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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós Graduação em Direito Lutiana Valadares Fernandes Barbosa ALICERCES PARA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: reflexões sobre democracia pragmatista e pedagogia crítica Belo Horizonte 2017

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós Graduação em Direito

Lutiana Valadares Fernandes Barbosa

ALICERCES PARA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: reflexões sobre democracia pragmatista e pedagogia crítica

Belo Horizonte

2017

Lutiana Valadares Fernandes Barbosa

ALICERCES PARA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: reflexões sobre democracia pragmatista e pedagogia crítica

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Orientador: Prof Dr. Lucas de Alvarenga Gontijo Área de Concentração: Teoria do Direito

Belo Horizonte

2017

Lutiana Valadares Fernandes Barbosa

ALICERCES PARA A EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: reflexões sobre

democracia pragmatista e pedagogia crítica

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito.

Área de Concentração: Teoria do Direito

___________________________________________________________________

Prof. Dr. Lucas de Alvarenga Gontijo – PUC Minas (Orientador)

____________________________________________________________________

Prof. Dr. Adalberto Antônio Batista Arcelo – PUC Minas (Banca Examinadora)

___________________________________________________________________

Prof. Dr. Fernando José Armando Ribeiro – PUC Minas (Banca Examinadora)

___________________________________________________________________

Profa. Dra. Miracy Barbosa de Sousa Gustin – UFMG (Banca Examinadora)

Belo Horizonte, 13 de fevereiro de 2017.

Ao Fred por ser companheiro nos meus sonhos mais ousados e aos meus pais

por incentivarem incondicionalmente a educação.

AGRADECIMENTOS

Ao professor Lucas de Alvarenga Gontijo pelos conselhos, tempo, dedicação e pelo exemplo

de quem une teoria à prática na luta pelos direitos humanos.

Aos colegas e Professores da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,

especialmente, à amiga Laura Oliveira.

Ao Professor James S. Liebman pelas inesquecíveis lições de reforma educacional e pela

oportunidade de experimentar o aprendizado evolutivo na teoria e na prática

Aos queridos amigos de Columbia, pelo frutífero tempo que compartilhamos. Em especial, à

Carol e à Lari, pelo companheirismo, amizade risadas e pelas longas conversas sobre

educação.

Aos amigos e colegas Defensores Públicos Federais, e, em especial, aos colegas que me

inspiram na luta pelos Direitos Humanos Diego de Oliveira Silva, Ana Luiza Zago de Moraes,

Estêvão Ferreira Couto e Luiz Henrique Gomes de Almeida.

Aos assistidos da defensoria que me possibilitam a reflexão diuturna sobre as mazelas de uma

sociedade excludente.

À Bia Coutinho pelo carinho, conversas e reflexões

Às minhas queridas amigas do Colégio Santo Antônio pela amizade e companheirismo de

tantos anos, em especial (mesmo sabendo da possibilidade de cometer injustiças ao nomear) à

Fê Rates por compartilhar o sonho de construir uma sociedade melhor por meio da educação e

por incentivar meus projetos mais ousados, e à Flavinha por me inspirar a cruzar fronteiras em

busca do conhecimento, e à Luiza pelo apoio, conversas, conselhos e compressão.

À Oli por encher meu coração de alegria e me motivar a lutar para que a geração futura viva

tempos mais dignos.

Ao tio Dudu e à Pui por carinhosamente lerem e contribuírem com o meu trabalho.

Por fim, e com carinho especial:

Ao Fred meu marido pela paciência, companheirismo, compreensão, parceria trasfronteiriça e

por acreditar nos meus sonhos.

Aos meus pais incentivo incondicional aos meus projetos educacionais, conversas, conselhos,

companheirismo, dedicação e pelo exemplo de vida ética, pessoal e profissional; à minha mãe

Ana pela inspiração de mulher forte e determinada e ao meu pai Marcelo por me ensinar que

por mais íngreme e desafiadora que seja a subida, é possível vencê-la: e se não for possível

seguir em linha reta, com paciência e determinação, fazendo ziguezagues a gente chega lá!

“A educação é um processo social, é crescimento. Não é a preparação para a vida, é a

própria vida.”1

1 DEWEY, John. How We Think. Boston: Heath & Co, 1993 “Education is a social process. Education is growth. Education is, not a preparation for life; education is life itself.”-

RESUMO

A presente dissertação visa discutir o aspecto fundacional da Educação em Direitos Humanos

(EDH) e propor o alicerce necessário para que a esta cumpra sua função emancipatória, de

promover e proteger a dignidade humana. A metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica

de: teoria crítica dos direitos humanos; EDH; perspectiva pragmatista de democracia e

pedagogia crítica freireana. Considera que a EDH é, como qualquer atividade educacional,

ideológica, e pode, paradoxalmente, ser tanto mantenedora do status quo quanto um caminho

para a justiça social. Apresenta importantes críticas aos direitos humanos que possibilitam

uma reflexão sobre as diferentes faces destes. Aborda diferentes escolas de direitos humanos e

demostra que a Escola do Protesto, que entende que a principal missão dos direitos humanos é

endereçar injustiças sociais, é a mais adequada para a EDH libertadora. Apresenta o conceito

de EDH, nos termos da Declaração das Nações Unidas sobre Educação e Formação em

Direitos Humanos. Discute a imprescindibilidade de que a EDH ocorra em uma ambiência

democrática na perspectiva pragmatista deweyana, bem como do experimentalismo

democrático, expressão renovada de tal pragmatismo no fim do século XX e início do século

XI. Mergulha na pedagogia crítica de freireana e, com base nessa, propõe 11 pilares como

necessários para a EDH empoderadora.

Palavras-chave: Educação em Direitos Humanos. Direitos humanos. Educação. Teoria critica.

Democracia. Pragmatismo. Experimentalismo Democrático. Pedagogia crítica.

ABSTRACT

The present work aims to discuss the basis of Human Rights Education (HRE) and to propose

the necessary foundational framework so that it accomplishes its emancipatory mission, to

promote and protect human dignity. The methodology used was literature review of: critical

human rights theory; HRE; pragmatist perspective of democracy and Paulo Freire’s critical

pedagogy. The present work considers that HRE is, as all educational activities, ideological,

and might, paradoxically, be used both to maintain status quo and as a path to social justice. It

presents important human rights critiques that provide a reflexive approach on the diverse

faces of human rights. It presents different human rights schools and demonstrates that the

Protest School, that understands that human rights has the main mission of addressing social

injustices is the most adequate to the libertarian HRE. This dissertation presents the concept

of Human Rights Education as established by the World Declaration on HRE and training. It

discusses that it is necessary that HRE occurs in a democratic ambience, in the pragmatist

perspective of John Dewey, and also as viewed by the democratic experimentalism, renewed

version of such pragmatism in the end of XX and beginning of XI century. Dives into the

Freire’s critical pedagogy and, based upon that, proposes 11 lynchpins as necessary to an

empowering HRE.

Keywords: Human Rights Education. Human rights. Education. Critical theory. Democracy.

Pragmatism. Democratic Experimentalism. Critical pedagogy.

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – O que são os direitos humanos?..............................................................56

FIGURA 1 – Democracia Deweyana............................................................................69

FIGURA 1 – Processo de splução de problemas EDH.................................................88

LISTA DE ABREVIATURAS

DH Direitos Humanos

DUDH Declaração Universal de Direitos Humanos

ED Experimentalismo Democrático

EDH Educação em Direitos Humanos

SUMÁRIO

1INTRODUÇÃO.............................................................................................................................23

2DIREITOSHUMANOSUMAVISÃOCRÍTICA.......................................................................272.1Críticaaosdireitoshumanosnavisãodosautores:panorama........................................282.1.1JeremyBentham.............................................................................................................................302.1.2KarlMarx..........................................................................................................................................332.1.3BoaventuraSouzaSantos............................................................................................................372.1.4AustinSarateThomasKearns.................................................................................................432.1.5CostasDouzinas..............................................................................................................................46

2.2Direitoshumanos:Diferentesescolas.......................................................................................522.2.1Marie-BénédicteDembour:4escolasdedireitoshumanos............................................522.2.2EducaçãoemDireitosHumanos:aescolhapelaEscoladoProtesto...........................55

3EDUCAÇÃOEMDIREITOSHUMANOS..................................................................................593.1ConceitodeEducaçãoemDireitosHumanos..........................................................................60

4DEMOCRACIAEDIREITOSHUMANOS................................................................................654.1AperspectivademocráticaeeducacionalpragmatistadeJohnDewey.........................664.1.1Educação,comunicação,participaçãoequestionamento...............................................694.1.2AdemocraciadeDewey...............................................................................................................77

4.2ADemocraciapragmatistanavisãodeautoresdofinaldoséculoXXeiníciodoséculoXI......................................................................................................................................................80

5PAULOFREIRE:PORUMAPEDAGOGIACRÍTICACOMOOALICERCEDAEDH.......915.1Aeducaçãorequerconsiênciacrítica........................................................................................955.2Aeducaçãorequerqueoeducadorsejaumfacilitadordaconstruçãodoconhecimento............................................................................................................................................995.3Aeducaçãorequerrespeitoealteridade...............................................................................1015.4Aeducaçãorequerrechaçoaqualquerformadediscriminação..................................1045.5Aeducaçãorequerreflexãosobreoaspectocultural.......................................................1075.6Aeducaçãorequercomprometimentodoeducador.........................................................1105.7Aeducaçãorequerreflexãosobreaideologia.....................................................................1115.8Aeducaçãorequeraconsciênciadequeaeducaçãonãoéneutra...............................1155.9Aeducaçãorequeraconsciênciadequeoconhecimentoécontinuamenteconstruído...............................................................................................................................................1175.10Aeducaçãorequeraconsciênciadequeháumfuturoaserconstruído.................1185.11Aeducaçãorequerreconhecimentodoserhumanoenquantosersocialedaimportânciadacomunidade.............................................................................................................122

6CONCLUSÃO...............................................................................................................................125REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS............................................................................................131

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1 INTRODUÇÃO

Vive-se em um mundo marcado pela exclusão, onde 767 milhões de pessoas vivem

abaixo da linha da pobreza, ou seja, a cada 100 pessoas, mais de 10 buscam sobreviver com

menos de US$1.90 por dia. No Brasil, quase 5, a cada 100 pessoas, vivem em tal

circunstância. Apesar de uma significativa redução da pobreza extrema na última década, esse

índice permanece muito alto se comparado a vizinhos como a Argentina, onde menos de 2

pessoas, para cada 100, vivem a extrema pobreza. Mais ainda, a desigualdade permanece

extremamente elevada.2 Há uma polarização entre ricos e pobres acirrada pela falta de

espaços de convivência pública, pela geografia social e pela separação em escolas públicas e

privadas. Nesse cenário, cresce o preconceito de toda sorte e a democracia é demasiadamente

frágil.

Quando se volta o olhar para os direitos humanos no Brasil, vislumbra-se um quadro

marcado por violações crônicas, em que miseráveis apenas sobrevivem e não têm acesso ao

mínimo para viver com dignidade: educação, saúde, moradia e cultura.

Apesar de o Brasil ter avançado na educação fundamental, a qualidade é

extremamente questionável. A educação que prepondera é tecnicista, ensina conteúdos como

se enche um tanque, mas falha no compromisso moral de educar para a vida em sociedade,

para a participação democrática e para a defesa dos direitos humanos. Assim, forma-se uma

legião de repetidores do conhecimento, de especialistas egoístas, mas não se formam seres

humanos socialmente responsáveis.

Em vista deste cenário, a educação em direitos humanos (EDH)3 apresenta-se como

uma mensagem de esperança, uma possibilidade de saída de um círculo vicioso de exclusão e

opressão. É um instrumento para fomentar a conscientização e autonomia dos sujeitos de

direito para possam paulatina e progressivamente caminhar rumo a uma sociedade que

respeita a dignidade da pessoa humana.

Muito tem sido discutido sobre EDH, seu conceito e conteúdo. No entanto, a literatura

pouco se debruça sobre a temática necessária para alicerçar a EDH para que essa tenha real

potencial de emancipação social. É justamente esse aspecto fundacional da EDH que o

2 Banco Mundial. Ressalvo que tais índices são de 2013, última informação disponível na base de dados do Banco Mundial. No Brasil, o ínice é de 4,87% em 2013, sendo que houve um aumento da pobreza extrema se comparado com 2012, em que o índice era de 4.59%. Na Argentina, em 2013, o índice era de 1.75. 3Doravante seá usada a abreviação EDH.

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presente trabalho busca apresentar. Inicialmente, qual o conceito de direitos humanos? Qual

perspectiva deve ser adotada para que tal processo educacional propicie uma sociedade mais

justa e não a mera manutenção do status quo? Feita a escolha por uma perspectiva de direitos

humanos, ainda para se estruturar as suas bases, é necessário pensar na ambiência para que tal

prática ocorra, bem como nos seus pilares.

A presente dissertação parte da seguinte hipótese: para que a EDH seja

transformadora, deve-se adotar uma perspectiva critica de direitos humanos, de

questionamento do status quo e que busca endereçar as desigualdades. Assim, o presente

trabalho apresenta diversas visões críticas sobre os direitos humanos, a classificação das

diferentes escolas de direitos humanos na versão proposta por Marie-Bénédicte Dembour e

faz a escolha pela escola que melhor se adequa à função emancipatória da EDH.

Parte também da hipótese de que um ambiente democrático é imprescindível para a

EDH e que o pragmatismo deweyano é a vertente filosófica mais adequada. Nesse sentido,

mergulha-se no pragmatismo de Dewey, que propõe que a democracia é o próprio modo de

vida em comunidade e que a educação tem a função moral essencial de formar para a vida em

sociedade.

Em seguida, apresenta as perspectivas de Experimentalismo Democrático ou

Aprendizado Evolutivo de Ansell e Sabel que refletem sobre a importância do clássico

deweyano na atualidade.

Uma vez caracterizada essa ambiência democrática, parte-se para a terceira hipótese: a

de que a pedagogia crítica de Paulo Freire é necessária para a EDH. A educação como um

processo humano, dialógico que busca a construção do pensamento crítico e da liberdade é de

extrema relevância para a EDH. Tem como escopo espraiar a consciência de que os

educandos são titulares de direitos e podem transformar a realidade opressora e construir

alternativas quando os direitos são-lhes negados. É justamente com base em Freire que se

constrói os 11 pilares estruturantes para a EDH, quais sejam: educação requer uma

consciência crítica; que o educador seja um facilitador da construção do conhecimento;

respeito e alteridade; reflexão sobre o aspecto cultural; rechaço a qualquer forma de

discriminação; comprometimento do educador; reflexão sobre a ideologia; consciência de que

a educação não é neutra; que o conhecimento é continuamente construído; do ser humano

enquanto social e da importância da coletividade; e a consciência de que há um futuro a ser

construído. Não se pode deixar de mencionar que ensinamentos da professora Miracy Gustin,

que tece importantes considerações sobre necessidades, direitos e democracia também foram

essenciais para o desenvolvimento da presente dissertação.

25

A convicção que nos anima na elaboração do presente trabalho é que a construção de

uma sociedade mais humana passa necessariamente pela educação crítica, moralmente

comprometida e que prepara os indivíduos para a alteridade e para a contribuição para vida

em comunidade. A democracia, como próprio modus vivendi em comunidade, é tanto o

ambiente necessário para a prática educativa quanto encontra nesta uma conditio sine qua non

para a formação do indivíduo e da comunidade. A EDH educa e empodera para a

reivindicação e construção e promoção dos direitos humanos desses indivíduos no dia a dia,

leciona a aprender com as experiências e caminhar rumo a patamares cada vez mais

adequados de proteção da dignidade.

26

27

2 DIREITOS HUMANOS UMA VISÃO CRÍTICA

Quando abro a caixa de Pandora Das famílias humanas

Descubro surpreso Somos tão diferentes!

O que para uns é valor Para outros é dissabor

Ou ruído que será esquecido. Uns vivem o momento, sem o pressentimento

Que amanhã ele será pó. Outros buscam algo mais profundo

Que nem o tempo É capaz de socorrer ou corroer.4

Ao falar sobre EDH, um passo primordial é a reflexão crítica sobre os conceitos de

direitos humanos existentes. Apesar de o discurso de que tais direitos são voltados para a

consagração máxima dos seres humanos, para a proteção da família humana em seu aspecto

essencial, a dignidade, a história e a operacionalização dos direitos humanos são repletos de

desigualdades, violações e exclusões. Para conservar o potencial protetivo e impulsionador de

mudanças positivas dos direitos humanos, é necessária uma visão crítica que questione e

desvele as mazelas ideológicas que o conceito e sua aplicação abarcam. Muitos críticos

alegam que direitos humanos têm viés colonialista, existem numa perspectiva de desbalanço

de poder entre norte e sul, ocidente e oriente, podem levar ao imperialismo cultural, priorizam

direitos civis e políticos em detrimento de direitos econômicos, sociais e culturais, e servem

para a proteção de interesses econômicos e geopolíticos de países hegemônicos.

Este trabalho vislumbra um potencial emancipatório dos direitos humanos, mas parte

da hipótese que o passo primordial para a EDH é a reflexão crítica constante para que se

almeje sempre a evolução e revisão do conceito rumo a patamares de proteção em constante

desenvolvimento. Com o escopo de ilustrar, mas sem a pretensão de esgotar o tema,

apresentam-se importantes questionamentos de autores que veiculam críticas sobre os direitos

humanos. Em seguida, apresentar-se-á uma classificação que descreve quatro escolas de

direitos humanos e, com base nas críticas ora apresentadas, será feita a escolha pela escola

que se adéqua ao propósito da EDH defendido no presente trabalho.

4VALADARES, Eduardo de Campos. Quando Abro a Caixa de Pandora. In: VALADARES, Eduardo de Campos. Discreto Afeto. São Paulo: Iluminuras: 2016. P. 26.

28

2.1 Crítica aos direitos humanos na visão dos autores: panorama

Optou-se por abordar separadamente cada autor, nas subseções seguintes, para

possibilitar uma rápida imersão, por um foco direcionado e reflexivo em diferentes lentes de

visualização dos direitos humanos. A escolha dos autores foi feita por se entender que eles

abordam críticas extremamente relevantes para a EDH e o seu potencial emancipatório.

Eu me pergunto: se eu olhar a escuridão com uma lente, verei mais que a escuridão? a lente não devassa a escuridão, apenas a revela ainda mais. E se eu olhar a claridade com uma lente, com um choque verei apenas a claridade maior.5

Tendo em vista que o alicerce dos direitos humanos remonta à ideologia iluminista

dos direitos naturais de pretensão universal e calcados na visão de um homem autônomo e

autossuficiente, cuja expressão mais representativa é a Bill of Rights e a Déclaration des

Drioits de l’Homme et du Citoyen, “declarações dos direitos personalíssimos que emergem

da tensão entre os ideais liberais e revolucionários e a derrocada do antigo regime6”, inicia-

se a imersão com dois clássicos que criticam a fundamentação universalista e personalista dos

direitos humanos, observando a sua sucessão temporal. Primeiramente com o utilitarista

Inglês Jeremy Bentham com suas fortes críticas à Declaração de Direitos do Homem e do

Cidadão que coloca em cheque os direitos naturais como absolutos e universais, bem como

com sua visão de que estes fomentam uma postura individualista e egoística que é danosa à

sociedade. Em seguida, mergulha-se naquele que revolucionou o pensamento moderno, Karl

Marx, com a perspectiva apresentada em seu artigo A Questão Judaica que é clássico

fundacional ao se falar de teoria crítica e crítica aos direitos humanos. Na visão marxista, os

direitos humanos são voltados para o homem egoístico, isolado, despido do caráter coletivo e

social.

5LISPECTOR, Clarisse. A paixão segundo G. H. Edição crítica, Benedito Nunes, (coord.). 2. ed. Madrid: ALLCA XX, 1996. (Colección Archivos: 13). p. 15. 6GONTIJO, Lucas. A questão da universalidade dos direitos humanos e sua estruturação em conjunturas históricas. In: BRANDÃO, Claudio (Coord.) Direitos Humanos e Fundamentais em Perspectiva. São Paulo: Atlas: 2014. P. 135- 148.

29

Na sequência, dá-se um salto temporal na história da humanidade para trazer à tona

críticas concernentes ao período pós-industrial ou neocapitalista dos direitos humanos7.

[...] os direitos humanos hoje devem ser entendidos no contexto do capitalismo pós industrial, das sociedades de consumo e sob a conjuntura do desmantelamento dos Estados-nação. Nesse cenário pós-queda do muro de Berlin redefiniu-se os desafios dos direitos humanos e ficou patente que as concepções de luta por tais direitos são mutantes e precisam se reinventar a todo tempo 8.

Santos, em suas reflexões críticas, sugere que, com a crise do socialismo e da

revolução, as forças emancipatórias encontraram nos direitos humanos uma forma de

reinventar-se. Defende, portanto, a possibilidade de os direitos humanos serem uma forma de

emancipação social. Alerta, no entanto, para a mácula não participativa que os direitos

humanos muitas vezes carregam e que estes serviram e ainda podem servir a interesses

políticos de potências capitalistas, e considera que direitos humanos universais operam como

localismo globalizado, ou seja, em uma perspectiva de cima para baixo, de imposição

cultural. Propõe que é possível lutar por direitos humanos, participativos, legítimos, de baixo

para cima, multiculturais, cosmopolitas, ou seja, em que não há exclusão ou discriminação

pelas formas predominantes de dominação dos Estados, classes, regiões ou grupos

subordinados. Enfatiza que todas as culturas são relativas e incompletas e que é necessário um

diálogo intercultural, considerando que todas as culturas concebem a dignidade da pessoa

humana, mesmo que não o façam em termos de direitos humanos.

Para profundar o debate sobre o universalismo, bem como na dupla face dos direitos

humanos, apresenta-se as proposições de Sarat e Kearns. Os autores apontam que, apesar de a

pretensa universalidade defendida por muitos, não há consenso sobre o conteúdo dos direitos

humanos. Eles alertam para o crescente papel de agentes não estatais na esfera da cultura.

Ressaltam que, se os direitos humanos, por um lado, empoderam e fomentam a luta e a

proteção, por outro, podem ser utilizados para a manutenção da opressão e do status quo. Na

visão de Sarat e Kearns, os direitos humanos podem ser usados por movimentos sociais para

7GONTIJO, Lucas. A questão da universalidade dos direitos humanos e sua estruturação em conjunturas históricas. In: BRANDÃO, Claudio (Coord.) Direitos Humanos e Fundamentais em Perspectiva. São Paulo: Ed Atlas: 2014. P. 135- 148. P. 142. 8GONTIJO, Lucas. A questão da universalidade dos direitos humanos e sua estruturação em conjunturas históricas. In: BRANDÃO, Claudio (Coord.) Direitos Humanos e Fundamentais em Perspectiva. São Paulo: Ed Atlas: 2014. P. 135- 148 .P 142.

30

avançar suas pautas de proteção, assim como para relacionar as violações ocorridas com

reivindicações transfronteiriças, possibilitando a soma de forças e estratégias.

Por fim, ampliando a lente sobre o caráter paradoxal dos direitos humanos, é relevante

mencionar as críticas de Douzinas, de que os Direitos Humanos são idiossincráticos e só são

legítimos se forem usados para resistência e em prol da justiça social e que, se servirem ao

neoliberalismo e à manutenção do status quo, perdem sua razão de ser. Segundo este autor, o

conceito de humanidade foi muitas vezes usado para oprimir, segregar e marginalizar, e

portanto não é dado, mas construído.

Em suma, todas as críticas são de imensa valia para que se possa compreender a dupla

face dos direitos humanos e lutar para que a EDH fomente o empoderamento e não a

opressão.

2.1.1 Jeremy Bentham

O advogado e filósofo utilitarista inglês, Jeremy Bentham, apresentou fortes críticas à

Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão adotada na França em agosto de 1789, mês

seguinte à queda da Bastilha, marco central da Revolução Francesa. No artigo Anarchical

Fallacies, Bentham9 considera a Declaração uma falácia, um erro, bem como com tendência a

produzir anarquia:

[...] ao justificar a insurreição passada, eles plantaram e cultivaram a propensão à perpétua insurreição no tempo futuro; eles semearam as sementes da propagação da anarquia: ao justificarem a demolição das autoridades existentes, eles minaram todas as futuras, inclusive a si próprios.10

Bentham critica o conceito de direitos naturais colocados como normas absolutas e

universais. Afirma também que direitos absolutos são indesejáveis e desprovidos de 9 BENTHAM, Jeremy. Anarchical Fallacies; being an examination of the Declaration of Rights issued during the French Revolution. In: WALDEON, Jeremy (org.). Nonsense upon Stilts. Londres: Metheun 1987. P. 46–76. 10BENTHAM, Jeremy. Anarchical Fallacies; being an examination of the Declaration of Rights issued during the French Revolution. In: WALDEON, Jeremy (org.). Nonsense upon Stilts. Londres: Metheun 1987. P. 46–76. p. 49. Tradução nossa: “[…] in justifying past insurrection they plant and cultivate a propensity to perpetual insurrection in time future; they sow the seeds of anarchy broadcast: in justifying the demolition of existing authorities, they undermine all future ones, their own consequently in the number.”

31

significado. Exemplifica que se todos têm uma liberdade ilimitada não há nada que os impeça

de adentrar na esfera de liberdade alheia. Assim, são necessárias leis humanas para viabilizar

a efetiva liberdade. Critica a pretensa imprescritibilidade, que nada significa a não ser que

exclua a interferência das leis humanas. Nesse sentido, descreve os direitos naturais como

imaginários, fantasiosos.

[...] de leis reais vêm direitos verdadeiros; mas de leis imaginárias, do direito natural, fantasiado e inventado por poetas, retóricos, e representantes envenenados moral e intelectualmente, vêm direitos imaginários, um bastardo ninho de monstros […]11

Além disso, Bentham destaca que a declaração destes pretensos direitos (direitos

naturais) têm como objetivo fomentar as paixões egoístas e dissociais que são altamente

danosas à sociedade.

Os grandes inimigos da paz pública são as paixões egoísticas e dissociais – necessárias como são – a primeira para a própria existência de cada indivíduo e a segunda para a sua segurança…Qual foi o objeto, o perpétuo e palpável objeto, desta declaração de pretensos direitos? Adicionar o maior montante de força possível a estas paixões, mas já demasiadamente fortes, - romper as cordas que os seguram, - dizer para as paixões egoístas, lá– em todo lugar – é o seu pedido! - para as paixões raivosas, lá– em todo lugar – está o seu inimigo. Esta é a moralidade deste celebrado manifesto.12

Aponta ainda ser um equívoco tal declaração ter sido feita pelo governo, tendo

em vista que nenhum governo pode alcançar o conceito de direito natural, mais ainda, o

contexto era de um governo composto por pessoas com visões de mundo muito distintas.

11BENTHAM, Jeremy. Anarchical Fallacies; being an examination of the Declaration of Rights issued during the French Revolution. In: WALDEON, Jeremy (org.). Nonsense upon Stilts. Londres: Metheun 1987. P. 46–76. p. 69. Tradução nossa: “[…]From real laws come real rights; but from imaginary laws, from laws of nature, fancied and invented by poets, rhetoricians, and dealers in moral and intellectual poisons, come imaginary rights, a bastard brood of monsters.” 12BENTHAM, Jeremy. Anarchical Fallacies; being an examination of the Declaration of Rights issued during the French Revolution. In: WALDEON, Jeremy (org.). Nonsense upon Stilts. Londres: Metheun 1987. P. 46–76. p. 48. Tradução nossa: “The great enemies of public peace are the selfish and the dissocial passions – necessary as they are – the one to the very existence of each individual, the other to his security…What has been the object, the perpetual and palpable object, of this declaration to pretended rights? To add such force as possible to these passions, but already too strong, - to burst the cords that hold them in, - to say to the selfish passions, there – everywhere – is your prey! - to the angry passions, there –everywhere- is your enemy. Such is the morality of this celebrated manifesto.”

32

Critica também o fato de apenas alguns terem o poder de dizer quais são os direitos que lhes

pertencem e que pertencem aos demais.

[…] cidadãos do outro lado do rio! Podem nos falar quais os direitos pertencem a vocês? Não, isto vocês não podem. Somos nós que entendemos os direitos: não apenas os nossos, mas os seus também estão em jogo; enquanto vocês pobres almas simples! Não sabem nada sobre a questão.13

Ressalta que quanto mais abstrata, maior a chance de falácias e que a declaração

apresenta provisões demasiadamente dúbias. Aponta estar o manifesto repleto de palavras

sem significado, polissêmicas, quando era possível valer-se de palavras mais precisas. Em

suma, observa que a declaração é completamente desprovida de sentido.

Bentham, de artigo em artigo, desconstrói paulatinamente a declaração apontando suas

contradições e falácias. Quanto ao artigo primeiro, por exemplo, diz que homens não nascem

livres. Ressalta os homens não serem iguais perante a lei e exemplifica com a desigualdade

social existente, por exemplo, entre uma família miserável e uma abastada. Desvela que seres

humanos de ambos os sexos também não permanecem iguais em direitos, tendo em vista que

a estrutura social é marcada por desigualdades.

O que eu quero atacar não é o sujeito ou cidadão deste ou daquele país – nem este ou aquele cidadão [...] mas todos os direitos anti-legais do homem, toda a declaração de tais direitos. O que eu quero atacar não é a execução de tal projeto, mas a concepção em si...Os franceses não falharam na execução de seu projeto, mas no projeto em si. 14

Assim, o que o autor ataca e rechaça não é o direito de um ou outro indivíduo de um

ou de outro país, mas sim uma declaração de direitos naturais que considera de direitos 13BENTHAM, Jeremy. Anarchical Fallacies; being an examination of the Declaration of Rights issued during the French Revolution. In: WALDEON, Jeremy (org.). Nonsense upon Stilts. Londres: Metheun 1987. P. 46–76. P. 48. Tradução nossa: “[…]citizens of the other side of the water! Can you tell us what rights you have belonging to you? No, that you can’t. It is we that understand rights: not our own only, but yours into the bargain; while you poor simple souls! Know nothing about the matter” 14BENTHAM, Jeremy. Anarchical Fallacies; being an examination of the Declaration of Rights issued during the French Revolution. In: WALDEON, Jeremy (org.). Nonsense upon Stilts. Londres: Metheun 1987. P. 46–76. P. 68. Tradução nossa: “What I mean to attack is, not the subject or citizen of this or that country – nor this or that citizen [...] but all anti-legal rights of man, all declaration of such rights. What a mean to attack is not the execution of such design...but the design itself...the French had not failed in the execution of their design...but rather the design itself. ”

33

desprovidos de significado, sem sentido e fomentadores da ruptura social.

2.1.2 Karl Marx

O filósofo, jornalista, sociólogo e revolucionário socialista Karl Marx é um dos mais

influentes expoentes da civilização ocidental e apresentou a fissura inicial, causadora da teoria

crítica que tem como escopo justamente desvelar ideologias que justificam e mascaram a

opressão e a lógica perversa dos sistemas. É, por excelência, o marco fundador de toda teoria

crítica, tanto da escola crítica alemã quanto de todas as demais escolas críticas do mundo.

Passados dois séculos, sua obra permanece atual e exerce forte influência sobre o pensamento

ocidental.

A Questão Judaica é um artigo escrito em 1843 e publicado em 1844 e consiste em

uma crítica a Bruno Bauer, hegeliano, que defende que questões religiosas são incompatíveis

com a emancipação política. Nesse sentido, para a emancipação política dos judeus, é

necessário um Estado secular, e, assim, uma renúncia à sua consciência religiosa particular.

Marx15 defende que o Estado secular não requer a abolição da religião. Entende que a religião

exerce relevante papel na vida social de um Estado secular, e o que se altera é a identificação

dos seres humanos pelo e Estado de forma dissociada da religião. Cita o exemplo dos Estados

Unidos, um Estado secular onde há forte influência religiosa na sociedade.

Marx aprofunda na questão da emancipação política, analisa os direitos liberais e

defende que, ainda que os seres humanos sejam livres do ponto de vista religioso e político

num Estado secular, o aspecto material de uma distribuição discrepante da renda pode

impactar diretamente a liberdade.

Tece também importante crítica ao viés individualista dos direitos humanos. Ao falar

da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, desvela que o homem distinto do

cidadão é o membro da sociedade civil, egoísta, destacado do seio social. Há, assim, um

latente caráter individualístico nos direitos do homem que despe este homem do aspecto

coletivo.

