos fazer aos poucos, não é isso? Sentindo segurança vamos fazer! Certo, professor?” “Ah, bom. Então, tudo bem.” Aí... era, por exemplo, quinta. Na segunda-feira: “professor, você vai pra sala tal, você vai pra sala tal, porque aqui vai sei a sala tal. “Pô, mas a minha sala! Meu armário.” Aí surgia problema. Voltava pro HTPC: “Moreira, não dá.” “Mas o que é que não dá?” “Eu vou pra uma sala lá no final do mundo. Eu vou pra sala de víd ,eo na primeira aula, quando eu retorno, não retorno pra minha sala eu vou pra sala cinco, que é a sala de Geografia porque a minha virou a de Língua Portuguesa. Só que o meu material está naquela sala. Como é que eu vou fazer isso?” Aí tinha aquela discussão... e eu: “então, vamos mudar os armários!” “Não dá, Moreira, mudar o armário quando eu for pra lá... preta atenção!” Eu falei: “tá bom, então eu acho que a gente vai ter que usar um armário coletivo.” Nossa!... (risos)

Eu imagino o que foi falar para professores de 1ª a 4ª que tinham que usar armário coletivo... eu sou professora de 1ª a 4ª também.

“Como coletivo?” E eu falei: “aquele armário vai ter uma parte que... não é de Geografia aquela sala? Então você vai deixar uma parte de Geografia da 1ª série aqui e da 2ª série aqui... porque tinha duas salas de Geografia: uma de 1ª e 2ª e outra de 3ª e 4ª. Uma sala de Geografia e História, uma sala de Ciências, ... entendeu?

Que eram as salas ambiente?

Exatamente. Ambientalizadas. Foras os outros e tudo o mais. E aí o barco ia. Chega um momento que eu ia dizer alguma coisa e eles: “não, não, não. Não dá . Nós vamos resolver.” Eu falava: “que bom! Vocês não querem uma ?” “Não. O senhor já bagunçou demais, não precisa.” Aí o outro: “o ideal seria...” E eu: “o ideal não...vamos com calma. Nós temos que pensar nos nossos alunos. Nós já vimos que se o aluno sair da sala ele se estica, não fica todo o tempo sentadinho... ele se move, ele tem outro ambiente... ele vê a classe da professora que é bonita, toda ambientalizada, um espaço de formação pra ele... vai ter atlas e tal, tal, tal. Não vamos esquecer isso: como a gente fez pra chegar até aqui. Não foi por acaso, né?” Bom... foi isso.

Aí eles acabavam aceitando, né?

Alguns sim. Agora, outros a gente sabia que ia mudando de sala mas ia continuar trabalhando somente a mesma coisa. Tinha vez que dava o livro e o aluno copiava tudo o que era de História e Geografia... era uma aula só de cópias, só de cópias... Mas aí... como chegar e dizer: “professora, a senhora não dê mais cópia pro aluno”? Você via que a professora já tinha vinte anos de carreira... ela não sabia fazer outra coisa. Você não tem força pra isso. Quando você via uma melhora, um espaço pra conversar... sugeria: “olha, professora, tem essa atividade... faça assim... tal, tal.” E ia mudando, de vez em quando, alguma coisa. Porque se fosse de frente... moral da

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história: não teria aquela pessoa com você, nem dentro das ideias, nem dentro dos projetos... Então, algumas pessoas só passavam, só passavam... como estão passando pela vida também. Só vão passar pela vida, vão morrer e vão embora. Agora, outros ousavam, iam além... você dava uma ... você virava a cabeça deles e eles odiavam aquela que servia como exemplo para um outro momento. Eles sempre estava sendo representativos ali. Então, a figura do Coordenador se diluía. Ela aparecia como figura, no sentido de Coordenação e se diluía dentro do trabalho do professor, porque o que aparecia era o trabalho dos professores. E sempre quando tinha os encontros da Diretoria de Ensino e não mais o que... a gente inscrevia a escola. O professor vinha, apresentar... eu apresentava a escola, mas quem vinha era ele. Então quando eu vinha apresentar vinha um professor comigo, uns dois, três... aí motivava o outro pra apresentar aquela atividade de matemática que fez e fazia o maior sucesso aí. É isso!...

Podemos encerrar, então?

Yes!

 

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Apêndice C – Síntese esquemática da 1ª Entrevista

FATO  NARRATIVA 

O  vilarejo  em  que  viveu,  no Ceará,  até  os  10  anos,  era dividido por duas ruas: a Rua da Barragem  (a principal)  e  a Rua da Jumenta.  

“...uma era a rua dita das pessoas que tinham mais dinheiro e a tal da Rua da Jumenta a rua em que moravam os negros. Talvez  isso seja  interessante dizer porque  isso  ‘marca’ sem dúvida nenhuma. (...) Eu era da rua principal. Num primeiro momento morava nessa  Rua da Jumenta e depois vim pra essa outra rua após a construção da casa.” 

Não  havia  brinquedos industrializados  na  região.  As crianças  construíam  seus próprios  brinquedos  (a  partir de argila, pedaços de madeira e sucatas  encontradas), reproduzindo as manifestações culturais  da  região:  bumba‐meu‐boi,  os  caretas,...  A barragem  era  um  lugar  de diversão  para  as  crianças  da redondeza. 

“E  é  interessante  lembrar  agora  com  essa  fala  que muitos  dos  brinquedos  nossos  era reprodução  das  brincadeiras  ou  das  festas  que  os  adultos  realizavam...  a  questão  do ‘bumba‐meu‐boi’, os caretas, tinha várias brincadeiras (pra nós era brincadeira) e a gente reproduzia isso. A gente confeccionava a nossa roupa, fazíamos o boi, algumas delas... A outra  questão mesmo  era  a  da  barragem,  uma  barragem  imensa,  então  a  gente  não tinha esse problema da seca lá.” 

Brincava com as outras crianças na grande barragem que havia.  

“A gente brincava muito lá, nadávamos, ficávamos uma boa parte do tempo lá; enquanto as mães  lavavam  as  roupas  a  gente  ficava  brincando,  fazendo  os  bonecos,  tomando banho, pescando... E a minha infância foi marcada dessa forma.” 

Estudou  numa  classe multisseriada  em  que  os castigos  físicos  eram frequentes,  portanto,  não gostava da escola. 

“Uma das  coisas que me marcou bastante  foi uma das  cenas de estudo: você está em roda  e  o  professor  pergunta,  por  exemplo,  a  tabuada,  5X8,  e  você  não  acerta.  Aí  vai perguntando, um para o outro, até alguém acertar. Quando esse acertava, ele vinha e ganhava o privilégio de bater com a palmatória na gente, aqueles que erraram. Fora isso existem outros momentos ‘prazerosos’ também como ficar em cima de caroços de milho, de feijão, com a cara batida na parede (...) eu não tinha o menor prazer em participar da escola.” 

Com  a  chegada  dos  livros  do MOBRAL  ganhou  a possibilidade  de  estudar  à noite, mas não o  fez  (acha que ganhou o  livro por causa da tia que  era  professora;  só  podia estudar  quem  tivesse  esse material).  

“Eu lembro até hoje que tinha um rapaz, não sei precisar também quantos anos ele tinha, mas era um rapaz, já formado (hoje eu acho que ele devia ter em torno dos seus dezoito, vinte anos), e ele queria estudar muito. Então ele veio conversar comigo pra eu dar o livro pra ele porque ele precisava estudar e já que eu não estava estudando... E eu dei o livro pra ele. Ele foi estudar e eu continuei fazendo o que sempre gostava, à noite: brincando com os adultos, com as crianças e tudo o mais.” 

Conhecia  todo o  alfabeto, mas não conseguia ler.  

“...eu sabia todo o abecedário de trás pra frente, do meio pra esquerda, pra cima e pra baixo, na vertical e na horizontal,  juntar  todas as sílabas, de  todas as  formas, mas não conseguia formar palavras... Acho que isso é interessante.” 

 

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FATO  NARRATIVA 

Desde  pequeno,  gostava  de observar  as  pessoas  em trabalhos  artesanais,  como  na confecção  de  brinquedos  e utensílios em geral. 

“Até hoje eu observo as pessoas e tudo o que eu tenho a fazer eu faço se eu vir alguém fazendo.  Claro  que  é  um  trabalho  leigo,  jamais  vai  ser  como  um  profissional, mas  é interessante  fazer.  E  isso  eu  trago  comigo até hoje. A  imitação para a  criação,  vamos dizer assim. (...)Eles faziam as coisas e a gente  ia aprendendo, como se fosse uma tribo indígena onde as pessoas fazem aquelas coisas e os outros vão observando... Era isso que eu fazia: observar.” 

Havia uma pessoa, em especial, a  quem  gostava  de  observar: um  jovem  que  fazia reproduções  artesanais  “com perfeição“. 

