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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Rafael da Cruz Gouveia Linardi Ideologia e Poder Judiciário: um processo histórico de construção de valores Mestrado em Direito São Paulo 2017

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Rafael da Cruz Gouveia Linardi

Ideologia e Poder Judiciário:

um processo histórico de construção de valores

Mestrado em Direito

São Paulo

2017

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Rafael da Cruz Gouveia Linardi

Ideologia e Poder Judiciário:

um processo histórico de construção de valores

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para a obtenção do título de

Mestre em Direito, na área de concentração

Filosofia do Direito, sob a orientação do Professor

Doutor Ionas Deda Gonçalves.

São Paulo

2017

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Rafael da Cruz Gouveia Linardi

Ideologia e Poder Judiciário:

um processo histórico de construção de valores

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para a obtenção do título de

Mestre em Direito, na área de concentração

Filosofia do Direito, sob a orientação do Professor

Doutor Ionas Deda Gonçalves.

Aprovado em: ____/____/____.

Banca Examinadora

Professor Doutor Ionas Deda Gonçalves (Orientador).

Instituição: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Julgamento __________________________Assinatura ______________________________

Professor (a) Doutor (a) _______________ Instituição:______________________________

Julgamento _________________________________________________________________

Assinatura __________________________________________________________________

Professor (a) Doutor (a) _______________ Instituição:______________________________

Julgamento _________________________________________________________________

Assinatura __________________________________________________________________

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Dedico este trabalho

À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, instituição por onde

me graduei e pude receber parte considerável de minha formação

humanística. Em período recente, retornei com muito orgulho a esta

casa para aprofundar meus conhecimentos no programa de pós-

graduação.

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AGRADECIMENTOS

Ao professor Ionas Deda Gonçalves, pela orientação, sempre acompanhada de

valiosas lições, devidamente aplicadas neste trabalho.

Aos meus professores do mestrado, Clarice Von Oerstzen de Araújo, Cláudio de

Cicco, Álvaro de Azevedo Gonzaga, Márcio Pugliesi, Willis Santiago Guerra Filho, Maria

Garcia e Miguel Horvath Júnior, pelos preciosos ensinamentos, e por tanto instigarem o

constante questionamento e aprofundamento das investigações científicas.

À minha família, pelo apoio nos momentos mais difíceis.

A Deus, absolutamente por tudo.

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RESUMO

Esta dissertação de mestrado examina o direito sob uma perspectiva essencialmente cultural, o

que significa dizer, como um fenômeno decorrente da construção gradual de valores no curso

da história. Dentre as fontes do direito, o estudo toma por destaque a denominada fonte

judicial, ou seja, o direito que nasce a partir das decisões proferidas por juízes e tribunais.

Busca compreender as ideologias que servem de referência para a tomada de decisões pelos

magistrados no panorama contemporâneo, partindo-se do pressuposto de que a atividade

judicial é preponderantemente interpretativa, a exigir a adoção de posicionamentos, e, por

consequência, a escolha de valores. Como ponto de partida para o estudo, aponta resultados

de pesquisas de opinião onde os próprios juízes foram ouvidos e puderam se manifestar

acerca de assuntos pertinentes. Permite constatar que os juízes levam preponderantemente em

consideração, no momento de decidir, o paradigma da legalidade, mas também, de maneira

concomitante, as consequências sociais que as suas sentenças podem vir a causar.

Considerando-se esta dualidade de paradigmas simultaneamente incorporados, analisa com

maior profundidade os fundamentos de ambas as posturas, de um lado a “legalista”, e de outro

a “social”. Numa abordagem histórica, detecta que o “legalismo” é fruto da constante e

permanente busca do ser humano por segurança e estabilidade. Identifica o legalismo com o

que se pode denominar de “positivismo jurídico ideológico”. De outra sorte, a preocupação

com as “consequências sociais das decisões judiciais” ganha espaço em um momento em que

se busca a reaproximação do direito com a ética, oportunidade em que as posturas judiciais

incrementam elementos da crítica marxista, desencadeando o denominado “ativismo judicial”.

Por fim, aprecia casos jurisprudenciais recentes onde é possível verificar esta dicotomia

ideológica verificada nos meandros do Poder Judiciário.

Palavras-chave: Filosofia do direito. Ideologia. Valores. Positivismo Jurídico. Marxismo.

Ativismo judicial. Poder Judiciário.

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ABSTRACT

This dissertation examines law from an essentially cultural perspective, that is, as a

phenomenon arising from the gradual construction of values in the course of history. Among

the sources of law, the study focuses on the so-called judicial source, that is, the right that

arises from decisions handed down by judges and courts. It seeks to comprehend the

ideologies that serve as a framework for decisions made by judges, within the contemporary

panorama. It is assumed that the judicial activity is predominantly interpretative, requires a

position, and, consequently, a choice of values.

As a starting point, the study shows opinion poll results in which judges were able to voice

their considerations on the most relevant aspects. It also reveals that, in general, judges take

into consideration in their decisions both the paradigm of legality and concomitantly the

social consequences that their sentences may lead to.

Considering those paradigms as simultaneously embedded, the study analyzes in greater

depth, the foundations of both stances: on one hand the "legalist" and on the other the "social"

one. Through a historical approach, it identifies that "legalism" is the result of constant and

permanent search of the human being for security and stability. Moreover, it reveals that

legalism can also relate to an "ideological legal positivism"

Otherwise, the concern with "social consequences of judicial decisions" gains ground, at a

time when the rapprochement of law with ethics is sought. Besides, judicial positions

strengthen elements of the Marxist critique, unleashing the so-called "judicial activism”.

Finally, the study examines recent jurisprudential cases in which it is possible to confirm this

ideological dichotomy that is present in the intricacies of the Judicial Power.

Keywords: Philosophy of Law. Ideology. Values. Legal Positivism. Marxism. Judicial

Activism. Judicial Power.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 09

2 O MUNDO DA CULTURA E O DIREITO 11

2.1 Ideologia, valores e cultura 11

2.2 As fontes do Direito, a visão tridimensional do Direito e o exercício

da atividade jurisdicional 19

3 A POSTURA DO JUIZ E SUAS REFERÊNCIAS 26

3.1 O mito da neutralidade do juiz 26

3.2 Juízes são ouvidos em pesquisa de opinião 30

3.3 Juízes de “direita”, juízes de “esquerda”? 36

4 PREMISSAS IDEOLÓGICAS DO “LEGALISMO”: O POSITIVISMO

JURÍDICO COMO FUNDAMENTO DA SEGURANÇA JURÍDICA 43

4.1 O “valor” da segurança 43

4.2 A segurança em sua concepção absolutista. A visão de Hobbes 43

4.3 A segurança em sua concepção liberal. A visão de Locke 50

4.4 O “legalismo” como reflexo de um positivismo jurídico ideológico 56

4.5 Considerações finais deste capítulo 63

5 PREMISSAS IDEOLÓGICAS DO “ATIVISMO JUDICIAL” BRASILEIRO:

AS CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS DAS DECISÕES JUDICIAIS 66

5.1 A crise do positivismo jurídico 66

5.2 Características do “ativismo judicial” brasileiro: o elemento marxista 77

5.3 A contribuição marxista instituída por intermédio das ideias de

Antonio Gramsci 84

5.4 Considerações finais deste capítulo 96

6 REFLEXOS JURISPRUDENCIAIS DA DUALIDADE ENTRE

“LEGALISMO” E “ATIVISMO JUDICIAL” 99

6.1 Observações preliminares 99

6.2 Contratos, garantias, circulação de riquezas e segurança jurídica 102

6.3 As prestações sociais pleiteadas em ações ajuizadas em face do Estado 109

6.4 Casamento, união estável e união homoafetiva 112

6.5 A justiça criminal e os reflexos da ideologia 122

7 CONCLUSÃO 134

REFERÊNCIAS 137

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1 INTRODUÇÃO

A jurisdição constitui uma das três funções do Estado, dentro do consagrado

modelo de separação de poderes definido por Montesquieu. Diante de suas características

peculiares, o Judiciário é considerado um poder de feição nitidamente técnica, ao contrário

dos outros dois poderes, Legislativo e Executivo, que inquestionavelmente são políticos.

Os quadros de juízes são providos, em regra, por concurso público, enquanto os

integrantes dos outros poderes são eleitos democraticamente. Se, de um lado, juízes não

podem desenvolver atividade político-partidária, em contrapartida, os membros dos poderes

Legislativo e Executivo integram partidos e participam de determinado programa político e

projeto de poder.

Diante destas premissas, conclui-se que a função dos juízes consiste em

solucionar conflitos de interesse com base na Constituição e nas leis, afastando-se de

subjetivismos que interfeririam no seu dever de imparcialidade e isenção.

Não obstante este conjunto de características, que de maneira contumaz é

divulgada, inegável que esta visão tradicional da magistratura, como poder técnico e neutro,

vem sendo gradativamente desmistificada.

A ideologia adere e se impregna a qualquer decisão que o ser humano venha a

tomar. O “valor” é o guia condutor das decisões humanas, e o direito, produto que é da cultura

humana, ostenta um conteúdo recheado de valores que, por certo, influenciam os órgãos

responsáveis pela sua interpretação e aplicação – juízes e tribunais.

A visão culturalista proposta por Miguel Reale permite a clara compreensão de

como as ideologias e os valores são construídos gradativamente nos grupos sociais, e acabam

por influenciar todas as decisões relevantes tomadas nestes mesmos grupos, inclusive as

decisões proferidas pelos magistrados em suas sentenças e acórdãos. Por isso, a Teoria

Tridimensional do Direito, de Miguel Reale é o fio condutor desta pesquisa.

As ideologias estabelecidas no Judiciário decorrem de incontáveis fatores como

formação familiar, pedagógica e acadêmica, classe social, religião, sexo, experiências vividas

pelos juízes, dentre vários outros. Por isso, necessário compreender as características

sociológicas da magistratura, tornando-se relevante a extração de dados obtidos em pesquisa

realizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros e o censo judiciário realizado no ano

de 2013 pelo Conselho Nacional de Justiça.

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Mas, além dos dados estatísticos, inquestionavelmente importantes, na pesquisa

da AMB, foi possível também ouvir os magistrados acerca dos fatores que os influenciam no

momento de proferirem suas decisões, o que veio a enriquecer ainda mais a pesquisa.

Com este mapeamento prévio traçado, é possível enfatizar a análise propriamente

dita das ideologias de maior representatividade e influência sobre as decisões judiciais. A

perspectiva adotada é histórica, pois o homem de hoje é fruto do acúmulo de experiências

passadas e dos valores construídos no decorrer dos anos. Portanto, para compreensão das

ideologias que permeiam o Judiciário, imprescindível ter esta visão ampla que somente a

história permite obter.

Por derradeiro, para que as conclusões do trabalho apresentem maior

verossimilhança e precisão, nada mais útil que apresentar dados empíricos. Em se tratando de

pesquisa que envolve apreciação do perfil do Poder Judiciário, consistem na análise de

julgados recentes proferidos por tribunais locais e superiores que permitem corroborar as

conclusões da pesquisa.

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2 O MUNDO DA CULTURA E O DIREITO

2.1 Ideologia, valores e cultura

Difícil a tarefa de conceituar o vocábulo “ideologia”. De fato, ele é empregado em

múltiplos sentidos.

Uma das suas concepções é formulada por Karl Marx e Friedrich Engels1 que,

diante de um ponto de vista explicitamente materialista, ponderam que os valores

predominantes em determinado período histórico de dada sociedade constituem meros

instrumentos de dominação da classe detentora dos meios de produção, consistindo, portanto,

no “poder social invisível que nos força a pensar como pensamos e agir como agimos”2.

Os pressupostos da concepção marxista de ideologia baseiam-se na luta de

classes, ou seja, na ideia de que a história é movida pela permanente conflituosidade entre

classe dominante e classe subalterna.

A classe dominante, para perpetuar a supremacia, vale-se de crenças falsas, cujo

propósito primordial é “dissimular, a fim de perpetuar a exploração e o domínio”3. Nisso

consubstancia-se a ideologia: num instrumento apto a impedir que a classe dominada tome

consciência da subjugação suportada, aceitando a situação vigente como se fosse a

decorrência natural dos fatos.

Fábio Konder Comparato analisou de maneira elucidativa a doutrina marxista, e

ao abordar a questão da ideologia, concluiu:

o método de pensamento adotado por Marx é fundamentalmente reducionista: o

sistema religioso e o padrão de moralidade, vigentes em determinada sociedade,

1 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Domínio público. Versão Kindle. Prefácio: “Até agora os homens

formaram ideias falsas sobre si mesmos, sobre aquilo que são ou deveriam ser. Organizaram as suas relações mútuas em

função das representações de Deus, do homem normal, etc., que aceitavam. Estes produtos do seu cérebro acabaram por os

dominar: apesar de criadores, inclinaram-se perante as suas próprias criações. Libertemo-nos portanto das quimeras das

ideias, dos dogmas, dos seres imaginários cujo jugo os faz degenerar. Revoltemo-nos contra o império dessas ideias.

Ensinamos os homens a substituir essas ilusões por pensamentos que correspondam à essência do homem, afirma um; a ter

perante elas uma atitude crítica, afirma outro; a tirá-las da cabeça, diz um terceiro e a realidade existente desaparecerá. Estes

sonhos inocentes e pueris formam o núcleo da filosofia atual dos Jovens Hegelianos; e, na Alemanha, são não só acolhidos

pelo público com um misto de respeito e pavor como ainda apresentadas pelos próprios heróis filosóficos com a solene

convicção de que tais ideias, de uma virulência criminosa, constituem para o mundo um perigo revolucionário. O primeiro

volume desta obra propõe-se a desmascarar estas ovelhas que se julgam lobos e que são tomadas como lobas mostrando que

os seus balidos apenas repetem numa linguagem filosófica as representações dos burgueses alemães e que as suas

fanfarronadas se limitam a refletir a pobreza lastimosa da realidade alemã; propõe-se a ridicularizar e desacreditar esse

combate filosófico contra assombras da realidade que tanto agrada à sonolência sonhadora do povo alemão. Em tempos,

houve quem pensasse que os homens afogavam apenas por acreditarem na ideia da gravidade. Se tirassem esta ideia da

cabeça, declarando por exemplo que não era mais do que uma representação religiosa, supersticiosa, ficariam imediatamente

livres de qualquer perigo de afogamento. Durante toda a sua vida, o homem que assim pensou viu-se obrigado a lutar contra

todas as estatísticas que demonstram repetidamente as consequências perniciosas de uma tal ilusão. Este homem constituía

um exemplo vivo dos atuais filósofos revolucionários alemães.” 2 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13.ed. São Paulo: Ática, 2003, p.53. 3 ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan, Marx e Freud. 4.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000, p.79.

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nada mais são do que o reflexo da sua organização jurídico-política; e esta última

simplesmente expressa a realidade da estrutura econômico-social.4

A concepção marxista denota um sentido evidentemente pejorativo de ideologia,

pois traduz o objetivo de ludibriar, enganar, mascarar propósitos sub-reptícios.

Tal conceito, no entanto, ostenta um sentido excessivamente restrito, com âmbito

de incidência e aplicabilidade demasiadamente limitado.

Numa concepção mais ampla, que permite aplicação de modo genérico, é possível

compreender a “ideologia” como uma corrente de pensamento que agrega determinado

conjunto de valores ou, como afirma Norberto Bobbio,

a expressão do comportamento avaliativo que o homem assume face a uma

realidade, consistindo num conjunto de juízos de valores relativos a tal realidade,

juízos estes fundamentados no sistema de valores acolhido por aquele que o formula,

e que têm por escopo influírem sobre tal realidade.5

Ideologia, portanto, nessa concepção mais abrangente, vincula-se à emissão de

juízos de valor acerca de determinada situação, juízos estes que, por sua vez, vinculam-se ao

que se pode compreender por “cultura”.

“Cultura” e “valor” são elementos teóricos umbilicalmente ligados, razão pela

qual é necessário um esclarecimento prévio que permita a compreensão de ambos os

conceitos6.

Pois bem, o “mundo da natureza”, que se opõe ao “mundo da cultura”, é o mundo

da existência física, onde as coisas existem independentemente da intervenção do homem. É

reflexo puro do “ser”7.

A ação transformadora do homem, que busca lapidar e aprimorar a natureza,

adequando-a às suas comodidades, é um elemento de cultura. Portanto, o “mundo da cultura”

caracteriza-se pelo “ser” transformado pelo homem8.

O ser humano, em sua fase mais primitiva, era incapaz de impor à natureza seu

domínio, razão pela qual sobrevivia de maneira precária e selvagem, à base da coleta de frutos

4 COMPARATO, Fábio Konder. Ética – direito, moral e religião no mundo moderno. 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia

das Letras, 2006, p.332. 5 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p.223. 6 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 24.ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.24. 7 LINARDI, Rafael da Cruz Gouveia. A interpretação constitucional sob uma perspectiva axiológica e cultural – uma

possível visão de Miguel Reale. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional, v.100, mar.-abr., São Paulo: RT,

2017, p.118. 8 LINARDI, Rafael da Cruz Gouveia. A interpretação constitucional sob uma perspectiva axiológica e cultural – uma

possível visão de Miguel Reale. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional, v.100, mar.-abr., São Paulo: RT,

2017, p.118.

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e raízes, da caça esporádica, em grupos nômades compelidos a se mudarem constantemente

de área, à medida que os recursos se tornavam escassos9.

A evolução ocorreu de maneira lenta, e deu um grande salto a partir do manejo do

fogo, primeiro captado das chamas dos vulcões e dos incêndios, depois, produzido mediante

atrito entre galhos de madeira10.

Os instrumentos de caça foram se aprimorando e desenvolveu-se a técnica de

polimento das pedras. Foram criados o arco e flecha, os moldes de argila, as estratégias de

pesca e surgiu a domesticação de animais11.

A agricultura, ou em outras palavras, a “cultura da terra”, representou uma

verdadeira revolução no modo de vida humano. Nos primórdios era realizada de forma

extremamente precária, mediante a disseminação de sementes de cereais no solo, com o uso

dos apetrechos que estivessem à disposição para perfurar a terra12. Depois, passou-se a utilizar

a enxada. Posteriormente, o arado. Os sistemas de irrigação foram gradualmente

aperfeiçoados13. O desenvolvimento das técnicas de agricultura exigiu inúmeras

experimentações, numa sucessiva trajetória de erros e acertos.

Todo esse aprimoramento técnico contribuiu para oferecer maior comodidade aos

grupos humanos, que diante de tal estabilidade, passaram a fixar-se em determinados

territórios, dando ensejo ao nascimento das tribos14. Das tribos surgiram as cidades; em

seguida, a propriedade privada, o Estado, o comércio, a indústria, as artes e as escolas. O

homem, acumulando experiências, com êxitos e fracassos, pôde gradativamente exercer maior

controle sobre a natureza, manipulando-a para aprimorar o mundo em que vive15.

Essa breve digressão não tem como finalidade apresentar um relato enciclopédico

acerca da história do ser humano, mas demonstrar o potencial da ação criativa do homem, que 9 MICHULIN, A. V. História da Antiguidade. 3.ed. Rio de Janeiro: Vitória, 1963, p.11: “A vida humana apareceu na terra

há muitas centenas de milênios. Os homens primitivos eram selvagens e viviam em rebanhos como os animais. Erravam em

grandes grupos, em busca do escasso alimento. Fabricavam e usavam seus primitivos utensílios, em comunidade. Os homens

primitivos conseguiam os alimentos à custa de grandes esforços. Não conheciam nem a agricultura, nem a criação de gado e

nem a arte de transformar os produtos obtidos. Eram obrigados a procurar e recolher, simplesmente, tudo o que fosse

comestível. Nesse primeiro período de existência, o homem não dispunha de habitações, pois ainda não havia aprendido a

construir. Vivia nos bosques, escondia-se nas florestas ou se abrigava em covas ou cavernas profundas.” 10 MICHULIN, A. V. História da Antiguidade. 3.ed. Rio de Janeiro: Vitória, 1963, p.12. 11 MICHULIN, A. V. História da Antiguidade. 3.ed. Rio de Janeiro: Vitória, 1963, p.12. 12 BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. 2.ed. São Paulo: Fundamento, 2012, p.32-33. 13 MICHULIN, A. V. História da Antiguidade. 3.ed. Rio de Janeiro: Vitória, 1963, p.13. 14 MICHULIN, A. V. História da Antiguidade. 3.ed. Rio de Janeiro: Vitória, 1963, p.12. 15 Miguel Reale alude: “já foi dito muito bem que a natureza se repete e que só o homem inova e se transcende. É a essa

atividade inovadora, capaz de instaurar formas novas de ser e de viver, que chamamos de espírito. O ponto de partida não é,

como se vê, uma hipótese artificial, mas a verificação irrecusável de que o homem adicionou e continua adicionando algo ao

meramente dado. A natureza de hoje não é a mesma de um, dois, ou três mil anos atrás, porque o mundo circundante foi

adaptado à feição do homem. O homem, servindo-se das leis naturais, que são instrumentos ideais, erigiu um segundo mundo

sobre o mundo dado: é o mundo histórico, o mundo cultural, só possível por ser o homem um ser espiritual, isto é, um ente

livre dotado de poder de síntese, que lhe permite compor formas novas e estruturas inéditas, reunindo em unidades de

sentido, sempre renovadas e nunca exauríveis, os elementos particulares e dispersos da experiência.” (REALE, Miguel.

Filosofia do direito. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.201).

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a partir da matéria-prima obtida da natureza, é capaz de produzir incontáveis mudanças nesse

“mundo natural”, cujo produto resumidamente pode ser conceituado como “cultura”.

Nesse sentido, Miguel Reale apresenta o seguinte conceito, sintético e elucidativo,

a respeito da cultura:

(cultura) é o conjunto de tudo aquilo que, nos planos material e espiritual, o homem

constrói sobre a base da natureza, quer para modificá-la, quer para modificar-se a si

mesmo. É, desse modo, o conjunto de utensílios e instrumentos, das obras e

serviços, assim como das atitudes espirituais e formas de comportamento que o

homem veio formando e aperfeiçoando, através da história, como cabedal ou

patrimônio da espécie humana16.

A cultura, portanto, consiste no conglomerado de resultados decorrentes da ação

humana, incidentes sobre a natureza, cujo desenrolar ocorre no palco da história17.

E tudo o que o homem faz conscientemente ostenta determinado objetivo, busca

atingir alguma finalidade, portanto, não é aleatório18.

Disso deflui que o arcabouço cultural construído é consequência de inúmeras

decisões tomadas no decorrer dos anos pelo homem, decisões que implicam necessariamente

na seleção de opções e enfrentamento de dilemas. Cada escolha resulta no implícito descarte

de outras alternativas disponíveis.

Esta finalidade buscada pela ação constitui tradução da liberdade que caracteriza a

consciência humana e reflete a construção do conceito de “valor”, já que o homem almeja

conquistar o que lhe é valioso, e afastar de si o “desvalor”, tendo em vista que, na precisa

observação de Miguel Reale, “viver é indiscutivelmente optar diariamente, permanentemente,

entre dois ou mais valores”19.

Evidentemente as decisões tomadas pelo ser humano não ocorrem de maneira

simplificada. O processo de construção dos valores é deveras complexo e marcado pela

dialeticidade, já que, num determinado grupo social, certas escolhas são objeto de oposição e

de conflitos.

16 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 24.ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.25-26. 17 CHILDE, V. Gordon. Evolução social. Rio de Janeiro: Zahar, 1961, p.37: “A concepção de cultura do antropólogo não

difere, em gênero, da concepção do arqueólogo, embora seja muito mais ampla. Compreende todos os aspectos do

comportamento humano que não constituem reflexos ou instintos inatos. É tudo que o homem obtém com a educação, com a

sociedade de seus semelhantes, e não aquilo que lhe vem da natureza ou do meio sub-humano. Inclui a língua e a lógica, a

religião e a Filosofia, a Moral e as leis, bem como a manufatura e o uso dos instrumentos, roupas, casas e até a escolha da

comida. Tudo isso o homem aprende de seus companheiros de sociedade.” 18 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.186. “Costumamos dizer – e encontramos essa

expressão também empregada por Wolfgang Köhler embora em acepção um pouco diversa – que os valores são entidades

vetoriais, porque apontam sempre para um sentido, possuem direção para um determinado ponto reconhecível como fim.

Exatamente porque os valores possuem um sentido é que são determinantes da conduta. A nossa vida não é espiritualmente

senão uma vivência perene de valores. Viver é tomar posição perante valores, e integrá-los em nosso “mundo”, aperfeiçoando

nossa personalidade na medida em que damos valor às coisas, aos outros homens e a nós mesmos. Só o homem é capaz de

valores, e somente em razão do homem a realidade axiológica é possível”. 19 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.26.

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Tal conflituosidade é decorrência do que Miguel Reale denomina “bipolaridade”,

uma das características que marcam o conceito de valor, já que, na visão do jusfilósofo: “a um

valor se contrapõe um desvalor; ao bom se contrapõe o mau; ao belo, o feio; ao nobre, o vil; e

o sentido de um exige o outro. Valores positivos e negativos se conflitam e se implicam em

processo dialético”.20

Essa bipolaridade que caracteriza os valores acaba por ser o elemento apto a

tornar clara a diferenciação entre o “mundo da cultura” e o “mundo da natureza”, pois este

último, em razão da objetividade que lhe é peculiar, não confere margem para dualismos e

divergências.

O “mundo da natureza” constitui, conforme já consignado, o ambiente do “ser”,

onde os acontecimentos são regidos pelas chamadas leis físicas, que se explicam por relações

de causa e efeito21.

As leis físicas, como afirma Miguel Reale, são “súmulas estatísticas de fato”22,

pois se prestam exclusivamente a esclarecer aspectos do mundo da natureza, e compõem as

ciências naturais, também conhecidas como ciências exatas, que pelo menos em tese podem

ser caracterizadas como neutras23, ou seja, destituídas de ideologia em seus enunciados.

Note-se que as ciências da natureza sustentam-se em juízos de fato, “explicativos

do ser tal como este se mostra fenomenicamente”24. Bobbio, ao tratar do tema, explica que o

juízo de fato “representa uma tomada de conhecimento da realidade, visto que a formulação

de tal juízo tem apenas a finalidade de informar, de comunicar a um outro a minha

constatação”25.

20 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.185. 21 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13.ed. São Paulo: Ática, 2003, p.246: “A partir do século XVIII, cultura passa a

significar os resultados e as consequências daquela formação ou educação dos seres humanos, resultados expressos em obras,

feitos, ações e instituições: as técnicas e os ofícios, as artes, a religião, as ciências, a filosofia, a vida moral e a vida política

ou o Estado. Torna-se sinônimo de civilização porque os pensadores julgavam que os resultados da formação-educação se

manifestam com maior clareza e nitidez nas formas de organização da vida social e política ou na vida civil, pois a palavra

civil vem do latim cives, que quer dizer “cidadão”, de onde vem civitas, a cidade-Estado, donde civilização. Nessa segunda

acepção tem início a separação e posteriormente, a oposição entre natureza e cultura. Os pensadores consideram que há entre

o homem e a natureza uma diferença essencial: esta opera por causalidade necessária ou de acordo com leis necessárias de

causa e efeito, mas o homem é dotado de liberdade e razão, agindo por escolha de acordo com valores e fins estabelecidos

por ele próprio. Por conseguinte, a natureza é o campo da necessidade causal ou de séries ordenadas de causas e efeitos que

operam por si mesmos, sem depender da vontade de algum agente; em contrapartida, a cultura é o campo instituído pela ação

dos homens, que agem escolhendo livremente seus atos, dando a eles sentido, finalidade e valor porque instituem as

distinções (inexistentes na natureza) entre bom e mau, verdadeiro e falso, útil e nocivo, justo e injusto, belo e feio, legítimo e

ilegítimo, possível e impossível, sagrado e profano.” 22 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 24.ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.28. 23 LINARDI, Rafael da Cruz Gouveia. A interpretação constitucional sob uma perspectiva axiológica e cultural – uma

possível visão de Miguel Reale. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional, v.100, mar.-abr., São Paulo: RT,

2017, p.123. 24 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.243. 25 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p.135.

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O “mundo da cultura”, por outro lado, é estudado pelas chamadas ciências

culturais, cujas premissas são baseadas em juízos de valor, que se contrapõem completamente

aos juízos de fato26. Ao tratar do juízo de valor, Bobbio pontua:

representa, ao contrário, uma tomada de posição frente à realidade, visto que sua

formulação possui a finalidade não de informar, mas de influir sobre o outro, isto é,

de fazer com que o outro realize uma escolha igual à minha e, eventualmente, siga

certas prescrições minhas27.

Conclui-se, a partir disto, que, se os juízos de fato buscam a mera descrição do

“ser”, os juízos de valor, por sua vez, objetivam prescrever um “dever ser”28. Isso quer dizer,

se de um lado as ciências naturais são consideradas descritivas, de outro, as ciências culturais

ostentam um caráter prescritivo.

Esse caráter prescritivo apresenta maior nitidez nas ciências culturais de caráter

normativo, ou seja, nas denominadas ciências éticas, que buscam definir códigos de

comportamento ao ser humano, tal como é o direito29.

O direito visa estimular determinados padrões de comportamento e coibir tantos

outros, com o escopo de proteger os valores considerados mais caros à vida social30.

Logo, o direito é um bem produzido pela cultura, que almeja proteger essa própria

cultura, garantir sua perpetuação ou, ao menos, sua maior longevidade possível, adotando

preceitos prescritivos que orientam o comportamento no sentido de se realizar determinado

conjunto de valores e reprimir os comportamentos dissonantes a esta orientação31.

Conforme pondera Miguel Reale,

O direito tutela determinados valores, que reputa positivos, e impede determinados

atos, considerados negativos de valores: até certo ponto, poder-se-ia dizer que o

direito existe porque há possibilidade de serem violados os valores que a sociedade

reconhece como essenciais à convivência.32

26 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.243. 27 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p.135. 28 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.244. 29 Aqui é importante consignar que Miguel Reale não distingue entre “Direito” e “Ciência do Direito”, caracterizando o

Direito de uma maneira geral como ciência cultural. Nesse sentido: “Esclarecendo, assim, que as ciências culturais elaboram

juízos de valor, após terem tomado contacto com a realidade, verificamos que determinadas ciências culturais, como a Moral

e o Direito, ao elaborarem tais juízos de valor, atingem uma posição ou momento de normatividade, que não é necessária para

todas as ciências culturais, como é o caso, por exemplo, da Sociologia ou da História: estas são ciências puramente

compreensivas ou explicativo-compreensivas; aquelas ao contrário são compreensivo-normativas”. (REALE, Miguel.

Filosofia do direito. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.248). 30 LINARDI, Rafael da Cruz Gouveia. A interpretação constitucional sob uma perspectiva axiológica e cultural – uma

possível visão de Miguel Reale. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional, v.100, mar.-abr., São Paulo: RT,

2017, p.123. 31 LINARDI, Rafael da Cruz Gouveia. A interpretação constitucional sob uma perspectiva axiológica e cultural – uma

possível visão de Miguel Reale. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional, v.100, mar.-abr., São Paulo: RT,

2017, p.124. 32 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.185.

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Retomando o conceito de ideologia trazido por Bobbio, no sentido de uma

“expressão do comportamento avaliativo”, não se pode negar que o direito, em razão de

constituir um bem cultural, integrante do “mundo da cultura”, consubstancia-se em instituto

nitidamente ideológico, fundamentado em juízos de valor.

Sendo o direito preponderantemente ideológico, por consequência, seu conteúdo

em nada se coaduna com a ideia de neutralidade, pois a emissão de juízos de valor implica,

necessariamente, numa tomada de posição33. A construção dos valores tem como pressuposto

a liberdade, ou seja, o exercício do livre arbítrio pelo homem, que assim compõe o arcabouço

de valores que fundamentam suas ações.

Por tudo o que foi exposto até este momento, deduz-se que esta concepção

valorativa, e, portanto, ideológica do direito, afina-se à visão tridimensional, tão bem

elaborada por Miguel Reale, que agrega os elementos fato, valor e norma numa conjugação de

caráter dialético.

Para a Teoria Tridimensional do Direito, de Miguel Reale, a norma jurídica surge

da composição entre fato e valor. Em síntese, a realidade fática é o palco para ação do

homem, que, então, constrói seu arcabouço de valores, de acordo com a experiência e as

decisões que venha a tomar. E desta tensão envolvendo fato e valor, surge a inspiração para o

nascimento da norma.

Em outras palavras, para cada fato que traga reflexos na vida do homem, ou seja,

que apresente implicações relevantes para seu viver, é necessário encontrar melhores

soluções, alcançar resultados que provoquem benefícios, e, em se tratando de convivência

num grupo ou coletividade, que permita acomodar divergências.

Essas soluções buscadas constituem objetivos, fins ou valores. Esses valores,

quando se consolidam em determinado grupo ou coletividade, atingem maturidade suficiente

para alcançarem o patamar de norma jurídica, quando então ostentarão o caráter obrigatório,

sob pena de sofrer sanção quem ousar descumprir suas imposições (coercitibilidade).

Tome-se como exemplo a situação tratada no início desse capítulo, quando se

abordou a evolução da cultura numa fase mais primitiva da humanidade. Foi consignado que a

agricultura, em sua fase primária, era desenvolvida de maneira extremamente rudimentar,

cavando-se buracos no solo por intermédio de pedaços de madeira.

Imagine-se que, nesta fase primitiva da humanidade, no interior de determinada

tribo, houvesse uma família que iniciara há pouco tempo a plantação de grãos em determinado

terreno, com o objetivo de obter uma fonte adicional de alimentos para a subsistência de seus 33 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.245.

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integrantes. Suponha-se que após muito esforço dos membros da família, valendo-se dos

parcos conhecimentos sobre cultivo existente, essa plantação tenha rendido frutos, de maneira

a permitir a colheita dos grãos.

Não obstante, considere-se que outro integrante da tribo, que não havia

contribuído para o cultivo nem tampouco desempenhado qualquer esforço pessoal para o

sucesso da plantação, de modo sub-reptício tenha se apropriado de parte da colheita para se

alimentar.

Dentro deste contexto, mesmo que nesse suposto grupo tribal ainda não estivesse

consolidado o conceito de propriedade privada, a situação ensejaria o descontentamento dos

membros da família, por violar um valor de fácil percepção intuitiva: o trabalho.

Evidente que os frutos do trabalho decorrem de muito esforço, dispêndio de tempo

e energia, e a apropriação destes frutos por terceiro que em nada contribuiu para a produção é

circunstância hábil a causar perplexidade. Esse sentimento decorre da violação a um valor

caro ao grupo social, o “trabalho”, e em contrapartida é a realização de um desvalor, que pode

ser denominado nesta hipótese como “preguiça”.

Enfim, neste exemplo, supondo-se que a família vítima desta frustração tenha

comunicado ao líder da tribo, com legitimidade aceita e reconhecida por todos, e este líder,

após tomar conhecimento do fato, estabeleça uma regra proibitiva para situações similares,

sob pena de degredo ou imposição de um castigo físico, conclui-se que o valor “trabalho” foi

reconhecido como relevante socialmente nesta tribo, alcançando o patamar de norma jurídica.

Esta situação hipotética, que faz referência a uma sociedade primitiva, tem por

vantagem tornar mais clara a compreensão do problema, pois quanto mais simples a

composição social, mais fácil entender os meandros da organização jurídica interna, conforme

salienta Robert Weaver Shirley, que em sua obra sobre antropologia jurídica, assim se

posiciona:

A vantagem do estudo do direito nas sociedades simples é reduzir os seus elementos:

a formação, a adjudicação, a aplicação e a execução da lei, como a reabilitação a

seus elementos mais básicos, livres de burocracias complexas, ou mesmo de

confusões deliberadas. O direito é fundamentalmente uma série de regras primárias,

desenvolvidas para permitir que uma sociedade funcione, para solucionar disputas

entre grupos e indivíduos, e também uma série de normas secundárias, estabelecidas

para cercear aqueles que ameaçam a ordem social sob controle.34

Pois bem, no exemplo, considerando a visão tridimensional do direito, os fatos

são: a plantação e a apropriação de parte da colheita por pessoa que não havia participado do

cultivo; o valor consagrado, por sua vez, é o trabalho; a norma jurídica, decorrente desta

34 SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987, p.38.

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conexão entre fato e valor, é a proibição de fruir da colheita quem não contribuiu para o

cultivo, sob pena de degredo ou imposição de castigo físico.

Estes elementos, fato, valor e norma, são indissociáveis e se implicam

reciprocamente. A relação entre eles é dinâmica, e a alteração de um reflete nos demais, razão

pela qual Miguel Reale denomina tal inter-relação de “dialética da complementaridade”35.

Conforme pontua o jusfilósofo acerca da tríade fato, valor e norma:

A correlação entre aqueles três elementos é de natureza funcional e dialética, dada a

“implicação-polaridade” existente entre fato e valor, de cuja tensão resulta o

momento normativo, como solução superadora e integrante nos limites

circunstanciais de lugar e de tempo (concreção histórica do processo jurídico, numa

dialética de complementaridade).36

2.2 As fontes do direito, a visão tridimensional do direito e o exercício da atividade

jurisdicional

A origem embrionária de uma norma jurídica foi apresentada de maneira

simplória no exemplo anterior com o objetivo exclusivo de esclarecer a relação tridimensional

envolvendo os elementos fato, valor e norma, conforme a concepção de Miguel Reale.

Nas sociedades contemporâneas, evidentemente os instrumentos de produção

normativa são consideravelmente mais complexos. Não é possível comparar o procedimento

de criação de uma norma jurídica no âmbito de uma pequena tribo selvagem de período

remoto da humanidade, como o exemplo oferecido, com a produção jurídica de um Estado

constitucional do século XXI.

Para compreender os processos de criação jurídica, é pertinente abordar as

denominadas “fontes do direito”, cujos propósitos consistem em “descrever, analisar,

classificar os diversos procedimentos por meio dos quais ocorre a produção do direito”37.

Dando ênfase à classificação tradicional, que ora é acolhida neste trabalho, é

possível relacionar quatro fontes do direito: 1) as leis; 2) os costumes 3) os contratos; e 4) as

sentenças.

A fonte legal (1) decorre da atuação do Poder Legislativo na elaboração de leis. É

considerada a fonte primária do direito, porque as demais lhes são complementares ou

35 REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito – para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 2010, p.80:

“Não vou, aqui, repetir a crítica que faço à teoria hegeliano-marxista da dialética dos opostos que sucessivamente se superam

mediante soluções unitárias e idênticas, pedindo atenção do leitor ao que escrevo em Experiência e Cultura, onde penso ter

demonstrado que somente a dialética da complementaridade, com vigência crescente no pensamento contemporâneo, logra

explicar a correlação existente entre fenômenos que se sucedem no tempo, em função de elementos e valores que ora

contrapostamente se polarizam, ora mutuamente se implicam, ora se ligam segundo certos esquemas ou perspectivas

conjunturais, em função de variáveis circunstâncias de lugar e tempo”. 36 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.57. 37 BOBBIO, Norberto. Direito e poder. São Paulo: Unesp, 2008, p.126.

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subsidiárias. Nos Estados democráticos modernos, como o Brasil, a produção das leis

pressupõe o respeito a um rigoroso e complexo procedimento, a ser debatido no âmbito de

casas legislativas, por intermédio de parlamentares eleitos, salvo em hipóteses excepcionais

de participação popular direta, como o plebiscito, por exemplo.

Na Constituição Federal de 1988, o artigo 59 estabelece uma série de espécies

normativas, cada qual com âmbito de incidência específico, requisitos e etapas diversas para

promulgação. São elas: emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis

delegadas e medidas provisórias.

Cada uma destas espécies submete-se a um rito diferente para que as normas

jurídicas em seu bojo veiculadas possam ser acolhidas e, assim, ingressem no ordenamento

jurídico. As diferenças procedimentais de cada espécie normativa podem decorrer de diversos

fatores, como regras exclusivas de iniciativa, quórum simples ou qualificado e quantidade de

turnos de votação em cada uma das casas legislativas (estrutura bicameral no plano federal),

dentre outros.

A sociedade democrática contemporânea exige, de um lado, processos e

instrumentos de produção jurídica cada vez mais complexos – como, por exemplo, discutir os

temas em inúmeras comissões, realizar audiências públicas, emitir pareceres – e toda uma

gama de incrementos que reduzem a velocidade de tramitação e culminam na lentidão da ação

legislativa; de outro lado, essa mesma sociedade considera imprescindível a celeridade na

atualização de códigos e leis para acompanhar em tempo hábil as transformações

tecnológicas.

Trata-se de um dilema de difícil solução.

Realçadas tais questões relevantes, importa destacar que, seja qual for o rito

legislativo a ser cumprido, independentemente da complexidade existente no processo, cada

uma das ações que visam impulsionar um determinado projeto de lei em trâmite

consubstancia-se na emissão de juízos de valor, conforme as premissas da Teoria

Tridimensional do Direito38.

Com efeito, a partir de determinada conjuntura fática, é formulado um projeto de

lei por determinado parlamentar ou por outro sujeito legitimado para tanto. Neste projeto

estão consagrados um ou mais valores supostamente acolhidos pela sociedade.

38 Conforme Miguel Reale: “A meu ver, pois, não surge a norma jurídica espontaneamente dos fatos e dos valores, como

pretendem alguns sociólogos, porque ela não pode prescindir da apreciação da autoridade (lato sensu) que decide de sua

conveniência e oportunidade, elegendo e consagrando (através da sanção) uma das vias normativas possíveis. Todos os

projetos de lei, em suma, em debate no Congresso, para dar um exemplo – perdem sua razão de ser quando um deles se

converte em norma legal”. (REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.124).

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Ainda que se suspeite das motivações do titular da iniciativa – por supostas razões

corporativistas ou para consagrar interesses econômicos de determinado grupo social –

inegável que a remessa de determinado projeto de lei é uma medida decorrente da influência

por valores. Sua elaboração e encaminhamento ao parlamento ostenta esta marca.

Cada projeto é levado à discussão no âmbito de uma das casas legislativas (senado

ou câmara dos deputados, no plano federal), passando por comissões internas que apreciarão

sua pertinência. O debate nestas casas permitirá mudar o teor do projeto, o que pode implicar

na alteração ou substituição do seu substrato axiológico original.

Mesmo aprovado em uma delas, o projeto será remetido à outra, onde passará por

nova votação. Por derradeiro, a versão final, a depender da espécie legislativa, será submetida

à sanção presidencial, ocasião em que o Presidente da República poderá vetar o projeto.

Observa-se que, desde o embrionário envio do projeto de lei, até sua sanção

presidencial, ocorrem inúmeras valorações, que são produzidas pelo que se pode chamar,

grosso modo, de Poder Legislativo. Esse Poder, portanto, tomará a decisão final que

consagrará um conjunto de valores, em decorrência de determinada conjuntura fática, criando

assim a norma jurídica positivada, veiculada através de uma das espécies normativas

constitucionalmente estabelecidas.

Conforme observado, a legislação é a principal fonte do direito, mas não a única.

Outra fonte do direito é a consuetudinária (2), que decorre dos costumes, poder

social apto a legitimar tacitamente a adoção de determinados comportamentos reiterados pela

sociedade.

Trata-se de fonte não estatal e, portanto, suplementar e subsidiária à fonte

legislativa, a significar, portanto, que os costumes somente encontram espaço nas hipóteses

em que não contrariam o teor prescritivo da lei.

Os costumes são valores que brotam espontaneamente na sociedade e, portanto,

enriquecem o ordenamento jurídico positivado pelo Estado.

A fonte contratual (3), assim como a consuetudinária, não é estatal, pois se origina

do poder de autorregulação das condutas individuais, nos termos e conforme as prescrições

legislativas.

O contrato é firmado entre partes que, em regra, estabelecem direitos e obrigações

recíprocos – há também os contratos unilaterais. Os valores que informam as relações

jurídicas disciplinadas por um contrato devem estar afinados aos valores consagrados no

ordenamento jurídico positivado.

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Se houver violação de determinações legais cogentes pelo contrato, ele poderá ser

declarado judicialmente nulo.

Note-se que as fontes do direito não estatais têm seu âmbito de incidência

ampliado ou restringido em escala inversamente proporcional ao nível de intervenção do

Estado. Quanto mais interventor for um Estado, menor o espaço para a inovação jurídica nos

planos dos costumes e dos contratos.

Por derradeiro, a fonte judicial (4) decorre da atuação do Poder Judiciário na

solução de conflitos39, ostentando, portanto, caráter estatal, tanto quanto a fonte legislativa.

A sentença judicial é uma das fontes criadoras do direito, emanada pelo

magistrado após o trâmite processual estabelecido em lei.

