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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP
Christine Mendonça
Argumentação Jurídica nas Decisões do STF em Matéria Tributária e o Estado
de Direito
São Paulo
2011
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP
Christine Mendonça
Argumentação Jurídica nas Decisões do STF em Matéria Tributária e o Estado
de Direito
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de Doutor em Direito do Estado –
Direito Tributário sob a orientação do Prof.
Doutor Paulo de Barros Carvalho.
São Paulo
2011
Banca Examinadora
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RESUMO
A presente tese de doutorado tem por objetivo analisar a argumentação nas
decisões judiciais em matéria tributária produzidas pelo Supremo Tribunal Federal
de modo a identificar de que forma esse órgão constitucional está contribuindo para
a manutenção do Estado de Direito. A partir dos instrumentos teóricos fornecidos
pelo método construtivista lógico-semântico e pela teoria sistêmica luhmaniana
compreende-se a extensão e a importância da interpretação jurídica do direito.
Verifica-se, a partir dela, como devem ser processados os ruídos provenientes de
outros subsistemas sociais. O processo de interpretação realizado pelo observador-
intérprete do direito será registrado na argumentação jurídica por ele apresentada.
E, no caso do Supremo, comporá a fundamentação dos votos dos Ministros. A
análise desses argumentos é fundamental para investigar a ocorrência de corrupção
entre os códigos intersistêmicos que tanto fragiliza a manutenção do Estado de
Direito.
Palavras-chave: Direito tributário. Teoria da Linguagem. Teoria dos Sistemas.
Estado. Autonomia operacional. Interpretação Jurídica. Argumentação. Decisão
Judicial. Constituição. Supremo Tribunal Federal.
ABSTRACT
The purpose of this doctoral thesis is to analyze the arguments presented by the
Brazilian Supreme Court’s decisions on tax matters so as to identify the ways in
which that constitutional agency has contributed to maintain and protect the Rule of
law. Theoretical tools provided by the logical-semantic constructivist method and the
Luhmanian systems theory help understand the range and importance of the legal
interpretation of the law, and, based on that, help verify how to process interferences
coming from other social subsystems. The process of interpretation developed by
the law’s observer-interpreter will be registered in the juridical argumentation by him
presented. And, in the case of the Supreme Court, it will be part of the reasoning
supporting the Ministers’ votes. The analysis of those arguments is a fundamental
tool to investigate the occurrence of corruption between inter-systemic codes that
undermines the maintenance of the Rule of law.
Keywords: Tax Law. Language theory. Systems theory. State. Operational
autonomy. Legal Interpretation. Argument. Judicial decision. Constitution. Supreme
Court.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12
CAPÍTULO 1 – ESTADO DE DIREITO E CORRUPÇÃO ENTRE OS CÓDIGOS
INTERSISTÊMICOS ................................................................................................. 16
1.1 ESTADO: A DIVINDADE DO DIREITO? ............................................ 16
1.2 ESTADO PERSONIFICADO PELO DIREITO .................................... 20
1.3 ESTADO DE DIREITO GARANTIDO PELA CONSTITUIÇÃO ........... 25
1.4 DIVISÃO DE PODERES COMO CONDIÇÃO NECESSÁRIA AO
ESTADO DE DIREITO .............................................................................................. 29
1.5 AUTONOMIA OPERACIONAL DO DIREITO NO ESTADO DE
DIREITO .................................................................................................................... 34
1.6 PROCESSAMENTO DAS INFLUÊNCIAS POLÍTICAS E
ECONÔMICAS NO ESTADO DE DIREITO .............................................................. 38
1.7 CORRUPÇÃO ENTRE OS CÓDIGOS E ESTADOS PERIFÉRICOS. 41
CAPÍTULO 2 – INTERPRETAÇÃO JURÍDICA E SEUS LIMITES ........................... 44
2.1 ENTENDIMENTO DOMINANTE SOBRE INTERPRETAÇÃO
JURÍDICA E SEUS MÉTODOS ................................................................................. 44
2.2 DEFINIÇÕES NECESSÁRIAS EM FUNÇÃO DA ADOÇÃO DA
FILOSOFIA DA LINGUAGEM E DA TEORIA SISTÊMICA ....................................... 49
2.3 OUTRO CONCEITO DE INTERPRETAÇÃO ..................................... 57
2.4 TEXTO JURÍDICO: PONTO DE PARTIDA DA INTERPRETAÇÃO
JURÍDICA .................................................................................................................. 60