“E tinha um rapaz que fazia as coisas muito bonitas, muito bem feitas. Enquanto a gente estava com aqueles carrinhos horríveis, a coisa mais feia do mundo, em geral tudo o que ele batia o olho ele fazia. Se ele visse uma carreta passando pelo vilarejo, que era a coisa mais  difícil  do  mundo,  ele  reproduzia.  Pegava  tudo  aquilo  e  transformava  numa miniatura. E  isso me  trouxe essa  idéia de  fazer,  imitar algo bonito, bem  feito  também. Claro que eu não  conseguia  chegar  lá, mas era essa a nossa  ideia. A mesma  coisa no artesanato: ele fazia coisas maravilhosas!” 

As  brincadeiras  à  noite  eram significativas.  

“ À noite... à noite era uma coisa maravilhosa...Primeiro que o céu à noite não existia. Não  tinha  energia...  energia  só  em algumas  casas  e  só quando  funcionava  o  gerador. Então a noite era clara. As estrelas... nossa... maravilhoso... a lua... Eu lembro que a gente ficava correndo pra um  lado e pro outro pra ver se a gente passava da  lua, mas aonde quer  que  a  gente  fosse  a  lua  estava  no mesmo  local.  E  era muito  legal!  Os  adultos queriam mostrar  pra  gente  que  não  adiantava  e  ninguém  entendia  nada  disso. Nesse momento a gente tinha: os adultos contando histórias pra gente, fazendo roda... cantigas de roda tinha demais,...” 

Gostava das histórias que eram contadas à noite pelos adultos. Acredita  que  as  histórias também  serviam  para  unir  as pessoas. 

“Uma cena... posso? Era comum, também, da mesma forma que vinha gente fazer parte dessas rodas, às vezes as pessoas também convidavam e a gente  ia pra um  jantar... eu acho que  era  jantar naquela  época.  Tinha uns que andavam umas  léguas pra  isso.  Eu lembro que a gente ia mas queria voltar com um senhor porque ele contava histórias pra gente. Eu lembro que uma vez, em torno de quinze crianças, meus irmãos, primos, amigos e  tudo  o  mais,  e  ele  contando  histórias  macabras,  de  lobisomem...  E  falava  que  o lobisomem  ficava nas moitas, nas árvores, no escuro... E  tinha várias moitas pra gente passar. E era interesse que, conforme ia passando, ele ia contando a história e a gente ia se juntando a esse adulto. Ninguém o dispensava. Quando ele parava de contar, cada um ia  por  si  e  ficava  bem  distante.  Aí  ele  dizia:  ‘Opa,  olha  a  história,  ali  pode  ter  um lobisomem!’ Aí a gente  juntava novamente. Hoje eu  fico pensando: acho que era uma estratégia dele pra manter  todo aquele  ‘bando’ próximo, não brigando  e não  fazendo qualquer outra coisa e não se perdendo. Então as histórias também serviam pra unir as pessoas.” 

Aos 10 anos, quando veio para São Paulo,  continuou gostando de  fabricar  seus  brinquedos  e manteve o “espírito inventivo”. 

“Eu  lembro de uma cena em que eu nunca  tinha visto pipa. Aí eu vi o pessoal soltando pipa e eu  fiz o pipa. Olhando eu  resolvi  fazer o meu pipa e não coloquei  rabiola. E não descobria porque o meu pipa não subia. Ele só rodava. Depois de muito eu descobri que precisava da rabiola pra ter uma base, uma sustentação. Mas era interessante em alguns momentos  das  minhas  brincadeiras  que  o  pessoal  até  me  colocou  um  apelido,  num primeiro momento, de Professor Pardal  (eram muito comuns as  leituras do Walt Disney aqui). Tudo eu resolvia fazer! Eu lembro que na nossa rua a gente queria fazer um avião. Um avião que pudesse carregar alguém. Então a molecada colocava aquela capa e queria voar,  ser  o  Superman,  na  época  do  lançamento  do  Superman.  Eu  falei  ‘não,  a  gente precisa fazer um planador pra gente voar!’ Aí a gente começou todo um projeto e tal... mas não foi pra frente.” 

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FATO  NARRATIVA 

Apanhava  para  ir  à  escola. Depois, já em São Paulo, houve um  momento  de “rompimento”,  ou  seja,  um acordo com a mãe. 

“...todo dia pra ir pra escola, seis horas da manhã, eu estava agarrado no pé da mesa e apanhando! Apanhava até a minha mãe cansar... ela suava,  tomava  fôlego e voltava a bater novamente. Era surra feia. Não era pequena, não. Até eu sentir dó dela. Aí eu ia pra escola. Eu acho que foram meses nessa brincadeira. Eu lembro somente do momento de rompimento. Foi quando ela  falou:  ‘como é que você não quer estudar  se  todo mundo estudou?’ Eu perguntei  ‘estudou até quando?’ Ela  falou  ‘fiz a quarta série’.’E meu pai?’ ’Também  fez a quarta série’. Eu  falei  ‘é  isso que vocês  fizeram? Então se eu  fizer até a quarta série eu fico livre disso?’ Ela falou ‘sim.’ Eu falei ‘então tudo bem. Eu vou estudar até a quarta série. No final da quarta série, igual a vocês, eu paro de estudar.’ A partir de então eu  fiz as vontades dela porque eu  fiz um acordo. Mas eu descumpri esse acordo. Depois  da  quarta  série  eu  vi  que  precisava  fazer  a  quinta  e  fui  embora.  Eles  ficaram desapontados (risos).” 

Gostava  de  observar  o marceneiro  “transformar”  a matéria bruta em utensílios. 

“Ah... uma  cena da minha  infância que  eu  jamais posso  esquecer! Posso?  (...)  Era um senhor quer morava próximo de casa e isso me chamava a atenção: a beleza dos móveis e das coisas que ele  fazia. Era  interessante porque eu via a possibilidade... eu  lembro de uma  vez que eu me aproximei dele e  falei  ‘nossa  você  faz  isso!’ E aí  foi um monte de perguntas  só  pra  chegar  numa  sinuca...  ‘Você  sabe  fazer  uma  sinuca?’  Ele  falou  ‘sei fazer’. Aí eu  falei  ‘e você  sabe  fazer uma sinuca menor? Pra criança?’ Ele  falou  ‘ah, eu acho que eu sei sim, se  tiver material acho que eu acabo  fazendo.’   E eu  fiquei nessa... não  lembro se eu pedi pra ele  fazer. Eu sei que eu queria que ele  fizesse e  todo dia eu visitava ele. Aí comecei a ver como que ele fazia e, de vez em quando, ele deixava eu fazer alguma  coisa.  Até  hoje  me  assusta  lembrar:  ele  vivia  no  mato,  cortava  uma  árvore imensa, trazia aquela tora de madeira bruta, passava dias e dias serrando aquela tora de madeira  e  fazendo  várias  tábuas  ‘na mão’,  serrando,  serrando...  Um  trabalho  lento, devagar... Sem  falar que ele riscava tudo direitinho. Aquilo eu achava o máximo! Como que  ele  conseguia  riscar  tudo  aquilo  igual,  certinho...  ele  usava  os  esquadros  e  eu  ia observando tudo aquilo. Então eu começava as fazer as coisas. Depois ele plainava tudo aquilo,  deixava  lisinho,  riscava  novamente,  passava  ali  tudo  o  que  tinha  que  fazer, cortava perfeitamente, encaixava aquelas coisas, depois a lixa, enfim, todos os processos que ele ia fazendo eu via. Vira e mexe eu estava lá também usando a plaina, usando isso e aquilo de uma outra forma. (...)Eu lembro de um desses momentos em que eu cheguei lá e ele me mostrou uma sinuca pequena que ele fez pra mim. Fez até o taco também pra jogar com bolinha de gude. Nossa, aquilo foi o máximo! Eu não lembro se eu voltei, acho que eu sumi de lá (risos).” 

Não considera que  somente as pessoas  o  marcaram  na infância, mas  todo  o  contexto daquele momento. 

“Então o que marcou... acho que foi tudo, Lilian. Não foi só o colega. Porque o colega... ora você está com um e brinca; na outra brincadeira o outro é melhor então não queria brincar com esse, queria brincar com outro... adorava brincar com as meninas.” 

Gostava  de  acompanhar  o  pai no  trabalho  e  poder  auxiliá‐lo, aprender  com  ele,  pois  sentia‐se  atraído  pelo  novo,  pelo diferente. 

“Tudo me atraía naquilo que era novo e diferente. O  fato, por exemplo, do meu pai ser pescador, também me marcava muito. O fato dele ser motorista também e ter comprado no  passado  um  carro,  um  caminhão,  eram  poucas  pessoas  que  tinham.  Então  eu  via também isso, ficava mexendo no carro, reproduzia... enfim...” “E quando o seu pai ia pescar? Você o acompanhava?“ “Várias vezes, sim. Eu lembro que até ajudei uma vez. Acordei quatro horas da manhã pra gente  ir  lá; vi  sair  fumaça da água... Eu  lembro que nesse momento a  traíra mordeu o dedo  dele. Nossa! Quase  decepou  o  dedo.  E  ele me  xingou  porque  era  pra  remar  pra direita  e  eu  fui  pra  esquerda.  Mas,  enfim...  a  gente  continuou...  e  foi  legal  aquele momento. Ele me deixou remar a canoa, puxar a tarrafa, ...” 