Trata-se de ato que impõe a solução para determinado conflito de interesses no

plano concreto, disciplinando a controvérsia apresentada pelos envolvidos mediante

provocação prévia. Seus efeitos incidem apenas entre as partes, ou seja, são limitados.

Cuidando-se, portanto, de fonte criadora do direito, a sentença é, nessa perspectiva

tridimensional, um ato complexo, fruto de um processo dialético. Aliás, essa dialeticidade é

esclarecida pela própria dinâmica do processo judicial, que em suas etapas revela a

contraposição de valores na forma de litígio e que, por meio do princípio do contraditório

busca equilibrar as forças antagônicas40.

A exposição dos fatos e fundamentos jurídicos, pelas partes que participam da

contenda levada a juízo, permite o conhecimento, ainda que parcial, da realidade fática pelo

magistrado. Ele então analisará o que lhe foi apresentado e, em seguida, proferirá uma decisão

judicial, denominada sentença, cuja construção é fruto de atividade interpretativa.

Essa atividade interpretativa, na maioria das vezes, tem por base modelos legais

previamente editados. Portanto, consubstancia-se na explicitação do sentido de uma lei

preexistente. Excepcionalmente, a interpretação ocorrerá em caráter autônomo, nas hipóteses

em que o juiz cria originariamente uma regra concreta visando suprir uma lacuna da lei41.

De qualquer sorte, seja pela sentença proferida de maneira autônoma (pela qual se

cria uma norma para regular o caso concreto ante a existência de lacuna na lei), seja pela via

subordinada (ocasião em que a decisão se fundamenta em lei previamente editada), é certo

que a atividade interpretativa do juiz ostentará um caráter essencialmente axiológico.

Acreditar que o exercício da jurisdição constitui um mero silogismo categórico,

ou seja, uma atividade lógico-dedutiva de subsunção de um fato a uma norma jurídica é um 39 REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito – para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 2010, p.12. 40 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.185. 41 REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito – para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 2010, p.70.

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raciocínio demasiadamente simplista. Evidente que o trabalho interpretativo se desenvolve

mediante ponderação de valores, conforme observa Reale:

Interpretar o Direito é trabalho axiológico, e não puramente lógico, como se

desenrolassem as consequências das leis mercê de simples dedução. A sentença de

um juiz é também um trabalho estimativo, de compreensão axiológica, e não mero

silogismo, como encontramos explicado – e muitas vezes em autores de grande

importância – na Teoria do Processo.

Nunca será demais acentuar que a sentença só na aparência é um silogismo, não

sendo redutível a simples dedução formal, assim como a interpretação do Direito

não é mero trabalho de Lógica formal, mas possui antes natureza dialética,

implicando conexões fático-normativas segundo valores.42

Importante destacar que o mesmo processo tridimensional que envolve a

formação das leis incide sobre sua interpretação e aplicação pelo magistrado.

Quando se tratou do nascimento da norma jurídica pela perspectiva da Teoria

Tridimensional do Direito, consignou-se que o ambiente em que ocorre é caracterizado pela

tensão envolvendo fato e valor, o que foi denominado de dialética da complementaridade.

Esta tensão é perene, pois a relação dialética ostenta um caráter dinâmico. Isto

significa que se houver alteração na conjuntura fática, haverá reflexos sobre o plano

valorativo, que, por conseguinte, implicará a necessidade de se alterar as normas jurídicas

pertinentes. O mesmo ocorrerá se houver mudança dos valores que influenciam a sociedade:

sua conexão com os fatos terá configuração alterada, a resultar na necessidade de ajustes no

âmbito normativo.

O equilíbrio entre fato, valor e norma é frágil e está sujeito a constantes

transformações. Destas transformações, é possível constatar as seguintes consequências: 1)

determinada norma jurídica poderá cair em desuso, ou seja, tornar-se desnecessária, pois suas

prescrições, por conterem enunciados totalmente dissociados dos valores predominantes,

serão completamente ignoradas no meio social; 2) A norma jurídica poderá ser substituída por

outra, ou apenas revogada, por decisão legislativa, influenciada pela pressão social decorrente

do desajuste entre a norma então válida e os valores predominantes; 3) O texto da norma

jurídica pode ser mantido no sistema, mas ter seu sentido alterado a partir de uma nova leitura

interpretativa proferida pelo Judiciário.

Com relação ao item (3), cujo interesse é primordial para este trabalho, destaca-se

que a ação interpretativa do juiz realmente mostra-se hábil a conferir novos sentidos ao teor

42 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.247.

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da norma escrita, a demonstrar que a fonte judicial do direito encontra-se sob a influência

direta desta variável conjuntura fático-axiológica43.

Os valores que num primeiro momento permearam a elaboração de determinada

norma jurídica sofrem mutações no decorrer do tempo, que acabam por refletir em alteração

do sentido da própria norma, trazendo relevância para o método interpretativo denominado

histórico-evolutivo. Por sua vez, a conjuntura fática também é instável, sujeitando-se a

constantes mudanças. Esta variabilidade traz consequências para o sentido original da norma

jurídica.

Destaque-se, ainda, que o ingresso de determinada norma no ordenamento

jurídico impõe que seus preceitos sejam compreendidos no contexto de todo um sistema, logo,

o sentido originalmente pretendido para a norma, por ocasião de sua edição, pode necessitar

de adaptações para harmonizar-se ao contexto normativo geral, a denotar a relevância do

método hermenêutico sistemático.

Todo esse conjunto de fatores contribui para tornar a decisão judicial uma

verdadeira fonte do direito, dado seu caráter inovador da ordem jurídica.

Nessa esteira, esclarece Miguel Reale:

Muitas e muitas vezes, porém, as palavras das leis conservam-se imutáveis, mas a

sua acepção sofre um processo de erosão ou, ao contrário, de enriquecimento, em

virtude da interferência de fatores diversos que vêm amoldar a letra da lei a um novo

espírito, a uma imprevista ratio juris. Tais alterações na semântica normativa podem

resultar:

a) do impacto das valorações novas, ou de mutações imprevistas na hierarquia

dos valores dominantes;

b) da superveniência de fatos que venham a modificar para mais ou para menos

os dados da incidência normativa;

c) da intercorrência de outras normas, que não revogam propriamente uma regra

em vigor, mas interferem no seu campo ou linha de interpretação;

d) da conjugação de dois ou até mesmo três fatores acima discriminados.44

43 Sobre este assunto, pertinentes as observações de Inocêncio Mártires Coelho: “No campo da experiência judicial – em que

a criatividade do intérprete encontra soluções mais rápidas para os conflitos de interesses do que as sempre demoradas

respostas do legislador –, nesse terreno as exigências sociais são imediatamente absorvidas e racionalizadas pelo aplicador do

direito, sob a forma de mutações normativas ou novas leituras dos mesmos enunciados normativos, leituras tão inovadoras

que chegam a criar modelos jurídicos inteiramente novos, o que, tudo somado, só faz confirmar a encarecida distinção entre

texto e norma, assim como o clássico ensinamento de Kelsen, a nos dizer que a norma não é um evento sensorialmente

perceptível – os votos pela aprovação ou rejeição de um projeto de lei, exteriorizados no parlamento, por exemplo –, mas o

sentido jurídico específico que, objetivamente, o direito atribui a esse evento, em relação ao qual, por isso mesmo, as normais

funcionam como “esquemas de interpretação”. Essas novas leituras constituem os modelos jurisdicionais ou modelos

autônomos – como os denomina Miguel Reale –, porque o aplicador do direito tem competência para criá-los

correlacionando dois princípios fundamentais: o de que o juiz não pode eximir-se de julgar a pretexto de haver lacuna ou

obscuridade da lei; e o de que, na omissão da lei, ele deve proceder como se fora legislador. No âmbito da jurisdição

constitucional, por exemplo, o exercício dessa criatividade, em rigor, não conhece limites, não só porque as cortes

constitucionais estão situadas fora e acima da tradicional tripartição dos poderes estatais, mas também porque a sua atividade

interpretativa se desenvolve, essencialmente, em torno de enunciados abertos, indeterminados e plurissignificativos – as

fórmulas lapidares que integram a parte dogmática das constituições”. (COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar

Ferreira; FRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.78-79). 44 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.543.

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Consideradas todas estas observações, importa esclarecer que este estudo não tem

por finalidade aprofundar a análise dos métodos interpretativos aplicáveis ao direito, mas

demonstrar, num primeiro momento, a relevância dos elementos valorativos na criação da

decisão judicial, e num segundo momento, desvendar quais movimentos ideológicos

permeiam a produção jurisprudencial recente no Brasil.

Neste capítulo, toda a ênfase conferida a alguns elementos que compõem o

arcabouço doutrinário e filosófico criado por Miguel Reale justifica-se pela adoção dessa

perspectiva axiológica em todas as etapas do trabalho, tomando-se, portanto, a Teoria

Tridimensional do Direito como um critério vetorial para se desvendar o perfil ideológico da

magistratura brasileira.

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3 A POSTURA DO JUIZ E SUAS REFERÊNCIAS

3.1 O mito da neutralidade do juiz

A análise da atuação do Poder Judiciário é matéria de inegável relevo para os

estudiosos da área jurídica. É, portanto, imprescindível que seja dada maior atenção não

apenas aos aspectos técnicos e dogmáticos das decisões judiciais, mas também às bases

filosóficas que fundamentam a formação humanística do magistrado, elemento que não tem

sido objeto de minuciosa reflexão, e certamente merece maior atenção.

A correta compreensão dos meandros do Poder Judiciário, especialmente dos

fundamentos que motivam os juízes a adotarem determinadas posições, permitirá o melhor

aprimoramento da instituição.

Mas antes de se realizar esse diagnóstico, necessário derrubar de vez um mito que

de certa forma se encontra superado no âmbito do direito, mas de qualquer modo merece

realce: o mito da neutralidade do juiz.

Embora essa questão já tenha sido de certa forma abordada no capítulo anterior,

quando se expôs o caráter axiológico, e portanto, ideológico das ciências culturais e do direito

em especial, faz-se necessário trazer uma abordagem mais bem delimitada, pois o presente

trabalho tem como foco específico a análise da atividade judiciária.

O magistrado, no exercício da função jurisdicional, deve ser imparcial e isento,

manter sempre a equidistância para melhor solucionar os casos concretos que lhes são levados

à apreciação.

Tal assertiva, muito embora reflita uma ideia constantemente divulgada e repetida,

constitui simplificação de questão deveras complexa, que envolve a análise de uma enorme

gama de fatores e exige profundo conhecimento das razões que movem o comportamento

humano.

A imparcialidade do juiz evidentemente deve existir e traduz requisito

imprescindível para o adequado exercício de seu relevante papel social. No entanto, a

imparcialidade, no sentido de ausência de vinculação do magistrado a quaisquer dos interesses

conflitantes postos em debate numa causa, não se confunde com neutralidade absoluta,

impossível de ser alcançada, dada a existência de uma multiplicidade de elementos subjetivos

que influenciam a tomada de decisões no âmbito do processo.

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Nesse aspecto, conforme salienta Luís Roberto Barroso, “a neutralidade pressupõe

algo impossível: que o intérprete seja indiferente ao produto de seu trabalho”45. Prossegue o

jurista em seu raciocínio:

idealmente, o intérprete, o aplicador do direito, o juiz, deve ser neutro. E é mesmo

possível conceber que ele seja racionalmente educado para a compreensão, para a

tolerância, para a capacidade de entender o diferente, seja o homossexual, o

criminoso, o miserável, ou o mentalmente deficiente. Pode-se mesmo, um tanto

utopicamente, cogitar libertá-lo de seus preconceitos, de suas opções políticas

pessoais e oferecer-lhe como referência um conceito idealizado e asséptico de

justiça. Mas não será possível libertá-lo do próprio inconsciente, de seus registros

mais primitivos. Não há como idealizar um intérprete sem memória e sem desejos.

Em sentido pleno, não há neutralidade possível.46

Acreditar, portanto, na neutralidade do juiz é uma evidente ilusão, pois a questão,

como muito bem observado por Barroso, transcende a mera análise da técnica jurídica. A

ideia de “inconsciente” como fator de determinação dos comportamentos e das posturas

adotadas diante dos dilemas da vida foi há muito tempo desenvolvida no âmbito da

psicanálise, pelo seu fundador, Sigmund Freud. Acerca da linha teórica freudiana, Marilena

Chauí formula:

os seres humanos têm a ilusão de que tudo quanto pensam, fazem, sentem e desejam,

tudo quanto dizem ou calam estaria sob o pleno controle de nossa consciência

porque desconhecemos a existência de uma força invisível, de um poder – que é

psíquico e social – que atua sobre a nossa consciência sem que ela saiba. A esse

poder que domina e controla invisível e profundamente nossa vida ele deu o nome

de inconsciente.47

Evidentemente o presente trabalho não tem por objetivo espraiar-se pelo âmbito

da psicanálise, mas a menção ao “inconsciente” na perspectiva freudiana é pertinente como

forma de demonstrar a enorme gama de fatores que influenciam o ser humano e, por

consequência, os juízes, inclusive no momento de proferirem suas decisões judiciais.

Desta feita, trazendo-se a relevante discussão filosófica para o plano do direito e

da atividade jurisdicional, e afastada por completo a pretensão de neutralidade do magistrado,

aceita-se, sem maiores controvérsias, o pressuposto de que o juiz, no exercício de sua função

e no ato de decidir, toma como referência os valores que embasaram sua formação, seja no

plano educacional, religioso ou familiar, pois o comportamento humano move-se muitas

vezes por fatores e circunstâncias desconhecidos, que exigem um profundo esforço intelectual

para sua adequada compreensão.

45 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.289. 46 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.289-290. 47 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13.ed. São Paulo: Ática, 2003, p.53.

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Considerada tal premissa, Dalmo de Abreu Dallari desenvolveu um estudo crítico

sobre o Poder Judiciário na obra “O Poder dos Juízes”, cuja primeira edição foi impressa no

ano de 199648, na qual apontou como uma das principais mazelas da magistratura o excessivo

apego às leis e ao formalismo jurídico, fruto de influência distorcida da obra de Hans Kelsen,

que supostamente teria sido a base filosófica mais forte dos bancos acadêmicos no ensino

jurídico brasileiro.

Nesta obra, o doutrinador assim justificou suas reticências relacionadas ao

comportamento dos juízes, esclarecendo quais aspectos mereceriam aprimoramento e maior

reflexão:

a primeira grande reforma que deve ocorrer no Judiciário, e sem dúvida a mais

importante de todas, é a mudança de mentalidade. Embora se tenha tornado habitual,

na linguagem comum do povo, a referência ao Judiciário como sendo “a Justiça”, o

fato é que na grande maioria das decisões judiciais, sobretudo dos tribunais

superiores dos Estados e do país, fica evidente que existe preocupação bem maior

com a legalidade do que com a justiça.

Extensas e minuciosas discussões teóricas, farta citação de autores e de

jurisprudência, acolhimento ou refutação dos argumentos dos promotores e

advogados, tudo isso gira em torno da escolha da lei aplicável e da melhor forma de

interpretar um artigo, um parágrafo ou mesmo uma palavra. São freqüentes as

sentenças e os acórdãos dos tribunais recheados de citações eruditas, escritos em

linguagem rebuscada e centrados na discussão de formalidades processuais, dando

pouca ou nenhuma importância à questão da justiça.

Ainda é comum ouvir-se um juiz afirmar, com orgulho vizinho da arrogância, que é

“escravo da lei”. E com isso fica em paz com sua consciência, como se tivesse

atingido o cume da perfeição, e não assume responsabilidade pelas injustiças e pelos

conflitos humanos e sociais que muitas vezes decorrem de suas decisões. Com

alguma consciência esse juiz perceberia a contradição de um juiz-escravo e saberia

que um julgador só poderá ser justo se for independente. Um juiz não pode ser

escravo de ninguém nem de nada, nem mesmo da lei.49

Enfim, pelo que se infere a partir dos argumentos apresentados por Dallari, um

dos principais aspectos negativos da atuação judiciária seria a extrema passividade dos

magistrados, que apegados à lei de maneira cega, afastar-se-iam do senso de justiça.

No entanto, deve-se ter em vista que a edição da mencionada obra ocorreu há mais

de vinte anos, circunstância que evidentemente resulta em descompasso com os dilemas da

atualidade, considerando o estágio doutrinário da segunda década do século XXI.

Em contraposição ao excesso de apego à letra da lei denunciado, é possível

extrair-se, dentre os temas doutrinários que envolvem a análise do Poder Judiciário, o tão em

voga “ativismo judicial”, que na contramão do “legalismo”, caracteriza-se em verdade pela

postura extremamente proativa dos julgadores.

48 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. 49 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, p.80.

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Portanto, existem duas tendências que chamam atenção na análise da postura dos

juízes e no conteúdo das decisões judiciais. Ambas merecem um olhar especial para se

desvendar o atual perfil ideológico dos magistrados brasileiros: de um lado, tem-se o

“legalismo”, e de outro, o “ativismo judicial”.

Ambos têm sido objeto de inúmeros estudos acadêmicos controvertidos, tanto

pelas posições favoráveis quanto contrárias adotadas pela doutrina a seu respeito.50 Neste

trabalho, tanto o “legalismo” como o “movimento ativista” do Judiciário são objeto de

especial análise, mas sob enfoque diverso da abordagem realizada em outros estudos do

gênero.

Aqui, busca-se identificar as causas que motivaram a transmudação do

“legalismo” no decorrer dos tempos e o desencadeamento do “ativismo judicial”,

relacionando-as com as influências ideológicas que permeiam a formação cultural do

magistrado contemporâneo.

Essa transmudação, evidentemente, decorre do desajuste no equilíbrio envolvendo

fato e valor, considerando-se a visão tridimensional do direito proposta por Miguel Reale.

Conforme salientado, a formação do direito ocorre pela composição dialética entre

fato, valor e norma. Eventual alteração na conjuntura fática ou valorativa implica na

necessidade de realinhamento no âmbito normativo, para que o desajuste criado na relação

entre fato e valor seja reordenado, propiciando-se um novo equilíbrio.

Esse realinhamento ocorre no plano das fontes do direito (legislativa,

consuetudinária, contratual e judicial). Para este estudo interessa, como já é possível deduzir,

trazer a reflexão para a seara da fonte judicial do direito. Busca-se, portanto, desvendar as

novas cargas fáticas e valorativas inseridas na sociedade a ponto alterar a forma de se

concretizar o direito na órbita jurisdicional.

50 Exemplos de autores que defendem em seus trabalhos um maior protagonismo do Judiciário, em detrimento de uma

posição mais legalista: BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria.

In: (Org.) SARMENTO, Daniel. Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Gen/ Forense, 2015; SOUZA NETO,

Cláudio Pereira de Souza; SARMENTO, Daniel. Controle de constitucionalidade e democracia: algumas teorias e parâmetros

de ativismo. In: (Org.) SARMENTO, Daniel. Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Gen/ Forense, 2015;

FRANCISCO, José Carlos. (Neo) constitucionalismo na pós-modernidade: princípios fundamentais e justiça no caso

concreto. In: (Coord.) FRANCISCO, José Carlos. Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional – do passivismo ao

ativismo judicial. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. Exemplos de autores que defendem em seus trabalhos uma postura mais

“legalista”, refutando o excessivo protagonismo do Judiciário: DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico – introdução a

uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006; GRAU, Eros Roberto. Por que

tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e dos princípios). 6.ed. São Paulo: Malheiros (Refundida do

ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito), 2014; SIQUEIRA NETO, José Francisco.

Neoconstitucionalismo e ativismo judicial: desafios à democracia brasileira. In: (Coord.) FRANCISCO, José Carlos.

Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional – do passivismo ao ativismo judicial. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.

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Para tanto, toma-se como ponto de partida a visão tradicional do magistrado, tão

criticada por Dallari, do juiz como mera “boca da lei”, que afastado dos dilemas

contemporâneos encontrar-se-ia isolado numa “redoma de vidro”.

Este perfil de magistrado “legalista” há de ser contrastado com o resultado da

pesquisa realizada em 2005 pela Associação dos Magistrados Brasileiros, portanto, quase dez

anos após o lançamento da primeira edição da obra “O Poder dos Juízes”.

3.2 Juízes são ouvidos em pesquisa de opinião

Na pesquisa mencionada, os próprios juízes foram ouvidos, e puderam opinar

sobre diversos temas, que sinalizam a adoção, pelos magistrados da atual geração, de uma

postura diversa daquela denunciada por Dallari.

A pesquisa foi coordenada pela cientista política da Universidade de São Paulo

Maria Tereza Sadek, e teve por escopo trazer ao conhecimento público um mapeamento

completo da magistratura nacional, tanto sob o prisma demográfico quanto sociológico, que

se transformou no livro “Magistrados – uma imagem em movimento”51.

Foram colhidos questionários de 3.258 juízes, o que representa 28,9% do total de

membros pertencentes à Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), que alcançava o

patamar de 11.286 integrantes à época da pesquisa.

Os critérios adotados permitiram mapear a magistratura por gênero, idade, cor,

estado civil, número de filhos e formação acadêmica. Os dados foram analisados conforme as

variações regionais, apontando-se as peculiaridades locais de acordo com a área do país

(norte, nordeste, centro-oeste, sul, sudeste).

Concluiu-se que a magistratura da ativa (desconsiderando-se os aposentados) é

preponderantemente masculina (72,9%), de cor branca (85,7%), com média de idade de 44,4

anos, casada (79,6%) e com filhos (79,8%), e formada em universidade pública (52,7%)52.

51 Segundo Maria Tereza Sadek: “Graças a uma iniciativa da diretoria da AMB, foi realizada em 2005 uma ampla consulta

aos sócios da entidade, com o objetivo de construir um retrato da magistratura, tanto do ponto de vista demográfico quanto

social, bem como conhecer a opinião sobre uma série de temas. Para atingir estas finalidades elaborou-se um questionário,

com perguntas para serem respondidas pelos magistrados brasileiros, enviado para todos os integrantes da associação no país,

totalizando 11.286 correspondências. Obteve-se um total de 3.258 respostas, o que significa um percentual de 28,9%. Esta

proporção variou nacionalmente, indo de um mínimo de 14,3% no Distrito Federal e de 15,7% no Amazonas até um máximo

de 47,8% no Amapá, de 42,5% em Santa Catarina e de 41,2% no Acre. O total de questionários respondidos permite elaborar

conclusões tanto para o conjunto de magistrados quanto para cada uma das regiões geográficas, para estados agrupados de

acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e, em muitos casos, até para unidades da Federação consideradas

isoladamente. Em resumo, a taxa de retorno enquadra-se nos padrões esperados para este tipo de pesquisa baseada em

questionários distribuídos por correio.” (SADEK, Maria Tereza. Magistrados – uma imagem em movimento. Rio de Janeiro:

FGV-Direito Rio, 2006, p.12). 52 SADEK, Maria Tereza. Magistrados – uma imagem em movimento. Rio de Janeiro: FGV-Direito Rio, 2006, p.15-21.

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Esses dados estatísticos foram corroborados em grande parte por uma nova

pesquisa, realizada no ano de 2013, pelo Conselho Nacional de Justiça, pela qual foi possível

receber informações de parcela consideravelmente mais ampla e significativa da magistratura

nacional, já que foram ouvidos 10.796 magistrados num universo de 16.812, o que representa

64% dos juízes da ativa53.

Esta última pesquisa, realizada pelo Conselho Nacional de Justiça, é um

verdadeiro censo judiciário, dada sua amplitude e abrangência. Nos dados coletados, foram

registradas as seguintes informações sobre a composição da magistratura brasileira: média de

idade de 44,7 anos, com percentual de 64,1% de homens e 35,9% de mulheres, 82,8% de

brancos, 78,4% de casados ou conviventes em união estável com pessoas de outro sexo,

75,7% com filhos, e 51,2% formados em instituições privadas.

As mudanças registradas no perfil dos juízes, considerado o decurso de tempo de

oito anos entre ambas as pesquisas, e a maior amplitude da última, não são tão impactantes. A

composição da magistratura permanece similar. A média de idade, praticamente idêntica, e as

modificações relativas à cor da pele, estado civil, filhos, tem pouca relevância. Dentre as

alterações mais significativas constata-se uma considerável maior participação feminina, cuja

tendência de ampliação gradativa já era verificada. Houve um salto de 27,1% de mulheres

para 35,9% delas. No mais, os dados são extremamente parecidos. Na última pesquisa, uma

maioria de magistrados formada em universidades privadas, o que inverte a ordem anterior,

apesar de a proporção diagnosticada em ambas as pesquisas ser similar neste quesito.

No que se refere especificamente à composição dos quadros da magistratura

brasileira, uma peculiaridade importante diz respeito ao método de recrutamento dos juízes.

Álvaro de Azevedo Gonzaga e Henrique Garbelini Cárnio apontam um perfil

elitista da magistratura, observando que boa parte dos quadros é oriunda das classes média e

alta da sociedade. Muitos dos juízes seriam descendentes de outros magistrados ou de pessoas

integrantes de carreiras públicas de alto escalão54. Outro aspecto relevante abordado pelos

autores relaciona-se ao formato do concurso público de provas e títulos, que tendem a exigir

conhecimentos de teor mais conservador, embora reconheçam méritos na Resolução n.75 do

Conselho Nacional de Justiça, que passou a estabelecer, dentre os parâmetros de elaboração

dos concursos de ingresso na magistratura, a exigência de disciplinas humanísticas. Nesse

sentido:

53 Disponível em: <ww.cnj.jus.br/images/imprensa/vide-censo-final.pdf>. Acesso em: 20 set. 2017. 54 GONZAGA, Álvaro de Azevedo; CÁRNIO, Henrique Garbelini. Curso de sociologia jurídica. São Paulo: RT, 2011,

p.187.

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O recrutamento de servidores públicos com estabilidade ou vitaliciedade, no caso

dos magistrados, pode ser objeto de diversas críticas, tais como: especificidade

desnecessária de conhecimentos habitualmente não utilizados por um magistrado,

seleção de conteúdos e posições que mantenham o poder estatuído, entre outras. A

nós, cabe um elogio à Resolução 75, do Conselho Nacional de Justiça, no sentido de

cobrar uma formação humanística e consequente estudo dos temas que apresentamos

nesse capítulo e ao longo de nossa obra.55

Retomando a pesquisa realizada em 2013 pelo Conselho Nacional de Justiça,

embora tenha amealhado dados acerca da composição da magistratura nacional, teve enfoque

diverso daquela elaborada pela Associação dos Magistrados Brasileiros, em 2005. A

similaridade de objetos entre as pesquisas, portanto, limita-se aos dados de caráter sociológico

(idade, cor, estado civil, escolaridade). O campo de coincidência entre os estudos encerra-se

neste ponto. Quanto ao mais, se de um lado a pesquisa de 2005 teve por norte coletar

informações hábeis a revelar a forma de pensar dos juízes no que se refere a dilemas da

contemporaneidade e paradigmas influenciadores das decisões judiciais, de outro, a pesquisa

de 2013 orientou-se por diagnosticar a opinião dos juízes acerca de questões internas, como

condições de salubridade no trabalho, satisfação com a carreira, aspectos da gestão e da

administração dos tribunais, e critérios de ascensão dentro dos quadros da carreira.

Logo, a partir desta identificação de propósitos divergentes entre as pesquisas,

toma-se por foco principal o conteúdo da pesquisa de 2005 realizada pela Associação dos

Magistrados Brasileiros, cujos objetivos afinam-se com os do presente trabalho.

Desta forma, considerados os dados apurados em 2005, no que se refere ao

posicionamento dos magistrados frente aos dilemas contemporâneos, observa-se uma

percepção pouco corporativa e bastante crítica no que tange ao quesito eficiência do Judiciário

(agilidade)56. A grande maioria admitiu insatisfação quanto aos serviços prestados à

população, avaliado como “bom” ou “muito bom” por apenas 9,9% dos juízes participantes da

pesquisa. De outra sorte, 48,9% dos juízes avaliaram como “ruim” ou “muito ruim” o aspecto

da celeridade da prestação jurisdicional. Do total, 38,7% dos juízes consideraram os serviços

“regulares”.

Um dos aspectos mais importantes para o adequado exercício da atividade

jurisdicional diz respeito ao dever de imparcialidade57, que, diga-se, não se confunde com

neutralidade. A neutralidade, conforme já esclarecido neste estudo, é impossível de ser

alcançada no âmbito das ciências culturais, dada a incidência do elemento “valor”, que

55 GONZAGA, Álvaro de Azevedo; CÁRNIO, Henrique Garbelini. Curso de sociologia jurídica. São Paulo: RT, 2011,

p.187-188. 56 SADEK, Maria Tereza. Magistrados – uma imagem em movimento. Rio de Janeiro: FGV-Direito Rio, 2006, p.31. 57 SADEK, Maria Tereza. Magistrados – uma imagem em movimento. Rio de Janeiro: FGV-Direito Rio, 2006, p.42.

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implica tomar posição, ou seja, adotar uma ideologia. O dever de imparcialidade, por sua vez,

é um dever técnico e ético que impõe seja mantida a equidistância das partes e do problema

relacionado à determinada causa, de maneira a evitar favorecimentos ou perseguições.

No que diz respeito ao dever de imparcialidade, os magistrados pesquisados

avaliaram os diferentes ramos do Judiciário, atribuindo uma nota a cada um deles. A Justiça

Estadual foi a mais bem avaliada neste tópico (obteve “bom/muito bom” de 59,4% dos

juízes). A instituição pior avaliada quanto ao dever de imparcialidade foi a Justiça Militar,

com 24% de avaliações positivas (“boas/muito boas”) – muito embora mais de 50% dos

magistrados tenham optado por não responder, provavelmente por não conhecerem

profundamente este ramo do Judiciário. O Supremo Tribunal Federal também foi mal

avaliado. Obteve 28,1% de avaliações positivas (“bom/muito bom”) quanto ao dever de

imparcialidade.

Um dos pontos mais relevantes da pesquisa relaciona-se à orientação adotada

pelos juízes ao proferirem suas decisões.

Indagou-se aos magistrados pesquisados quais seriam os parâmetros a serem

adotados em suas decisões. Se seriam os aspectos legais, o compromisso com as

consequências econômicas da decisão, ou, ainda, o compromisso com as consequências

sociais.

Dentre os magistrados da ativa, 87,1% se orientam por parâmetros legais, 40,5%

assumem compromisso com as consequências econômicas de suas decisões enquanto 83,8%

afirmaram assumir um compromisso com as consequências sociais 58.

Percebe-se, portanto, que a ampla maioria adota a lei como vetor de orientação

para decidir, o que é de se esperar e não surpreende. Não obstante, e considerando-se que os

parâmetros indagados na pesquisa não são excludentes, maioria quase tão expressiva dos

juízes manifestou apego às consequências sociais de suas decisões. Em escala

significativamente menor, há o destaque para as consequências econômicas.

Segundo este panorama, há uma margem expressiva coincidente dentre os

magistrados que se orientam preponderantemente pelos parâmetros legais e aqueles que se

orientam pelas consequências sociais de suas decisões.

Um elemento relevante neste ponto da pesquisa é o de constatar que a

preocupação com as consequências econômicas e sociais das decisões judiciais é uma

tendência da geração atual de juízes. Esta conclusão é extraída da comparação com as

opiniões dos magistrados aposentados, também ouvidos. De acordo com os juízes inativos, 58 SADEK, Maria Tereza. Magistrados – uma imagem em movimento. Rio de Janeiro: FGV-Direito Rio, 2006, p.47.

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84,9% orientam-se por parâmetros legais, o que indica uma similaridade com os da ativa.

Contudo, apenas 25,4% dos aposentados tomam por vetor as consequências econômicas das

decisões, e 64,1% apegam-se às consequências sociais59. Desta forma, nesses dois últimos

aspectos, é expressiva a diferença entre as opiniões dos magistrados da ativa e os aposentados,

a denotar uma mudança de visão na magistratura ocorrida nas últimas décadas. Trata-se de

uma mudança de caráter inquestionavelmente ideológico, cujos motivos buscar-se-ão

esclarecer com maior profundidade no transcurso deste estudo.

Sydnei Agostinho Benetti pontua essa mudança de paradigma, decorrente do

incremento do vetor “social” ao parâmetro legal tradicionalmente adotado pelos juízes em

suas decisões:

A predominância da legalidade reflete a formação histórica do profissional

judiciário, vindo do constitucionalismo de Montesquieu e Madison-Hamilton,

reiterado ainda na universidade, ao tempo de faculdade dos profissionais indagados.

A pesquisa mostra que se alterou um pouco o bloco antes monolítico do dogma da

supremacia da lei, ante a nova formação, também vinda da influência do pensamento

universitário mais recente, sobretudo após a introdução, nos currículos das

faculdades de Direito, das cadeiras de Sociologia do Direito e Metodologia do

Ensino Jurídico e modernização dos programas de Teoria Geral do Direito, Doutrina

do Estado e Filosofia do Direito – e, em especial, após a pujante doutrina formada a

partir dos clássicos da matéria.

Note-se que a opção pelo “compromisso com as consequências sociais” (78,5%)

aparece superior à do compromisso com as consequências econômicas” (36,5%). É

ainda a força do ideário formado pelo Código Civil de 1916, que presidiu a

formação jurídica de todo profissional do direito da geração pesquisada, sob a alta

força retórica em todos os textos de direito civil e de hermenêutica jurídica. O

“compromisso com as consequências econômicas”, de sua parte, perde da retórica

social, mais palatável, esta, pelo idealismo e romantismo que encerra, e

anatematizada, aquela, pela longa exposição crítica sociopolítica e artística de

vanguarda, que há mais de um século passou a ver na apropriação da mais-valia

produtora da riqueza individual e fator de injustiça. O ideal de justiça não se situa no

econômico há séculos, e muito menos na atualidade – e desse pensamento não

fogem os juízes – nem, é curioso ressaltar, no discurso, os próprios protagonistas da

atividade econômica, embora tantas vezes, no concreto, ajam de forma diversa.60

O fato é que, considerando os resultados da pesquisa, somados à análise da

própria jurisprudência contemporânea sobre inúmeros temas, conclui-se que algumas das

críticas realizadas por Dallari em “O Poder dos Juízes” tornaram-se, de certo modo,

anacrônicas.

Pois bem, se outrora o comportamento padrão de atuação do magistrado era

criticado pelo legalismo inflexível, agora, as atenções voltam-se para a exagerada liberdade

exercitada no ato de decidir, especialmente quando se constata intervenções extremamente

criativas na solução de controvérsias envolvendo relações jurídicas consolidadas.

59 SADEK, Maria Tereza. Magistrados – uma imagem em movimento. Rio de Janeiro: FGV-Direito Rio, 2006, p.47. 60 SADEK, Maria Tereza. Magistrados – uma imagem em movimento. Rio de Janeiro: FGV-Direito Rio, 2006, p.106-107.

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Essa mudança há de ser esclarecida, nos termos das observações de Sydnei

Benetti, pelo redirecionamento dos parâmetros culturais ocorrido nas últimas décadas, o que

torna pertinente a adoção das premissas fixadas pela Teoria Tridimensional do Direito de

Miguel Reale, cujas bases são fincadas numa análise dos valores sob prisma notadamente

histórico.

Essa historicidade é detectada de maneira evidente no tridimensionalismo, pois

conforme observa Reale, os valores não são objetos ideais e, portanto, meras abstrações

estáticas. Ao contrário, são construídos, moldados, aprimorados no decorrer da vivência e de

acordo com as diversas conjunturas. Portanto, Reale rejeita a visão idealista, de linhagem

platônica, que tem nos valores um objeto ideal de perfeição inatingível, e que, por

conseguinte, encontra-se em uma plataforma completamente apartada da realidade61.

Desta feita, Reale adota a teoria histórico-cultural dos valores, consignando que

por História não se deve entender a mera catalogação de fatos passados, tal qual um arquivo

morto, mas sim, algo vivo, latente, em permanente transformação, com olhos sempre voltados

para o futuro62. Se de um lado não se pode esquecer o arcabouço cultural acumulado no

passado, há de se ter em mente as inúmeras possibilidades de criações futuras. Por tal razão,

entende que a construção dos valores constitui um processo inacabado, sempre com

perspectivas de aprimoramento e evolução, sintetizando, desta forma, que “o ser do homem é

o seu dever ser”63. Nesse sentido, observa:

Uma axiologia a-histórica ou meta-histórica para mim não tem sentido. De certo

ponto de vista, o homem é a sua história, concordo, mas não seria compreender

integralmente o homem, compreendê-lo espelhado unicamente no processo

histórico-cultural, pois o homem é, também, a história por fazer-se. É próprio do

homem, da estrutura mesma de seu ser, essa ambivalência e polaridade de “ser

passado” e “ser futuro”, de ser mais do que a sua própria história. E note-se que o

futuro não se atualiza como pensamento, para inserir-se no homem como ato – caso

em que deixaria de ser futuro –, mas revela-se em nosso ser como possibilidade,

tensão, abertura para o projetar-se intencional de nossa consciência, em uma gama

constitutiva de valores.64

Considerada essa visão histórico-cultural, afastada a perspectiva idealista, não há,

num primeiro momento, como se tomar outra conclusão senão a de que os valores são

61 Conforme Miguel Reale, essa visão idealizada dos valores é defendida por Scheler e Hartmann, para quem “os valores não

resultam de nossos desejos, nem são projeção de nossas inclinações psíquicas ou do fato social, mas algo que se põe antes do

conhecimento ou da conduta humana, embora podendo ser razão dessa conduta. Os valores representam um ideal em si de

per si, com uma consistência própria, de maneira que não seriam projetados ou constituídos pelo homem na História, mas

“descobertos” pelo homem através da História”. (REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2002,

p.199) 62 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.81. 63 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.81. 64 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.137.

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36

relativizáveis65, ou seja, passíveis de mutações de diversas ordens. Logo, o que é valioso hoje,

pode não ter sido no passado, e tampouco continuará sendo no futuro. Isso significaria,

portanto, um afastamento da ideia jusnaturalista, que pressupõe a existência de valores inatos,

e, por consequência lógica, a existência de direitos inatos aptos a proteger tais valores.

Não obstante, Reale busca uma solução intermediária, referindo-se às “invariantes

axiológicas”, ou seja, defende a existência de alguns valores fundamentais que não são

passíveis de supressão ou relativização, erigindo, nesse aspecto, a pessoa humana como valor

fonte de todos os outros66.

Pois bem, diagnosticada essa historicidade dos fenômenos culturais e, por

decorrência, reconhecida inequivocamente a possibilidade de mutação do direito através da

“porta de abertura” judicial, que, como visto, é uma das fontes vivas do fenômeno jurídico,

importa avaliar em quais termos tem ocorrido essa transmudação.

3.3 Juízes de “direita”, juízes de “esquerda”?

Pela observação da pesquisa elaborada pela Associação dos Magistrados

Brasileiros em destaque, percebe-se a tendência dos juízes brasileiros do século XXI de

conferirem maior ênfase ao elemento social, em comparação às gerações passadas, sem, no

entanto, esquecerem-se do paradigma da legalidade.

Para compreender essa movimentação ideológica, inevitável tomar como

parâmetro certas diretrizes consolidadas na teoria política, que muito embora sejam

consideradas anacrônicas e ultrapassadas por muitos, ainda ostentam grande utilidade como

bússola orientadora das ideologias políticas existentes: a tão difundida dicotomia entre direita

e esquerda, cuja nomenclatura teve origem no período que antecedeu a Revolução Francesa,

quando nas Assembleias dos Estados Gerais de 1789, a nobreza sentava-se à direita do rei, e o

Terceiro Estado (oposição), à esquerda 67.

65 Reale assim pondera: “É inegável, segundo penso, que o problema do valor não pode ser posto nem proposto fora da

História, pois a consciência intencional culmina sempre numa projeção ou objetivização histórica, o que desde logo suscita

uma pergunta inquietante sobre a historicidade de todos os valores, ou seja, sobre a inevitabilidade de um relativismo

axiológico de base historicista”. (REALE, Miguel. Paradigmas da cultura contemporânea. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2005,

p.104). 66 “[...] o homem é o valor-fonte de todos os valores porque somente ele é originariamente um ente capaz de tomar

consciência de sua própria valia, da valia de sua subjetividade, não em virtude de uma revelação ou de uma iluminação súbita

de ordem intuitiva, mas sim mediante e através da experiência histórica em comunhão com os demais homens”. (REALE,

Miguel. Paradigmas da cultura contemporânea. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.105). 67 SCRUTON, Roger. Pensadores da nova esquerda. São Paulo: É realizações, 2014, p.14.

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37

Esta concepção, apesar de sofrer múltiplas críticas, mantém-se viva, conforme é

possível perceber pelo seu uso corriqueiro e constante, seja em matérias jornalísticas, seja em

debates eleitorais68.

Na controvérsia central desta pesquisa, tanto a postura legalista quanto a ativista,

esta última nitidamente relacionada às consequências sociais das decisões judiciais, merecem

ser enquadradas no esquema dicotômico entre esquerda e direita, salientando, porém, que

entre o extremo da esquerda e o extremo da direita há inúmeras opções intermediárias, desde

a posição central, centro-esquerda, centro-direita, e assim por diante69.

Diante desse panorama confuso relacionado às expressões, inquestionavelmente

dúbias e equivocadas, Norberto Bobbio elaborou um ensaio minucioso sobre o tema,

buscando delimitar precisamente o significado contemporâneo de “direita” e “esquerda”,

obtendo êxito em justificar a permanente utilidade de seu uso na atual conjuntura política 70.

Inicialmente, Bobbio conclui que os extremos de cada uma das linhas ideológicas,

ao invés de implicarem num distanciamento, ensejam certa aproximação, ao menos parcial,

decorrente da postura radical de seus preconizadores. Assim, tanto a extrema direita quanto a

extrema esquerda apresentam determinados pontos de contato, em razão de ostentarem

propósito de ruptura drástica e muitas vezes violenta com o sistema vigente, que

desencadeiam, no mais das vezes, regimes ditatoriais.

Portanto, a extrema direita, que tem como exemplo mais do que evidente o

nazismo, e a extrema esquerda, cujas marcas foram registradas na história pelas experiências

comunistas estabelecidas na União Soviética e diversas outras nações do globo, têm em

comum a adoção de tendências nitidamente antidemocráticas.

Aparadas tais arestas, ou seja, afastadas as posições extremistas que não se

coadunam com o debate democrático, remanesce para o interesse deste trabalho a análise das

posições de direita e esquerda consideradas “moderadas”. Neste ambiente mais restrito,

68 BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda – razões e significados de uma distinção política. 3.ed. São Paulo: Unesp, 2011,

p.89: “Não obstante as repetidas contestações, a distinção entre direita e esquerda continua a ser usada. Se assim é, o

problema se desloca: agora, não se trata mais de comprovar sua legitimidade, mas de examinar os critérios propostos para sua

legitimação. Em outras palavras: desde que “direita” e “esquerda” continuam a ser usadas para designar diferenças no pensar

e no agir políticos, qual a razão, ou quais as razões, da distinção? Não se deve esquecer que a contestação da distinção nasceu

precisamente da ideia de que os critérios até então adotados ou não seriam rigorosos ou ter-se-iam tornado enganosos com o

passar do tempo e a mudança das situações. Felizmente, ao lado dos contestadores sempre existiram, e nestes últimos anos

são mais numerosos do que nunca, também os defensores, que propuseram soluções para a questão do critério ou dos

critérios. E como as respostas dadas são mais concordantes que discordantes, a distinção acaba sendo, de certo modo, por elas

ratificada”. 69 BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda – razões e significados de uma distinção política. 3.ed. São Paulo: Unesp, 2011,

p.53: “A distinção entre direita e esquerda não exclui de modo algum, sequer na linguagem comum, a configuração de uma

linha contínua sobre a qual entre esquerda inicial e direita final, ou, o que é o mesmo, entre direita inicial e esquerda final, se

colocam posições intermediárias que ocupam o espaço central entre os dois extremos, normalmente designado, e bastante

conhecido, com o nome de “centro””. 70 BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda – razões e significados de uma distinção política. 3.ed. São Paulo: Unesp, 2011.

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Bobbio constata que o critério mais adequado para distinguir as posições de direita e esquerda

consiste na tendência mais igualitária desta última em relação à primeira. Ou seja, para

Bobbio, quanto mais um governo busca superar desigualdades, mais à esquerda se encontra.

Por certo esse igualitarismo nunca poderá ocorrer plenamente, pois as pessoas,

cada uma delas, ostenta características peculiares, que não podem ser objeto de equiparação.

Mas, para além da diversidade, inegável que todos os seres humanos também apresentam

pontos de contato, características comuns. O que distingue os adeptos da direita dos adeptos

da esquerda, portanto, é que o esquerdista compreende o ser humano com mais elementos de

identificação, enquanto o direitista valoriza mais a diversidade71.