15 MARX, Karl. A questão Judaica. Tradutor: Artur Morão. Lusofilosofia, 1989. [E-Book]

34

Há que distinguir entre os direitos do homem e os direitos do cidadão. Quem é este homem distinto do cidadão? Só́ pode ser o membro da sociedade civil. Porque é que ao membro da sociedade civil lhe chamam «homem», simplesmente homem, e porquê é que os seus direitos recebem o nome de «direitos do homem»? Como se explicará semelhante facto? Pela relação entre o Estado político e a sociedade civil, pela natureza da emancipação política. Constatemos, em primeiro lugar, o facto de que os chamados direitos do homem, enquanto distintos dos direitos do cidadão, constituem apenas os direitos de um membro da sociedade civil, isto é, do homem egoísta, do homem separado dos outros homens e da comunidade.16

Ao falar da liberdade, aponta que ela é colocada como “[...]o direito de fazer tudo o

que não cause danos aos outros [...] Trata-se da liberdade do homem enquanto mónada

isolada, retirado para o interior de si mesmo.17”, ou seja, a liberdade é do homem apartado do

meio social.

Sobre a igualdade, aponta que “A «igualdade» não tem aqui significado político. É

apenas o igual direito à liberdade, como antes foi definido; a saber, todo o homem é

igualmente considerado como mónada auto-suficiente18”

Quanto à segurança Marx aponta que esta “[...]não chega para elevar a sociedade civil

acima do próprio egoísmo. A segurança surge antes como a garantia do seu egoísmo”19.

Nesse sentido, ressalta que os direitos do homem conduzem ao homem só, isolado,

ilhado, egoísta. Deixa de lado a importante perspectiva de pertencimento social.

Assim, nenhum dos supostos direitos do homem vai além do homem egoísta, do homem enquanto membro da sociedade civil; quer dizer, enquanto individuo separado da comunidade, confinado a si próprio, ao seu interesse privado e ao seu capricho pessoal. O homem está́ longe de, nos direitos do homem, ser considerado

16MARX, Karl. A questão Judaica. Tradutor: Artur Morão. Lusofilosofia, 1989. [E-Book]. P.23. Transcrevo o trecho do original em alemão por ser muito mais expressivo: ‘Die droits de l'homme, die Menschenrechte werden als solche unterschieden von den droits du citoyen, von den Staatsbürgerrechten. Wer ist der vom citoyen unterschiedene homme? Niemand anders als das Mitglied der bürgerlichen Gesellschaft. Warum wird das Mitglied der bürgerlichen Gesellschaft »Mensch«, Mensch schlechthin, warum werden seine Rechte Menschenrechte |364| genannt? Woraus erklären wir dies Faktum? Aus dem Verhältnis des politischen Staats zur bürgerlichen Gesellschaft, aus dem Wesen der politischen Emanzipation. Vor allem konstatieren wir die Tatsache, daß die sogenannten Menschenrechte, die droits de l'homme im Unterschied von den droits du citoyen, nichts anderes sind als die Rechte des Mitglieds der bürgerlichen Gesellschaft, d.h. des egoistischen Menschen, des vom Menschen und vom Gemeinwesen getrennten Menschen”. MARX, Karl. Zur Judenfrage. 17MARX, Karl. A questão Judaica. Tradutor: Artur Morão. Lusofilosofia, 1989. [E-Book]. P. 24. 18MARX, Karl. A questão Judaica. Tradutor: Artur Morão. Lusofilosofia, 1989. [E-Book]. P. 25. 19MARX, Karl. A questão Judaica. Tradutor: Artur Morão. Lusofilosofia, 1989. [E-Book]. P. 25.

35

como um ser genérico; pelo contrário, a própria vida genérica – a sociedade – surge como sistema externo ao indivíduo, como limitação da sua independência original.20

O autor aponta o quão contraditório é uma nação que busca a libertação proclamar

expressamente os direitos do homem em uma perspectiva individualista e egoísta (menciona a

declaração de 1791 e que tal perspectiva é renovada na Declaração dos Direitos do Homem de

1793). Mais ainda, destaca que a cidadania é reduzida aos direitos do homem, confinada ao

individualismo egoístico.

O tema toma-se ainda mais incompreensível, ao observarmos que os libertadores políticos reduzem a cidadania, a comunidade política, a simples meio para preservar os chamados direitos do homem; e que, por consequência, o citei é declarado como servo do «homem» egoísta, a esfera em que o homem age como ser genérico surge rebaixada à esfera onde ele atua como ser parcial; e que, por fim, é o homem como bourgeois, e não o homem como citoyen, que é considerado como o homem verdadeiro e autêntico. 21

A concepção isolada de homem decorre do desmantelamento da sociedade civil que

não passou pelo processo de questionamento e revolução. Aponta a diferença entre o homem

real, egoístico, tal qual se conhece e o, no plano abstrato, e o homem político.22

A emancipação humana só́ será́ plena quando o homem real e individual tiver em si o cidadão abstrato; quando como homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas suas relações individuais, se tiver tornado um ser genérico; e quando

20MARX, Karl. A questão Judaica. Tradutor: Artur Morão. Lusofilosofia, 1989. [E-Book]. P. 25. 21MARX, Karl. A questão Judaica. Tradutor: Artur Morão. Lusofilosofia, 1989. [E-Book]. P. 25 22MARX, Karl. A questão Judaica. Tradutor: Artur Morão. Lusofilosofia, 1989. [E-Book]. P. 29-30. “O homem egoísta é o resultado passivo, apenas dado, da dissolução da sociedade, objecto de certeza imediata e, por conseguinte, um objecto natural. A revolução política dissolve a sociedade civil nas suas componentes sem revolucionar estas componentes e as submeter à crítica. Esta revolução considera a sociedade civil, o mundo das necessidades, o trabalho, os interesses privados e a lei civil como a base da sua própria existência, como um pressuposto inteiramente subsistente, portanto, como a sua base natural. Por fim, o homem como membro da sociedade civil é identificado como o homem autêntico, o homme como distinto do citoyen, porque é o homem na sua existência sensível, individual e imediata, ao passo que o homem político é unicamente o homem abstracto, artificial, o homem como pessoa alegórica, moral. Deste modo, o homem tal como é na realidade reconhece-se apenas na forma do homem egoísta, e o homem verdadeiro, unicamente na forma do citoyen abstracto.”

36

tiver reconhecido e organizado as suas próprias forças (forces propres) como forças sociais, de maneira a nunca mais separar de si esta força social como força política.23

Marx conclui, portanto, que para a emancipação dos seres humanos é necessário que o

homem seja dotado do ambiente social, da força da comunidade. O homem só será

efetivamente homem se for considerado um ser relacional, social. Assim, para que os direitos

humanos tenham o viés emancipatório, é necessário que se livrem do individualismo

neoliberal e abarquem a perspectiva do coletivo, do social.

Gontijo analisa a perspectiva marxiana da seguinte forma:

Críticos de Marx, desatentos ou influenciados por uma tendenciosa interpretação dos textos marxianos, apontam que a sua obra teria desprezado ou até mesmo se oposto aos direitos humanos. Esta posição cai em erro porque de Marx se apreende, em acuro, que a sua crítica ao capitalismo se pauta por uma busca radical pela dignidade humana e do direito de igualdade pleno. Contudo é certo que Marx desacreditou nos direitos humanos enquanto emanados do direito natural, abstratos e aí sim, em sua visão a declaração dos direitos humanos constituiu uma forma de dominação ideológica perniciosa. 24

Nesse sentido, a perspectiva marxista é tanto compatível quanto propositiva em

relação aos direitos humanos. Rechaça a dominação ideológica, propõe uma dignidade e

igualdade plena e demonstra a essencialidade de considerar-se o homem enquanto ser social.

23MARX, Karl. A questão Judaica. Tradutor: Artur Morão. Lusofilosofia, 1989. [E-Book]. P. 29-30. . Transcrevo, ainda o trecho do original em alemão, tendo em vista que veicula com muito mais foça a mensagem Marxista. “Erst wenn der wirkliche individuelle Mensch den abstrakten Staatsbürger in sich zurücknimmt und als individueller Mensch in seinem empirischen Leben, in seiner individuellen Arbeit, in seinen individuellen Verhältnissen, Gattungswesen geworden ist, erst wenn der Mensch seine »forces propres« |»eigene Kräfte«| als gesellschaftliche Kräfte erkannt und organisiert hat und daher die gesellschaftliche Kraft nicht mehr in der Gestalt der politischen Kraft von sich trennt, erst dann ist die menschliche Emanzipation vollbracht.”. MARX, Karl. Zur Judenfrage. 24GONTIJO, Lucas. A questão da universalidade dos direitos humanos e sua estruturação em conjunturas históricas. In: BRANDÃO, Claudio (Coord.) Direitos Humanos e Fundamentais em Perspectiva. São Paulo: Atlas: 2014. P. 135- 148. P. 140. .

37

2.1.3 Boaventura Souza Santos

Boaventura Souza Santos tece diversas críticas aos direitos humanos, mas defende a

permanência dos direitos humanos enquanto política emancipatória.

O autor aponta que a Declaração Universal de Direitos Humanos foi elaborada de

forma não participativa, deixando à margem do processo a maioria dos povos. Destaca ainda

que, no período pós segunda guerra mundial, o discurso dos direitos humanos serviu aos

interesses capitalistas de Estados hegemônicos ocidentais, priorizando-se direitos civis e

políticos em detrimento dos econômicos, sociais e culturais, salvo o direito à propriedade.

Ressalta o reconhecimento quase exclusivo de direitos individuais em detrimento de direitos

coletivos. Aponta, ainda, uma duplicidade de critérios, a depender dos interesses envolvidos.

O conceito de Direitos Humanos assenta num bem-conhecido conjunto de pressupostos, todos claramente ocidentais e facilmente distinguíveis de outras concepções de dignidade humana em outras culturas. A marca ocidental liberal do discurso dominante dos Direitos Humanos pode ser facilmente identificada em muitos outros exemplos: na Declaração Universal de 1948, elaborada sem a participação da maioria dos povos do mundo; no reconhecimento exclusivo de direitos individuais, com a única exceção do direito coletivo à autodeterminação; na prioridade concedida aos direitos civis e políticos sobre os direitos econômicos, sociais e culturais; e no reconhecimento do direito de propriedade como o primeiro e, durante muitos anos, o único direito econômico. A história dos Direitos Humanos no período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial nos leva a concluir que as políticas de Direitos Humanos estiveram em geral a serviço dos interesses econômicos e geopolíticos dos Estados capitalistas hegemônicos. Um discurso generoso e sedutor sobre os Direitos Humanos coexistiu com atrocidades indescritíveis, as quais foram avaliadas de acordo com revoltante duplicidade de critérios.25

25SANTOS, Boaventura de Sousa. Direitos humanos: o desafio da interculturalidade. Revista de Direitos Humanos. Jun 2009. p. 14. No mesmo sentido, a seguinte passagem SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria critica e reinventar a emancipação social Tradução de Mouzar Benedito. São Paulo : Boitempo, 2007, p. 117-118.: “Creio que os DH foram parte da Guerra Fria, são monoculturais porque sua concepção da natureza e do indivíduo é uma concepção ocidental. Não há, de fato, direitos humanos universais, que são sentidos por todas as diferentes culturas do mundo como seus. A Declaração Universal foi produzida por um grupo muito pequeno de países, e sua universalidade é falsa no sentido sociológico, político e cultural.”

38

Santos afirma que o discurso dos direitos humanos foi utilizado como componente da

guerra fria, visto com desconfiança pelas forças progressistas em razão da sua utilização em

diferentes graus e medidas a depender dos interesses políticos dos Estados.

Duplos critérios na avaliação das violações dos Direitos Humanos, complacência para com ditadores amigos do Ocidente, defesa do sacrifício dos Direitos Humanos em nome dos objetivos do desenvolvimento – tudo isso tornou os Direitos Humanos suspeitos enquanto roteiro emancipatório.26

No entanto, aponta que os direitos humanos transformaram-se, nas últimas décadas, de

discurso político para uma quase emancipação social. Tal mudança decorreu da crise do

socialismo e da revolução em que as forças emancipatórias encontraram nos direitos humanos

uma forma de reinventar-se. Santos entende que o discurso dos direitos humanos podem

contribuir para a emancipação e discute as condições necessárias para tanto.

Nessa ordem de ideias, o meu objetivo é desenvolver um quadro analítico capaz de reforçar o potencial emancipatório da política dos Direitos Humanos no duplo contexto da globalização, por um lado, e da fragmentação cultural e da política de identidades, por outro. Pretendo apontar as condições que permitem conferir aos Direitos Humanos, tanto o escopo global como a legitimidade local, para fundar uma política progressista de Direitos Humanos – Direitos Humanos concebidos como a energia e a linguagem de esferas públicas locais, nacionais e transnacionais atuando em rede para garantir novas e mais intensas formas de inclusão social.27

Coloca como crucial a compreensão entre três tensões inerentes à pós modernidade,

sejam elas: a) entre regulação social decorrente do Estado intervencionista e a emancipação

social b) entre Estado e sociedade civil c) entre Estado e globalização. No que tange à tensão

dialética entre regulação social e emancipação social, tem-se que, até o final dos anos 60, as

crises da regulação suscitavam o fortalecimento das políticas emancipatórias, mas, após tal

data, as crises da regulação são simultâneas e contribuem para as crises da emancipação (crise

da revolução social e do socialismo). Essa crise afeta a política de direitos humanos, já que ela

é, ao mesmo tempo, reguladora e emancipadora. Quanto à tensão dialética entre Estado e

26 SANTOS, Boaventura de Sousa. Direitos humanos: o desafio da interculturalidade. Revista de Direitos Humanos, jun. 2009. P. 10 27SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 48. Jun. 1997. p. 13.

39

sociedade civil, observa que a denominada primeira geração de direitos humanos (direitos

civis e políticos) consistiu em luta da sociedade civil contra o Estado violador de tais direitos.

No entanto, as denominadas segunda e terceira gerações de direitos humanos (econômicos

sociais, culturais, de qualidade de vida e etc.) têm o Estado como o principal agente para a

concretização dos direitos humanos. Quanto à tensão entre Estado nação e globalização, o que

vem ocorrendo é uma “erosão seletiva do estado-nação, imputável à intensificação da

globalização, coloca a questão de saber se, quer a regulação social, quer a emancipação

social, deverão ser deslocadas para o nível global28”. A tensão ocorre porque as violações e

as lutas em defesa dos direitos humanos são predominantemente nacionais, e também porque

aspectos culturais são de suma relevância, daí a política de direitos humanos ser

necessariamente política cultural.

[...] modo de produção da globalização: é o conjunto de trocas desiguais pelo qual um determinado artefato, condição entidade ou identidade local estende a sua influência para além das fronteiras nacionais, e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outro artefato, condição entidade ou identidade entidade rival29

Santos prefere falar em globalizações e não em globalização, por se tratar de um

fenômeno múltiplo, com diversas manifestações e facetas. Conceitua Globalizações como

“feixe de relações sociais” e que, como tal, envolvem visões divergentes, “conflitos,

vencedores e vencidos” e que, com frequência, a versão difundida da história é a dos

“vencedores”.

Para Boaventura Souza Santos, existem quatro formas de globalização30: a primeira

delas é o “Localismo Globalizado”, em que o fenômeno local é globalizado com sucesso,

como por exemplo, os fast-food e a língua inglesa. A segunda forma é o “Globalismo

Localizado” em que se observa impactos específicos de práticas transnacionais nas condições

locais, que são desestruturadas e reestruturadas para responder a imperativos transacionais, 28SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 48. Jun. 1997. p. 13. 29SANTOS, Boaventura de Sousa. Os Processos da Globalização . In. SANTOS, Boaventura (Org). A Globalização e as Ciências Sociais. 2. ed. São paulo: Cortez, 2002. I Linha de Horizonte. Capítulo 1, p.25-94. P. 63. 30SANTOS, Boaventura de Sousa. Os Processos da Globalização . In. SANTOS, Boaventura (Org). A Globalização e as Ciências Sociais. 2. ed. São paulo: Cortez, 2002. I Linha de Horizonte. Capítulo 1, p.25-94. P. 67 a 71.

40

como, por exemplo, o dumping ecológico, a transformação da agricultura de subsistência em

agricultura de exportação como parte do processo de “ajustamento estrutural” e a etnicização

do local de trabalho. A terceira forma de globalização é denominada por Souza Santos de

Cosmopolitismo, em que não há exclusão ou discriminação pelas formas predominantes de

dominação dos Estados, classes, regiões ou grupos subordinados.

Trata-se da organização transnacional da resistência de Estados-nação, regiões, classes ou grupos sociais vitimizados pelas trocas desiguais de que se alimentam os globalismos localizados e os localismos globalizados [...] a resistência consiste em transformar trocas desiguais em trocas de autoridade partilhada, e traduz-se em lutas contra a exclusão, a inclusão subalterna, a dependência, a desintegração, a despromoção31

Esse fenômeno ocorre com organizações mundiais de trabalhadores, redes

internacionais de assistência jurídica alternativa, organizações transnacionais de proteção aos

direitos humanos, dentre outras. A quarta manifestação da globalização é a emergência de

temas que são tão globais como o próprio planeta, o denominado “Patrimônio Comum da

Humanidade”, como, por exemplo, a sustentabilidade da vida humana na Terra, a conservação

da camada de ozônio ou a preservação da Amazônia e da Antártida. Classifica o “Localismo

Globalizado” e o “Globalismo localizado como formas de globalização hegemônica, “de-

cima-para-baixo” e o “Cosmopolitismo” e o “Patrimônio Comum da Humanidade” como

formas de globalização contra hegemônica, ou “de-baixo-para-cima”, que oferecem

resistência à globalização hegemônica.

Santos leciona que o grande problema é que direitos humanos podem ser vistos tanto

como “Localismo Globalizado” quanto como “Cosmopolitismo”, ou seja, tanto como

globalização hegemônica quanto como globalização contra hegemônica

A minha tese é que, enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado - uma forma de globalização de cima-para-baixo. Serão sempre uma forma de <<choque de civilizações>> tal como concebe Samuel Huntington (1993), ou seja como uma arma do ocidente contra o resto do mundo (<<the West agaist the rest>>). A sua abrangência global será obtida à custa de sua legitimidade local. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, ou seja como globalização de-baixo-para-

31SANTOS, Boaventura de Sousa. Os Processos da Globalização . In. SANTOS, Boaventura (Org). A Globalização e as Ciências Sociais. 2. ed. São paulo: Cortez, 2002. I Linha de Horizonte. Capítulo 1, p.25-94. P. 67

41

cima, ou contra- hegemônica, os direitos humanos têm de ser reconceptualizados como multiculturais32

Ressalta que políticas de direitos humanos ao longo da história estiveram a serviço de

interesses econômicos e geopolíticos dos Estados capitalistas hegemônicos, que, a partir de

um discurso generoso e sedutor, permitiu atrocidades. Invoca Richard Falk ao tratar “política

da invisibilidade” e “política da supervisibilidade”, demonstrando que diversas atrocidades

são “maquiadas” ou colocadas no limbo do esquecimento em prol de interesses políticos.

Propõe uma perspectiva intercultural dos direitos humanos, ao lecionar que: A “Tarefa central

da política emancipatória do nosso tempo consiste em transformar a conceptualização e

prática dos direitos humanos de um localismo globalizado num projeto cosmopolita.”33

Defende ainda que, para que tal transformação cosmopolita seja possível, a primeira

premissa necessária a superação do debate sobre o universalismo e o relativismo cultural.

Todas as culturas são relativas mas tanto universalismo quanto o relativismo cultural

enquanto atitude filosófica são incorretos. “Contra o universalismo há que propor diálogos

interculturais sobre preocupações isomórficas. Contra relativismo, há que se desenvolver

critérios políticos para se distinguir política progressista de política conservadora, capacitação

de desarme, emancipação de regulação.”34

Santos ressalta a necessidade de que diálogos competitivos de culturas sobre a

dignidade humana evoluam para exigências máximas, e não para valores mínimos, como

defendido por alguns estudiosos.

O autor aponta como segunda premissa para tal transformação o conhecimento que

todas as culturas concebem a dignidade da pessoa humana, mas nem todas concebem em

termos de direitos humanos, sendo de suma relevância identificar preocupações isomórficas.

A terceira premissa para a transformação num projeto cosmopolita, ainda segundo Santos, é a

compreensão de que todas as culturas são incompletas e problemáticas na concepção de

dignidade da pessoa humana35. A quarta premissa é a noção de que todas as culturas têm

32SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 48. Jun. 1997. p.18 e 19 33SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 48. Jun. 1997. p. 21. 34SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 48. Jun. 1997. p. 21. 35Sobre a incompletude das culturas, segue a seguinte passagem que bem exemplifica a incompletude das culturas e demostra a necessidade de um diálogo multicultural “Mas o hinduísmo também tem problemas com a dignidade humana, como o fato de não ver a questão individual, a autonomia indi- vidual, que é também um aspecto fundamental dos DH: nunca vi uma sociedade sofrer, os sofrimentos são sem- pre nos corpos e

42

visões diferentes de dignidade da pessoa humana. A última premissa para tal transformação é

compreender que todas as culturas distribuem pessoas e grupos sociais em dois princípios, o

da igualdade e o da diferença. No entanto, tais princípios não se sobrepõem necessariamente

e, logo, nem toda igualdade é igual e nem toda diferença é desigual.

Propõe para a utilização da Hermenêutica diatópica, que requer a compreensão do

conhecimento e dos processos de produção do conhecimento das diferentes culturas de forma

interativa, intersubjetiva, coletiva e reticular, o que implica a compreensão de que os topoi, de

uma cultura, “lugares comuns retóricos mais abranges de uma determinada cultura”,36 são

tão incompletos quanto a própria cultura e que o objetivo não é atingir a completude, mas sim

alcançar a consciência da incompletude.

Defende que o diálogo intercultural dos Direitos humanos como forma emancipatória

só será possível se as possibilidades e exigências se coadunarem com o conceito cultural

local. Assim, apropriação e absorção não podem advir de canibalização cultural. Imperialismo

cultural e epistemicídio são partes da modernidade ocidental, mas devem ser combatidos a

partir de uma ótica multicultural. Transpondo a análise para uma perspectiva intracultural

propõe que das diferentes versões de uma cultura deve ser escolhida a que apresenta um

círculo mais amplo de reciprocidade

O segundo imperativo intercultural pode ser enunciado do seguinte modo: uma vez que todas as culturas tendem a distribuir pessoas e grupos de acordo com dois princípios concorrentes de pertença hierárquica e, portanto, com concepções concorrentes de igualdade e diferença, as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza. Este é, consabidamente, um imperativo muito difícil de atingir e de manter. 37

Em suma, Souza Santos defende que “os direitos humanos só poderão desenvolver seu

potencial emancipatório e progressista se libertarem e seu falso universalismo e se tornarem

verdadeiramente multiculturais”, ou seja, que para que os direitos humanos cumpram sua

indivíduos. Todas as concepções sobre dignidade humana são incompletas, é preciso fazer um trabalho multicultural.” SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria critica e reinventar a emancipação social. Tradução de Mouzar Benedito. São Paulo : Boitempo, 2007. P. 119 e 120. 36SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 48. Jun. 1997. P. 23. 37SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 48. Jun. 1997. P.30

43

missão de avançar a proteção e efetivação da dignidade humana, é necessário que se adote a

perspectiva multicultural.

2.1.4 Austin Sarat e Thomas Kearns 38

Os autores alertam que o discurso hegemônico dos direitos humanos ainda é o que

prevalece no imaginário político de muitos. No entanto, tal discurso é frágil: apesar de a

linguagem dos direitos humanos pretender ser universal, inexiste consenso sobre o seu

conteúdo. A dissenso abarca tanto os direitos a serem demandados quanto a interpretação de

diferentes culturas sobre o conteúdo dos direitos.

Se, por um lado, o discurso dos direitos humanos é promissor, por outro, existem

diversos questionamentos, tanto nas esteira dos apontados por Santos, sobre respeito a

tradições e especificidades culturais como também sobre a capacidade dos direitos humanos

oferecerem uma pauta de proteção.

Austin Sarat e Thomas Kearns entendem que, apesar das críticas, há a nível mundial

um crescimento do discurso dos direitos humanos, que resulta de uma série de fatores, dentre

eles o fracasso do comunismo e a ascensão de democracias liberais. Nesse cenário, a

democracia e o discurso dos direitos humanos passaram a ser a ideologia de mudança social.

Assim, diversos movimentos sociais valem-se dos direitos humanos para relacionar as

violações ocorridas com reivindicações transfronteiriças e avançar suas pautas de proteção.

Nesse sentido, num contexto capitalista ameaçador, os direitos humanos podem se apresentar

como um antídoto em prol da justiça social.39

A sedução dos direitos humanos persiste justamente porque esse tem duas faces.

Podem tanto empoderar quanto servir para fomentar a opressão, podendo então ser usado para

conservar ou revolucionar. O discurso é usado tanto por Estados e nas relações interestatais

38SARAT, Austin; KEARNS, Thomas. The Unsettled Status of Human Rights. In: SARAT, Austin; KEARNS, Thomas (Eds.). Human Rights: Concepts, Contests, Contingencies. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2001. P. 1-24. 39SARAT, Austin; KEARNS, Thomas. The Unsettled Status of Human Rights. In: SARAT, Austin; KEARNS, Thomas (Eds.). Human Rights: Concepts, Contests, Contingencies. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2001. P. 1-24. P. 6-7.

44

quanto por movimentos sociais para legitimar o questionamento do status quo e avançar em

pleitos por transformação social.40

Adianta-se aqui que a face dos direitos humanos que se pretende fomentar com a EDH

é a que gera empoderamento. Assim, torna-se importante a consciência do educador de

direitos humanos desse duplo viés para que fomente um processo de conscientização crítica

em prol de direitos humanos que libertem da opressão e não a reforcem, que revolucionem e

não mantenham o status quo.

Os autores rememoram críticas contemporâneas aos direitos humanos, na esteira da

crítica marxista que os direitos humanos são egoísticos e visualizam o homem isolado do

meio social41. Críticas ainda se debruçam sobre o caráter universal ou natural dos direitos

humanos, ao argumento de que direitos humanos estão intrinsecamente conectados com a sua

criação e o contexto no qual se desenvolveram. Apontam que críticos sugerem uma

abordagem heterogênea dos direitos humanos e que o enfoque seja de acordo com a

particularidade do contexto de cada local e tempo.42 Aqui mais um ponto relevante para a

EDH: a reflexão sobre o contexto da criação dos direitos humanos possibilita desmistificar

por que protege alguns e oprime outros, ou seja, permite desvelar a ideologia e compreender

criticamente o fenômeno de proteção.

No que tange à intervenção para proteção dos direitos humanos, questionam a

possibilidade de imposição de valores culturais de uma cultura sobre a outra, como se

assegurar as diferenças culturais e ainda assim assegurar um patamar mínimo de proteção. Os

autores também reconhecem a dificuldade de se apresentar respostas a tais indagações, bem

como que, para aqueles comprometidos com uma visão cosmopolita, o discurso dos direitos

humanos é moralmente atrativo e alicerça a intervenção independentemente do local. Por

outro lado, ressaltam a existência de argumentos importantes sobre a autodeterminação,

respeito e empoderamento de povos historicamente marginalizados43. Ressaltam que dois

fatores levam a uma mudança do cenário, quais sejam: a globalização e um novo

entendimento de cultura, antes vista como algo uno, passa a ser entendida como algo

40SARAT, Austin; KEARNS, Thomas. The Unsettled Status of Human Rights. In: SARAT, Austin; KEARNS, Thomas (Eds.). Human Rights: Concepts, Contests, Contingencies. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2001. P. 1-24. p. 7-8 41Nesse sentido, citam a crítica marxista anteriormente abordada. 42 SARAT, Austin; KEARNS, Thomas. The Unsettled Status of Human Rights. In: SARAT, Austin; KEARNS, Thomas (Eds.). Human Rights: Concepts, Contests, Contingencies. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2001. P. 1-24. P. 11 43“SARAT, Austin; KEARNS, Thomas. The Unsettled Status of Human Rights. In: SARAT, Austin; KEARNS, Thomas (Eds.). Human Rights: Concepts, Contests, Contingencies. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2001. P. 1-24. P. 12-13

45

fragmentado e plural. A globalização, marcada na atualidade pela intensificação das relações,

gera uma redistribuição de poder. Nesse sentido, está alterando o contexto em que se discute

direitos humanos e também o que significa falar sobre direitos humanos.44 Se por um lado

possibilita que o discurso dos direitos humanos tenha maior alcance, paradoxalmente, por

outro lado, intensifica privilégios e discursos que legitimam a pobreza, a opressão e a

discriminação45. Argumentos relativistas perdem força ante o processo de globalização

política, econômica e cultural em que se move rumo a um paradigma pós-cultural. Ressaltam

que globalização não é sinônimo de prevalência de valores ocidentais e que o tal paradigma

pós cultural surge a partir do questionamento, reflexão, oposição e consciência da

pluralidade.46

Neste contexto precisamos repensar o vocabulário tradicional de direitos humanos. Qual o significado de autodeterminação? De dignidade humana? De escolha para indivíduos e culturas? Precisamos remodelar o debate sobre universalismo e relativismo superando o entendimento de que direitos humanos sempre se justapõem à pluralidade de culturas e à alegada universal validade das normas47

O conceito de integridade cultural, outrora visto como estático, homogêneo e holístico,

central para o debate sobre direitos humanos, vem modificando-se em decorrência da

globalização. Antes visto como uma tentativa de imposição de valores ocidentais e como

oriundos de entes estatais, cada vez mais passa a incluir agentes não estatais. Assim, não são

44SARAT, Austin; KEARNS, Thomas. The Unsettled Status of Human Rights. In: SARAT, Austin; KEARNS, Thomas (Eds.). Human Rights: Concepts, Contests, Contingencies. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2001. P. 1-24. P. 13 45SARAT, Austin; KEARNS, Thomas. The Unsettled Status of Human Rights. In: SARAT, Austin; KEARNS, Thomas (Eds.). Human Rights: Concepts, Contests, Contingencies. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2001. P. 1-24. P. 14 “Globalization at once seems to provide a fertile terrain for the spread of human rights; yet it also reconfigures and intensifies patterns of privilege and and priviledges by furthering entrenching ideologies that legitimate a growing gap between rich and poor and, at the same time, decreasing rates of state investment in ameliorating these conditions. Moreover, the insistent globalization of neoliberal values can readly pit progressive elements in advanced capitalist societies and in modernizing countries agains one another " 46 SARAT, Austin; KEARNS, Thomas. The Unsettled Status of Human Rights. In: SARAT, Austin; KEARNS, Thomas (Eds.). Human Rights: Concepts, Contests, Contingencies. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2001. P. 1-24. P. 15 “Human rights norms are not the same thing as westernization.It involves a ploriferation of diversity in which human rights norms assumed to emanate in the traditions of one culture, are contested and decentered.” 47 SARAT, Austin; KEARNS, Thomas. The Unsettled Status of Human Rights. In: SARAT, Austin; KEARNS, Thomas (Eds.). Human Rights: Concepts, Contests, Contingencies. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2001. P. 1-24. p. 15 Tradução nossa: “In this context we need to rethink the traditional vocabularies of human rights: What is the meaning of self-determination? Of human dignity? Of choice for individuals and for cultures? We need to reconfigure the debate about universalism and relativism by moving away from an understanding of human rights tha always justaposes the plurality of cultures and and the alleged universal validity of moral norms”

46

mais valores homogêneos e holísticos de uma nação, mas sim diversas visões de grupos

advindos de diferentes fontes e interpretados e reinterpretados de acordo com a cultura local.48

Essa nova concepção da cultura remodela a esfera de presença e possibilidades dos direitos

humanos.

Movimentos sociais assumem um crescente e importante papel como atores que

pleiteiam proteção e mudança de postura e valem-se do discurso dos direitos humanos para

agregar força à sua pauta emancipatória e construírem alianças dentro e fora das fronteiras

nacionais.

Cumpre destacar que a visão dos atores de um paradigma pós-cultural, apesar de

diferir, dialoga com a visão multicultural de Santos e ressalta o papel crescente de agentes não

estatais na concepção de cultura. Assim como Santos, veem o potencial emancipatório dos

direitos humanos.