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FATO  NARRATIVA 

As  brigas  entre  o  pai  e  a mãe permaneceram na lembrança. 

“Eu acho que todos os casais brigam e os meus (pais) não foram diferentes, não. Eu me lembro de uma vez em que eu  falei pro meu pai que eu o odiava. Porque na realidade, parece que ele estava tendo um caso com outra pessoa, enfim, e eu vivenciei  isso, essa cena. Vi minha mãe preparar o terreno pra que essa mulher viesse... Porque ela comprava galinha que a minha mãe criava também. E eu  lembro que acordei com aquela gritaria toda. Minha avó gritando  ‘bate, bate mesmo!’ Na realidade a minha mãe convidou ela pra ver umas galinhas, fechou o portão do quintal, pegou uma cinta e ‘desceu a lenha’ na mulher.  E  a mulher  gritava,  e  ela  batia, minha  avó, minhas  tias,  todo mundo:  ‘é  isso mesmo’. Meu  avô:  ‘bate mesmo.’  Eu  lembro  da  figura  do meu  avô:    ‘isso,  numa  sem vergonha  pode  bater mesmo’.  E  eu  olhando  de  lá  a minha mãe  batendo...  a mulher escapa e vai embora. Aí eu descobri... Meu pai veio bravo, falou que ia embora. E por esse fato  de  ir  embora,  eu  lembro  que  eu  falei  que  odiava  ele,  não  gostava  dele,  ou  seja, sempre vou ficar do lado da minha mãe, né. Então acho que teve essa cena... é uma cena que marcou. Não só essa, várias outras.  

Depois de muito tempo eu lembro que, com dezoito anos, meu pai uma vez me chamou e falou que eu era o homem da casa a partir daquele momento e que ele  ia embora. Eu falei ‘é, está na hora do senhor parar, eu acho que chega. O senhor não tem mais idade pra isso. Essa história de homem da casa, isso não existe. O senhor é o homem da casa. Quando eu  tiver a minha casa eu  serei o homem da casa. Até então eu prefiro  ser eu, filho. Então acho que é bom o senhor parar com essas brincadeiras que já chega, né? Não tem mais idade pra isso... ficar dormindo na perua. Dormindo na outra casa. Eu acho que está  na  hora  de  repensar  isso’. Mas  foi  interessante. A  partir  de  então  acho  que  não houve mais  tantos  conflitos.  Até  hoje  eles  vivem.  E  no mesmo  instante  em  que  estão contentes, brigam de novo. E por aí vai... As cenas  familiares que me marcaram  foram essas.” 

Gostava  muito  da  natureza, especialmente dos pássaros. 

“eu gostava muito da natureza no  sentido de pássaros. Matava muito, prendia muito. Tinha hora que o meu viveiro tinha mais de cinqüenta pássaros. Eu saía à noite com uma lanterna que eu ganhei e capturava os passarinhos à noite. É uma loucura...” 

Achava  que  a  escola  não oferecia  oportunidades  para  a criação,  para  aprender.  Por causa  disso,  acredita  que  a escola o fez parar de aprender. 

“Então era brincadeira o tempo todo: brincar, paquerar, incomodar... A professora ficava doida. Cada hora era uma paixão. Agora, aprender... eu me lembro de uma vez, mas eu não  tive muita  participação  nisso,  acho  que  cheguei  na  escola  e  parei  de  inventar  as coisas... Era pra  fazer, por exemplo, uma experiência, aquelas experiências de medir o tempo,  a  velocidade,  tal,  tal.  Eu  não  via  sentido  naquilo.  Era  muito  simples  aquele negócio. E eu não tinha tempo de fazer ou não queria fazer, alguma coisa acontecia. Aí meus  colegas  fizeram,  ficou  tão  bonito  o  trabalho.  Gostei  daquilo  que  foi  feito.  E  eu aprendi a fazer, porque eu não tinha nem idéia de como pegar aquilo do papel e fazer... não tinha estímulo nenhum pra fazer. Mas depois de pronto ficava legal.” 

O  fato  de  ter  sido  criado  num lugar em que podia brincar nos espaços da redondeza, aliado à necessidade  de  criar  os próprios  brinquedos  o  fez sentir‐se  diferente  dos  colegas que encontrou em São Paulo 

“Mas  eu  era mais  solto,  nem  todos  os meninos  podiam  ir  pra  rua  brincar.  Sobravam algumas  rodas  de  algumas  pessoas mais  velhas.  Era  interessante,  eu  gostava  de  ficar próximo  dos  jovens  ou  dos  adultos,  não  gostava  de  ficar muito  com  a molecada.  Eu achava a molecada muito idiota.” 

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FATO  NARRATIVA 

A  sua  vivência  na  periferia  de Osasco  faz  com  que  pensasse em escrever sobre a  juventude dessa região violenta na década de 70/ 80. 

“Olha  foi muito bom  lembrar dessas  coisas. Eu ainda quero  fazer um  trabalho  literário mesmo...  de  pensar  o  que  foi  um  jovem  ou  vários  jovens  que morreram  ao  longo  do tempo na década de setenta, no meio da Baronesa,  lá em Osasco, na periferia, onde foi considerada a região mais violenta da cidade de São Paulo, se não foi do Estado de São Paulo. E eu vivenciei esse momento. Era bandido pra tudo quanto é lado. Quando a gente ia  jogar...  tinha uma  turma que  jogava, outra  turma que  se drogava, outra  turma que fumava... então tinha categorias diferentes de drogas. Com bandidões a gente convivia, e a gente moleque, né... Convivia com esses bandidos, com mortes. Você via  lá aquele tal de Mão Branca que mataram... e a gente freqüentava as ruas mais perigosas que tinha, como moleque. E era normal. Normal porque a gente era daquele espaço, a gente não diferenciava  de  nada.  Qualquer  pessoa  que  chegasse  lá  próximo  era  reconhecido automaticamente.” 

Atuando  como  professor  na escola sente, com pesar, que se distanciou  da  realidade  dos alunos da periferia. 

“Eu  lembro de uma vez, em 2005, chegando com o meu carro, um aluno que nem meu era, falou ‘você tem cara de rico.’ Rico? ‘Você tem cara de gente importante.’ Traduzindo: com aquilo eu me senti tão distante... e pensar que as minhas origens de pobre (isso não quer  dizer  que  eu  tenha  saído  disso,  né),  de  uma  periferia  brava,  de  conviver  com bandidos  e  tudo  o mais,  todo  um movimento  histórico,  por  outro  lado  você  está  tão distante  disso...  (...)  é  algo  que  eu  não  gostaria  de  ter  acontecido...  enfim...  as  raízes. Mas, não  tem  como. Você está distante mesmo, né. Não  tem  como. Você entra numa questão  cultural diferente. Não  tem  como  voltar uma  situação daquela e eu acho que também nem eu desejo  isso. Mas eu acho que o  fato de  ser professor, o  fato de  você voltar, de conquistar, de salvar, vamos dizer, o sentimento de salvar vidas, salvar outros, então,  pensando  hoje,  quantos  amigos meus  de  repente,  com  uma  interferência  que pudesse  ter  acontecido,  talvez  estivessem  vivos?  Pode  ser  algo  nesse  sentido.  Mas pensando  também  naquele  momento,  o  que  eu  tinha  pra  oferecer?  Nada.  Naquele momento  eu  não  seria  a  diferença.  Talvez  sim  com  a  cabeça  de  hoje,  o  que  seria impossível. Pensando no hoje... hoje  talvez eu pudesse  interferir. Acho que sim. Mas ao mesmo tempo os jovens de hoje me veem muito distante, não faço parte da vida deles. Eu sou o professor. Sou a pessoa que estou muito distante, vamos dizer assim...” 

 

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Apêndice D – Síntese esquemática da 2ª Entrevista

FATO  NARRATIVA 

Acredita que se tornou professor porque  a  mãe  e  a  tia  exerciam essa  profissão  e  pelo  fato  de admirar  a  forma  como  os professores  falavam  durante  as aulas. 

Minha mãe, por ter a quarta série, ela foi professora; minha tia também, por ter  conseguido  fazer  a  quarta  série  ela  foi  professora.  Então  da  família  já vieram alguns exemplos. 

(...) Eu ficava apaixonado pelos meus professores... e praticamente todos! Não tinha nenhum que eu chegasse e  falasse “professor eu não gosto por  isso ou por  aquilo...” Não.  Só  por  dificuldade, mas  no  geral  eu  os  admirava,  ficava assistindo eles falando. Às vezes eu acho que eu ficava mais olhando a atenção de como eles controlavam, articulavam a sala de aula e aquela parte toda do que a própria matéria em si. Eu achava legal aquelas tomadas, o chamar... foi algo que me chamou a atenção. 

Depois de algumas tentativas pra realizar  um  curso  técnico  em eletrotécnica,  resolveu  cursar  o magistério e gostou muito. 