2.4.1 Princípio da Legalidade e texto jurídico .............................. 63
2.5 NORMAS JURÍDICAS CONSTRUÍDAS NA INTERPRETAÇÃO ........ 65
2.6 “NECESSIDADE DE REDUNDÂNCIA” COMO LIMITE NO
PROCESSO INTERPRETATIVO .............................................................................. 68
2.7 PLANOS SINTÁTICO, SEMÂNTICO E PRAGMÁTICO DA
COMUNICAÇÃO JURÍDICA ...................................................................................... 71
2.7.1 Plano sintático: implica ......................................................... 73
2.7.1.1 Lógica ............................................................................... 74
2.7.1.2 Gramática ......................................................................... 75
2.7.1.3 Análise sistemática ........................................................... 76
2.7.2 Plano Semântico: designa e denota ..................................... 77
2.7.2.1 “Conotação e Vagueza” e “Denotação e Ambigüidade” .... 80
2.7.2.2 Modificações histórico-evolutivas da língua ...................... 82
2.7.2.3 Zona de certeza semântica: casos típicos e atípicos na
interpretação jurídica ..................................................................................... 83
2.7.3 Plano pragmático: expressa ................................................. 86
2.7.3.1 Valor e Heterorreferência .................................................. 90
2.7.3.2 “Jurisprudência de conceitos” e “Jurisprudência de
Interesses”: intenção do texto ou intenção dos participantes? ...................... 93
2.8 “INTERPRETAÇÃO JURÍDICA” E “JANELAS DE COMUNICAÇÃO”. 95
2.9 “INTERPRETAÇÃO NA ARGUMENTAÇÃO” E “ARGUMENTAÇÃO
NA INTERPRETAÇÃO” ............................................................................................. 97
CAPÍTULO 3 – PODER JUDICIÁRIO E DECISÃO JUDICIAL ................................. 99
3.1 FUNÇÃO JURISDICIONAL DO PODER JUDICIÁRIO NO
ORDENAMENTO BRASILEIRO ................................................................................ 99
3.2 PROCESSO JUDICIALCOMO MICROSSISTEMA CENTRAL......... 102
3.3 INDEPENDÊNCIA E CRIATIVIDADE DO JUIZ NO ESTADO DE
DIREITO .................................................................................................................. 108
3.3.1 Juiz-Político e Ativismo Judicial ........................................ 114
3.4 DECISÃO JUDICIAL ........................................................................ 119
3.5 INCIDÊNCIA JURÍDICA E A PERMANÊNCIA DO SILOGISMO NA
DECISÃO JUDICIAL ............................................................................................... 121
3.6 FUNDAMENTO DA DECISÃO JUDICIAL: EXPLICAÇÃO “DO
PORQUÊ” OU JUSTIFICATIVA “DO COMO”? ...................................................... 125
3.7 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA NA DECISÃO JUDICIAl ................... 127
3.7.1 Classificação dos argumentos como instrumento de
controle da autonomia da comunicação jurídica ....................................... 129
3.8 DECISÕES ARBITRÁRIAS .............................................................. 134
3.9 PRINCÍPIOS NA ARGUMENTAÇÃO COM PRINCÍPIOS JURÍDICOS
................................................................................................................................ 137
CAPÍTULO 4 – CONTROLE JUDICIAL DE CONSTITUCIONALIDAD E DAS
NORMAS TRIBUTÁRIAS ....................................................................................... 141
4.1 CONSTITUIÇÃO JURÍDICA E CONSTITUIÇÃO POLÍTICA ............ 141
4.2 CARACTERÍSTICAS DE UM TEXTO CONSTITUCIONAL .............. 144
4.3 INSTRUMENTOS CONSTITUCIONAIS DIRIGIDOS À
PERMANÊNCIA DO ESTADO DE DIREITO........................................................... 146
4.4 FISCALIZAÇÃO E INTERPRETAÇÃO DA NORMA JURÍDICA
CONSTITUCIONAL ................................................................................................. 150
4.5 “GUARDIÃO” DO CÓDIGO CONSTITUCIONAL/
INCONSTITUCIONAL ............................................................................................. 154
4.5.1 STF e sua difícil tarefa “Guardião” .................................... 157
4.6 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS NO ESTADO
BRASILEIRO ........................................................................................................... 161
4.7 DIREITO TRIBUTÁRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL ................. 163
4.8 AUTODESCRIÇÃO PROMOVIDA PELA DOUTRINA TRIBUTÁRIA
BRASILEIRA ........................................................................................................... 166