Em suma, os autores trazem à tona diversas críticas aos direitos humanos, reconhecem

suas ambiguidades, mas valem-se da expressão de Cheah para caracteriza-los como possuidor

de duas faces, mas absolutamente necessários.49Assim, cientes que os direitos humanos

podem tanto empoderar quanto servir para fomentar a opressão, reconhecem a sua

essencialidade no cenário atual por representarem uma ideologia de mudança social num

contexto em que outras pautas emancipatórias fracassaram.

2.1.5 Costas Douzinas

Douzinas aponta que contemporaneamente ao nascimento do capitalismo neoliberal

surgiram dois vetores: o humanitarismo-cosmopolitismo e a virada pós-política. Afirma

expressamente a existência de um vínculo entre políticas neoliberais e o moralismo veiculado

pela ideologia dominante e pelo discurso dos direitos, a governamentabilidade e a biopolítica,

que são as práticas usadas para disciplinar uma população inteira. Os direitos que outrora

podiam ser aliados de uma resistência ao poder passaram a ser apenas uma forma de reforçar

48 SARAT, Austin; KEARNS, Thomas. The Unsettled Status of Human Rights. In: SARAT, Austin; KEARNS, Thomas (Eds.). Human Rights: Concepts, Contests, Contingencies. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2001. P. 1-24. P. 17. 49SARAT, Austin; KEARNS, Thomas. The Unsettled Status of Human Rights. In: SARAT, Austin; KEARNS, Thomas (Eds.). Human Rights: Concepts, Contests, Contingencies. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2001. P. 1-24. À p. 24 citam Cheach, “Posit(ion)ing humanRights”, 31-32 " “Double edged but absoutely necessary”.

47

e endossar o poder e a ideologia neoliberal. Destaca, ainda, que, no plano internacional,

mecanismos de poder neoliberais reforçam o desequilíbrio entre países e a ideologia

dominante ocidental.50

Segundo o autor, os direitos humanos são a ideologia que restou presente ante o

insucesso das demais pautas de luta por justiça social. Aponta que, num olhar míope, os

direitos humanos aparentam ser a linguagem que unifica visões de mundo antagônicas, como

direita e esquerda. “Os direitos humanos são o destino da pós-modernidade, a ideologia

depois do fim, a derrota das ideologias. Eles unificam, pelo menos na superfície, (partes) da

direita e da esquerda, o norte e o sul, a igreja e o Estado, o pastor e o rebelde.” 51

No entanto, o consenso que o discurso dos direitos humanos carrega é apenas

aparente. O real objetivo dos direitos humanos é ser um instrumento de resistência, de luta em

prol dos vulneráveis e marginalizados. Os direitos humanos jamais podem compactuar com a

ideologia neoliberal que só privilegia aqueles que se inserem na lógica do consumo e que

invisibiliza aqueles que não conseguem participar do mercado. Nesse sentido, o autor

apresenta o seguinte axioma:

O objetivo dos direitos humanos é de resistir à dominação e à opressão pública e privada. Eles perdem este objetivo quando se transformam em ideologia política, ou em idolatria do capitalismo neoliberal ou na versão contemporânea da missão civilizatória. 52

O autor apresenta também sete teses que colocam em cheque a visão tradicional do

direito e apresenta uma perspectiva heterodoxa quando diz que “a noção de ‘humanidade’ não

possui um significado estático e não pode atuar como fonte de regras morais ou legais; 53”

Inicialmente reflete que o conceito de humanidade não é fixo, mas sim construído e

que, ao longo da história, foi usado como artifício para escravizar, oprimir e marginalizar. Ou

50DOUZINAS, Costas. Os Paradoxos dos Direitos Humanos. Tradução Caius Brandão. Anuário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos UFG. Pensar os Direitos Humanos: Desafios à Educação nas Sociedades Democráticas. Goiânia, v.1 n.1 2011. 51DOUZINAS, Costas. Os Paradoxos dos Direitos Humanos. Tradução Caius Brandão. Anuário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos UFG. Pensar os Direitos Humanos: Desafios à Educação nas Sociedades Democráticas. Goiânia, v.1 n.1 2011. p. 3 52DOUZINAS, Costas. Os Paradoxos dos Direitos Humanos. Tradução Caius Brandão. Anuário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos UFG. Pensar os Direitos Humanos: Desafios à Educação nas Sociedades Democráticas. Goiânia, v.1 n.1 2011. p. 3 53 DOUZINAS, Costas. Os Paradoxos dos Direitos Humanos. Tradução Caius Brandão. Anuário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos UFG. Pensar os Direitos Humanos: Desafios à Educação nas Sociedades Democráticas. Goiânia, v.1 n.1 2011. p. 6

48

seja, basta olhar para a história para vislumbrar a ideologia e o poder valendo-se de conceitos

de seres mais humanos e menos humanos para desenvolver seus projetos políticos, sociais e

econômicos. Assim, merece questionamento a afirmação de que se tem direitos humanos pelo

simples fato se de pertencer ao que a Declaração Universal dos Diretos Humanos (DUDH)54

chama de “família humana”. Tal questionamento dialoga com Santos ao afirmar que, no que

concerne à DUDH, nenhum esforço foi feito para se conceituar a família humana.

Poder e moralidade, império e cosmopolitismo, soberania e direitos, lei e desejo não são inimigos mortais. Ao contrário, uma amalgama, historicamente especifica, de poder e moralidade constituem a ordem estruturante de cada época e sociedade55

Não há como falar em direitos universais se, para gozar de tais direitos, é pressuposto

o pertencimento a um Estado que os garanta. Só consegue galgar o status de ser humano

universal aquele que pertence a um Estado e goza de sua proteção. Apátridas de direito e

apátridas de fato, ou seja, aqueles que não possuem nacionalidade, ou que, por alguma razão

alheia à sua vontade não gozam da proteção estatal, ficam à margem da cidadania universal,

invizibilizados, não vivem, apenas sobrevivem – ou na linguagem foucaultiana, são deixados

para morrer.

Douzinas aponta que “A ordem pós-1989 combina um sistema econômico que gera

enormes desigualdades estruturais e opressão com uma ideologia jurídico-política que

promete dignidade e equidade. Esta grande instabilidade está levando ao seu fracasso.56”

Ressalta, portanto, a grande contradição existente entre o que o discurso neoliberal prega:

dignidade e equidade, com o que o neoliberalismo gera: uma grande injustiça social e

desigualdade. Aponta que o discurso de uma moral global faz parte do aparato ideológico

necessário para criação e manutenção do neoliberalismo.

54Doravante será usada a abreviação DUDH 55DOUZINAS, Costas. Os Paradoxos dos Direitos Humanos. Tradução Caius Brandão. Anuário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos UFG. Pensar os Direitos Humanos: Desafios à Educação nas Sociedades Democráticas. Goiânia, v.1 n.1 2011. p. 6 56DOUZINAS, Costas. Os Paradoxos dos Direitos Humanos. Tradução Caius Brandão. Anuário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos UFG. Pensar os Direitos Humanos: Desafios à Educação nas Sociedades Democráticas. Goiânia, v.1 n.1 2011. p. 3

49

Os direitos humanos e a sua disseminação não são simplesmente o resultado das disposições liberais e caridosas do ocidente. A moral global e as normas civis são elementos necessários para a criação de um capitalismo neoliberal mundial. 57

Assim, o discurso dos direitos humanos é um instrumento necessário para alicerçar o

capitalismo neoliberal, para fazer com que tal regime seja aceitável e para docilizar os corpos

sociais indóceis.

Apesar das diferenças no conteúdo, o colonialismo e os direitos humanos formam um continuo, episódios no mesmo drama, que começou com as grandes descobertas do novo mundo e agora é reproduzido nas ruas do Iraque: levar a civilização aos bárbaros. (…) Ambos são parte do mesmo pacote cultural do Ocidente, agressivo e redentor ao mesmo tempo. 58

O autor delineia fortes semelhanças entre os direitos humanos e o colonialismo, que

apesar de alicerçados conteúdos diferentes, têm na universalidade um dogma e prometem o

progresso. Ambos trazem consigo a promessa da salvação e, paradoxalmente, a possibilidade

de desmantelar modos de vida.

A perspectiva do autor é de que “O universalismo e o comunitarismo, ao invés de

serem adversários, são dois tipos de humanismo dependentes um do outro. Eles são

confrontados pela ontologia de igualdade singular” 59. Tanto o universalismo quanto o

comunitarismo falham ao buscar essências absolutas para a humanidade e a rejeitar o que não

se enquadra como tal. Já o individualismo esquece-se que o ser humano nasce em

comunidade que é parte integrante do seu eu. Para o autor, o conceito de humanidade passa

por constante redefinição, é incerto, mutável, instável e, portanto, não há como buscar um

fundamento ou fim para a humanidade. O futuro é, por sua própria natureza, indefinido.

Recusa, assim, que se coloque a humanidade como “um princípio normativo, niilista ou

mitológico”.

57DOUZINAS, Costas. Os Paradoxos dos Direitos Humanos. Tradução Caius Brandão. Anuário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos UFG. Pensar os Direitos Humanos: Desafios à Educação nas Sociedades Democráticas. Goiânia, v.1 n.1 2011. p. 7 58DOUZINAS, Costas. Os Paradoxos dos Direitos Humanos. Tradução Caius Brandão. Anuário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos UFG. Pensar os Direitos Humanos: Desafios à Educação nas Sociedades Democráticas. Goiânia, v.1 n.1 2011. p. 8 59DOUZINAS, Costas. Os Paradoxos dos Direitos Humanos. Tradução Caius Brandão. Anuário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos UFG. Pensar os Direitos Humanos: Desafios à Educação nas Sociedades Democráticas. Goiânia, v.1 n.1 2011. p. 3

50

Douzinas aponta que “Em sociedades capitalistas avançadas, os direitos humanos

despolitizam a política e se tornam estratégias para a publicização e legalização do desejo

individual (niilista e insaciável);” 60. O direito divide a sociedade entre legisladores, legislados

e os excluídos, que estão à margem dos diretos. O vocabulário dos direitos normaliza

perspectivas egoístas e ideológicas, tornando-as aparentemente compatíveis com o bem

comum.

Ao afirmar que “ideologias, interesses privados e interesses egoístas parecem naturais

e normais no âmbito do bem comum, quando encobertos pelo vocabulário dos direitos” 61,

Douzinas reflete que os excluídos que se contrapunham ao Estado, ao alcançar espaços de

liberdades em meio ao aparato estatal, são docilizados pelo Estado. Se antes da conquista “a

mudança política é uma questão de policiamento e de consenso” 62, galgado o espaço a

política retoma seu curso normal, mas com o seu conteúdo mais abrangente, agora abarcando

como legítima a nova pauta. Entre outros exemplos, cita o Feminismo.

As lutas pelos direitos humanos escancaram a desigualdade, exclusão e opressão,

assim como as divergências da sociedade. No entanto, paradoxalmente, apresentam soluções

que não endereçam as raízes do problema e não constroem fundações para a justiça social. As

soluções apresentadas são rasas, como uma maquiagem, e apenas encobrem a superfície para

tornar as violações e injustiças menos aviltantes.

O exemplo do feminismo é bem elucidativo neste ponto. Apesar das conquistas, de

constar no papel o direito à igualdade de gênero de participação política da mulher, o que se

observa são mudanças superficiais e que a estrutura social discriminatória permanece. Mais

ainda, cargos de poder dentro e fora do Estado, seja no Brasil ou em diversos países, são

majoritariamente ocupados por homens. As Nações Unidas, apesar de pregar a igualdade de

gênero, nunca contaram com uma secretária-geral.

O autor apresenta também uma tese a respeito da biopolítica quando diz ser “a virada

biopolítica transforma os direitos humanos em ferramentas de controle sob a promessa de

liberdade”63. A biopolítica é a prática do biopoder, que consiste em uma tecnologia de poder

60DOUZINAS, Costas. Os Paradoxos dos Direitos Humanos. Tradução Caius Brandão. Anuário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos UFG. Pensar os Direitos Humanos: Desafios à Educação nas Sociedades Democráticas. Goiânia, v.1 n.1 2011. p. 3 61DOUZINAS, Costas. Os Paradoxos dos Direitos Humanos. Tradução Caius Brandão. Anuário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos UFG. Pensar os Direitos Humanos: Desafios à Educação nas Sociedades Democráticas. Goiânia, v.1 n.1 2011. p. 10 62DOUZINAS, Costas. Os Paradoxos dos Direitos Humanos. Tradução Caius Brandão. Anuário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos UFG. Pensar os Direitos Humanos: Desafios à Educação nas Sociedades Democráticas. Goiânia, v.1 n.1 2011. p. 11 63 DOUZINAS, Costas. Os Paradoxos dos Direitos Humanos. Tradução Caius Brandão. Anuário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos UFG. Pensar os Direitos Humanos: Desafios

51

baseada em dados estatísticos que possibilita o controle de aspectos da vida de populações

inteiras, tais como saúde, natalidade e controle de fronteiras. A virada biopolítica é justamente

a mudança da forma de exercício dos mecanismos de poder: outrora se centrava no controle e

disciplina do indivíduo passando-se, então, a verter atenção para populações. Douzinas reflete

como a biopolítica está presente nos mais relevantes fenômenos políticos.

A organização biopolítica do poder é evidente em todos os fenômenos políticos importantes, tais como: a guerra contra o terror; a migração em massa; as políticas para refugiados; as iniciativas de saúde pública; as intervenções demográficas; as políticas de segurança, o famoso risco da sociedade sob o qual supostamente vivemos; as legislações acerca de emergências; bem como a chamada securitization (relativo à segurança) de políticas internacionais. 64

Douzinas aponta que os direitos humanos são uma ferramenta de subjetivação, de

controle, que perde a sua normatividade, sua potência para produzir mudanças, para

normalizar, reforçar e tornar aceitáveis as injustiças causadas pelo neoliberalismo.

O autor também sugere que, “em contraposição ao cosmopolitismo do neoliberalismo

e do império, o cosmopolitismo vindouro estabelece o ultimo princípio moderno de justiça. 65.

Douzinas aponta ser necessário o reconhecimento de que “[…] o capitalismo global neoliberal

e os direitos humanos-para-exportação são parte do mesmo projeto.”66 e que os direitos

humanos vêm sendo utilizados como uma engrenagem do neoliberalismo. Trata-se de um

paliativo que melhora a vida de poucos, mas que não possibilita mudanças estruturais e que

acaba por cooptar movimentos e mitigar resistência política.

Os direitos humanos podem voltar a reclamar o seu papel redentor nas mãos e imaginação de quem os devolvem à tradição de resistência e luta, contra o conselho

à Educação nas Sociedades Democráticas. Goiânia, v.1 n.1 2011. p. 4 64DOUZINAS, Costas. Os Paradoxos dos Direitos Humanos. Tradução Caius Brandão. Anuário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos UFG. Pensar os Direitos Humanos: Desafios à Educação nas Sociedades Democráticas. Goiânia, v.1 n.1 2011. p. 12 65DOUZINAS, Costas. Os Paradoxos dos Direitos Humanos. Tradução Caius Brandão. Anuário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos UFG. Pensar os Direitos Humanos: Desafios à Educação nas Sociedades Democráticas. Goiânia, v.1 n.1 2011. 66DOUZINAS, Costas. Os Paradoxos dos Direitos Humanos. Tradução Caius Brandão. Anuário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos UFG. Pensar os Direitos Humanos: Desafios à Educação nas Sociedades Democráticas. Goiânia, v.1 n.1 2011. p. 14

52

dos pregadores do moralismo, da humanidade sofredora e da filantropia humanitária.67

Assim, defende que é tanto necessário quanto possível manter o potencial

emancipatório dos Direitos Humanos desde que se dissocie da engrenagem neoliberal e

retome-se a perspectiva da luta, do questionamento e refutem-se os conceitos tradicionais de

comunidade, Estado e pertencimento.

2.2 Direitos humanos: Diferentes escolas

Discute-se, a seguir, a classificação das escolas de direitos humanos na versão

proposta por Marie-Bénédicte Dembour. O objetivo é apresentar um panorama geral visando

identificar de forma crítica qual escola melhor se adequa à EDH no escopo do presente

trabalho.

2.2.1 Marie-Bénédicte Dembour: 4 escolas de direitos humanos

Dembour68 aponta a discordância sobre o conceito de direitos humanos e identifica

quatro escolas de pensamento sobre direitos humanos: a escola do direito natural; a escola

deliberativa; a escola do protesto e a escola do discurso. 69 Ressalta que tais escolas não são

categorias perfeitas, mas sim identificam pontos em comum entre diversas posições.70

67DOUZINAS, Costas. Os Paradoxos dos Direitos Humanos. Tradução Caius Brandão. Anuário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos UFG. Pensar os Direitos Humanos: Desafios à Educação nas Sociedades Democráticas. Goiânia, v.1 n.1 2011. p. 14 68DEMBOUR, Marie-Bénédicte. What are human rights? four schools of thought. 21 Human Rights Quarterly, 2010, p 1-20. Volume 32, Number 1, February 2010, pp. 1-20 (Article) Published by The Johns Hopkins University Press. Disponível em: <http://muse.jhu.edu/article/372282>. Acesso em 69DEMBOUR, Marie-Bénédicte. What Are Human Rights? Four Schools of Thought. Human Rights Quarterly, John Hopkins University Press. Project MUSE, v. 32, n. 1, p. 1-20. 2010. P. 1. "A close reading of academic literature reveals that we do not all conceive of human rights in the same way. This contribution proposes that "natural scholars" conceive of human rights as given; "deliberative scholars" as agreed upon; "protest scholars" as fought for, and "discourse scholars" as talked about.”. 70DEMBOUR, Marie-Bénédicte. What Are Human Rights? Four Schools of Thought. Human Rights Quarterly, John Hopkins University Press. Project MUSE, v. 32, n. 1, p. 1-20. 2010. P. 4.

53

A escola do direito natural, segundo a autora, “identifica os direitos humanos como os

direitos que um indivíduo possui simplesmente por ser humano”71, ou seja, os direitos

humanos são dados e baseados na “natureza" (que segundo a autora pode ser um Deus, o

Universo, a razão ou outra fonte transcendental). Para a maioria dos estudiosos dessa escola, o

núcleo duro dos direitos humanos é constituído de obrigações negativas e, portanto, absolutas.

O reconhecimento social e pelo direito positivo é bem-vindo, mas não necessário.

A escola deliberativa “concebe os direitos humanos como valores políticos que

sociedades liberais procuram adotar.”72. Seus adeptos tendem a refutar o argumento natural e

entendem que a origem dos direitos humanos é o acordo social. Eles também louvam o

universalismo, mas reconhecem as dificuldades para chegar a tal concepção que demanda um

amplo convencimento ao redor do globo. "A escola invariavelmente ressalta os limites dos

direitos humanos, vistos como ferramentas para governar a política exclusivamente, não

sendo relevantes para o todo da vida humana moral e social.73” Muitos dos adeptos dessa

corrente entendem que o direito constitucional é uma das principais maneiras de se veicular os

direitos humanos.

A escola do protesto tem como principal preocupação endereçar injustiças. Os adeptos

desta escola defendem que os direitos humanos levam a cabo as pretensões legítimas dos

vulneráveis, pobres e oprimidos.

“Acadêmicos protestadores olham para os direitos humanos como demandas e aspirações que visam contestar o status quo em favor dos oprimidos. Assim, eles não

71DEMBOUR, Marie-Bénédicte. What Are Human Rights? Four Schools of Thought. Human Rights Quarterly, John Hopkins University Press. Project MUSE, v. 32, n. 1, p. 1-20. 2010. p. 2. Tradução nossa: […] a definition that identifies human rights as those rights one possesses simply by being a human being” 72DEMBOUR, Marie-Bénédicte. What Are Human Rights? Four Schools of Thought. Human Rights Quarterly, John Hopkins University Press. Project MUSE, v. 32, n. 1, p. 1-20. 2010, p. 3. Tradução nossa: ”[…] conceives of human rights as political values that liberal societies choose to adopt. Deliberative scholars tend to reject the natural element on which the traditional orthodoxy bases human rights. For them, human rights come into existence through societal agreement. Deliberative scholars would like to see human rights become universal, but they also recognize that this will require time. In addition, they understand that this will happen only when and if everybody around the globe becomes convinced that human rights are the best possible legal and political standards that can rule society and therefore, should be adopted. This school invariably stresses the limits of human rights, which are regarded as fit to govern exclusively the polity and not being relevant to the whole of moral and social human life. Deliberative scholars often hold constitutional law as one of the prime ways to express the human rights values that have been agreed upon." 73DEMBOUR, Marie-Bénédicte. What Are Human Rights? Four Schools of Thought. Human Rights Quarterly, John Hopkins University Press. Project MUSE, v. 32, n. 1, p. 1-20. 2010. p. 3. Tradução nossa: “This school invariably stresses the limits of human rights, which are regarded as fit to govern exclusively the polity and not being relevant to the whole of moral and social human life."

54

estão particularmente interessados na premissa de que direitos humanos são direitos (apesar de não rejeitarem tal premissa).74”

Vislumbram que a busca em prol da dignidade é incessante, tendo em vista que

conquistas significam apenas mais um passo na caminhada, mas nunca o fim das injustiças.

Centram suas atenções nas “fontes concretas dos direitos humanos nas lutas sociais, que são

tanto necessários quanto perenes.”75 No entanto, “aceitam que a fonte última dos direitos

humanos está no plano transcendental76”. Mesmo que às vezes lutem pela positivação dos

direitos humanos, têm uma postura de questionamento em relação aos direitos humanos

positivados pois entendem que podem ser parte de um mecanismo ideológico para a

manutenção do status quo e não para a justiça social.

A escola do discurso não acredita nos direitos humanos e entende que “os direitos

humanos existem apenas porque as pessoas falam sobre eles.”77 No entanto, reconhecem o

poder da linguagem dos diretos humanos para levar a cabo pretensões políticas e temem que

sejam usados em prol do imperialismo. Enfatizam as limitações decorrentes de uma ética

baseada na perspectiva individualista dos direitos humanos. Reconhecem que, vez ou outra, o

discurso dos direitos humanos leva a resultados positivos.

A autora apresenta o modelo abaixo78 e explica que a linha horizontal à esquerda

representa uma perspectiva mais individualista e, à direita, mais coletivista. Quanto à linha

74DEMBOUR, Marie-Bénédicte. What Are Human Rights? Four Schools of Thought. Human Rights Quarterly, John Hopkins University Press. Project MUSE, v. 32, n. 1, p. 1-20. 2010. p. 3. Tradução nossa: [Para melhor compreensão transcrevo um trecho maior e grifo o trecho traduzido] tradução nossa ”The protest school is concerned first and foremost with redressing injustice. For protest scholars, human rights articulate rightful claims made by or on behalf of the poor, the unprivileged, and the oppressed. Protest scholars look at human rights as claims and aspirations that allow the status quo to be contested in favor of the oppressed. As such, they are not particularly interested in the premise that human rights are entitlements (though they do not reject it). Protest scholars advocate relentlessly fighting for human rights, as one victory never signals the end of all injustice. They accept that the ultimate source of human rights lies on a transcendental plane, but most of them are more concerned with the concrete source of human rights in social struggles, which are as necessary as they are perennial. Even if they sometimes regard the elaboration of human rights law as a goal, they nonetheless tend to view human rights law with suspicion as participating in a routinization process that tends to favor the elite and thus may be far from embodying the true human rights idea."" 75DEMBOUR, Marie-Bénédicte. What Are Human Rights? Four Schools of Thought. Human Rights Quarterly, John Hopkins University Press. Project MUSE, v. 32, n. 1, p. 1-20. 2010. p. 3. Tradução nossa do original: ”[…] concrete source of human rights in social struggles, which are as necessary as they are perennial."" 76DEMBOUR, Marie-Bénédicte. What Are Human Rights? Four Schools of Thought. Human Rights Quarterly, John Hopkins University Press. Project MUSE, v. 32, n. 1, p. 1-20. 2010. p. 9. 77DEMBOUR, Marie-Bénédicte. What Are Human Rights? Four Schools of Thought. Human Rights Quarterly, John Hopkins University Press. Project MUSE, v. 32, n. 1, p. 1-20. 2010, p. 4. Tradução nossa: "In its perspective, human rights exist only because people talk about them." 78DEMBOUR, Marie-Bénédicte. What Are Human Rights? Four Schools of Thought. Human Rights Quarterly, John Hopkins University Press. Project MUSE, v. 32, n. 1, p. 1-20. 2010. p. 5, Figura 1: “What are Human Rights “. Tradução nossa.

55

vertical, para cima, indica os direitos humanos como transcendentais; para baixo, como

construídos, baseados na realidade social.

Figura 1- O que são direitos humanos?

Fonte: DEMBOUR (2010). Tradução nossa.

2.2.2 Educação em Direitos Humanos: a escolha pela Escola do Protesto

Dentre as diversas escolas dos Direitos Humanos, a que mais se adéqua ao potencial

emancipatório da EDH, que neste trabalho é alicerçada na visão democrática de Dewey e na

pedagogia crítica de Paulo Freire, como será exposto nos capítulos seguintes, é a escola do

protesto. O presente trabalho defende que o ponto central da EDH é endereçar injustiças

socais. Assim, passa-se a refletir sobre cada uma das escolas para, em seguida, se aprofundar

na escolha da escola do protesto.

A escola do direito natural desvia-se do propósito emancipatório, pois ao afirmar que

os indivíduos possuem direitos simplesmente por serem humanos, fecha os olhos para a

realidade global: milhões79 de seres humanos vivem na miséria à margem dos direitos,

79De acordo com a Base de dados do Banco Mundial, em 2013, 767 milhões de pessoas viviam com menos de 1.90 Dólares Americamos por dia. Transcrevo trecho original: “According to the most recent estimates, in 2013, 10.7 percent of the world’s population lived on less than US$1.90 a day, compared to 12.4 percent in 2012.

56

lutando apenas para se manterem vivos. Mais ainda, ao defender direitos universais e ao

centrar-se em obrigações absolutas e negativas, privilegia direitos civis e políticos em

detrimento dos socioculturais e econômicos que são igualmente importantes e, muitas vezes,

condição necessária para que os marginalizados e oprimidos consigam exercer seus direitos

civis e políticos. A escola do Direito Natural fomenta direitos em uma perspectiva egoística e

individualística, de um homem apartado de seu meio social, o que reparte, desarticula

indivíduos e é socialmente danoso à busca por uma sociedade mais justa.

A escola deliberativa pressupõe a escolha de valores políticos. No entanto, também

não é a mais adequada para a emancipação, pois desconsidera os marginalizados que não

participam de fato desse processo de “escolha”. A suposta “escolha” é feita de acordo com os

elementos de poder prevalentes e pelas classes dominantes. Assim, o “acordo social” é um

instrumento de manutenção do status quo que tanto não escuta como mantém mudos os

invizibilizados pelo liberalismo. Mais ainda, privilegia a visão individualista dos Direitos

Humanos, em detrimento do coletivo necessário para os marginalizados unirem forças em

prol de seu reconhecimento. Ao defender o direito constitucional como um dos principais

meios de externalização dos direitos humanos, confia demasiadamente nos entes estatais,

compactua com aquele que pode ser o maior violador, distancia os direitos humanos da moral,

aproximando-os com o direito posto e subverte a lógica de proteção. O louvor ao

universalismo, apesar do reconhecimento dos desafios que apresenta, também podem ameaçar

o viés emancipatório do multiculturalismo e o respeito à incompletude de todas as culturas.

A escola do discurso também não é a que mais se adéqua à pretensão emancipatória

que se busca com a EDH, pois falta-lhe o alicerce fundamental, a saber, a crença nos direitos

humanos. Na construção de uma sociedade mais justa, direitos humanos precisam ser mais

que mero discurso. Por outro lado outro, é relevante para a pretensão emancipatória as

reflexões apresentadas pela escola do discurso de que a linguagem dos diretos humanos pode

ser usada em prol de uma lógica imperialista. Deve-se considerar, ainda, as limitações

decorrentes de uma ética baseada na perspectiva individualística dos direitos humanos. Saber

de tais riscos é essencial para evitar descaminhos.

A escolha pela escola do protesto justifica-se pois na visão desta, “direitos

humanos articulam demandas legítimas feitas por ou em nome dos pobres, desprivilegiados, e

oprimidos.”80 No mesmo sentido, o presente trabalho defende que o principal objetivo da

That’s down from 35 percent in 1990. This means that, in 2013, 767 million people lived on less than $1.90 a day, down from 881 million in 2012 and 1.85 billion in 1990”. 80DEMBOUR, Marie-Bénédicte. What Are Human Rights? Four Schools of Thought. Human Rights

57

EDH é justamente fomentar o conhecimento para que os mais vulneráveis, oprimidos e

invizibilizados articulem mecanismos de prevenção, proteção e respeito com o objetivo de

superar a realidade injusta. Para tanto, é necessário questionar a ideologia prevalente, desafiar

as desigualdades sociais e fomentar a luta contínua dos marginalizados. Tal concepção está na

esteira da escola do protesto. Segundo ela, os Direitos Humanos “[...] permitem que se

conteste o status quo em favor dos oprimidos [...]defendem uma luta continua pelos direitos

humanos, tendo em vista que uma vitória nunca sinaliza o fim de todas as injustiças”. 81

Considerando-se que o objetivo da EDH é a emancipação social e a superação da realidade

injusta, assim como prescreve a escola do protesto, a principal preocupação de ambos é

“[...]com as fontes concretas dos direitos humanos nas lutas sociais, que são tanto necessários

quanto perenes”. 82 A EDH que se propõe preocupa-se com a justiça e com o valor moral,

podendo esses – ou não – coincidir com o direito positivado. Tendo em vista que a

proeminência estatal para fazer valer as normas de direitos humanos é problemática, na

medida em que equipara lei a justiça, tática utilizada por regimes totalitários para perpetrar

barbáries, a EDH requer criticidade e um constante questionamento das normas jurídicas. No

mesmo sentido, a escola do protesto, ainda que almeje que os Direitos Humanos sejam

expressos pelas normas jurídicas estatais, “[...]tendem a ver os direitos humanos positivados

com suspeição, como participantes de um processo de rotinização que tende a favorecer a

elite e, assim, pode estar longe de incorporar a verdadeira ideia dos direitos humanos” 83.

Normas estatais sempre apresentam o risco de se tornarem um instrumento de opressão

visando a manutenção da ordem vigente.

Quarterly, John Hopkins University Press. Project MUSE, v. 32, n. 1, p. 1-20. 2010. p. 3. Tradução nossa do original: ” […] human rights articulate rightful claims made by or on behalf of the poor, the unprivileged, and the oppressed. ". 81DEMBOUR, Marie-Bénédicte. What Are Human Rights? Four Schools of Thought. Human Rights Quarterly, John Hopkins University Press. Project MUSE, v. 32, n. 1, p. 1-20. 2010. p. 3. Tradução nossa do original: ” Protest scholars look at human rights as claims and aspirations that allow the status quo to be contested in favor of the oppressed. […]advocate relentlessly fighting for human rights, as one victory never signals the end of all injustice." 82DEMBOUR, Marie-Bénédicte. What Are Human Rights? Four Schools of Thought. Human Rights Quarterly, John Hopkins University Press. Project MUSE, v. 32, n. 1, p. 1-20. 2010. p. 3. Tradução nossa do original: ”[…] most of them are more concerned with the concrete source of human rights in social struggles, which are as necessary as they are perennial." 83DEMBOUR, Marie-Bénédicte. What Are Human Rights? Four Schools of Thought. Human Rights Quarterly, John Hopkins University Press. Project MUSE, v. 32, n. 1, p. 1-20. 2010. p. 3. Tradução nossa do original: ” {…]tend to view human rights law with suspicion as participating in a routinization process that tends to favor the elite and thus may be far from embodying the true human rights idea.""

58

59

3 EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

EDH é um direito humano, um instrumento para fomentar o conhecimento, reflexão e

progressivamente aprimorar visões sobre as diversas facetas da dignidade da pessoa humana.