Aí  alguém  falou:  “Olha,  na  Vila  Jaguara,  no  GEPAM,  no  A.M.,  tem  o magistério.” E eu pensei: “Não é que é interessante o magistério...”  

(...) Fui eu, minha esposa, o meu irmão até tentou, mas ele viu que não era a dele e saiu fora. Outro colega também tentou e falou: “Não, eu não vou não. Não é minha área.” Legal. Mas eu e a Solange fomos pra frente. Ela desistiu no meio do caminho, mas eu continuei, depois ela concluiu o magistério. A gente fazendo o magistério, eu ADOREI. 

Ao  ingressar  no  magistério, sentiu  a  necessidade  de  mudar algumas  atitudes,  assumindo, desde  então,  o  papel  de professor. 

Até então eu colava, eu eram um ótimo colador. Colava de todas as formas e tudo o mais, né...  E quando  eu  entrei no magistério  foi  interessante que  eu coloquei na cabeça: eu vou ser professor, então, eu vou ter que saber as coisas. A primeira coisa é: eu vou parar de colar. Esse foi um acordo que eu fiz comigo mesmo e quando eu  faço alguns acordos, não  sei, parece que  funciona. E a partir de então, fomos  lá. Notas baixas, mas vamos em frente e tudo o mais. Eu  lembro que teve uma cena em que eu estava escrevendo não sei o que na mão  que  era  pra  não  esquecer. Mas  não  era  uma  cola.  Era  algo  que  era necessário, o  link, aí chegou o professor: “colando, hein”. Nossa, eu me senti tão mal  naquele momento  que  eu  cheguei  e  falei:  “professor  eu  não  estou colando”.  “Mas  você  está  passando  na  mão.”  “Professor,  eu  não  estou colando. Vou dizer claro pra você, na realidade...” Ele falou “Sim, mas se você está colocando isso aí, concorda comigo que é algo pra colar?” Eu falei “eu até concordo,  mas  no  caso  aqui  são  três  palavras  que  eu  acho  que  sejam fundamentais  pra  eu  amarrar  e  que  não  estão  claras  ainda...esse  negócio.” Enfim, ficou ruim essa cena, eu me senti mal. E a partir de então eu nunca mais colei mesmo. Não teve interesse, me dediquei totalmente, de corpo e alma ao magistério. 

No  magistério  encontrou  uma grande  amiga  que  se  tornou como  uma  professora,  um modelo para o entrevistado. 

Encontrei também uma grande amiga  lá que era  legal. Ela me  fez ver outras coisas, principalmente me enxergar como homem naquele período. Machista que era e que sou ainda... mas ela mostrava outras coisas. Eu brinco, eu falo isso pra ela... ela foi uma outra professora pra mim naquele momento. Pessoa de bom senso, daquela que enfrentou polícia. Lá no Basilides Godói... era ela de lá, só tinha seis mulheres e ela era uma delas. Ela desistiu também porque 

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FATO  NARRATIVA 

não tinha nada a ver. Eu lembro que uma vez a gente ficou preso no salão em cima  e  a  polícia  embaixo  (a  polícia  de  choque)  querendo  bater  na  gente. Porque a gente queria mudanças na direção e a líder era ela. 

(...)  É  professora,  hoje  ela  é  doutora...é  exigente.  Só  pra  ter  uma  ideia,  eu preciso  falar  dela  só  pra  você  ter  uma  ideia  o  que  foi  essa  influencia. Uma mulher que  lia  livros, ela devorava  livros, de qualquer tipo. A gente estava no magistério, no segundo ano, ela lia livros universitários, ferozes... da ditadura, política. No terceiro ano ela desistiu e entrou na escola de sociologia e política, aqui de São Paulo. Três meses depois eu a vi e ela falou: “Não, eu vou voltar pro magistério, concluir o magistério e a universidade eu fechei porque é muito fraca pra mim”. Ela falou que discutiu com o pessoal porque o ensino era uma porcaria  e  não  chegava  nem  aos  pés  do  segundo  grau.  Aí  saiu.  Concluiu  e depois  a  gente  se  encontrou  num  outro  momento,  eu  falei  que  eu  tinha concluído e estava dando aula. Ela falou: “Ah, que legal! Eu entrei na USP.” Ela era  desse  tipo.  Então  fez  sociologia  na  USP.  Depois  de  muito  tempo  fui procurar  por  ela,  a  encontrei  e  falei:  “Então,  estou  tentando  entrar  no mestrado.”  Ela  falou:  “Que  legal, Moreira!  Eu  terminei  meu  mestrado,  na UNICAMP.” Mais pra frente encontrei com ela e falei: “Olha, consegui, entrei no mestrado, estou  concluindo...” Ela  falou:  “Que  legal, Moreira, estou  indo pra Itália pra fazer um intercâmbio pra eu terminar meu doutorado.” Enfim... a última vez que eu a encontrei que eu soube ela era professora da USP. 

(...) ela foi uma pessoa que me influenciou bastante e a partir daí eu comecei a ouvir muito. Deixei de ir pro ataque, eu acho que eu comecei a ouvir mais. 

Isis  foi  outra  pessoa  significativa para o entrevistado. 

 (...) na minha vida eu sempre tive  isso. No CEFAM foi a  Isis20. Nossa! Foi uma figuraça também 

Durante o magistério participava de  discussões  (durante  as  aulas ou  em  outros  momentos), envolvendo  a  reflexão  crítica sobre  questões  políticas  e curriculares.  Com  o  apoio  de alguns  professores  e  da  direção da  escola,  criava  (junto  com  os seus  pares)  palestras  e momentos  de  discussão  na escola. 

...tinha uma professora com oito aulas de prática de ensino, de didática, ela só trabalhava a língua portuguesa e a matemática. Isso sempre me irritou demais porque a  formação eu acredito que não  seja  só  isso. Então nosso grupo era muito mal visto por  isso. Porque nas discussões nossas, a gente achava que tinha que ter a sociologia, a psicologia,... e todas essas discussões... e o curso de magistério era muito fraco. Fraco por quê? Porque faltava a parte política dos  professores,  comprometimento  político...  desenvolver  os  alunos  na discussão mais política e o magistério ficava só na questão do “amor”...”Ah... o amor  para  com  a  criança.”  Eu  lembro  de  um  discurso  em  que  eu  falei:  “O problema nosso do mundo é que a gente  tem muito amor. Tem que acabar com isso, tem que entrar ódio pra ver se muda alguma coisa.” Ficavam só “Ai, a  criancinha... e não  sei mais o quê.”   Então eram bem assim as discussões nossas, eram ferozes. 

(...)Aí a gente criou palestras, momentos de discussão na escola,  tínhamos o apoio de alguns professores, da direção, então íamos em frente. Era legal! 

Busca  no  curso  superior  a dimensão  política,  reflexiva  e 

Eu queria buscar uma faculdade que fosse exatamente na área que faltava. Eu 

                                                            20 Nome fictício para preservar a identidade da pessoa citada pelo entrevistado.  

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FATO  NARRATIVA 

crítica  da  qual  sentiu  falta  no magistério. 

não via a alfabetização nesse momento, eu via a parte política. 

(...)  minha  intenção  era  fazer  filosofia...filosofia  ou  psicologia.  Eram  duas coisas que eu pretendia  fazer. A Maria Gonçalves entrou em  sociologia,  isso me abriu um outro campo, quando ela me falou o que era. Mas aí eu estava pendendo mais pra filosofia, era a minha influência. 

Uma  colega  o  anima  para ingressar  num  curso  superior  e outros colegas o orientam quanto à escolha do curso. 

Eu  falei  “mas  eu  não  tenho  condição  de  entrar  numa  faculdade.”  Ela  falou “tem sim, Moreira, onde já se viu...” 

(...  )  no  primeiro  ano  você  prestava  pra História, Geografia  ou  pra  Ciências Sociais – Sociologia. Eu pensei: esta aí. A Márcia Gobi falou: “Moreira, tenta o primeiro ano e qualquer coisa você pede transferência pra USP e vem estudar comigo ou alguma  coisa assim.” Aí o que aconteceu?  Juntando  tudo  isso eu prestei,  pra  Ciências  Sociais, minha opção  foi  Ciências  Sociais,  Sociologia. Aí descobri  que  quando  entrava  você  fazia  os  três  ao mesmo  tempo,  não  era claro se era isso ou aquilo. Só no final do segundo ano você fazia essa opção. Eu fui fazendo... foi tudo o que eu queria... as discussões políticas... 