4.8.1 Heterorreferências econômicas na interpretação do direito
constitucional tributário ................................................................................ 169
4.8.2 Heterorreferências políticas na interpretação do direito
tributário constitucional ................................................................................ 175
4.9 PRINCÍPIOS-VALORES CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS E A
MOEDA DE CÉSAR ................................................................................................ 177
CAPÍTULO 5 - ANÁLISE DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA EM DE CISÕES DO
STF EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA A PARTIR DE CASOS CONCRETOS .............. 180
5.1 OBJETIVO DA ANÁLISE COM CASOS CONCRETOS ................... 180
5.2 DECISÕES JUDICIAIS RELACIONADAS AO ICMS NAS
PRESTAÇÕES DE SERVIÇO DE TRANSPORTE AÉREO .................................... 181
5.3 MEDIDA CAUTELAR NA ADI Nº 1089-1 E ADI Nº 1089-1 ............. 186
5.3.1 Argumentos do Procurador-Geral da República para
embasar o pedido de declaração de inconstitucionalidade ...................... 187
5.3.2 Argumentos para o pedido de medida cautelar ................ 192
5.3.3 Fundamentação dos votos dos ministros referentes ao
pedido de medida cautelar na ADI 1089-1 ................................................... 193
5.3.3.1 Voto do Ministro Relator Francisco Rezek ...................... 194
5.3.3.2 Voto do Ministro Ilmar Galvão ......................................... 198
5.3.3.3 Voto do Ministro Marco Aurélio ....................................... 200
5.3.3.4 Voto do Ministro Carlos Velloso .................................... 2022
5.3.3.5 Voto do Ministro Sepúlveda Pertence ............................. 204
5.3.3.6 Voto do Ministro Sidney Sanches ................................... 207
5.3.3.7 Voto do Ministro Néri da Silveira ..................................... 211
5.3.3.8 Voto do Ministro Moreira Alves ....................................... 214
5.3.3.9 Voto do Ministro Paulo Brossard ..................................... 216
5.3.4 Deferimento da medida liminar na ADI 1089-1: resultado da
apuração dos votos e análise dos argumentos .......................................... 218
5.3.5 Fundamentação nos votos dos ministros presentes nas
sessões de julgamento do mérito ................................................................ 222
5.3.5.1 Voto do Ministro Francisco Rezek .................................. 223
5.3.5.2 Voto do Ministro Maurício Corrêa ................................... 228
5.3.5.3 Voto do Ministros Ilmar Galvão ....................................... 232
5.3.5.4 Voto do Ministro Octavio Gallotti ..................................... 235
5.3.5.5 Voto do Ministro Sydney Sanches .................................. 237
5.3.5.6 Voto do Ministro Néri da Silveira ..................................... 239
5.3.5.7 Voto do Ministro Moreira Alves ....................................... 240
5.3.5.8 Voto do Ministro Sepúlveda Pertence ............................. 242
5.3.6 Procedência do pedido de declaração de
inconstitucionalidade na ADI 1089-1: resultado da apuração dos votos . 244
5.4 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 1600-8 –
JULGADA EM 26-11-2001 E PUBLICADA NO D.J. 20-06-2003............................. 251
5.5 Outras decisões analisadas ............................................................. 256
CONCLUSÃO .......................................................................................................... 259
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 262
12
INTRODUÇÃO
Muito se tem dito que a influência política e econômica na atuação do
Supremo Tribunal Federal em matéria tributária gera decisões que não estão
embasadas no sistema jurídico, o que, por sua vez, enfraquece o Estado de Direito.
A crítica que tem sido constante, quer no discurso dos leigos, quer no discurso dos
juristas, deve ser investigada de forma rigorosa e sistematizada, para que se possa
proferi-la como conclusão, se for esse o caso, pela comunidade científica.
Foi em busca desse rigor científico na análise das decisões do Supremo
Tribunal Federal em matéria tributária que surgiu a presente tese de doutorado.
Utilizando-se dos métodos propostos pelo construtivismo lógico-semântico e de
alguns conceitos da teoria sistêmica, pretende-se não só demonstrar quais os limites
interpretativos do Supremo Tribunal Federal na produção das suas decisões, mas
também colecionar os argumentos utilizados em alguns acórdãos proferidos por
essa Corte Suprema no intuito de classificá-los.