Possibilita um desenvolvimento tanto "de baixo para cima" quanto "de cima para baixo” de

patamares de respeito por seres humanos. Ajuda a estruturar redes de proteção aos direitos

humanos, empodera indivíduos e movimentos sociais e melhora a atuação de servidores

governamentais. Além disso, contribui para redesenhar o meio ambiente escolar e resultados

educacionais rumo a uma sociedade mais inclusiva e respeitosa. A ausência de conhecimento

sobre os direitos humanos e mecanismos para sua implementação é, frequentemente, uma

barreira para o seu respeito e proteção. A lacuna de conhecimento tem um impacto ainda mais

avassalador nas populações vulneráveis, tais como crianças, minorias étnicas, deficientes e

idosos. Assim, EDH pode contribuir para o fortalecimento dos direitos civis, políticos,

econômicos, culturais e sociais e a construir uma sociedade mais livre, justa e igualitária.

Num mundo em que cresce o número de refugiados e pessoas deslocadas84 e de

aviltantes manifestações odiosas em relação a mulçumanos, indígenas, homossexuais e outras

minorias, a EDH é relevante para a paz mundial. Apesar de todos os benefícios da EDH, do

Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos e das Diretrizes Nacionais para a

Educação em Direitos Humanos85 e dos importantes avanços nas últimas décadas, a EDH no

país ainda tem muito a avançar. Muitas previsões e compromissos não saem do papel e não

existe um monitoramento sistemático, qualitativo e quantitativo sobre a EDH no Brasil.

Nesse sentido, o Brasil ainda está distante tanto de alcançar o potencial emancipatório

que a EDH oferece quanto de atingir o patamar internacional de EDH. Assim, o Brasil

necessita de envidar grandes esforços para implementar a EDH em diversos âmbitos da

sociedade, especialmente para as camadas hipossuficientes e vulneráveis, tendo em vista que

essas são as mais afetadas pela lacuna na EDH.

84ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Alto Comissariado das Nações Unidas Para Refugiados. Estatísticas dosponíveis no sítio eletrônico. 85"Para aprofundar recomento do caderno de direitos humanos da Secretaria de Direitos Humanos <http://www.sdh.gov.br/assuntos/conferenciasdh/12a-conferencia-nacional-de-direitos-humanos/educacao-em-direitos-humanos/caderno-de-educacao-em-direitos-humanos-diretrizes-nacionais>.

60

3.1 Conceito de Educação em Direitos Humanos

EDH é o direito humano a ter conhecimento sobre direitos humanos. As primeiras

definições de EDH eram muito limitadas e excluíam parte significativa da sociedade. Na seara

internacional nos anos 50 e 60, a EDH era primordialmente restrita a crianças e jovens

inseridos no sistema educacional. Na década seguinte, o cenário da educação formal

continuou a ser o principal protagonista da EDH, mas o conceito expandiu-se para abarcar a

habilidade de pensamento crítico e preocupação com vítimas. No entanto, não havia esforços

significativos para conscientização da responsabilidade de proteção ou ações para se

conscientizar sobre direitos e promover mudança social. O florescer do movimento dos

direitos humanos na seara internacional nos anos 60 e 70 iluminaram a relevância da EDH

para toda a sociedade e seu potencial de promoção de desenvolvimento social. A globalização

e o incremento de novas formas de comunicação e informação contribuíram para que a EDH

atingisse audiências além de elites bem-educadas e se destinasse a movimentos sociais e

camadas mais vulneráveis.86

No contexto latino-americano, as ditaduras militares nas décadas de 70 e 80 fizeram

com que a EDH, em diversos países, constituísse um movimento clandestino, oculto e

perigoso para os educadores87. As ditaduras militares violaram diversos direitos humanos e,

com a redemocratização, houve e ainda há uma necessidade social, moral e política de uma

EDH. No entanto, Magendzo ressalta que houve uma tendência em não se usar expressamente

o termo EDH, temendo-se que tal expressão gerasse litigiosidade ou desconfortos políticos.

86FLOWERS, Nancy. The Human Rights Education Handbook Effective Practices for Learning, Action, and Change. The human rights reseach center & The Stanley Foundation, 2000. P. 7. 87MAGENDZO, Abraham. Pedagogy of human rights education: a Latin American perspective. Intercultural Education, UNESCO, Routledge, Chile, v. 16, n. 2, p. 137–143, mai 2005, p. 137-138. Sobre o tema interessante, o seguinte trecho do artigo de Magendzo, que ilustra a clandestinidade da educação em direitos humanos durante o regime ditatorial no Chile: “I begin by sharing some personal experiences that illustrate how we started working in human rights education in Latin America. It was in the mid 1980s and Chile still had a military regime. A friend of mine, Jorge Osorio, an intellectual and human rights activist, invited me to speak on human rights education with a group of people who were working in popular education. The seminar took place outside of the city, by the beach, far away of the eyes of the soldiers and oppressive forces. Fear was an essential part of this experience. It sounds dramatic, but it is also true, that feelings of fear have been a constant since the beginning of our work. Memories of this fear still linger. One of the first tasks we undertook was to manage our apprehension, and to integrate fear into the process of transformative learning.

Many of the educators participating in the seminar were people who had been tortured, kept in jail for long periods, humiliated and denigrated in horrible manners. This led me to ask myself why the only ones who were reflecting on human rights education were those who had suffered the most during the repression. I came to the conclusion that when democracy was recovered, human rights education should be the center of education. It should be the main objective. “

61

Assim, foram usados outros termos como educação para a paz. O autor também

defende o uso do termo EDH por entender que a linguagem impacta na realidade e que o

contexto latino-americano é marcado por violações de direitos humanos. Atualmente o termo

EDH é amplamente aceito.88 Magendzo ressalta os perpetradores dos abusos terem sido

educados em escolas, o que demonstra a essencialidade da EDH no ensino escolar. Entende

como imprescindível a educação para a memória e para o “nunca mais” e ressalta que, no

contexto de redemocratização em que vivemos, marcado por diversas contradições, há uma

tendência em se apagar, negar o passado. Denúncia a falta de preparo pedagógico, emocional

cultural e de conteúdo dos educadores tanto nas décadas de 70 e 80 quanto na atualidade. 89

Reflete ainda sobre as dificuldades que se impõem à pedagogia crítica e à EDH,

especialmente em contextos democráticos frágeis como os experimentados em diversos países

latino-americanos em que a pobreza é endêmica, a sensação experimentada por toda a

sociedade é a de impunidade e em que violações de direitos humanos e condutas autoritárias

fazem parte do dia a dia.

Sem dúvidas, desenvolver novas formas de enxergar e comportar requerem muito mais tempo e esforço de professores e educadores em direitos humanos. Atitudes e valores relacionados a direitos humanos estão profundamente enraizados em nossa cultura e não são fáceis de serem negados. É particularmente difícil produzir mudanças em um contexto que é caracterizado por democracias fracas e instáveis, onde o autoritarismo e padrões não democráticos de comportamento na arena política e no dia-a-dia são partes integrantes de nossa cultura; em um contexto de pobreza endêmica, com milhões de pessoas vivendo em pobreza extrema; em um contexto de violência, onde a impunidade às violações de direitos humanos é a norma, onde todos conspiram por permanecerem silentes e indiferentes a essas violações; e em um contexto onde a corrupção está generalizada por todo o espectro

88MAGENDZO, Abraham. Pedagogy of human rights education: a Latin American perspective. Intercultural Education, UNESCO, Routledge, Chile, v. 16, n. 2, p. 137–143, mai 2005. p. 137-138. 89 MAGENDZO, Abraham. Pedagogy of human rights education: a Latin American perspective. Intercultural Education, UNESCO, Routledge, Chile, v. 16, n. 2, p. 137–143, mai 2005. Do original p. 141: “ It must be said very openly that many teachers weren’t prepared to face all the demands of human rights education. Unfortunately, most are still not prepared. In general, they are not only lacking knowledge of international and national human rights instruments and institutions, but they are also sometimes not ready emotion- ally, pedagogically and culturally to teach human rights. They are caught up in an authoritarian culture and lack a critical approach to their educational work. It is not easy for teachers to be critical, particularly in a collective setting. In our culture, teachers are not accustomed to questioning, explaining and taking perspective on their practice. They are not accustomed to questioning the assumptions behind their beliefs, attitudes and behaviors. Teachers do not inquire about the ‘why’ and ‘how’ of the educational system. Unfortunately, they are an integral and functional part of it, reproducing inequities, social injustices, and various types of discrimination. In other words, on our continent, a critical approach is very far from the realities of many teachers and from the educational institutions they are a part of”.

62

da vida. 90

Assim como no contexto latino-americano, a EDH no Brasil é recente e calcada na

luta pela redemocratização:

No contexto da América Latina, a educação em direitos humanos é uma pauta mais recente que nasce com as reivindicações e movimentos sociais contra as ditaduras militares. Conforme o Conselho de Educação em Direitos Humanos da América Latina (CEAAL) e o Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH) as primeiras expressões da educação em direitos humanos ocorre no cenário da educação popular, fora do âmbito da educação formal. No Brasil, a educação em direitos humanos também só passou a fazer parte da agenda recentemente, com a luta pela redemocratização.91

Muitos acadêmicos de diversas escolas apresentaram diferentes conceitos de EDH92.

No entanto, desde 1995, a missão de definir tal educação foi facilitada por documentos das

Nações Unidas sobre o tema. O presente trabalho adota o conceito da Declaração das Nações

Unidas sobre a Educação e Formação em Direitos Humanos, através da resolução 66/13793 e

do programa mundial de Educação em Direitos Humanos94. EDH abarca educação,

informação e treinamento com o objetivo de promover uma cultura de direitos humanos.

Abarca a conscientização e compartilhamento do conhecimento sobre os direitos humanos,

mecanismos e habilidades para incorporar tais conhecimentos ao dia a dia, desenvolvimento 90MAGENDZO, Abraham. Pedagogy of human rights education: a Latin American perspective. Intercultural Education, UNESCO, Routledge, Chile, v. 16, n. 2, p. 137–143, mai 2005. P.142-143. Tradução nossa: “Undoubtedly, developing new ways of seeing and behaving requires much time and effort from teachers and human rights trainers. Attitudes and values related to human rights are deeply rooted in our culture and are not easy to change. It is particularly difficult to produce changes in a context that is characterized by weak and unstable democracies, where authoritarism and non- democratic patterns of behavior in the political arena and in day-to-day life are an integral part of our culture; in a context of endemic poverty, with millions of people living in extreme poverty; in a context of violence where impunity to the violation of human rights are the norm, where everybody colludes by being silent and indifferent to those violations; and in a context where corruption is widespread throughout the spectrum of life.“ 91 SILVA, Aida; TAVARES, Celma. Educação em direitos humanos no Brasil: contexto, processo de desenvolvimento, conquistas e limites. Educação- Programa de Pós Graduação em Educação - Escola Humanidades – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 36, n. 1, p. 50-58, jan./abr. 2013 P. 51-52. 92TIBBITTS, Felisa; KIRCHSCHLAEGER, Peter. Perspectives of Research on Human Rights Education. 2010. 93ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração das Nações Unidas sobre Educação e Formação para os Direitos Humanos. United Nations Declaration on Human Rights Education and Training. G.A Res. 66/137. Nova Iorque, 2011. 94 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração das Nações Unidas sobre Educação e Formação para os Direitos Humanos. United Nations Declaration on Human Rights Education and Training. G.A Res. 66/137. Nova Iorque, 2011. Destaque para os artigos 1 a 6.

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de valores e atitudes que fortalecem os direitos humanos, além de fomentar e encorajar

comportamentos e ações visando promover e proteger a dignidade humana.95 Abarca tanto a

educação formal quanto espaços fora da escola. A EDH é essencial para a educação formal

assegurar que, em uma geração, crianças e jovens terão um conhecimento mais sólido da

dignidade humana. Também é necessária para militares. Aqueles que causam violações

podem, por meio da educação, transformar-se em aliados na luta pela dignidade da pessoa

humana. Funcionários públicos, trabalhadores no setor de saúde e jornalistas também são um

grupo alvo importante, tendo em vista que frequentemente se deparam com várias formas de

violação e podem contribuir tanto para combatê-las quanto para conscientizar a sociedade

civil como um todo. A sociedade civil organizada, especialmente minorias e grupos

vulneráveis, podem se empoderar por meio da EDH.96 É um caminho para o desenvolvimento

social, tendo em vista que promove a compreensão tanto da dignidade do próprio sujeito

quanto dos outros que estão ao seu redor97. Uma cultura de direitos humanos contribui para

uma sociedade mais inclusiva que tem objetivos comuns para o presente e futuro. Tais

objetivos fomentam um comprometimento da sociedade civil em contribuir para a esfera

pública e em formar parcerias com o governo98. Quanto à visão de direitos humanos que deve

guiar a EDH, conforme apontado no capítulo anterior, escolheu-se a escola do protesto. Tal

visão é bem enfática nos escritos de Freire:

[...]a educação para os DH, na perspectiva da justiça, é exatamente aquela educação que desperta os dominados para a necessidade da “briga”, da organização, da

95ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos. The Right to Human Rights Education - A compilation of provisions of international and regional instruments dealing with human rights education. 2014. 96TIBBITTS, Felisa. Overview of research and evaluation within human rights education. In: Human Rights Education for Social Change: Evaluation Aproaches and Methodologies. Montreal, 2007. p. 2. Do original: “HRE takes place with youth, in classrooms and outside of school. HRE is organized in higher education settings; in training programs for professionals such as the police, prison officials, the military, social workers; for potentially vulnerable populations such as women and minorities; as part of community development programs; and in public awareness campaigns. HRE is also organized for trainers and activists, such as ourselves”. 97MARKS, Stephen; LICHEM, Walther; MODROWSKI, Kathleen. Human Rights Cities Civic Engagement for Societal Development. UNO Habitat, 2008. [E-Book]. P. 30. Do original: “Human rights education, learning and socialization are key strategies for achieving societal development. They provide each human being with the ability to understand his/her human dignity and hence the dignity of the other”. 98MARKS, Stephen; LICHEM, Walther; MODROWSKI, Kathleen. Human Rights Cities Civic Engagement for Societal Development. UNO Habitat, 2008. [E-Book]. P. 38. Do original: “An effective culture of human rights becomes the defining quality of a community, making it inclusive and providing it with a sense of shared purpose and future. The enhanced empowerment of people through human rights brings a new capacity and commitment of sharing the public space and for becoming a partner of the government in processes of governance”.

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mobilização crítica, justa, democrática, séria, rigorosa, disciplinada, sem manipulações, com vistas à reinvenção do mundo, à reinvenção do poder99.

Portanto, a principal missão da EDH é ser um instrumento para endereçar injustiças

socais.

99FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação. 4. ed. São Paulo: UNESP, 2000, p.99.

65

4 DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS

Compreende-se que a EDH só pode ocorrer em um ambiente democrático, ou seja,

onde o modus operandi garanta a plena participação na comunidade dos diversos atores

envolvidos no processo educacional. Mais ainda, a EDH, ao tempo em que tem como

requisito a democracia, também contribui para a construção de um ambiente democrático.

A pobreza, a exclusão, a marginalização e violação dos direitos mais básicos do ser

humano colocam em risco a democracia. No entanto, o resgate tanto dos direitos humanos

quanto da cidadania dos mais vulneráveis é possível desde que esses se tornem “conscientes

de que é possível o empoderamento de suas organizações e de suas redes sociais no sentido de

viabilizar a constituição de capital social para a minimização das misérias, das violências e

dos riscos.”100 Ou seja, o resgate dos direitos humanos perpassa justamente pela educação e

pela criação de oportunidades de participação da vida em comunidade. Miracy Gustin aponta

como requisitos para a democratização: “a) desocultação das variadas formas de violências; b)

resgate do “princípio de comunidade ”; c) relações horizontalizadas e coextensivas; d)

estimulo ao desenvolvimento de competências individuais, interpessoais e coletivas. “101. A

EDH é um importante instrumento para se galgar tais requisitos.

A autora compreende a liberdade como a igualdade de poder, a reciprocidade de

autonomia. A autonomia consiste na capacidade de compreensão do sujeito, tanto de sua

condição de ser individual e social quanto da realidade em que vive para tomar decisões. Tal

liberdade só ocorre em sociedades democráticas em que os sujeitos conseguem de fato

participar. Portanto, o Estado democrático de direito se funda na autonomia.

A liberdade compreendida como igual poder, isto é, como desenvolvimento de um poder de ser igualmente ou reciprocamente livres, só pode ser obtida em uma sociedade que preserve as regras democráticas de direito como suposto fundamental

100GUSTIN, Miracy. Resgate dos Direitos Humanos em situações adversas de países periféricos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, n. 47, p. 181-216, jul.- dez., 2005, p. 214. 101GUSTIN, Miracy. Resgate dos Direitos Humanos em situações adversas de países periféricos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, n. 47, p. 181-216, jul.- dez., 2005, p. 197-198.

66

e cujo sujeito de ação reconheça-se como autônomo e emancipado segundo essa reciprocidade […] de autonomia 102

Ausência ou deficiência democrática leva a distorções tanto no processo educacional

quanto no que se passa a denominar “direitos humanos”. Nesse sentido, Gontijo desvela a

perversão das “democracias” de mercado e consequente esquizofrenia dos “direitos

humanos”, um discurso cínico que apenas mantém ou, pior, acirra a opressão humana.

As democracias-mercado, estas sim detentoras dos “direitos humanos“ e da “democracia”, garantiram então o humano pleno de seus direitos: produzir e consumir. Nesse sentido eu ouso afirmar que os direitos humanos não passaram de um discurso cínico, estratégico, pernicioso e que impede a emancipação Aqui, mais uma vez, cabe-nos lembrar do destino trágico e prescrito por Arendt ao descrever esta sociedade como aquela condenada a ser gado cognitivo 103.

Feita essa breve exposição inicial sobre a intrínseca relação entre democracia, direitos

humanos e educação, faz-se necessário aprofundar na reflexão sobre democracia para

possibilitar a fundação de uma efetiva EDH. Parte-se da hipótese que a perspectiva

pragmática de John Dewey sobre democracia e educação é a que mais se adéqua à EDH

libertadora que se propõe no presente trabalho. Em capítulo seguinte, apresentar-se-a a

pedagogia crítica freireana que também é essencial para a EDH.

4.1 A perspectiva democrática e educacional pragmatista de John Dewey

O filósofo pragmatista e psicanalista John Dewey apresentou relevantes teorias para a

democracia, reforma educacional e social e para a educação progressista. Suas ideias, apesar

de desenvolvidas no início do século XX, permanecem inovadoras e oferecem importantes

contribuições para discussões atuais da teoria política e educacional e para a construção de 102GUSTIN, Miracy. Resgate dos Direitos Humanos em situações adversas de países periféricos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, n. 47, p. 181-216, jul.- dez., 2005, p. 216. 103GONTIJO, Lucas. A questão da universalidade dos direitos humanos e sua estruturação em conjunturas históricas. In: BRANDÃO, Claudio (Coord.) Direitos Humanos e Fundamentais em Perspectiva. São Paulo: Atlas: 2014. P. 135- 148. P. 143

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alternativas para a crise da pós-modernidade. Entende-se que a democracia na visão

deweyana é essencial para a EDH e deve permeá-la, sendo a ambiência presente em todo o

processo educacional. Assim, passa-se a expor a visão de Dewey, ao mesmo tempo em que

se discute suas implicações para a EDH.

Para o autor, a democracia é essencial tanto no campo político quanto no campo

educacional – e em todos os outros aspectos da vida social. Ou seja, a visão democrática de

deweyana é extremamente abrangente e não se restringe à atividade política estatal. O Estado

consiste apenas em uma, dentre as diversas formas da vida associativa.

A ideia de democracia é uma ideia mais ampla e completa do que pode ser exemplificada pelo Estado, mesmo em sua melhor forma. Para ser realizada tem que abranger todas as formas de associação humana, a família, a escola, a indústria, a religião. Ainda que arranjos políticos sejam relevantes instituições governamentais, não são mais do que mecanismos para assegurar uma ideia de canais de efetivo funcionamento104

Dewey apresenta a ideia de democracia como um modo de vida em comunidade: “A

clara consciência de uma vida em comunidade, com todas as suas implicações, constitui a

ideia de democracia”105. Nesse sentido, ressalta que concepções como fraternidade, liberdade

e igualdade só fazem sentido quando consideram o homem enquanto ser que se realiza no seio

da sociedade. Apresenta, assim, veemente crítica à ideologia iluminista dos direitos naturais

de pretensão universal e calcados na visão de um homem autônomo e autossuficiente.

“Fraternidade, liberdade e igualdade, isoladas da vida em comunidade, são abstrações que não levam a lugar algum. A asserção isolada de tais conceitos leva-nos a um sentimentalismo romântico ou ainda a uma violência fanática e excessiva que acaba por suplantar suas próprias finalidades”106

104DEWEY, John. The Public and its Problems. Estados Unidos: Pensilvania State University Press, 2012, p. 119. Tradução nossa: “The idea of democracy is a wider and fuller idea than can be exemplified in the state even at its best. To be realized it must affect all models of human association, the family, the school, industry, religion. And even as far as political arrangements are concerned governmental institutions are but mechanism for securing to an idea channels of effective operation.” 105DEWEY, John. The Public and its Problems. Estados Unidos: Pensilvania State University Press, 2012, p. 122 “The clear consciousness of communal life, in all its implications, constitutes the idea of democracy” 106DEWEY, John. The Public and its Problems. Estados Unidos: Pensilvania State University Press, 2012, p.122. Tradução nossa: “Fraternity, liberty and equality isolated from communal life are hopeless abstractions.

68

Dewey aponta que para a vida em comunidade, não basta a associação, que é uma

relação orgânica e física, é necessário também o desenvolvimento de um vínculo de cunho

moral 107 em que os cidadãos, membros da comunidade, esforçam-se coletivamente para a

consecução do bem comum. Tal ação conjunta impacta direta e mutuamente a forma de

pensar, desejar e propor dos indivíduos. “Assim, o homem não é vinculado de fato, mas ele se

torna um animal social na composição de suas ideias, sentimentos e comportamento

deliberativos. O que ele acredita, espera e objetiva é resultado das relações e intercâmbios

sociais” 108

Destaca que para a construção de uma sociedade democrática, são necessárias a

educação e a comunicação que, por sua vez, possibilitam a participação e o questionamento.

Tais elementos são tanto fundamentais para a formação do indivíduo quanto para a

constituição da comunidade e devem ser encarados como um processo contínuo e

mutuamente contributivo, uma engrenagem de progressivo desenvolvimento. Ou seja, quanto

mais se educa, mais se comunica, mais se possibilita a participação e mais se questiona e vice

e versa.

Their separate assertions leads to mushy sentimentalism or else to extravagant and fanatical violence which in the end defeats its own aims.” 107DEWEY, John. The Public and its Problems. Estados Unidos: Pensilvania State University Press, 2012, p. 122. Do original: “Association and joint activity is a condition of the creation of community. But association itself is physical and organic while communal life is moral that is emotionally, intellectually, consciously sustained.“ 108DEWEY, John. The Public and its Problems. Estados Unidos: Pensilvania State University Press, 2012, p. 53. Tradução nossa do original: “Thus man is not merely de facto associated, but he becomes a social animal in the makeup of his ideas, sentiments and deliberative behavior. What he believes, hopes for and aims at is the outcome of association and intercourse.”

69

Figura 2 - Democracia deweyana

Fonte: Figura da autora.

4.1.1 Educação, comunicação, participação e questionamento.

A educação na perspectiva deweyana é o combustível que fomenta o desenvolvimento

e renovação da vida social; é um processo dialógico, comunicativo e participativo de troca de

vivências que culmina na construção conjunta do conhecimento.

O que a nutrição e reprodução são para a vida fisiológica, a educação é para a vida social. A educação consiste primeiramente em um intercâmbio de ideias por meio da comunicação. Comunicação é um processo de compartilhamento de experiências até que se tornem uma propriedade comum.109

109 DEWEY, John. Democracy and Education: An Introduction to the Philosophy of Education, 1916 .

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Dewey distingue entre a educação formal majoritariamente praticada em escolas e a

educação advinda da experiência no bojo da vida social, ou seja, a educação informal. 110

Aponta que, com a crescente complexidade das sociedades, observa-se um progressivo

distanciamento da educação social informal e um incremento da educação formal.

A educação formal, em sua concepção ordinária, apresenta o risco de ser apenas

transmissora de conteúdo (o que se aproxima da concepção freireana de educação bancária, a

qual será exposta em capítulo seguinte), ignorando o aspecto social e o vínculo com as formas

de associação humana.

Então atingimos a concepção ordinária de educação: a noção que ignora a sua necessidade social e sua identidade com todas as formas de associação humana que impactam a vida consciente, e que a identifica com difundir informações sobre problemas remotos e com transmitir conhecimento por meio de sinais verbais: a alfabetização. 111

Nesse sentido, é necessário evitar uma fenda entre os processos educacionais formais

e informais. O objetivo é que todos os processos educacionais assegurem a construção da

disposição para a participação da vida em sociedade, a formação do caráter a partir da

experiência social, evitando-se, assim, criação de indivíduos que são meros especialistas,

egoístas e reprodutores de conteúdo.

Quando a absorção de informação e de habilidades intelectuais técnicas não influencia a formação de uma disposição social, a experiência vital ordinária deixa

p. 8. Tradução nossa do original: “What nutrition and reproduction are to physiological life, education is to social life. This education consists primarily in transmission through communication. Communication is a process of sharing experience till it becomes a common possession.” 110DEWEY, John. Democracy and Education: An Introduction to the Philosophy of Education, 1916, p. 8. Do original: “As societies become more complex in structure and resources, the need of formal or intentional teaching and learning increases. As formal teaching and training grow in extent, there is the danger of creating an undesirable split between the experience gained in more direct associations and what is acquired in school.” 111DEWEY, John. Democracy and Education: An Introduction to the Philosophy of Education, 1916, p. 8. Tradução nossa do original: “Thus we reach the ordinary notion of education: the notion which ignores its social necessity and its identity with all human association that affects conscious life, and which identifies it with imparting information about remote matters and the conveying of learning through verbal signs: the acquisition of literacy.“

71

de obter significado, porque a educação cria apenas conhecedores “afiados” – isto é, especialistas egoístas112

Dewey aponta que o processo educacional pode ser tanto regressivo quanto

progressivo. Defende a perspectiva progressista e critica veementemente a perspectiva

regressista. Destaca que a lógica que rege a educação e desenvolvimento da humanidade não

é de repetição nem do ponto de vista biológico, nem do ponto de vista cultural (como quer a

perspectiva regressista). Do ponto de vista biológico, a hereditariedade, como

predeterminante e passível de poucas mudanças, pode ser importante para a biologia, mas não

serve à lógica educacional. Do ponto de vista cultural, a lógica é progressiva e, assim, o

presente não é uma mera repetição nem é determinado pelo passado. O processo educacional

tem como escopo justamente a libertação para a construção de um futuro.

Se houvesse alguma “lei” estrita de repetição, o desenvolvimento evolutivo não teria ocorrido. Cada nova geração teria simplesmente repetido a existência de seus predecessores. A missão da educação é muito mais libertar os jovens de reviver e reatravessar o passado do que os levar à recapitulação deste.113

O ser humano é, assim, condutor de sua própria existência e o futuro é fruto de sua

construção, não é inexorável. Nesse sentido, entende ser importante o conhecimento e

avaliação das experiências passadas, mas ressalta que essas jamais devem ser vistas como

predeterminantes do futuro. “Há uma enorme diferença entre tirar proveito delas [experiências

passadas] como recursos presentes e considerá-las normas e padrões em seu aspecto

retrospectivo.”114 Tal entendimento dialoga com a perspectiva freireana de que somos seres

condicionados, mas não seres determinados, que será exposta em capítulo seguinte.

112DEWEY, John. Democracy and Education: An Introduction to the Philosophy of Education, 1916. p. 8. Tradução nossa: “When the acquiring of information and of technical intellectual skill do not influence the formation of a social disposition, ordinary vital experience fails to gain in meaning, while schooling, in so far, creates only "sharps" in learning -- that is, egoistic specialists.” 113DEWEY, John. Democracy and Education: An Introduction to the Philosophy of Education, 1916 . p. 46. Tradução nossa: “If there were any strict "law" of repetition, evolutionary development would clearly not have taken place. Each new generation would simply have repeated its predecessors' existence. [...] The business of education is rather to liberate the young from reviving and retraversing the past than to lead them to a recapitulation of it.” 114DEWEY, John. Democracy and Education: An Introduction to the Philosophy of Education, 1916 . p. 47. Tradução nossa: “But there is an enormous difference between availing ourselves of them as present resources and taking them as standards and patterns in their retrospective character.“

72

A concepção de Dewey é, portanto, de uma educação enquanto prática social evolutiva

de constante aprendizado, questionamento, construção e reconstrução. A reflexão e o

questionamento sobre uma experiência possibilitam um progressivo aprimoramento em

relação às experiências subsequentes. O objetivo do processo educacional é justamente

transformar a qualidade da experiência.115 Isso leva a uma percepção holística das atividades

humanas e a um poder de prever e intencionar resultados. Nesse sentido, conceitua a educação

em sentido técnico como:

É a reconstrução e reorganização da experiência que adiciona ao significado da experiência, e que aumenta a habilidade de direcionar o curso de experiências subsequentes. (1) O aumento de significado corresponde a uma percepção ampliada das conexões e continuidades das atividades em que nos engajamos. [...] (2) O outro lado de uma experiência educacional é poder crescente de subsequente direção e controle. Dizer que se tem conhecimento sobre o que se está prestes a fazer, ou que pode visar a certas consequências, é dizer, é claro, que se pode antecipar melhor o que vai ocorrer; que se pode, desta forma, ficar pronto ou se preparar antecipadamente para assegurar consequências benéficas e prevenir as indesejadas.116

Dewey, consciente de que a sociedade não é una, mas múltipla, aponta a necessidade

de se pensar sobre a sociedade ideal, democrática, para melhor desenhar o processo

educacional. Reflete, assim, sobre o aspecto qualitativo da educação enquanto socialização.

“Qualquer educação dada por um grupo tende a socializar seus membros, mas a qualidade e o

valor da associação depende dos hábitos e objetivos do grupo”.117

115DEWEY, John. Democracy and Education: An Introduction to the Philosophy of Education, 1916, p. 49-50. Do original: “The ideal of growth results in the conception that education is a constant reorganizing or reconstructing of experience. It has all the time an immediate end, and so far as activity is educative, it reaches that end -- the direct transformation of the quality of experience. Infancy, youth, adult life, -- all stand on the same educative level in the sense that what is really learned at any and every stage of experience constitutes the value of that experience, and in the sense that it is the chief business of life at every point to make living thus contribute to an enrichment of its own perceptible meaning “ 116DEWEY, John. Democracy and Education: An Introduction to the Philosophy of Education, 1916 . p. 50. Tradução nossa: “It is that reconstruction or reorganization of experience which adds to the meaning of experience, and which increases ability to direct the course of subsequent experience. (1) The increment of meaning corresponds to the increased perception of the connections and continuities of the activities in which we are engaged. […] The other side of an educative experience is an added power of subsequent direction or control. To say that one knows what he is about, or can intend certain consequences, is to say, of course, that he can better anticipate what is going to happen; that he can, therefore, get ready or prepare in advance so as to secure beneficial consequences and avert undesirable ones.” 117DEWEY, John. Democracy and Education: An Introduction to the Philosophy of Education, 1916. p. 52. Tradução nossa: “Any education given by a group tends to socialize its members, but the quality and value of the socialization depends upon the habits and aims of the group.“

73

Avalia a vida associativa com base em um critério interno: a extensão com a qual

interesses de um grupo são compartilhados por todos os seus integrantes; e um critério

externo: a completude e liberdade de interação com outros grupos. Destaca que não é

democrática a sociedade que “interna e externamente constrói barreiras para o livre

intercâmbio e comunicação das experiências“118. Assim, os métodos educacionais devem

fomentar o questionamento, o compartilhamento de experiências e veicular o potencial de

mudanças.