Considerado, pois, que o pensador de esquerda encontra no homem mais

semelhanças do que diferenças, como consectário lógico, compreenderá que grande parte das

desigualdades existentes no mundo são produzidas no âmbito da sociedade, ou seja, são

fabricadas indevidamente pelo homem, são desigualdades sociais, passíveis de correção

mediante intervenções políticas adequadas.

Já o pensador de direita, por outro lado, ao compreender a essência humana pelo

aspecto da diversidade, encontrará em boa parte das desigualdades algo natural, e que,

portanto, não é fruto de uma sociedade degenerada, mas decorrência da própria natureza

humana. Portanto, a intervenção política não se mostrará eficaz para suprimi-las72.

Ao se apontar que a esquerda busca mais igualdade, tal circunstância poderia

ensejar a falsa premissa de que se faz apologia à esquerda em detrimento da direita, por se

considerar esta última menos igualitária e, portanto, menos virtuosa. No entanto, a depender

do ponto de vista, esse igualitarismo não necessariamente representa um valor positivo,

podendo, ao contrário, representar um nivelamento73, que implica, por conseguinte, no

comodismo social.

Para o adepto de uma ideologia posicionada mais à direita, as ações igualitárias

artificialmente74 produzidas tendem a suprimir gradualmente as potencialidades de cada

pessoa, cerceando de maneira mais intensa a liberdade individual, o que representa, numa

perspectiva futura, em desestímulo ao desenvolvimento técnico e científico e à produção de

riquezas.

71 BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda – razões e significados de uma distinção política. 3.ed. São Paulo: Unesp, 2011,

p.119. 72 BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda – razões e significados de uma distinção política. 3.ed. São Paulo: Unesp, 2011,

p.121. 73 BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda – razões e significados de uma distinção política. 3.ed. São Paulo: Unesp, 2011,

p.87. 74 BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda – razões e significados de uma distinção política. 3.ed. São Paulo: Unesp, 2011,

p.121.

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39

Diante do exposto, para o adepto de uma linha ideológica à direita, ainda que a

sociedade venha a apresentar diferenças de classes e um elevado contraste econômico, a

liberdade e o respeito à individualidade, com menor intervenção estatal, tende a viabilizar o

maior progresso, que num plano ideal resultará numa sociedade mais próspera, ainda que para

os integrantes das classes menos favorecidas. Já o adepto de uma linha de pensamento mais à

esquerda compreenderá a intervenção estatal como uma exigência política necessária para

eliminar a pobreza e reduzir as discriminações.

Mas antes de enquadrar as posições dos magistrados neste esquema, é preciso ter

em mente a base que serve de suporte para a adoção das diversificadas tendências judiciais.

Em outras palavras, fazendo uma analogia, antes de escolher as tintas que serão utilizadas na

pintura de um quadro, é necessário definir a tela onde será produzida a pretensa obra de arte.

No caso brasileiro, evidentemente os magistrados atuam sob o suporte da

Constituição de 1988, instrumento jurídico fundamental da República. A Constituição é o

vetor que orienta a atuação dos juízes, e, simultaneamente, limita suas decisões. Todo o

arcabouço legal que embasa as decisões judiciais deriva da Constituição, razão pela qual a

atividade jurisdicional é direta ou indiretamente decorrente da Constituição.

Mas aqui não há como se conceber a Constituição como um documento que, logo

após promulgado, pudesse ser considerado pronto e acabado. Evidentemente as Constituições,

em regra, admitem alterações de seu texto por intermédio das emendas. Mas não é este o

problema.

O que se quer afirmar, em verdade, é que a Constituição, ao ser publicada em 5 de

outubro 1988, longe de ter encerrado um ciclo, em verdade deu início a um novo ciclo, cujos

caminhos a se trilhar e o desfecho a se atingir eram totalmente imprevisíveis. Ainda que a

Constituição tenha concluído um processo democrático para formar um novo Estado

brasileiro, a partir dela iniciou-se uma nova etapa. Isto, porque, os fenômenos culturais

compõem um processo dinâmico e interminável de conexões entre fatos e valores. Significa

que a Constituição de 1988, ao ser promulgada, era algo inacabado.

O texto original da Constituição de 1988, portanto, foi apenas e tão somente o

ponto de partida para a construção efetiva do que se pode entender por Constituição. A

verdadeira definição da Constituição de 1988 é apurada não apenas pelo seu texto, mas

também pela vivência que se faz dela, ou seja, a experiência prática onde se exige aplicar seus

postulados a situações concretas, que por seu turno, dão ensejo à atividade interpretativa.

Aqui está a riqueza da fonte judicial do direito, no contexto da dinâmica culturalista e

tridimensional, conforme a abordagem realizada no início deste trabalho.

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40

Mas considerando que neste estudo busca-se decifrar o perfil ideológico dos

juízes, tendo a Constituição como pano de fundo inspirador, há de se ponderar, previamente,

que a própria Constituição ostenta determinadas cargas ideológicas preponderantes. Logo,

antes de se aprofundar na temática da ideologia adotada pelos magistrados, é necessário tecer

algumas observações acerca das diretrizes ideológicas da Constituição de 1988.

Miguel Reale dá algumas pistas para desvendar tal questão em sua monografia “O

Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias”75, oportunidade em que traça um

panorama geral das ideologias contemporâneas.

Após uma análise concisa, mas ampla, do panorama político mundial no final do

século XX, Reale caracteriza a Constituição de 1988 como adepta de um modelo que

denomina social-liberalismo, o qual opta por conciliar valores, no contexto do que entende

representar uma “convergência de ideologias”76.

A Constituição de 1988, sob este ponto de vista, encontra suporte em dois valores

primordiais, que devem ser conjugados para se obter a vertente ideológica definida para o

Estado brasileiro.

Estes valores são a livre concorrência e a defesa do consumidor, extraídos das

normas estabelecidas nos incisos IV e V do artigo 170 da Lei Maior, constante de capítulo

dedicado à ordem econômica77. A livre concorrência, aqui, é representativa do ideal liberal; a

defesa do consumidor, por sua vez, simboliza os interesses coletivos. Esta síntese

representaria a ideia de que “o liberalismo se socializou e o socialismo se liberalizou”78.

Na visão de Reale, estes valores normatizados são o reflexo das ideologias liberal

e social que, malgrado provenientes de origens diversas, considera passíveis de

compatibilização79.

Nesse aspecto, Reale diverge diametralmente de Bobbio, pois o jusfilósofo

italiano, ao distinguir esquerda e direita, considerando aquela mais igualitária e esta última

menos, sugere a hipótese de opostos inconciliáveis, o que destoa completamente desta ideia

de convergência de ideologias. Quanto a esse ponto de discórdia, Reale se manifesta:

O certo, todavia, é que o eleitorado não se contenta mais com contraposições

abstratas entre “Direita” e “Esquerda”, como, por exemplo, a apresentada por

Norberto Bobbio, para quem a igualdade continuaria sendo o valor dominante dos

“progressistas”, ao passo que a liberdade seria o objetivo essencial dos

75 REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o conflito das ideologias. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2005. 76 REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o conflito das ideologias. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.43. 77 REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o conflito das ideologias. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.44. 78 REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o conflito das ideologias. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.90. 79 REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o conflito das ideologias. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.45.

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“conservadores”, o que, se é certo, não basta para delimitar com segurança os

campos das teorias políticas. Muito embora tenha por Bobbio a maior consideração,

mesmo porque, como ele me escreveu, coincidimos em muitos pontos, tanto nos

domínios da Filosofia como nos do Direito, parece-me que dizer que a Esquerda tem

preferência pela igualdade, e não pela liberdade, não justifica a persistência de uma

contraposição entre os dois valores, nem tampouco que todos os liberais façam

abstração da questão social, problema este já abordado no Capítulo III do presente

livro. A convergência das ideologias parece-me, assim, incontestável.80

Portanto, para Miguel Reale, o espírito da Constituição brasileira tem como

fundamento a liberdade de iniciativa, garantindo-se, entretanto, a intervenção do Estado na

medida necessária, como forma de proteger o cidadão dos abusos praticados pelo poder

econômico, numa síntese denominada social-liberalismo81.

Retomando a análise deste panorama político e ideológico de acordo com as

posições adotadas no âmbito da magistratura nacional, verifica-se certa conexão desse social-

liberalismo propugnado por Reale, com a simultânea identificação dos juízes com o

“legalismo”, de um lado, e com as “consequências sociais das decisões judiciais”, de outro.

A legalidade representa o ideal liberal em sua essência, enquanto as

consequências sociais das decisões, evidentemente, relacionam-se com esse elemento

“social”. A legalidade almeja imprimir precisão milimétrica aos comportamentos, como

forma de se estabelecer limites e impor rédeas ao Estado, garantindo maior previsibilidade e

também, maior estabilidade ao sistema político e econômico existente. Já a preocupação com

as consequências sociais das decisões reflete um posicionamento dos juízes que transcende a

mera legalidade, indicando a busca por uma solução que não traga prejuízos sociais, ainda que

não adequada plenamente aos contornos legais.

Aqui, constata-se que o “legalismo” tem como princípio a ideia de estabilidade,

segurança, e, portanto, conservação de determinados padrões estabelecidos socialmente. Essa

postura mostra-se, então, mais afinada com a “direita” apontada por Norberto Bobbio.

80 REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o conflito das ideologias. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.90. 81 Conforme observa Reale: “o excesso de disposições constitucionais vigentes exige por parte dos políticos e juristas

brasileiros cuidadoso trabalho hermenêutico, a fim de situarmo-nos com objetividade e em unitária visão de conjunto. Nessa

ordem de ideias, em sintonia com o entendimento já firmado pelo Supremo Tribunal Federal, devemos partir de dois

objetivos conjugados, complementarmente no art.170 da Carta, tidos como princípios da ordem-econômica: a livre

concorrência e a defesa do consumidor. É essa a díade que nos dá o efeito sentido ideológico de nossa Constituição, a qual

situa o valor da livre iniciativa em harmonia com os interesses coletivos. Se ela é conceituada, no parágrafo único do mesmo

art.170, como liberdade econômica ou liberdade de empresa, esta não representa, todavia, um valor absoluto, pois deve

respeitar os direitos do consumidor. Não se confunda, no entanto, a defesa do consumidor com a preservação de uma

igualdade maciça e indiferençada, pois consumidores somos todos nós, nas mais diferentes categorias sociais, desde os mais

ricos aos mais pobres, dos velhos às crianças. Respeitar-lhes os direitos, dando a cada um o que é seu, e, por conseguinte, um

imperativo de justiça, que leva em conta uma pluralidade de situações distintas. Como se vê, a Carta Magna não consagra o

liberalismo infenso à justiça social, mas sim o social-liberalismo, segundo o qual o Estado também atua como agente

normativo e regulador da atividade econômica, muito embora sem se tornar empresário, a não ser nos casos

excepcionalíssimos previstos no art.173, por imperativos de segurança nacional, ou relevante interesse coletivo definido em

lei. (REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o conflito das ideologias. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.44-

45).

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De outro lado, a preocupação com as consequências sociais traduz uma pretensão

dos juízes de promoverem maior igualdade por intermédio de suas decisões, a denotar um

intuito transformador, numa busca por desconstruir os padrões vigentes como forma de se

obter mais igualdade, o que se identifica com a “esquerda” proposta por Bobbio,

relacionando-se, também, com o que se entende por “ativismo judicial”.

Nos capítulos subsequentes, buscar-se-á desenvolver de maneira mais analítica as

bases ideológicas que sustentam essas posturas, tanto “legalista” quanto “social”, cuja adoção

é simultaneamente acolhida pela maioria esmagadora dos magistrados, conforme pesquisa da

AMB. Para tanto, será trazido um apanhado histórico hábil a esclarecer a formação destes

valores na mentalidade dos juízes brasileiros do século XXI.

Como pano de fundo, tem-se a Constituição Federal de 1988, que surgiu com este

perfil social-liberal, conforme delineamento feito por Reale, mas que é construída dia a dia,

em especial pelas decisões judiciais que a moldam, e tem como protagonista-mor o Supremo

Tribunal Federal, corte constitucional por excelência.

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4 PREMISSAS IDEOLÓGICAS DO “LEGALISMO”: O POSITIVISMO

JURÍDICO COMO FUNDAMENTO DA SEGURANÇA JURÍDICA

4.1 O “valor” da segurança

Conforme já observado, duas tendências são marcantes na atual conjuntura da

atividade jurisdicional do Brasil: o “legalismo” e o “ativismo judicial”.

Neste capítulo, será analisada a primeira delas, cuidando-se, portanto, de apurar as

premissas que justificaram a formação de uma cultura “legalista” no Judiciário nacional,

adotando-se como parâmetro de estudo a visão tridimensional de Miguel Reale, ou seja, do

direito como fenômeno cultural decorrente da relação dialética entre fato, valor e norma.

Antecipadamente, é possível detectar que o valor preponderante da visão

“legalista” do direito é o da busca pela segurança, razão pela qual importa trazer algumas

digressões acerca do tema.

A segurança representa, mais do que um valor, verdadeiro instinto de

sobrevivência para a humanidade. Trata-se, portanto, de objetivo primordial. Viver sob

permanente sobressalto é algo que sempre atemorizou o ser humano.

De fato, na história da humanidade, a luta pela sobrevivência sempre foi árdua, e

as circunstâncias impuseram aos homens que se unissem em grupos e tribos com o propósito

de protegerem-se mutuamente, evitando, dentro das possibilidades, a ocorrência do mal

maior, qual seja, a morte82.

Diante destas circunstâncias, a própria organização política da sociedade teve seu

desenvolvimento alavancado pela busca da segurança.

4.2 A segurança em sua concepção absolutista. A visão de Hobbes

Thomas Hobbes, filósofo nascido na Inglaterra em 5 de abril de 1588 e falecido

no mesmo país em 1679, soube traduzir com grande proficiência esse espírito de avidez do ser

humano pela busca da segurança, conforme é possível extrair de sua obra mais consagrada,

“O Leviatã”, publicada em 1651.

Hobbes explicitou as ideias desenvolvidas em “Leviatã” tomando como parâmetro

inicial o que denominou “estado de natureza”, que representaria, em síntese, a forma de vida

dos agrupamentos humanos numa fase prematura da sociedade, num período no qual não

havia organização política.

82 BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. 2.ed. São Paulo: Fundamento, 2012, p.09-10.

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44

Nesta etapa precária do desenvolvimento humano, segundo Hobbes, o pressuposto

é de que homens são iguais, pois, a despeito de eventuais disparidades de porte físico ou de

padrão de inteligência existentes, tais circunstâncias não garantem vantagens ou benesses de

uns em detrimento de outros83.

Isto quer dizer, eventual superioridade física de alguns não sustenta a hegemonia

ou incolumidade permanente, pois a fragilidade dos inicialmente subjugados poderia ser

superada mediante a cooptação de aliados, ou o planejamento de emboscadas ou artimanhas

sub-reptícias 84.

Essa igualdade pressuposta entre todos os homens implica na similaridade de

desejos e pretensões. Desta identidade de desejos e, considerando-se a escassez de bens

existente no mundo material, surge a necessidade de disputa entre muitos pela mesma coisa, o

que gera a inimizade e a desconfiança recíproca85.

Para Hobbes, dentre as principais causas da discórdia entre os homens está a

desconfiança. Nesse ambiente de desconfiança de todos contra todos, o melhor antídoto é

buscar subjugar os que possam de alguma forma representar uma ameaça, durante o tempo

necessário para que o risco seja afastado. Portanto, o simples ato de defesa não é suficiente

para garantir a própria segurança. Para evitar o infortúnio, é necessário realizar ataques e

invasões86.

Segundo o filósofo, “durante o tempo em que os homens vivem sem um poder

comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se

chama guerra”87.

Nessa conjuntura, o homem vive em constante sobressalto, numa realidade repleta

de medo e de incerteza acerca do futuro: “a vida do homem é solitária, pobre, sórdida,

embrutecida e curta”88.

Nesse precário estado de natureza, os conceitos de justiça e propriedade sequer

podem existir, pois instalado o caos decorrente da condição de guerra de todos contra todos,

cada um buscará valer-se de tudo o que estiver disponível para preservar sua vida contra os

83 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção “Os Pensadores”. São

Paulo: Abril Cultural, 1974, p.78. 84 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção “Os Pensadores”. São

Paulo: Abril Cultural, 1974, p.78. 85 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção “Os Pensadores”. São

Paulo: Abril Cultural, 1974, p.78. 86 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção “Os Pensadores”. São

Paulo: Abril Cultural, 1974, p.79. 87 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção “Os Pensadores”. São

Paulo: Abril Cultural, 1974, p.79. 88 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção “Os Pensadores”. São

Paulo: Abril Cultural, 1974, p.80.

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inimigos, levando à conclusão de que, no estado de natureza, o homem tem direito a todas as

coisas89.

No entanto, ao se admitir que o homem tem direito a tudo, conclui-se, a contrario

sensu, que não tem direito a nada, pois não há como ser considerado proprietário de algo que

pode ser tomado por terceiros a qualquer momento. Por esta razão, enfatiza Hobbes que “não

há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem

aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de conservá-lo”90.

A ideia de propriedade, ou a definição de um critério de justiça ou injustiça, não

prescinde, portanto, de um poder que esteja acima dos caprichos ou vontades individuais, apto

a causar temor pelo sofrimento de uma sanção na hipótese de descumprimento das

determinações estabelecidas.

Sem essa força superior às vontades individuais, é inviável cogitar a existência de

direitos, e, por consequência, a alienação destes direitos, o que ocorre por intermédio dos

contratos.

Ora, sem qualquer força cogente, as palavras estabelecidas em determinado

contrato não se mostram aptas a gerar obrigatoriedade de cumprimento91, pois “os pactos sem

a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém”92.

Portanto, os contratos só ostentam a característica de obrigatoriedade sob a

vigência de um Estado Civil, dado que, no estado de natureza, o cumprimento das cláusulas

estabelecidas contratualmente dependem da mera confiança, sem garantia alguma de

reciprocidade93.

Na visão de Hobbes:

Para que as palavras “justo” ou “injusto” possam ter lugar, necessária alguma

espécie de poder coercitivo, capaz de obrigar igualmente os homens ao cumprimento

dos seus pactos. Mediante o terror de algum castigo que seja superior ao benefício

que esperam tirar do rompimento do pacto94.

89 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção “Os Pensadores”. São

Paulo: Abril Cultural, 1974, p.82. 90 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção “Os Pensadores”. São

Paulo: Abril Cultural, 1974, p.81. 91 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção “Os Pensadores”. São

Paulo: Abril Cultural, 1974, p.85. 92 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção “Os Pensadores”. São

Paulo: Abril Cultural, 1974, p.107. 93 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção “Os Pensadores”. São

Paulo: Abril Cultural, 1974, p.84. 94 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção “Os Pensadores”. São

Paulo: Abril Cultural, 1974, p.90.

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Portanto, resta ao homem, diante da situação de miséria decorrente da permanente

condição de guerra no estado de natureza, abdicar da própria liberdade e “conferir toda sua

força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas

vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade”95.

Hobbes adota, assim, uma visão contratualista acerca da formação do Estado,

contrato este que envolveria todos os homens reciprocamente, e ostentaria o seguinte teor:

“Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta

assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de

maneira semelhante todas as suas ações”96.

Esta perspectiva contratualista denota o caráter meramente relativo e convencional

do conceito de justiça, já que a definição do que é justo ou injusto fica a depender da decisão

do poder soberano, circunstância configuradora do embrião do positivismo jurídico. Hobbes é

considerado, portanto, o precursor desta corrente jusfilosófica 97.

A despeito da visão contratualista, simultaneamente, Hobbes defende o modelo

absolutista de Estado, o que tende a parecer contraditório, já que a liberdade de manifestação

de vontade que se deduz do contratualismo opõe-se completamente ao autoritarismo e à

concentração de poderes tão peculiares ao absolutismo.

Aliás, esse ponto de vista absolutista é bem definido no próprio conceito de

Estado apresentado em “Leviatã”:

(Estado é) uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos

recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela

poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente,

para assegurar a paz e a defesa comum.98

Do conceito acima é possível extrair a ideia de Estado forte que Hobbes propõe,

ao defender ampla concentração de poderes nas mãos do soberano. Frise-se que, nesta

concepção, é autorizado ao soberano valer-se da força e de todos os recursos disponíveis para

garantir a paz.

Esta ideia é realçada com a mesma densidade em outra passagem de “Leviatã”,

ocasião em que Hobbes, ao tratar das prerrogativas do soberano, salienta, enfaticamente, que a

95 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção “Os Pensadores”. São

Paulo: Abril Cultural, 1974, p.109. 96 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção “Os Pensadores”. São

Paulo: Abril Cultural, 1974. 97 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p.34. 98 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção “Os Pensadores”. São

Paulo: Abril Cultural, 1974, p.110.

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este é dado dispor de todos os meios necessários para alcançar os fins almejados, ou seja, para

se garantir a paz social:

Visto que o fim dessa instituição é a paz e a defesa de todos, e visto que quem tem

direito a um fim tem direito aos meios, constitui direito de qualquer homem ou

assembleia que detenha a soberania o de ser juiz tanto dos meios para a paz e a

defesa quanto de tudo o que possa perturbar ou dificultar estas últimas. E o de fazer

tudo o que considere necessário ser feito, tanto antecipadamente, para a preservação

da paz e da segurança, mediante a prevenção da discórdia no interior e da hostilidade

vinda do exterior, quanto também, depois de perdidas a paz e a segurança, para a

recuperação de ambas.99

De tudo o que foi exposto a respeito do pensamento de Hobbes, especialmente nas

ideias retratadas em “Leviatã”, conclui-se que o filósofo explicitou de maneira única e

original a importância do Estado e de suas instituições como um instrumento necessário à

segurança e paz social.

Fábio Konder Comparato analisou o raciocínio de Hobbes, salientando a

relevância da segurança e da paz como objetivos a serem perseguidos na idealização da

sociedade organizada, nos seguintes termos:

a sociedade política, que à época costumava denominar-se república (vocábulo

traduzido literalmente por “commonwealth” em inglês), foi criada como único meio

de superação do estado natural de guerra de todos contra todos. A sua instituição

pressupõe, pois, logicamente (mas não historicamente), a existência de um pacto

fundamental, pelo qual todos os homens alienam sua energia e bens a uma só

pessoa, ou a uma assembléia, a fim de que essa pessoa ou assembléia os proteja e

defenda contra os riscos que envolvem a vida de cada um. O único direito natural

que os indivíduos conservam é o de autopreservação. Somente com base nele o

Estado é criado, e o governo pode exigir de todos uma obediência absoluta.100

Enfim, conforme Hobbes, a sociedade estabelecida em um corpo organizado, sob

a ordem de uma (ou várias) autoridade(s), denominou-se Estado, entidade fictícia cuja criação

deu-se em virtude do incontestável instinto de proteção existente na humanidade.

De fato, a submissão de todos às ordenações de um ser maior e mais poderoso,

denominado Estado, viabilizou a criação de um ambiente calcado na estabilidade, o que

garantiria, em tese, segurança aos súditos, que passariam então a sentir-se protegidos.

Entretanto, malgrado a existência da autoridade estatal tenha propiciado

incomensuráveis benefícios, estabelecendo regras de conduta a todos os súditos e impondo

sanções na hipótese de descumprimento, não se mostrou hábil a solucionar todos os

99 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção “Os Pensadores”. São

Paulo: Abril Cultural, 1974, p.113. 100 COMPARATO, Fábio Konder. Ética – direito, moral e religião no mundo moderno. 3ª reimpressão. São Paulo:

Companhia das Letras, 2006, p.210.

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problemas. O suposto ambiente seguro estabelecido sob a égide da lei e da ordem, ao final das

contas, ficou vulnerável às intempestividades da própria figura do seu representante supremo:

o soberano.

Ora, ao se conceder e concentrar todo o poder político nas mãos de uma única

pessoa ou único grupo, evidentemente surge o risco desta pessoa ou grupo abusar deste poder,

cometer arbitrariedades que resultam em insegurança para todos e frustrar o objetivo inicial da

criação do Estado, que consiste exatamente na garantia de segurança.

Conforme pontua Comparato,

o novo modelo de vida assim proposto, porém, encobria um perigo manifesto: se

todo o poder político se concentra na cabeça do organismo social, ou governados

ficam permanentemente sujeitos às crises de loucura dos governantes, ou, o que é

muito pior, à institucionalização da falta de critério ético como forma de governo.

Valerá a pena pagar, pela ordem e pela estabilidade política, condição indispensável

de bons negócios, um preço tão elevado?101

Desta feita, se por um lado a organização política da sociedade mostrou-se

imprescindível para garantir uma convivência minimamente estável entre as pessoas, com a

submissão de todos à força superior do Estado, é certo que o modelo absolutista, caracterizado

pela concentração de todo o poder nas mãos de um soberano, não ofereceu resultado

satisfatório para a segurança verdadeiramente almejada.

Portanto, as ideias de Hobbes não venceram a barreira do tempo, tornando-se

objeto de inúmeras críticas, especialmente por servirem como fundamento para regimes

ditatoriais.

Não obstante, deve-se salientar o contexto histórico em que suas ideias foram

desenvolvidas, pois o século XVII na Inglaterra foi marcado por inúmeros conflitos,

motivados por circunstâncias de cunho político e religioso.

Neste período, a monarquia inglesa, então conduzida pela dinastia Stuart, passou a

ser ameaçada por uma seita de religiosos protestantes criada em 1644, os “puritanos”, e

liderada por Oliver Cromwell102. Esta seita buscava aniquilar o regime monárquico vigente,

cuja vinculação com o catolicismo romano era evidente, sob o lema “No Bishop, no King”103.

Cromwell e suas tropas deflagraram uma verdadeira guerra civil, marchando a

Londres no ano de 1645, quando então, aproveitando-se da fragilidade da monarquia em

decorrência dos permanentes conflitos com o parlamento, derrotaram as tropas reais, a ensejar

101 COMPARATO, Fábio Konder. Ética – direito, moral e religião no mundo moderno. 3ª reimpressão. São Paulo:

Companhia das Letras, 2006, p.203-204. 102 DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.159. 103 COMPARATO, Fábio Konder. Ética – direito, moral e religião no mundo moderno. 3ª reimpressão. São Paulo:

Companhia das Letras, 2006, p.210.

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a fuga do Rei Carlos I, que apesar de buscar exílio na Escócia, foi ao final recapturado, e, por

derradeiro, decapitado no ano de 1649104.

A partir de então, instalou-se um regime ditatorial sob o comando de Cromwell,

intitulado Lord Protector, no qual, além de extinta a monarquia, foi suprimida a Câmara dos

Lordes, setor do parlamento composto por integrantes da nobreza. Posteriormente, até mesmo

a Câmara dos Comuns foi eliminada por Cromwell. Este regime durou de 1649 a 1660,

quando, então, a monarquia foi restabelecida, com o retorno dos Stuart ao poder.

Hobbes presenciou todo esse período político conturbado na Inglaterra,

posicionando-se sempre ao lado do poder monárquico, do qual era partidário. Nesse ambiente,

as ideias desenvolvidas em “Leviatã” devem ser contextualizadas, já que o “estado de

natureza”, mais do que uma mera situação abstrata criada para embasar um raciocínio

filosófico, consistiu na própria realidade da guerra civil vivenciada na Inglaterra.

A corroborar, observa Norberto Bobbio:

Quando Hobbes descreve o estado de natureza não pensa numa condição hipotética

ou, de qualquer maneira, pré-histórica da humanidade, mas tem diante de sua própria

mente o estado de guerra civil, quando o poder central se dissolve e, devido às lutas

intestinas, acabam por faltar a ordem e a paz. A guerra civil é para Hobbes um

retorno ao estado de natureza. Pois bem, ele, para reagir a tal estado, escreve suas

obras com a intenção de contribuir para devolver a paz e a ordem ao seu país e à

Europa.105

De qualquer forma, deve-se registrar que a principal finalidade do modelo

absolutista proposto por Thomas Hobbes consistia em garantir segurança aos súditos ou

governados.

Contudo, esta segurança buscada se referia exclusivamente aos interesses

envolvendo os próprios súditos entre si, e não perante o Estado. A proteção conferida

limitava-se, portanto, aos ilícitos praticados pelos particulares, como, por exemplo, o esbulho,

o furto, a agressão e o estupro. A incolumidade física e patrimonial oferecida tinha por objeto

apenas a ação ilícita dos demais súditos, havendo, de outra sorte, a completa

irresponsabilidade do Estado.

Mas o conceito de segurança deve ser analisado sob todos os aspectos: seja a

garantia de incolumidade física em contraposição aos outros particulares, seja contra os

próprios agentes estatais; seja a garantia de que ninguém terá a liberdade privada salvo por

critérios previamente estabelecidos, ou de que ninguém terá sua propriedade invadida e

104 DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.159. 105 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p.37.

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tampouco seu patrimônio apropriado por outrem, salvo situações excepcionais previamente

definidas.

Dessa insuficiência surge a necessidade de se ampliar o âmbito da proteção

estatal, de maneira a se propiciar segurança contra as investidas arbitrárias do próprio Estado,

o que dá ensejo ao surgimento do conceito de segurança jurídica.

4.3 A segurança em sua concepção liberal. A visão de Locke

Conforme observado, a segurança jurídica visa evitar as “surpresas” das ações do

Estado, como as imposições tributárias repentinas ou prisões decorrentes de crimes

desconhecidos. Daí o nascedouro do princípio da legalidade, ou seja, a exigência de lei

formalmente elaborada pelo órgão competente, como requisito necessário à restrição da

liberdade e propriedade dos cidadãos. Do princípio da legalidade decorreram diversos outros

princípios: a anterioridade da lei tributária, a irretroatividade da lei penal, o direito adquirido,

o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

A plataforma da segurança jurídica alinha-se à configuração do Estado moderno,

que, superando as falhas detectadas na concepção do absolutismo “hobbesiano”, pautou-se em

diversos fatores históricos, econômicos e sociais que desencadearam o liberalismo político.

Um dos principais adeptos e propagadores das ideias liberais foi o inglês John

Locke (1632-1704), conterrâneo e contemporâneo de Thomas Hobbes.

Com efeito, Locke esteve do lado oposto de Hobbes nos conflitos ocorridos

durante o século XVII na Inglaterra, combatendo o absolutismo vigente pelos reinados da

dinastia Stuart, especialmente no período posterior a sua restauração, ou seja, após os anos de

interrupção decorrentes da vigência do protetorado de Cromwell.

No palco da história, as ideias defendidas por Locke acabaram se tornando

vitoriosas, tendo em vista que em 1688, na Inglaterra, ocorreu a Revolução Gloriosa, ocasião

em que o Rei Carlos II, da dinastia Stuart, foi deposto, permitindo-se a ascensão de Guilherme

de Orange, que com sua esposa Maria, assumiu a monarquia, incorporando ao reinado os

valores burgueses do liberalismo.

Locke toma o mesmo pressuposto adotado por Hobbes, tratando logo no início da

obra “Segundo Tratado sobre o Governo” do estado de natureza, que seria precedente ao

Estado organizado politicamente.

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No entanto, embora o pressuposto seja o mesmo, a conclusão é absolutamente

diversa, pois Locke, ao contrário de Hobbes, não considera o estado de natureza como um

estado de guerra de todos contra todos.

Para Locke, o estado de natureza consiste, em síntese, num estado onde os

homens são naturalmente livres e iguais, e diante dessa liberdade e igualdade, podem valer-se

dos meios necessários para suprir suas necessidades de sustento e conforto, surgindo daí a

ideia de propriedade106.

Mas o estado de natureza não é a ausência plena de regras, visto que o

comportamento dos homens é regido pela lei da natureza, fundada na razão humana, e cujo

teor consubstancia-se no mandamento de que “nenhum deles (os homens) deve prejudicar a

outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses”107. Trata-se, portanto, de ideia

fundamentada no jusnaturalismo.

Assim, na perspectiva de Locke, não há que se confundir o estado de natureza

com o estado de guerra. O estado de guerra, para este filósofo, traduz uma situação

excepcional de violação das leis da natureza praticada por determinado homem, contra o

patrimônio, liberdade ou integridade física de outro homem108, e acaba justificando ações de

revide em legítima defesa109.

Estas situações excepcionais de “estado de guerra” existem tanto no estado de

natureza quanto nas sociedades organizadas politicamente. Em ambas são admitidas ações de

legítima defesa para afastar o perigo desencadeado. Mas a vantagem das sociedades

organizadas politicamente, para Locke, consiste no fato de que o lesado tem direito a recorrer

a uma autoridade superior com poderes necessários a reparar os prejuízos suportados e afastar

definitivamente a situação de perigo.

Conforme raciocínio de John Locke:

o objetivo da sociedade civil consiste em evitar e remediar os inconvenientes do

estado de natureza que resultam necessariamente de poder cada homem ser juiz em

seu próprio caso, estabelecendo-se uma autoridade conhecida para a qual todos os

membros dessa sociedade podem apelar por qualquer dano que lhe causem ou

controvérsia que possa surgir, e à qual todos os membros dessa sociedade terão de

obedecer.110

106 LOCKE, John. O segundo tratado sobre o governo – ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e objetivo do

governo civil. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.51. 107 LOCKE, John. O segundo tratado sobre o governo – ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e objetivo do

governo civil. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.42. 108 LOCKE, John. O segundo tratado sobre o governo – ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e objetivo do

governo civil. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.46. 109 LOCKE, John. O segundo tratado sobre o governo – ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e objetivo do

governo civil. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.47. 110 LOCKE, John. O segundo tratado sobre o governo – ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e objetivo do

governo civil. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.74.

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Neste ponto, a visão de Locke, numa análise superficial, ostentaria semelhança

com a visão de Hobbes, no sentido de que o estado de natureza seria insuficiente para impedir

ações de violência, ante a ausência de uma autoridade superior que pudesse estabelecer a lei e

a ordem. Esta ideia remeteria à sentença de Hobbes, no sentido de que “os pactos sem a

espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém”.

Porém, exatamente neste ponto é possível constatar uma notável divergência entre

os posicionamentos de ambos os filósofos. Isso porque Locke faz direta e veemente crítica às

monarquias absolutistas, tão defendidas por Hobbes.

Na perspectiva de Locke, a vida sob a regência das monarquias absolutistas em

nada difere da vida desgovernada do estado de natureza. Explica-se: considerando que a

conquista de se viver numa sociedade política organizada consiste especificamente no fato

dos governados poderem recorrer a uma autoridade superior, imparcial e isenta, na hipótese

de ocorrer violação a determinado direito, esta conquista teria sido aniquilada quando a

pretensa reparação deve ser promovida em face do próprio governo monárquico, pois, estando

todos os poderes concentrados nas mãos de um déspota, presume-se que não haverá qualquer

assunção de responsabilidade por parte deste. Portanto, em se tratando de governo regido por

monarquia absolutista, está inviabilizada qualquer garantia dos súditos contra as ações

arbitrárias do Estado, a implicar numa situação similar à situação do estado de natureza: o

total desamparo.

Sobre este tema, Locke traz ao debate as premissas da separação de poderes como

instrumento necessário ao controle jurídico do poder político e a prevenção da arbitrariedade

do Estado:

Supondo-se que tenha ele (o príncipe) concentrado em si todo o poder, não só o

legislativo como executivo, não se achará qualquer juiz, e ninguém deparará com a

possibilidade de apelar para quem decida imparcial e indiferentemente e com

autoridade e de cuja decisão possa esperar-se remédio e reparação para qualquer

dano ou transtorno, causado pelo príncipe ou por sua ordem; de sorte que um

homem desses, embora intitulado “czar” ou “grão-senhor”, ou como quiserem,

encontra-se tanto no estado de natureza tendo tudo sob seu domínio como ele

próprio está para com o resto dos homens, pois sempre que existem dois homens

sem qualquer regra estabelecida ou juiz comum para o qual apelar na Terra para a

resolução de controvérsias de direito entre eles, estarão ainda no estado de natureza,

e sob todos os inconvenientes deste, somente com esta deplorável diferença para o

súdito, ou antes, escravo, de príncipe absoluto: enquanto no estado ordinário de

natureza possui a liberdade de julgar do seu direito e, conforme lhe for possível de

acordo com suas forças, sustentá-lo, sempre que lhe invadam a propriedade por

ordem ou vontade do monarca, não terá meios de apelar como os que estão em

sociedade devem ter, como se estivesse degradado do estado comum de criaturas

racionais, mas nega-se-lhe ainda a liberdade de julgar ou defender o próprio direito,

ficando assim exposto a toda miséria e transtornos que um homem pode temer por

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parte de quem, encontrando-se em estado irrestrito de natureza, está ainda por cima

corrompido pela lisonja e revestido de poder.111

Da passagem acima, portanto, extrai-se a defesa da submissão de todos, inclusive

do monarca e demais apaniguados, aos ditames das leis, leis estas que devem ser elaboradas

por corpo coletivo112 autônomo, e na hipótese de conflitos de interesses entre governantes e

súditos, deve ser possível provocar autoridade imparcial e isenta para solucionar a contenda,

trazendo, neste aspecto, as bases justificadoras de um Judiciário independente.

Diante disto, no plano filosófico a oposição entre as ideias de Hobbes e Locke é

evidente: se para Hobbes a solução dos males da sociedade decorre da necessidade de um

Estado forte e com poderes ilimitados, na visão de Locke o raciocínio é inverso: a origem dos

males decorre exatamente do excesso de poder do Estado113.

Enfim, os escritos de John Locke ostentaram inquestionável relevância em sua

época, inspirando a defesa dos ideais liberais e de luta contra o absolutismo, cujo conjunto de

propostas serviu como fermento para desencadear o fato histórico que se revelou símbolo

maior dos ideais iluministas: a Revolução Francesa de 1789.

De qualquer sorte, considerando-se a temática principal deste tópico – a segurança

como valor a ser preservado e, na medida do possível, reforçado –, inquestionável que o

modelo liberal veio aperfeiçoar o modelo absolutista, oferecendo maiores instrumentos ao

cidadão contra investidas em detrimento do seu patrimônio, incolumidade e liberdade.

Importa analisar quais foram esses instrumentos agregados pelas ideias liberais

que trouxeram maior segurança ao cidadão.

Primeiramente, de se destacar a sedimentação da ideia de Constituição,

consubstanciada numa lei superior onde são desenvolvidos os pressupostos da organização

política do Estado, com limites à atuação de seus agentes e órgãos, definindo-se direitos

básicos ao cidadão e os respectivos instrumentos para sua viabilização.

No entanto, a simples existência da Constituição não é o bastante. É necessário

que em seu conteúdo esteja prevista a separação entre as funções do Estado, como também

um sistema de controle e fiscalização recíprocos entre os diversos órgãos. Note-se que a

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, fruto direto da

Revolução Francesa, estabeleceu como requisito substancial de uma Constituição a separação

111 LOCKE, John. O segundo tratado sobre o governo – ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e objetivo do

governo civil. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.74-75. 112 LOCKE, John. O segundo tratado sobre o governo – ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e objetivo do

governo civil. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.76. 113 COMPARATO, Fábio Konder. Ética – direito, moral e religião no mundo moderno. 3ª reimpressão. São Paulo:

Companhia das Letras, 2006, p.217.

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de poderes, conforme artigo 16: “Toda a sociedade em que a garantia dos direitos não é

assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem em absoluto constituição.”

A separação das funções de Estado garante que o órgão responsável pela

elaboração das leis não seja o mesmo responsável pela execução das políticas públicas, ou

seja, evita a concentração de poder nas mãos de uma pessoa ou grupo. Esse poder, estando

diluído, torna-se menos autoritário.

Além das funções executiva e legislativa, também há a função judiciária, que

consiste na análise dos conflitos de interesse existentes na sociedade que, por não serem

espontaneamente solucionados entre os envolvidos, exigem a intervenção do Estado.

O exercício da função judiciária também se insere nesse contexto da separação de

poderes, pois o julgador das contendas não pode se confundir com o órgão que produz as leis,

e tampouco com o executor das leis. Uma das características mais importantes da função

judiciária é sua imparcialidade, que pressupõe o afastamento dos interesses envolvidos,

circunstância que justifica a vedação de que os juízes se imiscuam nas atividades legislativas

ou executivas. Por tal razão, na visão liberal, o juiz deve ser um mero reprodutor dos termos

cunhados na lei.

Conforme o entendimento de Bobbio, “a subordinação dos juízes à lei tende a

garantir um valor muito importante: a segurança do direito, de modo que o cidadão saiba com

certeza se o próprio comportamento é ou não conforme à lei”114.

Por derradeiro, essa separação de poderes há de ser qualificada por um sistema de

freios e contrapesos, que permite o controle recíproco das ações estatais, inibindo excessos

por parte de quaisquer dos atores políticos, circunstância que também confere segurança

jurídica ao cidadão, que assim estará melhor protegido contra eventuais abusos.

Portanto, promulgando-se uma Constituição na qual conste a separação entre os

poderes, e, especialmente, fixando-se um sistema de freios e contrapesos para que os órgãos

da república realizem um controle mútuo, certamente estar-se-á providenciando segurança, no

plano jurídico, aos cidadãos.

Evidentemente toda esta mudança nas bases do Estado, que permitiu a superação

do absolutismo em prol do liberalismo, teve como pano de fundo o substrato econômico,

decorrente da evolução constante do sistema de produção capitalista.

Com efeito, o capitalismo em sua concepção primária baseava-se no comércio de

produtos e adotava o formato denominado mercantilismo. Nesta época, as navegações

marítimas eram impulsionadas a novos continentes, onde as conquistas permitiam formar 114 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p.40.

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impérios ultramarinos, como forma de expandir as opções de matérias primas a serem

transacionadas. Neste período, as monarquias absolutistas vigentes aliavam-se aos

comerciantes navegadores incentivando as expedições. Mas, com o tempo, a imposição dos

monopólios comerciais e a exigência de elevados tributos e restrições, acabou se tornando um

empecilho às atividades da burguesia e ocasionando uma contínua insatisfação.

O desenvolvimento capitalista rumo à etapa industrial gerou ainda maior

discrepância entre as pretensões da emergente burguesia e eventuais imprevisibilidades dos

sistemas políticos autoritários, razão pela qual o modelo liberal mostrou-se, definitivamente,

mais afinado aos rumos da economia capitalista.

Enfim, nesta nova configuração, a intitulada segurança jurídica é o sustentáculo da

estabilidade econômica, e a previsibilidade das decisões políticas e judiciais garante o

panorama adequado ao pleno desenvolvimento das relações negociais, circunstância que

viabiliza a produção de riquezas na iniciativa privada.

Nesse sentido, pertinentes as observações de Alysson Leandro Mascaro acerca

dessa mudança de paradigma do Estado absolutista para o Estado liberal:

Enquanto as primeiras formas capitalistas modernas – mercantilismo,

patrimonialismo – necessitavam de uma associação direta dos interesses capitalistas

com os interesses políticos-econômicos-estatais, daí resultando no Absolutismo, o

momento posterior da evolução capitalista, ao aproximar-se de completar o ciclo da

auto-reprodução econômica por meio da técnica jurídica, vai deixando de lado a

importância da política como arbítrio, sendo esta mesmo um elemento prejudicial à

dinâmica moderna do capitalismo. O Absolutismo, que rompera com o mundo

feudal, que criara mercados nacionais e que, portanto, dera o primeiro impulso à

burguesia, ao final da Idade Média passou a ser seu inimigo.115

Essa relação entre o paradigma da segurança jurídica e a dinâmica que

fundamenta o sistema capitalista de produção também é salientada por Eros Roberto Grau:

Esse direito posto pelo Estado moderno existe fundamentalmente para permitir a

fluência da circulação mercantil, para tentar “domesticar” os determinismos

econômicos. E essa pretensão – de dominar a realidade – expõe marcante

contradição, que pode ser enunciada nos seguintes termos: o capitalismo (leia-se: o

terceiro Estado, a burguesia) necessita da ordem, mas a detesta, procurando a

qualquer custo exorcizá-la!

O direito moderno é racional porque permite a instalação de um horizonte de

previsibilidade e calculabilidade em relação aos comportamentos humanos,

sobretudo aqueles que se dão nos mercados.

Cotidianamente trocamos insegurança por submissão ao poder. Em última instância,

no entanto, a segurança e a certeza jurídicas com que o Estado moderno nos acode

consistem na segurança do/no mercado.116

115 MASCARO, Alysson Leandro. Crítica da legalidade e do direito brasileiro. 2.ed. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.46. 116 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e dos princípios). Refundida

do ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 6.ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p.15-16.