O meu colega me  falou: “na  realidade é o  seguinte, Moreira, Sociologia não tem  campo  aí  fora.  É muito  difícil  conseguir  nessa  área,  aula  de  Sociologia praticamente  não  existe  no  Estado.  É  difícil,  é  raro.  História  também  não. Geografia não. Geografia tem um campo imenso. Falta professor de Geografia em tudo quanto é lugar. Isso é um fato.” Aí eu comecei a ver... será que eu vou gostar de Geografia? Então comecei a olhar os professores de Geografia e tal... e me identifiquei demais com Geografia, a partir desse olhar, com o professor Luis Fernando que era o Coordenador do Curso. Ele pregava toda a Geografia crítica, do movimento crítico no geral que estava passando na década de 70, década de 80, e a Geografia não ficou foram também. Uma Geografia crítica que abandonasse de certa forma as questões e as discussões, vamos dizer aí, da  memorização  e  cartografar  os  aspectos  naturais  e  tudo  mais,  do determinismo  e  etc,  etc. Aí  foi uma  visão mais ampla que  tivesse o homem como  sujeito  transformador dessa natureza, dos  espaços,  como alguém que faz política. Era essa a Geografia e eu adorei o curso de Geografia... ao longo... maravilhoso. 

 

Começou a dar aula em 1991 na escola em que foi aluno. 

Então eu fui dar aula na escola na qual eu fui aluno, eu fui fundador  lá como aluno. Na quarta série primária  eu fui pra lá. A escola foi fundada e nós fomos transferidos de uma escola pra lá. No quarto ano eu fui pra lá. E eu voltei pra essa escola... muito  legal... com raízes fortes  lá...enfim... me realizei. Dei aula lá em 91, 92, 93 e 94. 

Em 1995 resolve trabalhar com a formação de professores e envia a  sua  proposta  para  o  CEFAM, onde  permaneceu  até  o  ano 

...montei minha proposta de novo,  fui  lá no CEFAM e  falei: “gente, e aqui no magistério, está precisando de professor?” 

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2000.  (...) Aí marcamos a entrevista. Foi uma sabatina, uma coisa que eu nunca tinha passado. Entrei na sala da coordenação e tinha acho que dez professores e eu pra apresentar a minha proposta. 

Aí me aceitaram e  fui pro CEFAM. Aí era  tudo o que eu queria. Trabalhei no magistério,  mas  o  meu  olhar  foi  pro  CEFAM.  A  Isis  tem  uma  fala  muito interessante. Ela  fala que o CEFAM  foi uma  segunda  faculdade pra ela e eu também me  coloco  nessa  fala  dela,  roubo  essa  frase...  lá  eu  aprendi mais, aprendi  a  trabalhar  em  grupo,  aprendi  a  trabalhar  com  o  outro,  a  aceitar algumas coisas, principalmente a rever as minhas práticas... aquelas práticas que eu achava bonitas, considerava maravilhosas não serviam pra nada dentro de um processo de construção do conhecimento. 

Constitui  suas  amizades  numa relação de sinceridade, ainda que tal postura cause um desconforto em alguns momentos. Como cita Isis: 

“Olha, Moreira, o que mudou a minha visão sobre você foi exatamente a sua sinceridade naquele momento por você ter falado isso.” 

No  CEFAM  atuava  em  parceria com outras duas colegas. 

E a gente tinha um trio muito legal, vamos dizer assim, (...) se eu topasse e eles topassem a gente sabia que o barco  ia. Então os três se encontravam nesses momentos, nessas loucuras, nas ideias. 

Foi convidado a participar de um grupo de estudos na USP. 

“olha, Moreira, vai  ter um encontro assim, assim... a USP vai vir  tal,  tal. E a gente  está  convidando  alguns  professores,  você  não  quer  participar?”  Eu estranhei aquilo, né... mas vamos lá, vamos ver que bicho dá. A partir de então o  barco  rolou.  Começamos  a  fazer  trabalhos  práticos,  iniciação  científica, qualificação  do  ensino  público,  formação  de  professores,  enfim,  todo  um processo lá com a USP durante quatro anos...cinco! Foi um ano pra arrumar o projeto e quatro anos  como bolsista. E aí, nossa...  isso  foi usado pra muitas coisas: mudava‐se as práticas, voltava e analisávamos essa prática, voltava à sala de aula, escrevia  sobre,  relatório pra FAPESP,  relatório pra USP,  líamos, buscávamos  literatura,  foi  todo  um  processo,  uma  escola  de  aprendizagem mesmo; os alunos estavam no meio... a mesma  coisa que os professores da USP tentavam fazer com a gente de sermos  investigativos, pesquisadores... a gente também fazia  isso com os alunos, ao mesmo tempo... então tinha todo um movimento e foi muito legal. 

No ano 2000 passa a lecionar em uma  escola  de  Ensino  Médio onde encontra uma Coordenação com práticas diferentes daquelas que  Moreira  acreditava  e defendia. Não havia espaço para dialogar  na  escola  e  fica decepcionado  com  o  fato  dos alunos não serem ouvidos. 

Chegando  lá,  foi uma  loucura, um desencontro,  tudo contrário àquilo que eu pregava existia. Uma coordenação largada, uma direção nem aí com as coisas. 

(...)A gente vinha de um momento muito crítico, por ter passado por processos diversos, contínuo o processo, de  repente a gente entrou num  retrocesso  tão grande.  Com  professores  a  gente  não  tinha  como  conversar,  com  aluno também não. 

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(...)Chutavam a porta “Pá!”. Diziam palavrões. Eu chegava e dizia: “Pô, meu! O que é  isso? Quebrando a porta?” “Ô professor, não é com o senhor não. Fica tranquilo aí na sua. E com aquela p... daquela professora. Eu vou arrancar os cabelos  dela.”  Então  era  feio  o  negócio.  Era  um  ambiente  que  não  ouvia  o aluno, não respeitava, como diziam eles, chegava  lá a  lousa  já estava cheia e eles tinham que copiar, terminar e no outro dia novamente... todos os dias era só copiar. Então eles estouravam nas nossas aulas que eram aulas em que a gente conversava, dialogava, tal, tal, tal. 

Quando  resolve  participar  da seleção  para  Professor Coordenador  enfrenta  alguns entraves no processo. 

surgiu a  ideia, no período de prestar a provinha pra Coordenador, eu prestei. Passei, fui habilitado e resolvi mandar algumas propostas pra algumas escolas. Passei por algumas escolas que não  foi aceita a proposta. Algumas delas  já estava  formalizado  quem  já  seria  o  Coordenador.  Em  alguns  casos,  alguns colegas  chegavam  e  falavam:  “olha,  Moreira,  você  está  apresentando  a proposta, mas  já  fique  ciente de que a diretora  já  falou pra gente votar em fulano.”  “Ah,  tudo bem. Não  tem problema não, mas eu apresento a minha proposta.” Aí eu apresentava a minha proposta. Olha a  ideia é essa, assim e assado,  tal,  tal,  venho  lá  do  CEFAM  do  curso  de  formação,  acho  que  posso contribuir muito  com  vocês,  já  fiz  isso  e  isso,  tal,  tal,  tal.  Você  via  que  os professores se  interessavam e outros que me conheciam baixavam a cabeça, como se dissessem “eu não quero nem ouvir porque...” Aí, no final, a direção “é, Moreira, venho te dar o retorno... Eu dizia “sem problema”. E ela “então, a gente votou numa pessoa que já era da casa e tal.” E eu: “não tem problema nenhum. Fica pra próxima. Poderia devolver a minha proposta?” “Ah é que a gente  adorou  a  sua  proposta,  então  se  pudesse  ficar  aqui...  até  a Coordenadora comentou assim...” Eu falei: “Então mas, eu desejo ficar com a minha proposta. Ela não foi aceita né, então...não dá certo.” 

Valorizava a proposta de trabalho para  a  Coordenação  Pedagógica que  apresentava  nas  escolas porque  continha  ideias  que surgiram  da  sua  experiência  e acreditava que era passível de ser realizada,  além  de  possuir  uma boa fundamentação teórica.  

Proposta  bonitinha,  organizada,  dentro  dos  ideais  do  que  a  universidade,  a USP, pregava, com os autores que estavam na crista da onda e com propostas possíveis  porque  era  de  um momento  que  eu  visualizei,  eu  vivi,  eu  vivenciei aquilo, portanto, aquilo que estava lá era possível. 

Quando  sua  proposta  foi  aceita, alegra‐se  com o  fato de  ter  sido bem  avaliada  por  um  professor bem conceituado. 

Quanto  à  sua  proposta  eu  achei  ótima.  Excelente.”  O  homem  fez  filosofia, teologia, então, e ele foi meu mestre também me ensinando como fazer uma dissertação de mestrado. E ele me queria, olha que bom! (risos) 

Considera que resolveu tornar‐se Professor Coordenador por causa da  decepção  que  teve  na  escola em  que  os  alunos  não  eram ouvidos e não havia diálogo entre os professores. 

Enfim, minha Coordenação chegou aí. Ela foi fruto de uma decepção com uma escola, vamos dizer assim. 

(...) E o que eu pensei foi: eu acho que sou muito mais útil numa coordenação do que numa sala de aula nesse momento. Eu pensei: em sala de aula eu acho que  qualquer  um  vai  fazer  a mesma  coisa,  tomar  conta  de  criança.  Dá  na mesma,  ou  cuidar  de  adolescente.  Eu  posso  até  acrescentar  alguma  coisa, como um outro professor também pode acrescentar muito mais. Então eu vou 

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pra coordenação e se eu não gostar eu volto.