Nesse sentido dispõe:

O primeiro significa não apenas um maior número e variedade de pontos de interesse comuns compartilhados, como também uma maior confiança no reconhecimento de interesses mútuos como um fator de controle social. O segundo significa não apenas uma interação mais livre entre grupos sociais (antes isolados até o ponto em que a intenção pôde mantê-los separados) mas também mudança em hábitos sociais –seu contínuo reajustamento na medida em que encontram novas situações geradas pelas variadas interrelações. Estes dois traços são precisamente o que caracteriza uma sociedade democraticamente constituída. No que tange à faceta educacional, notamos primeiramente que a realização de uma forma de vida social na qual interesses são mutuamente interpenetrantes, e onde progresso, ou reajustamento, é uma importante consideração, tornam a comunidade democrática mais interessada que outras comunidades que optam pela educação deliberada e sistemática. 119

Em relação ao primeiro critério, das relações intragrupos, Dewey aponta que não se

pode negar que existe interação em uma sociedade despótica, mas o grau de tal relação é

ínfimo. Para uma sociedade democrática, são necessárias extensivas interações, participação,

contribuição e retribuição. A educação deve preparar indivíduos para a troca equitativa de

118DEWEY, John. Democracy and Education: An Introduction to the Philosophy of Education, 1916, p. 62. Traducão nossa. Transcrevi um trecho maior caso o leitor queira aprofundar-se. A parte traduzida encontra-se em negrito “Since education is a social process, and there are many kinds of societies, a criterion for educational criticism and construction implies a particular social ideal. The two points selected by which to measure the worth of a form of social life are the extent in which the interests of a group are shared by all its members, and the fullness and freedom with which it interacts with other groups. An undesirable society, in other words, is one which internally and externally sets up barriers to free intercourse and communication of experience. 119DEWEY, John. Democracy and Education: An Introduction to the Philosophy of Education, 1916, p. 55. Tradução nossa: “The first signifies not only more numerous and more varied points of shared common interest, but greater reliance upon the recognition of mutual interests as a factor in social control. The second means not only freer interaction between social groups (once isolated so far as intention could keep up a separation) but change in social habit -- its continuous readjustment through meeting the new situations produced by varied intercourse. And these two traits are precisely what characterize the democratically constituted society. Upon the educational side, we note first that the realization of a form of social life in which interests are mutually interpenetrating, and where progress, or readjustment, is an important consideration, makes a democratic community more interested than other communities have cause to be in deliberate and systematic education.”

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experiências e para a diversidade - essas geram estímulos intelectuais e desafios que

propiciam a o questionamento e a construção social participativa. Caso contrário, o processo

educacional é opressor, destrutivo, mantenedor do status quo, desumanizante.

É necessário que exista uma ampla variedade de esforços e experiências; caso contrário, as influências que educam alguns como mestres, educam outros como escravos. E a experiência de cada parte perde significado quando o livre intercâmbio de vários tipos de experiências de vida é aprisionado. Uma separação entre uma classe privilegiada e outra sujeitada impede uma endo-osmose social. Os malefícios que impactam as classes superiores são menos materiais e menos perceptíveis, mas igualmente reais. Sua cultura tende a ser estéril, retroceder para um auto alimentar; sua arte se torna uma vitrine chamativa e artificial; sua riqueza luxuosa; seu conhecimento hiperespecializado; seus comportamentos pesados e onerosos ao invés de humanos.120

Ao abordar o segundo critério, referente às relações intergrupos, aponta que o apego

demasiado a interesses próprios e isolamento, como os de nações que não se relacionam com

as outras, escolas que não se abrem para a comunidade e para a família, polarizações de ricos

e pobres geram inflexibilidade e egoísmo, bem como obstruem o questionamento e a evolução

das ideias do próprio grupo. Tal fechamento inviabiliza, assim, a democracia.

A educação tem, portanto, a tarefa moral de ensinar e fomentar a constante

participação em todos os âmbitos da vida social, ao mesmo tempo que é a vida social, pois só

se prepara para essa experiência por meio da comunicação e da própria experiência,

efetivamente participando da vida social.121

É justamente participando da vida em comunidade que o indivíduo se desenvolve

moralmente, assume responsabilidades e contribui para a própria constituição da

120DEWEY, John. Democracy and Education: An Introduction to the Philosophy of Education, 1916 , p. 54. Tradução nossa do original: “There must be a large variety of shared undertakings and experiences. Otherwise, the influences which educate some into masters, educate others into slaves. And the experience of each party loses in meaning, when the free interchange of varying modes of life-experience is arrested. A separation into a privileged and a subject-class prevents social endosmosis. The evils thereby affecting the superior class are less material and less perceptible, but equally real. Their culture tends to be sterile, to be turned back to feed on itself; their art becomes a showy display and artificial; their wealth luxurious; their knowledge overspecialized; their manners fastidious rather than humane.” 121POGREBINSCHI, Thamy. Pragmatismo Teoria Social e Política Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005, p. 138-139. Nesse sentido, destaco a seguinte passagem do original: “Diante disso, acredita Dewey, as escolas da comunidade devem fornecer aos seus alunos um treinamento moral. A função das escolas de manter a vida e promover o bem-estar da comunidade apresenta uma responsabilidade ética das mesmas perante a própria comunidade. As escolas possuem, por conseguinte, uma tarefa moral de cunho social que não pode ser separada da tarefa intelectual; ao mesmo tempo, as escolas não podem funcionar como uma instituição à parte da comunidade, elas precisam operar como se fossem a própria comunidade.“

75

comunidade.122Aponta, assim, uma simbiose que requer tanto a participação efetiva do

indivíduo para o grupo quanto que o grupo possibilite a libertação das potencialidades do

indivíduo. Tendo em vista que um indivíduo integra uma pluralidade de grupos é essencial a

interação entre os diferentes grupos.

Do ponto de vista do indivíduo, consiste em ter uma parcela da responsabilidade de acordo com a capacidade de compor e dirigir as atividades dos grupos a que pertence e em participar em consonância com as necessidades valorativas que o grupo ostenta. Do ponto de vista dos grupos, requer libertação das potencialidades dos membros do grupo em harmonia com os interesses e bens que são comuns. Considerando que cada indivíduo é membro de vários grupos, esta missão não pode ser cumprida a não ser que diferentes grupos interajam de forma flexível e em ampla conexão com outros grupos123

A comunicação é crucial para o compartilhamento ideias, sentimentos, experiências,

questionamento e para a consciência da interdependência. 124 Dewey destaca que “[…] tudo

que é distintivamente humano é aprendido. Aprender a ser humano é desenvolver, por meio

de “dar” e “receber” comunicação, um efetivo senso de ser um membro individualmente

distinto de uma comunidade”125. Nascemos seres associados uns aos outros, mas nos

tornamos membros de uma comunidade, o que é desenvolvido ao longo da vida em sociedade.

122DEWEY, John. The Public and its Problems. Estados Unidos: Pensilvania State University Press, 2012, p. 52. Do original: “There is, however, an intelligible question about human association: Not the question how individuals or singular beings come to be connected, but how they come to be connected in just those ways which give human communities traits so different from those which mark assemblies of electors, unions of trees in forests, swarms of insects, herds of sheep, and constellation of stars. When we consider the difference we at once come upon the fact that the consequences of conjoint action take on a new value when they are observed. For notice of the effects of connected action forces men to reflect upon the connection itself; it makes it an object of attention and interest. [...] Individuals still do the thinking, desiring and purposing, but what they think of is the consequences of their behavior upon that of others and that of others upon themselves.” 123DEWEY, John. The Public and its Problems. Estados Unidos: Pensilvania State University Press, 2012, p. 122. Tradução nossa do original: “From the standpoint of the individual, it consists in having a responsible share according to the capacity in forming and directing the activities of the groups to which one belongs and in participating according to the need in the values which the group sustain. From the standpoint of the groups, it demands liberation of the potentialities of members of a group in harmony with the interests and goods which are common. Since every individual is a member of many groups, this specification cannot be fulfilled except when different groups interact flexibly and fully in connection with other groups.” 124DEWEY, John. The Public and its Problems. Estados Unidos: Pensilvania State University Press, 2012, p. 123. Do original: “Interactions, transactions, occur de facto and the results of interdependence fallow. But participation in activities and sharing in results are additive concerns. They demand communication as a prerequisite” 125DEWEY, John. The Public and its Problems. Estados Unidos: Pensilvania State University Press, 2012, p. 125. Tradução nossa do original: “[...] everything which is distinctively human is learned [...] To learn to be human is to develop through the give and take of communication an effective sense of being an individually distinctive member of a community [...].”

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Os laços que mantêm os homens unidos em suas ações são numerosos, mas sutis. No entanto eles são invisíveis e intangíveis. Temos instrumentos físicos para comunicação como nunca antes. Os pensamentos e aspirações congruentes com eles não são comunicados, e, assim, não são comuns. Sem tal comunicação o público irá permanecer sombrio e sem forma, procurando espasmodicamente por si, mas se prendendo à sua sombra e não à sua substância. Até que a grande sociedade se converta em uma grande comunidade, o público permanecerá em eclipse. Comunicação pode sozinha criar uma grande comunidade. Nossa torre de babel não é de línguas, mas de signos e símbolos que sem experiência compartilhada é impossível.126

Democracia requer uma opinião pública formada por meio de um processo

comunicativo constante intra e intergrupos. Quanto mais se comunica, mais se estimula a

troca de interações e pontos de vida e maior a alteridade que se constrói. Viver

democraticamente, em comunidade, possibilita a ruptura com preconceitos de gênero, classe,

raça e credo.

Uma democracia é mais do que uma forma de governo; é fundamentalmente um modo de vida em sociedade, de experiência comunicativa conjunta. A extensão espacial do número de indivíduos que compartilham um interesse, de forma que cada um tem que relacionar suas ações às ações de outros, e considerar a ação dos outros para exprimir seu ponto de vista e direcionar seus interesses, é equivalente à romper com as barreiras de classe, raça, e território nacional que impedem que os homens apreendam toda a importância de suas atividades. Estes pontos de contato maiores e mais numerosos denotam uma maior diversidade de estímulos aos quais um indivíduo tem que responder; eles consequentemente incrementam as variações de suas ações 127

126DEWEY, John. The Public and its Problems. Estados Unidos: Pensilvania State University Press, 2012, p. 118. Tradução nossa: “The ties which hold man together in action are numerous, though subtle. But they are invisible and intangible. We have the physical tools of communication as never before. The thoughts and aspirations congruous with them are not communicated, and hence are not common. Without such communication the public will remain shadowy and formless, seeking spasmodically for itself, but seizing and holding its shadow rather than its substance. Till the Great Society is converted into a Great Community, the Public will remain in eclipse. Communication can alone create a great community. Our babel is not one of tongues, but one of signs and symbols without which shared experience is impossible” 127DEWEY, John. Democracy and Education: An Introduction to the Philosophy of Education, 1916, p. 56.Tradução nossa: “A democracy is more than a form of government; it is primarily a mode of associated living, of conjoint communicated experience. The extension in space of the number of individuals who participate in an interest so that each has to refer his own action to that of others, and to consider the action of others to give point and direction to his own, is equivalent to the breaking down of those barriers of class, race, and national territory which kept men from perceiving the full import of their activity. These more numerous and more varied points of contact denote a greater diversity of stimuli to which an individual has to respond; they consequently put a premium on variation in his action. They secure a liberation of powers which remain suppressed as long as the incitations to action are partial, as they must be in a group which in its exclusiveness shuts out many interests.”

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Assim como no início do século XX, época dos escritos de Dewey, que são

impressionantemente atuais, a realidade do século XXI é de uma multiplicidade de veículos

de comunicação. Paradoxalmente, cada vez menos se comunica no sentido democrático de

participação na vida em comunidade. As pessoas vivem sobrecarregadas de informação, mas

não vivem com os outros, não se encontram para comunicar, debater e construir

conjuntamente o conhecimento. As escolas são tecnicistas e não ensinam a vivem em

comunidade. Assim, num ciclo vicioso, não há um interesse social em participar,

compreender e questionar justamente porque não se comunica e não se educa. O isolamento e

individualismo são progressivos e mantêm a eclipse do público em situação de ruptura muito

maior que no início do século XX. A busca por uma “grande comunidade” permanece

necessária para viver democraticamente e deve ser a viga mestra da EDH. Para tanto, é

essencial a comunicação face a face, a troca de experiências e o comprometimento da

educação de veicular ética para a vida em comunidade. Nesse sentido, na visão de Dewey, a

recuperação senso de ser, da força atuante do público, perpassa pelo reconhecimento da

importância da vida em comunidade, pela interação e comunicação, pela participação cívica

em que a comunidade como um todo é responsável por gerar e gerir, de forma participativa,

os valores da vida social. Reconhece a capacidade dos indivíduos de distanciarem-se de seus

interesses individuais para vislumbrarem interesses sociais. Propõe, portanto, como solução

para os problemas, que a democracia enfrenta mais democracia.

4.1.2 A democracia de Dewey

Thamy Pogrebinschi128 distingue duas esferas da democracia exposta nos escritos de

Dewey: a democracia enquanto ideia, ou seja, a visão democrática de democracia enquanto

um modus vivendi participativo na comunidade presente em todas as formas associativas

humanas; e a democracia política, ou seja, como sistema de governo que “[...]com seus

arranjos políticos e instituições governamentais, consiste meramente em um mecanismo

destinado a assegurar canais de operação efetiva para a ideia de democracia.129”. O Estado é

128POGREBINSCHI, Thamy. Pragmatismo Teoria Social e Política Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005. 129POGREBINSCHI, Thamy. Pragmatismo Teoria Social e Política Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005, p. 112.

78

uma forma de organização social secundária e tanto Estado quanto o governo requerem o

público para a sua existência.

A ideia de democracia, na visão de Dewey, é tanto a forma de proteger o interesses

populares, quanto uma forma de investigação social e uma forma de expressão da

individualidade,130 que é socialmente formada. As três faces da democracia de Dewey são de

extrema relevância apara a EDH e devem estar presentes em todas as suas práticas.

A democracia enquanto forma de proteger os interesses populares veicula a

importância de um processo democrático participativo em todas as esferas. Requer que

hipóteses sejam tanto levantadas pelo público quanto submetidas à sua deliberação, ou seja,

ao experimentalismo social. O interesse do público deve ser a viga mestra para a atuação em

todas as esferas da comunidade.

Dewey critica a concepção de democracia política que parte do pressuposto que

indivíduos são autossuficientes e inteligentes para engajar em questões políticas e que voto

universal, eleições frequentes de governantes e normas majoritárias, que seriam suficientes

para que os representantes eleitos observem os interesses do público, não tiveram

efetivamente propósito de avançar a ideia democrática.131. Apenas serviu a interesses políticos

particulares e para desmantelar os interesses populares. Aponta que as ilusões de tais

conceitos só não foram detectadas antes em razão de uma psicologia que distorcia a verdade.

Assim, foram mecanismos para satisfazer necessidades e pressões que já não podiam ser

ignoradas. 132

O conhecimento resulta da educação, da vida em comunidade e do processo

comunicativo que possibilitam a compreensão e reflexão sobre a realidade. É uma construção

que tem como substrato a tradição e a sociabilidade e não algo pronto, dado.

130Stanford University. Dewey's Political Philosophy . In Stanford Encyclopedia of Philosophy. Do original: “There are three main lines of argument for democracy in Dewey's mature political philosophy: democracy as the protection of popular interests; democracy as social inquiry; and democracy as the expression of individuality.” 131DEWEY, John. The Public and its Problems. Estados Unidos: Pensilvania State University Press, 2012, p. 127. Do original: “There is no sanctity in universal suffrage, frequent elections, majoritarian rule, congressional and cabinet government. These things are devices evolved in the direction in which the current was moving, each wave of it involved at the time of its impulsion a minimum of departure from antecedent costum law. The devices served a purpose; but the purpose was rather that of meeting existing needs which had become too intense to be ignored, than of forwarding democratic idea.” 132DEWEY, John. The Public and its Problems. Estados Unidos: Pensilvania State University Press, 2012, p. 120. Do original: “In fact they were hardly more than political war-cried adopted to help carrying on some immediate agitation or in justifying some particular polity struggling for recognition, even though they were asserted to be absolute truths of human nature or of morals [...] They lived to cumber the political ground, obstructing progress, all the more because they were uttered and held not on as hypotheses with which to direct social experimentation but as final truths, dogmas. No wonder they call urgently for revision and displacement.”

79

De fato, o conhecimento é o resultado da associação e comunicação; depende da tradição, de instrumentos e métodos socialmente transmitidos, desenvolvidos e sancionados. Capacidade de efetiva observação, reflexão e interesse são hábitos adquiridos sob a influência da cultura e instituições sociais, não são poderes inerentes e pré-existentes.133

A possibilidade de participação nas deliberações deve ser tanto atual como também

permanecer aberta ao questionamento em um momento futuro. Assim, “[...] políticas e

propostas para a ação social devem ser tratadas como hipóteses em construção, não como

programas que devem ser seguidos e executados de forma rígida.134 Tal flexibilidade é

necessária para enfrentar os desafios impostos pela realidade cambiante.

A EDH também tem a função de proteger interesses populares. Assim, a perspectiva

democrática de consulta, discussão e participação deve estar sempre presente, seja no desenho

de políticas públicas, na estruturação de processos educacionais pela sociedade civil

organizada, ou na prática educacional em si.

A democracia como um processo de investigação social, inquirição experimental,

requer discussões públicas e amplas para lidar com conflitos de interesse nas diversas esferas

da vida. Sociedades democráticas não servem apenas para que se busque fins desejados, mas

para que se discuta quais os fins desejados e como serão alcançados. Consiste, assim, em uma

constante e construtiva reflexão sobre a prática que refuta critérios a priori. “O que é

necessário para dirigir e fazer um processo de investigação social bem sucedido é um método

baseado na inter-relação de atos observáveis e seus resultados.”135

Logo, para Dewey, a investigação social contínua requer constante comunicação e

indagação, possibilitando assim a formação de uma compreensão da comunidade sobre

determinado assunto.

A liberdade dos indivíduos e grupos, na perspectiva democrática, só é alcançada por

meio do questionamento público [inquirição experimental] essencial para o pensar crítico,

crescimento e construção de novas perspectivas.

133DEWEY, John. The Public and its Problems. Estados Unidos: Pensilvania State University Press, 2012, p. 127. Tradução nossa: “But in fact knowledge is a function of association and communication; it depends upon tradition upon tools and methods socially transmitted, developed and sanctioned. Faculties of effectual observation, reflection and desire are habits acquired under the influence of culture and institutions of society, not ready-made inherent powers.” 134DEWEY, John. The Public and its Problems. Estados Unidos: Pensilvania State University Press, 2012, p. 154. Tradução nossa: “policies and proposals for social action should be treated as working hypotheses, not as programs to be rigidly adhered to and executed”. 135DEWEY, John. The Public and its Problems. Estados Unidos: Pensilvania State University Press, 2012, p. 59. Tradução nossa: “What is needed to direct and make fruitful social inquiry is a method which proceeds on the basis of the interrelations of observable acts and their results.”

80

Sobre a democracia enquanto sistema de governo, Dewey aponta que as instituições

de poder existentes, muitas vezes, são insuficientes ou mesmo apresentam uma força contrária

às pretensões trazidas pelos públicos, como, por exemplo, o movimento negro e o movimento

feminista. É possível que nem todas as necessidades sejam legítimas, mas o primeiro passo

para aferir tal legitimidade é indagar até que ponto a deliberação acerca da legitimidade leva a

relações de dominação. A democracia clama, assim que se construam forças, mecanismos de

poder externos ao Estado para contrapor à resistência estatal.

Em suma, a direção e objetivos das instituições e processos, aqui incluindo a EDH,

devem definidas pelo público experimentalmente.

A democracia enquanto forma de expressão da individualidade é desenvolvida no seio

social, tendo em vista que a democracia é o próprio modo de vida em sociedade. Indivíduos

vivem em constantes relações uns com os outros e tais associações afetam tanto os hábitos

quanto as predisposições desses para valorar, interpretar o mundo, traçar projetos. A

expressão da individualidade é, assim, construída na alteridade, por meio da educação da

comunicação e da inquirição e relação com a comunidade.

O poder político liberta e é legítimo quando os indivíduos têm autonomia, ou seja, o

controle sobre os mecanismos de poder que governam seus interesses. O papel dos indivíduos

é, portanto, formar, argumentar e participar para que os valores relevantes sejam considerados

no processo de tomada de decisão. Dessa forma, a democracia amplia o uso do poder político

e redefine o papel da participação.

4.2 A Democracia pragmatista na visão de autores do final do século XX e início do século XI

A democracia pragmatista, na perspectiva proposta pelo Experimentalismo

Democrático (ED)136 (Democratic Experimentalism), proposto por Michael C. Dorf e Charles

F. Sabel137, também denominado Aprendizado Evolutivo (Evolutionary Learning) por

Christopher K. Ansell138, apresenta possibilidades para endereçar problemas centrais da

136Doravante será usada a expressão ED. 137DORF, Michael; SABEL, Charles F. A Constitution of Democratic Experimentalism. Cornell Law Faculty Publications-Faculty Scholarship. Jan.1998. 138ANSELL, Christopher K. Pragmatist Democracy: Evolutionary Learning as Public Philosophy. Nova Iorque: Oxford University Press, 2011.

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democracia atual. Estão alicerçadas na filosofia pragmatista de Dewey e, assim, refletem a

importância do clássico deweyano na atualidade. Propõe-se que tal perspectiva oferece

importantes contribuições para a EDH.

O ED consiste em uma alternativa ao modelo de governança burocrático, que pode ser

aplicado em qualquer forma de associação humana, em que sistematicamente se observa e

reflete-se sobre a prática e aprende com a experiência. Em vez de focar apenas no resultado,

conclama que se voltem os olhares para o processo e reflita-se continuamente sobre formas de

aprimorá-lo, tornando explícito o conhecimento de como desenvolver processos cada vez

mais exitosos. Nesse sentido, e já aplicando o conceito à EDH, a prática educacional diária

deve ter como finalidade não apenas educar em direitos humanos, mas aprender a como

educar de forma mais eficiente. Erros e falhas jamais devem ser escondidos, minorados ou

ignorados, mas serem entendidos como oportunidades de aprendizado. Assim, o aprendizado

evolutivo vislumbra todas as práticas produtivas humanas como experimentos estruturados

que, por meio de cautelosa observação e análise de resultado, vão guiar aprimoramentos na

atividade desenvolvida.139 É um processo participativo e deliberativo em que todos os

interessados devem estar inclusos. Educar de forma efetiva em direitos humanos requer, assim

como propõe o ED, constante reflexão sobre a prática, mensuração e avaliação de resultados,

desenvolvimento de formas de aprimorar o processo educacional e participação de todos os

interessados.

Sabel, refletindo sobre a perspectiva deweyana, sugere que, mais relevante que criar

um ambiente propício à formação de comunidades naturais, para o ED é essencial tornar

explícito o conhecimento tácito para possibilitar a troca de conhecimentos entre aqueles que

não pertencem ao mesmo grupo, sem inviabilizar as trocas de experiência casuais.

O problema fundamental hoje não parece ser como preservar ou fomentar a criação de comunidades naturais, mas como encorajar a se tornar explícito o conhecimento tácito para fazer o intercâmbio e aprendizado entre “estranhos” possível sem minar as condições que fomentam relações informais e reciprocidade. 140

139Para saber mais, recomendo: LIEBMAN, James. Center o Public Research and Leadership da Universidade de Columbia. Introduction to Evolutionary Learning Skecth video. (8:42 min.) 140SABEL, Charles. Dewey, Democracy, and Democratic Experimentalism. Contemporary Pragmatism Editions Rodopi. Nova Iorque, v. 9, n. 2. Dez. 2012. P. 41 a 42. Tradução nossa: “Locality” is still a necessary condition for responsiveness; but it is not sufficient – the ability to learn across localities is necessary too. To the extent that “natural” community of the republican tradition and Dewey’s Jeffersonian moment encourages the first at the price of discouraging the second it seems more a limit than a foundation. The fundamental problem today

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A perspectiva de Sabel é mais adequada à realidade atual e para que a EDH cumpra a

sua missão. Ao mesmo tempo que é necessário preservar a cultura e os conhecimentos locais,

é de suma relevância tornar os conhecimentos explícitos, possibilitar a troca de experiências

entre comunidades no país e no globo, delinear conexão de violações e mutuamente aprender

como endereçar tais desafios.

James Liebman, leciona que, se comparado com outros modos de governança

alternativos à democracia:

[…] que ex ante estabelecem um desenho organizacional particular e vislumbram funções prefixadas para agências centrais e atores locais, o DE enfatiza um processo iterativo de aprimoramento tanto de funções estabelecidas como de resultados e usa estruturas de governança flexíveis para amparar o aprimoramento. O processo iterativo de tomada de decisões identifica e responde a problemas com os sistemas existentes e estratégias a novas circunstâncias que surgem. Estruturas flexíveis coletam e processam informações relevantes para diagnosticar a causa dos problemas e testar soluções e mensura o sucesso. Estes passos, por sua vez, geram informação sobre a validade das hipóteses iniciais, incentivando a reiteração do processo, frequentemente múltiplas vezes. […] Processos iterativos resultam em adaptações desejadas para uma compreensão mais acurada ou condições em evolução, e tais adaptações são o objetivo do processo não a prova de que a política originária falhou. Diversamente de outras alternativas à burocracia, o DE não muda simplesmente a quantidade ou local da política, mas altera como a política opera. O DE tenta circunscrever grupos de interesse político e permitem “que interessados, anteriormente privados de seus direitos civis e insatisfeitos, participem produtiva e sustentavelmente na formação e implementação de políticas.” 141

Como exposto nos escritos do professor Liebman, o experimentalismo democrático

propõe uma mudança na própria forma de fazer política (seja esta da esfera pública ou

privada) pois quebra o paradigma de que a política encarrega-se de tomar decisões e que a seems not how to preserve or foster creation of natural communities, but how to encourage sufficient explication of tacit knowledge to make exchange and learning among “strangers” possible without undermining the conditions that foster informal dealings and reciprocity.” Destaco que transcrevi um texto mais extenso que o traduzido para possibilitar ao leitor uma maior imersão na perspectiva de Sabel. 141 LIEBMAN, James; MA, Christina. Governance of Steel and Kryptonite Politics in Contemporary Public Education Reform. Feb. 2016, p. 49-50. Tradução nossa: “In contrast to the alternatives […] which ex ante establish a particular organizational design and envision fixed roles for central agencies and local actors, DE emphasizes iterative improvement processes over settled roles and outcomes and uses flexible governance structures to support improvement. DE’s iterative decisionmaking process identifies and responds to problems with existing systems and strategies and to new circumstances that arise. Flexible structures collect and process relevant information to diagnose the cause of problems, develop and test solutions, and measure success. Those steps in turn generate information about the validity of initial hypotheses, prompting the process to recur, often multiple times. […] Iterative processes result in desired adaptation to more accurately understood or evolving conditions, and such adaptation is the goal of the process, not evidence that the original policy or practice failed.. Unlike other alternatives to bureaucracy, DE does not simply change the amount or locus of politics but alters how politics operate. DE attempts to circumvent the special-interest politics and allow “previously disenfranchised and disgruntled stakeholders to participate productively and sustainably in shaping and implementing policy.“ citações contidas no texto omitidas.

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implementação está fora do processo democrático. Rompe, assim, com as barreiras entre

concepção e execução, e enxerga a implementação de políticas como política e, como tal,

deve ser democrática e participativa. 142 No âmbito governamental, por exemplo, Ansell foca

nos órgãos e agências públicas, e não no legislativo como o elo para a soberania popular e a

governança de base143.

O experimentalismo democrático baseia-se na solução colaborativa de problemas.

Todos aqueles interessados no processo educacional (por exemplo: educadores, oficiais do

governo, sociedade civil e educandos) conjuntamente identificam os problemas, suas causas,

desenham soluções, definem parâmetros para mensuração do resultado, monitoram e revisam

as práticas educacionais.144 O processo de solução de problemas145 gera interdependência,

responsabilidade conjunta, busca por pontos de vista que vão muito além dos interesses e

perspectivas iniciais. Esse processo de conhecimento leva a resultados que inicialmente não

poderiam ser previstos e pequenos ganhos e sucessos criam incentivos para continuar

colaborando.146 Tais mecanismos de democracia participativa e responsabilidade

compartilhada paulatinamente vão desmantelando grupos de interesses políticos e permitem

que vozes marginalizadas participem cada vez mais do processo.147

Apresentada esta visão geral sobre o DE, também conhecido como Aprendizado

Evolutivo, que propõe a democracia com foco na resolução de problemas em que os diversos

interessados engajam no processo de criação de soluções, em uma perspectiva evolutiva,

baseada no aprendizado com a experiência, na reflexividade e na compreensão; aprofunda-se

no Aprendizado Evolutivo proposto por Ansell, tendo em vista que apresenta duas temáticas

que se entende essenciais para a EDH democrática: a responsabilidade e a governança

142LIEBMAN, James; MA, Christina. Governance of Steel and Kryptonite Politics in Contemporary Public Education Reform. Feb. 2016, p. 50 “DE understands policy formulation as a function primarily of carefully observed and repeatedly adjusted implementation. And it treats the identification and attempts to solve each individual problem as a contextualized experiment in clarifying—not that out of the aggregation of all such experiments can emerge a common understanding of—the collective problem and solution.” 143ANSELL, Christopher K. Pragmatist Democracy: Evolutionary Learning as Public Philosophy. Nova Iorque: Oxford University Press, 2011. 144LIEBMAN, James. Universidade de Columbia. Seminário “Systemic Change in Public Education and the Public Sector Generally”. Nova Iorque: Primavera de 2016. Slide 13 aula 11. “jointly identify problems, asses causation, propose solution, set success standards, monitor and revise.” 145ANSELL, Christopher K. Pragmatist Democracy: Evolutionary Learning as Public Philosophy. Nova Iorque: Oxford University Press, 2011, p.167. 146LIEBMAN, James. Universidade de Columbia. Seminário “Systemic Change in Public Education and the Public Sector Generally”. Nova Iorque: Primavera de 2016. Slide 20 aula 11. 147LIEBMAN, James; MA, Christina. Governance of Steel and Kryptonite Politics in Contemporary Public Education Reform. Feb. 2016. 48-49 Disponível em [“(“DE”)—[…] incorporates mechanisms for deep stakeholder engagement and public accountability with the capacity to displace special-interest politics.”] e prossegue à p. 50 "DE attempts to circumvent the special-interest politics and allow previously disenfranchised and disgruntled stakeholders to participate productively and sustainably in shaping and implementing policy”.

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colaborativa.

No que tange à primeira temática, a responsabilidade, Ansell afirma que a

perspectiva tradicional neoliberal é de uma responsabilidade lastreada em padrões fixos e

externos, na lógica individualista e na imputação de culpa. Aponta que a atual situação da

crise democracia é de uma realidade complexa e interligada: de um lado a descrença nos

governos, e de outro um público que apresenta diversas demandas, mas que tem ínfima

responsabilidade nas falhas ou sucessos das ações governamentais. O sistema adversarial de

representantes eleitos encoraja que se “empurre” culpa, o que impede o aprendizado com os

erros. Propõe uma perspectiva pragmática que vincula responsabilidade, autonomia e solução

de problemas e que é muito adequada às complexidades do mundo atual. A responsabilidade

pragmática é compartilhada, lastreada no senso de titularidade, advém de padrões internos e é

criativa, integrativa e situacional. É, portanto, cultivada.

O senso de responsabilidade é um aprendizado, não pode ser imposto, externo,

mas deve ser gradualmente desenvolvido na medida em que se encara o problema como seu,

bem como na medida em que se aprende com as experiências. Invoca o experimentalismo de

Dewey e aponta que as pessoas devem primeiramente acordar sobre o que consiste em uma

avaliação razoável de seu ponto de vista e, em seguida, comprometer-se com seus achados.

As pessoas, desde que desenvolvam conjuntamente os padrões avaliativos, conseguem fazer

fortes compromissos a priori sobre o compartilhamento de responsabilidades e resultados.

Elas conseguem desenvolver uma responsabilidade compartilhada com base em suas

expectativas para o futuro.148 Nesse sentido, é possível perceber que a responsabilidade está

diretamente relacionada com o conhecimento, ou seja, para ser responsável, um grupo deve

conseguir refletir de forma realística sobre as possíveis consequências de suas ações.149

Para Ansell, é de suma relevância que entes públicos tenham um etos

organizacional, o que requer uma comunidade responsável na perspectiva pragmática, ou seja,

autorregulada, que cultiva e desenvolve a sua própria ética. Tal etos fomenta o desabrochar

dos públicos que atuam sempre focados no problema concreto, de forma deliberativa e

reflexiva, e que avaliam e exigem a responsabilidade social de seus pares de forma horizontal.