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4.4 O “legalismo” como reflexo de um positivismo jurídico ideológico

Tratou-se, no tópico anterior, da segurança como valor primordial de influência na

cultura legalista que caracteriza boa parte do pensamento jurídico contemporâneo,

especialmente no Brasil.

Procurou-se apresentar as bases históricas dessa cultura “legalista”, esclarecendo-

se as razões da importância da segurança jurídica nos sistemas jurídicos dos países ocidentais,

sobretudo como instrumento de salvaguarda do modo capitalista de produção.

Mas ao se tratar do “legalismo”, termo cunhado por opção metodológica deste

trabalho, não há como não desvinculá-lo da corrente de pensamento “positivismo jurídico”.

Na sequência deste estudo, serão feitas algumas observações acerca dos

propósitos científicos do positivismo jurídico, como forma de demonstrar sua relação com a

cultura do “legalismo”.

Até o momento, neste trabalho, buscou-se conferir ao direito uma tonalidade

axiológica, conforme premissas da Teoria Tridimensional de Miguel Reale, aqui

integralmente adotadas.

Conforme analisado no capítulo inicial, tomando-se como premissa a visão de

Miguel Reale, o direito é parte integrante das ciências culturais, que, por sua vez, distinguem-

se das ciências naturais: aquelas são sustentadas por juízos de valor, enquanto estas por juízos

de fato (ou juízos de realidade).

Pois bem, se de um lado, por tudo o que se expressou até o momento, foi

delineada uma visão da ciência jurídica de conteúdo valorativo, cultural, tem-se no

positivismo jurídico a busca do oposto. Este almeja afastar o elemento “juízo de valor” do

direito, estudando-o da mesma forma como se estudam as ciências naturais117.

O positivismo jurídico busca, em sua essência, apreciar o direito de maneira

avalorativa, para conferir maior objetividade a seu conteúdo, e por consequência, maior

cientificidade.

Em outras palavras, ao retirar-se o elemento “valor” da teoria do direito, extrai-se

seu caráter ideológico, passando-se a examiná-lo como é de fato, e não como “deveria ser”. A

concepção positivista, assim, não aponta qual o melhor direito, o mais justo e adequado,

limitando-se à descrição do direito existente tal como ele é118.

Nesse sentido, esclarece Fábio Konder Comparato:

117 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p.136. 118 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p.223.

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Compete à “ciência do direito”, segundo a concepção positivista, tão só dizer o que

o direito é, sem cuidar minimamente de dizer o que o direito deve ser. Em outras

palavras, os juízos próprios de uma teoria “científica” do direito não são juízos de

valor; são silogismos, ou então puros juízos de fato: tal norma é jurídica porque vem

expressa numa proposição de dever-ser (gênero próximo), contendo a previsão de

uma sanção coativa (diferença específica em relação às demais normas da ordem

social); tal lei é válida porque foi editada pela autoridade competente, segundo o

procedimento para tal fim estabelecido.119

Na mesma linha, Norberto Bobbio, ao comentar o direito pela perspectiva do

positivismo jurídico, assim expõe:

O direito é considerado como um conjunto de fatos, de fenômenos ou de dados

sociais em tudo análogos àqueles do mundo natural; o jurista, portanto, deve estudar

o direito do mesmo modo que um cientista estuda a realidade natural, isto é,

abstendo-se absolutamente de formular juízos de valor. Na linguagem juspositivista

o termo “direito” é então absolutamente avalorativo, isto é, privado de qualquer

conotação valorativa ou ressonância emotiva: o direito é tal que prescinde do fato de

ser bom ou mau, de ser um valor ou um desvalor.120

Portanto, se de um lado o positivismo jurídico, conforme aqui explicitado

brevemente, não é considerado ideológico, não seria possível relacioná-lo com as bases

fundamentadoras da cultura “legalista”, esta inegavelmente sustentada em valores, dentre os

quais, a tão abordada segurança jurídica.

No entanto, a ideia que se tem do positivismo jurídico, conforme propagado e

divulgado corriqueiramente nas obras doutrinárias, nada tem de neutro e avalorativo. Ao que

parece, o positivismo não conseguiu atingir plenamente sua ambição de neutralidade, pois

acabou se transformando não apenas num método de estudo e análise do direito, mas também

numa forma de se querer o direito, com pretensões de aprimoramento de seu conteúdo, como

forma de adequá-lo à determinada concepção ético-política121.

Trata-se de uma degeneração, portanto, do positivismo de linhagem objetiva e

científica. Provavelmente essa degeneração decorra do que foi mencionado nos primeiros

capítulos deste trabalho: por mais que se esforce, é impossível alcançar a neutralidade no

âmbito das ciências humanas.

Assim, diante do caráter ilusório da pretendida neutralidade do positivismo

jurídico, restou a ele o viés ideológico, a caracterizá-lo, portanto, como uma corrente de

pensamento baseada em juízos de valor122.

119 COMPARATO, Fábio Konder. Ética – direito, moral e religião no mundo moderno. 3ª reimpressão. São Paulo:

Companhia das Letras, 2006, p.353. 120 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p.131. 121 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p.224. 122 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p.223.

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Esse positivismo jurídico ideológico ostenta duas vertentes, conforme

classificação realizada por Norberto Bobbio. Ele apresenta um sentido que pode ser

considerado extremista e outro com nuances moderadas123.

Ao se abordar o positivismo ideológico em seu sentido extremado, necessário

retomar a visão absolutista de Thomas Hobbes. Em breve passagem desta pesquisa, foi

mencionado que a teoria desenvolvida por Hobbes, no Leviatã, justificou sua conceituação

como um dos precursores do positivismo jurídico.

Aqui, importa entender a razão.

O período que antecedia a formação dos Estados modernos, ou seja, o período da

Idade Média (476 d.C. a 1453 d.C.), como é de se pressupor, não era marcado pela unidade. A

difusão de agrupamentos, corporações de ofícios, sociedades, feudos, principados, ordens

religiosas, inviabilizavam por completo qualquer pretensão de se padronizar a ordem jurídica

em determinado território 124. Essa difusão e pluralismo, aliada ao forte componente religioso

de origem católica então dominante na cultura europeia, acabou estabelecendo o paradigma

do direito natural.

Este direito natural seria um direito notadamente idealista, cujas premissas

precederiam qualquer ordem jurídica estabelecida pelos homens. As bases religiosas

fortemente fincadas na cultura medieval traziam os fundamentos desse direito superior e

imutável, de origem divina, que serviria de alicerce influenciador do direito falho e inexato

produzido pelos homens. Admite-se, aqui, o dualismo entre uma ordem jurídica ideal e

perfeita (direito natural), e outra real e repleta de equívocos (direito dos homens)125.

Esse paradigma do direito natural vai sendo aos poucos superado com o

nascedouro dos Estados unitários, que marcaram a transição da Idade Média para a Idade

Moderna, trazendo uma nova configuração às relações de poder na Europa. Com efeito, a

unificação dos territórios sob a égide de governos fortes e centralizados foi circunstância apta

a desencadear o fenômeno da monopolização da produção jurídica pelo Estado. 123 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p.230. 124 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p.27: “A sociedade

medieval era uma sociedade pluralista, posto ser constituída por uma pluralidade de agrupamentos sociais cada um dos quais

dispondo de um ordenamento jurídico próprio: o direito aí se apresentava como um fenômeno social, produzido não pelo

Estado, mas pela sociedade civil. Com a formação do Estado moderno, ao contrário, a sociedade assume uma estrutura

monista, no sentido de que o Estado concentra em si todos os poderes, em primeiro lugar aquele de criar o direito: não se

contenta em concorrer para esta criação, mas quer ser o único a estabelecer o direito, ou diretamente através da lei, ou

indiretamente através do reconhecimento e controle das normas de formação consuetudinária. Assiste-se, assim, àquilo que

em outro curso chamamos de processo de monopolização da produção jurídica por parte do Estado”. 125 KELSEN, Hans. O problema da justiça. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.71: “A chamada doutrina do direito

natural é uma doutrina idealista-dualista do direito. Ela distingue, ao lado do direito real, isto é, o direito positivo, posto pelos

homens e, portanto, mutável, um direito ideal, natural, imutável, que identifica com a justiça. É, portanto, uma doutrina

jurídica idealista, mas não “a” doutrina jurídica idealista. Distingue-se das outras doutrinas jurídicas idealistas-dualistas pelo

fato de – como o seu nome indica – considerar a “natureza” como a fonte da qual se originam as normas de direito ideal, do

direito justo”.

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A partir desta monopolização, as ordens jurídicas “paralelas”, como, por exemplo,

o direito canônico, foram perdendo relevância, e deixando de ser consideradas pelos juízes no

momento de decidir os conflitos sociais. O norte único e exclusivo de orientação dos

comportamentos passou a ser o direito posto pelo Estado, ou seja, o direito positivado. Daí

erige-se o novo paradigma, do direito positivo, em contraposição ao paradigma do direito

natural.

Dimitri Dimoulis observa essa mudança de “eixo” que resultou no declínio do

jusnaturalismo:

O dualismo jurídico é típico de sociedades teocráticas e comunitaristas, como era o

caso dos ordenamentos jurídicos da Europa Medieval fortemente influenciados pela

religião católica. Em um mundo secularizado que reconhece a primazia do indivíduo

e a legitimidade da ação política organizada, como ocorre nas atuais sociedades

capitalistas, é impossível continuar afirmando que, além do direito socialmente

criado, existe um outro direito, melhor e potencialmente superior, como pretende ser

o direito natural. Essa mudança cultural determinou a derrota histórica da teoria do

direito natural, comprovando, inclusive, que essa teoria não possuía nada de

“natural”126.

Nesse aspecto, Thomas Hobbes foi defensor entusiasta do Estado forte, detentor

de poderes ilimitados como instrumento necessário à superação das crises sociais

desencadeadas por múltiplos fatores, que por ele foram intituladas de “guerra de todos contra

todos”.

Quer dizer, as ideias de Hobbes tiveram importância inquestionável nesse

processo de monopolização da produção jurídica pelo Estado, que por sua vez alterou o

paradigma do direito natural para o do direito positivo. A defesa do monopólio legislativo do

Estado está evidente no seguinte trecho de “Leviatã”:

Em todos os Estados o legislador é unicamente o soberano, seja este um homem,

como numa monarquia, ou uma assembleia, como numa democracia ou numa

aristocracia. Porque o legislador é aquele que faz a lei. E só o Estado prescreve e

ordena a observância daquelas regras a que chamamos leis, portanto o Estado é o

único legislador. Mas o Estado só é uma pessoa, com capacidade para fazer seja o

que for, através do representante (isto é, o soberano), portanto o soberano é o único

legislador. Pela mesma razão, ninguém pode revogar uma lei já feita a não ser o

soberano, porque uma lei só pode ser revogada por outra lei, que proíba sua

execução.127

Mas esta crença irrestrita nesse modelo de Estado forte, ou seja, a fé cega no

absolutismo monárquico confere caracteres nitidamente ideológicos aos fundamentos do

126 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico – introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-

político. São Paulo: Método, 2006, p.83. 127 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção “Os Pensadores”.

São Paulo: Abril Cultural, 1974, p.166.

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positivismo jurídico hobbesiano. Isso porque, para Hobbes, a lei imposta pelo soberano é

infalível e inquestionável por si mesma, a justificar “o dever absoluto ou incondicional de

obedecer à lei enquanto tal”128.

Conforme realça Norberto Bobbio,

A afirmação do dever absoluto de obedecer à lei encontra sua explicação histórica

no fato de que, com a formação do Estado moderno, não só a lei se tornou a fonte

única do direito, mas o direito estatal-legislativo se tornou o único ordenamento

normativo, o único sistema de regulamentação do comportamento do homem em

sociedade; e, como a valoração de um comportamento se funda numa norma,

podemos acrescentar: o direito estatal-legislativo se tornou o critério único e

exclusivo para a valoração do comportamento social do homem. Isto sucedeu pelo

fato de, na época moderna, o Estado ter não só emergido e se imposto sobre todas as

outras organizações de tipo político, como também ter se tornado o único portador

dos valores morais, desautorizando e substituindo a Igreja (a saber, as instituições

religiosas em geral). Estando assim as coisas, compreende-se por que, segundo o

positivismo jurídico, o dever de obedecer às leis é absoluto e incondicionado.129

Portanto, esta versão extremada do positivismo ideológico, que encontra no

direito positivo um bem supremo e de qualidades inquestionáveis, remonta a um determinado

período histórico, a implicar na conclusão de que suas justificações somente encontram

sentido quando adequadas ao respectivo contexto.

Não há sentido algum, assim, em se defender na atualidade as virtudes do direito

positivo como um bem em si mesmo. Esta vertente extremada traduz uma visão anacrônica a

respeito do tema, servindo, apenas, de munição para os adversários do positivismo jurídico, a

denotar, como bem define Norberto Bobbio, “um alvo conveniente”130, por facilitar o

argumento que vincula o positivismo jurídico às mazelas ocorridas durante o regime nazista

(argumento da redutio ad Hitlerum), questão que será objeto de análise posteriormente neste

estudo.

Desta forma, não há como se relacionar a cultura “legalista” detectada no

Judiciário brasileiro com o positivismo jurídico ideológico em seu aspecto mais radical, de

viés hobbesiano, e que implica num resultado autoritário e antidemocrático.

O “legalismo” tratado neste capítulo coaduna-se melhor com a versão moderada

do positivismo ideológico, cujos elementos afinam-se às linhas de pensamento liberais, que

não se identificam, de modo algum, com modelos de governo ditatoriais. Aliás, é exatamente

isto que Bobbio sustenta:

128 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p.225. 129 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p.226. 130 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p.230.

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Enfim, no que diz respeito à relação entre ideologia do positivismo jurídico e

ditadura, é estranho que com facilidade tende-se a esquecer que os postulados éticos

do positivismo jurídico – o princípio da legalidade, a ordem como fim principal do

Estado, a certeza como valor do direito – foram elaborados no século XVIII pela

doutrina liberal, de Montesquieu a Kant, para levantar uma barreira ao despotismo,

ou seja, como freios ao arbítrio do príncipe, como defesa da liberdade individual

contra a enorme potência do Poder Executivo, como garantia de igualdade de

tratamento contra privilégios. Na Itália, nos anos da ditadura fascista, a resistência

ao arbítrio foi conduzida pelos juristas em nome dos postulados éticos do

positivismo jurídico, com a defesa ilimitada da justiça legal contra a pretensa justiça

substancial, que era, naquele caso, subversora da ordem liberal e do princípio da

certeza.131

Portanto, nesta vertente moderada do positivismo jurídico ideológico, o direito

posto não é visto como algo intrinsecamente bom apenas e tão somente porque advindo da

autoridade competente para a sua criação. A virtude do direito positivo decorre deste ser um

canal eficaz no processo de estabilização social.132

Trata-se a positivação do direito, portanto, de um instrumento adequado para

padronizar condutas, padronização esta deve que ser feita de acordo com determinados

requisitos, circunstância que evidencia claramente o caráter ideológico que se busca imprimir

ao sistema jurídico.

Ora, ao se afirmar que o direito positivo deve adequar-se a determinados

parâmetros, busca-se o aprimoramento do direito, um modo especial de se querer o direito.

Logo, estão sendo emitidos juízos de valor acerca de determinado ordenamento jurídico, com

críticas às suas falhas e enaltecimento de suas virtudes.

E essa perspectiva ideológica moderada do positivismo jurídico pressupõe a

necessidade de cumprimento de determinadas condições, cujo respeito pelo legislador

resultará num ordenamento jurídico que em tese poderá ser considerado virtuoso.

Cesare Beccaria, jurista italiano que divulgou e promoveu os ideais liberais e

iluministas na segunda metade do século XVIII, teve publicada no ano de 1764 a obra “Dos

Delitos e das Penas”, um libelo a favor do humanitarismo no âmbito das políticas criminais,

trazendo em seu bojo um verdadeiro manual contendo recomendações sobre o critério mais

adequado de se estabelecer quais condutas devem ser objeto de repressão criminal e qual a

melhor forma de se cumprir as reprimendas, tudo com o objetivo de se evitar as ações

arbitrárias das autoridades e a imposição de castigos desproporcionais, além de sofrimentos

inúteis.

131 BOBBIO, Norberto. Jusnaturalismo e positivismo jurídico. São Paulo: Unesp, 2015, p.144. 132 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p.230.

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Dentre as recomendações constantes em “Dos Delitos e das Penas”, há referências

específicas às leis penais, que devem ser elaboradas segundo as diretrizes ali contidas.

Relevante analisar o teor destas diretrizes.

Na primeira delas, Beccaria sublinha: “o soberano, que representa a própria

sociedade, só pode fazer leis gerais, às quais todos devem submeter-se”133.

Desta assertiva, extrai-se o fundamento do princípio da igualdade formal, a partir

da premissa de que as leis devem formular determinações de caráter geral e abstrato,

aplicáveis a todos indiscriminadamente, desde que se enquadrem na respectiva hipótese de

incidência, como meio de evitar favorecimentos ou perseguições.

Em outra passagem, Beccaria destaca as vantagens de uma lei penal que venha

ostentar conteúdo claro e de fácil compreensão, prevenindo os conflitos decorrentes das

obscuridades que geram múltiplas possibilidades de interpretação pelo seu aplicador.

Para Beccaria,

Quando as leis forem fixas e literais, quando só confiarem ao magistrado a missão

de examinar os atos dos cidadãos, para decidir se tais atos são conformes ou

contrários à lei escrita; quando, enfim, a regra do justo ou injusto, que deve dirigir

em todos os seus atos o ignorante e o homem instruído, não for um motivo de

controvérsia, mas simples questão de fato, então não mais se verão os cidadãos

submetidos ao jugo de uma multidão de pequenos tiranos, tanto mais insuportáveis

quanto menor é a distância; entre o opressor e o oprimido; tanto mais cruéis quanto

maior a resistência encontram, porque a crueldade dos tiranos é proporcional, não às

suas forças, mas aos obstáculos que se lhes opõe; tanto mais funestos quanto

ninguém pode livrar-se do seu jugo senão submetendo-se ao despotismo de um só.134

O jusfilósofo condena a obscuridade das leis penais, pregando sejam elas tão

claras que prescindam sequer de interpretação, ao afirmar: “com leis penais executadas à letra,

cada cidadão pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é

útil, porque tal conhecimento poderá desviá-lo do crime”.135

Em outro momento, observa que a leis devem ostentar tamanha clareza, a ponto

das decisões judiciais consubstanciarem-se em raciocínios lógicos simples que reflitam mero

silogismo categórico. Dentre suas recomendações:

O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a menor, a

ação conforme ou não a lei; a consequência, a liberdade ou a pena. Se o juiz for

constrangido a fazer um raciocínio a mais, ou se o fizer por conta própria, tudo se

torna incerto ou obscuro.136

133 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2.ed. São Paulo: Edipro, 2015, p.24. 134 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2.ed. São Paulo: Edipro, 2015, p.27. 135 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2.ed. São Paulo: Edipro, 2015, p.27. 136 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2.ed. São Paulo: Edipro, 2015, p.26.

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Enfim, Beccaria traz um conjunto sintético de premissas acerca das virtudes da lei

penal sob o ponto de vista do positivismo ideológico, na sua vertente moderada, ou seja,

alinhada ao liberalismo: leis gerais e abstratas de conteúdo claro e preciso, passíveis de

conhecimento prévio para se evitar surpresas, e que permitam estabelecer comandos

padronizados, cujas consequências possam ser previsíveis.

Nesta linha de entendimento, hipótese que representaria o extremo oposto deste

ideal de lei penal teria, como exemplo, o seguinte teor: “Violar preceitos morais. Pena

infamante a ser estabelecida pelo julgador”137.

Pois bem, a primeira reflexão que o exemplo de lei ensejaria é de que configura

um tipo penal aberto característico de odiosos regimes de exceção, por trazer conteúdo

indicativo do cúmulo da obscuridade e falta de clareza.

Mas quem aponta estes vícios na hipotética norma jurídica, inevitavelmente

encontra-se no campo exclusivamente ideológico. Um positivista que intentasse manter

posição neutra e científica teria de se limitar a tecer comentários de cunho descritivo, sem

emitir qualquer juízo de valor.

De qualquer sorte, está-se tratando realmente de uma ideologia acerca do

positivismo jurídico, cuja síntese de elementos é bem delineada por Dimitri Dimoulis em

cinco determinações:

– criação de normas que regulamentam da forma semelhante todas as situações

semelhantes (generalidade, que decorre do princípio da igualdade);

– descrição concreta das condutas e de suas consequências (taxatividade);

– criação de normas sem efeito retroativo, evitando surpresas (não retroatividade);

– previsão de procedimentos que garantem o respeito da constitucionalidade-

legalidade (controle);

– criação de normas duráveis no tempo, graças à rigidez constitucional e à

promulgação de Códigos (estabilidade)138.

4.5 Considerações

De tudo o que foi exposto neste capítulo, propôs-se esclarecer o nascedouro do

“valor” da segurança no plano do direito, tomando como pano de fundo a história inglesa no

século XVII, período de vital importância histórica numa das nações mais poderosas e

influentes da cultura ocidental.

137 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico – introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-

político. São Paulo: Método, 2006, p.200. 138 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico – introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-

político. São Paulo: Método, 2006, p.199.

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A crise instalada na política inglesa no século XVII permitiu fosse diagnosticado

o embate entre as ideologias absolutista e liberal, com o triunfo desta última, mediante a

análise das ideias contrapostas difundidas por dois dos principais filósofos do período,

Thomas Hobbes e John Locke.

O exemplo trazido da história e filosofia política inglesas em período turbulento e

de grande instigação intelectual, aqui sinteticamente explicitado, permite compreender a

evolução do pensamento jurídico a partir da perspectiva tridimensional, conforme teoria

desenvolvida por Miguel Reale.

Isso porque, diante das alterações da conjuntura fática ocorridas no período, como

o desenvolvimento capitalista, a ascensão da burguesia, o protestantismo, e a não aceitação

dos privilégios da nobreza, houve o incremento de uma nova carga valorativa na sociedade,

que passou a exigir o controle jurídico do poder político, a previsibilidade e a estabilidade no

âmbito normativo (segurança jurídica).

Essa nova relação dinâmica envolvendo fato e valor acabou trazendo reflexos de

grande impacto no plano das normas jurídicas, já que movimentos revolucionários, como a

Revolução Gloriosa de 1688, na Inglaterra, que serviu de inspiração para a posterior e

emblemática Revolução Francesa, de 1789, resultaram na imposição de novos paradigmas

jurídicos que influenciaram toda a cultura ocidental: as Constituições modernas que

configuram o que hoje é possível denominar de Estado de Direito.

Todo esse processo histórico de construção do “valor” segurança como elemento a

ser protegido pela ordem jurídica resultou na consolidação de uma ideologia clara e precisa: a

ideologia liberal, que adota como pressuposto um Estado com poderes restritos, num sistema

pautado por regras claras, precisas, e passíveis de conhecimento prévio para se evitar

surpresas (irretroatividade), garantindo-se a liberdade do indivíduo para agir conforme bem

entender nas hipóteses em que não existe restrição legal (princípio da legalidade).

Essa ideologia, conforme delineado por Bobbio, traduz-se na vertente do

positivismo jurídico ideológico de caráter moderado, que por sua vez coincide perfeitamente

com o que se denominou postura “legalista” adotada pelos juízes nacionais.

Tentou-se, com esta explanação, trazer o embasamento teórico da postura

“legalista” que tanto marca o comportamento dos magistrados brasileiros, para o bem ou para

o mal, a depender da posição adotada. O certo e inquestionável é que esta postura é fruto da

formação intelectual dos juízes, cuja base pode ser extraída fundamentalmente dos

ensinamentos transmitidos nos bancos acadêmicos que, por sua vez, decorrem dos elementos

históricos objeto da abordagem realizada neste estudo.

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Evidentemente, embora esta postura “legalista” encontre-se fortemente enraizada

na cultura jurídica pátria, não é única, por vezes conflitando, e por vezes compatibilizando-se

com uma segunda postura, aqui denominada “ativismo judicial”, que será objeto de análise no

próximo capítulo.

Essa conflituosidade ou compatibilização decorre da dialética da

complementaridade, nos moldes propugnados pela Teoria Tridimensional do Direito.

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5 PREMISSAS IDEOLÓGICAS DO “ATIVISMO JUDICIAL” BRASILEIRO: AS

CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS DAS DECISÕES JUDICIAIS

5.1 A crise do positivismo jurídico

A fase contemporânea da história mundial tem como marco o ano de 1789, em

que se deflagrou a Revolução Francesa, período no qual as mazelas do Antigo Regime foram

enterradas, consolidando-se as bases de que conformam o modelo de Estado liberal.

A consagração do modelo liberal trouxe consigo, no âmbito da ciência jurídica, a

confirmação definitiva do paradigma do positivismo jurídico, que já havia se estabelecido na

fase de monopolização da produção jurídica pelo Estado, na transição da Idade Média para a

Idade Moderna, mas tomou novos contornos com a simbólica Revolução de 1789.

Estes contornos resumem-se ao que foi sintetizado como “positivismo jurídico

ideológico em sua vertente moderada”: um sistema pautado por regras claras, precisas, e

passíveis de conhecimento prévio para se evitar surpresas (irretroatividade), garantindo-se a

liberdade do indivíduo para agir conforme bem entender nas hipóteses em que não existe

restrição legal (princípio da legalidade).

De qualquer forma, nos anos que se seguiram à Revolução Francesa, houve uma

consolidação plena do paradigma do positivismo com a edição do Código Napoleônico de

1804. A ideia de codificação veio com o escopo de trazer a unidade de todo o corpo

legislativo em um documento sistematizado e completo.

O Código Napoleônico constitui um patrimônio intelectual valioso, no qual o

elemento racional foi consagrado em sua máxima essência, servindo de inspiração para a

edição de documentos legislativos similares em inúmeras nações de tradição jurídica

continental, dentre as quais o Brasil, com o Código Civil de 1916.

Este elemento racional é verificável na pretensão de sistematizar-se, em um único

documento, todos os regramentos jurídicos pertinentes às relações de direito privado, em

unidade lógica, harmônica e coerente. Como decorrência dessa sistematização, vem a ideia de

completude, que trouxe consigo o dogma da ausência de lacunas da lei: “ninguém se escusa

alegando ignorar a lei; o juiz não se exime de sentenciar a pretexto de lacuna ou obscuridade

legal”.139

139 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.402: “Não se admitia que o Direito Positivo

tivesse lacunas, porquanto bastaria um trabalho de interpretação, conduzido segundo regras determinadas, para obter-se a

resposta conveniente a todas as lides e demandas. Não existia, segundo pensavam, qualquer fato social para o qual se não

encontrasse solução possível e previsível na totalidade da ordem jurídica positiva. É a ideia, portanto, de que o Direito

Positivo não tem lacunas e que, através de um trabalho de interpretação, tornada extensiva graças à analogia e aos princípios

gerais do direito, é sempre possível resolver todos os problemas jurídicos”.

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Enfim, o início do século XIX pontuou o período que pode ser considerado áureo

do positivismo jurídico, que teve como elemento simbólico de maior relevo o Código

Napoleônico, responsável por inspirar a corrente de pensamento denominada Escola da

Exegese. Nesta época, a ideia da lei escrita, organizada de modo racional e tratando cada uma

das relações sociais, tornou-se o grande paradigma para o direito.

Conforme observa Miguel Reale sobre este período histórico:

A sociedade burguesa triunfante exprimia suas aspirações e balizava seus interesses

em leis de grande perfeição formal, segundo os princípios fundamentais de liberdade

de iniciativa e de contrato, de segurança, e de certeza em todos os atos da vida civil,

de clara definição de direitos e deveres, de faculdades e de sanções.140

O paradigma juspositivista definitivamente estabilizado manteve seu predomínio e

influência durante o decorrer do século XIX e nas primeiras décadas do século XX.

Evidentemente, esta prevalência ocorreu de maneira multifacetada; não é prudente reduzir o

pensamento jurídico de longo lapso temporal a apenas uma linha doutrinária. Não obstante,

embora seja repreensível a simplificação, é certo que o presente estudo não tem a pretensão de

aprofundar a análise das diversas correntes juspositivistas surgidas entre os séculos XIX e

XX.

Logo, consignada a hegemonia juspositivista no período, abdicando-se de

examinar a questão sob a perspectiva de seus meandros mais complexos, importante destacar

o elemento de crise que ensejou questionamentos acerca de suas reais virtudes: a formação do

Estado Nazista.

Com efeito, inquestionável a associação realizada de modo contumaz entre a

plenitude do pensamento juspositivista como elemento justificador da ascensão do nazismo na

Alemanha.

Costuma-se afirmar que a pretensa neutralidade do positivismo jurídico, que

propugna a análise de seu objeto de estudo, ou seja, do ordenamento jurídico positivado, sob

uma perspectiva avalorativa, teria por resultado transformar o direito em mera forma, despida

por completo de conteúdo, como uma embalagem vazia que pode ser preenchida por

quaisquer ingredientes.

Em outras palavras, segundo este entendimento, o formalismo positivista aceita

todas as espécies de governos, mesmo os ditatoriais, desde que alicerçados num sistema

normativo lógico e concatenado.

140 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.400.

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E a situação extrema vivenciada na história refere-se ao horror da experiência

nazista, pois conforme apurado no julgamento de Nuremberg, o regime do Terceiro Reich

comandado por Adolf Hitler teria sido construído sob um sistema baseado em leis

formalmente íntegras, a despeito de ostentarem conteúdo moralmente repulsivo, autorizativo

de atrocidades que representaram um dos episódios mais tristes da história mundial141.

Nesse sentido é a posição de Fábio Konder Comparato:

Ora, com a afirmação da simples legalidade formal como fator de legitimidade

política, e pela redução da Constituição ao nível de mero ordenamento dos órgãos

estatais, inegável que os positivistas do direito contribuíram, decisivamente, para o

surgimento, no século XX, de um dos piores monstros que a humanidade jamais

conheceu em toda a sua longa história: o Estado Totalitário142.

Respeitado este entendimento, não há, entretanto, como concordar plenamente

com as premissas que justificam essa reductio ad Hitlerum, por duas razões, que a seguir

serão explicitadas.

Primeiramente, adotando a posição “não ideológica” do positivismo jurídico,

reafirma-se sua configuração como teoria do direito de caráter meramente formalista, cujos

propósitos, como já observado, limitam-se a aferir a validade de determinado sistema jurídico,

sem adentrar no mérito acerca da legitimidade ou não de determinado regime político. Ou

seja, a priori não haveria emissão de juízos de valor143.

Mas exatamente esta pretensa neutralidade é utilizada pelos detratores do

positivismo jurídico como argumento de passividade e condescendência, que implicaria num

certo grau de “omissão culposa” para com os horrores praticados durante o regime nazista.

Contudo, o argumento é inconsistente, pois relaciona dois problemas teóricos

absolutamente distintos. A análise abstrata da validade de determinado ordenamento jurídico

em nada se confunde com a reprovação moral feita acerca deste mesmo ordenamento144. Não

141 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.325: “Sem

embargo da resistência filosófica de outros movimentos influentes nas primeiras décadas do século XX, a decadência do

positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos

políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei.

Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência às ordens emanadas da autoridade

competente. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei

como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha aceitação no pensamento

esclarecido”. 142 COMPARATO, Fábio Konder. Ética – direito, moral e religião no mundo moderno. 3ª reimpressão. São Paulo:

Companhia das Letras, 2006, p.363. 143 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico – introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-

político. São Paulo: Método, 2006, p.257. 144 BOBBIO, Norberto. Direito e poder. São Paulo: Unesp, 2008, p.32-33: “Queremos observar seriamente nossas reações

de aprovação e desaprovação? Percebamos que o protesto que o jusnaturalista levanta contra o jurista imparcial perante as

monstruosidades morais de certas leis é dirigido não contra o mau cientista, mas sim contra o mau político. Prova disso é o

fato de que a reação contra a imparcialidade é diferente se partilharmos ou não as ideologias políticas do jurista imparcial: se

partilharmos suas ideologias, devemos pedir-lhe que não seja imparcial; no caso contrário, preferimos que ele seja imparcial,

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há contradição alguma em se defender a validade formal de determinada norma jurídica e se

rebelar contra seu conteúdo, como serve de exemplo a própria situação pessoal vivenciada por

Hans Kelsen, que, não obstante tenha sido um dos principais teóricos do positivismo jurídico

e formulador da Teoria Pura do Direito, em virtude de sua origem judaica e por não

compactuar com as ideias que deram suporte ao Estado nazista, foi vítima de perseguição

política, compelido a fugir da Alemanha e a migrar para os Estados Unidos da América, onde

viveu o resto da sua vida, lecionando da Universidade de Berkeley.

No mais, parece evidente que as causas legitimadoras da instalação de

determinado regime político passam ao largo de teorias jurídicas abstratas. Para se desvendar

a origem do nazismo, é necessário compreender o momento histórico e social vivenciado à

época de seu surgimento, as manobras políticas realizadas por seus idealizadores, os

interesses dos grupos sociais que exerciam maior pressão e as estratégias adotadas para se

angariar apoio popular. Mas, por certo, o debate sobre a validade de normas jurídicas não se

insere neste conjunto de fatores 145.

A publicação “Hitler e os Alemães”, de Eric Voegelin, fruto de conferências

realizadas na década de 1960, busca diagnosticar as condições que propiciaram o êxito da

trajetória nazista durante certo lapso temporal na Alemanha. O filósofo entende que o sistema

legal adotado é questão supérflua e pouco relevante na análise das causas que fundamentaram

a ascensão nazista. A ênfase para a compreensão do fenômeno nazista deveria ser dada às

características da sociedade onde o regime totalitário teve espaço para crescer e se difundir,

pois “o nacional-socialismo é, na verdade, precedido por uma sociedade em que ele chegou ao

poder”146.

Segundo Voegelin, a sociedade alemã responsável por dar suporte ao nazismo

encontrava-se numa fase de franca e evidente degeneração. Enquanto juristas debatiam acerca

da validade da Constituição de Weimar no regime do Terceiro Reich, inúmeros inocentes

isto é, oferecemos um juízo diferente sobre a imparcialidade, conforme esta favoreça ou contrarie nossas preferências

ideológicas. Aí se torna evidente que aquilo que condenamos não é a imparcialidade em si mesma, mas as consequências que

dela possam derivar. Pode até haver casos em que, perante um grupo de juristas, que aceitam um determinado sistema de

valores, por exemplo, os católicos, eu partilhe alguns dos fins propostos em âmbito moral e político, como a aversão deles

pelas leis raciais, e não partilhe outros, como a recusa do divórcio. Se for um liberal, fico satisfeito com a falta de

imparcialidade perante as perseguições raciais, mas não posso igualmente me contentar com a mesma falta de imparcialidade

diante de uma lei que admite o divórcio. O que deriva disso? O seguinte absurdo: obedecendo às minhas preferências morais,

as quais sobreponho ao problema da tarefa da ciência jurídica, eu deveria dizer que, quando está em causa a lei sobre o

divórcio, o dever do jurista é certificar-se do fato e não avaliá-lo. Quando, porém, estão em causa as leis raciais, o dever do

jurista seria o de submeter o fato a uma avaliação ético política, isto é, faria a solução do problema das tarefas da ciência do

direito depender do fato de que eu aprove ou não uma lei. Ora, o mínimo que se pode dizer de uma consequência absurda é

que ela revela uma impostação errada do problema”. 145 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico – introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-

político. São Paulo: Método, 2006, p.260. 146 VOEGELIN, Eric. Hitler e os alemães. Coleção Filosofia Atual. São Paulo: É realizações, 2015, p.106.

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eram assassinados147, circunstância indicativa de que as questões atinentes à estrutura jurídica

do Estado pouco repercutiam nas ações violentas e discriminatórias do regime em vigor.

Como exemplo, para fins de contraposição, o filósofo expõe a situação da

Inglaterra, que a despeito de nunca ter ostentado uma Constituição escrita em que estivessem

explicitamente previstos direitos e garantias fundamentais, em momento algum esteve

propensa à instalação de um regime autoritário similar ao nazismo, pois suas instituições

sólidas assim não o permitiriam148, argumento este apto a reforçar sua tese de desvinculação

plena entre a estrutura jurídica do Estado existente e o panorama de violência vivenciado no

período nazista.

Conforme pontua Voegelin, ao tratar das arbitrariedades praticadas durante o

regime nazista, em cotejo com o sistema legal então vigente:

o que interessa é a condição moral da sociedade e não essa construção legal, que

realmente só faz sentido sob a condição de que a sociedade esteja intacta e

simplesmente não a jogue na lata do lixo no dia seguinte. Em termos de Direito,

portanto, não se pode fazer absolutamente nada. O topos do Rechtsstaat esconde o

problema real: está a sociedade moralmente intacta e comportar-se-á de acordo com

essas regras legais ou não?

Se estiver intacta, não se tem a necessidade de tudo isso. A Inglaterra, por exemplo,

pode passar sem uma Constituição escrita e sem uma lista de direitos fundamentais.

Se uma sociedade está intacta, não se tem a necessidade de leis fundamentais para

estabelecer as coisas que não devem ser feitas. De qualquer modo, elas não serão

feitas.149

Portanto, diante de todas as ponderações realizadas, não há como se conceber a

teoria formalista do positivismo jurídico como elemento a configurar a base de sustentação de

determinado regime político, o que afasta sua vinculação com o nazismo.

Considerados os argumentos expostos, somente seria possível compreender o

positivismo jurídico como instrumento justificador de determinado regime político a partir de

uma linha de raciocínio impregnada de ideologia.

E exatamente neste ponto está a segunda razão que torna insubsistente o

argumento da reductio ad Hitlerum: ainda que se tenha o positivismo jurídico sob uma

perspectiva ideológica, não há como compatibilizá-lo com as bases sustentadoras do Estado

nazista.

147 VOEGELIN, Eric. Hitler e os alemães. Coleção Filosofia Atual. São Paulo: É realizações, 2015, p.299. 148 VOEGELIN, Eric. Hitler e os alemães. Coleção Filosofia Atual. São Paulo: É realizações, 2015. 149 VOEGELIN, Eric. Hitler e os alemães. Coleção Filosofia Atual. São Paulo: É realizações, 2015.

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Conforme analisado neste estudo, assumindo que o positivismo degenerou-se

como teoria abstrata, transmudando-se em ideologia, é possível diagnosticar as vertentes

extremada e moderada do positivismo ideológico.

E como já foi possível concluir, a única vertente ideológica do positivismo que

subsistiu em termos históricos e encontrou amparo doutrinário e filosófico no decorrer dos

anos, foi a vertente moderada, que, é sabido, relaciona-se ao modelo de Estado liberal.

Prescinde de mais observações o fato de que essa ideologia é totalmente incompatível e, mais,

opõe-se por completo aos fundamentos do nazismo. Ideias como separação de poderes, leis

elaboradas através de critérios que prestigiam a representatividade, preservação de liberdades

individuais e igualdade formal constituem paradigmas que em nada podem ser associados ao

totalitarismo nazista.

Aliás, Bobbio esclarece essa incompatibilidade evidente entre ambos os

pressupostos ideológicos, ao trazer a seguinte observação:

a versão moderada da ideologia juspositivista não leva em absoluto à estatologia e

ao totalitarismo político. Pelo contrário, estas acusações podem ser invertidas, visto

que considerar a ordem, a igualdade formal e a certeza como os valores próprios do

direito representa uma sustentação ideológica a favor do Estado liberal e não do

Estado totalitário ou, de qualquer maneira, tirânico. Estes valores foram

reivindicados pelo movimento iluminista contra o Estado totalitário do Ancien

Regime, e foram realizados pelo Estado liberal-democrático do século XIX.150

Dimitri Dimoulis também apresenta uma análise consistente acerca da

incompatibilidade entre o discurso ideológico nazista e as premissas que alicerçam o modelo

de Estado liberal, sustentáculo do positivismo ideológico em sua versão moderada:

O nazismo queria instituir um “Estado de justiça” (Gerechigkeitsstaat),

abandonando o modelo de Estado de direito (Rechtsstaat) que era criticado como

formalista e individualista. Os juristas próximos ao nazismo criticavam os ideais de

segurança jurídica e as formalidades jurídicas; exaltavam os valores do povo

alemão, exigindo “eticização” da aplicação do direito que os juízes deveriam impor,

distanciando-se do “pensamento com base na lei” (Gesetzesdenken). O positivismo

era visto como negação do ideal de justiça e o próprio Hitler declarou que, no

Terceiro Reich, o direito coincide com a moralidade. Os responsáveis políticos

pressionavam os juízes para aplicar penas acima do máximo previsto e para

interpretar de forma flexível as normas jurídicas em nome do interesse do povo

alemão151.

Ressalvada essa discordância acerca da vinculação envolvendo positivismo

jurídico e nazismo, não há como negar que se trata de argumento amplamente divulgado e

150 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p.236. 151 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico – introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-

político. São Paulo: Método, 2006, p.261.

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reconhecido por parte considerável da doutrina, que aponta o momento histórico posterior à

Segunda Guerra Mundial como fase crucial para se refletir sobre os rumos então tomados pelo

pensamento jurídico preponderante.

Portanto, o fim da Segunda Grande Guerra é considerado o marco da decadência

do positivismo jurídico na sua configuração tradicional. O período seguinte caracterizou-se

como uma etapa propícia a se repensar o direito. Houve quem defendesse inclusive a

retomada do jusnaturalismo152. Mas o que vingou, em verdade, foi uma corrente de

pensamento que, malgrado não se adequasse ao jusnaturalismo, propôs a reaproximação do

direito com a ética153.

Essa reaproximação entre direito e ética, para ser implementada, evidentemente

exigiu outra postura dos aplicadores do direito, o que veio a ocorrer por intermédio da criação

de novos padrões de interpretação das normas jurídicas. Para tanto, mudou-se a perspectiva

de análise do ordenamento jurídico, prestigiando-se as normas veiculadoras de princípios

jurídicos, que, por ostentarem conteúdo mais difuso e carga valorativa mais elevada que as

meras regras, conferem maior margem de manobra ao intérprete e permitem a inserção de

elementos da moralidade na decisão hermenêutica154.

O nome adotado por esta corrente de pensamento, ao menos no Brasil, foi pós-

positivismo 155. Para Luís Roberto Barroso:

A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram

caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito,

sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e

genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre

valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica e a teoria dos

direitos fundamentais.156

De notar-se, também, que esse período de ruptura decorrente das mazelas

deixadas pela experiência nazista trouxe para a segunda metade do século XX novos vetores

no plano do direito internacional, com a instituição da Organização das Nações Unidas

152 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico – introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-

político. São Paulo: Método, 2006, p.260: “A doutrina e a jurisprudência alemã adotaram, pelo menos até o início dos anos

1960, posições jusnaturalistas e idealistas, rejeitando o positivismo jurídico. Na bibliografia do pós-guerra abundam as

críticas ao ‘culto da positividade e às catástrofes’ que provoca, assim como os encômios aos valores da justiça material, em

um ambiente intelectual que ficou conhecido como “renascença do direito natural””. 153 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.326. 154 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.328-329. 155 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico – introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-

político. São Paulo: Método, 2006, p.48: “Ora, a pesquisa da bibliografia indica que o termo é praticamente desconhecido

fora do Brasil. O termo é utilizado esporadicamente em países de língua alemã. Entre os poucos autores que qualificam sua

teoria como pós-positivista, encontramos os adeptos da teoria estruturante do direito (strukturiende Rechtslehre), encabeçada

por Friedrich Muller (1938-) que reivindica a aplicação de uma metodologia pós-positivista (nach-positivische Nethodik),

utilizando esse termo no intuito de diferenciar-se da abordagem juspositivista clássica sobre a interpretação das normas

jurídicas”. 156 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.325.

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(ONU)157. Diversos países assumiram novos compromissos na esfera internacional no tocante

aos direitos humanos que acabaram gerando, gradativamente, alterações nas ordens jurídicas

internas, com a tendência de implementar nas Constituições normas de conteúdo

principiológico, com elevada carga valorativa e textura “aberta”.

Exemplo disso é a própria Constituição Federal de 1988, reconhecida pela sua

feição nitidamente principiológica. O fato é que, toda essa mudança de características do

direito constitucional pós-guerra, somada aos novos parâmetros hermenêuticos salientados,

ensejou um movimento que, a despeito da nomenclatura controvertida e das ressalvas

doutrinárias, pode ser denominado “neoconstitucionalismo”158.O neoconstitucionalismo e o

pós-positivismo estão, portanto, umbilicalmente conectados.