No  início  da  sua  atuação  como Professor Coordenador  esclarece seu  propósito  de  trabalho, focando  na  formação  de Professores. 

Eu lembro que numa primeira reunião lá eu falei: “gente, eu fico feliz por vocês terem  lido a minha proposta de coordenação...” E o pessoal: haha... Moreira, quem que leu? A gente ficou sabendo na hora.”  Eu falei: “então eu gostaria de ler  a minha  proposta  com  vocês.  Eu  quero  deixar  claro  o  trabalho  que  eu pretendo. Até pra que vocês me avaliem sobre essa questão.” Aí o vice‐diretor falou: “não, não tem avaliação sua”. Eu  falei: “mas eu gostaria. Eu venho de um  ambiente  que  tem  avaliação  no  final  do  ano  e  a  gente  avalia  a permanência  ou  não.  E  eu  gostaria  sim  que  tivesse  no  final  do  ano.”  E  eu sempre  fiz.  Todo  ano  eu  fazia  uma  avaliação  do meu  trabalho,  do que  eles achavam, do que poderia acrescentar se eu fosse ficar. Nos cinco anos que eu fiquei lá eu fiz essa parte. Então eu deixei claro e falei: “a ideia é trabalhar com a  formação  com  vocês. A gente  vai  trabalhar um monte de  formas  em que vocês podem pensar sobre as práticas, que vocês venham trazer aquelas suas idéias da  sala de aula pra que a gente possa discutir aqui,  vendo no grupo, aqui no coletivo, qual seria a melhor saída pra isso. Porque o seu problema é o problema dos outros. Então, numa  cultura mesmo de  formação. A gente vai trabalhar para que o HTPC seja o que é: a formação do professor que vocês são aqui.” 

Na  Coordenação  estabelece novas  parcerias  e  configura  um novo grupo. 

E aí eu tinha os aliados. (...) A maioria era maravilhosa. Tinha um meio‐termo mas,  enfim...  a  gente  ia  conciliando  isso. O  grupo  era  aquele  com  quem  a gente conseguia fazer as atividades. E o que acontecia no HTPC, acontecia na sala, de uma forma ou de outra, e a gente valorizava. Ou então um professor dizia: “o fulano não está fazendo nada disso!” Aí você chegava: “ Oi, Fulando, como é que  você está  fazendo o  seu  trabalho?”  “Ah... a gente está  fazendo aqui... mas não comecei ainda, Moreira... não me senti à vontade.” Eu falava: “então faça na hora em que você se sentir à vontade.” “Ah, tá bom. Amanhã eu acho que faço... Mas você me ajuda?”   “Ajudo! Vamos  lá.” A gente  ia  lá e desencadeava  e mostrava:  “olha,  professor,  o  que  o  senhor  está  fazendo  é isso... e se fizesse isso...” Enfim... 

Como  Coordenador  apóia  o trabalho  dos  professores  e aponta caminhos 

E o que acontecia no HTPC, acontecia na sala, de uma forma ou de outra, e a gente  valorizava. Ou  então  um  professor  dizia:  “o  fulano  não  está  fazendo nada disso!” Aí você chegava: “ Oi, Fulando, como é que você está fazendo o seu  trabalho?”  “Ah...  a  gente  está  fazendo  aqui... mas  não  comecei  ainda, Moreira... não me  senti à  vontade.” Eu  falava:  “então  faça na hora em que você se sentir à vontade.” “Ah, tá bom. Amanhã eu acho que faço... Mas você me  ajuda?”    “Ajudo! Vamos  lá.” A  gente  ia  lá  e  desencadeava  e mostrava: “olha, professor, o que o senhor está fazendo é isso... e se fizesse isso...” 

Sua  trajetória  de  atuação profissional  está  centrada  no trabalho com o Ciclo  I – 1º ao 5º ano (1ª a 4ª série). 

Eu acho que no meu percurso está tudo direcionado à 1ª a 4ª séries. Pra ciclo II eu não apresentei proposta. No Z. tinha ciclo II, mas tinha ciclo I também. E o que eu estava buscando era escola de 1ª a 4ª série. Era o que eu dominava, vamos dizer assim. Ciclo II e Ensino Médio têm outras pessoas que dominam de outra forma. A alfabetização eu acho que... o professor alfabetizador ainda era e é o meu foco ainda hoje. 

 

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Preocupa‐se com os registros das reuniões  porque  os  considera importante  para  o  trabalho  de formação com professores. 

E  eu  tinha  algumas  preocupações  na  Coordenação.  Uma  delas  é:  registrar tudo. 

(...)  A  gente  estava  sempre  num  processo  crescente.  Tudo  direcionado  à formação, os  textos amarrados para a discussão, significar as datas cívicas... então, a gente nem discutia  isso. Era uma prática dos professores mesmo e a gente continuava dentro de um processo pra construção de um coletivo, tornar as decisões mais democráticas,... muito Paulo Freire por aí. 

De  modo  coletivo,  refletiam sobre as necessidades da escola e mudavam  as  práticas  para potencializar  o  aprendizado  dos alunos. 

A gente foi pensar a sala de aula, a disposição delas e o que precisava fazer... Chegamos a discutir a grade  curricular, mudamos... demos quatro aulas pra História,  quatro  aulas  pra Geografia,  quatro  aulas  pra Arte... mudamos  um monte de coisa. Mudamos a aula de Língua Portuguesa, dividimos a aula de Português em aula de biblioteca, de leitura, de laboratório disso e daquilo, os professores  começaram  a  trabalhar  entre  eles.  Um  pegava  a  parte  de matemática  porque  dominava  mais,  o  outro  pegava  a  parte  de  Língua Portuguesa  e  virou  o  “satanás”  naquela  escola,  uma  bagunça...  e  tudo registrado, bonitinho. Sala de vídeo: tinha lá um horário. A aula do professor é tal dia e a sala de vídeo é dele. Mesmo que ele não  fosse usar, o espaço era dele. Se ele não  fosse usar e quisesse usar  com outro professor... que  fosse! Mas era pra dar uma vez por semana um vídeo para o aluno.  E tinha que levar pra  sala  de  leitura  também...  e  estava  lá:  Sala  de  Leitura...  Então  foi  uma loucura mas é muito legal isso aí. Discutíamos isso e tantas outras coisas... 

Quando  precisou  deixar  a Coordenação,  preparou  os professores para  receber o novo profissional  e  até  auxiliou  na seleção  das  propostas  que  eram entregues na escola. 

É  isso! Eu quero deixar a minha passagem e que o outro  faça a sua história também.”  Tanto  é  que,  pra  receber  as  propostas  dos  outros  professores, mesmo  eu  não  estando  lá,  eu  que  recebia  as  propostas  dos  Professores Coordenadores.”  Eles diziam:  “Eu  vim aqui deixar a minha proposta...”  E  eu dizia: “Legal! Você vai entrar no meu  lugar.” E eles: “ai, meu Deus, você está aqui, puxa...” Eu  falava:  “Não! Eu  já  saí  faz uma  semana. Só estou aqui pra acertar pra você entrar ou um outro entrar.” 

Considera  que  o  grande  desafio da  Coordenação  Pedagógica  é não  perder  o  foco  do  seu trabalho  e  assessorar  a  equipe docente  dando‐lhe  condições para uma atuação fundamentada na reflexão, na crítica, na análise, na possibilidade de mudança. 

Eu acho que o desafio foi significar um trabalho realmente como Coordenador que o Coordenador fosse um Coordenador mesmo, um Professor Coordenador. Que ficasse a história dos professores. O Coordenador poderia aparecer, mas não ser o foco. O grupo de professores tinha que se ver dentro desse processo, que  eles  estivessem  refletindo  sobre  as  suas  práticas  constantemente, revendo‐as, buscando parcerias com os colegas, amarrando essas coisas, que revissem  o  seu  currículo  e  entendessem  o  que  estava  atrapalhando,  porque que era aquelas “caixinhas” e buscar saídas 

Apresentava  suas  propostas  de formação à direção e, a partir da discussão  que  havia,  fazia  as alterações  necessárias  na  pauta de  formação,  o  que  gerava  uma relação  de  confiança  entre Coordenação e Direção. 

Depois  que  eu  tivesse  aquela  ideia  aí  eu  ia  lá  e  conversava,  como  se  não quisesse  nada,  com  a  direção.  “Olha,  no  HTPC  eu  estava  pensando  nisso... porque a gente viu  isso e eu estava pensado assim.” Aí a direção dava uma ideia: “Legal, Moreira, é  isso mesmo e  tal. Mas, e  se você  fizesse  isso? Você está considerando isso?” Essa era a primeira conversa que clareava muito e te dava  força. Uma  outra  coisa  era  deixar  sempre  a  direção  ciente  do  que  eu estava  fazendo  ou  acontecendo  naquele  movimento  doido,  maluco.  E  ele sempre sentiu muita firmeza naquilo que eu estava fazendo, segurança. 