148ANSELL, Christopher K. Pragmatist Democracy: Evolutionary Learning as Public Philosophy. Nova Iorque: Oxford University Press, 2011, p.138. Do original: “Cultivation of responsibility is more analogous to Dewey’s experimentalism. He says people ought to be able to agree on what counts as a reasonable test of their argument and then they should commit themselves to their findig.The analogy is that people can make strong up-front commitments to sharing responsibility for outcomes. To do this they need to be able to actively participate in setting the standards of responsibility that will apply in a given situation […] What is important is that people develop a shared responsibility based on reasonable expectations to the future”. 149ANSELL, Christopher K. Pragmatist Democracy: Evolutionary Learning as Public Philosophy. Nova Iorque: Oxford University Press, 2011, p.139.

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O etos organizacional não se baseia em padrões prefixados, mas sim em um constante

processo de experimentação e análise.150

As reflexões de Ansell, embora focadas na esfera governamental, são aplicáveis a

qualquer modo de vida em comunidade, inclusive a EDH. Estão estritamente vinculadas à

perspectiva de que a EDH deve ocorrer em uma ambiência democrática: erros devem ser

fonte de aprendizado para o aprimoramento da experiência social, a responsabilidade só é

democrática se for compartilhada e baseada em parâmetros autônomos. Mais ainda, a EDH

requer que a cada processo educacional o desenvolvimento de um etos, um comprometimento

baseado em parâmetros auto-estabelecidos para aprender e promover os Direitos Humanos.

Quanto à segunda temática, Ansell propõe uma abordagem pragmática para

governança colaborativa, que consiste em um modo de governança em que diferentes atores,

de forma reflexiva, dialógica e intercambial deliberam sobre problemas públicos. Destaca que

a governança colaborativa aplica-se a qualquer esfera da vida social.

Centra atenções em como a governança colaborativa vincula as partes interessadas

para que se tornem públicos engajados na construção soluções para problemas concretos,

possibilitando o aprendizado mutuo. O objetivo não é alcançar o consenso, minimizando ou

eliminando o conflito, pois essa busca por um consenso pode silenciar importantes expressões

de diferença, bem como deslocar a política da vida pública, o que é contrário à ética

democrática pragmatista (opõe-se, deste modo, à lógica neoliberal de uma ética adversarial,

que evita conflito e baseia-se em estratégias unilaterais). Busca inspiração nas proposições de

Dewey de que o desenvolvimento de um Estado está alicerçado na noção de relação com o

público, que, por sua vez, é baseado na interdependência recíproca de seus membros.

Apresenta 3 dimensões da governança colaborativa, a saber: um conflito que gera

frutos por meio de comunicação face a face e do desenvolvimento da alteridade, que rompe

barreiras comunicativas e estereótipos rumo a entendimento compartilhado; a resolução

criativa, ou seja, transcendente e transformadora e recorrente de problemas, em um processo

de contínuo aprendizado; o aumento da interdependência entre os grupos envolvidos tanto

como um requisito quanto como um resultado da cooperação: as partes tanto percebem a sua

interdependência intra e intergrupos quanto, na medida em que participam do processo de

150ANSELL, Christopher K. Pragmatist Democracy: Evolutionary Learning as Public Philosophy. Nova Iorque: Oxford University Press, 2011, p.137. Nesse sentido, destaco o seguinte trecho: “…the cultivation of this ethos in terms of the development of organizational “publics" that act in a problem-driven, reflexive and deliberative fashion. Instead of requiring compliance with a fixed set of standards, an organizational ethos of responsibility depends on an active and ongoing process of analysis and experimentation.”

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resolução de conflitos, ampliam sua confiança e dependência.151

Ansell aponta a importância do diálogo face a face para a compreensão do outro,

empatia, alteridade e construção de uma relação de confiança.

Ressalta ainda que o conflito deve ser encarado como uma oportunidade de

crescimento, e que as partes devem focar no conflito, o que propicia tanto que se eliminem

arestas aparentemente controvertidas, mas que não integram o conflito, quanto que se amplie

o conflito para se vislumbrar tanto pontos de interdependência quanto dimensões de

concordância.

Ansell aponta que o experimentalismo democrático requer uma deliberação

conjunta sobre a própria definição dos problemas. Tal processo possibilita o desenvolvimento

da alteridade: “Em um processo colaborativo, a deliberação conjunta sobre a definição do

problema pode levar as partes interessadas a refletir sobre suas próprias prioridades e

compromissos sob a perspectiva de partes opostas.”152

Definido qual o problema a ser endereçado, é importante que se prossiga no

processo de solução de problemas acordando-se sobre quais serão os próximos passos, que

devem ser encarados como oportunidades de aprendizado. Relevante, ainda, definir

conjuntamente o que será considerado sucesso para o grupo e quais os parâmetros e formas

para se avaliar cooperativamente o resultado de duas ações.153

A constante inquirição experimental possibilita um ambiente de cooperação entre

pessoas e grupos com diferentes perspectivas sobre os problemas e o objetivo é que se

caminhe de uma posição de interesses opostos para uma perspectiva de comunhão de

questionamentos e incertezas. Esse campo de incertezas compartilhadas é uma importante

fase para que se caminhe rumo à solução de problemas. “Onde interessados encontram um

solo para incertezas compartilhadas, eles irão descobrir um solo comum para uma instância

provisória rumo à solução de problemas.”154

151ANSELL, Christopher K. Pragmatist Democracy: Evolutionary Learning as Public Philosophy. Nova Iorque: Oxford University Press, 2011, p.167-168. Do original: “Pragmatism would place particular attention on how collaborative governance binds stakeholders together into probmem-solving “publics" that have the capacity for joint learning_”. “Pragmatists might call out three interrelated dimensions of collaborative governance: (1) fruitful conflict through face-to- face communication; (2) creative and recursive problem-solving; and (3) deepening interpendence of stakeholders as both prerequisite and byproduct of collaboration_” 152ANSELL, Christopher K. Pragmatist Democracy: Evolutionary Learning as Public Philosophy. Nova Iorque: Oxford University Press, 2011, p. 172. Tradução nossa: “In a collaborative process, joint deliberation about problem definition can lead stakeholders to scrutinize their own priorities and commitments from the perspective of opposing stakeholders”_ 153ANSELL, Christopher K. Pragmatist Democracy: Evolutionary Learning as Public Philosophy. Nova Iorque: Oxford University Press, 2011, p. 174. 154ANSELL, Christopher K. Pragmatist Democracy: Evolutionary Learning as Public Philosophy. Nova Iorque: Oxford University Press, 2011, p.174. Tradução nossa: “Where stakeholders can find a ground of shared

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Ansell aponta que, ao imergir-se neste conjunto de incertezas, o processo de

resolução de problemas caminha com a procura por estratégias, métricas e referenciais que

todos os envolvidos concordem e que oferecem novas oportunidades de aprendizado.155

As 3 dimensões da governança colaborativa proposta por Ansell, que se aplica a

qualquer esfera da vida social, contribuem para se pensar uma EDH democrática: Visões

divergentes possibilitam um conflito produtivo na EDH, ou seja, através delas, por meio de

um processo dialógico presencial, desenvolve-se a compreensão do outro e extirpam-se

preconceitos; a EDH é, ao mesmo tempo, um processo educacional e um processo de solução

de problemas participativo; a EDH tem, no aumento da interdependência e senso de

comunidade dos educandos, tanto um requisito quanto um resultado do processo educacional.

Mais ainda, a definição participativa dos problemas, dos objetivos e de métricas

para avaliar tanto o processo como resultado é essencial para uma EDH democrática.

Aprender a participar, questionar, cooperar e transitar por incertezas para construir soluções é

tanto um meio como uma finalidade da EDH que busca, tanto educar para a vida em

comunidade quanto para a construção de uma cultura de direitos humanos libertadora.

uncertainty, they will discover common ground for provisional stance toward problem solving” 155ANSELL, Christopher K. Pragmatist democracy: evolutionary learning as public philosophy. Nova Iorque: Oxford University Press: 2011, p. 174. Do original: “Exploring this zone of uncertainty, problem solving begins as probative search for strategies, metrics, and benchmarks that all stakeholders can agree will provide subsequent opportunities to learning”_

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Figura 3 - Processo de Solução de Problemas EDH

Fonte: Figura da autora.

A figura acima esquematiza o processo de solução de problemas proposto pelo

ED aplicado à EDH: define-se a temática a ser endereçada; delineia-se o que será considerado

sucesso e como mensurá-lo; move-se para um campo de incertezas e questionamentos;

definem-se estratégias e soluções para o problema; avaliam-se os resultados e reflete-se sobre

formas de aprimorar o processo educacional. Ressalta-se que todas as fases do processo são

participativas.

Em arremate, destaca-se que Ansell reconhece a necessidade de empoderamento

de algumas partes para o processo colaborativo, especialmente quando há uma diferença de

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forças entre os envolvidos156. Aponta, ainda, que, para que as partes efetivamente participem

deste processo de solução de problemas, é necessário que reconheçam-se mutuamente como

atores legítimos, disponham-se a apreciação conjunta e desenvolvam um senso de propriedade

coletiva do problema.

156ANSELL, Christopher K. Pragmatist Democracy: Evolutionary Learning as Public Philosophy. Nova Iorque: Oxford University Press, 2011, p.174. Do original: “Collaborative capacity may depend on the “empowerment of some stakeholders, which is necessary when one stakeholder is markedly weaker than others (Handler 1996)”

90

91

5 PAULO FREIRE: POR UMA PEDAGOGIA CRÍTICA COMO O ALICERCE DA EDH

“É crível desconstruir o mundo Sem destruí-lo

É viável reinventar o ser Sem se perder?157”

Paulo Freire apresentou uma reflexão crítica e inovadora de diversas correntes do

pensamento filosófico, como o existencialismo cristão, a fenomenologia, a dialética hegeliana

e o materialismo histórico. O educador influenciou um movimento denominado pedagogia

crítica. Dedicou grande parte de seu trabalho à educação popular e delineou uma Pedagogia

da Libertação, voltada às classes oprimidas direcionada para a alfabetização, escolarização e

para a formação da consciência política e consciência crítica libertadora. Nas palavras de

Ernani Maria Fiori, “é um pensador comprometido com a vida: não pensa ideias, pensa a

existência”158

Freire aponta que os opressores, ou seja, aqueles que detêm poder e que se encontram

em situação privilegiada, enxergam os oprimidos, ou seja, os vulneráveis, hipossuficientes,

marginalizados, como objetos, coisas. Identificam apenas a si mesmos como pessoas

humanas, que têm o direito de viver em paz e com dignidade. Assim, opressores apenas

admitem o direito à sobrevivência aos oprimidos, que é necessário para que possam continuar

a manter-se como opressores e a praticar uma “generosidade cínica”.

Pessoa humana são apenas eles [os opressores]. Os outros, estes são “coisas”. Para eles, há um só́ direito – o seu direito de viverem em paz, ante o direito de sobreviverem, que talvez nem sequer reconheçam, mas somente admitam aos oprimidos. E isto ainda, porque, afinal, é preciso que os oprimidos existam, para que eles existam e sejam “generosos”.159

Aponta que, na perspectiva dos opressores, a humanização é um ato de subversão e,

assim, buscam controlar cada vez mais os oprimidos, os despindo progressivamente de sua 157VALADARES, Eduardo de Campos. Discreto afeto. É crivel descontruir o mundo. São Paulo: Iluminuras, 2016. p. 28. 158FIORI, Ernani. Prefácio. In: FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 5. 159FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 24.

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humanidade. “Na medida em que, para dominar, se esforçam por deter a ânsia de busca, a

inquietação, o poder de criar, que caracterizam a vida, os opressores matam a vida[...]” 160.

Apresentou contundente crítica à educação que infelizmente ainda predomina no

Brasil e que denominou ‘educação bancária’161, em que o educador é o sujeito titular do

conhecimento e o educando mero objeto receptor de informações. O conceito de educação

bancária de Freire se aproxima do que Dewey denominou educação formal tradicional,

anteriormente abordado, em que se educa o conteúdo, formando-se especialistas egoístas, e

não para participação da vida em comunidade162.

Na visão freireana, a educação bancária é um método de manutenção da ideologia

dominante, que dociliza, domestica, conforma e mantêm a alienação e a ignorância.

Na visão “bancária” da educação, o “saber” é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão – a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual está se encontra sempre no outro. 163

Assim, a educação é majoritariamente um instrumento de manutenção do status quo e

de introjeção de aceitação nos marginalizados. “Os métodos da opressão não podem,

contraditoriamente, servir à libertação do oprimido.”164 Daí a necessidade de uma prática

pedagógica de direitos humanos comprometida com os menos favorecidos e com o

questionamento da ideologia dominante para que se caminhe rumo à liberdade.

Para o pedagogo, “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para

a sua produção ou a sua construção.”165 A educação não é um ato entre sujeito e objeto, mas

sim um processo dialético espiral em que ambas as partes, educando e educador, ensinam,

aprendem e transformam-se: “quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado

forma-se e forma ao ser formado166”.

160FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 26. 161FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 33. 162A educação formal tradicional é tratada principalmente no primeiro capítulo de DEWEY, John. Democracy and Education: An Introduction to the Philosophy of Education, 1916. 163FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 26. 164 FIORI, Ernani. Prefácio. In: FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 5. 165 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 24. 166 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 25.

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Aponta, como importante missão do educador, incentivar a capacidade crítica, o

questionamento, a insubmissão, o inconformismo e a curiosidade. Assim, a liberdade proposta

por Freire refere-se à possibilidade de o sujeito conhecer, pensar e refletir criticamente sobre a

realidade que o circunda a fim de transformá-la. Nesse sentido, Freire propõe a educação

como um ato de libertação em que o educando edifica uma consciência crítica, trilhando seus

próprios caminhos.

Os caminhos da liberação são os do oprimido que se libera: ele não é coisa que se resgata, é sujeito que se deve autoconfigurar responsavelmente. A educação liberadora é incompatível com uma pedagogia que, de maneira consciente ou mistificada, tem sido pratica de dominação. A pratica da liberdade só́ encontrará adequada expressão numa pedagogia em que o oprimido tenha condições de, reflexivamente, descobrir-se e conquistar-se como sujeito de sua própria destinação histórica.”167

A concepção libertadora freireana somente é possível porque o ser é social, relacional

e comunicativo, ou seja a intersubjetividade é essencial no processo educacional.

Defendeu a educação como um “antídoto para a indiferença, ódio e desamor”,168 uma

possibilidade para a transformação da sociedade. Para Freire, educar é ensinar a pensar e

fomentar a autonomia e visão crítica do educando para, assim, construir uma consciência e

responsabilidade ética, social e política, econômica, cultural, entre outras.

“Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender, participamos de uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade “169

É importante ressaltar a aproximação entre a pedagogia crítica freireana ora

apresentada com o pensamento deweyano, apresentado no capítulo anterior, de que a ideia de

167FIORI, Ernani. Prefácio. In: FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 5. 168VALADARES, Eduardo de Campos. Discreto afeto. São Paulo: Iluminuras, 2016. Verso do poema Quero Ser, p. 17. 169 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 26.

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democracia consiste em um modo de viver em comunidade e que para a vida em comunidade

são necessários: educação, comunicação, participação e questionamento [inquiry].

Feita essa introdução sobre o pensamento freireano, compartilha-se o entendimento,

com base nos ensinamentos da professora Miracy Gustin, de que para resgatar os direitos

humanos, especialmente dos mais vulneráveis e excluídos de nossa sociedade, é necessário

“[...]instaurar um processo onde as pessoas tornam-se atores conscientes de sua exclusão e de

seus riscos e danos e das suas possibilidades de solução”170. A partir disso propõe-se 11

pilares, como estruturais para a EDH, quais sejam:

1. A Educação requer que se visa à consciência crítica;

2. A Educação requer que o educador seja um facilitador da construção do

conhecimento;

3. A Educação requer respeito e alteridade;

4. A Educação requer rechaço a qualquer forma de discriminação;

5. A Educação requer reflexão sobre o aspecto cultural;

6. A Educação requer comprometimento do educador;

7. A Educação requer reflexão sobre a ideologia;

8. A Educação requer consciência de que a educação não é neutra;

9. A Educação requer consciência de que o conhecimento é continuamente construído;

10. A Educação requer consciência de que há um futuro a ser construído;

11. A Educação requer reconhecimento do ser humano enquanto social e da importância

da comunidade.

Tais pilares foram alicerçados nas diversas obras de Freire com destaque para a

Pedagogia da Autonomia em que o autor apresenta os saberes essenciais da prática educativa-

crítica171, Pedagogia do Oprimido e Pedagogia como Prática de Liberdade. Não se pretendeu

aqui esgotar a obra freireana, mas sim buscar a contribuição de seus relevantes ensinamentos

para a EDH. Os pilares também foram influenciados pelas perspectivas críticas de direitos

humanos e pelas discussões sobre democracia apresentadas nos capítulos anteriores.

170GUSTIN, Miracy. Resgate dos Direitos Humanos em situações adversas de países periféricos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, n. 47, p. 181-216, jul.- dez., 2005, p. 212. 171FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 23-41.

95

5.1 A educação requer consiência crítica

A pós-modernidade está marcada por uma dicotomia entre os que têm voz e os que

marginalizados, permanecem invizibilizados - não vivem na concepção plena e democrática

do termo, apenas sobrevivem. Nesse sentido, Freire aponta que o sistema dominante cria uma

cultura do silêncio, frequentemente tirando dos oprimidos os meios de responder criticamente

à cultura imposta pelos opressores. “Na cultura do silêncio, existir é apenas viver. O corpo

segue ordens de cima. Pensar é difícil; dizer a palavra, proibido.”172 Assim, é necessário que

se desenvolva uma consciência crítica173 para reconhecer que a cultura do silêncio é uma

forma de opressão, bem como para superar esta situação de vulnerabilidade com o objetivo de

que a participação não seja privilégio de poucos, mas sim democraticamente aberta a todos os

membros da sociedade.

Dizer a palavra, em um sentido verdadeiro, é o direito de expressar-se e expressar o mundo, de criar e recriar, de decidir, de optar. Como tal, não é o privilegio de uns poucos com que silenciam as maiorias. É exatamente por isto que, numa sociedade de classes, seja fundamental à classe dominante estimular o que vimos chamando de cultura do silêncio, em que as classes dominadas se acham semi-mudas ou mudas, proibidas de expressar-se autenticamente, proibidas de ser. [...]Submetidos aos mitos da cultura dominante, entre eles o de sua “natural inferioridade”, não percebem, quase sempre, a significação real de sua ação transformadora sobre o mundo.174

Nesse sentido, Henrique Ducel aborda a necessidade da ruptura com a cultura do

silêncio e da construção da capacidade crítica enquanto coletividade, ou seja, da comunidade

crítica, e da busca pela utopia realística de um futuro mais digno.

As vítimas, excluídas da comunidade de vida e comunicação hegemônica, ao tomar conhecimento se sua situação de vítimas, interpelando-se mutuamente também com a participação do intelectual orgânico crítico constituem uma comunidade crítica na qual fundamentam um juízo negativo (cotidiano, de experts e com a colaboração da

172FREIRE, Paulo. Ação cultural para a libertação. In: FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a liberdade e outros escritos. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. P. 35-70, p. 50 173VIEIRA PINTO, Álvaro, apud FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. 174 FREIRE, Paulo. Ação cultural para a libertação. In: FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a liberdade e outros escritos. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. P. 35-70, p. 40-41.

96

ciência social e da filosofia crítica) do sistema que as causou, e elaboram uma alternativa utópica possível, real, histórica. [...] ao organizar as vítimas simetricamente, uma comunidade de vida e comunicação devem criticar o sistema que as nega (negatividade) e projetar uma alternativa futura que o transforme ou substitua (positividade). Aqui Paulo Freire (com sua pedagogia da libertação), Ernst Bloch (com seu princípio de esperança) são pensadores imprescindíveis.175

A EDH requer justamente que aqueles que não têm voz alcancem tal potencialidade

comunicativa e intelectiva, pensem criticamente sobre a realidade, questionem contextos e

padrões, reconheçam as violações e também se conscientizem de sua capacidade para

transformar a realidade rumo a uma sociedade mais digna. Dizer o que é violação aos direitos

humanos e o que não é, bem como buscar formas de as prevenir ou as remediar, não pode

ficar restrito nas mãos de poucos, deve ser democraticamente discutido. Caso contrário,

mantém-se a violação.

A educação que fomenta a capacidade crítica é justamente a que provoca o

questionamento dos educandos sobre o mundo que os circunda, em que educador e educando,

ambos sujeitos do processo educacional, em uma perspectiva horizontal, dialogam e

aprendem um com o outro. É, portanto, oposta ao método bancário em que se transferem

valores e conhecimentos. 176

Freire aponta que a pesquisa177 é parte integrante do processo educacional, bem como

que “ensinar exige curiosidade”178, a busca constante de explicações para os fatos, e de

compreensão das relações de causalidade que os subjazem. O processo da pesquisa, de 175DUCEL, Henrique. Hacia una Filosofia Política Critica Editorial. Bibao: Desclée de Brouwer, 2001, p. 83. Tradução nossa: “Las victimas, excluidas de la comunidad de vida y de comunicación hegemónica, al tomar conciencia de su situación de victimas, interpelan- do se mutuamente -también con la participación del intelectual orgánico critico- constituyen una comunidad critica en la que discursivamente fundamentan un juicio negativo (cotidiano, de expertos y con la colaboración de la ciencia social y la filosofía critica) del sistema que las ha causado, y elaboran una alternativa utópica posible, real, histórica. De esta manera el quinto principio, el discursivo critico, podría enunciarse así ́: al organizar las victimas simétricamente una comunidad de vida y comunicación deben criticar al sistema que las niega (negatividad) y proyectar una alternativa futura que lo transforme o sustituya (positividad). Aquí ́ un Paulo Freire (con su pedagogía de la liberación), un Ernst Bloch (con su principio esperanza) son pensadores imprescindibles.” 176FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 38. 177FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014., p. 30-31. Do original: “A curiosidade ingênua, de que resulta indiscutivelmente um certo saber, não importa que metodicamente desrigoroso, é a que caracteriza o senso comum, o saber de pura experiência feito. Pensar certo, do ponto de vista do professor, tanto implica o respeito ao senso comum, no processo de sua necessária superação quanto o respeito e o estímulo à capacidade criadora do educando. Implica o compromisso da educadora com a consciência crítica do educando, cuja ”promoção” da ingenuidade não se faz automaticamente.” 178FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 82-87.

97

desenvolvimento da curiosidade e do questionamento propicia uma abertura maior para o

mundo. “O exercício da curiosidade convoca a imaginação, a intuição, as emoções, a

capacidade de conjecturar, de comparar, na busca da perfilização do objeto ou do achado de

sua razão de ser. […] Satisfeita uma curiosidade, a capacidade de inquietar-me e buscar

continua em pé” 179. Quando feito de maneira reiterada e consciente, aprimora-se o processo e

seus resultados, possibilitando-se a passagem da ingenuidade, curiosidade do senso comum,

espontânea, para a “curiosidade epistemológica” calcada em um processo de desvelamento e

caracterizada pela consciência reflexiva e criadora.

Na passagem da curiosidade ingênua para a curiosidade crítica, a essência da

curiosidade mantêm-se, mas a qualidade da observação do objeto cognoscível evolui para

uma postura de questionamento e reflexão. Ao falar sobre tal rito de passagem, Freire aponta

que: “Precisamente porque a promoção da ingenuidade para a criticidade não se dá

automaticamente, uma das tarefas precípuas da prática educativo-progressista é exatamente o

desenvolvimento da curiosidade crítica, insatisfeita, indócil180”.

Para a construção da consciência crítica, é relevante, ainda, o desenvolvimento da

capacidade de abstração em que o educando consegue olhar para a realidade em que vive, seja

ela local, regional ou mundial, como se observasse a realidade de fora, de sua varanda, como

o faz um cinegrafista ou um fotógrafo.

No contexto teórico, “tomando-se distância” do concreto, se analisam criticamente os fatos que neste se dão. Esta análise envolve o exercício da abstração através da qual, por meio de representações da realidade concreta, procuramos alcançar a razão de ser dos fatos. 181

A EDH deve ser justamente este processo contínuo de fomentar a capacidade reflexiva

dos educandos, de insubmissão e de não aceitação passiva da realidade que se lhes apresenta.

Ou seja, o processo educativo tem como principal objetivo que educandos se empoderem da

condição de sujeitos de direito, que pensem criticamente sobre a realidade circundante,

desvelam violações e construam caminhos para combatê-la. “Mulheres e homens, seres

179FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 85-86. 180FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 33. 181FREIRE, Paulo. Ação cultural para a libertação. In: FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a liberdade e outros escritos. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 35-70, p. 42.

98

histórico-sociais, nos tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de

decidir, de romper, por tudo isso nós fizemos seres éticos. Só somos porque estamos

sendo.”182

Transitar da curiosidade espontânea para a curiosidade epistemológica é uma tarefa

contínua na EDH, em que, de forma metódica, questionam-se fatos e ações, reconhecem-se

as violações ou ameaças de violações, desenvolvem-se relações de causalidade e desenham-se

estratégias para a prevenção e repressão dessas. Educandos e educadores devem caminhar

juntos neste rito de passagem rumo à construção conjunta do conhecimento para a de

promoção dos direitos humanos adequada à realidade local.

Um exemplo que vivenciou-se na prática profissional, refere-se a povos e

comunidades tradicionais que há gerações desenvolviam suas atividades e tinham um modus

vivendi claramente tradicional, mas não tinham um autoconhecimento e reflexão sobre sua

tradicionalidade. Por meio de trabalhos antropológicos, oficinas e mobilizações, passaram e

estão passando a ter conhecimento de sua tradicionalidade e a pensar crítica e reflexivamente

sobre ela. Tal consciência possibilita que paulatinamente construam suas perspectivas e

reivindiquem os seus direitos humanos previstos dentre outros instrumentos na convenção

169 da OIT. Ou seja, passaram, ou estão em processo de passagem da ingenuidade, do senso

comum e da experiência, para um autorreconhecimento e reflexão.

Nesse sentido, é fundamental conectar o conteúdo abordado com a realidade dos

educandos, ou seja, que no processo de conscientização dos direitos humanos, aconteça uma

reflexão sobre a realidade local, tangível, apreensível.183 Também é relevante relacionar

violações que ocorrem no ambiente do educando com violações que ocorrem em outras

localidades e culturas e, assim, fortalecer as pautas reivindicatórias. Seguindo no exemplo de

comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas e ribeirinhos, podem relacionar as diversas

dificuldades que enfrentam como violações aos direitos de povos e comunidades tradicionais

e somar esforços para reivindicar o direito à autodeterminação.

Freire reflete também sobre a intrínseca relação entre criticidade e democracia. A

criticidade possibilita romper com a docilidade para enxergar-se os problemas de forma mais

holística e aprofundada e, assim, é essencial para a para a participação democrática. 182FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 34. 183Por exemplo, ao se abordar a discriminação de gênero, pode-se partir de frases comuns no dia-a-dia brasileiro como “ela é prendada e já pode casar”, “lugar de mulher é atrás do fogão”, ou, no contexto do trânsito, “só podia ser mulher” para questionar e desvelar o preconceito e, em seguida, discutir o teor da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulheres, e a convenção de Belém do Pará e conectar a prática discriminatória com práticas que ocorrem ao redor do mundo. Em seguida, construtivamente, podem ser traçadas estratégias de como prevenir e reprimir as violações aos direitos humanos das mulheres.

99

Quanto mais crítico um grupo humano, tanto mais democrático e permeável, em regra. Tanto mais democrático, quanto mais ligado às condições de sua circunstância. [...]Quanto menos criticidade em nós, tanto mais ingenuamente tratamos os problemas e discutimos superficialmente os assuntos.184

A perspectiva de criticidade, como um requisito para a democracia, também foi

anteriormente observada no pensamento deweyano, que coloca como central o

questionamento [inquiry] para a democracia. Assim, para que se caminhe rumo a uma

sociedade mais democrática e mais humana, é importante que a EDH seja uma ferramenta

para o desenvolvimento da criticidade.

5.2 A educação requer que o educador seja um facilitador da construção do conhecimento

A missão do educador progressista em direitos humanos não é apenas lecionar o

conteúdo, mas principalmente ajudar o educando a “reconhecer-se como arquiteto de sua

própria prática cognoscitiva.185”. Ou seja, o objetivo é que o educando seja o sujeito e autor

do conhecimento. “Todo ensino de conteúdos demanda de quem se acha na posição de

aprendiz que, a partir de certo momento, vá assumindo a autoria também do conhecimento do

objeto.” 186

Em Educação como Prática de Liberdade, Freire aponta que ajudar ao outro, seja esse

um indivíduo, um grupo ou uma nação, significa fomentar a autonomia, rechaçando-se

qualquer conduta paternalista, assistencialista ou domesticadora.

O que importa, realmente, ao ajudar-se o homem é ajudá-lo a ajudar-se. (E aos povos também.(19) É fazê-lo agente de sua própria recuperação. É, repitamos, pô-lo numa postura conscientemente crítica diante de seus problemas187”.

No mesmo sentido, em Pedagogia da Autonomia afirma que é essencial “Saber que

184FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967, p. 95 - 96 185FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967, p. 121 186FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967, p. 122 187FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967, p. 56.

100

ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção

ou a sua construção188.

Em Ação Cultural para a Libertação, ao falar do processo de alfabetização como um

processo não apenas em que se ensina a ler mas que se fomenta a liberdade, o professor tece

relevantes considerações sobre a autonomia do educando que deve assumir a sua

responsabilidade de sujeito cognoscente num processo dialógico com o educador.

A alfabetização]como ação cultural para a libertação, é um ato de conhecimento em que os educandos assumem o papel de sujeitos cognoscentes em diálogo com o educador, sujeito cognoscente também. Por isto, é uma tentativa corajosa de desmitologização da realidade, um esforço através do qual, num permanente tomar distância da realidade em que se encontram mais ou menos imersos, os alfabetizados dela emergem para nela inserirem-se criticamente189.

As reflexões ora apresentadas são viga mestra para a EDH em que comunidades,

movimentos sociais ou mesmo indivíduos devem ser os protagonistas tanto da caracterização

de violações, quanto para traçar possibilidades de superar a situação de violação - vislumbrar

possibilidades e fazer escolhas para suas vidas. Jamais pode ser considerado um educador em

direitos humanos aquele que bancariamente expõe conteúdo. O discurso não pode vir pronto,

“de cima para baixo”, deve vir de um processo dialógico, “de baixo para cima”, para ser

legítimo. Apenas “[...]nas bases populares e com elas, poderíamos realizar algo de sério e

autêntico para elas. Daí, jamais admitirmos que [...] formulássemos nós mesmos, em nossa

biblioteca e que a ele entregássemos como prescrições a serem seguidas. ” 190. O educador é

um facilitador nesse processo, mas, enfatiza-se, a autoria é dos sujeitos de direitos humanos

que têm sua esfera de proteção ameaçada ou violada ou que buscam avançar patamares de

proteção.

188FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 47. 189FREIRE, Paulo. Ação cultural para a libertação. In: FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a liberdade e outros escritos. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. P. 35-70, p. 39 190FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967, p. 102

101

5.3 A educação requer respeito e alteridade

O pilar de que a EDH requer respeito e alteridade abarca importantes concepções do

pensamento de Freire que serão aqui expostas: de que o educador deve respeitar o saber dos

educandos, respeitar a sua autonomia e dignidade, saber escutar e estar aberto para o diálogo.

Inicialmente, Freire aponta que o educador deve respeitar os saberes dos

educandos,191especialmente os saberes das classes populares construídos no seio da

comunidade. Destaca a importância de se valer da experiência quotidiana nos educandos para

relaciona-la ao conteúdo lecionado e fomentar reflexões sobre justiça social tais como: porque

lixões estão nas áreas em que vivem os oprimidos e não nas áreas mais favorecidas da cidade?

Nos dizeres de Freire:

Porque não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descasos dos dominantes pelas áreas pobres da cidade? A ética de classes envolvida neste descaso? Porque, dirá um educador reaccionariamente pragmático, a escola não tem nada que ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar conteúdos, transferi-los aos alunos. Aprendidos estes operam por si mesmos.” 192

Neste processo de facilitação para que os educandos desvelem as violações, é

necessário que o educador tenha um profundo respeito e compreensão da leitura de mundo

presente naquele contexto socioeconômico, dos conhecimentos populares que ali vigoram, das

experiências que vivem e dos mecanismos de poder ali existentes. Tal respeito e

compreensão são necessários para que, dialogicamente, fomente o questionamento e a

reflexão crítica e, assim, contribuia para o rito de passagem do saber popular para o

conhecimento epistemológico sobre direitos humanos. Aponta, ainda, que a tarefa do

educador não é nem acatar ou se converter ao conhecimento dos educandos, nem impor a sua

visão de mundo, mas sim, por meio de um processo dialógico desafiar a comunidade

educanda a “pensar sua história social como a experiência igualmente social de seus

191FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 32-32. 192FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 32.