Essa “abertura” das técnicas interpretativas baseada na valorização dos princípios,

conforme propugnado pelos adeptos do pós-positivismo e do neoconstitucionalismo, é

considerada por Dimitri Dimoulis como “moralismo da interpretação”159, já que esta

flexibilização hermenêutica constituiria, na verdade, uma estratégia para facilitar a adequação

do texto normativo interpretando a determinado paradigma moral. Isso significa que o âmbito

da discricionariedade acaba sendo estrategicamente ampliado, facilitando a “correção” do

sentido da norma supostamente inadequada, de maneira a viabilizar uma solução mais justa.

Segundo Dimoulis,

Os moralistas consideram que o direito compreende, além de regras, os princípios

jurídicos (principles; Rechtsprinzipien), que podem ser escritos ou não escritos,

implícitos ou explícitos, mas sempre se caracterizam pela abstração, flexibilidade e

abertura que permitem a adaptação do direito a exigências morais, mediante

interpretações analógicas, por equidade, recorrendo a cláusulas gerais, etc. Por essa

razão, se afirma que o moralismo da interpretação se baseia no argumento dos

princípios160.

157 Flávia Piovesan pondera: No momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que

vige a lógica da destruição, em que cruelmente se abole o valor da pessoa humana, torna-se necessária a reconstrução dos

direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável. A barbárie do totalitarismo significou assim

a ruptura do paradigma dos direitos humanos, através da negação do valor da pessoa humana como fonte do Direito. Diante

dessa ruptura, emerge a necessidade de reconstrução dos direitos humanos, como referencial e paradigma ético que aproxime

o direito da moral. Neste cenário, o maior direito passa a ser, adotando a terminologia de Hannah Arendt, direito a ter

direitos, ou seja, o direito a ser sujeito de direitos. Nasce ainda a certeza de que a proteção dos direitos humanos não deve se

reduzir ao âmbito reservado de um Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Sob este prisma, a

violação dos direitos humanos não pode ser concebida como uma questão doméstica do Estado, mas deve ser concebida

como um problema de relevância internacional, como uma legítima preocupação da comunidade internacional. A necessidade

de uma ação internacional mais eficaz para a proteção dos direitos humanos impulsionou o processo de internacionalização

desses direitos, culminando na criação da sistemática normativa de proteção internacional, que faz possível a

responsabilização do Estado no domínio internacional, quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na

tarefa de proteção dos direitos humanos”. (PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional.

2.ed. São Paulo: Max Limonad, 1997, p.140-141). 158 GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. O neoconstitucionalismo e o fim do Estado de Direito. São Paulo: Saraiva, 2014,

p.58. 159 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico – introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-

político. São Paulo: Método, 2006, p. 91. 160 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico – introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-

político. São Paulo: Método, 2006.

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Independentemente da posição adotada diante destas correntes de pensamento

surgidas na segunda metade do século XX (pós-guerra), seja com a adoção da nomenclatura

“pós-positivismo”, “moralismo judicial”, ou “neoconstitucionalismo”, o certo e

inquestionável é o fato de que foi trazida à tona uma nova perspectiva de análise do

ordenamento jurídico, não em virtude, necessariamente, de alterações legislativas

substanciais, mas apenas e tão somente pelo novo olhar conferido ao sistema.

E por este novo ponto de vista, o ordenamento jurídico acaba sendo enriquecido

com múltiplas possibilidades hermenêuticas, circunstância que confere ao juiz, intérprete

autêntico da lei, um poder muito mais amplo do que lhe era autorizado de modo contumaz na

conjuntura anterior.

Não resta dúvida de que o magistrado acaba se tornando a figura central nesta fase

pós-positivista e neoconstitucionalista, conforme observa Jorge Octávio Lavocat Galvão:

Pode-se considerar Neoconstitucionalismo uma interpretação da prática jurídica a

partir da perspectiva dos juízes, em que a Constituição – editada após o

restabelecimento do regime democrático – é tida como uma norma substantiva,

composta primariamente de princípios, exigindo do intérprete o manuseio de

técnicas especiais, notadamente a ponderação. Ou seja, o Neoconstitucionalismo é

um modo específico de enxergar o Direito, no qual se valoriza o papel dos juízes na

concretização das promessas contidas no texto constitucional, sendo

inequivocamente uma teoria que busca influenciar o comportamento dos atores

jurídicos.161

A partir destas premissas, considerando a tendência de protagonismo do Judiciário

marcante nos últimos anos, é possível diagnosticar a segunda postura que ostenta condição de

destaque no âmbito da atuação judicial, ao lado do “legalismo”: o “ativismo judicial”.

A implementação do “ativismo judicial” é um processo em curso, o que permite

deduzir, portanto, que não substitui completamente a postura “legalista”, ainda presente no

panorama judiciário vigente.

O “legalismo” contrapõe-se ao “ativismo judicial”, mas embora ambas as

tendências não sejam conciliáveis, estão simultaneamente vigentes no inconsciente e na

formação intelectual dos magistrados, encontrando reflexos na jurisprudência pátria.

O “legalismo” não pode ser considerado superado, pois suas raízes estão

firmemente fincadas em bases históricas sólidas, que refletem todas as premissas que deram

ensejo à construção do modelo de Estado contemporâneo. Esta influência apresenta especial

relevo na América Latina, já que a doutrina positivista de Hans Kelsen permanece fortemente

161 GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. O neoconstitucionalismo e o fim do Estado de Direito. São Paulo: Saraiva, 2014,

p.59.

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infiltrada nos bancos das universidades brasileiras, conforme salienta Dalmo de Abreu

Dallari162, ainda que num viés pejorativo.

O que não se pode olvidar é que o “legalismo” é representativo de uma ideologia,

qual seja, o positivismo jurídico ideológico moderado.

E o “ativismo judicial”, por sua vez, também se caracteriza como ideologia,

contraposta ao “legalismo”.

É necessário assumir o caráter ideológico de ambas as posturas, pois existe uma

inegável tendência de se atacar o pensamento divergente como “ideológico”, na tentativa de

retirar sua credibilidade, sob uma falsa ilusão de que o ponto de vista defendido estaria

protegido por uma aura de neutralidade, o que em mais de uma oportunidade foi

desmistificado neste trabalho163.

Partindo-se, pois, da premissa de que ambas as posturas adotadas pelo Judiciário

ostentam caráter ideológico, deve-se compreender este conflito entre ideologias como fruto da

tensão dialética decorrente da alteração do panorama fático e valorativo, conforme a

perspectiva da Teoria Tridimensional do Direito proposta por Miguel Reale.

A ideologia que está por detrás da postura “legalista” já foi desvendada. Neste

momento, cabe detectar a ideologia que conforma o “ativismo judicial” no Brasil. De se

salientar que o foco da análise é o “ativismo judicial” adotado de modo peculiar no Brasil,

porque o “ativismo judicial”, apreciado em si mesmo e de maneira isolada, não é revelador de

nenhuma ideologia em especial.

O “ativismo judicial”, em sua essência, não se vincula a uma ideologia

predeterminada porque se constitui, em verdade, numa “janela” de abertura para que o juiz

possa inserir novas ideologias em suas decisões.

Tanto isso é verdade que os primeiros exemplos de “ativismo judicial” encontram

remissão na jurisprudência norte-americana da segunda metade do século XIX e início do

século XX. O protagonismo da Suprema Corte dos Estados Unidos da América não serviu

para embasar soluções afinadas a pautas ditas “progressistas”.

Pelo contrário, diversos precedentes da época afastaram a aplicação de leis que

representavam conquistas sociais e humanitárias, em prol da manutenção da situação vigente,

sob o fundamento da necessidade de se proteger a inviolabilidade da liberdade contratual e do

direito de propriedade.

162 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, p.82. 163 GUERRA FILHO, Willis Santiago; CÁRNIO, Henrique Garbellini. Introdução à Sociologia do Direito. São Paulo: RT,

2016, p.264.

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Como exemplo dessa jurisprudência norte-americana “ativista” e simultaneamente

retrógrada, mencionam-se os seguintes precedentes: 1) Dred Scott v. Sandford (1856), em que

a Suprema Corte desconsiderou uma lei do Estado do Missouri que bania a escravidão, sob o

fundamento de que os escravos, por constituírem patrimônio do senhorio, somente poderiam

ser libertados após procedimentos que viessem a observar o devido processo legal; 2) o caso

Plessy v. Ferguson (1896), que consignou ser legítima a segregação realizada em

estabelecimentos públicos por diferenças raciais, desde que se garantissem instalações

adequadas em cada um dos ambientes (doutrina do separate, but equal); 3) o caso Lochner v.

New York (1905), em que a Suprema Corte afastou os efeitos de legislação estadual que

impunha multa ao empregador que submetesse seus funcionários a carga horária superior a

sessenta horas semanais, sob o argumento de que tal provimento legal interferia

indevidamente na liberdade contratual164.

Os rumos da jurisprudência estadunidense em matéria constitucional foram

alterados apenas em 1954, com o precedente Brown v. Board of Education, quando a doutrina

separate, but equal foi objeto de revisão, e como consequência, declarou-se a

inconstitucionalidade de leis que estabeleciam práticas segregacionistas nas escolas públicas

de diversos Estados da federação165.

Esses exemplos norte-americanos têm por objetivo esclarecer que o “ativismo

judicial” pode ostentar inúmeras facetas. É importante diagnosticar, para a finalidade deste

estudo, a preponderante na jurisprudência brasileira dos últimos anos.

No Brasil, o “ativismo judicial” é uma consequência da nova hermenêutica

implantada pelo pensamento jurídico pós-positivista, que trouxe consigo uma visão mais

principiológica do direito.

E conforme opina Dimitri Dimoulis, essa valorização da atividade judiciária tem

por objetivo possibilitar o “moralismo de interpretação”, ou seja, adequar os parâmetros legais

a determinado padrão ético vigente.

Diante, portanto, desta maior margem de discricionariedade conferida aos juízes

para definir a melhor decisão a tomar considerando determinado padrão ético, cabe indagar

qual seria essa moralidade adotada em período recente pela jurisprudência brasileira

entusiasta do “ativismo judicial”.

164 GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. O neoconstitucionalismo e o fim do Estado de Direito. São Paulo: Saraiva, 2014,

p.67-68. 165 GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. O neoconstitucionalismo e o fim do Estado de Direito. São Paulo: Saraiva, 2014,

p.69.

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5.2 Características do “ativismo judicial” brasileiro: o elemento marxista

Conforme verificado neste estudo, com base em pesquisa realizada pela

Associação dos Magistrados Brasileiros no ano de 2005, dentre os magistrados da ativa,

87,1% afirmaram que se orientam por parâmetros legais, e 83,8% que assumem compromisso

com as consequências sociais de suas decisões.

O resultado da pesquisa reflete circunstâncias importantes acerca do panorama

atual da magistratura brasileira, pois traduz de maneira clara essa tensão dialética entre

valores. De um lado, há o apego à tradição “legalista”, e de outro, a preocupação social com

os resultados das decisões judiciais.

Note-se que pelo elevado percentual de acolhimento de ambas as posturas entre os

entrevistados, superior a 80%, inquestionavelmente há um grande campo de intersecção, ou

seja, um grupo significativo de juízes adere simultaneamente ao paradigma legalista e ao

pragmatismo vinculado à eficácia social das decisões.

Esse resultado poderia, numa análise mais estreita, implicar uma contradição,

pois se o juiz toma como parâmetro decisório a lei, em tese aplicaria os seus termos sem

quaisquer condicionantes e, portanto, independentemente das eventuais consequências.

Mas neste ponto deve-se observar que a preocupação com os efeitos sociais das

decisões denota um aspecto pragmático da atuação do juiz, que muito se relaciona com a

visão ética do direito proposta pelo neoconstitucionalismo de base pós-positivista166.

E o pós-positivismo, como a própria nomenclatura indica, apesar de se apresentar

como uma etapa mais avançada do positivismo jurídico, não se desvincula por completo de

suas premissas, pelo contrário, sugere a manutenção do parâmetro legal como norte a ser

seguido, mas com incidência de critérios de interpretação mais flexibilizados, que permitem

ajustes hábeis a compatibilizar o vetor legal com os reflexos sociais das decisões judiciais.

Assim, não há contradição na postura dos magistrados que, ao serem questionados

na pesquisa realizada pela AMB, informaram que se submetem aos parâmetros legais no

momento de decidir, mas, simultaneamente, se orientam pelas consequências sociais de seus

atos. Para além de uma contradição, esse diagnóstico reflete, na verdade, a dialética da

166 ROCHA, Mario Oliveira. Ativismo judicial e direito à saúde – o direito consiste nas profecias do que de fato farão os

Tribunais? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p.48: “Em uma perspectiva pragmática, pode-se ponderar que, em um ponto

de vista global, o neoconstitucionalismo se identifica com um dos pensamentos defendidos pelo pragmatismo jurídico, no

sentido de se preocupar com a “normatividade dos fatos” e com a consequência prática e útil da decisão jurídica. De sorte que

um juiz com pensamento pragmatista orientando suas decisões por suas consequências práticas, pode até encarar o

ordenamento jurídico como um todo constitucional – onipresença da Constituição – desde que isso se revele uma forma de

adequar as situações jurídicas práticas ao contexto social”.

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complementaridade delineada por Miguel Reale, já que os valores em evidência não se opõem

por completo, mas interagem entre si.

Essa suposta contradição também é refutada pelo fato de que em sociedades

democráticas as opções de posicionamento político são múltiplas. Não há limitação a apenas

dois polos de oposição, pois entre o legalismo ferrenho e o ativismo judicial radical – neste

último caso é possível designar “direito alternativo” – existem posições intermediárias, como

“legalistas” ou “ativistas” moderados167.

Por outro lado, essa preocupação dos juízes com as consequências sociais de suas

decisões é um fenômeno que adquiriu força com a geração mais recente de magistrados, pois,

conforme revelou a pesquisa, se em 2005 a expressiva quantidade de 83,8% dos juízes tomava

por vetor as consequências sociais de suas decisões, dentre os aposentados o percentual é

significativamente inferior, embora nada desprezível, de 64,1%.

Esse expressivo aumento percentual de juízes preocupados com a repercussão

social de seus atos, verificado na nova geração, é sintomático do caráter cultural do fenômeno

jurídico, pois revela de maneira evidente a transformação do direito em determinado período

histórico, a ascensão e a decadência de valores, conforme a alteração do panorama fático.

Logo, essa postura “ativista” do Judiciário, baseada nas teorias pós-positivistas e

neoconstitucionalistas, é resultado das transformações culturais ocorridas nas últimas décadas.

Quando se afirmou que o “ativismo judicial”, por si só, não era revelador de

nenhuma ideologia em especial, tratando-se, na realidade, de um canal de abertura para

injetar-se novas ideologias e concepções morais nas decisões judiciais, questionou-se qual

seria o elemento ético característico do “ativismo judicial” verificado no Brasil.

A resposta a esta indagação é revelada pelo próprio resultado da pesquisa da

Associação dos Magistrados Brasileiros. O elemento marcante do “ativismo judicial”

brasileiro pode ser considerado este apelo “social”, ou seja, de busca pela igualdade social,

cujo fundamento embrionário é o pensamento marxista.

Tanto assim é, que Sydnei Agostinho Benetti, ao comentar a pesquisa, salientou

que a prevalência da retórica social das decisões judiciais decorre da “longa exposição crítica

167 BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda – razões e significados de uma distinção política. 3.ed. São Paulo: Unesp, 2011,

p.53: “Afirma-se que num universo político cada vez mais complexo como o das grandes sociedades e, em particular, das

grandes sociedades democráticas, torna-se sempre mais inadequada a separação muito nítida entre duas únicas partes

contrapostas, sempre mais insuficiente a visão dicotômica da política. Sociedades democráticas são sociedades que toleram,

ou melhor, que pressupõem a existência de diversos grupos de opinião e de interesse em concorrência entre si; tais grupos às

vezes se contrapõem, às vezes se superpõem, em certo casos se integram para depois se separarem; ora se aproximam, ora se

dão as costas, como num movimento de dança. Objeta-se, em suma, que em um pluriverso como o das sociedades

democráticas, nas quais as partes em jogo são muitas e têm entre si convergências e divergências que tornam possíveis as

mais variadas combinações de umas com as outras, não se podem mais colocar os problemas sob a forma de antítese, de “ou-

ou”, ou direita ou esquerda, quem não é de direita é de esquerda ou vice-versa”.

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sociopolítica e artística de vanguarda, que há mais de um século passou a ver na apropriação

da mais-valia produtora da riqueza individual o fator de injustiça”.168

Essa “mais-valia” mencionada por Benetti é um dos fundamentos essenciais para

se compreender a crítica social marxista, cujos pressupostos merecem ser brevemente

apreciados.

Quando analisada a derrocada do Antigo Regime, que teve como ponto simbólico

a Revolução Francesa, pontuou-se, dentre as conquistas que marcaram o triunfo das

aspirações burguesas, a consagração de um modelo denominado Estado de direito

constitucional.

Nesse modelo, as instituições integrantes do Estado são delineadas e submetem-se

aos parâmetros fixados numa lei maior, de hierarquia superior e características estruturantes,

denominada Constituição. Além de definir e organizar as instituições, dando forma ao Estado,

essa Constituição também deve apresentar um conteúdo específico, albergar um sistema de

controle e fiscalização mútuos entre os diversos órgãos, de molde a se propiciar um equilíbrio

entre os poderes, evitando a hipertrofia de um em relação a outro e, por conseguinte, o

excesso e o arbítrio.

Além desse sistema de controle mútuo, chamado de “freios e contrapesos”, deve

integrar o conteúdo da Constituição um conjunto de direitos e garantias individuais que

protejam os cidadãos de eventuais arbitrariedades, o que implica impor limites à ação do

Estado e prestigiar a liberdade e a privacidade dos indivíduos.

O Estado, nessa configuração, apresenta um âmbito de atuação limitado, já que

suas ações e intervenções somente são autorizadas nos estritos limites das leis. E as leis

produzidas nesse modelo de Estado são de aplicação geral e isonômica, ou seja, todos são

tratados de modo igual, sem espaço para favorecimentos de apaniguados e perseguição de

desafetos.

Nesse ambiente em que se prestigia os valores da igualdade e da liberdade, estaria,

em tese, consolidada a estrutura apta a se viabilizar a construção de uma sociedade próspera.

Na visão da crítica marxista, entretanto, essa configuração do Estado de Direito

nada mais é do que a base conformadora de uma nova etapa da história, etapa esta

caracterizada por um modelo específico de exploração econômica.

Sob o ponto de vista marxista, a mola propulsora da história é a luta de classes,

cuja conflituosidade decorre da exploração econômica envolvendo classe dominante e classe

168 SADEK, Maria Tereza. Magistrados – uma imagem em movimento. Rio de Janeiro: FGV-Direito Rio, 2006, p.107.

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dominada. Cada uma das fases da história foi marcada por um modelo diferente de

exploração.

Nas sociedades antigas prevalecia o modelo escravagista de exploração, na qual

os senhores impunham aos escravos o dever de prestar serviços pela força, diante do risco de

sofrerem castigos físicos.

Nas sociedades medievais, instalou-se o modelo econômico feudal, pelo qual os

senhores feudais (suseranos), mediante o domínio das terras, impunham aos servos (vassalos)

o dever de cultivá-las. Embora livres, os servos feudais necessitavam da concessão de

determinado pedaço de terra como única alternativa para prover o sustento de suas famílias, e

em troca, prestavam serviço nas lavouras senhoriais169.

As sociedades modernas, por outro lado, consagraram o modelo econômico

capitalista, cujo cerne da exploração está no conceito de mais-valia. Para se compreender a

mais-valia, é necessário analisar os elementos básicos do modo de produção capitalista.

Diversamente das sociedades antigas, nas quais a força de trabalho era obtida

mediante coação física, ou nas sociedades medievais, onde a conformação feudal impunha a

prestação de serviços fundada num sistema de confiança mútua envolvendo suseranos e

vassalos, no capitalismo o pressuposto da obtenção da força de trabalho é a liberdade

contratual e a igualdade entre as partes envolvidas.

Nessa conjuntura de igualdade e liberdade, as partes envolvidas, quais sejam, o

capitalista que precisa da força de trabalho para desenvolver seu empreendimento, de um

lado, e o trabalhador braçal que oferece a força de trabalho, de outro, definiriam o preço da

prestação dos serviços, de acordo com as respectivas necessidades e interesses.

Mas no âmbito da suposta fachada de liberdade está encoberta uma circunstância

que inviabiliza o equilíbrio nas relações econômicas: o contratante capitalista, empresário ou

industrial, detentor dos meios de produção, que desenvolve suas atividades buscando obter

lucro e ampliar riquezas.

169 Hilário Franco Júnior revela que o domínio senhorial era dividido em duas partes, uma de exploração exclusiva do senhor

feudal, denominada “terra indominicata”, e outra destinada aos servos, denominada “mansos”. Segundo aponta Franco

Júnior, no tocante às relações de trabalho envolvendo senhores e servos: “Eram fundamentais as prestações de serviço,

possíveis porque a capacidade de trabalho de cada manso era superior à que ele requeria, empregando-se, assim o excedente

na reserva. Como os detentores de mansos servis trabalhavam mais tempo na “terra indominicata”, e nesse período

alimentavam-se ali, seus mansos podiam ser menores. O senhor exigia a corveia, trabalho servil na reserva, em troca do

manso por causa das dificuldades de obter mão-de-obra numa conjuntura de depressão demográfica (42:188) ou pela

impossibilidade de pagar trabalhadores com dinheiro (SLICHER VAN BATH:69). Qualquer que seja a interpretação correta,

o que se deve ter em mente é que a prestação de serviço na reserva senhorial representava “a própria essência do regime

dominial” (43:1,104). Graças a ela o senhor obtinha o necessário de sua terra, mobilizando em seu favor uma considerável

força de trabalho: no início do século X, as 800 famílias camponesas do mosteiro de Santa Julia, em Bréscia, prestavam

anualmente 60.000 dias de trabalho. No entanto, com o tempo, sobretudo a partir do século IX, passou a ocorrer crescente

substituição dos encargos por pagamentos em dinheiro, e assim o regime dominial foi se descaracterizando”. (FRANCO

JÚNIOR, Hilário. A Idade Média. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 2001, p.40-41).

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Logo, diante deste quadro, é inimaginável que o empreendedor capitalista venha a

oferecer ao trabalhador uma remuneração condigna; que este trabalhador tenha a liberdade de

recusar proposta de trabalho considerada aviltante; terá que bater às portas de outro

empreendedor capitalista, que certamente também apresentará uma proposta inadequada de

remuneração, pois evidentemente, tal como o outro empresário, também almeja o lucro. Ao

final das contas, não restará ao operário opção outra que não a submissão às condições

indesejadas de salário.

Imagine-se, por exemplo, a situação de um industrial proprietário de uma fábrica

manufatureira. Este industrial produz peças de roupa e as vende para os comerciantes, que por

sua vez inserem os produtos no mercado de consumo. O rendimento auferido pelo industrial

com a venda das peças fabricadas evidentemente será superior ao que paga a seus

empregados, pois é daí que advém o lucro que permite ampliar seu patrimônio. Essa diferença

entre valores, que implica necessariamente em depreciação da remuneração do trabalhador

operário, corresponde à “mais-valia”, que, por tal razão, traduz-se na essência da exploração

realizada no sistema capitalista.

Nesse sentido, pertinentes as ponderações de Willis Santiago Guerra Filho e

Henrique Garbellini Carnio acerca do conceito marxista de mais-valia:

Inicialmente, o grande teórico alemão faz a distinção entre a força de trabalho

vendida pelo operário e paga a este pelo patrão, e o trabalho-resultado, isto é, o

produto do trabalho realizado pelo operário e vendido pelo trabalho no mercado.

Ora, o valor dessas duas formas de trabalho não é igual, não se equivalem. Entre

elas, incrusta-se fraudulentamente a mais-valia, donde se origina o lucro do

empresário, uma vez que paga ao trabalhador uma quantia bastante inferior ao valor

real de seu esforço produtivo170.

Portanto, sob a visão crítica marxista, a configuração do Estado de Direito, muito

distante de um modelo que num primeiro olhar poderia parecer libertador, por supostamente

trazer garantias ao cidadão e propiciar um ambiente favorável ao progresso, na verdade

consubstancia-se num instrumento hábil a manter e justificar a estrutura de exploração

promovida pelo modo capitalista de produção171, estrutura que, conforme a ética marxista,

170 GUERRA FILHO, Willis Santiago; CÁRNIO, Henrique Garbellini. Introdução à Sociologia do Direito. São Paulo: RT,

2016, p.153. 171 Alysson Leandro Mascaro observa: “Devido à circulação mercantil e à posterior estruturação de toda a sociedade sobre

parâmetros de troca, exsurge o Estado como terceiro em relação à dinâmica entre capital e trabalho. Este terceiro não é um

adendo nem um complemento, mas parte necessária da própria reprodução capitalista. Sem ele, o domínio do capital sobre o

trabalho assalariado seria domínio direto – portanto, escravidão ou servidão. A reprodução da exploração assalariada e

mercantil fortalece necessariamente uma instituição política apartada dos indivíduos. Daí a dificuldade em se aperceber, à

primeira vista, a conexão entre capitalismo e Estado, na medida em que, sendo um aparato terceiro em relação à exploração,

o Estado não é nenhum burguês em específico nem está em sua função imediata. A sua separação em face de todas as classes

e indivíduos constitui a chave da possibilidade da própria reprodução do capital: o aparato estatal é a garantia da mercadoria,

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mostra-se injusta e desumana, por representar a mercantilização do trabalhador, que passa a

ser precificado e tratado como um mero produto à venda numa estante172.

Considerando-se estas observações sobre o pensamento crítico de Karl Marx, e

retomando o mencionado acerca de sua concepção da história como movimento decorrente da

luta de classes, de se observar que esta visão é representativa do que se denomina

“materialismo dialético”.

A dialética aqui realçada decorre da conflituosidade estabelecida entre opostos, ou

seja, do fato da história ser caracterizada pela existência de grupos antagônicos que defendem

posições irreconciliáveis. O aspecto materialista, por sua vez, pressupõe que todas as

instituições criadas no decorrer da história devem ser analisadas a partir da realidade,

realidade esta cujo elemento central são as relações sociais e econômicas173. Conforme

pontuaram Marx e Engels no “Manifesto Comunista”, “a história de toda a sociedade até

nossos dias consiste nos antagonismos de classe, antagonismos que se têm revestido de

formas diferentes nas diferentes épocas”174.

Disso deflui que as construções humanas de caráter espiritual, como religiões,

ética e cultura, constituem, em verdade, mero reflexo da realidade das relações de trabalho, ou

seja, são elaboradas para justificar determinado modo de produção econômico, daí advindo o

conceito marxista de ideologia como uma “máscara de ideias” que tem por objetivo encobrir o

verdadeiro propósito por trás de certas construções teóricas175. Não à toa, no “Manifesto

Comunista”, Marx e Engels assim exclamaram: “A cultura, cuja perda o burguês deplora, é,

para a imensa maioria dos homens, apenas um adestramento que os transforma em

da propriedade privada e dos vínculos jurídicos de exploração que jungem o capital e o trabalho.” (MASCARO, Alysson

Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p.19). 172 Fábio Konder Comparato, ao tratar da ética marxista: “A própria condenação inapelável do capitalismo – como sistema de

produção econômica, de organização social e de constituição política – não decorre apenas, no âmbito da crítica marxista, das

contradições internas do sistema, geradoras de convulsões periódicas ou crises de conjuntura. Ela se funda, antes disso, no

fato da sistemática desumanização dos trabalhadores, reduzidos à condição de simples mercadorias, cuja existência, portanto,

não tem dignidade, mas sim um preço.” (COMPARATO, Fábio Konder. Ética – direito, moral e religião no mundo moderno.

3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.348-349). 173 “É preciso, nas palavras de Marx, colocar a dialética de pés no chão. Ao contrário de Hegel, cuja dialética e cuja história

era idealistas, Marx aponta para o materialismo histórico e o materialismo dialético. A palavra materialismo é usada tão só

para se diferenciar de Hegel. Quer dizer que a história e a dialética têm que partir da realidade. O materialismo histórico e o

dialético, assim, não são sinônimos de matéria, no sentido químico-físico. Marx quer dizer a respeito da reflexão que tenha

em mente a análise de toda a realidade, de todas as relações sociais, sem começar de ideias metafísicas. Não cabe dizer,

portanto, que Marx, por ser materialista, abomina as relações espirituais, as ideias e a cultura. Pelo contrário, materialismo

quer dizer que devemos entender todas as construções humanas, culturais, ideológicas, morais, a partir da própria realidade

histórica humana”. (MASCARO, Alysson Leandro. Lições de sociologia do direito. 2.ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009,

p.104). 174 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. Ridendo Castigat Mores, 1999, p. 40-41. 175 REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o conflito das ideologias. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.10.

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máquinas”.176 Nessa mesma linha de raciocínio, em outra passagem, consignam os teóricos

que “as ideias dominantes de uma época sempre foram as ideias da classe dominante”.177

Destes aspectos da teoria marxista é possível extrair os conceitos de “estrutura” e

“superestrutura”. A “estrutura” compõe essa base real que dá a tônica das relações

econômicas que movem a história. A “superestrutura”, por sua vez, é o conjunto de

construções de caráter espiritual e cultural, que não ostenta qualquer autonomia, por ser

totalmente condicionado pelas diretrizes da “estrutura”.178

Esta visão materialista e dialética, vinculada à realidade econômica como

fundamento dos acontecimentos que se desenrolam no palco da história, explica cada etapa do

desenvolvimento humano a partir das relações de trabalho e dos sistemas econômicos então

vigentes.

Assim, ao se tratar do sistema escravagista prevalente na Idade Antiga, explica-se

sua ascensão e declínio a partir dos conflitos envolvendo as classes sociais contrapostas. A

partir desta premissa, conclui-se que o sistema escravagista transmudou-se em sistema feudal

medieval não por alguma razão aleatória, mas porque a conflituosidade permanente entre as

classes antagônicas ocasionou o esgotamento de suas bases de sustentação. O mesmo vale

para a substituição do regime feudal pelo regime capitalista: sua causa decorre dos conflitos

envolvendo as classes antagônicas, que em determinado ponto ocasionam a insustentabilidade

da manutenção do status quo.

Por este motivo, Karl Marx e Friedrich Engels profetizaram no “Manifesto

Comunista”:

Homem livre e escravo, patrício ou plebeu, barão e servo, mestre de corporação e

companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm

vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou

sempre, ou por uma transformação revolucionária, da sociedade inteira, ou pela

destruição das duas classes em luta.179

Portanto, pela crítica marxista, os diversos sistemas econômicos que vigoraram

durante determinado período da história foram superados por outros. Uma das formas de

superação foram os processos de transformação revolucionários, como, por exemplo, as

revoluções burguesas que, ostentando como símbolo maior a Revolução Francesa, enterraram

definitivamente os restos do Antigo Regime.

176 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. Ridendo Castigat Mores, 1999, p.35. 177 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. Ridendo Castigat Mores, 1999, p.39. 178 “Na terminologia de Marx, no todo da vida social há uma base real, uma infraestrutura das relações sociais, na qual se

situa o eixo central da exploração produtiva, e, a partir dela, uma superestrutura das relações sociais. Mais nos determina a

infraestrutura, como um alicerce determina as paredes que se levantarão posteriormente num prédio”. (MASCARO, Alysson

Leandro. Lições de sociologia do direito. 2.ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p.107). 179 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. Ridendo Castigat Mores, 1999, p.07.

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Marx e Engels propõem a derrubada do sistema capitalista através de um novo

processo revolucionário, de caráter comunista, que, em tese, permitiria fosse alcançada uma

nova etapa da história, em que não mais haveria classes antagônicas em disputa. O processo

dialético, assim, geraria uma síntese definitiva, que representaria o fim da história.

Todo esse ideário fundado no pensamento marxista revelou uma profunda crítica

ao sistema econômico vigente, sustentado pelo Estado e pelo conjunto de leis que o alicerça.

Por certo esse ideário influenciou e continua influenciando o pensamento jurídico brasileiro,

trazendo reflexos sobre a formação dos magistrados e afetando, por consequência, as decisões

judiciais.

Relevante verificar como se delineou essa influência da crítica marxista no

pensamento jurídico brasileiro recente, e em quais termos se relaciona com a postura da

magistratura nacional identificada como “ativismo judicial”.

5.3 A contribuição marxista instituída por intermédio das ideias de Antonio Gramsci

Ao se tratar do delineamento e da incorporação da crítica marxista no pensamento

jurídico brasileiro recente, importante compreender um pouco do panorama intelectual

estabelecido a partir da década de 1960.

No plano internacional, o período que sucedeu a Segunda Grande Guerra permitiu

vivenciar-se um momento peculiar da história, já que a reorganização geopolítica revelou o

protagonismo de duas grandes potências mundiais, quais sejam, os Estados Unidos da

América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Essa dualidade entre

potências econômicas trouxe consigo uma bipolaridade no plano ideológico e político, a

implicar na divisão do mundo em dois blocos, o capitalista e o comunista, divisão essa

apelidada de “cortina de ferro”.180

A divergência de interesses entre esses dois blocos antagônicos gerou um

ambiente de tensão permanente, já que o equilíbrio tênue existente escondia o receio de

reações armadas de ambos os lados, a ocasionar o surgimento da expressão “Guerra Fria”181.

Essa dualidade no âmbito mundial não passou despercebida no Brasil, trazendo

reflexos tanto no que se refere às políticas econômicas adotadas pelos governos que se

sucederam, quanto no tocante à conflituosidade ideológica, que adentrou e se instalou na

cultura nacional.

180 BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do século XX. 2.ed. São Paulo: Fundamento, 2011, p.172. 181 BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do século XX. 2.ed. São Paulo: Fundamento, 2011.

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O início da década de 1960 no Brasil foi marcado por uma aguda instabilidade

política. Jânio Quadros, Presidente da República democraticamente eleito, renunciou ao cargo

no dia 25 de agosto de 1961. Assumiu seu então vice, João Goulart, que não obteve êxito em

garantir sustentação política suficiente para apaziguar a crise que recrudescia a cada dia.

Nem de longe se busca trazer um retrato completo da conjuntura política vigente

no período, tampouco analisar os aspectos políticos, econômicos e sociais que desencadearam

tal crise. Relevante destacar, apenas, que esta etapa tumultuada da história brasileira foi

propícia a instigar setores conservadores da sociedade a conferir apoio aos militares para a

tomada do poder, diante do receio de que a desordem implicasse na instauração de um

processo revolucionário de substrato comunista, pois como foi observado, a polarização

existente no âmbito internacional repercutiu no plano interno.

Diante desta conjuntura fática instável, em 31 de março de 1964 é aplicado o

golpe militar que desaguou na ditadura que vigorou por mais de vinte anos no Brasil. Dentre

as primeiras medidas tomadas, foram abolidos os partidos políticos e as eleições diretas para

presidente, governador e prefeitos de capitais182.

A suspensão das garantias democráticas e a repressão autoritária deram ensejo ao

surgimento de movimentos de resistência posicionados à esquerda, que apresentavam duas

vertentes mais significativas, com características distintas.

A primeira vertente refere-se à luta armada, inspirada em movimentos

revolucionários exitosos em países de origem colonial subdesenvolvidos, como Cuba e

Vietnã. Nessa tendência, grupos dissidentes do antigo Partido Comunista do Brasil cooptaram

fileiras de jovens advindos da classe média com o escopo de fundar guerrilhas urbanas.

A estratégia de arrecadação de fundos para estruturar as guerrilhas e adquirir

armamentos consistiu, primordialmente, na realização de roubos a bancos183. O método de

ataque, por sua vez, teve como influência o “foquismo”, tática desenvolvida na revolução

cubana, e que tinha como pressuposto dividir grupos em pequenos “focos”, que se aliariam às

populações locais. Assim, numa combinação de ações de conscientização política com ações

violentas localizadas, conseguiriam obter sucesso pouco a pouco nas empreitadas terroristas,

mesmo com um contingente significativamente inferior, se comparado ao do inimigo a ser

combatido.184

182 PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Planeta, 2010, p.278. 183 PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Planeta, 2010, p.283. 184 Paul J. Dosal, ao tratar das estratégias de guerrilha adotadas por Che Guevara, observa acerca do “foquismo” (DOSAL,

Paul J. Comandante Che, guerrilha, líder e estrategista. São Paulo, Globo, 2005, p.239-240): “Por ter dado tanta ênfase à

formação de focos guerrilheiros com um número de apenas trinta a cinquenta combatentes, Che é popularmente associado

com a teoria do foco ou foquismo. Segundo esta, um núcleo guerrilheiro bem dirigido, ligado ao povo, poderia servir como o

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86

As ações armadas desses grupos revolucionários (ALN, AP, VAR-PALMARES,

MOLIPO, MR8, COLINA, etc.) resultaram no endurecimento das forças governistas, que em

13 de dezembro de 1968 promulgam o Ato Institucional n.5, considerado uma

contrarrevolução dentro de uma contrarrevolução185, por aniquilar por completo quaisquer

resquícios de liberdade política ainda existentes, ampliando de maneira notável os

instrumentos da repressão.

A partir de então, os grupos guerrilheiros passam a ser combatidos com maior

vigor, adotando-se estratégias de investigação extremamente controvertidas, com especial

destaque para o uso da tortura como meio de obtenção de informações. Essa nova postura da

polícia repressiva ocasiona a multiplicação de prisões e o gradual desmantelamento das

células revolucionárias, que com o tempo vão perdendo fôlego e se desagregando.

Como último suspiro, estes agrupamentos ainda tentaram reagir por intermédio de

sequestros praticados contra autoridades diplomáticas. O exemplo mais evidente é o do

embaixador norte-americano Charles Elbrick. Com estas ações obtiveram sucesso, pois

viabilizaram a libertação de importantes lideranças presas. De qualquer modo, a constante

desarticulação dos grupos clandestinos pela tortura e o estrangulamento financeiro de suas

estruturas acabaram encaminhando a luta armada a um beco sem saída.

Apresentado um breve panorama da linha de resistência adepta da luta armada,

cabe analisar, agora, a segunda tendência.

Conforme afirmado, esses grupos armados surgiram como dissidências do antigo

Partido Comunista Brasileiro (PCB), dissidências ocorridas em razão de não haver

unanimidade quanto ao modus operandi da resistência, pois lideranças comunistas

consagradas, como Luiz Carlos Prestes, não concordavam com a estratégia das guerrilhas.186

Para os membros tradicionais do PCB, o país não estava ainda em fase madura

para suportar uma revolução armada, já que na concepção marxista, o processo revolucionário

é desencadeado numa etapa de esgotamento do sistema capitalista. E para que esse

esgotamento fosse alcançado, seria necessário ultrapassar o atraso pré-capitalista brasileiro.

Isto significa que, antes de se pensar em revolução, o país haveria de tornar-se, como

pressuposto, uma sociedade liberal e burguesa, para então, no futuro, estar preparada para a

catalisador de um movimento político de massa. Guevara não criou a teoria do foco. Ele com frequência se referia ao foco

insurrecional, mas jamais defendeu uma teoria do que quer que isso fosse. Che era um estrategista, não um teórico. Outros

teóricos, extrapolando-o e com frequência o distorcendo – Regis Debray o mais notável dentre eles – criaram a teoria do foco

e creditaram a Che o conceito original”. 185 FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. 2.ed. São Paulo: Edusp, 2006, p.265. 186 GASPARI, Elio. A ditadura encurralada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p.176-177.

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revolução socialista. O processo revolucionário, segundo este ponto de vista, deve ocorrer por

etapas, razão pela qual é denominado “etapismo”187.

Com o fracasso da luta armada, esta estratégia “etapista” acabou por se tornar

preponderante nos movimentos de esquerda brasileiros. Adotou-se, portanto, uma perspectiva

da revolução como processo de transição a ser implementado gradualmente.

Essa perspectiva alinha-se à estratégia traçada pelo filósofo comunista italiano

Antonio Gramsci, cujas obras foram traduzidas para o português e publicadas pelo editor Ênio

Silveira, da Civilização Brasileira, uma das mais importantes editoras do país no período da

ditadura militar188.

A tradução e publicação de obras de autores estrangeiros comunistas, como

Gramsci, nas décadas de 1960 e 1970, ou seja, durante o regime de exceção, é um elemento

sintomático de que, apesar das garantias tolhidas, quando diversos direitos constitucionais

foram cerceados e em especial a liberdade de expressão, predominou nos meios acadêmicos e

no ambiente intelectual o pensamento crítico marxista189.

Isso se explica pelo fato de que, a despeito do inegável caráter ditatorial e

autoritário, os governos militares não se caracterizaram pelo totalitarismo, no sentido de fixar

um modelo ideológico pré-estabelecido e determinado por um partido único, como nas

experiências do nazismo alemão e do fascismo italiano.

Com a extinção dos partidos políticos existentes a partir de 1964, foram criadas

duas novas agremiações: A Arena (Aliança Renovadora Nacional) e o MDB (Movimento

Democrático Brasileiro), a denotar certo espaço para o tráfego de ideias, ainda que sob forte

repressão e censura190.

Nesse sentido, pertinentes as observações de Boris Fausto:

187 PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Planeta, 2010, p.280. 188 GASPARI, Elio. A ditadura encurralada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p.328. 189 VENTURA, Zuenir. 1968 – O ano que não terminou. 3.ed. São Paulo: Planeta do Brasil, 2008, p.72: “Era difícil ser

indiferente naqueles tempos apaixonados. Também, havia muito o que discutir. Discutia-se nas universidades, nas

assembleias, nas passeatas, nos bares, nas praias: a altura das saias, o caráter socialista da revolução brasileira, o tamanho dos

cabelos, os efeitos da pílula anticoncepcional, as teorias inovadoras de Marcuse, as ideias de Lukacs, o revisionismo de

Althusser. Os temas eram infindáveis, tanto quanto à duração dos debates. Mais do que discutir, torcia-se: pela vitória dos

vietcongues, a favor ou contra as guitarras elétricas na MPB, por Chico ou Caetano, pela participação política dos padres e,

claro, contra a ditadura. Ninguém deixava de participar das discussões do progressista Alceu Amoroso Lima com o

reacionário Gustavo Corção. Um pouco como na França de então, onde, como se sabe, os estudantes preferiam errar com

Sartre a ter razão com Raymond Aron, os jovens daqui também preferiam ir para o inferno com Alceu e D. Helder, se fosse o

caso, a ganhar o reino dos céus na companhia de Gustavo Corção e Nelson Rodrigues. A esquerda discutia com a direita, mas

sobretudo entre si. No programa da I Feira Paulista de Opinião, do Teatro de Arena, cujo tema era “Que pensa você do Brasil

de hoje?”, o diretor Augusto Boal chamava a atenção para o risco da divisão, mas temia também o “pretexto para não

dividir”. Ele achava “válida” a discussão, mas “sempre que sirva para apressar a derrota da reação”. O seu conselho – “antes

que a esquerda se agrida a si mesma, deve procurar destruir as manifestações direitistas” – era inútil. A esquerda preferia

discutir entre si, até porque, com corajosas exceções – Nelson Rodrigues e Gustavo Corção – o país parecia não ter direita”. 190 PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Planeta, 2010, p.279.

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O regime teve características autoritárias, distinguindo-se, porém, do fascismo. Não

se realizaram esforços para organizar as massas em apoio ao governo; não se tentou

construir o partido único acima do Estado, nem uma ideologia capaz de ganhar

setores letrados. Pelo contrário, a ideologia de esquerda continuou a ser dominante

nas universidades e nos meios culturais em geral191.

Pois bem, ao se trazer à pauta o pensamento de Antonio Gramsci, necessário

apresentar algumas informações preliminares a respeito deste filósofo italiano. Gramsci

nasceu em 22 de janeiro de 1891, na Itália, onde faleceu, em 27 de abril de 1937. Perseguido

pelo regime fascista de Mussolini, foi preso em 1926. Grande parte de sua obra é fruto de

escritos redigidos durante o período de reclusão no cárcere.

A originalidade de seus escritos decorre da revisão do pensamento tradicional

marxista, especialmente no que se refere à dinâmica do materialismo dialético.

Conforme já observado neste estudo sobre o pensamento marxista, a

“superestrutura”, consistente nos elementos espirituais, éticos e culturais de uma sociedade,

seria um mero reflexo da “estrutura”, ou seja, do conteúdo real das forças de produção. A

classe detentora dos meios de produção, assim, transplantaria automaticamente para o âmbito

das ideias os fundamentos das relações econômicas existentes. Logo, na visão marxista

tradicional, o plano das ideias não teria qualquer autonomia, tratando-se de mera reprodução

do modo de produção econômico. Haveria, portanto, uma relação exclusiva de causa e efeito

entre “estrutura” e “superestrutura”.