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FATO  NARRATIVA 

(...)  E  quando  eu  ia  conversar,  ela  dizia:  “Moreira,  você  toma  cuidado  com isso... Da outra vez você falou  isso e nós entendemos aquilo. Não ficou claro. Então eu acho que deveria investir nisso.” E eu: “é mesmo?” “É. Está faltando isso.” Então a gente organizava  lá até que ela  falava:  “perfeito.” Depois, no final,  quando  estava  pronto  e  eu  mostrava  ela  falava:  “Beleza!”  Mas  ela falava: “L I N D O !” (risos) “Maravilhoso. Mas eu quero participar do HTPC. Me chama.” E ela ia e participava como professora. 

(...)  Tanto  é  que  quando  eu  não  estava  lá  ela  respondia  com  a  maior tranqüilidade sobre a Coordenação e o que estava acontecendo...”sobre mais coisas eu pergunto pro Moreira. Se precisar confirmar eu confirmo... quer que eu assine agora por ele?” 

Houve um momento em que uma professora  foi  indicada  pelo grupo  para  assumir  a  direção  e, apesar  de  resistir  à  proposta inicialmente,  acabou  aceitando porque  confiava  no  trabalho daquele grupo. 

...a  gente  conseguiu  convencer  uma  professora  para  ser  diretora.  E  ela  não queria. Aí  eu  e  o Wanderlei  e  outros  professores  sustentamos  a  ideia  e  ela falou: “eu vou por causa de vocês. Se vocês me abandonarem eu estou fora.” E ela era muito pedagógica. Nossa! Uma excelente professora. 

A pauta da  reunião de  formação era  construída  com  a participação dos professores. 

... eu chamava sempre um professor, dois professores... ou ia na sala e falava: “olha, eu estou pensando nisso... assim...” Às vezes ia contra, um a favor... os aliados, os inimigos... então a pauta era sempre construída por todos. Essa era uma rotina diária que tinha. 

(...) eu ficava matutando, arquitetando, escavando coisas... eu conversava com o professor aqui e ali. Queria ver o que estava dando  certo:  “e aí? E aquela atividade? Como é que ficou?” “Ih... Moreira, não deu certo não.” “Por quê?” “Ah...  o  aluno  aqui....  não  sei mais  o  quê...  e  eu  tenho  que  decidir  outras coisas.” E era esse o movimento. O movimento era disso:  conversar  sobre o trabalho que a gente estava desenvolvendo, sobre o HTPC que ia acontecer e o que ia desencadear a partir disso. 

Em  alguns  momentos  houve  a necessidade  do  grupo  de utilizar o  espaço  da  formação  para outros  fins  (mais  burocráticos), mas  isso não  se  constituiu numa rotina. 

Tinha aquelas vezes em que o professor falava: “Moreira, a gente está sentido tanto  a  falta  daquele  momento  que  a  gente  possa  corrigir  um  monte  de prova...” E eu dizia: “então o HTPC hoje é só para a correção de prova porque vocês estão precisando de ajuda.” Mas  isso era muito  raro. Na  realidade, os professores não tinham coragem de pedir isso. 

Procura,  entre  a  sua  equipe  de professores,  romper  com  a  ideia de  um  Coordenador  autoritário, buscando estabecer uma  relação de  parceria,  inclusive  com  os professores  novos  que ingressavam no grupo. 

Aí  eles  passavam  pelo  corredor  e  tinha  alguns  professores  que  não  me conheciam e diziam: “Quietos. Silêncio.” E corriam: “Com  licença, professora. Eu vi a senhora correndo ali da sala da professora. Está tudo bem?” “Não... é que eu fui só conversar porque eu estava com uma dúvida aqui.” E eu falava: “Que  bom!  A  gente  valoriza  isso.  O  professor  estar  conversando  com  o parceiro, com aquele que mais gosta,... pra acertar do  trabalho, ver como é, tal,tal. E às vezes também dar uma fofocadinha também funciona. Porque às vezes o aluno deixa a gente tão doido, né?” “Ah... é mesmo, Moreira!” “Então, isso faz parte. Aí dessa conversa com o colega, logo mais vocês estão em cinco, sete conversando e discutindo o que é melhor para os alunos.” Era muito legal dessa forma brincalhona, como eu sou e tal. A gente se divertia... era legal. Eu 

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FATO  NARRATIVA 

me divertia todos os dias... dava risadas... e eles também. Isso era legal.

Buscava nos parceiros, aos quais se refere como aliados, um ponto de apoio para o desenvolvimento do seu trabalho. 

Às  vezes  a  gente  forçava  alguma  coisa.  Chegava  com  alguma  ideia  que  eu acreditava que tinha que acontecer. Os professores ficavam meio assim, aí eu ia nos aliados. E ouvia: “Ah, Moreira, não dá.  Isso vai dar muito trabalho pra mim e não sei mais o que.” 

Para  realizar  um  trabalho  de formação  mais  intenso,  houve momentos  em  que  Moreira chegou  a  fechar  a  escola  para esse fim. 

Em outros momentos a gente fechava a escola mesmo pra ter formação. E às vezes essa formação tinha que ser em outro lugar e a gente fazia isso. O turno da manhã segurava e a turma da tarde ia pra formação em outro local. Ia pro cinema,  ia pra onde quer que  fosse. No outro momento  invertia. Em alguns momentos a gente fechava mesmo a escola, literalmente. 

Valorizava  a  saída  do  espaço escolar  com  os  professores. Entretanto,  incentivava‐os  a buscar  a  informação autonomamemte  e  montar  o roteiro  ou  a  atividade  de  forma coletiva. 

“Bem,  vamos montar,  gente.  Primeira  coisa:  que  dias  que  a  gente  tem  que fazer mesmo  isso pra não pagar?” “Tal dia.” “Legal. Ônibus?” “Opa,  tem um ônibus ali... eu  tenho o  telefone e  já  conversei. É gente boa. Porque a outra empresa não funcionou.” Então, cada um tinha uma  informação. Outro dizia: “olha, não é bom ir pra lá, não. Além de não ter muita coisa fiica um pessoal lá meio estranho... é bom as crianças não irem pra lá.” Então... segurança. Item segurança  tal,  tal.  Quando  você  via  estava  montado.  Você  não  precisava montar.  As  pessoas  conheciam  o  local,  sabiam  o  que  fazer  e  chagavam  lá seguros daquilo que iam fazer. Esse era um item de formação. Bom... era isso. 

No  trabalho  coletivo  havia também  os  momentos  de conflito,  especialmente  quando havia  a  necessidade  de  mudar uma  prática  em  que  os professores sentiam‐se seguros. 

Tinha os momentos de conflito também. Às vezes algumas idéias, mas isso por quê? Porque não estava claro pra eles... significava mudar aquilo que estava muito seguro neles... Então a  ideia era: “vamos fazer aos poucos, não é  isso? Sentindo  segurança  vamos  fazer!  Certo,  professor?”  “Ah,  bom.  Então,  tudo bem.” 

(...)era uma aula  só de cópias,  só de cópias... Mas aí... como chegar e dizer: “professora,  a  senhora  não  dê  mais  cópia  pro  aluno”?  Você  via  que  a professora  já  tinha  vinte anos de  carreira...  ela não  sabia  fazer outra  coisa. Você não  tem  força pra  isso. Quando você via uma melhora, um espaço pra conversar... sugeria: “olha, professora,  tem essa atividade...  faça assim...  tal, tal.”  E  ia mudando,  de  vez  em  quando,  alguma  coisa.  Porque  se  fosse  de frente... moral da história: não teria aquela pessoa com você, nem dentro das idéias,  nem  dentro  dos  projetos...  Então,  algumas  pessoas  só  passavam,  só passavam... como estão passando pela vida também. Só vão passar pela vida, vão morrer e vão embora. Agora, outros ousavam, iam além... você dava uma ideia... você virava a cabeça deles e eles odiavam aquela ideia que servia como exemplo para um outro momento. Eles sempre estava sendo  representativos ali. 

Costumava  lembrar  ao professor que  o  foco  do  seu  trabalho  é  o aluno. Desse modo, as decisões a serem  tomadas  não  devem privilegiar  o  bem‐estar  do professor,  mas  o  quanto contruibuirá  para  o  aprendizado 

Aí o outro: “o ideal seria...” E eu: “o ideal não...vamos com calma. Nós temos que pensar nos nossos alunos. Nós já vimos que se o aluno sair da sala ele se estica,  não  fica  todo  o  tempo  sentadinho...  ele  se  move,  ele  tem  outro ambiente... ele vê a classe da professora que é bonita,  toda ambientalizada, um  espaço  de  formação  pra  ele...  vai  ter  atlas  e  tal,  tal,  tal.  Não  vamos esquecer  isso: como a gente fez pra chegar até aqui. Não foi por acaso, né?” 

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FATO  NARRATIVA 

do aluno.  Bom... foi isso.

Acredita  que  o  trabalho  do Coordenador  é  colocar  o professores  como  protagonista da sua formação. 