102

membros, (...) revelando a necessidade de superar certos saberes que, desnudados, vão

mostrando sua ‘incompetência’ para explicar os fatos.”193

Além disso, se o educador é exógeno à comunidade, deve reconhecer-se e colocar-se

enquanto tal e atuar como um facilitador para o empoderamento da comunidade, deixando

claro que apenas a comunidade pode saber o que é melhor para o seu projeto de vida.

O segundo aspécto relevante do presente pilar é que fomentar o conhecimento de

direitos humanos exige respeito à autonomia e à dignidade do educando: “o inacabamento de

que nos tornamos conscientes nos fez seres éticos. O respeito à autonomia e à dignidade de

cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos

outros”.194 Nesse sentido, a educação respeitosa é avessa ao método bancário e

necessariamente requer a educação moral:

[...]transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: O seu caráter formador. Se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando.195

Miracy Gustin destaca que a autonomia é a condição indispensável para que seres

humanos possam criar meios para superar a situação de violação à sua dignidade. Autônomo é

aquele que consegue compreender a si enquanto ser individual e social e à realidade que o

circunda para, em seguida, delinear objetivos, metas, tomar decisões, fazer escolhas e traçar

meios para alcançá-las. Destaca também que autonomia crítica e autonomia para agir estão

intrinsecamente relacionadas e são interdependentes.

[…] o grau de compreensão que uma pessoa tem de si mesmo, de sua cultura e das relações interativas que é capaz de estabelecer com os demais é uma variável que afeta positiva, ou negativamente seu limite de autonomia. Esta esfera de autonomia crítica, que não se refere somente ao poder de ação de um indivíduo, mas também, e

193FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 78-79. 194FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p 58. 195 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 34-35.

103

principalmente, a seu poder de apreender e ordenar conceptualmente o mundo, sua pessoa e suas interações e de deliberar de forma consciente sobre a situa forma de vida.196

Ressalta-se que a autonomia, no sentido aqui proposto, não é do homem isolado, mas

sim do homem enquanto ser social, conforme será aprofundado no pilar A EDH requer

reconhecimento do ser humano enquanto social e da importância da comunidade, que será

exposto no final do presente capítulo. Como bem expressa Freire, “Ninguém liberta ninguém,

ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.”197

O terceiro ponto que este pilar abarca é o ensinamento de Freire que “ensinar exige

saber escutar”198 e aborda a importância de que o educador foque em uma comunicação

dialógica, democrática e solidária. Que transite do “falar a”, “de cima para baixo”, impositivo;

rumo ao “falar com”, construtivo, horizontal e calcado na alteridade e no respeito. É

justamente escutando atenciosamente que se comunica de forma efetiva e que se estabelece

uma relação com o outro. 199 Ressalta-se, escutar não é o mero ato auditivo, mas sim a postura

de centrar a atenção no outro, se abrir para o outro e para compreender as suas diferenças. A

partir da compreensão do outro o educador se prepara para expor o seu ponto de vista, se for

o caso, discordar e com respeito, dialogar.200

A disponibilidade para o diálogo possibilita um processo espiral, um mútuo

aprendizado tanto do educador quanto do educando em que se rechaçam argumentos de

autoridade.201 Por meio do diálogo, dois "eus" vão construindo a sua visão de mundo e a

possibilidade de transformação.202

196GUSTIN, Miracy. Das Necessidades Humanas aos Direitos: Ensaio de Sociologia e Filosofia do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 31. 197 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 29. 198 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 110-122. 199 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 111. 200 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p.117. Do original: “Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade auditiva de cada um. Escutar, no sentido aqui discutido, significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro. Isto não quer dizer, evidentemente, que escutar exija de quem realmente escuta sua redução ao outro que fala. Isto não seria escuta, mas auto-anulação. A verdadeira escuta não diminui em mim, em nada, a capacidade de exercer o direito de discordar, de me opor, de me posicionar. Pelo contrário, é escutando bem que me preparo para melhor me colocar ou melhor me situar do ponto de vista das idéias. Como sujeito que se dá ao discurso do outro, sem preconceitos, o bom escutador fala e diz de sua posição com desenvoltura. Precisamente porque escuta, sua fala discordante, em sendo afirmativa, porque escuta, jamais é autoritária.” 201 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 39 202 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 96. DO original: “O eu antidialógico, dominador, transforma o tu dominado, conquistado num mero “isto”. O eu dialógico, pelo contrário, sabe que é exatamente o tu que o constitui. Sabe também que, constituído por um tu – um não-eu, esse

104

Tal processo pode ser relacionado com a maiêutica socrática, expressão que remete ao

processo “dar à luz”, “parir”, em que, por meio do diálogo, de indagações, o educando faz

nascer o conhecimento em um processo em que não há uma relação de dominação entre

educando e educador, mas sim uma relação horizontal, de igualdade. O diálogo para ambos é

essencial na construção do conhecimento. No entanto, a perspectiva freireana, diversamente

da socrática, é fundada no indivíduo enquanto ser social, como será abordado à frente. 203A

importância que Freire confere ao diálogo também está relacionada à perspectiva de Dewey,

que coloca o processo comunicativo como requisito para a própria democracia, compreendida

como o modus vivendi em comunidade.

O “falar com” é peça chave da EDH. O processo deve ser de empoderamento,

dialógico de mútuo aprendizado, respeito e compreensão. Um educador em direitos humanos

deve carregar consigo a humildade, jamais se compreender como detentor da verdade ou

como um salvador de comunidades oprimidas, nunca ser paternalista ou impositivo. O diálogo

deve ser horizontal. Tal horizontalidade não significa concordar com tudo, a discordância faz

parte e enriquece o processo de EDH, mas para que sejam construtivas, a discordância e a

crítica devem ser respeitosas e democráticas. Assim, a EDH deve rechaçar qualquer

possibilidade de coisificação e dominação. Precisa ser calcada na humanidade, na dialética e

no respeito entre os sujeitos do processo educativo.

Em suma, para uma EDH com respeito e alteridade, é imprescindível o respeito aos

saberes dos educandos e à sua leitura de mundo, bem como o fomento à autonomia e

dignidade, sabendo escutar e estar aberto para o diálogo construtivo e horizontal.

5.4 A educação requer rechaço a qualquer forma de discriminação

As considerações do presente pilar certamente poderiam ter sido colocadas no

anterior, ou seja, que a EDH requer respeito a alteridade. Quem respeita e coloca-se no lugar

do outro não discrimina. No entanto, tendo em vista a essencialidade da não discriminação

para a EDH, entende-se ser necessário erguer um pilar específico para o tema.

tu que o constitui se constitui, por sua vez, como eu, ao ter no seu eu um tu. Desta forma, o eu e o tu passam a ser, na dialética destas relações constitutivas, dois tu que se fazem dois eu.” 203MAIA, Marcelo de Oliveira. Sócrates e Paulo Freire: Aproximações e distanciamentos. Uma introdução ao pensamento educacional. 2008. 158f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação em Educação, Universidade Federal do Pernambuco, Recife, 2008.

105

A EDH exige, na esteira de Freire,204 que se refute qualquer forma de discriminação,

pois essa desumaniza e é avessa à democracia.

A prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade de qualquer ser humano e nega radicalmente a democracia. Quão longe dela nos achamos quando vivemos a impunidade dos que matam os meninos nas ruas, dos que assassinam camponeses que lutam por seus direitos, dos que discriminam os negros, dos que inferiorizam os negros.205

É essencial que se tenha consciência e que se conscientize sobre os privilégios para

traçar caminhos rumo a uma mudança paradigmática. O reconhecimento de uma situação de

privilégio é premissa para que se possa endereçá-lo. É comum que pessoas temam falar sobre

racismo e preconceito de gênero, por exemplo, com o receio de cometer equívocos e gafes.

Tal temor pode ser paralisante. Educadores em direitos humanos devem estar preparados para

falar sobre raça e gênero – dentre outros temas que dão azo ao preconceito – e também

fomentar tal diálogo. No Brasil, a prática, muitas vezes, é de um preconceito velado, de um

eufemismo. É necessário falar, escancarar, discutir, reconhecer para refletir e delinear

estratégias para combater o preconceito.

Magendzo206 destaca, dentre os desafios encontrados na cultura latino-americana, a

incapacidade cultural, inclusive dos educadores, de reconhecer o outro como um interlocutor

legítimo e de conviver com a diversidade sociocultural207. Entende que há uma “tendência

geral à homogeneização, para ‘invisibilizar’ ou ignorar a diversidade” .208 Propõe a pedagogia

crítica para conscientizar da importância do respeito e da alteridade para se construir um

modo de vida que respeite os direitos humanos.209

204 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 37. 205 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 2014, p. 36 - 39 206 MAGENDZO, Abraham. Pedagogy of human rights education: a Latin American perspective. Intercultural Education, UNESCO, Routledge, Chile, v. 16, n. 2, p. 137–143, mai 2005. p. 147. 207 MAGENDZO, Abraham. Pedagogy of human rights education: a Latin American perspective. Intercultural Education, UNESCO, Routledge, Chile, v. 16, n. 2, p. 137–143, mai 2005. p. 147. 208 MAGENDZO, Abraham. Pedagogy of human rights education: a Latin American perspective. Intercultural Education, UNESCO, Routledge, Chile, v. 16, n. 2, p. 137–143, mai 2005. p. 140. Tradução nossa: “[…)]here is a general tendency toward homogenization, to ‘invisibilize’ or ignore diversity.“ 209 MAGENDZO, Abraham. Pedagogy of human rights education: a Latin American perspective. Intercultural Education, UNESCO, Routledge, Chile, v. 16, n. 2, p. 137–143, mai 2005, p. 140. Do original: “It should be said that in our culture, people—including teachers—are largely ‘incapable’ of recognizing the ‘other’ as a legitimate ‘other’ and to accept the existence of social and cultural diversity. In my opinion, there is a general tendency toward homogenization, to ‘invisibilize’ or ignore diversity. The thesis that I sustain, from a critical

106

Nesse sentido, Freire enfatiza a importância da dialogicidade para que os educandos

cresçam na diferença e se tornem seres éticos. Escutar o outro, falar com, ter uma relação

horizontal no diálogo é fundamental para conhecer e respeitar a diversidade. Lado outro, se a

postura é de arrogância e superioridade, não é possível compreender o diferente, que é tratado

como mero objeto. Freire leciona que:

Aceitar e respeitar a diferença é uma dessas virtudes sem o que a escuta não se pode dar. Se discrimino o menino ou menina pobre, a menina ou o menino negro, o menino índio, a menina rica; se discrimino a mulher, a camponesa, a operária, não posso evidentemente escutá-las e se não as escuto, não posso falar com eles, mas a eles de cima para baixo. Sobretudo, me proíbo entendê-los. Se me sinto superior ao diferente, não importa quem seja, recuso-me escutá-lo ou escutá-la. O diferente não é o outro a merecer respeito é um isto ou aquilo, destratável ou desprezível. 210

A dialogicidade a que Freire se refere é de suma relevância para a EDH. A troca de

experiências e o diálogo entre sujeitos de diferentes origens, vivências, raças e credos

possibilita que reconheçam suas diferenças e aprendam com elas e, assim, tornem-se seres

cada vez mais respeitosos e éticos.211 Tal processo educacional é eficaz para a prevenção de

posturas discriminatórias, tais como a da xenofobia, racismo e homofobia. Muitas dessas

posturas advêm da falta de convivência, conhecimento e compreensão da realidade do outro,

em suma, da falta de alteridade.

Assim, a abertura ao outro, a alteridade e a compreensão da realidade do outro são

essenciais para a prática educativa e promovem a compreensão, ao passo que previnem a

discriminação.

pedagogical stance, is that the relation of ‘otherness’ and the relation of diversity are necessary and foundational conditions for the respect and practice of human rights. It is only through these relations that it is possible to build a culture and way of living with others respectful of human rights”. 210FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 117 – 118. 211FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 159.

107

5.5 A educação requer reflexão sobre o aspecto cultural

Em Ação cultural para a libertação, Freire ressalta o aspecto cultural e social da

dominação. Alerta que, para a construção de uma sociedade mais justa, é necessário que se

enderece o aspecto cultural das forças dominantes. Os elementos culturais internalizam

verdades que precisam ser questionadas e, não sendo legítimas, rechaçadas.

Na medida, porém, em que a introjeção dos valores dos dominadores não é um fenômeno individual mas social e cultural, sua extrojeção, demandando a tranformação revolucionária das bases materiais da sociedade, que fazem possível tal fenômeno, implica também numa certa forma de ação cultural. Ação cultural através da qual se enfrenta, culturalmente, a cultura dominante. Os oprimidos precisam expulsar os opressores não apenas enquanto presenças físicas, mas também enquanto sombras míticas, introjetadas neles. A ação cultural e a revolução cultural, em diferentes momentos do processo de libertação, que é permanente, facilitam esta extrojeção. 212

Assim, a invasão cultural é um ato de violência contra os vulneráveis em que há a

imposição de visões de mundo como verdades, suplantando as perspectivas dos invadidos,

alienando-os, relegando-os à condição de coisa, de objeto. Nas palavras de Freire, a “invasão

cultural é a penetração que fazem os invasores no contexto cultural dos invadidos, impondo a

estes sua visão do mundo, enquanto lhes freiam a criatividade, ao inibirem sua expansão.”213

Tal processo desumaniza, retira ou ameaça a originalidade, o potencial criativo, a

possibilidade de escolha e de traçar o seu próprio destino.

A invasão cultural implica ainda, por tudo isto, em que o ponto de decisão da ação dos invadidos está fora deles e nos dominadores invasores. E, enquanto a decisão não está em quem deve decidir, mas fora dele, este apenas tem a ilusão de que decide. Esta é a razão por que não pode haver desenvolvimento sócio-econômico em nenhuma sociedade dual, reflexa, invadida.214

212FREIRE, Paulo. Ação cultural para a libertação. In: FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a liberdade e outros escritos. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. P. 35-70, p.44. 213 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 49 Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 2014, p.86. 214 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p.91.

108

Freire propõe a síntese cultural como a possibilidade de transformação da situação de

violação. Para tanto, é necessário que se ofereça resistência à cultura que tende à manutenção

do status quo, bem como que se tracem caminhos para superar ambas, tanto a cultura que

aliena quanto a que é alienada.

Na síntese cultural, onde não há espectadores, a realidade a ser transformada para a libertação dos homens é a incidência da ação dos atores. Isto implica que a síntese cultural é a modalidade de ação com que, culturalmente, se fará frente à força da própria cultura, enquanto mantenedora das estruturas em que se forma. Desta maneira, este modo de ação cultural, como ação histórica, se apresenta como instrumento de superação da própria cultura alienada e alienante.215

Sobre o tema, Miracy Gustin aponta que os seres humanos experimentam uma

constante tensão por serem, ao mesmo tempo, seres individuais e seres sociais e que, na

atualidade, tal tensão é ampliada tendo em vista que o contexto social apresenta uma dupla

face, tanto o contexto local das relações pessoais quanto por um contexto global cosmopolita

de “expansão não só de fronteiras geográficas, mas inclusive dos limites morais, políticos e

jurídicos” 216, que também leva a um aumento das necessidades humanas. Assim, é necessária

uma perspectiva transcultural para a emancipação social.

Somente a partir desta condição [transculturalidade] torna-se possível conceber uma humanidade emancipada e, da mesma forma, demonstrar que as necessidades não podem ser vistas como algo naturalmente determinado, mas derivadas da capacidade efetiva de transformação do mundo desse homem emancipado. 217

É importante fomentar o reconhecimento e a valorização como cultura de toda forma

de criação e manifestação humanas, ou seja, tanto as práticas consideradas eruditas como

também as manifestações populares. “Que cultura é a poesia dos poetas letrados de seu País,

como também a poesia de seu cancioneiro popular. Que cultura é toda criação humana.”218

215 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p.104. 216 GUSTIN, Miracy B. S. Das necessidades humanas aos direitos: ensaio de sociologia e filosofia do direito. Belo Horizonte: Del Rey: 1999, p. 209 217GUSTIN, Miracy. Das Necessidades Humanas aos Direitos: Ensaio de Sociologia e Filosofia do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 217. 218FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967, p. 109.

109

Freire aponta a importância de a prática educativa possibilitar o reconhecimento e a

assunção da identidade cultural que é composta tanto da identidade individual quanto da

identidade de classe.219

Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em relação uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. 220

Ressalta a importância democrática de levar-se em consideração os vetores que se

contrapõe à assunção e reconhecimento da identidade cultural. O conflito de interesses é

inerente à história da sociedade e a prática educativa que desconsidera tais forças, compactua

com a manutenção do status quo.221

Quando se reflete sobre o campo dos direitos humanos, especialmente para as classes

menos favorecidas e para grupos vulneráveis, torna-se latente a necessidade de o educador

fomentar o reconhecimento e a assunção da identidade cultural, integrada tanto pela

identidade individual quanto pela identidade coletiva, seja de classe social, seja de

pertencimento a algum grupo ou comunidade. As violações são, muitas vezes, tão

normalizadas pelos poderes existentes na sociedade que é necessário fomentar um

desvelamento da situação de violação, bem como um forte esforço para o reconhecimento e

assunção dos vulneráveis de sua condição de sujeitos de direito. Retoma-se aqui o exemplo

anteriormente mencionado de uma comunidade tradicional que, a partir de um processo de

EDH, passou a paulatinamente assumir conscientemente a sua identidade cultural e, assim, a

buscar seus direitos enquanto comunidade tradicional.

219FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 41- 46 220FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014. p. 42. 221FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 24-46.

110

5.6 A educação requer comprometimento do educador

O educador comprometido tanto age de acordo com as suas proposições quanto reflete

sobre a sua prática com o escopo de sempre aprimorá-la.

Na perspectiva freireana, ensinar requer que palavras sejam corporificadas pelo

exemplo222, ou seja, que o educador aja de acordo com aquilo que leciona. Tal elemento é

crucial na EDH pois o educador deve agir em consonância com a proteção da dignidade da

pessoa humana. Não pode ser considerado um educador em direitos humanos aquele que

verbaliza conteúdos de proteção da dignidade humana, mas, em seu dia-a-dia, age, por

exemplo, de forma discriminatória.

Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática.223 “A prática docente crítica, implicante

do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o

fazer.”224 A reflexão crítica, na prática da EDH, é crucial. Nesse ponto, os dizeres de Freire

dialogam com o pragmatismo de Dewey,225 com o aprendizado evolutivo proposto por

Ansell226 e, ainda, com experimentalismo democrático na visão de Sabel, que constantemente

analisam e refletem sobre a prática em busca de um contínuo aprimoramento.

Ao expor que “ensinar exige segurança, competência profissional e generosidade,”227

Freire tece considerações sobre a autoridade democrática, que instiga o questionamento e

planta a esperança. Aponta também que a busca pela liberdade envolve a tomada de decisões

e que decisão implica em cisão, ruptura, e, portanto, a assunção de riscos.

A autoridade coerentemente democrática, mais ainda, que reconhece a eticidade de nossa presença, a das mulheres e dos homens, no mundo, reconhece, também e necessariamente, que não se vive a eticidade sem liberdade e não se tem liberdade sem risco. O educando que exercita sua liberdade ficará tão mais livre quanto mais

222 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 35-36. 223 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 39-41. 224FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 49 Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 2014, p. 39-41 225 DEWEY, John. The Public and its Problems. Estados Unidos: Pensilvania State University Press, 2012, p. 141. 226ANSELL, Christopher K. Pragmatist Democracy: Evolutionary Learning as Public Philosophy. Nova Iorque: Oxford University Press, 2011. 227FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 89-94

111

eticamente vá́ assumindo a responsabilidade de suas ações. Decidir é romper e, para isso, preciso correr o risco.228

Na EDH, o facilitador democrático, ou, nos dizeres de Freire, autoridade democrática,

deve fomentar a liberdade e preparar para a vida em comunidade, o que implica em assunção

de riscos, em trilhar caminhos incertos, mas que são guiados por postura ética em prol da

justiça social.

Tais considerações também dialogam a perspectiva pragmatista de democracia que

propõe justamente uma abertura para a participação dos diversos setores envolvidos na

construção e implementação de todas as formas associativas humanas para torná-las mais

participativas, adaptáveis, autênticas e eficazes na solução de problemas que se lhes

apresentam; para tanto, é necessário correr riscos experimentar e aprender com a experiência.

5.7 A educação requer reflexão sobre a ideologia

Freire leciona que “ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica229”. Expõe

que a ideologia mascara, distorce a realidade e potencializa uma aceitação sem indignação,

revoltando situações de violação e opressão.

É que a ideologia tem que ver diretamente com a ocultação da verdade dos fatos, com o uso da linguagem para penumbrar ou opacizar a realidade ao mesmo tempo em que nos torna "míopes". [...] A própria " miopia” que nos acomete dificulta a percepção mais clara, mais nítida da sombra. Mais séria ainda é a possibilidade que temos de docilmente aceitar que o que vemos e ouvimos é o que na verdade é, e não a verdade distorcida.230

No mesmo sentido, em Pedagogia da autonomia, aponta o quanto a ideologia é óbvia

e, paradoxalmente, cega aqueles que nela estão imersos, condicionando a sua visão de mundo.

228 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 91. 229 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, 122-132. 230 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014., p. 122-123.

112

Assim, muitos pretendem promover mudanças, mas não logram êxito pois o fazem sem

problematizar e desvelar os mecanismos ideológicos de opressão.

Muitos, porque aferrados a uma visão mecanicista, não percebendo esta obviedade, a de que a situação concreta em que estão os homens condiciona a sua consciência do mundo e esta as suas atitudes e o seu enfrentamento, pensam que a transformação da realidade se pode fazer em termos mecânicos. Isto é, sem a problematização desta falsa consciência do mundo ou sem o aprofundamento de uma já́, menos falsa consciência dos oprimidos, na ação revolucionária231

A ideologia vale-se de mitos que contribuem para a manutenção da alienação. Tais

mitos são introjetados pelos meios de comunicação em massa e domesticam, tornam o ser

humano objeto na medida em que o despem de sua capacidade decisória.232

Uma das grandes, se não a maior, tragédia do homem moderno, está em que é hoje dominado pela força dos mitos e comandado pela publicidade organizada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando cada vez, sem o saber, à sua capacidade de decidir. Vem sendo expulso da órbita das decisões.233

É importante ainda estar atento que o discurso que prega o fim das ideologias tem

como objetivo a manutenção do status quo. Assim, tal discurso não só é ideológico, como

também é perverso, pois carrega consigo o a falácia da neutralidade e um risco ainda maior de

anestesiar a sociedade.

231FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 73. 232FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014. Freire cita exemplos de tais mitos, muitos dos quais permanecem atuais mesmo passadas décadas da primeira edição do livro: “O mito, por exemplo, de que a ordem opressora é uma ordem de liberdade. De que todos são livres para trabalhar onde queiram. Se não lhes agrada o patrão, podem então deixá-la e procurar outro emprego. O mito de que esta “ordem” respeita os direitos da pessoa humana e que, portanto, é digna de todo apreço. O mito de que todos, bastando não ser preguiçosos, podem chegar a ser empresários – mais ainda, o mito de que o homem que vende, pelas ruas, gritando: “doce de banana e goiaba” é um empresário tal qual o dono de uma grande fábrica. O mito do direito de todos à educação, quando o número de brasileiros que chegam às escolas primárias do país e o do que nelas conseguem permanecer é chocantemente irrisório. O mito da igualdade de classe, quando o “sabe com quem está falando?” é ainda uma pergunta dos nossos dias. […]” 233 FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967, p. 43.

113

[…]devo estar advertido do poder do discurso ideológico, começando pelo que proclama a morte das ideologias. Na verdade, só ideologicamente posso matar as ideologias, mas é possível que não perceba a natureza ideológica do discurso que fala de sua morte. No fundo, a ideologia tem um poder de persuasão indiscutível. O discurso ideológico nos ameaça de anestesiar a mente, de confundir, das coisas, dos acontecimentos. 234

Denuncia que educadores carecem tanto do conhecimento sobre direitos humanos

quanto de preparo emocional, pedagógico e cultural para educar em direitos humanos.

Imersos na ideologia dominante, falta-lhes criticidade, especialmente na seara da coletividade.

Como não conseguem refletir criticamente sobre a prática educacional dominante, são, em sua

maioria, peças do sistema que mantêm o status quo.

É necessário que se diga abertamente que a maioria dos professores não estavam preparados para encarar todas as demandas da educação em direitos humanos. Infelizmente, a maioria ainda não está preparada. Em geral, não apenas lhes falta conhecimento sobre instrumentos e instituições internacionais e nacionais de direitos humanos, mas eles também, às vezes, não estão prontos emocionalmente, pedagogicamente e culturalmente para lecionar direitos humanos. Eles estão embrenhados em uma cultura autoritária e não apresentam uma perspectiva para seu trabalho educacional. Não é fácil para professores ser crítico, particularmente em um cenário coletivo. Em nossa cultura, professores não estão acostumados a questionar, explicar e tomar perspectiva em sua prática. Eles não estão acostumados a questionar premissas que lastreiam suas crenças atitudes e comportamentos. Professores não questionam sobre o ‘porquê’ e ‘como’ do sistema educacional. Infelizmente, eles são uma parte integral e funcional do sistema, reproduzindo iniquidades, injustiças sociais e várias formas de discriminação. Em outras palavras, em nosso continente, uma perspectiva crítica está muito distante da realidade de muitos professores e das instituições educacionais que eles integram. 235

234FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 129. 235MAGENDZO, Abraham. Pedagogy of human rights education: a Latin American perspective. Intercultural Education, UNESCO, Routledge, Chile, v. 16, n. 2, p. 137–143, mai 2005, p. 141. Tradução nossa: “ It must be said very openly that many teachers weren’t prepared to face all the demands of human rights education. Unfortunately, most are still not prepared. In general, they are not only lacking knowledge of international and national human rights instruments and institutions, but they are also sometimes not ready emotion- ally, pedagogically and culturally to teach human rights. They are caught up in an authoritarian culture and lack a critical approach to their educational work. It is not easy for teachers to be critical, particularly in a collective setting. In our culture, teachers are not accustomed to questioning, explaining and taking perspective on their practice. They are not accustomed to questioning the assumptions behind their beliefs, attitudes and behaviors. Teachers do not inquire about the ‘why’ and ‘how’ of the educational system. Unfortunately, they are an integral and functional part of it, reproducing inequities, social injustices, and various types of discrimination. In other words, on our continent, a critical approach is very far from the realities of many teachers and from the educational institutions they are a part of.”

114

Nesse sentido, para que educadores promovam uma EDH transformativa, devem saber

que o meio em que vivem condiciona sua visão de mundo e se preparar para desvelar

perspectivas antes de ingressar na prática educativa. A tarefa difícil é como se preparar para

lidar com a ideologia, manter-se alerta e com lentes translúcidas. A resposta freireana é

justamente a abertura para o diálogo, a oitiva de diversas perspectivas, a recusa a verdades

absolutas e o constante questionamento.

Para me resguardar das artimanhas da ideologia não posso nem devo me fechar aos outros nem tampouco me enclausurar no ciclo de minha verdade. Pelo contrário, o melhor caminho para guardar viva e desperta a minha capacidade de pensar certo, de ver com acuidade, de ouvir com respeito, por isso de forma exigente, é me deixar exposto às diferenças, é recusar posições dogmáticas, em que me admita como proprietário da verdade. No fundo, a atitude correta de quem não se sente dono da verdade nem tampouco objeto acomodado do discurso alheio que lhe é autoritariamente feito. Atitude correta de quem se encontra em permanente disponibilidade a tocar e a ser tocado, a perguntar e a responder, a concordar e a discordar. Disponibilidade à vida e a seus contratempos.236

Assim, a EDH deve reconhecer tanto o seu viés ideológico e seu potencial de oprimir

e docilizar as vítimas e a sociedade como um todo, ou, por outro lado, o seu potencial

desafiador, de desvelamento colaborativo, transformador em prol de uma sociedade mais

justa, por meio de uma prática dialógica. “O diálogo não impõe, não maneja, não domestica,

não sloganiza.”237

Portanto, feita a escolha ideológica da EDH democrática em prol da justiça social,

deve o educador estar ciente da ideologia que paira como uma neblina sobre diversas

violações em parceria com os educandos, desmascarando-as e escancarando-as, pois, como

leciona a professora Miracy Gustin, “na história da humanidade inúmeras explicações falsas

das realidade serviram para justificar institutos que eram úteis ao poder vigente ou à

manutenção do status quo”.238

Um exemplo concreto de manutenção do status quo pela ideologia dominante é a

criminalização de movimentos sociais e defensores de direitos humanos: não é raro ver a

mídia e setores da sociedade e do Estado taxarem de criminosas condutas de movimentos

sociais que têm como escopo questionar a ordem vigente e lutar por uma sociedade mais 236FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 121. 237FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 97. 238 GUSTIN, Miracy. Das Necessidades Humanas aos Direitos: Ensaio de Sociologia e Filosofia do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 16.

115

justa. De acordo com a Comissão interamericana de Direitos Humanos, no último ano, houve

um aumento de atos de violência, repressão e criminalização de movimentos sociais.239

Relembra-se aqui que tais condutas estão diretamente relacionadas com mecanismos

ideológicos utilizados pelo regime nazista e pela ditadura militar, quando regime jurídico

vigente nos Estados considerou legal as mais perversas e imorais atrocidades contra o ser

humano.

5.8 A educação requer a consciência de que a educação não é neutra

O presente pilar está diretamente relacionado com o pilar anterior que abordou a

necessidade de uma reflexão sobre a ideologia. Se a ideologia mascara verdades e contribui

para a opressão dos mais necessitados, é necessária uma educação que desvele tal cenário, que

seja comprometida com a mudança e que, portanto, não pode ser neutra; “(...)se a educação

não pode tudo, alguma coisa fundamental a educação pode. Se a educação não é a chave das

transformações sociais, não é também simplesmente reprodutora da ideologia dominante.”240

Mais ainda, conforme abordou-se, a ideologia que prega o fim da ideologia além de

ideológica é perversa.

Freire afirma que “ensinar exige a tomada consciente de decisões”241 e expõe que a

educação é, por sua própria natureza, política. A neutralidade é inalcançável, tendo em vista

que seres humanos dialogam, valoram escolhem e decidem. Para que a educação fosse neutra,

seria necessária uma ampla concordância sobre valores, estrutura socioeconômica e forma de

239 Veja, por exemplo, o seguinte trecho: IACHR, Condemns Killings of Human Rights Defenders in Brazil. Sítio da Organização dos Estados Americanos, No. 054/16. Washington, 27 abr. 2016. “IACHR Condemns Killings of Human Rights Defenders in Brazil” constante do sítio da Organização dos Estados Americanos informando que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos condena o assassinato de ao menos 6 defensores de direitos humanos, bem como que a comissão observou um aumento de atos de criminalização, violência e repressão de movimentos sociais. Notícia publicada em 27/04/2016: “Over the past year, the Commission has observed the intensification of social movements demanding that the rule of law be maintained in Brazil and that constitutional rights and effective public policies, based on human rights, be upheld, as these policies seek to address structural situations, such as agrarian reform and access to health and education. At the same time, the Commission has observed an increase in acts of violence, repression, and criminalization of these social movements.”. Disponível em: <http://www.oas.org/en/iachr/media_center/Preleases/2016/054.asp>. Acesso em: 01/011/2016 240 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014. p. 110. 241FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014. p. 106 – 110.

116

encarar injustiças, o que é inviável em uma sociedade marcada por desigualdades.242A

neutralidade é um mito, uma falácia.

Nesse sentido, a EDH, que visa a construção de uma vida em sociedade mais justa,

não pode ser neutra, precisa escolher, tomar partido. Deve ser combativa, voltada à mudança,

aos desfavorecidos, miseráveis e excluídos. Se a ideologia dominante deixa muitos à margem

do direito humano à moradia, à saúde e outros direitos, a EDH precisa comprometer-se

moralmente com o desvelamento e combate da realidade violadora, ainda que o direito

positivado seja contrário. “ "Lavar as mãos" em face da opressão é reforçar o poder do

opressor, é optar por ele . Como posso ser neutro diante da situação, não importa qual seja ela,

em que o corpo das mulheres e dos homens vira puro objeto de espoliação e descaso? 243.”