A visão de Gramsci não se coaduna completamente com este raciocínio, por

entender o filósofo que a relação entre estrutura e superestrutura não é tão inflexível, havendo

certa permeabilidade entre ambas as esferas.

Para Gramsci, as mudanças na superestrutura não são mera decorrência lógica das

mudanças da estrutura; pelo contrário, as mudanças na superestrutura podem efetivamente

trazer reflexos importantes na estrutura. Há, portanto, interpenetração e reciprocidade entre

estrutura e superestrutura192, e a despeito da relevância e até mesmo da preponderância dos

elementos econômicos na formação das ideias dominantes, estas não se reduziriam, assim, a

meras “sombras” daqueles.

Desta forma, considerando esse ponto de vista original acerca da doutrina

marxista, abre-se a possibilidade de se adotar uma nova estratégia para implantar ideias

comunistas e realizar planos revolucionários, talvez com maior eficácia que a tomada do

poder pela força: a conquista das mentes.

191 PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Planeta, 2010, p.284. 192 SCRUTON, Roger. Pensadores da nova esquerda. São Paulo: É realizações, 2014, p.126.

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Para alcançar seus objetivos, Gramsci desenvolveu o que chamou de teoria da

hegemonia, segundo a qual o poder exercido pela classe social dominante decorre não apenas

do controle dos meios de produção, mas também pela detenção dos instrumentos centrais de

influência cultural na sociedade193.

Isso quer dizer, o simples controle dos meios de produção não é suficiente para

sustentar o domínio de uma classe social sobre a outra. Para a manutenção do domínio

existente, imprescindível que a classe dominada esteja profundamente influenciada pelos

valores que sustentam a ideologia da classe dominante. E essa influência ocorre pelo controle

de posições estratégicas na sociedade, como a religião, a educação e a comunicação social194.

A religiosidade é uma inquestionável força influenciadora numa sociedade. Ela

exerce, por intermédio de suas doutrinações, o poder de ditar diretrizes morais, controlando,

incentivando e inibindo certas espécies de comportamento.

Os meios de comunicação, por sua vez, também ostentam missão altamente

relevante no exercício do controle social, pois, adotando-se táticas eficazes de propaganda e

de divulgação das informações, é possível moldar a opinião pública, vinculando-a a

determinada pauta de interesses.

Por derradeiro, a educação traduz-se no elemento-chave do exercício da

dominação a ser exercida por uma classe dominante que se pretende, também, hegemônica. A

educação é o instrumento essencial de formação intelectual dos membros integrantes de uma

sociedade, e a partir dos modelos adotados na formatação das mentes em estágio de

desenvolvimento, é possível fixar gradualmente as premissas ideológicas conformadoras dos

interesses preponderantes.

Por este motivo, segundo Gramsci, o Estado, para garantir seu papel hegemônico

na sociedade, não deve se limitar a sustentar a conjuntura econômica dominante, ou seja, a

“estrutura”. Ressalta o filósofo que, paralelamente ao exercício das funções coercitivas e

repressivas que lhes são peculiares, os elementos de superestrutura também merecem atenção

dos órgãos estatais exatamente porque desempenham papel de efetiva importância no

processo de construção da hegemonia.

Não por outra razão, Gramsci confere destaque especial à missão “educadora” do

Estado, ponderando sobre o tema:

Na realidade, o Estado deve ser concebido como “educador”, desde que tende a criar

um novo tipo ou nível de civilização. Em virtude do fato de que se atua

essencialmente sobre as forças econômicas, reorganiza-se e desenvolve-se o

193 SCRUTON, Roger. Pensadores da nova esquerda. São Paulo: É realizações, 2014. 194 SCRUTON, Roger. Pensadores da nova esquerda. São Paulo: É realizações, 2014.

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aparelho de produção econômica, inova-se a estrutura, não se deve concluir que os

elementos de superestrutura devam ser abandonados a si mesmos, ao seu

desenvolvimento espontâneo, a uma germinação casual e esporádica.195

Na passagem acima, Gramsci realça com especial atenção a faceta pedagógica e

doutrinária das ações do Estado, destacando que as questões superestruturais não podem ser

esquecidas pelos governantes, sob pena destes não alcançarem a hegemonia almejada, ou,

caso a detenham, não a sustentarem por longo prazo.

Delineado, pelos fundamentos apresentados, o campo de ação a ser explorado para

o sucesso do projeto revolucionário na visão de Gramsci, qual seja, obter a hegemonia no

plano da superestrutura, é possível diagnosticar as estratégias elaboradas pelo filósofo italiano

para conquistar espaços, infiltrar ideias e desestabilizar os padrões vigentes.

O combate a ser promovido dentro desse plano estratégico de Gramsci limita-se

ao plano das ideias, tratando-se, portanto, de uma guerra ideológica, ao menos num primeiro

momento. E nessa guerra de ideias, o objetivo principal a se alcançar não é a morte dos

soldados inimigos, mas a destruição de seus laços orgânicos196, o que significa, em outras

palavras, a desconstrução da hegemonia vigente fundada em determinado conjunto de valores.

Para tanto, Gramsci aposta na ação difusa de indivíduos os quais denomina

“intelectuais orgânicos”, que devem se infiltrar em todos os espaços passíveis de influência na

formação de opinião, como escolas, universidades, jornais, sindicatos e pequenas

comunidades religiosas. Aqui o conceito de intelectual é significativamente ampliado197,

enquadrando-se nessa acepção cada jornalista, professor, padre ou pastor que venha a integrar

o projeto de conquista da hegemonia.

Esse sentido amplo conferido ao vocábulo “intelectual” é esclarecido por

Gramsci, que destaca a importância de cada indivíduo, pela sua posição social e pelo poder de

influência, mesmo em um pequeno grupo, poder contribuir para o projeto de hegemonia:

Os intelectuais são os “comissários” do grupo dominante para o exercício das

funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do

consenso “espontâneo” dado pelas grandes massas da população à orientação

impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce

“historicamente” do prestígio (e, portanto, da confiança) que o grupo dominante

obtém, por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção.198

195 GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p.96. 196 GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p.156. 197 GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p.11. 198 GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

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E paralelamente a essa ação dos intelectuais “orgânicos”, que atuam de maneira

difusa pelas diversas áreas do tecido social, entende Gramsci ser necessário existir uma

instituição centralizadora, que catalise e coordene os planos de ação revolucionária,

concentrando em suas mãos as diretrizes do projeto hegemônico. Essa instituição é

exatamente o partido político, que em analogia à teoria de Maquiavel, Gramsci considera

como o “moderno príncipe” 199.

O partido político, portanto, coordena as diretrizes das ações dos intelectuais

“orgânicos”, incentivando sua penetração no âmbito dos diversos órgãos da sociedade civil,

contribuindo para sua maior capilaridade. De outro lado, pressupondo-se o contexto de uma

democracia, o partido participa da regular atividade política, atuando no palco das eleições e

dos debates parlamentares.

Gramsci enfatiza que durante o processo de conquista da hegemonia é autorizado

ao partido atuar de maneira pouco ortodoxa no jogo político e parlamentar, adotar estratégias

eticamente questionáveis, seja firmando coalizões de ocasião com grupos adversários, ainda

que retrocedendo em certos compromissos, seja por intermédio de medidas fraudulentas e da

corrupção, valendo-se, aqui, da máxima maquiavélica “os fins justificam os meios”, o que se

coaduna plenamente com a ideia de partido como representação do “moderno príncipe”.

Salienta o filósofo italiano, também, que as ações partidárias devem buscar

suporte e apoio nos órgãos de imprensa, incentivando sua multiplicação artificial como meio

de manipular a opinião pública.

Na seguinte passagem da obra “Maquiavel, a Política e o Estado Moderno”,

Gramsci traz um panorama elucidativo acerca destas reflexões sobre a ação dos partidos no

plano das estratégias políticas:

O exercício “normal” da hegemonia, no terreno clássico do regime parlamentar,

caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram

variadamente, sem que a força suplante muito o consenso, ou melhor, procurando

obter que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados

órgãos de opinião pública – jornais e associações – os quais, por isso, em

determinadas situações são artificialmente multiplicados. Entre o consenso e a força,

situa-se a corrupção-fraude (característica de certas situações de exercício difícil da

função hegemônica, apresentando o emprego da força muitos perigos), isto é, a

desarticulação e a paralisação do antagonista ou dos antagonistas através da

absorção dos seus dirigentes, seja disfarçadamente, seja, em caso de perigo

199 GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p.102:

“Para se traduzir em linguagem política moderna a noção de “príncipe”, da forma como ela se apresenta no livro de

Maquiavel, seria necessário fazer uma série de distinções: “Príncipe” poderia ser um chefe de Estado, um chefe de governo,

mas também um líder político que pretende conquistar um Estado ou fundar um novo tipo de Estado; neste sentido, em

linguagem moderna, a tradução de “Príncipe” poderia ser “Partido Político”.

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emergente, abertamente, para lançar a confusão e a desordem das fileiras

adversárias.200

De todo o conjunto de estratégias traçadas por Antonio Gramsci percebe-se que,

em sua concepção visionária, a implementação da hegemonia representa um avanço muito

mais consistente e duradouro que a tomada de poder fugaz e instável. E para tanto, o terreno

deve encontrar-se preparado para adotar mudanças necessárias, que ao final buscam seja

alcançado o comunismo.

A sutileza de Antonio Gramsci, portanto, consistiu em perceber que a

transformação da sociedade rumo ao comunismo não dependeria, apenas, da momentânea e

inconsistente tomada forçada do poder, já que a revolução violenta, por si só, não teria o

condão de garantir a perenidade do novo sistema. Para obter pleno sucesso e aceitação, esse

novo sistema não prescindiria da prévia implantação de novos valores a serem gradativamente

acolhidos no meio social, circunstância que implicaria na necessidade de uma revolução

cultural, lenta, gradual e sucessiva.

Nesse sentido, Miguel Reale observa:

a sua grande e original contribuição teórico-prática consistiu em deixar de conceber

a praxe revolucionária em termos puramente econômicos, visando à “socialização

dos meios de produção” pelo proletariado, para reconhecer a fundamental

importância dos valores culturais, empregando a palavra “cultura” tanto no sentido

subjetivo de aquisição de conhecimentos científicos, quanto na acepção objetiva de

processo histórico, ou praxe no plano de ação. A conversão da cultura em técnica de

conquista do poder, eis, em suma, a poderosa ideia revolucionária que caracteriza a

teoria política de Gramsci, dada a sua convicção de que quem domina a cultura

domina o Estado.201

Aliás, pertinente a menção de Reale acerca da estratégia gramsciniana, já que o

jusfilósofo brasileiro é formulador de teoria que apresenta o elemento axiológico e cultural

como pedra fundamental na formação do direito. Conforme exposto, para a teoria

tridimensional, os valores são construídos no curso da história e, ajustados a determinado

panorama fático, servem de sustentáculo para o surgimento das normas jurídicas, que, por sua

vez, sustentarão determinado projeto de Estado.

Ao que tudo indica, Gramsci teve a perspicácia de perceber, assim como Reale,

esta relevância do elemento axiológico e cultural na conformação dos instrumentos de

controle social, razão pela qual, em sua missão revolucionária, buscou manipular

200 GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p.116. 201 REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o conflito das ideologias. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.16.

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artificialmente o arcabouço de valores componentes da sociedade como modo de atingir seus

objetivos.

Roger Scruton traça com clareza as linhas estratégicas de Gramsci para a

dominação gradual das instâncias de informação e de poder, num processo denominado

“revolução passiva”:

A política comunista envolverá a substituição sistemática da hegemonia dominante.

Assim, a superestrutura será transformada de formal gradual, ao ponto em que a

nova ordem social, cuja emergência foi permanentemente bloqueada pela velha

hegemonia, pode finalmente vir à tona sob seu próprio impulso. Este processo é

chamado de “revolução passiva”, e pode ser realizado somente pela conjunção de

duas forças: a exercida de cima pelos comunistas intelectuais, que gradualmente

deslocam a hegemonia da burguesia, e aquela exercida de baixo pelas “massas”, que

carregam em si mesmas a nova ordem social que cresce por seu trabalho. A

transformação ocorre somente quando estas forças agem em harmonia, como um

“bloco histórico”: e o papel do partido é produzir esta harmonia, ao unir os

intelectuais às massas em uma só força disciplinada. Este partido é o “Príncipe

moderno”, o único agente da mudança política verdadeira, que pode transformar a

sociedade somente porque absorve em sua ação coletiva todas as menores ações da

intelligentsia, e combina-se com a força das massas proletárias, dando força a uma e

orientação a outra. Assim, o partido deve ser integrado à sociedade civil – ele deve

gradualmente impor sua influência em toda a sociedade e, na realidade, substituir

toda organização que sustenta alguma posição dentro da hegemonia da influência

política.202

Consideradas, aqui, estas breves linhas acerca dos aspectos principais do

complexo pensamento gramsciniano, que se traduz numa revisão do marxismo, importa

retomar as transformações ocorridas no Brasil desde a década de 1960, para então

diagnosticar com maior precisão a influência do pensamento do filósofo comunista italiano no

país.

Muito embora vigorasse o autoritarismo no Brasil dos anos de ditadura militar,

predominava o pensamento de esquerda nos meios universitários e nos ambientes culturais em

geral. Esta circunstância é sintomática, pois reflete a ausência completa de hegemonia do

grupo dominante; portanto, havia espaço para a atuação dos “intelectuais orgânicos”, que,

infiltrados nos diversos segmentos sociais, poderiam e de fato puderam implementar sub-

repticiamente os valores e ideias marxistas.

Evidentemente, apenas a contar do início da década de 1980, com a decadência do

regime militar e a redemocratização avançando em ritmo intenso no país, houve uma efetiva

liberdade para se propagar as ideias marxistas, pois o arejamento do ambiente político

permitiu que as instâncias formadoras de opinião divulgassem plenamente o discurso

ideológico afinado ao esquerdismo.

202 SCRUTON, Roger. Pensadores da nova esquerda. São Paulo: É realizações, 2014, p.126-127.

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De outra sorte, no final da década de 1980 e início dos anos 1990, ou seja, alguns

anos transcorridos o fim da ditadura militar no Brasil, constatou-se o fracasso das nações que

aderiram ao “socialismo real”. O símbolo maior deste cenário foi a queda do muro de Berlim

no ano de 1989, circunstância que acabou corroborando o ponto de vista que compreendia o

projeto marxista como algo inacabado, uma obra ainda a ser concluída, em outras palavras,

um conjunto de etapas a serem cumpridas (“etapismo”).

Por certo, essa perspectiva reforçou o argumento favorável à adoção da estratégia

de Gramsci, cuja ação revolucionária concentra-se de maneira mais intensa no plano

ideológico, e tem por premissa a necessária preparação cultural prévia da população, para,

posteriormente, implementar transformações mais drásticas na sociedade.

No caso brasileiro, dentre os segmentos da sociedade mais permeáveis e sensíveis

à atuação dos “intelectuais orgânicos” de Gramsci, tem-se os bancos escolares, em especial o

ambiente acadêmico. Isto, porque, o pensamento propagado no âmbito das universidades

repercute diretamente sobre as demais instâncias de ensino, já que a partir do plano acadêmico

as ideias tomam consistência necessária para formar a opinião dos demais agentes de ensino,

circunstância que reflete sobre todo o sistema de educação, inclusive o ensino fundamental.

Nesse aspecto, elucidativa a passagem destacada por Attilio Monasta, que ao

abordar a influência do pensamento do filósofo italiano nos meios educacionais brasileiros,

assim considerou:

Na década de 1980, entre os educadores brasileiros, ocorreu uma verdadeira

“gramsci-mania”, ou melhor, uma excepcional difusão dos escritos desse autor. O

que explica esse fenômeno? Por que tamanha difusão do nome de Gramsci no Brasil

dos anos 1980, quando então até na Itália esse autor estava sendo menos lembrado?

Não é fácil responder a essas questões. Há várias razões que podem explicar o

fenômeno, entre elas a “cega fortuna” da história, isto é, a sorte. Além dela, porém, é

possível identificar algumas condições favoráveis. A leitura de Gramsci entre nós foi

alimentada pelos ares de abertura política que, finalmente, permitiam que o

marxismo, por muitos anos censurado, fosse livremente estudado e debatido nas

escolas. A particular concepção revolucionária desse autor, que privilegiava a

“guerra de posições” (guerra ideológica e de convencimento) à “guerra de

movimentos” (guerrilhas e golpes de Estado), se adequava melhor às esquerdas

brasileiras que abandonavam, a partir de meados dos anos 1970, a experiência das

guerrilhas urbanas e rurais. Mais ainda: Gramsci se apresentava aos pedagogos com

uma imagem de marxista moderno, um mártir do fascismo, um educador humanista,

terno com os entes queridos, compreensivo e solidário com os amigos. Em certos

círculos, Gramsci adquirira até o perfil de um educador no sentido próprio do termo,

isto é, de um “pedagogo”. Em suma, os pedagogos brasileiros encontraram em

Gramsci o que precisavam: seriedade e prestígio teórico, valorização de uma

concepção pedagógica que superasse tanto o velho marxismo ortodoxo quanto o

tradicional didaticismo técnico. Os textos de Gramsci davam suporte teórico à visão

dos educadores brasileiros daqueles anos, segundo a qual a escola não se explica por

ela mesma, mas pela sua relação com a sociedade, com a economia e com a política.

Observe-se, ainda, que o discurso gramsciano tornara-se, para os educadores

daqueles anos, elemento de distinção cultural que os distanciava dos tradicionais

didaticistas, aproximando-os ao campo mais prestigiado dos cientistas sociais.

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Assim, o nome de Gramsci para os educadores da década de 1980 tornou-se uma

bandeira de distinção, de orgulho, de aprofundamento teórico e de organização

corporativa.203

Diante do substrato doutrinário apresentado e das premissas expostas, não há

como negar que o ideário de Antonio Gramsci foi difundido e incorporado pelo sistema

pedagógico brasileiro. É possível diagnosticar sintomas indicativos de uma mudança cultural

de paradigmas em curso no Brasil das últimas décadas, mudança esta lenta e gradual, mas

constante e duradoura.

E considerando que o direito é um fenômeno estritamente cultural, os efeitos desta

revolução acabam refletindo no pensamento jurídico, tanto no que se refere ao processo de

produção de leis (atividade legislativa), quanto no processo de aplicação e interpretação das

leis aos casos concretos (atividade judicial).

No tocante à atividade judicial, que constitui o aspecto central deste trabalho,

deve-se considerar que o magistrado é fruto do seu meio, ou seja, não está imune a esse

conjunto de mudanças no plano axiológico.

Aliás, Gramsci explicita de maneira evidente a relevância da atividade judicial

como instância estatal mantenedora de determinado projeto hegemônico instaurado por uma

classe social dominante.

Neste ponto, o filósofo italiano menciona o “Estado ético”, uma espécie de Estado

onde há uma definição precisa dos valores culturais da classe social dominante, facilitando,

assim, maior eficiência na difusão de determinado projeto hegemônico por intermédio dos

instrumentos estatais disponíveis. E refere-se a dois deles como os principais: de um lado, a

escola, e de outro, os tribunais.

Para Gramsci, a escola, cuja relevância já foi abordada, exerceria uma função

educativa positiva, moldando a mentalidade dos alunos conforme esses valores culturais

dominantes. Já os tribunais exerceriam uma função educativa negativa e repressiva, inibindo

certos padrões de comportamento. São essas as palavras do filósofo ao se referir ao “Estado

Ético”:

Parece-me que o que de mais sensato e concreto se pode dizer a propósito do Estado

ético e de cultura é o seguinte: cada Estado é ético quando uma das suas funções

mais importantes é a de elevar a grande massa da população a um determinado nível

cultural e moral, nível (ou tipo) que corresponde às necessidades de

desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, aos interesses das classes

dominantes. Neste sentido, a escola como função educativa positiva e os tribunais

como função educativa repressiva e negativa são as atividades estatais mais

importantes: mas, na realidade, no fim predominam uma multiplicidade de outras

203 MONASTA, Attilio. Antonio Gramsci. Tradução de Paolo Nosella. Coleção Educadores – MEC, Fundação Joaquim

Nabuco/Editora Massangana, 2010, p.34-35.

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iniciativas e atividades chamadas privadas, que formam o aparelho da hegemonia

política e cultural das classes dominantes.204

5.4 Considerações

O ativismo judicial é consequência direta da crise do “legalismo”, que no âmbito

mundial teve como ponto central a dolorosa experiência nazista. Diante do horror vivenciado

em decorrência do nazismo, a atividade judiciária baseada na premissa de que o magistrado

deve decidir como mera “boca da lei” tornou-se obsoleta, exigindo a reconfiguração da

postura do juiz no exercício de suas atribuições como poder de Estado, especialmente pela

necessidade de uma nova aproximação entre Direito e Ética205, muito embora tenham sido

expressadas as pertinentes ressalvas quanto a estes argumentos que reproduzem a redutio ad

Hitlerum do positivismo jurídico.

Essa aproximação entre Direito e Ética, por sua vez, não é unívoca, e pode

configurar-se sob múltiplos conteúdos, dado que as concepções éticas apresentam variadas

tonalidades. O certo e inquestionável é que o ativismo judicial, baseado no

neoconstitucionalismo e no pós-positivismo, facilita a absorção de elementos éticos na

interpretação e aplicação do direito, pois confere ao juiz um campo mais aberto para

desenvolver o raciocínio no ato de decidir.

No caso brasileiro, conforme demonstrado, a partir da década de 1960 é possível

detectar uma gradativa implementação das ideias marxistas na formação humanística

nacional, que repercutiu na formação dos universitários que frequentaram os bancos das

faculdades de direito, inclusive os que acabaram por ingressar na carreira da magistratura.

Essas ideias marxistas refletem uma determinada concepção ética do mundo, ainda que Karl

Marx tenha ressalvas quanto à defesa de qualquer postura ética, dada sua visão reducionista,

que compreende a ética como mera justificativa das relações de produção (ou seja, a

superestrutura como reflexo da estrutura).

A ética marxista tem como ponto central a denúncia das injustiças sociais

provocadas pela sociedade burguesa, construída a partir do sistema de produção capitalista206.

Esta concepção ética tem como consequência formular uma postura crítica do direito que,

204 GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p.145. 205 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.326. 206 Fábio Konder Comparato observa que a crítica realiza por Karl Marx ao sistema capitalista, mais do que uma simples

análise de caráter científico, é representativa de sua indignação à injustiça social por ele produzida. (COMPARATO, Fábio

Konder. Ética – direito, moral e religião no mundo moderno. 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006,

p.348): “Não é preciso conhecer em profundidade a obra de Marx para perceber que em cada linha de seus escritos sobre os

mais diversos temas pulsa um insopitável movimento de indignação diante da injustiça social; e foi a denúncia sistemática

dessa injustiça – não o exame pretensamente científico do capitalismo – que calou fundo no coração das massas”.

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como aspecto integrante da superestrutura, é visto como um instrumento legitimador desse

sistema repleto de desigualdades e gerador de profunda miséria. Essa posição contestadora do

direito acabou por se tornar mais aguda no Brasil a partir dos anos em que vigorou a ditadura

militar, entre as décadas de 1960 e 1980, porque leis constituídas sob regimes autoritários

intensificam ainda mais a sensação de injustiça.

Não por outra razão, Jorge Octavio Lavocat Galvão relaciona movimentos

jurídicos contestadores estabelecidos à esquerda com o ativismo judicial:

A história se refere ao fato de que durante mais de 20 anos, entre as décadas de 1960

e 1980, vivemos sob uma ditadura militar. As leis editadas durante esse período

obviamente não refletiam a consciência democrática do povo, sendo associadas

como a expressão dos interesses dos agentes do poder. Os opositores da ditadura,

portanto, viam as normas jurídicas como instrumento de opressão e de manutenção

do “status quo”. Não por outro motivo, as vertentes de esquerda vinculadas a um

pensamento jurídico crítico, como o projeto Direito Achado na Rua, criado na

Universidade de Brasília (UNB), defendiam uma atuação dos movimentos sociais

“contra legem” com a finalidade de forçar o reconhecimento dos direitos de atores

políticos marginalizados. No contexto de um regime autoritário é compreensível que

uma teoria preocupada com a emancipação social afirme que as palavras da lei não

podem funcionar como fontes exclusivas de produção de significação jurídica. Essa

descrença na capacidade de produzir resultados sociais desejados por meio da

legislação é uma herança persistente no imaginário dos juristas pátrios do período da

ditadura.207

Referida análise, embora indicando um viés extremado do ativismo judicial, como

o “direito alternativo”, confirma a conclusão de que o ideário da esquerda mantém-se firme

como doutrina influenciadora dos agentes responsáveis pela atividade jurisdicional no Brasil,

já que o protagonismo verificado nos tribunais brasileiros, de certa forma, é consequência do

entendimento de que a lei é um instrumento de dominação da classe social dominante sobre as

minorias, a sugerir que a aplicação do comando nela previsto formalmente pode, em certas

ocasiões, consubstanciar-se em verdadeiro óbice à concretização do justo, justificando a

relativização do legalismo em prol de outras fontes do direito. Trata-se, pois, da revitalização

do conceito marxista de luta de classes.

Considerados estes pressupostos, conclui-se que o ativismo judicial brasileiro,

influenciado pela ética marxista, busca utilizar o direito como meio de se obter conquistas

sociais, como a redistribuição de renda, ainda que para isto deva se distanciar da legalidade

plena, como foi possível deduzir do resultado da pesquisa formulada pela AMB, na qual foi

registrada a significativa preocupação dos juízes com as consequências sociais de suas

decisões. Aqui se constata a plena coincidência do ativismo judicial com o viés de “esquerda”

207 GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. O neoconstitucionalismo e o fim do Estado de Direito. São Paulo: Saraiva, 2014,

p.211-212.

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proposto por Norberto Bobbio, no sentido de que é possível compreender este vocábulo como

busca por maior igualitarismo.

Lavocat Galvão corrobora estes argumentos destacando explicitamente o vínculo

entre o neoconstitucionalismo e a preocupação com as consequências sociais das decisões

judiciais:

A compreensão das normas constitucionais como valores que devem ser ponderados

no momento de sua aplicação é a porta de entrada para os argumentos pragmáticos

no Neoconstitucionalismo. Do mesmo modo como o pragmatismo jurídico, o

Neoconstitucionalismo se interessa pelo conteúdo das decisões em razão de suas

consequências. O discurso constitucional é utilizado como instrumento de promoção

de avanços sociais e para, assim, promover a reforma da sociedade. A transformação

almejada, no entanto, não é clara. Um dos principais objetivos de seus membros,

como visto, é a redistribuição de renda, o que faz com que os juízes enveredem por

argumentos de política.208

Enfim, percebe-se, por todos os argumentos expostos, que o pêndulo ideológico

da magistratura brasileira, de uma maneira geral, demonstra sinais de que tem declinado

gradativamente para o lado esquerdo, o que, de forma alguma é algo uníssono e imune a

controvérsias. Conforme observado em outras oportunidades, os movimentos culturais podem

ser lentos e variáveis, e se em dado momento histórico podem sinalizar determinada direção,

nada impede que venham a retroceder em alguma etapa.

No capítulo subsequente, apresentar-se-ão alguns exemplos extraídos da

jurisprudência. Alguns deles são emblemáticos e poderão auxiliar a compreender a conclusão

até este momento alcançada.

208 GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. O neoconstitucionalismo e o fim do Estado de Direito. São Paulo: Saraiva, 2014,

p.204.

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6 REFLEXOS JURISPRUDENCIAIS DA DUALIDADE ENTRE “LEGALISMO”

E “ATIVISMO JUDICIAL”

6.1 Observações preliminares

Conforme já estudado, o “legalismo” apresenta como premissa ideológica o

liberalismo político, cujo valor a ser protegido é a segurança jurídica.

Por sua vez, em capítulo específico deste estudo, buscou-se desvendar a ideologia

que serve de base para o “ativismo judicial” praticado no Brasil. Como conclusão, detectou-se

a contribuição marxista, embora não evidente, pois conforme a teoria da hegemonia

formulada por Antonio Gramsci, sua implementação ocorre de maneira gradativa e difusa, às

vezes, imperceptível. O valor primordial protegido é o da igualdade social.

O “ativismo judicial” surgiu como uma solução aos problemas trazidos com a

supremacia do “legalismo” então vigente, mas evidentemente a transição entre os valores

inerentes a estas posturas não ocorre de forma tranquila e pacífica, pelo contrário, a dialética

que a envolve é marcada pela conflituosidade.

Inevitável a resistência às mudanças pelos defensores dos valores prevalentes, o

que pode gerar avanços e retrocessos, numa luta constante a perdurar por longo período de

tempo. Trata-se do conhecido dilema envolvendo direita e esquerda, conservadorismo e

progressismo, que a cada etapa do desenvolvimento humano se deflagra, dando ensejo à

manutenção ou à transformação da sociedade e dos seus padrões.

Esta situação de conflito encontra-se em curso na jurisprudência brasileira, até

porque o valor da igualdade social buscado pelo ativismo tem se mostrado, em muitos

momentos, incompatível com a segurança jurídica, conjuntura esta propiciadora de constantes

atritos.

Quando se defende o “ativismo judicial”, argumenta-se em seu favor que o

pluralismo do mundo pós-moderno traz à tona uma gama multifacetada de conflitos de

interesses.

Ora, numa sociedade marcada pelo desenvolvimento das ciências a patamares

antes inimagináveis, pelo intercâmbio de informações decorrente da globalização e das

conexões tecnológicas avançadas, e ainda, pela discrepância social que gera bolsões de

miséria espalhados pelos centros urbanos, sem contar tantos outros fatores de cunho cultural e

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econômico, exsurgem incontáveis situações de difícil solução, cuja complexidade inviabiliza

a antecipação do legislador na regulamentação das controvérsias209.

Considerada, portanto, essa dificuldade do legislador em produzir

antecipadamente soluções para casos difíceis que brotam na sociedade numa velocidade

crescente, imperiosa a intensificação da procura ao Poder Judiciário para responder aos

questionamentos que lhes são apresentados210.

A judicialização dos casos complexos torna-se uma medida necessária. Incumbe

ao juiz trazer a solução até então não encontrada pelos meios pacíficos, sendo-lhe vedado,

diante do princípio da proibição do non liquet, eximir-se de julgar ao argumento de que

inexiste lei acerca do assunto que lhe foi trazido.

Mas, evidentemente, diante dessa nova e complexa conjuntura, inimaginável que

o magistrado consiga produzir solução correspondente aos anseios sociais valendo-se do

simples método dedutivo de subsunção do fato a uma norma geral, circunstância que justifica

a incidência de todas essas modernas técnicas hermenêuticas, envolvendo a ponderação de

valores e a aplicação de princípios.

Nessa linha, José Carlos Francisco pontua:

a postura mecanicista de aplicação do texto normativo aos fatos concretos deixou se

representar o modo de trabalho de proporção importante da magistratura brasileira.

Para aproximar o ordenamento à realidade social e influir na mudança social, uma

rápida pesquisa em repertórios de decisões judiciais (tanto do Supremo Tribunal

Federal quanto de instâncias ordinárias) revela que os juízes brasileiros passaram a

se servir da abertura de princípios constitucionais e de conceitos jurídicos

indeterminados para a construção de soluções que entendem justas, ambiente que

209 Luís Roberto Barroso observa: “A sociedade contemporânea tem a marca da complexidade. Fenômenos positivos e

negativos se entrelaçam, produzindo uma globalização a um tempo do bem e do mal. De um lado, há a rede mundial de

computadores, o aumento do comércio internacional e o maior acesso aos meios de transporte intercontinentais,

potencializando as relações entre pessoas, empresas e países. De outro, mazelas como o tráfico de drogas e de armas, o

terrorismo e a multiplicação de conflitos internos e regionais, consumindo vidas, sonhos e projetos de um mundo melhor.

Uma era desencantada, em que a civilização do desperdício, do imediatismo e da superficialidade convive com outra, feita de

bolsões de pobreza, fome e violência. Paradoxalmente, houve avanço da democracia e dos direitos humanos em muitas partes

do globo, com redução da mortalidade infantil e aumento significativo da expectativa de vida. Um mundo fragmentado e

heterogêneo, com dificuldade de compartilhar valores unificadores. Os próprios organismos internacionais multilaterais,

surgidos após a Segunda Guerra Mundial, já não conseguem produzir consensos relevantes e impedir conflitos que

proliferam pelas causas mais diversas, do expansionismo ao sectarismo religioso. No plano doméstico, os países procuram

administrar, da forma possível, a diversidade que caracteriza a sociedade contemporânea, marcada pela multiplicidade

cultural, étnica e religiosa. O respeito e a valorização das diferenças encontram-se no topo da agenda dos Estados

democráticos e pluralistas. Buscam-se arranjos institucionais e regimes jurídicos que permitam a convivência harmoniosa

entre diferentes, fomentando a tolerância e regras que permitam que cada um viva, de maneira não excludente, as suas

próprias convicções. Ainda assim, não são poucas as questões suscetíveis de gerar conflitos entre visões de mundo

antagônicas. No plano internacional, elas vão de mutilações sexuais à imposição de religiões oficiais e conversões forçadas.

No plano doméstico, em numerosos países, as controvérsias incluem casamento de pessoas do mesmo sexo, a interrupção da

gestação e o ensino religioso em escolas públicas. Quase tudo transmitido em tempo real. A vida transformada em Reality

Show”. (BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. In: (Org.)

SARMENTO, Daniel. Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Gen, Forense, 2015, p.11-12). 210 BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. In: (Org.)

SARMENTO, Daniel. Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Gen, Forense, 2015, p.13.

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ensejou o surgimento de uma nova concepção de constitucionalismo vinculada a

ideais de justiça para cada caso concreto e gerou o ativismo judicial.211

Se de um lado justifica-se a postura “ativista” dos juízes, vangloriando-se suas

virtudes, de outro apontam-se inúmeras críticas. Nesse sentido, argumenta-se que o “ativismo

judicial”, por fomentar a maior incidência principiológica como fundamento para solucionar

as lides judiciárias, gera intensa participação dos juízes na criação do direito212, o que acaba

trazendo instabilidade ao sistema jurídico, com reflexos sobre a economia, afetando a

segurança das relações jurídicas e o princípio da separação de poderes, ambos pilares do

Estado de Direito.

Segundo alguns críticos, se a defesa aguerrida do legalismo, de um lado, pode dar

azo a decisões injustas, certamente a concentração de poderes extraordinários nas mãos de um

único poder, o Judiciário, enseja problemas não menos nocivos.

Sem dúvida, o excessivo poder exercido pelos juízes traz um risco evidente à

democracia, já que uma “ditadura do Judiciário” seria em tese tão maligna quanto qualquer

outro regime de exceção.

Neste contexto, não caberia ao magistrado extrapolar suas funções utilizando

subterfúgios e interpretações ousadas, mesmo sob a justificativa de que pretende realizar a

“justiça” no caso concreto, já que a máxima maquiavélica “os fins justificam os meios”

revela-se pouco alinhada a regimes democráticos.

A corroborar este raciocínio, pertinente o alerta de José Francisco Siqueira Neto:

As Teorias Neoconstitucionalistas que defendem a efetivação a qualquer preço do

dever-ser da Constituição resultam no Ativismo Judicial, ou seja, na possibilidade

dos direitos previstos na Constituição serem implementados por meio de decisões

judiciais pontuais.

É antidemocrática e abusiva a decisão proveniente de um Poder desprovido de

competência e legitimidade política, integrado por membros que não foram eleitos

democraticamente pelo povo, que beneficia egoísticamente aqueles que como traço

de distinção para beneficiarem-se de recursos públicos simplesmente valeram-se do

Poder Judiciário.

As decisões judiciais de caráter individual, além de desequilibrarem a execução

orçamentária, prejudicam o conjunto da população que não tem acesso ao Poder

Judiciário.

O neoconstitucionalismo, portanto, no limite, desmantela a tripartição de poderes e

enfraquece a participação popular em todas as esferas de poder.213

211 FRANCISCO, José Carlos. (Neo) constitucionalismo na pós-modernidade: princípios fundamentais e justiça no caso

concreto. In: (Coord.) FRANCISCO, José Carlos. Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional – do passivismo ao

ativismo judicial. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p.49-50. 212 FRANCISCO, José Carlos. (Neo) constitucionalismo na pós-modernidade: princípios fundamentais e justiça no caso

concreto. In: (Coord.) FRANCISCO, José Carlos. Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional – do passivismo ao

ativismo judicial. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p.77-78. 213 Neoconstitucionalismo e ativismo judicial: desafios à democracia brasileira. In: (Coord.) FRANCISCO, José Carlos.

Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional – do passivismo ao ativismo judicial. Belo Horizonte: Del Rey, 2012,

p.324.

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Eros Roberto Grau, de outra sorte, preocupa-se com a insegurança jurídica trazida

pelas decisões casuísticas, que buscam trazer solução ao caso concreto por meio de

argumentos subjetivos baseados em fundamentação principiológica:

Instalou-se um grande debate: princípio é norma jurídica? Passamos a matraquear a

afirmação de que é mais grave violar um princípio do que violar uma norma, sem

nos darmos conta de que, sendo assim, princípio não é norma [...]

Aí a destruição da positividade do direito moderno pelos valores. Os juízes

despedaçam a segurança jurídica quando abusam do uso de “princípios” e praticam

– fazem-no cotidianamente! – os controles da proporcionalidade e razoabilidade das

leis.

Insisto neste ponto: juízes não podem decidir subjetivamente, de acordo com seu

senso de justiça. Estão vinculados pelo dever de aplicar o direito (a Constituição e as

leis). Enquanto a jurisprudência do STF estiver fundada na ponderação entre

princípios – isto é, na arbitrária formulação de juízos de valor –, a segurança jurídica

estará sendo despedaçada!214

Enfim, é grande o dilema enfrentado pela atividade jurisdicional brasileira. É

possível extrair da jurisprudência situações concretas que evidenciam essa incompatibilidade

entre o valor da segurança jurídica, de um lado, e da igualdade social, de outro, bem como os

reflexos a partir daí obtidos. A partir de agora, serão analisadas algumas destas situações

concretas.

6.2 Contratos, garantias, circulação de riquezas e segurança jurídica

Conforme registrado, o princípio da segurança jurídica é um dos alicerces do

sistema capitalista de produção, pois a livre circulação de riquezas, realizada por intermédio

dos contratos, pressupõe a previsibilidade dos resultados. Isto implica dizer que cada uma das

partes envolvidas espera que a outra cumpra o avençado nos exatos termos pactuados, sem

modificações posteriores e evitando ao máximo o risco de inadimplemento.

Para se promover essa circulação de riquezas de forma segura, os credores têm à

disposição garantias que em tese viabilizam o desenvolvimento regular das relações jurídicas

contratuais.

A regra geral estabelecida no sistema jurídico brasileiro é no sentido de que o

patrimônio do devedor serve como garantia da dívida. Isto significa que, na hipótese de

inadimplemento, o credor poderá valer-se da via judiciária e, mediante atos de coerção e

constrição estatais, poderá recuperar o crédito então inadimplido.

214 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e dos princípios). Refundida

do ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 6.ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p.22.

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Evidentemente esta garantia geral inspira limitada confiança nos credores, pois, a

depender do vulto do negócio, pouco servirá para reduzir os riscos de prejuízo. Isso porque,

além de não servir para evitar a insolvência do devedor, também não impede que este se valha

de expedientes fraudulentos visando desvencilhar-se da constrição judicial de seus bens,

transferindo-os para interpostas pessoas (“laranjas”). Sem mencionar, ainda, o custo e o

desgaste decorrentes da necessidade de ajuizamento de ação judicial.

Por esta razão, são previstas no ordenamento jurídico brasileiro garantias

especiais, que complementam e reforçam a garantia geral, tornando o ambiente dos negócios

jurídicos mais confiável e menos arriscado.

Dentre as garantias especiais, existem as de caráter pessoal, como a fiança, e as

garantias reais, como o penhor, a hipoteca e a anticrese. As garantias reais são mais eficientes

que as pessoais porque, nos termos do artigo 1.419 do Código Civil brasileiro, vinculam o

bem dado em garantia ao cumprimento da obrigação, o que significa dizer, na hipótese de

inadimplemento, poderá o credor utilizar o bem dado em garantia para quitar a dívida.

Quando esse processo de circulação de riquezas por meio dos contratos envolve a

transmissão da propriedade imobiliária, o rigor na proteção dos envolvidos deve ser maior,

pois o bem imóvel é um bem de raiz, vinculado à terra, portanto, perene.

Assim, os negócios jurídicos que tenham por objeto a propriedade imobiliária

devem ser realizados de modo ainda mais seguro se comparados aos demais negócios

jurídicos, razão pela qual demanda-se maior formalismo. Daí, em regra, exigir-se a escritura

pública como requisito de validade do contrato (artigo 108 do Código Civil).

Ademais, a transmissão da propriedade imobiliária não ocorre pela simples

transferência física da posse. Exige-se como requisito de eficácia o registro imobiliário no

fólio real. Esse sistema de registro de imóveis é imprescindível para propiciar segurança

jurídica no âmbito das relações negociais, pois todo interessado terá acesso livre às

informações sobre o imóvel, já que os dados são concentrados em um documento denominado

matrícula, no qual consta sua descrição física, incluindo benfeitorias, todas as transmissões e

onerações. A matrícula situa-se em unidade cartorária vinculada à determinada área territorial

da comarca e o acesso aos dados nela registrados é público.

Considerando essa ritualística envolvendo negócios que tenham como objeto a

propriedade imobiliária, de um lado, e a necessidade de garantias pelos agentes que

promovem a circulação de dinheiro, de outro, relevante apresentar alguns apontamentos sobre

o financiamento imobiliário promovido pelas instituições financeiras do Brasil.

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As instituições financeiras são figuras importantes na viabilização da compra de

imóveis por parte considerável dos brasileiros que almejam a casa própria. Isso porque, não

detendo a maior fatia dos adquirentes o dinheiro suficiente para adquirir à vista, necessitam do

apoio dos bancos para obter empréstimos que, oferecidos mediante cobrança de juros (mútuo

feneratício), permitem a formalização dos contratos.

As entidades bancárias, por sua vez, condicionam estes empréstimos à prestação

de determinadas garantias especiais, para evitar os riscos do inadimplemento. A garantia

tradicional existente para as transações imobiliárias sempre foi a hipoteca, pois, sendo

“instrumento econômico e jurídico de excelência, oferece ao credor a ‘garantia mais perfeita’

elaborada pela ciência civil”215, por vincular um imóvel à execução de uma obrigação.

Com a edição da Lei n. 9.514/97, foi possibilitada às instituições financeiras

valerem-se da alienação fiduciária para o financiamento imobiliário, considerada ainda mais

eficaz que a hipoteca na recuperação do bem, e, assim, uma melhor alternativa para a garantia

do empréstimo.

A alienação fiduciária em garantia do imóvel é regulada pelo artigo 22 da Lei n.

9.514/97, que apresenta a seguinte redação: “A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o

negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a

transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel”.

Pelo que se infere do dispositivo, nos contratos de financiamento imobiliário com

alienação fiduciária em garantia, o devedor transfere a propriedade do bem à instituição

financeira, como forma de garantia da dívida, muito embora mantenha consigo a posse direta

do imóvel. Essa transferência da propriedade se dá apenas e tão somente para garantia da

dívida. Significa que, após quitar o débito, a propriedade fiduciária se extingue e retorna

automaticamente ao devedor. Por esta razão denomina-se propriedade resolúvel.

Em caso de inadimplemento do contrato, o devedor será notificado a pagar a

dívida, e caso não venha a purgar a mora, perderá definitivamente a propriedade, que se

consolidará em nome do credor. A partir de então, terá o credor prazo de trinta dias para levar

o bem a leilão, utilizar o valor obtido para quitar o valor do débito e demais encargos,

devolvendo o remanescente ao devedor inadimplente.

Enfim, o delineamento da alienação fiduciária em garantia apresentado pela Lei n.

9.514/97 é claro e objetivo, configura um procedimento ágil e eficaz para a recuperação dos

créditos pelas instituições financeiras, nas hipóteses de inadimplemento dos mutuários.

215 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. 7.ed. São Paulo: RT, 2009, p.1.076.

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105

Essa breve digressão, que nos permite trazer alguns conceitos básicos acerca da

propriedade privada, dos contratos, e de suas respectivas garantias, tem por escopo

demonstrar a relevância de uma estrutura jurídica e econômica pautadas em bases seguras,

como requisito essencial para o regular funcionamento da dinâmica capitalista.