Então, a figura do Coordenador se diluía. Ela aparecia como figura, no sentido de  Coordenação  e  se  diluía  dentro  do  trabalho  do  professor,  porque  o  que aparecia era o trabalho dos professores. 

 

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Apêndice E – Sistematização dos dados da narrativa e da teoria

Fato da narrativa identificado  na 1ª entrevista 

Identificação do outro, outros 

ou outro íntimo 

Implicação na atuação profissional identificada na 2ª entrevista 

Aspecto predominante da teoria 

Não  havia  brinquedos industrializados  na  região.  As crianças  construíam  seus próprios  brinquedos  (a  partir  de argila,  pedaços  de  madeira  e sucatas  encontradas), reproduzindo  as  manifestações culturais  da  região:  bumba‐meu‐boi, os caretas,... A barragem era um  lugar  de  diversão  para  as crianças da redondeza. 

Adultos  que realizavam  os festejos (manifestações culturais  da região). 

Durante  o  magistério  participava de discussões  (durante as aulas ou em outros momentos), envolvendo a  reflexão  crítica  sobre  questões políticas  e  curriculares.  Com  o apoio  de  alguns  professores  e  da direção  da  escola,  criava  (junto com  os  seus  pares)  palestras  e momentos de discussão na escola. 

As  brincadeiras  da infância  são permeadas de  referências  obtidas no meio em que  viveu, ou  seja,  no  vilarejo  do Sul do Estado do Ceará. 

Estudou  numa  classe multisseriada em que os castigos físicos  eram  frequentes, portanto, não gostava da escola. 

Professores que adotavam  a prática  de castigos  físicos e  atitudes  que humilhavam  o aluno. 

Costumava  lembrar  ao  professor que  o  foco  do  seu  trabalho  é  o aluno.  Desse modo,  as  decisões  a serem  tomadas  não  deviam privilegiar  o  bem‐estar  do professor, mas o quanto poderiam contruibuir  para  o  aprendizado do aluno. 

Afetividade:  presença de  atitude  agressiva que  gera  sensação  de desprazer  e desconforto. 

Desde  pequeno,  gostava  de observar as pessoas em trabalhos artesanais, como na confecção de brinquedos e utensílios em geral. Observava  as  pessoas confeccionando  alguma  coisa  e as imitava. 

Artesãos  e pessoas  da região  em  que morava. 

Admirava  a  forma  como  os professores  falavam  durante  as aulas. Até hoje traz isso consigo: se observar  alguém  fazendo  algo, consegue  reproduzir  de  modo parecido. Chama  isso de  “imitação para  a  criação”.  É  o  caso  do “barraco”  (moradia)  que  construiu na  escola  para  que  os  alunos entendessem um pouco mais sobre moradia  e  os  professores percebessem  que  é  possível despertar  o  interesse  dos  alunos com criações como esta. 

Presença  do  conceito de outros. 

Havia uma pessoa, em especial, a quem  Moreira  gostava  de observar:  um  jovem  que  fazia reproduções  artesanais  “com perfeição“. 

Jovem artesão.  Sempre  observou  pessoas  que admirava  profissionalmente  e, sendo possível, as consultava antes de decidir algo  (é o  caso de Maria Gonçalves, Isis e Wanderlei). 

 

Presença  do  conceito de outro. 

Gostava de brincar à noite podia admirar  a  claridade  da  lua,  das estrelas....  Também  gostava  da noite  porque  apreciava  quando os adultos reuniam‐se pra contar histórias, havia  roda,  cantigas de roda... 

Os  adultos  que contavam histórias  e ensinavam cantigas  de roda.  

Sabia ouvir as pessoas. É o caso do curso  de  Geografia  com  o  qual identificou‐se:  apreciava  ouvir  um professor  em  especial,  Luciano Moreira,  que  defendia  uma Geografia  crítica,  entendendo  o homem  como  sujeito  político  e 

Presença  do  conceito de outros e importância dos  aspectos  presentes no meio em que vivia. 

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Fato da narrativa identificado  na 1ª entrevista 

Identificação do outro, outros 

ou outro íntimo 

Implicação na atuação profissional identificada na 2ª entrevista 

Aspecto predominante da teoria 

transformador do seu espaço.

Andando  pelo  vilarejo  à  noite (onde  não  havia  iluminação elétrica), as crianças gostavam de acompanhar  um  senhor  que contava histórias de assombração e  os  ameaçava  com  fatos  da história  contada estrategicamente para mantê‐los unidos  durante  o  trajeto percorrido. 

Morador  do vilarejo  que contava histórias para as crianças. 

Interfere  estrategicamente  nas decisões  que  acredita  que  devem ser  tomadas  pela  equipe  de professores,  “escondendo”  o  que sabe  para  que  os  professores possam  mobilizar‐se  na  procura autônoma  das  informações necessárias. 

Presença  do  conceito de outro. 

Não  destaca  com  clareza  uma brincadeira  da  infância, afirmando que brincavam a  todo momento. 

Brincadeiras da infância. 

Apresenta  dificuldade  para descrever  um  dia  típico  na  rotina de um Professor Coordenador. 

Impossibilidade  de destacar um fato do seu meio,  do  seu  contexto histórico. 

Para  que  parasse  de  apanhar para  ir  à  escola,  propõe  um acordo  para  a  mãe  e  decide cumpri‐lo. 

A mãe.  Ao ingressar no magistério sentiu a necessidade  de  mudar  algumas atitudes para assumir, desde então, o  papel  de  professor.  Para  tanto, faz um acordo consigo mesmo, pois acredita  que  os  acordos  que  faz consigo mesmo dão certo. 

Presença  do  conceito de  outro  (a mãe)  e  de outro  íntimo  (quando propõe‐se a  cumprir os acordos  que estabelece). 

Gostava  de  observar  o marceneiro  transformar  a matéria bruta em utensílios. 

Marceneiro.  Considera  que  resolveu  tornar‐se Professor  Coordenador  por  causa da decepção que teve na escola em que os alunos não eram ouvidos e não  havia  diálogo  entre  os professores.  Acreditava  que poderia transformar uma realidade por  meio  da  sua  atuação  junto  a uma equipe. 

Presença  do  conceito de outro. 

Não  considera  que  somente  as pessoas o marcaram na  infância. Acredita  que  todo  o  contexto daquele  momento  é  que  foi significativo. 

As pessoas  e  as situações vividas  no  seu entorno,  ou seja,  no  meio em que vivieu. 

Acredita que não há um desafio na Coordenação Pedagógica, mas que toda  a  sua  atuação  foi  repleta  de desafios. 

Importância  dos  outros e do meio. 

Gostava de acompanhar o pai no trabalho  e  poder  auxiliá‐lo, aprender  com ele, pois  sentia‐se atraído pelo novo, pelo diferente. 

O pai.  Aceita  os  desafios  que  lhe  são impostos  na  vida  profissional, buscando  uma  solução  criativa junto com o seu grupo de trabalho. 

Presença  do  conceito de outro. 

Gostava  muito  da  natureza, especialmente dos pássaros. 

A natureza e os pássaros. 

Cursou Geografia.  Importância  do  meio nas decisões tomadas. 

Conflitos  entre  o  pai  e  mãe  O  pai  e  os  Posiciona‐se  frente  aos  desafios  Presença  do  conceito 

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Fato da narrativa identificado  na 1ª entrevista 

Identificação do outro, outros 

ou outro íntimo 

Implicação na atuação profissional identificada na 2ª entrevista 

Aspecto predominante da teoria 

fizeram  com  que  Moreira  se posicionasse frente ao pai. 

conflitos vivenciados  em casa. 

profissionais,  como  é  o  caso  da situação  encontrada  na  escola  em que vai atuar como Professor, onde os princípios estabelecidos são bem diferentes  daqueles  que  Moreira acreditava e defendia e o mobilizou para  atuar  como  Professor Coordenador,  acreditando  que seria  possível  contribuir  para mudar realidades como aquela. 

de outro e outro íntimo.

Achava que a escola não oferecia oportunidades  para  a  criação, para  aprender.  Por  causa  disso, acredita que a escola o  fez parar de aprender. 

A escola.  No  ano  2000  passa  a  lecionar  em uma escola de Ensino Médio onde encontra  uma  Coordenação  com práticas  diferentes  daquelas  que acreditava  e  defendia.  Não  havia espaço  para  dialogar  na  escola  e Moreira  fica  decepcionado  com  o fato dos alunos não serem ouvidos. 

Presença  do  conceito de  afetividade,  onde  a situação  vivenciada mobiliza‐o  a  partir  do desconforto causado. 

Quando  chegou  em  São  Paulo gostva  mais  de  ficar  com  os jovens  e  com  os  adultos  do  que com os colegas da sua idade.  

Os  jovens  e  os adultos. 

Na  atuação  como  Coordenador Pedagógico  estabelece  novas parcerias  e  configura  um  novo grupo com os “aliados”. 

Presença  do  conceito de  outros,  de  grupo  e de meio.