Recorda-se aqui que durante o Regime Nazista as mais perversas barbaridades foram

perpetradas sob os auspícios da lei. Hoje é claro o absurdo de declarar-se neutro diante das

violações nazistas aos direitos humanos, mas à época muitos mantiveram-se “neutros”,

acovardaram-se, ou seja, compactuaram com tal regime.

A EDH autêntica jamais pode servir como artifício para imobilizar e mascarar

verdades e para cooperar com o fatalismos covardes de que a realidade violadora existe e não

há nada a ser feito. Educador e educando devem assumir a responsabilidade de eticamente

avaliar, fazer escolhas, tomar decisões e intervir na realidade.244

Nesse sentido, Freire aponta que “ensinar exige compreender que a educação é uma

forma de intervenção no mundo.”245 Educar em direitos humanos é uma forma de intervenção

no mundo que tem como meta uma sociedade que respeita a dignidade humana. Para tanto, a

EDH visa desmantelar barreiras, romper o status quo, a ideologia dominante naquilo em que

oprime, que exclui, que marginaliza e que inviabiliza a consecução de direitos fundamentais.

No pilar anterior citou-se como exemplo de manutenção do status quo pela ideologia

dominante a criminalização de movimentos sociais e defensores de direitos humanos. Neste

ponto é latente que a EDH não é nem pode ser neutra. Educadores que “etiquetam”

movimentos sociais e defensores de direitos humanos como “delinquentes” fazem a escolha

pela manutenção da ordem vigente. Já os educadores que optam por desvelar a opressão

existente em tais condutas também não são neutros, pois fazem a escolha pela justiça social. 242FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 109. 243 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 109. 244 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 98-99. 245 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014. p. 96-102.

117

A EDH transformadora exige, pelo exposto, um ato de escolha ideológico. Afinal, a

educação, assim como os direitos humanos, pode também ser um instrumento de manutenção

do status quo, de docilização dos corpos jurídicos indóceis, de manutenção dos mecanismos

de poder.

5.9 A educação requer a consciência de que o conhecimento é continuamente construído

É essencial, na EDH, a perspectiva de que o conhecimento é continuamente

construído: “Ensinar aprender e pesquisar lidam com esses dois momentos do ciclo

gnosiológico: o que se ensina e se aprende o conhecimento já existente e o que em que se

trabalha a produção do conhecimento ainda não existente246”. A rigorosidade metódica tem,

assim, dois degraus, um fundacional, em que se constrói o alicerce com base no conhecimento

já existente, e um criativo, em que se produz novos conhecimentos. Preconcepções,

preconceitos e verdades prontas devem sempre estar abertas ao questionamento para que a

EDH trilhe caminhos rumo a padrões de proteção cada vez mais eficazes. “Daí que seja tão

fundamental conhecer o conhecimento existente, quanto saber que estamos abertos e aptos à

produção do conhecimento ainda não existente”247. Um exemplo ilustrativo é o gênero. Se,

num passado próximo, as opções eram homem ou mulher, hoje a própria rede social Face

book reconhece mais de 56 tipos de gênero248 e um educador em direitos humanos deve estar

aberto e atento a tais evoluções para sempre trilhar rumo a uma maior proteção da dignidade

humana.

Freire reflete que o “novo” e o velho não podem ser acolhidos ou rejeitados apenas em

razão do critério cronológico, sendo necessária uma reflexão sobre sua validade e sua

importância.

A perspectiva de um conhecimento continuamente construído também está presente

no pragmatismo de Dewey. A democracia, em sua perspectiva, requer uma abertura ao

questionamento permanente, ou seja, tanto no momento presente quanto no futuro.

246 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 30. 247 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 30. 248 OREMUS, Will. Here Are All the Different Genders You Can Be on Facebook, 13 de fev. De 2014.

118

5.10 A educação requer a consciência de que há um futuro a ser construído

Freire aponta que se despe da condição de humano tanto o oprimido que é

desumanizado quanto o opressor que desumaniza. Veicula a mensagem de esperança que,

apesar do presente violar a dignidade humana, este é o resultado de uma ordem social injusta.

Assim, é possível construir um futuro mais humano por meio da educação. Esta é exatamente

a força que move a EDH: projetar e construir um futuro mais digno.

A desumanização, que não se verifica, apenas, nos que têm sua humanidade roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é distorção da vocação do ser mais. É distorção possível na história, mas não vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como “seres para si”, não teria significação. Essa somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma “ordem” injusta que gera a violência dos opressores e essa, o ser menos.249

Destaca que como a ordem injusta é fruto do que foi construído por seres humanos,

cabe às mulheres e homens projetar e construir uma ordem social justa.250 “E, na medida em

que cria, recria e decide, vão se conformando as épocas históricas. É também criando,

recriando e decidindo que o homem deve participar destas épocas.”251

Se seres humanos não podem participar como autores de suas vidas, como seres

autônomos que fazem escolhas conscientes, o que ocorre é uma desumanização. Para a

superação de tal situação alienante, é essencial, mas não suficiente, a capacidade de

compreender e refletir sobre a realidade opressora. Aponta que tal compreensão leva à

esperança, mas que, para a retomada da condição de sujeitos, é necessária a efetiva

participação:

249 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 17. 250 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 20. 251 FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. p. 59.

119

E é, precisamente, quando – às grandes maiorias – se proíbe o direito de participarem como sujeitos da história, que elas se encontram dominadas e alienadas. […] Idealistas seríamos se, dicotomizando a ação da reflexão, entendêssemos ou afirmássemos que a simples reflexão sobre a realidade opressora, que levasse os homens ao descobrimento de seu estado de objetos, já, significasse serem eles sujeitos. Não há, dúvida, porém, de que, se este reconhecimento ainda não significa que sejam sujeitos, concretamente, “significa, disse um aluno nosso, serem sujeitos em esperança”. E esta esperança os leva à busca de sua concretude.252

Nesta perspectiva, Freire ainda aponta que “ensinar exige apreensão da realidade”253 e

ressalta a importância da educação para compreender e agir. 254 “A capacidade de aprender,

não apenas para nos adaptar mas sobretudo para transformar a realidade, para nela intervir,

recriando-a.”255

Aborda que educabilidade humana é distinta do adestramento dos outros animais ou

do cultivo das plantas, justamente pela capacidade de intervenção consciente na realidade.

Assim, homens e mulheres estão no mundo e com o mundo, ou seja, são dotados da

capacidade de olhar para a realidade em que vivem – como alguém olha da varanda – e

refletir sobre a realidade e transformar o mundo por meio de ações conscientes e reflexivas,

superando, assim, os desafios e violações histórico-culturais que sofrem. Nesse sentido,

apresenta-se a seguinte passagem dos escritos de Miracy Gustin, que coincide tanto com a

perspectiva freireana.256 ora apresentada, quanto com a perspectiva de Dewey anteriormente

exposta.

252 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994. p. 73. 253 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 67-70. 254 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 68. Nesse sentido, destaco a seguinte passagem“Mulheres e homens, somos os únicos seres que, social e historicamente, nos tornamos capazes de aprender. Por isso, somos os únicos em que aprender é uma aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico do que meramente repetir a lição dada. Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito.” 255 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 67 256 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014. p. 67. Nesse sentido, destaco a seguintes passagens: “É como seres conscientes que mulheres e homens estão não apenas no mundo, mas com o mundo. Somente homens e mulheres, como seres “abertos”, são capazes de realizar a complexa operação de, simultaneamente, transformando o mundo através de sua ação, captar a realidade e expressá-la por meio de sua linguagem criadora. E é enquanto são capazes de tal operação, que implica em “tomar distância” do mundo, objetivando-o, que homens e mulheres se fazem seres com o mundo. Sem esta objetivação, mediante a qual igualmente se objetivam, estariam reduzidos a um puro estar no mundo, sem conhecimento de si mesmos nem do mundo”.

120

Através da atividade criativa a pessoa humana (e a sociedade) tornar-se-ia capaz de superar os variados constrangimentos histórico e culturais que se lhe antepõe, distinguindo-se, assim, dos demais seres vivos. 257

Freire discorre sobre a culpa que, muitas vezes, os oprimidos e vulneráveis carregam,

demonstrando também que os mecanismos de poder existentes em uma sociedade difundem

sobre os hipossuficiente para a manutenção do status quo. Tal discussão é muito importante

para a EDH. A eliminação do sentimento de culpa daquele que tem a sua dignidade humana

violada é uma etapa necessária do processo de compreensão da situação de opressão, bem

para caminhar rumo a mudança.

É importante ter sempre claro que faz parte do poder ideológico dominante a inculcação nos dominados da responsabilidades por sua situação. Daí ́ a culpa que sentem eles, em determinado momento de suas relações com o seu contexto e com suas classes dominantes por se acharem nesta ou naquela situação desvantajosa.258 Pessoas assim fazem parte das legiões de ofendidos que não percebem a razão de ser de sua dor na perversidade do sistema social, econômico, político em que vivem, mas na sua incompetência. Enquanto sentirem assim, pensarem assim e agirem assim, reforçam o poder do sistema. Se tornam coniventes da ordem desumanizante.259

Freire diferencia o ser condicionado, que é influenciado por aspectos culturais,

históricos, sociais e genéticos, mas, ao mesmo tempo, inacabado e com possibilidades de

evolução, do ser determinado, que não tem como alterar os deslindes de sua jornada. Destaca

que o ser humano é condicionado, mas não determinado. “Gosto de ser gente porque,

inacabado, sei que sou um ser condicionado mas, consciente do inacabamento, sei que posso

ir mais além dele. Esta é a diferença profunda entre o ser condicionado e o ser determinado.260

A EDH faz sentido justamente porque somos seres condicionados, mas não

determinados. Os obstáculos existem e devem ser reconhecidos, mas podem ser superados.

257 GUSTIN, Miracy. Das Necessidades Humanas aos Direitos: Ensaio de Sociologia e Filosofia do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 23. 258 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 80. 259 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 81. 260 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 53.

121

Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado mas, consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele. Esta é a diferença profunda entre o ser condicionado e o ser determinado. A diferença entre o inacabado que não se sabe como tal e o inacabado que histórica e socialmente alcançou a possibilidade de saber-se inacabado. Gosto de ser gente porque, como tal, percebo afinal que a construção de minha presença no mundo, que não se faz no isolamento, isenta da influência das forças sociais, que não se compreende fora da tensão entre o que herdo geneticamente e o que herdo social, cultural e historicamente, tem muito a ver comigo mesmo. Seria irônico se a consciência de minha presença no mundo não implicasse já́ o reconhecimento da impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença.261

Na EDH, que é, em sua essência, transformadora, é muito importante a consciência

deste inacabamento, da possibilidade de mudança e da crença na possibilidade de caminhar

rumo a patamares de proteção da dignidade humana cada vez mais adequados. Saber que, se a

realidade atual é opressora e viola a dignidade, pode-se nela intervir e não a ela se adaptar. O

futuro ainda está por ser construído pelos educandos que são sujeitos da história e pode

edificar um cenário muito mais digno.262 No entanto, para mudar, é necessário convicção e

reconhecimento de que o nado é contra a maré, ou seja, contra a direção em que vertem os

mecanismos de poder.

Neste processo de construção de um futuro, é importante a afirmação de Freire de que

“ensinar exige alegria e esperança”, 263 bem como a importância de tais elementos para a

construção de um ambiente propício à prática educativa. “A esperança é um condimento

indispensável à experiência histórica. Sem ela, não haveria História, mas puro

determinismo.”264 A EDH, justamente por lidar como mais essencial do ser humano, sua

dignidade, requer alegria e esperança para efetivamente veicular a possibilidade de mudança.

261 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 53. 262 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 74-75. 263 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 70-74. 264 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 71.

122

5.11 A educação requer reconhecimento do ser humano enquanto ser social e da importância da comunidade

A EDH só pode ser democrática e emancipadora se reconhecer que seres humanos são

seres sociais. Não há que se falar em processo educacional de um homem isolado da

comunidade.

A educação como prática da liberdade, ao contrário naquela que é prática da dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim também na negação do mundo como uma realidade ausente dos homens265.

Tal visão, inclusive, endereça as críticas de Bentham e Marx de que os direitos

humanos são demasiadamente individualistas e voltados para pessoas desconexas de sua

ambiência social, abordadas no capítulo em que se tratou das críticas aos direitos humanos.

Um indivíduo não se empodera e liberta sozinho, somente o faz enquanto em

comunhão e de forma solidária. Assim na visão freireana é inviável e o empoderamento nas

relações antagônicas entre opressor e oprimido, em que o individualismo desumaniza.266

Ressalta que ainda que um ou outro integrante do grupo se antecipe no desvelamento

da realidade violadora, esta compreensão é resultado do processo dialógico, de sua reflexão

enquanto ser que vive em comunidade. Cabe ao educador em direitos humanos fomentar um

processo educacional do grupo.

É importante salientar que o novo momento na compreensão da vida social não é exclusivo de uma pessoa. A experiência que possibilita o discurso novo é social. Uma pessoa ou outra, porém, se antecipa na explicitação da nova percepção da mesma realidade. Uma das tarefas fundamentais do educador progressistas é, sensível à literatura e a releitura do grupo, provocá-lo bem como estimular a generalização da nova forma de compreensão do contexto.267

265 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 40. 266 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 43. 267 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 80.

123

Miracy Gustin também reforça o entendimento proposto no presente pilar e aponta que

a autonomia é do homem enquanto ser social, e não de um homem abstrato, apartado dos

demais. Assim, refuta a visão liberal de autonomia como autossuficiência. Aponta que a

autonomia crítica não advém do nascimento, mas sim do desenvolvimento humano enquanto

ser social, é dialógica e lastreada na intersubjetividade. É alcançada por meio de um processo

social de questionamento, reflexão e justificação e validação intersubjetiva das decisões.268

A autonomia, aqui afirmada como necessidade primordial do homem ocidental contemporâneo, deve ser considerada num sentido iterativo e dialógico, por isto também de natureza social e transcultural, que supera a concepção restrita e individualizante da doutrina liberal do mundo moderno e que rompe com a visão tradicional da tensão irremediável e da disjunção entre as esferas pública e privada.269

Miracy Gustin defende, portanto, que a capacidade de autonomia origina-se como

resultado de interações humanas questionadoras e conflitivas que levam à superação de

identidades tradicionais e à construção de novas identidades.

A perspectiva deweyana é também do ser humano que só se realiza plenamente

enquanto ser social, conforme abordado no capítulo a ele dedicado. Ressalta-se que sua

concepção de democracia é de um modo de vida em comunidade, que requer a participação, o

diálogo, a educação e o questionamento.

A busca pela construção de uma realidade mais justa, pela consecução dos direitos

humanos, será muito mais eficaz se o empoderamento for do grupo, se houver uma

coordenação de forças para a consecução de um objetivo comum.

Um exemplo de tal empoderamento coletivo por meio da EDH são as ocupações

urbanas que lutam pelo direito humano à moradia digna. Foi por meio de um processo de

conscientização, muitas vezes fomentado pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e

268 GUSTIN, Miracy. Das Necessidades Humanas aos Direitos: Ensaio de Sociologia e Filosofia do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 19 – 20. Nesse sentido, destaco o seguinte trecho: “Uma pessoa que é autônoma só o é em relação ao outro, de forma interativa, as suas escolhas e decisões de ação. Ser autônomo é saber que se está agindo como um caráter autônomo em relação aos valores e regras do outro e das comunidades. A validação intersubjetiva é, portanto, condição necessária para a sua realização. O chamado auto-governo deve realizar-se através da capacidade de avaliar criticamente as normas, os padrões e os objetivos de seu ambiente. Isso significa uma complexa e dialética de inserção-destaque; ou seja, de estar relacionado e integrado às regras e princípios de seu contexto e, ao mesmo tempo, dele estar liberto para ser capaz de julgá-lo. Essa constatação torna inadmissível o conceito de auto-suficiência e se ser isolados atribuídos à autonomia pelo pensamento liberal.” 269 GUSTIN, Miracy. Das Necessidades Humanas aos Direitos: Ensaio de Sociologia e Filosofia do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 210.

124

Favelas- MLB, que se criou e cria-se, no seio das ocupações, uma consciência coletiva da

insuficiência de políticas públicas em prol de moradia e a vontade conjunta e luta pela

concretização de tal direito humano. Um exemplo de sucesso é a ocupação Dandara, em Belo

Horizonte, que existe há mais de 5 anos.270

A coletividade soma forças neste processo de desvelamento, forças essas que se

organizam e empoderam para oferecer resistência aos poderes dominantes. Assim, uma das

táticas de dominação utilizadas por opressores é justamente impedir a união ou causar a cisão

de grupos para enfraquecer a sua luta e pautas reivindicatórias. Dividir facilita a manutenção

da opressão.271

O MAB, Movimento dos Atingidos por Barragens, também relata que a tática

utilizada por algumas mineradoras quanto aos atingidos pelo rompimento de barragens é

justamente de causar cisões nas comunidades, ameaçar a não indenizar aqueles que integram

ou apoiam o movimento social, em uma tentativa de diminuir a força de luta e resistência dos

oprimidos que tiveram os seus direitos humanos.

270 Para saber mais, recomendo assistir PROZANATO, Carlos (dir.). Dandara: enquanto morar for um privilégio ocupar é um direito. Realização: Brigadas Populares, Rede de Solidariedade, Lamestiza audiovisual (65:21 min). Sobre o MLB e sua atividade de educação em direitos humanos: “Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) é um movimento social nacional que luta pela reforma urbana e pelo direito humano de morar dignamente. Nesse sentido, tem importância fundamental a organização e realização das ocupações. A ocupação educa o povo para a necessidade de lutar organizado e desenvolve o espírito de trabalho coletivo. Ocupar é um ato de rebeldia, de confronto com a ordem estabelecida, de questionamento à sagrada propriedade privada capitalista. Logo, enquanto morar dignamente for um privilégio, ocupar é um dever!” Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). Sítio Eletrônico.. 271 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 79-80. Do original: “Na medida em que as minorias, submetendo as maiorias a seu domínio, as oprimem, dividi-ias e mantê- las divididas são condição indispensável à continuidade de seu poder. Não se podem dar ao luxo de consentir na unificação das massas populares, que significaria, indiscutivelmente, uma séria ameaça à sua hegemonia. Daí que toda ação que possa, mesmo incipientemente, proporcionar as classes oprimidas o despertar para que se unam é imediatamente freada pelos opressores através de métodos, inclusive, fisicamente violentos. Conceitos como os de união, de organização, de luta, são timbrados, sem demora, como perigosos. E realmente o são, mas, para os opressores. É que a praticização destes conceitos é indispensável à ação libertadora. O que interessa ao poder opressor é enfraquecer as oprimidos mais do que já́ estão, ilhando-os, criando e aprofundando cisões entre eles, através de uma gama variada de métodos e processos.”

125

6 CONCLUSÃO

Em meio a uma realidade desumanizante em que muitos não têm o mínimo para viver

com dignidade, a uma sociedade neoliberal cada vez mais individualista, excludente,

marcada, na linguagem freireana, pela cultura do silêncio em que poucos têm a possibilidade

de efetivamente participar do processo democrático, a EDH apresenta-se como uma

mensagem de esperança, um instrumento para colaborar com a ruptura de um círculo vicioso

de exclusão e opressão. A EDH é difundida como um meio apto a fomentar o empoderamento

para que sujeitos de direito possam progressivamente caminhar rumo a uma sociedade mais

humana e inclusiva. No entanto, entende-se que, para que a EDH efetivamente tenha um

potencial emancipatório, é necessário refletir sobre sua base fundante, antes de adentrar a

temática conteudista. Não é qualquer EDH que tem vocação libertadora; tendo em vista que a

educação como instrumento ideológico que é, pode, paradoxalmente, ser tanto mantenedora

do status quo e quanto um caminho para a justiça social.

O objetivo da presente dissertação é justamente endereçar este aspecto fundacional da

EDH, ou seja, propor o alicerce necessário para que a EDH cumpra a missão de endereçar

injustiças sociais e dar voz aos silenciados.

O presente trabalho partiu das seguintes hipóteses que foram confirmadas ao longo das

reflexões:

• Para que a EDH seja transformadora, deve-se adotar uma reflexão crítica sobre

os direitos humanos e também uma perspectiva de questionamento do status quo, que busque

endereçar as desigualdades;

• A EDH libertadora requer uma ambiência democrática. O Pragmatismo

deweyano que defende democracia enquanto modo de vida em comunidade, bem como o

experimentalismo democrático, expressão renovada de tal pragmatismo no fim do século XX

e início do século XI, são as vertentes mais adequadas.

• A pedagogia crítica de Paulo Freire, que propõe a educação como um processo

humano, dialógico, que busca a construção do pensamento crítico e da liberdade é essencial

para a EDH.

As diversas visões críticas apresentadas possibilitaram o desvelamento de vários

pontos problemáticos e a ambiguidade dos direitos humanos. Seus primórdios foram

126

marcados pela ideologia iluminista dos direitos naturais de pretensão universal e calcados na

visão de um homem autônomo e autossuficiente, tal como expresso nas declarações dos

direitos personalíssimos, que encontram na Bill of Rights e na Déclaration des Drioits de

l’Homme et du Citoyen suas mais relevantes expressões. Bentham questiona os direitos

naturais como absolutos e universais, bem como denuncia que esses fomentam uma postura

individualista e egoística que é danosa à sociedade. Marx também desvela que os direitos

humanos são voltados para o homem egoístico, isolado, despido do caráter social. Em

seguida, apresentou-se as críticas do período pós-industrial ou neocapitalista dos direitos

humanos, pós queda do muro de Berlin. Santos alerta para direitos humanos marcados pela

falta de participação, que serviram e servem a interesses políticos de potências capitalistas, e

considera que direitos humanos universais operam como uma forma de imposição cultural. O

autor vislumbra a possibilidade dos direitos humanos servirem à emancipação social desde

que sejam participativos, legítimos, de baixo para cima, multiculturais, cosmopolitas, não

excludentes e não discriminatórios. Sarat e Kearns discutem a ambiguidade dos direitos

humanos, que tanto podem empoderar e fomentar a luta e a proteção quanto podem ser

utilizados para a manutenção da opressão e do status quo, além de destacarem que a

universalidade não passa de uma pretensão ante a inexistência de consenso sobre o conteúdo

dos direitos humanos. Acreditam que esses podem ser usados pela sociedade para avançar

suas pautas de proteção, assim como para relacionar as violações ocorridas com

reivindicações transfronteiriças, possibilitando a soma de forças e estratégias. Por fim,

Douzinas também ressalta a dupla face dos direitos humanos e defende que esses só são

legítimos se forem usados para a resistência e em prol da justiça social. Denuncia que o

conceito de humanidade foi, muitas vezes, usado para oprimir, segregar e marginalizar, sendo,

portanto não um dado, mas um construído.

Em suma, as críticas apresentadas possibilitam uma visão holística dos direitos

humanos, para que se reflita sobre os impactos danosos do neoliberalismo; que se considere o

indivíduo enquanto ser que se realiza no seio social e não um ser isolado e egoísta; que se

rechace a imposição cultural e se caminhe rumo a uma visão multicultural; para que a EDH

seja uma escolha ética para fomentar o empoderamento e não a manutenção da opressão e

para a compreensão da importância da participação dos sujeitos nesse processo. Tais pontos

problemáticos refletiram tanto na escolha da escola do protesto; quanto reforçam a adequação

da visão democrática pragmatista; quanto foram o pano de fundo na construção, no bojo do

presente trabalho, dos 11 pilares propostos com base nas obras de Freire.

127

Apresentada a classificação das diferentes escolas de direitos humanos na versão

proposta por Marie-Bénédicte Dembour, foi feita a escolha pela Escola do Protesto, pois

entende-se ser essa aquela que melhor se adéqua à função emancipatória da EDH. Para tal

escola, a preocupação dos direitos humanos é endereçar injustiças, ou seja, os direitos

humanos veiculam demandas em favor dos oprimidos e marginalizados e buscam contestar o

status quo prol dos vulneráveis. A luta pelos direitos humanos é contínua tendo em vista o

combate a injustiças e estando em prol da humanização deve ser constante. A EDH, assim

como a Escola do Protesto, preocupa-se primordialmente com as fontes concretas dos direitos

humanos nas lutas sociais.

Feita a escolha pela perspectiva de direitos humanos proposta pela Escola do Protesto,

endereçou-se a segunda hipótese, a de que a EDH libertadora requer uma ambiência

democrática na visão pragmatista deweyana. Mergulhou-se, para tanto, no pragmatismo de

Dewey, que propõe que a democracia é necessária para todas as formas de associação

humana, e aqui incluímos a EDH. A democracia é o próprio modo de vida em comunidade,

que requer o desenvolvimento de um vínculo de cunho moral em que a realização humana

seja encontrada justamente na participação, nas experiências conjuntas e na busca de vias para

a consecução do bem comum. Para a constituição da comunidade, são essenciais a educação,

a comunicação, o questionamento e a participação. A educação tem a função moral de formar

para a vida em sociedade, é uma prática social evolutiva de constante aprendizado, construção

e reconstrução. Deve ser rechaçada a prática educacional que forma indivíduos para serem

meros especialistas, desprovidos de alteridade e reprodutores de conteúdo. O processo

educacional tem como objetivo justamente a formação do caráter a partir da experiência

social e a libertação para a construção de um futuro, em que o ser humano é autor de sua

própria existência.

O processo dialógico na perspectiva deweyana é essencial para a democracia: quanto

mais comunicação, maior a troca de experiências e compreensão da realidade do outro, o que

possibilita a ruptura com preconceitos de gênero, classe, raça, credo. A realidade atual é de

milhares de meios de comunicação. Paradoxalmente, cada vez menos se comunica no sentido

democrático de participação na vida em comunidade. Indivíduos barrotados de informações

supérfluas e imbecilizantes, cada vez menos se vive com os outros, encontra-se para

comunicar, debater e construir conjuntamente o conhecimento. As escolas são tecnicistas e

não se preocupam em formar para a vida em comunidade. Assim, há um isolamento e

individualismo progressivos. Na busca por se viver democraticamente, a EDH apresenta-se

como forma de resgate de tal função ética, de fomentar comunicação face a face, a troca de

128

experiências e o comprometimento de veicular ética para a vida em comunidade. A EDH ao

tempo em que tem como requisito a democracia, também contribui para a construção de um

ambiente democrático.

Quanto ao o Experimentalismo Democrático, expressão renovada do pragmatismo no

fim do século XX e início do século XI, reflete a importância do clássico deweyano na

atualidade. O ED propõe que todas as práticas produtivas humanas como experimentos

estruturados que, por meio de cautelosa observação e análise de resultado, vão guiar

aprimoramentos nas experiências subsequentes. Nesse sentido, a EDH deve ter como

finalidade não apenas educar em direitos humanos, mas aprender a como tornar a experiência

de educacional cada vez mais eficiente, aprendendo-se tanto com êxitos quanto com

insucessos.

O Experimentalismo Democrático baseia-se na solução participativa de problemas, em

que todas as partes interessadas devem ter voz. Aplicando-se na EDH, todos aqueles

interessados no processo educacional colaborativamente identificam as violações de direitos

humanos, suas causas, desenham soluções, definem parâmetros para mensuração de

resultados, monitoram e revisam as práticas educacionais. Tal processo, paulatinamente,

possibilita o reconhecimento da interdependência entre os diversos participantes que

compartilham a responsabilidade de questionar seus pontos de vista iniciais e criativamente

delinear formas e estratégias de endereçar as ameaças aos direitos humanos. Destaca-se aqui a

importância fundamental de mensurar resultados para melhor delinear estratégias de constante

aprimoramento. Neste ponto, o Brasil é extremamente falho e, em relação à EDH, à exceção

dos relatórios interamericanos de educação de direitos humanos que são desenvolvidos pelo

instituto interamericano, não se encontrou dados que acompanhem o progresso da EDH.

Destacou-se, ainda, a visão de Ansell de responsabilidade pragmática, que é essencial

na criação da ambiência democrática para a EDH. Baseou-se no cultivo do senso de

titularidade compartilhada, em que os próprios atores do processo educacional estabelecem os

padrões que serão aplicados àquele contexto específico. É, portanto, maleável e autônoma.

Por fim, a perspectiva de governança colaborativa proposta por Ansell oferece

importantes possibilidades de colocar-se em prática a visão democrática deweyana na EDH.

Suas 3 dimensões fundantes coadunam com a EDH democrática: 1) Visões divergentes

possibilitam um conflito produtivo, ou seja por meio de um processo dialógico face a face, se

desenvolve a alteridade e se previnem ou dissolvem preconceitos; 2) A EDH democrática é ao

mesmo tempo um processo educacional e um processo de solução de problemas participativo,

e, portanto, dá voz a todos os envolvidos; 3) A EDH encontra no crescimento da

129

interdependência e senso de comunidade dos educandos tanto um pressuposto quanto como

um resultado do processo educacional.

Em suma, a definição conjunta dos problemas a serem endereçados, a definição

participativa de objetivos e como mensurar o sucesso e desenvolver métricas para avaliar o

resultado é essencial para um processo educacional democrático e engajado.

Desenvolver a capacidade de questionar, cooperar transitar por incertezas para construir

soluções é tanto um meio como um objetivo da EDH que busca tanto educar para a vida em

comunidade, quanto contribuir para a construção de uma cultura de direitos humanos que

empodera.

Uma vez caracterizada esta ambiência democrática necessária para a EDH, percorre-se

a pedagogia crítica de Paulo Freire. Confirmou-se, ao longo da dissertação, a terceira

hipótese: a pedagogia crítica, que compreende a educação como um processo humano,

dialógico que busca a construção do pensamento crítico e da liberdade, é essencial para

alicerçar a EDH.

Se o principal escopo dos direitos humanos é endereçar injustiças e a EDH tem como

missão fomentar esse endereçamento, a pedagogia crítica freireana é uma importante

engrenagem desse sistema, tanto para o reconhecimento de situações que violem os direitos

humanos e seu rechaço como para a construção de possibilidades para endereçar tais

violações.

Com base nos ensinamentos de Freire, bem como nas lições de Miracy Gustin e no

arcabouço desenvolvido ao longo dos primeiros capítulos, em que se trabalhou tanto a

perspectiva crítica de Direitos Humanos quanto a democracia pragmática, desevolveu-se 11

pilares que se propõe como essenciais para a EDH libertadora, quais sejam:

1. A Educação requer que se visa à consciência crítica;

2. A Educação requer que o educador seja um facilitador da construção do

conhecimento;

3. A Educação requer respeito e alteridade;

4. A Educação requer rechaço a qualquer forma de discriminação;

5. A Educação requer reflexão sobre o aspecto cultural;

6. A Educação requer comprometimento do educador;

7. A Educação requer reflexão sobre a ideologia;

8. A Educação requer consciência de que a educação não é neutra;

9. A Educação requer consciência de que o conhecimento é continuamente construído;

130

10. A Educação requer consciência de que há um futuro a ser construído;

11. A Educação requer reconhecimento do ser humano enquanto social e da importância

da comunidade.

Deparou-se, ao longo do desenvolvimento do presente trabalho, com vários pontos de

intersecção entre os escritos de John Dewey, Paulo Freire e Miracy Gustin, os quais foram

destacados ao longo da dissertação. Assim, com base na obra destes autores e dos demais que

compuseram a revisão bibliográfica do presente trabalho, ousa-se acreditar que se esboçou um

sistema apto a ser a fundação para qualquer processo de EDH.

O presente trabalho renova a convicção de que a construção de uma sociedade mais

humana perpassa pela EDH. Para cumprir sua missão a EDH deve, em suma, ocorrer em uma

ambiência democrática, entendida como próprio um modo de se viver eticamente

comprometido em comunidade. Mais ainda, deve estar calcada na pedagogia crítica, que

prepara os indivíduos para questionar, se abrir para o diálogo e se assumir enquanto sujeitos

de sua história. A EDH, portanto, empodera para o respeito, promoção e proteção dos direitos

humanos na vida quotidiana. Propicia que se aprenda com as experiências tanto exitosas

quanto falhas e que se caminhe rumo a uma sociedade cada vez mais humana, digna e

democrática.

131

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