Com efeito, Luciano Benetti Timm e Tatiana Druck, no artigo jurídico “A

alienação fiduciária imobiliária em uma perspectiva de direito e economia”216 fazem uma

análise econômica do direito, denunciando os riscos de posições imprevisíveis do Poder

Judiciário, que, segundo os autores, podem trazer efeitos maléficos a toda engrenagem

econômica, encarecendo o custo dos serviços e prejudicando todo o corpo social.

Timm e Druck consideram nocivas determinadas decisões que, influenciadas por

uma sensibilidade social, conferem solução à controvérsia encaminhada ao Poder Judiciário

exclusivamente com enfoque no caso circunscrito nos autos, flexibilizando determinadas

garantias contratuais de maneira isolada, apenas para alcançar o resultado mais justo naquela

situação específica, sem uma preocupação mais ampla com a repercussão que pode trazer à

economia. Reputam esta postura como “atomista”, por excessivamente desvinculada do

contexto geral217.

A questão do financiamento imobiliário, aqui apresentada, tem relevância

exatamente porque nesta seara existem infindáveis discussões jurisprudenciais, dado o grande

número de mutuários que buscam a revisão judicial das avenças, especialmente em período de

crise econômica.

Sem olvidar dos abusos praticados por instituições financeiras, muitas das

cláusulas flexibilizadas pelos magistrados estão embasadas em dispositivos legais válidos, e

acabam sendo relativizados em virtude de interpretação heterodoxa, ocasião na qual, de forma

tendenciosa, procura-se elaborar fundamentos direcionados previamente à proteção da parte

considerada hipossuficiente.

Como exemplo desse “ativismo judicial” de certo modo irresponsável, os autores

citam o resultado de julgamento proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no

qual afastou-se a penhora de bem garantido por hipoteca, sob o argumento de que, diante das

peculiaridades do caso concreto, prevaleceria o direito constitucional à moradia, muito

embora a Lei n.8.009/90, em seu artigo 3º, V, expressamente excepcione a regra da

216 TUTILIAN, Cláudia Fonseca; TIMM, Luciano Benetti; PAIVA, João Pedro Lamana. (Orgs.). Novo direito imobiliário e

registral. São Paulo: Quartier Latin, 2008. 217 TIMM, Luciano Benetti; DRUCK, Tatiana. A alienação fiduciária em garantia em uma perspectiva de direito e economia.

In: (Orgs.) TUTILIAN, Cláudia Fonseca; TIMM, Luciano Benetti; PAIVA, João Pedro Lamana. Novo direito imobiliário e

registral. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.208.

Page 106: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Rafael da ... · valiosas lições, devidamente aplicadas neste trabalho. ... 6.1 Observações preliminares 99 6.2 Contratos, garantias,

106

impenhorabilidade do bem de família quando envolver hipoteca dada em garantia pela

entidade familiar. O caso apresenta a seguinte ementa:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO.

INADIMPLÊNCIA DO MUTUÁRIO. PENHORA DO IMÓVEL OBJETO DO

FINANCIAMENTO. IMPOSSIBILIDADE NO CASO CONCRETO. SITUAÇÃO

QUE ATENTA CONTRA O DIREITO. MÁ-FÉ DA DEVEDORA NÃO-

COMPROVADA. DESCONSTITUIÇÃO DA PENHORA DETERMINADA. Os

direitos de propriedade e de moradia são constitucionalmente assegurados aos

brasileiros em geral, conforme artigo 5º, inciso XXII, e artigo 6º, “caput”, ambos da

Carta Magna. O juiz, na aplicação da lei, deve atender aos fins sociais a que ela se

dirige e às exigências do bem comum (LICC, artigo 5º), situação que certamente não

é atendida se se privilegiar o perdimento da moradia de uma família em prol da

segurança de um crédito de financiamento hipotecário. A particular situação fática

que envolve o caso concreto, em face da doença que acomete a agravante, não

permite que venha a perder o único teto que tem para morar, situação com a qual não

compactua o Direito e a Lei Maior, ao erigir a moradia à categoria de Direito

Fundamental (artigo 6º, caput). Determinada a desconstituição da penhora frente à

casuística em apreço. Rio Grande do Sul. Tribunal de Justiça. Agravo de

Instrumento n. 70007413925. Relator: Des. Adão Cassiano

Também passou a ser objeto de questionamento judicial o aspecto atinente aos

valores a serem devolvidos pela instituição bancária, após o leilão do bem alienado

fiduciariamente em decorrência do inadimplemento do débito, já que precedentes começaram

a exigir a incidência de normas previstas no Código de Defesa do Consumidor. Aqui, houve

divergência acerca da aplicabilidade ou não do artigo 53 do Código de Defesa do

Consumidor, que coíbe a cláusula de decaimento embora a Lei n. 9.514/97 estabeleça solução

diversa em seu artigo 26. Nesse sentido:

COMPRA E VENDA – Pacto adjeto de alienação fiduciária – Rescisão pretendida

pelos compradores fiduciantes – Possibilidade jurídica – Procedimento do artigo 26,

da Lei n.9.514/97, para os casos de inadimplemento e mora subseqüente do devedor,

que não se aplica à hipótese – Prevalência da Lei n.8.078/90 – Sentença que

determinou a devolução das importâncias pagas, descontados, unicamente, os

valores dos locativos pelo tempo da ocupação – Afastamento de outras despesas,

como corretagem, administração, publicidade e impostos, por já inseridas no preço

do imóvel – Improvimento. A aplicação da Lei n.9.514/97 está sujeita aos princípios

e preceitos do Código de Defesa do Consumidor, Lei n.8.078/90, de ordem pública e

de interesse social, que visa a tutela do consumidor por sua evidente vulnerabilidade

nas relações de consumo, como o é o negócio jurídico da alienação fiduciária de

imóvel. Essa tutela, ademais, tem substrato constitucional, artigo 5º, inciso XXXII, a

obstar que o Estado, de qualquer modo, deixe de promover a defesa do consumidor.

A incidência da Lei n.9.514 aos casos concretos, destarte, está restrita a essa

interpretação, única forma de harmonizá-la ao sistema do ordenamento jurídico,

voltado sempre à proteção do consumidor. (Apelação Cível 233.365-4 – São Paulo –

5ª Câmara de Direito Privado – Rel.Marcus Andrade – 22.08.02 – V.U.).

Na visão destes doutrinadores, ainda que os magistrados sejam nutridos pelo

sentimento de piedade decorrente da iminente perda do lar por uma família, olvidam-se que

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107

ao flexibilizarem garantias contratuais, sinalizam às instituições financeiras a elevação dos

riscos nos contratos firmados com os mutuários, já que os bancos não terão a certeza de que

os instrumentos postos à disposição para recuperar os créditos ostentarão a esperada eficácia.

Com a elevação dos riscos, e sabendo-se que as instituições financeiras jamais

suportam os prejuízos, até porque dentro da lógica do sistema capitalista o objetivo é

unicamente o lucro, conclui-se que o cálculo dos prejuízos trazidos pelas decisões judiciais

que relativizam garantias será computado no valor dos juros a serem cobrados dos demais

mutuários. Os bancos, ao calcularem os juros que serão cobrados pelos financiamentos,

mensuram diversos fatores que influenciarão no valor final, dentre os quais os riscos

existentes. Quanto maior o risco, maior será o juro. Isso significa, em síntese, que os riscos

decorrentes de decisões judiciais que causam insegurança jurídica acabam por ser socializados

em detrimento dos demais mutuários, pois decisões como as mencionadas nunca são isoladas

e geram o ajuizamento de ações em escala progressiva.

Assim, o magistrado, ao ocupar-se exclusivamente da repercussão social isolada

de sua decisão, se esquece dos impactos econômicos que eventualmente prejudicarão

terceiros. Relembre-se, conforme a pesquisa realizada pela Associação de Magistrados

Brasileiros: se de um lado, mais de 83,8% dos juízes da ativa se preocupam com as

consequências sociais de suas decisões, um percentual significativamente inferior, de 40,5%,

preocupa-se com as consequências econômicas dos julgados.

Nesse sentido, Luciano Benetti Timm e Tatiana Druck observam:

Ora, por todas as razões antes expostas encontramo-nos num ambiente de

insegurança jurídica e também de “protetismo”, que fomenta a revisão generalizada

dos contratos e coloca em estado de alerta as instituições jurídicas e econômicas.

No jargão econômico, estas decisões paternalistas tendem a aumentar os custos de

transação no mercado de crédito imobiliário gerando incentivos, de um lado, a que

os investidores distribuam o risco entre todos os mutuários (acarretando aumento de

juros, dentre outras coisas) e, de outro lado, um desincentivo a novos negócios já

que a fluidez do mercado depende fundamentalmente do mecanismo do contrato e

este das suas garantias. Mas, a postura dos tribunais encoraja os mutuários em

dificuldade a ingressarem em juízo, aumentando ainda mais os custos dos

investidores com a manutenção de processos (sem falar do aumento do número de

processos) e mesmo os custos sociais com os impostos, taxas judiciárias, honorários

de advogados.

Portanto, o custo social tende a aumentar com estas decisões sem a contrapartida da

melhora coletiva. Isso porque a melhora do autor que ingressou com uma ação na

justiça é diretamente proporcional à perda do réu (investidor no mercado

imobiliário) não havendo um ganho (eficiência) da sociedade.218

218 TIMM, Luciano Benetti; DRUCK, Tatiana. A alienação fiduciária em garantia em uma perspectiva de direito e economia.

In: (Orgs.) TUTILIAN, Cláudia Fonseca; TIMM, Luciano Benetti; PAIVA, João Pedro Lamana. Novo direito imobiliário e

registral. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.214-215.

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108

Embora louváveis as preocupações de Timm e Druck acerca dos reflexos

deletérios de certas posturas judiciais no ambiente econômico, especialmente no que atina às

garantias firmadas para o financiamento imobiliário, tem prevalecido na jurisprudência mais

recente, tanto do Superior Tribunal de Justiça quanto de tribunais locais, o entendimento que

confere plena eficácia à Lei n.9.514/97 e às demais garantias reais livremente pactuadas.

Portanto, a despeito das ressalvas consignadas, nas hipóteses analisadas neste

estudo, tem preponderado a visão “legalista” da jurisprudência, que aliada a uma preocupação

com os reflexos econômicos das decisões, acaba afastando o “ativismo judicial” e seu

correspondente enfoque social.

A corroborar, de se mencionar os seguintes julgados:

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. INADIMPLÊNCIA.

RESTITUIÇÃO DAS PARCELAS PAGAS. DESCABIMENTO. HIPÓTESE DO

ARTIGO 53 DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR NÃO

CARACTERIZADA. A rescisão do mútuo com alienação fiduciária em garantia,

por inadimplemento do devedor, autoriza o credor a proceder à venda extrajudicial

do bem móvel para o ressarcimento de seu crédito, impondo-lhe, contudo, que

entregue àquele o saldo apurado que exceda o limite do débito. Daí não se poder

falar na subsunção da hipótese à norma do artigo 53 do Código de Defesa do

Consumidor, o qual considera nulas, tão somente, as cláusulas que estabeleçam a

perda total das prestações pagas, no caso de retomada do bem ou resolução do

contrato pelo credor, em caso de inadimplemento do devedor, tampouco no direito

deste de reaver a totalidade das prestações pagas. Recurso especial não conhecido.

(Superior Tribunal de Justiça, REsp 166753/SP, Rel. Ministro Castro Filho, Terceira

Turma, julgado em 03/05/2005, DJ 23/05/2005).

CONTRATO DE VENDA E COMPRA COM ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM

GARANTIA – Inaplicabilidade do artigo 53 do CDC – Impossibilidade de resolução

por inadimplemento, restando ao credor executar a garantia real e levar o imóvel

gravado a leilão extrajudicial, nos exatos termos da Lei 9.514/97 – Imóvel

adjudicado em segundo leilão por valor próximo ao valor de avaliação – Valor a ser

restituído ao devedor que corresponde apenas à diferença entre o valor de avaliação

do imóvel e o valor do crédito garantido. (Tribunal de Justiça do Estado de São

Paulo, Apelação nº 0382643-79.2008.8.26.0577 - 4ª Câmara de Direito Privado -

Relator Desembargador Francisco Loureiro, j. 21.07.2011).

IMPENHORABILIDADE – Execução de Cédula de Crédito Rural Pignoratícia e

Hipotecária – Pequena propriedade rural, trabalhada pela família – Imóvel dado em

garantia hipotecária – Inoponibilidade – Inteligência do art.3º, V, da Lei

n.8.009/1990, aplicável analogicamente: a impenhorabilidade da pequena

propriedade rural, trabalhada pela família, não é oponível quando o credor busca a

execução de hipoteca sobre imóvel oferecido, pelo devedor, como garantia real,

hipótese em que pode ser aplicado por analogia o art.3º, V, da Lei n.8.009/1990.

RECURSO PROVIDO. (Rel. Nelson Jorge Júnior; Comarca: Palestina; Órgão

julgador: 13ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 07/04/2017; Data de

registro: 12/04/2017)

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6.3 As prestações sociais pleiteadas em ações ajuizadas em face do Estado

Um setor extremamente delicado da atividade jurisdicional relaciona-se às ações

formuladas visando obter prestações positivas do Estado, especialmente no âmbito da

seguridade social, que engloba saúde, previdência social e assistência social.

No que se refere especificamente à saúde, congestionam o Judiciário inúmeras

ações pelas quais são pleiteados medicamentos e tratamentos médicos, muitos deles

ostentando custo elevado, sem padronização ou registro na agência reguladora pertinente

(ANVISA).

Aqui entram em conflito algumas questões polêmicas. De um lado, existe a

autonomia do Poder Executivo em formular suas políticas públicas de saúde, valendo-se dos

recursos disponíveis para organizar o orçamento, privilegiando determinados tratamentos

médicos em detrimento de outros, considerando critérios técnicos que irão possibilitar o

equilíbrio entre a finitude de receitas e as prioridades estabelecidas. De outro lado, há o

reconhecimento notório da omissão do Estado em prestar um serviço adequado à população, o

que justifica a procura ao Poder Judiciário para garantir a fruição de um direito constitucional

constantemente vilipendiado.

Ao se analisar a jurisprudência recente do Tribunal de Justiça do Estado de São

Paulo, percebe-se que a ampla maioria das decisões proferidas reconhece o direito individual

ao recebimento de determinado medicamento ou tratamento médico. O fundamento é

justificado com base na prescrição médica, sob o argumento de que a fruição do direito

estabelecido no artigo 196 da Constituição219não pode ser obstada por argumentos

orçamentários ou administrativos, como o princípio da reserva do possível ou de ausência de

padronização do tratamento pelo ente federativo. Afasta-se, por conseguinte, a alegada

violação à separação de poderes.

Nesse sentido, mencione-se como exemplo os seguintes julgados do tribunal

paulista:

REEXAME NECESSÁRIO – Mandado de Segurança – Pessoa hipossuficiente e

portadora de “Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica” (CID J 43.9) – Medicamentos

prescritos por médico (Onbrize 150 mcg e Relvar Elipta 200/25 mcg) – Obrigação

do Município – Direito fundamental ao fornecimento gratuito de medicamentos –

Aplicação dos arts.1º, III, e 6º da CF – Princípios da isonomia, da tripartição de

funções estatais e da discricionariedade da Administração não violados – Limitação

orçamentária e teoria da reserva do possível – REEXAME NECESSÁRIO

DESPROVIDO, com observação. 1. Os princípios da dignidade da pessoa humana

(art.1º, III, da CF) e da preservação da saúde dos cidadãos em geral (art.6º da CF)

219 BRASIL. Constituição Federal (1988). Artigo 196 – A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante

políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às

ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

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110

impõem ao Município a obrigação de fornecer, prontamente, medicamentos

necessitados, em favor de pessoa hipossuficiente. 2. Havendo direito subjetivo

fundamental violado, não há ofensa aos princípios da isonomia, da tripartição de

funções estatais e da discricionariedade da Administração, e, no quadro da tutela do

mínimo existencial, não se justifica inibição à efetividade do direito ofendido sob os

escudos de falta de limitações orçamentárias e de aplicação da teoria da reserva do

possível. (Rel.: Vicente de Abreu Amadei; Comarca: Barretos; Órgão julgador: 1ª

Câmara de Direito Público; Data do julgamento: 25/10/2016; Data de registro:

25/10/2016).

Apelação – Fornecimento de medicamentos – Tutela antecipada deferida – Dever

constitucional e solidário dos entes federativos em cuidar da saúde do cidadão – Não

se pode pretender tratar os pacientes do sistema público da mesma forma, uma vez

que cada qual tem as suas necessidades terapêuticas – O Estado não está somente

obrigado a fornecer os medicamentos e insumos rotulados em seu programa de

saúde – É suficiente a apresentação do receituário médico para se provar a

necessidade da utilização de medicamentos – A administração não pode eximir-se da

obrigação sob pretextos como falta de numerário ou necessidade de prefixação de

verbas para os atendimentos dos serviços de saúde – Nega-se provimento ao recurso.

(Rel.: José Luiz Gavião de Almeida; Comarca: Taquaritinga; Órgão julgador: 3ª

Câmara de Direito Público; Data do julgamento: 14/02/2017; Data de registro:

15/02/2017).

MANDADO DE SEGURANÇA. Fornecimento de insumos para o tratamento de

enfermidades. Admissibilidade. Prova dos autos que se mostrava suficiente para

amparar a pretensão do impetrante. Art.23, II, e 196 da CF/88. Hipótese em que se

assegura o direito à vida através das atividades que são inerentes ao Estado e

financiadas pelo conjunto da sociedade por meio dos impostos pagos pelos próprios

cidadãos. Possibilidade de fixação de multa. Redução do valor da sanção. Sentença

parcialmente reformada. Remessa necessária e recurso voluntário conhecidos e

parcialmente providos. (Rel.: Vera Angrisani; Comarca: Mogi-Mirim; Órgão

julgador: 2ª Câmara de Direito Público; Data do julgamento: 19/04/2017; Data de

registro: 19/04/2017).

APELAÇÃO – REEXAME NECESSÁRIO – MANDADO DE SEGURANÇA –

FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS – Sentença suficientemente

fundamentada – Mandado de segurança é via adequada – Suficientes provas pré-

constituídas – Desnecessidade de prova pericial – O fornecimento de medicamentos

decorre do direito à saúde (art. 196 CF) – O indivíduo que necessita do medicamento

e não pode adquiri-lo por seus próprios meios tem o direito de recebê-lo

gratuitamente – A impetrante sofre de doença de Alzheimer e necessita dos

medicamento "Exelon Patch" e "Dabigatrana 110mg (Pradaxa)" – A determinação

judicial de fornecimento de medicamento não ofende a separação dos Poderes –

Responsabilidade solidária de todos os entes – Não violação da lei orçamentária –

Apelação e reexame necessário desprovidos. (Rel. Ana Liarte; Comarca:

Pederneiras; Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Público; Data do julgamento:

10/04/2017; Data de registro: 12/04/2017).

Conforme observado, trata-se de um tema bastante delicado por envolver decisões

que poderão trazer prejuízo à vida de um ser humano e, portanto, exigem sensibilidade

especial do julgador. Mas, exatamente por encontrar-se envolvido em um sério dilema, o

magistrado acaba se sentindo acuado diante do risco de causar dano à vida ou à integridade de

outrem. Assim, considerada a falta de mais elementos técnicos para embasar sua decisão,

torna-se, de certa forma, refém dos relatórios médicos.

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111

As providências jurisdicionais são emitidas fundamentando-se diretamente em

preceitos constitucionais, com menção expressa, além dos artigos 6º e 196 da Lei Maior, que

tratam do direito à saúde, também ao princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III,

CF). De tal circunstância, conclui-se que existe uma discricionariedade enorme do julgador,

que decidirá conforme sua percepção do caso concreto, inviabilizando o mínimo de certeza

jurídica acerca do assunto.

A despeito da majoritária jurisprudência no sentido de acolher as pretensões

formuladas contra o Estado em matéria sanitária, em algumas hipóteses os julgadores

detectam abusos, como na hipótese em que se busca seja prestado o serviço de home care, ou

seja, atendimento médico exclusivo e permanente na residência do paciente, conforme se

extrai do seguinte julgado:

HOME CARE. Pretensão de condenação da ré a instalar o serviço de home care na

residência da autora, oferecendo todo o suporte necessário – Direito à saúde que não

se mostra ilimitado – Administração Pública que não pode ser obrigada à prestação

de um serviço público de índole eminentemente particular – Ausência de

comprovação da imprescindibilidade do tratamento domiciliar desejado – Sentença

de improcedência mantida – Precedentes deste Egrégio Tribunal. Recurso

desprovido. (Rel. Oscild de Lima Júnior; Comarca: São José do Rio Preto; Órgão

julgador: 11ª Câmara de Direito Público; Data do julgamento: 18/10/2016; Data de

registro: 25/10/2016).

Não obstante, ainda nas hipóteses abusivas, o seu reconhecimento pelo Judiciário

é realizado com base em decisões discricionárias, o que torna o ajuizamento de ações um

verdadeiro jogo de sorte ou azar.

No tocante a outro tema da seguridade social (prestações de cunho previdenciário

e assistencial), também há críticas importantes a serem feitas no que se refere à atuação

discricionária do Poder Judiciário. Isto, porque, diante da flexibilização interpretativa

realizada em inúmeras decisões, viabiliza-se a concessão de benefícios fora dos estritos

parâmetros legais.

Para Zélia Luiz Pierdoná220, esta postura evidenciadora de ativismo judicial

resulta em prejuízo à sociedade, pois ao se conceder benesses individualizadas, com base em

decisões que buscam justificar a concessão de benefícios previdenciários de acordo com as

peculiaridades do caso concreto221, olvida-se do caráter escasso dos recursos públicos, que

220 PIERDONÁ, Zelia Maria. Os princípios constitucionais de seguridade social como limitadores do ativismo judicial na

proteção social. In: (Coord.) FRANCISCO, José Carlos. Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional – do passivismo

ao ativismo judicial. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. 221 PIERDONÁ, Zelia Maria. Os princípios constitucionais de seguridade social como limitadores do ativismo judicial na

proteção social. In: (Coord.) FRANCISCO, José Carlos. Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional – do passivismo

ao ativismo judicial. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p.346: “Temos observado, com muita frequência, que os direitos de

seguridade têm sido interpretados a partir do indivíduo/autor, concedendo-lhe proteção diretamente a partir de um dos

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112

devem ser distribuídos de maneira racionalizada, especialmente no âmbito da previdência

social, de estrutura eminentemente contributiva, na qual vigora o princípio estabelecido no

artigo 195, §5º da Constituição: “nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser

criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total”.

Neste ponto, Pierdoná reitera a crítica ao “atomismo”, que reflete uma postura dos

juízes focada exclusivamente nos aspectos concretos das ações levadas a julgamento, sem se

importar com os reflexos das decisões a terceiros, especialmente os impactos ocasionados na

seara econômica:

Os recursos utilizados para implementar os direitos de seguridade social não são

infinitos. Há restrições de ordem financeira, razão pela qual há a necessidade de se

estabelecer critérios para a utilização dos recursos, selecionando os riscos que serão

atendidos rumo à universalização. Em sendo selecionados determinados riscos, todas

as pessoas atingidas por eles serão atendidas.

Assim, as decisões judiciais ativistas em processos individuais não são meios

adequados para concretizar a universalidade dos direitos de seguridade social, já que

eles devem ser implementados por políticas públicas estabelecidas, a partir da gestão

democrática, preceituada no art.194, parágrafo único, VII, da Constituição.222

6.4 Casamento, união estável e união homoafetiva

A análise dos institutos do direito de família nos últimos quarenta anos no Brasil

permite a compreensão clara acerca do funcionamento da Teoria Tridimensional do Direito

proposta por Miguel Reale. A dinâmica das transformações ocorridas nesta área demonstram

com detalhes como as variantes decorrentes das relações fáticas refletem sobre valores, e vice

e versa, com subsequentes implicações sobre as normas jurídicas. Ou seja, a tríade fato, valor

e norma e suas implicações dialéticas são apresentadas de maneira cristalina.

Remontando à década de 1970, no Brasil ainda vigorava o paradigma da

indissolubilidade do casamento, decorrente de nítida influência da Igreja Católica, cujos

dogmas ainda condicionavam as normas de direito civil sobre a matéria.

O Código Canônico, ainda em vigor, estabelece o princípio da indissolubilidade

do casamento em seu cânone 1.056, que dispõe: “Cân. 1056: As propriedades essenciais do

princípios específicos da seguridade social, quando não pelo postulado da dignidade da pessoa humana. Isso porque, muitos

juízes, em suas sentenças, utilizam a dignidade da pessoa humana como o único fundamento de suas decisões. Não negamos

que a dignidade é o valor fonte, mas ela não pode ser, segundo José Reinaldo de Lima Lopes, uma ‘espécie de abracadabra

jurídico’”. As decisões “generosas” são justificadas na finalidade “social” do direito social. Assim, a proteção individual é

garantida, muitas vezes em detrimento de toda a coletividade, conforme já sustentado por Armando de Oliveira, em 1963. O

autor sustentava que “à sombra de uma interpretação supostamente ‘social’ muitos disparates poderão ser cometidos em

detrimento da coletividade”. 222 PIERDONÁ, Zelia Maria. Os princípios constitucionais de seguridade social como limitadores do ativismo judicial na

proteção social. In: (Coord.) FRANCISCO, José Carlos. Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional – do passivismo

ao ativismo judicial. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p.349.

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matrimônio são a unidade e a indissolubilidade que, no matrimônio cristão, recebem firmeza

especial em virtude do sacramento.”

Esse princípio, de índole exclusivamente religiosa, era reiterado no Código Civil

de 1916, em sua redação original, que em seu artigo 315 assim estabelecia:

Artigo 315. A sociedade conjugal termina:

I – Pela morte de um dos cônjuges;

II – Pela nulidade ou anulação do casamento;

III – pelo desquite, amigável ou judicial.

Parágrafo único. O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges,

não se lhe aplicando a presunção estabelecida neste Código, art.10, segunda parte.

Nos termos do Código Civil de 1916, com vigência da redação original, portanto,

não havia que se falar em dissolução do vínculo conjugal pelo divórcio. Existia apenas a

possibilidade do desquite, que gerava somente a dissolução da sociedade conjugal, com

manutenção do vínculo.

Portanto, até meados da década de 1970, constatava-se a prevalência dos valores

religiosos no arcabouço normativo vigente, que, no entanto, não mais correspondiam aos

valores colhidos da sociedade. Essa falta de sintonia entre os valores inspiradores da norma e

os valores diagnosticados na sociedade gerava uma fissura, pois, independentemente do teor

normativo, muitas pessoas, insatisfeitas com o matrimônio, não mais aceitavam a manutenção

da sociedade familiar vigente. Diante da impossibilidade de contrair novas núpcias,

sujeitavam-se, então, à formação de “famílias clandestinas”223.

Tratava-se, assim, de um novo padrão cultural, cuja análise dos fatores

sociológicos que o desencadearam não se revela pertinente nesta pesquisa. No entanto,

relevante observar que a tensão dialética decorrente da incompatibilidade entre valor

prevalente e norma jurídica vigente tornou-se insustentável, pois situações fáticas novas

brotavam dia a dia e, diante da ausência de amparo legal, eram encaminhadas à

marginalidade. Desta forma, uma resposta legal inovadora era necessária.

Nesta conjuntura, foi promulgada a Emenda Constitucional n.09, de 28 de junho

de 1977, dando nova redação ao §1º do artigo 175 da Constituição vigente, com o seguinte

teor: “o casamento somente poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja

prévia separação judicial por mais de três anos.”

Enfim, pelo teor da nova norma constitucional, foi autorizado o divórcio na forma

da Lei n.6.515, editada em 26 de dezembro de 1977, que trouxe as hipóteses e requisitos para

223 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. O novo divórcio. São Paulo: Saraiva, 2010.

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a dissolução definitiva do casamento, respondendo aos anseios de uma fatia considerável da

sociedade.

A partir de então, uma nova fase do direito de família teve início no Brasil, e leis e

normas constitucionais supervenientes foram gradativamente facilitando os requisitos para o

divórcio até a promulgação da Emenda n.66, de 13 de julho de 2010, que alterando a

Constituição de 1988, deixou de condicionar o divórcio a qualquer requisito prévio,

transformando-o em exercício de mero direito potestativo.

Considerada a possibilidade de dissolução plena do matrimônio pelo divórcio,

dinamizou-se a desarticulação de núcleos familiares fracassados e a reconstrução de novos

núcleos familiares, permitindo-se ampliar a proteção legal e preservar direitos, retirando da

marginalidade um grupo significativo de pessoas.

Não obstante, ainda que este avanço constitucional e legal tenha permitido

ampliar a proteção jurídica a grupos familiares antes desamparados, remanesceu no limbo

certa fatia específica da sociedade: o grupo de pessoas que constituíam famílias fora do

casamento.

Ora, a união de pessoas com o intuito de compartilharem a vida, ainda que sem

aderirem à formalidade do casamento, tratava-se de situação de fato inequívoca,

independentemente de ser considerada postura moralmente adequada ou não. E essa situação

de fato encontrava-se destituída de regulamentação legal, circunstância que novamente

encaminhava certo grupo à marginalidade.

Diante desta conjuntura, e considerada a omissão legislativa sobre o assunto,

restaria, numa primeira e simplificada análise, a impossibilidade de se reconhecer qualquer

direito patrimonial aos integrantes desse núcleo familiar constituído fora do casamento, por

ocasião da sua desconstituição, dada a inexistência de norma que pudesse subsumir-se à

situação fática verificada.

Mas, para além dessa solução simplista, verificou-se à época das controvérsias,

diga-se, em período anterior à promulgação da Constituição de 1988, uma atuação do Poder

Judiciário que pode ser considerada protagonista. Muitos tribunais, não se limitando a exercer

um mero raciocínio lógico dedutivo, apresentaram uma solução baseada em interpretação

sistemática das normas e princípios do direito civil brasileiro, a denotar, também, certa

preocupação com as consequências sociais da decisão. Construiu-se na jurisprudência a ideia

de “sociedade de fato” para as relações estabilizadas fora do casamento, de forma a se

viabilizar a proteção do patrimônio amealhado em conjunto. Sobre o assunto, Miguel Reale

assim explana:

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Também pretoriano o modelo jurídico disciplinador das relações entre concubinos,

dada a inexistência de disposições legais sobre a espécie, preservando os direitos de

quem houvesse, por seu trabalho, contribuído para a formação de uma sociedade de

fato, merecedora de amparo. Desse modo, o concubinato perdeu a sua configuração

pejorativa para adquirir contornos de juridicidade, em função dos fatos e

circunstâncias.224

Embora a solução judicial tenha pacificado de certo modo o problema, ainda

permaneciam abertas questões como alimentos, herança, reconhecimento de direitos

previdenciários, e outros. O tratamento adequado do tema só ocorreu por ocasião da

Constituição de 1988, que em seu artigo 226, §3º, estabeleceu: “para efeito de proteção do

Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar,

devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”

Após a Constituição de 1988, com o definitivo reconhecimento da união estável

como entidade familiar sujeita à proteção estatal, foram editadas leis infraconstitucionais

disciplinando a matéria. O Código Civil de 2002 trouxe a regulamentação geral sobre o tema.

Percebe-se, portanto, novamente a influência das situações de fato sobre os

valores, que por sua vez refletem sobre as normas jurídicas, nos termos da teoria

tridimensional de Miguel Reale, pela qual acomodações pertinentes ocorrem após as

“tensões” dialéticas que marcam a relação entre os três elementos e possibilitam a evolução

do direito.

Na situação apresentada, revelou-se importante a fonte judicial do direito como

mola propulsora da mudança dos paradigmas normativos, pois os tribunais anteciparam-se ao

legislador ao delinearem a proteção jurídica aos conviventes.

Não obstante, ainda que toda essa evolução histórica do direito de família tenha

permitido ampliar a proteção legal a diversos núcleos familiares antes desamparados, mesmo

após a Constituição de 1988, remanesceu um grupo específico de pessoas às margens da

proteção legal: os grupos de pessoas conviventes em relações homoafetivas.

De fato, o reconhecimento das relações homoafetivas envolve dilemas religiosos e

morais, circunstância que sempre dificultou a aceitação da composição de núcleos familiares

entre pessoas do mesmo sexo. Mas, para além dos percalços religiosos, existia ainda um óbice

de índole constitucional, pois a Constituição de 1988, ao tratar da união estável,

expressamente refere-se a “homem e mulher”.

Diante deste obstáculo, restaria aos defensores desta causa enfrentar a questão no

âmbito parlamentar, trabalhando a aprovação de uma emenda constitucional que alterasse a

224 REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito – para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 2010, p.71.

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exigência da diversidade de sexo para o reconhecimento da união estável. No entanto, sabe-se

que a aprovação de uma emenda constitucional pressupõe requisitos mais rigorosos de

quórum, diante da rigidez peculiar à Lei Maior. Além disso, o debate no palco parlamentar

sobre questões envolvendo temas religiosos é uma batalha difícil, pois a representação de

segmentos religiosos da sociedade é significativa.

Como estratégia alternativa para se obter o reconhecimento de direitos decorrentes

das relações afetivas envolvendo pessoas do mesmo sexo buscou-se, então, a via judiciária.

Os tribunais locais, acuados pelos limites estabelecidos pelos parâmetros gramaticais

estabelecidos no §3º do artigo 226 da Constituição, não ousaram reconhecer a existência da

união estável homoafetiva. No entanto, avançaram reconhecendo ao menos alguns direitos

patrimoniais, adotando a tese da sociedade de fato mencionada, conforme se extrai do

seguinte julgado proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

UNIÃO ESTÁVEL. RECONHECIMENTO EM UNIÃO HOMOSSEXUAL.

SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA CORRETAMENTE DECRETADA.

Possibilidade de divisão de haveres apenas se demonstrada a existência de

verdadeira sociedade de fato, com união de esforços para a aquisição do acervo

patrimonial, qual se tratasse de uma sociedade mercantil comum. Descabimento de

seu reconhecimento como se tratasse de entidade familiar, com base apenas na

coabitação e vínculo afetivo. Apelo improvido. (BRASIL. Tribunal de Justiça do

Estado de São Paulo, Apelação com revisão n. 643.179.4/0, Acórdão n. 3697609,

Oitava câmara de Direito Privado, Rel. Des. Luiz Ambra, j.17-06-2009, DJESP 3-7-

2009, m.v.).

A despeito da recalcitrância dos tribunais locais, também foi buscado amparo no

controle concentrado de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, apostando-

se certamente numa postura “ativista” da Corte Maior, já que a depender do resultado obtido,

considerados os efeitos erga omnes da decisão, seria viabilizada a normatização definitiva da

questão.

E a aposta no “ativismo judicial” mostrou-se exitosa, conforme resultado do

julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.4.277 – Distrito Federal, de relatoria do

Ministro Carlos Ayres Brito, concluído em 05 de maio de 2011. A partir desta decisão,

conferiu-se uma nova interpretação ao artigo 226, §3º da Constituição Federal, reconhecendo

a possibilidade de criação de entidade familiar por pessoas do mesmo sexo, conforme

fundamento exposto na ementa do acórdão:

O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido

contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de

preconceito, à luz do inciso IV do art.3º da Constituição Federal, por colidir

frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos”. Silêncio

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normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como

saque da kelseniana “norma geral negativa”, segundo a qual “o que não estiver

juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”.

Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio

da “dignidade da pessoa humana”: direito à autoestima no mais elevado ponto da

consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da

proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O

concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais.

Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade

constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea.

Em outro trecho da ementa, restou consignado:

O caput do art.226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do

Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou

proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou

informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares

homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não

limita sua formação a casais heteroafetivos nem à formalidade cartorária, celebração

civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente

constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma

necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional

de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por

“intimidade e vida privada” (inciso X, art.5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e

pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual

direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura

central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação

não reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por

vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano

dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sociopolítico-

cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter,

interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da

coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual

das pessoas.

Diante dos fundamentos mencionados, percebe-se que o Supremo Tribunal

Federal, utilizando técnicas modernas de hermenêutica constitucional, utilizou princípios

recheados de intensa carga valorativa para afastar o óbice gramatical consistente na exigência

da conjugação homem/mulher para reconhecer a união estável, concluindo ser vedado o uso

da identidade de gênero como critério de discrímen para qualquer fim.

Como reflexo deste julgado, diante da impossibilidade do argumento de gênero

para qualquer espécie de tratamento diferenciado, não restou outra conclusão lógica que não o

reconhecimento, para além da união estável homoafetiva, também do casamento homoafetivo,

tanto que o Conselho Nacional de Justiça, após alguns debates sobre o tema, editou resolução

obrigando as unidades cartorárias de todo o país a procederem à habilitação, celebração e

lavratura o registro de casamento entre pessoas do mesmo sexo. Nesse sentido:

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RESOLUÇÃO Nº 175, DE 14 DE MAIO DE 2013

Dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união

estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo.

O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas

atribuições constitucionais e regimentais,

CONSIDERANDO a decisão do plenário do Conselho Nacional de Justiça, tomada

no julgamento do Ato Normativo n.0002626-65.2013.2.00.0000, na 169ª Sessão

Ordinária, realizada em 14 de maio de 2013;

CONSIDERANDO que o Supremo Tribunal Federal, nos acórdãos prolatados em

julgamento da ADPF 132/RJ e da ADI 4277/DF, reconheceu a inconstitucionalidade

de distinção de tratamento legal às uniões estáveis constituídas por pessoas de

mesmo sexo;

CONSIDERANDO que as referidas decisões foram proferidas com eficácia

vinculante à administração pública e aos demais órgãos do Poder Judiciário;

CONSIDERANDO que o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento do RESP

1.183.378/RS, decidiu inexistir óbices legais à celebração de casamento entre

pessoas de mesmo sexo;

CONSIDERANDO a competência do Conselho Nacional de Justiça, prevista no art.

103-B, da Constituição Federal de 1988;

RESOLVE: Art.1º É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação,

celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre

pessoas de mesmo sexo. Art.2º A recusa prevista no artigo 1º implicará a imediata

comunicação ao respectivo juiz corregedor para as providências cabíveis. Art.3º Esta

resolução entra em vigor na data de sua publicação.

Ministro Joaquim Barbosa Presidente.

Essa situação concreta, decorrente do julgamento da Ação Direta de

Inconstitucionalidade n. 4.227-DF, é extremamente polêmica, pois ensejou uma enorme

guinada no âmbito dos costumes em curto lapso temporal, devendo-se pontuar que uma

decisão similar à proferida pelo Supremo Tribunal Federal, do ano de 2011, seria

inimaginável nos primeiros anos de vigência da Constituição de 1988, circunstância

sintomática da importância dos valores como elementos influenciadores das fontes do direito,

com destaque especial, no presente caso, à fonte judicial.

Nesta hipótese em especial, encontra-se um exemplo claro e cristalino de

“ativismo judicial”, no qual prevaleceu a interpretação baseada nos princípios, em detrimento

da letra explícita do texto constitucional, evidenciando a preocupação voltada aos reflexos

sociais da decisão.

Um ponto de grande interesse que este julgado trouxe à tona refere-se à elevada

carga ideológica das decisões do Supremo Tribunal Federal, o que decorre de variadas causas,

dentre as quais, do fato de se tratar da corte constitucional brasileira, e por este motivo, ser o

órgão responsável pelas decisões judiciais de maior repercussão política. Outro fator é o modo

de escolha de seus integrantes, de caráter exclusivamente político, por livre decisão do

Presidente da República, e posterior sabatina do Senado Federal, com submissão ao preceito

constitucional vago de exigência de reputação ilibada, notável saber jurídico e idade entre 35

e 65 anos.

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No tocante a este tema, Patrícia Perrone Campos Mello escreveu artigo225 sobre o

comportamento ideológico no Supremo Tribunal Federal, buscando diagnosticar o perfil

ideológico dos seus Ministros, especialmente daqueles que passaram a integrar a casa nos

anos dos governos dos Presidentes Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e

Dilma Rousseff.

Sua primeira conclusão é que, muito embora seja possível detectar a existência de

certo grau de afinidade ideológica entre o Presidente da República e seu partido, de um lado, e

o ministro escolhido, de outro, não há nada parecido com a polarização ocorrida nos Estados

Unidos da América, onde a dicotomia entre republicanos e democratas resulta em forte

partidarização da Suprema Corte americana. Tanto assim é que durante os governos Lula

foram escolhidos ministros que apresentavam perfis mais técnicos, como Cezar Peluso e

Menezes Direito, e que não indicavam qualquer identificação ideológico-partidária com o

governo vigente226.

Outra conclusão é no sentido de que determinado o ministro, embora afinado a

certo perfil ideológico, não necessariamente decide de acordo com os interesses da pauta

política partidária adotada por quem o indicou. Embora o ex-presidente Lula tenha indicado

oito nomes para compor o Supremo Tribunal Federal durante os oito anos de seu governo, em

inúmeras oportunidades foi derrotado em questões judicializadas que versavam sobre temas

de interesse do projeto político de seu governo e partido227.

É de se esperar que um ministro do Supremo Tribunal Federal realmente não

venha a assumir posição político-partidária na corte mais importante do país, tratando-se de

imposição ética decorrente da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN). Mas ainda

que não se detecte qualquer desvio ético ou legal, a ideia de neutralidade nas decisões

judiciais é uma evidente ilusão, conforme já destacamos neste estudo. Nesse sentido, pontua

Patrícia Perrone:

Em síntese, ainda que questões políticas interfiram na seleção dos ministros do STF,

estes, uma vez empossados, declaram que sua função é julgar com independência e

se dizem mais comprometidos com projetar suas convicções pessoais sobre o direito

225 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Comportamento ideológico e estratégico no Supremo Tribunal Federal. In: (Coord.)

SARMENTO, Daniel. Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Forense, 2015. 226 Como observa Patrícia Perrone: “não há dúvidas de que os relacionamentos e as afinidades de pontos de vista podem

influenciar a seleção de candidatos a ministro do STF. No entanto, se predominasse no meio político a percepção de que a

questão ideológico-partidária é determinante dos entendimentos adotados pelos ministros, à semelhança do que ocorre no

caso norte-americano, os Ministros Cezar Peluso, Menezes Direito, Luiz Fux e Teori Zavascki seriam candidatos

improváveis para o Presidente Lula e para a Presidente Dilma, pois já haviam tido seus nomes cogitados ou acolhidos pelo

Presidente FHC, antagonista político de ambos”. (MELLO, Patrícia Perrone Campos. Comportamento ideológico e

estratégico no Supremo Tribunal Federal. In: (Coord.) SARMENTO, Daniel. Jurisdição constitucional e política. Rio de

Janeiro: Forense, 2015, p.287). 227 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Comportamento ideológico e estratégico no Supremo Tribunal Federal. In: (Coord.)

SARMENTO, Daniel. Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.287.

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do que propriamente com aderir a um plano ideológico partidário. Embora não se

deva excluir a possibilidade de influência partidária no julgamento de algumas

causas específicas ou no comportamento judicial de ministros mais sensíveis a esse

tipo de ingerência, há um conjunto mais amplo de ideias, valores, opiniões e crenças

que conformam a individualidade dos ministros e que interferem, no longo prazo, no

modo pelo qual eles reagem aos casos que lhes são trazidos a julgamento, sobre a

forma como os solucionam, sobre como percebem a função de julgar e seus limites e

até mesmo sobre a sua vinculação ou não a uma corrente político-partidária.228

A fim de demonstrar empiricamente as afirmações tomadas como premissa, ou

seja, a permeabilidade ideológica existente no tribunal mais importante do país, a autora traça

o perfil de três ministros que tiveram relevante protagonismo na história recente do Supremo

Tribunal Federal: Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes e Carlos Ayres Britto.

Ao analisar a trajetória de vida de Joaquim Barbosa, a autora refere-se à origem

humilde do ministro, primogênito de oito filhos, que com muito esforço cursou a faculdade de

direito e foi aprovado em concurso para integrar o Ministério Público Federal e, mais tarde,

cursou doutorado na França. Segundo a autora, foi o único ministro negro a compor a corte

durante o período em que esteve no cargo, após tomar posse em 25 de junho de 2003229.

Constata a autora uma personalidade forte e tendente a se posicionar contra o status quo

vigente, especialmente no que atina à manutenção de privilégios às classes componentes das

elites. Corriqueiramente entrava em conflitos com outros ministros ao adotar uma postura

firme para fazer prevalecer seus princípios. A partir da análise de alguns posicionamentos

firmados no Supremo Tribunal Federal, conclui-se que o ministro tinha como característica

principal a defesa dos grupos minoritários230.

Por outro lado, quando se refere ao ministro Gilmar Mendes, Patrícia Perrone

destaca seu perfil mais afinado ao estilo conservador e técnico. Foi empossado pelo presidente

Fernando Henrique Cardoso, em 2002, quando exercia o cargo de Advogado-Geral da União,

ostentando, assim, evidente proximidade política com o presidente. Desenvolveu carreira

acadêmica na Alemanha, onde cursou mestrado e doutorado e especializou-se nas técnicas de

controle concentrado de constitucionalidade, razão pela qual tornou-se o protagonista no

desenvolvimento destes métodos, trazidos do direito comparado, ao Supremo Tribunal

Federal231.

228 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Comportamento ideológico e estratégico no Supremo Tribunal Federal. In: (Coord.)

SARMENTO, Daniel. Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.292-293. 229 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Comportamento ideológico e estratégico no Supremo Tribunal Federal. In: (Coord.)

SARMENTO, Daniel. Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.293. 230 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Comportamento ideológico e estratégico no Supremo Tribunal Federal. In: (Coord.)

SARMENTO, Daniel. Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.299. 231 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Comportamento ideológico e estratégico no Supremo Tribunal Federal. In: (Coord.)

SARMENTO, Daniel. Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.304.

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No julgamento das ações que versam sobre a união estável homoafetiva, o

Ministro Gilmar Mendes posicionou-se de maneira restritiva, ao entender que o regime das

uniões heteroafetivas seriam aplicáveis apenas “dentro do que coubesse”, a denotar a

necessidade intervenção legislativa para melhor regulamentar a união entre pessoas do mesmo

sexo. Aliás, durante o julgamento, o Ministro objetou expressamente acerca dos limites

gramaticais da interpretação jurídica, especialmente no que se refere aos termos “homem” e

“mulher” constantes do artigo 226, §3º da Constituição, revelando assim um entendimento

mais positivista e menos ativista, o que nem sempre coincide com suas posições, pois é um

dos defensores, dentro das técnicas de controle de constitucionalidade, da “superação do

dogma do legislador negativo”232.

Ao final, o julgamento da ADIn n.4.277 ocorreu à unanimidade, pois as

divergências foram acomodadas no item 5 da ementa do Acórdão, que tem o seguinte texto:

5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO

ACÓRDÃO. Anotação de que os Ministro Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e

Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de

ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família

constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre

parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar. Matéria aberta

à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhecimento da imediata

autoaplicabilidade da Constituição.

Diante da relevância da questão, percebe-se que o Supremo Tribunal Federal

optou por acomodar as divergências no próprio âmbito do acórdão, mantendo a unanimidade

como forma de evitar a elaboração de votos com fundamentações opostas, garantindo-se,

assim, maior força à decisão, pois um julgamento por “maioria” poderia representar

enfraquecimento de um ponto extremamente controverso na sociedade.

De qualquer sorte, consideradas as características expostas, Patrícia Perrone

qualifica Gilmar Mendes como o ministro de posições moderadamente conservadoras e de

inovações metodológicas233.

Por derradeiro, a autora apresenta um breve perfil do ministro Carlos Ayres Britto,

relator da ADIn n.4.277. Preliminarmente, ressalta que se trata de Ministro com vínculos

históricos relacionados aos movimentos de esquerda e ao Partido dos Trabalhadores, do qual

232 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Comportamento ideológico e estratégico no Supremo Tribunal Federal. In: (Coord.)

SARMENTO, Daniel. Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.308. 233 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Comportamento ideológico e estratégico no Supremo Tribunal Federal. In: (Coord.)

SARMENTO, Daniel. Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.302.

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foi filiado por longos anos, e chegou a candidatar-se a deputado federal234. Foi nomeado ao

Supremo Tribunal Federal pelo ex-presidente Lula, em 2003.

Segundo a autora, a visão defendida pelo ministro nestas ações sobre uniões

homoafetivas, consideradas, a depender do ponto de vista, progressistas, também foram

sustentadas em diversos outros julgamentos de conteúdo polêmico. Dentre eles, citemos 1) a

ADIn n.3.510, que questionava a lei de biossegurança, ocasião em que se posicionou pela sua

constitucionalidade, de forma a permitir a pesquisa e a terapia com células-tronco

embrionárias; 2) ADPF n.130, que questionava a recepção da Lei de imprensa (Lei

n.5.250/67) pela Constituição, oportunidade em que sustentou não ter havido a recepção

integral do diploma normativo, argumentando que a liberdade de imprensa não seria passível

de regulação por norma infraconstitucional235; 3) ADPF n.54, ocasião em que se posicionou

favoravelmente à interrupção da gravidez na hipótese de fetos anencéfalos236.

Por estas razões, Ayres Britto é qualificado por Patrícia Perrone como o ministro

de posições progressistas237.

Enfim, com base nas questões apresentadas, é importante entender o Judiciário

como uma instituição ideologicamente permeável, em especial sua mais alta Corte, para se

compreender o que está por trás e o que impulsiona os magistrados a proferirem suas

decisões.

6.5 A justiça criminal e os reflexos da ideologia

Todas estas situações de colidências ideológicas verificadas nas questões

judiciárias pertinentes à área cível também são reproduzidas no âmbito penal, onde a

controvérsia é extremamente polêmica, por envolver um ponto bastante sensível à sociedade

brasileira, qual seja, a segurança pública, tendo em vista que o país ostenta índices elevados

de violência e criminalidade.

O modelo jurídico penal contemporâneo firmou-se, e não poderia ser diferente,

sob as bases do “legalismo”, nos moldes das ideias desenvolvidas pelo pensamento iluminista,

com significativa referência à Cesare Beccaria, conforme já abordado nesta pesquisa.

234 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Comportamento ideológico e estratégico no Supremo Tribunal Federal. In: (Coord.)

SARMENTO, Daniel. Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.289. 235 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Comportamento ideológico e estratégico no Supremo Tribunal Federal. In: (Coord.)

SARMENTO, Daniel. Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.301. 236 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Comportamento ideológico e estratégico no Supremo Tribunal Federal. In: (Coord.)

SARMENTO, Daniel. Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.302. 237 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Comportamento ideológico e estratégico no Supremo Tribunal Federal. In: (Coord.)

SARMENTO, Daniel. Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.299.

Page 123: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Rafael da ... · valiosas lições, devidamente aplicadas neste trabalho. ... 6.1 Observações preliminares 99 6.2 Contratos, garantias,

123

O modelo do Antigo Regime, absolutista, baseava-se no arbítrio e na imposição

de imoderados suplícios aos que afrontavam de alguma maneira a soberania monárquica.

Inúmeros exemplos podem ser colhidos da história relativos a castigos excessivos e

desproporcionais aplicados conforme a livre vontade dos reis nesta fase da história europeia.

As penas aplicadas decorriam de motivos pouco precisos, com base em tipos penais abertos.

A tortura e a pena de morte com requintes de crueldade eram habituais; usava-se

corriqueiramente a guilhotina, a forca e o esquartejamento públicos. Neste período, a pena

tinha menos o escopo de retribuir um mal cometido, e mais o intuito de amedrontar a

população. O castigo servia como exemplo a todos que cogitassem afrontar a ordem

jurídica238.

Beccaria e outros pensadores do período iluminista trouxeram uma visão

humanitária do direito penal, propondo a definição precisa dos tipos penais, de forma a

permitir que todos tenham o prévio conhecimento acerca das condutas passíveis de

reprimenda. As penas, por outro lado, devem ser proporcionais à gravidade do crime, ou seja,

a punição a ser aplicada deve corresponder ao mal causado, dentro de certos parâmetros

previamente fixados, sem excessos, inclusive no que atina aos familiares e descendentes do

condenado, que não podem ser atingidos pela pena239.

Portanto, a partir desta concepção, a pena deixou de ser vista por uma perspectiva

exclusivamente intimidatória. Adotou-se a concepção contratualista e utilitária do direito

penal, prestigiando o propósito de recompor a sociedade pela lesão suportada em virtude da

conduta criminosa. Logo, afasta-se a ideia do uso da pena como meio de vingança, a implicar

na rejeição das penas consideradas cruéis e também da pena de morte. Busca-se, por esta

visão, unicamente, apagar o mal ocorrido e, se possível, evitar sua reprodução240.

238 Conforme observa Oswaldo H. Duek Martins, ao tratar da justiça penal vigorante no período absolutista: “Na justiça

penal, não vigorava o princípio do duplo grau de jurisdição. As célebres frases de Luis XIV – “L’etat c’est moi” e “Le Juge

c’est moi” – caracterizavam a justiça da época. O poder não admitia partilhas. Nas mãos dos monarcas absolutos, o suplício

infligido aos criminosos não tinha por finalidade restabelecer a justiça, mas reafirmar o poder do soberano. A pena, sem

qualquer proporção com o crime cometido, não possuía nenhum conteúdo jurídico nem qualquer objetivo de emenda do

condenado. Sua aplicação tinha a função utilitária de intimidar a população por meio do castigo e do sofrimento infligido ao

culpado”. (MARQUES, Oswaldo H. Duek. Fundamentos da pena. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.97-98). 239 Oswaldo Duek, ao abordar o pensamento desenvolvido por Beccaria e outros filósofos iluministas, assim observa: “Com a

nova corrente filosófica, a pena passou a ser aplicada de modo proporcional ao dano causado pelo crime e à necessidade de

sua imposição, seja pela reprovabilidade da conduta, seja para a prevenção de infrações futuras ou, ainda, para a segurança e

a tranquilidade social. E a justiça da pena estaria consubstanciada nessa proporcionalidade. Além disso, a sanção, por mais

grave que fosse, não poderia ultrapassar a pessoa do criminoso. O princípio da personalidade da pena tornou-se imperativo

constitucional”. (MARQUES, Oswaldo H. Duek. Fundamentos da pena. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.134). 240 Michel Foucault, ao tratar da visão adotada pelos filósofos iluministas acerca da função da pena, assim observa: “Se o

crime é um dano social, se o criminoso é o inimigo da sociedade, como a lei penal deve tratar esse criminoso ou deve reagir a

esse crime? Se o crime é uma perturbação para a sociedade; se o crime não tem mais nada a ver com a falta, com a lei natural,

divina, religiosa, etc., é claro que a lei penal não deve prescrever uma vingança, a redenção de um pecado. A lei penal deve

apenas permitir a reparação da perturbação causada à sociedade. A lei penal deve ser feita de tal maneira que o dano causado

pelo indivíduo seja apagado; se isso não for possível, é preciso que o dano não possa mais ser recomeçado pelo indivíduo em

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124

Este modelo foi incorporado aos padrões dos Estados de Direito ocidentais e

acolhidos em grande parte dos textos constitucionais das nações democráticas. Neste sentido,

é possível mencionar diversos dispositivos da Constituição de 1988 estabelecidos no rol de

direitos e garantias fundamentais, dentre os quais, o artigo 5º, XLV, XLIX, e em especial, o

inciso XLVII, que ora se transcreve: “não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra

declarada, nos termos do artigo 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d)

de banimento; e) cruéis”.

A consolidação deste modelo no decorrer dos anos, no entanto, enfrentou diversos

obstáculos práticos e não se encontrou imune a críticas que, evidentemente, são muito amplas

e não permitem seu aprofundamento. Necessário, no entanto, pontuar algumas das críticas,

especialmente as que aludem às consequências sociais negativas do sistema penal vigente.

Retoma-se, aqui, o debate entre o legalismo e os reflexos sociais das decisões

judiciais. Para os críticos do legalismo, os sistemas penais estabelecidos após as revoluções

liberais, apesar de terem enterrado de vez as mazelas do Antigo Regime, apegaram-se demais

ao tecnicismo jurídico.

Ainda que as condutas criminosas tenham passado a ser objeto de definição

precisa e clara, e as penas fixadas com base no critério da proporcionalidade, além de abolidas

as penas cruéis e humilhantes, deve-se considerar que o modelo moderno de cumprimento das

penas, pautado na privação da liberdade e custódia em estabelecimentos prisionais, trouxe

repercussão social nefasta, ao menos sob determinado ponto de vista.

Os estabelecimentos prisionais, segundo esta visão crítica, tornaram-se grandes

depósitos de grupos marginalizados, integrantes das escalas sociais mais baixas, e sem

qualquer perspectiva de recuperação e de reintegração social.

Aqui, constata-se que a crítica tem um nítido suporte marxista. É o direito penal

concebido como uma forma de controle e opressão realizada pelos grupos sociais dominantes

em detrimento das classes marginalizadas.

Oswaldo H. Duek Marques observa com precisão um desses movimentos de

crítica ao sistema penal, que encontra respaldo na visão marxista, denominado “política

criminal alternativa”:

Os seguidores dessa política alternativa partem do pressuposto de que o sistema

punitivo encontra-se organizado de forma ideológica, porquanto protege o interesse

das classes dominantes, em detrimento das mais enfraquecidas. Sustentam, em

síntese, que os códigos, de uma maneira geral, deixam livres de penas

questão ou por outro. A lei penal deve reparar o mal ou impedir que males semelhantes possam ser cometidos contra o corpo

social”. (FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3.ed. Rio de Janeiro: Nau, 2008, p.82).

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125

comportamentos graves e socialmente onerosos, como a criminalidade econômica,

porque os respectivos autores pertencem a classes dominantes. Em contrapartida,

alegam que as legislações punem com rigor condutas próprias de grupos

marginalizados.241

Dentre os que desenvolveram um pensamento crítico acerca do direito penal

contemporâneo, menciona-se Michel Foucault como um dos nomes inegavelmente influentes.

Seu pensamento e suas obras aprofundaram a crítica marxista, especialmente no que atina aos

métodos de repressão social, razão pela qual é, em regra, enquadrado como um filósofo

“neomarxista”242.

A obra “A verdade e as formas jurídicas”243, conjunto de conferências proferidas

por Foucault na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, entre 21 e 25 de maio de

1973, permite obter uma síntese precisa de suas ideias relativas à crítica do sistema penal.

Nesta publicação, Foucault analisa de forma bastante original a evolução dos

meios de prova nos processos judiciais criminais para demonstrar que a forma de se obter a

verdade e o conhecimento se transforma de acordo com as relações de poder estabelecidas244.

Foucault traz um panorama dos sistemas penais vigentes na Idade Média e na

Idade Moderna da história europeia, analisando como ocorreram as transformações destes

períodos. Aborda a evolução do modelo medieval, considerado bárbaro e arcaico, para o

moderno modelo inquisitorial adotado pelas monarquias absolutistas245.

Ao final, rejeita a ideia de que as mudanças decorreram de uma maior

racionalização dos sistemas, pois entende que estas alterações de paradigmas são meros

reflexos das formas de se acumular riquezas prevalentes nas respectivas épocas. Para o

filósofo francês, a questão não se insere no âmbito da maior ou menor racionalidade, mas no

plano do desenvolvimento das formas de poder246.

241 MARQUES, Oswaldo H. Duek. Fundamentos da pena. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.166. 242 Alysson Leandro Mascaro não o considera um pensador marxista, conforme afirma em Lições de sociologia do direito.

2.ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p.161. 243 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3.ed. Rio de Janeiro: Nau, 2008. 244 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3.ed. Rio de Janeiro: Nau, 2008, p. 27. 245 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3.ed. Rio de Janeiro: Nau, 2008, p.72. 246“Costuma-se opor as velhas provas do direito bárbaro ao novo procedimento racional do inquérito. Evoquei acima as

diferentes maneiras pelas quais se tentava estabelecer quem tinha razão na Alta Idade Média. Temos a impressão de serem

sistemas bárbaros, arcaicos, irracionais. Fica-se impressionado com o fato de ter sido necessário esperar até o século XII para

finalmente se chegar, com o procedimento do inquérito, a um sistema racional de estabelecimento da verdade. Não creio, no

entanto, que o procedimento de inquérito seja simplesmente o resultado de uma espécie de progresso da racionalidade. Não

foi racionalizando os procedimentos judiciários que se chegou ao procedimento do inquérito. Foi toda uma transformação

política, uma nova estrutura política que tornou não só possível, mas necessária a utilização desse procedimento no domínio

judiciário. O inquérito na Europa Medieval é sobretudo um processo de governo, uma técnica de administração, uma

modalidade de gestão; em outras palavras, o inquérito é uma determinada maneira do poder se exercer. Estaríamos enganados

se víssemos no inquérito o resultado natural de uma razão que atua sobre si mesma, se elabora, faz seus próprios progressos;

se víssemos o efeito de um conhecimento, de um sujeito de conhecimento se elaborando. Nenhuma história feita em termos

de progresso da razão, de refinamento do conhecimento, pode dar conta da aquisição da racionalidade do inquérito. Seu

aparecimento é um fenômeno político complexo. É a análise das transformações políticas da sociedade medieval que explica

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126

No direito medieval, em fase que antecede a formação dos Estados modernos, a

forma de se solucionar determinado litígio judicial se dava por intermédio do sistema de

disputas e desafios. Trata-se dos ordálios, provas corporais nas quais uma das partes era

submetida a uma espécie de competição, como por exemplo, caminhar sobre brasas, e a

depender dos resultados ou das marcas físicas dali decorrentes, obtinha desfecho favorável ou

não247.

Nesse sistema, pouco importava a realidade dos fatos, mas tão somente o

resultado obtido por estas “provas”. Tratava-se de uma disputa privada na qual havia a

anuência das partes em participar, e cujo desenrolar era apenas fiscalizado por uma

autoridade.

Para Foucault, este modelo, longe de representar uma visão mística da justiça,

pela qual as partes envolvidas ficavam submetidas a uma espécie de julgamento divino, na

realidade trazia por detrás toda uma engrenagem apta a justificar o acúmulo de riquezas e de

poder por determinado grupo social.

Ora, na Idade Média, em fase anterior ao capitalismo, o acúmulo de riquezas se

concretizava em grande parte por intermédio de ocupações violentas de terras; grupos

armados buscavam expandir seus territórios através de métodos militares revelando um

verdadeiro estado de guerra248. Nesse sentido, conforme adverte Foucault, “a prova judiciária

é uma maneira de ritualizar a guerra ou de transpô-la simbolicamente”249.

Considerando que as riquezas circulavam e se transmitiam por meios belicosos e,

muitas vezes violento, a parte que se sentisse prejudicada tinha oportunidade de questionar

judicialmente o esbulho eventualmente sofrido, ocasião em que se estabeleciam as “provas” e

os desafios como meio de definir quem tinha ou não o direito discutido.

Evidentemente estes desafios eram formulados de molde a favorecer quem

ostentasse maior poderio militar, que, portanto, tendia a acumular maior quantidade de bens,

numa escala progressiva, e, por consequência, a exercer maior controle sobre os processos

judiciais. Isto traduz, assim, a ideia de que as formas de se obter a verdade nos processos

judiciais nada mais eram do que uma forma de exercício do poder por quem o detinha250.

como, porque e em que momento aparece este tipo de estabelecimento da verdade a partir de procedimentos jurídicos

completamente diferentes. Nenhuma referência a um sujeito de conhecimento e a sua história interna daria conta desse

fenômeno. Somente a análise dos jogos de força política, das relações de poder, pode explicar o surgimento do inquérito.”

(FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3.ed. Rio de Janeiro: Nau, 2008, p.72-73). 247 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3.ed. Rio de Janeiro: Nau, 2008, p.60. 248 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3.ed. Rio de Janeiro: Nau, 2008, p.63. 249 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3.ed. Rio de Janeiro: Nau, 2008, p.62. 250 “Há, portanto, uma dupla tendência característica da sociedade feudal. Por um lado há uma concentração de armas em

mãos dos mais poderosos. Vencer alguém é privá-lo de suas armas, derivando daí uma concentração do poder armado que

deu mais força, nos estados feudais, aos mais poderosos e finalmente ao mais poderoso de todos, o monarca. Por outro lado e

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127

Com a formação das monarquias em período mais avançado da Idade Média, esse

sistema passa a ser substituído por um novo modelo de apuração da responsabilidade pela

prática de delitos, o “inquérito” 251, que não mais se baseava em juízos aleatórios de origem

alegadamente mística, mas na reconstituição histórica dos fatos.

Por intermédio do inquérito, o representante do rei reunia pessoas com

determinado conceito social e conhecimento jurídico, e mediante juramento as questionava

acerca do fato criminoso pendente de elucidação. Colhidas as informações pertinentes,

deliberava-se sobre a autoria e a materialidade delitiva252.

Foucault contesta o mito de maior racionalidade do sistema inquisitorial em

relação ao modelo bárbaro, pois em sua visão, essa transmudação decorre unicamente das

alterações político-econômicas ocorridas no período.

A monarquia torna-se detentora do interesse de punir e da manutenção da paz e da

ordem, e na condição de parte diretamente envolvida na condução do processo, não admitiria

um modelo similar ao bárbaro, dado que as provas e os desafios caracterizavam-se por

disputas privadas253. Necessário, portanto, um novo controle sobre os mecanismos de

condução dos litígios judiciais, com o qual o sistema do inquérito apresenta maior utilidade,

inclusive diante do interesse da coroa em confiscar os bens e as terras dos súditos condenados

por práticas criminosas254.

Esse modelo inquisitorial tornou-se o paradigma em vigor por alguns séculos; ele

foi objeto de questionamento e revisão apenas no século XVIII, a partir das ideias iluministas

e humanistas defendidas por Beccaria, dentre outros.

Mas, neste ponto, Foucault traz um novo questionamento: a pena de prisão,

difundida a partir do início do século XIX e que acabou se tornando o grande padrão punitivo

na esfera criminal, não constava dos projetos reformadores propugnados no período iluminista

do século XVIII, pouco merecendo menção de Beccaria, inclusive. Afirma o filósofo francês

que a prisão não decorre de qualquer formulação teórica consistente. É uma instituição cuja

origem pode ser atribuída a um fato social, tratando-se, em verdade, de uma anomalia 255.

simultaneamente há as ações e os litígios judiciários que eram uma maneira de fazer circular os bens. Compreende-se assim,

porque os mais poderosos procuravam controlar os litígios judiciários, impedindo que eles se desenvolvessem

espontaneamente entre os indivíduos e porque tentaram apossar-se da circulação judiciária e litigiosa dos bens, o que

implicou na concentração das armas e do poder judiciário, que se formava na época, nas mãos dos mesmos indivíduos”.

(FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3.ed. Rio de Janeiro: Nau, 2008, p.64). 251 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3.ed. Rio de Janeiro: Nau, 2008, p.68. 252 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3.ed. Rio de Janeiro: Nau, 2008, p.69. 253 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3.ed. Rio de Janeiro: Nau, 2008, p.67. 254 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3.ed. Rio de Janeiro: Nau, 2008, p.67. 255 “Essa forma de penalidade aplicada às virtualidades dos indivíduos, de penalidade que procura corrigi-los pela reclusão e

pelo internamento não pertence, na verdade, ao universo do Direito, não nasce da teoria jurídica do crime, não é derivada dos

grandes reformadores como Beccaria. Essa ideia de uma penalidade que procura corrigir aprisionando é uma ideia policial,

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128

Desta forma, novamente Foucault rejeita a ideia de racionalidade no sistema

penal, ao esclarecer que essa nova guinada no desenvolvimento dos sistemas de repressão

penal ocidentais decorreu de novas exigências de um capitalismo de caráter industrial que se

desenvolvia, e que impunha o estabelecimento de uma sociedade disciplinar. Tratava-se de

um novo mecanismo de poder que brotava da experiência social e tornava-se útil ao exercício

do controle das pessoas nesta nova etapa do capitalismo256.

Nesta nova sociedade industrial, na qual o processo de urbanização se

intensificava, as riquezas começaram a ser reveladas nas máquinas, mercadorias, estoques,

enfim, bens materiais expostos à depredação e rapinagem, especialmente diante das fileiras de

miseráveis e desempregados que passavam a povoar as grandes cidades. Contrariamente, nos

séculos anteriores, as riquezas não se revelavam desta forma, mas pelas propriedades

imobiliárias e pelos títulos de crédito. Essa nova configuração da economia passou a exigir

uma forma diversa de controle social baseado na vigilância. Surgem, a partir de então, as

polícias, que começam a exercer ostensivamente a proteção do patrimônio privado. Assim

observa Foucault:

No século XVIII aparece uma forma de riqueza que é agora investida no interior de

um novo tipo de materialidade não mais monetária; que é investida em mercadorias,

estoques, máquinas, oficinas, matérias-primas, mercadorias que estão para ser

expedidas, etc. E o nascimento do capitalismo ou a transformação e aceleração da

instalação do capitalismo vai se traduzir neste novo modo da fortuna se investir

materialmente. Ora, essa fortuna constituída de estoques, matérias-primas, objetos

importados, máquinas, oficinas, etc., está diretamente exposta à depredação. Toda

essa população de gente pobre, de desempregados, de pessoas que procuram

trabalho tem agora uma espécie de contato direto, físico com a fortuna, com a

riqueza. O roubo de navios, a pilhagem dos armazéns e dos estoques, as depredações

nas oficinas tornaram-se comuns no fim do século XVIII na Inglaterra. E justamente

o grande problema do poder na Inglaterra nesta época, é o de instaurar mecanismo

de controle que permita a proteção dessa nova forma material de fortuna.257

Esse modelo de vigilância se aperfeiçoa e padroniza os mecanismos de controle,

que vão sendo gradativamente implementados nos diversos ambientes da sociedade, como

prisões, fábricas, escolas, hospitais, a ponto de restringir quase absolutamente a liberdade das

pessoas:

Para que servem essa rede e essas instituições? Podemos caracterizar a função destas

instituições da seguinte maneira. Primeiramente, estas instituições-pedagógicas,

médicas, penais ou industriais – têm a propriedade muito curiosa de implicarem o

controle, a responsabilidade sobre a totalidade, ou a quase-totalidade do tempo dos

nascida paralelamente à justiça, fora da justiça, em uma prática dos controles sociais ou em um sistema de trocas entre a

demanda do grupo e o exercício do poder”. (FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3.ed. Rio de Janeiro:

Nau, 2008, p. 99). 256 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3.ed. Rio de Janeiro: Nau, 2008, p.99. 257 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3.ed. Rio de Janeiro: Nau, 2008, p.100-101.

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indivíduos; são, portanto, instituições que, de certa forma, se encarregam de toda a

dimensão temporal da vida dos indivíduos.258

Portanto, as penas restritivas de liberdade e os sistemas penitenciários delas

decorrentes, na visão de Foucault, são consequências das formas de poder estabelecidas como

instrumentos hábeis de controle social pelos detentores dos meios de produção da economia.

Este poder não tem nenhum compromisso com a racionalidade, pelo contrário, tem o condão

de se sobrepor a quaisquer teorias racionais.

Aqui, a digressão extensa acerca do pensamento de Michel Foucault formulada

nas conferências reunidas na obra “A verdade e as formas jurídicas” tem sua razão de ser.

Isto, porque, o filósofo neomarxista é um dos grandes ícones do pensamento crítico de

esquerda no que se refere à teoria criminal. Então, para a finalidade deste estudo, utiliza-se

seu modo de pensar como forma de se expressar essa visão crítica.

Evidentemente há a influência de seu pensamento sobre muitos estudiosos e

doutrinadores da área do direito penal, o que certamente tem sua cota de penetração no

Judiciário, ainda que prevaleça uma visão mais ortodoxa nos tribunais.

Segundo Foucault, o atual sistema penal, baseado na repressão criminal com base

nas penas privativas de liberdade, constitui-se em modelo projetado como forma de se exercer

controle e poder no contexto da sociedade capitalista industrial. Isto significa que os sujeitos

submetidos às sanções penais e respectivas formas de cumprimento representam peças numa

engrenagem superior de opressão, da qual são vítimas. Neste esquema, está mais reduzido o

espaço para o livre-arbítrio, a justificar a compreensão da ação criminosa como fruto de um

determinismo social.

Mas ainda que se adote este ponto de vista, seria inimaginável sustentar o

abolicionismo penal pleno num momento histórico no qual cidades superpovoadas

apresentam padrões de violência e índices de criminalidade alarmantes, com práticas

cotidianas de crimes de elevado potencial ofensivo, como roubos, extorsões mediante

sequestro, latrocínios, estupros e homicídios.

Neste interregno de vigência do Código Penal de 1940, várias leis foram editadas

com o objetivo de se amenizar a repressão penal no que tange aos crimes menos graves,

implementando-se penas restritivas de direitos (Lei n.9.714, de 1998), além da possibilidade

de transação penal e da suspensão do processo (Lei n.9.099, de 1995), a depender do caso,

remanescendo a prisão para delitos mais graves.

258 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3.ed. Rio de Janeiro: Nau, 2008, p.115-116.

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De qualquer sorte, embora inviável qualquer pretensão abolicionista, os

magistrados que exibem em sua formação intelectual a influência de Foucault e outros

filósofos críticos, tendem a ver a figura do criminoso sob a perspectiva de uma lente diferente,

comparando-se aos que se pautam por padrão mais ortodoxo e legalista.

E sob este enfoque, acabam sendo desenvolvidas posturas judiciais mais flexíveis,

denominadas “laxistas”, pelas quais os julgamentos tendem a ser feitos com uma filtragem

mais restritiva em relação aos meios de prova obtidos para a instrução, a denotar maior

desconfiança em relação aos agentes públicos, especialmente as polícias, refletindo em maior

número de absolvições. De outro lado, mesmo nas condenações, há maior condescendência

quanto à aplicação de benefícios penais, tanto para fixar as penas como no que atina aos

regimes de cumprimento.

Como reação a estes posicionamentos, há os que imputam a condescendência

como uma das causas da impunidade, que, por sua vez, refletem os níveis de total descontrole

social gerado pela criminalidade no país.

Existe, de fato, a díade esquerda/direita no âmbito do direito penal. A postura

laxista está do lado esquerdo da bússola, e a rigorista, de outro lado, numa posição mais

conservadora, portanto, afinada à direita. Nesse sentido, Ricardo Dip observou que essa

divisão chegou a ser estabelecida, embora expresse não concordar plenamente com ela:

Entre nós, muito frequentemente se tem referido – com acerto ou exagero – a uma

lassidão judiciária no que concerne a crimes de notória gravidade social e

intensamente difundidos nestes tempos: p. ex., o crime de roubo. A dimensão da

crítica já atingiu os veículos de comunicação massiva. Em algum tempo, aventou-se

que se estaria a tratar, muito limitadamente embora, da continuidade de um

confronto ideológico (ou político) entre direita e esquerda. Ao modelo da direita era

bastante gráfica a referência simbólica à tolerância zero, do prefeito Rudolph

Giuliani, de Nova York, e de Willian Bratton; à tipologia da esquerda convinha,

impressivamente, acenar ao garantismo de Ferrajoli. O discurso prático-prático

tendeu a ressentir-se, muita vez, da mera troca de tópicos, como clausura de debates:

o rigorismo, direitista, caudatário da neurose de insegurança; o laxismo, esquerdista,

tomando-se o incômodo de recusar simpliciter o livre arbítrio e, com isso,

responsabilizar-se, na linguagem de Georges Fenech, pela expedição de “passaportes

para o mundo da criminalidade”. (Tolerance zero, ed. Gasset & Fasquelle, Paris,

2001).259

Em termos práticos, um exemplo jurisprudencial que pode de certa forma trazer à

tona este debate ideológico entre laxistas e rigoristas, ou esquerda e direita, diz respeito à

aplicação do princípio da adequação social.

259 DIP, Ricardo; MORAES JR., Volney Corrêa Leite de. Crime e castigo – reflexões politicamente incorretas. Campinas –

SP: Millenium, 2002, p.191-192.

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Por este princípio, ao verificar determinada conduta, o juiz não deve atentar-se

única e exclusivamente ao enquadramento formal à descrição do tipo penal. Deve, ainda,

investigar o grau de lesividade social. Surge, aqui, o conceito de tipicidade material, pois ao

se adotar esta orientação, o fato, para ser considerado típico, além de enquadrar-se

formalmente a uma descrição legal acerca de determinado crime, também deve ser

socialmente relevante 260.

Reaparece a dicotomia entre “legalismo” e “consequências sociais da decisão

judicial”. Ao se adotar uma posição estritamente legalista, o juiz se contentará com a

tipicidade formal, ou seja, verificar a coincidência entre as circunstâncias de fato e os

elementos estabelecidos na norma penal. De outro lado, um magistrado mais atento às

consequências sociais de sua decisão buscará diagnosticar a repercussão social que a ação

supostamente criminosa tenha causado.

Evidentemente certas situações são inquestionáveis, como, por exemplo, o furto

de um alfinete, que inevitavelmente ensejará a absolvição, ou melhor, sequer desencadeará

um processo judicial, por incidir no princípio da insignificância. Mas inúmeras hipóteses e

situações podem se revelar duvidosas e controvertidas, abrindo espaço para um debate de teor

ideológico.

Relevante mencionar o julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

(Apelação n. 0009455-61.2013.8.26.0348), proferido pela 7ª Câmara de Direito Criminal, em

15 de outubro de 2015, cujo objeto é uma questão simples: um furto praticado em uma

residência, mediante escalada de muro e arrombamento, de bens de pequeno valor, avaliados

em R$ 183,00.

O julgamento confirmou a condenação em primeiro grau, mas o resultado não foi

unânime, pois a magistrada vencida, desembargadora Kenarik Boujikian, entendeu pertinente

aplicar o princípio da insignificância, fundamentando sua decisão nos conceitos de

intervenção mínima do Estado, atipicidade material da conduta e irrelevância social, conforme

se depreende da seguinte ementa:

EMENTA: Furto qualificado tentado. Insignificância. Ocorrência.

I. Tipicidade formal pelo exato enquadramento da conduta à norma, mas ausente a

tipicidade material por irrelevância penal da conduta do agente.

II. Fragmentariedade e intervenção mínima do Estado como cerne da aplicação do

Direito Penal.

260 Guilherme de Souza Nucci faz as seguintes ponderações sobre o princípio da adequação social: “Com relação à adequação

social, pode-se sustentar que uma conduta aceita e aprovada consensualmente pela sociedade, ainda que não se constitua em

justificação, pode ser entendida como não lesiva ao bem jurídico tutelado”. (NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal

comentado. 11.ed. São Paulo: RT, 2012, p.174).

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III. Atipicidade material da conduta capitulada no artigo 155, §4º, incisos I e II, por

força da aplicação do princípio da insignificância.

IV. Atipicidade material da conduta, em razão da incidência do princípio da

insignificância. Valor irrisório dos bens furtados, avaliado em R$ 183,00 (cento e

oitenta e três reais), somado às declarações que informam que parte dos bens

estavam quebrados, o que torna duvidoso os valores apontados no auto de avaliação.

V. Negado provimento ao recurso do Ministério Público.

Possibilidade de reformatio in melius em caso de recurso exclusivo do Ministério

Público. Absolvição do réu com fundamento no artigo 386, inciso III, do Código de

Processo Penal.

Recurso não provido.

Este posicionamento, entretanto, não foi recepcionado pelos demais integrantes da

câmara criminal, prevalecendo o entendimento divergente, conforme voto do desembargador

Amaro Thomé, no qual foi consignada a ausência de previsão legal para aplicar o princípio da

insignificância, a revelar uma posição mais legalista. Não obstante, o magistrado esclareceu,

reforçando sua argumentação, que o crime teria sido praticado por agente reincidente e na

forma qualificada, a denotar gravidade social hábil a justificar a punição. Nesse sentido:

A prova é contundente: o réu confessa a subtração, esclarece que ingressou no local

pulando o muro da residência e que arrombou uma porta, ao passo que a vítima e o

policial não deixam dúvidas com relação aos fatos narrados na denúncia.

Outrossim, as qualificadoras da escalada e do rompimento de obstáculo foram

devidamente comprovadas pelo laudo pericial que atestou que o acesso ao imóvel

ocorreu com a escalada de um muro com cerca de dois metros de altura e com o

rompimento do trinco de uma porta de madeira da garagem e de uma edícula nos

fundos da casa.

Não deve ser reconhecida, nesse caso, a incidência do princípio da insignificância,

uma vez que, além de não haver previsão legal da excludente de tipicidade em

questão, os elementos probatórios atestam que os bens subtraídos possuem valor

econômico e que este não é insignificante.

Além disso, é o réu reincidente (cf. certidões às fls. 82/85), o que impede o

reconhecimento do princípio da insignificância, uma vez que é a primariedade um

dos seus requisitos.

Por fim, não se pode olvidar que os Tribunais Superiores são firmes no

entendimento de que o aludido princípio não se aplica para os casos de furto

qualificado.

A divergência explicitada, envolvendo teses contrapostas adotadas por dois

magistrados componentes do mesmo órgão colegiado, evidencia a dicotomia relacionada aos

paradigmas do legalismo e das consequências sociais das decisões judiciais, refletindo, de

outra sorte, posições que provavelmente sustentam-se em visões ideológicas antagônicas

acerca da justiça criminal.

Neste caso, a posição vencedora adotou uma posição legalista, pois o magistrado

analisou o material probatório e concluiu que a conduta era plenamente adequada ao tipo

penal, ostentando a antijuridicidade necessária para justificar um decreto condenatório.

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A magistrada vencida, por sua vez, apesar de não divergir do resultado das provas,

buscou conferir ao caso consequência jurídica diversa, afastando-se do formalismo legal para

absolver o réu, por entender que a conduta praticada, embora subsumida ao tipo penal

previsto no artigo 155, §4º, I e IV do Código Penal, não trazia repercussão social grave hábil a

embasar uma condenação, incorporando um posicionamento que se aproxima do ativismo

judicial.

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7 CONCLUSÃO

Superada qualquer pretensão de neutralidade do juiz, não há como desvinculá-lo

das ideologias que subsidiam e dão suporte às suas decisões. E as ideologias são puras

consequências dos valores, que se moldam e se desenvolvem gradualmente no palco da

história, inseridos em um processo dinâmico que pode ser denominado, grosso modo, de

cultura.

A decisão judicial, que é uma das fontes do direito, reflete inexoravelmente a

carga de valores adquirida pelos juízes no decorrer de suas experiências de vida. Portanto,

para se compreender melhor o Poder Judiciário, detectar suas virtudes, falhas e contradições,

é necessário primeiro obter um panorama geral dos valores que influenciam

preponderantemente os integrantes desta esfera de poder.

E para compreender melhor, ouvir a opinião dos próprios juízes pode ser um bom

ponto de partida, razão pela qual foram colhidos os resultados de pesquisa realizada pela

Associação dos Magistrados Brasileiros, em 2005, e do censo judiciário do Conselho

Nacional de Justiça, realizado em 2013.

Como destaque mais expressivo destas pesquisas, tem-se o fato de que um

percentual significativo dos juízes, de forma simultânea, informou adotar como parâmetro de

julgamento tanto a lei, de um lado, como os reflexos sociais das decisões, de outro.

Mas, conforme ressaltado, ouvir a opinião dos próprios juízes sobre o modo como

julgam as causas é apenas um ponto de partida, que traz uma ideia superficial do problema, a

exigir, evidentemente, uma investigação histórica mais profunda.

Esse aspecto histórico é extremamente relevante, pois o juiz contemporâneo não

se dissocia do seu passado, dos valores que contribuíram para a formação de sua

personalidade, seu modo de ver e de interpretar as coisas da vida.

Nesta análise histórica, exige-se a investigação tanto das bases do “legalismo”,

como das “consequências sociais das decisões judiciais”.

O legalismo tem origem na formação do Estado moderno, e inicialmente adotou

contornos absolutistas. Mas, no decorrer dos anos, e após superar inúmeros conflitos, acabou

incorporando um delineamento liberal, cuja consolidação ocorreu no século XVIII. Pela

perspectiva legalista, o Estado existe para cumprir a missão de garantir estabilidade ao corpo

social, ostentando como valor de maior destaque, portanto, a segurança jurídica. Logo, pela

visão legalista, as decisões judiciais devem ser uniformes e previsíveis.

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Sob o prisma ideológico, o legalismo busca conservar as instituições, de forma a

manter a estrutura econômica e jurídica vigentes, evitando-se mudanças drásticas. Portanto,

dentro do padrão prevalente acerca das diretrizes ideológicas, o legalismo enquadra-se melhor

no conceito de “direita”.

De outra sorte, a preocupação com as consequências sociais das decisões judiciais

decorre de uma visão crítica do direito, e pressupõe a ideia de que a estrutura jurídica

consolidada tem por escopo proteger as classes sociais dominantes e, por consequência,

manter um sistema econômico injusto e desigual.

Assim, pela perspectiva das “consequências sociais”, as decisões judiciais devem

servir como instrumento de transformações do sistema, ainda que gradativas, a fim de se

viabilizar maiores conquistas sociais. Esta visão do direito dá ensejo ao denominado

“ativismo judicial”, pois impõe ao juiz que adote posições mais ousadas e flexíveis, valendo-

se de uma interpretação de caráter substancialmente principiológico.

Essa visão crítica do direito tem origem no pensamento de Karl Marx, filósofo do

século XIX. O pensamento marxista, desenvolvido e aprimorado posteriormente por diversos

outros filósofos, obteve grande penetração acadêmica no período posterior à Segunda Grande

Guerra, com a denominada “Guerra Fria”, e no caso brasileiro, em especial, ganhou maior

força com a instalação da ditadura militar a partir do ano de 1964.

Dentro das vertentes ideológicas consagradas, evidentemente que a preocupação

com as consequências sociais das decisões judiciais, por adotar uma visão igualitarista,

adequa-se ao que se denomina “esquerda”.

Enfim, estas duas posturas verificados no Judiciário, apesar de simultaneamente

preponderantes, nem sempre são conciliáveis, o que acaba se refletindo na jurisprudência, que

apresenta diversos exemplos de atritos. O padrão “legalista”, que há poucas décadas

dominava a jurisprudência brasileira, vem cedendo espaço ao “ativismo judicial”. Trata-se de

uma mudança de postura, ocorrida de maneira gradual e que permite verificar incontáveis

colidências nos entendimentos expressos em julgados.

De fato, as situações exemplificadas em capítulo anterior demonstram a fase de

extrema conflituosidade ideológica vivenciada pelo Poder Judiciário pátrio na atual

conjuntura, indicando, de certa forma, um momento de crise de identidade, dada a evidente

dificuldade de conciliação entre o paradigma da segurança jurídica – tão buscado dentro da

lógica padronizadora capitalista – e o intervencionismo casuístico verificado no âmbito do

ativismo judicial, cujo enfoque concentra-se na repercussão social das decisões judiciais.

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Os dois primeiros casos práticos abordados no capítulo 6 são elucidativos no

tocante a este conflito, pois envolvem decisões que repercutem na esfera econômica.

Julgamentos em que se relativizam garantias contratuais de forma casuística, para evitar que o

mutuário seja destituído do bem imóvel perante instituição financeira, denotam uma

“sensibilidade social”, mas podem trazer como efeito colateral o alerta de risco aos mercados,

circunstância que poderá encarecer o custo dos empréstimos e elevar os juros.

O mesmo se diga em relação às prestações de seguridade social. Benefícios

sociais recusados na órbita administrativa, cujos requisitos são flexibilizados judicialmente,

podem implicar no desajuste fiscal e orçamentário, refletindo na elevação da carga tributária.

São dilemas com os quais o magistrado se depara, e sua posição ideológica certamente

influenciará na tomada de determinado posicionamento.

A situação narrada no terceiro caso, no qual foi autorizada a união estável entre

pessoas do mesmo sexo, revela um julgamento que envereda nitidamente pelo “ativismo

judicial”. Seu teor se adequa à posição de “esquerda”. Trata-se de decisão que tem como norte

obter mais igualitarismo, ao trazer aos casais homoafetivos o mesmo tratamento jurídico

conferido aos casais heteroafetivos, corrigindo uma situação jurídica que implicava em

discriminação. E o ministro relator da ADIn n.4.277, Carlos Ayres Britto, ao que tudo indica,

ostenta perfil ideológico afinado aos posicionamentos de esquerda.

Por fim, na esfera penal também se constata este mesmo embate ideológico. Os

julgadores adeptos de uma visão crítica do sistema penitenciário poderão, em algumas

situações, buscar uma solução que traga efeito menos repressivo em relação ao acusado,

valendo-se, para tanto, de princípios como o da adequação social para amenizar o resultado

dos julgamentos.

Apesar do exposto, ainda que se identifique na jurisprudência uma tendência de

gradativa ampliação das decisões que evidenciam o ativismo judicial, em detrimento de

posturas mais legalistas, não há como se afirmar com qualquer segurança tratar-se de um

movimento irreversível, pois as ideologias oscilam de forma pendular, podendo avançar em

alguns momentos, e retroceder em outros, em virtude de variados fatores. Assim, não é

possível trazer qualquer prognóstico preciso acerca do futuro do Poder Judiciário e de sua

jurisprudência.

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