Antes, porém, de promover tal atividade, tinha-se em mente o
ensinamento de PAULO DE BARROS CARVALHO de que “a consistência do saber
científico depende do quantum de retroversão que o agente realize na estratégia de
seu percurso, vale dizer, na disponibilidade do estudioso de ponderar sobre o
conhecimento mesmo que se propõe construir.”1 Por isso, vários temas que serão
tratados neste estudo, inicialmente, parecem não tocar diretamente a problemática,
mas serão imprescindíveis na fundamentação científica das conclusões.
E foi nesse esforço para não transformar o trabalho numa simples coleta
de decisões judiciais e contraposição de argumentos jurídicos, que ganha
importância também o alerta de NIKLAS LUHMANN de que o “processo decisório” é
um microsistema estruturado dentro do macrosistema que é o direito. Portanto, a
análise desse processo, bem como do seu produto que é a decisão judicial, não
1 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2008, p.3.
13
poderá ser feita de forma deslocada da estrutura do macrosistema complexo que é o
direito.2
Para tanto, inicialmente, será necessário investigar a formação do Estado,
do qual o órgão do Supremo Tribunal Federal faz parte, para perceber como esse
deve processar as expectativas provenientes dos demais subsistemas sociais, como
a economia e a política, que convivem com o direito.
Nesse primeiro capítulo haverá uma aproximação do Estado e dos
Poderes que o compõem. Será observado, também, como a autonomia do direito,
destacada pela teoria luhmaniana, garantida pelo fechamento operacional, é
imprescindível para a manutenção do Estado de Direito. A partir daí, será fixado o
significado de “corrupção dos códigos” e quando ela ocorre.
No Capítulo 2 será demonstrado o entendimento, ainda dominante, sobre
interpretação jurídica e seus métodos. Após, fixar-se-á o conceito de interpretação
jurídica decorrente da adoção da Filosofia da Linguagem e analisar-se-á o percurso
interpretativo nos três seguintes planos de investigação: sintático, semântico e
pragmático.
Ainda no segundo capítulo, será destacado o “mínimo de certeza
semântica” que não poderá ser desprezado pelo intérprete, no intuito de classificar a
atividade interpretativa em “casos típicos” e “casos atípicos”. E serão definidos, por
meio dos instrumentos da teoria sistêmica, os fenômenos de observação,
autorreferência e heterorreferência. A partir daí, o conceito de interpretação jurídica
será correlacionado com o de argumentação jurídica.
No capítulo seguinte, deter-se-á na análise do Poder Judiciário e da
decisão judicial. O objetivo ali será examinar o papel do Judiciário no ordenamento
jurídico, o processamento dos ruídos políticos e econômicos na atividade
jurisdicional e a função do procedimento judicial na legitimação da decisão.
Após apontar as características de criatividade e de independência do juiz
no Estado de Direito, tratar-se-á do silogismo jurídico e do dever de justificação das 2 NIKLAS, Luhman. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, pp. 8-14.
14
conclusões alcançadas pelo juiz. Nesse terceiro capítulo será ponto de destaque,
ainda, a argumentação jurídica na decisão judicial.
No quarto capítulo, o objeto de investigação será o Supremo Tribunal
Federal e a matéria tributária constitucional. Num primeiro momento, destacar-se-ão
os aspectos político e jurídico da Constituição, as características de um texto jurídico
constitucional e a sua supremacia no sistema jurídico. Logo após, serão abordadas
a eleição do STF como “guardião” das normas constitucionais e a forma de controle
da constitucionalidade/inconstitucionalidade. Ao final do capítulo serão expostos,
valendo-se dos estudos da doutrina tributária brasileira, o conteúdo tributário
veiculado pela Constituição Federal de 1988 e a relação das normas constitucionais
tributárias com a economia e a política.
Por último, serão investigados alguns acórdãos do Supremo Tribunal
Federal em matéria tributária, para, a partir de casos concretos, onde há conflitos
entre os direitos subjetivos do Fisco e do Contribuinte, não só perceber o campo da
discricionariedade interpretativa dos ministros que compõem a Corte Suprema, mas
também destacar e analisar os argumentos veiculados nessas decisões judiciais.
Com base nesses argumentos serão identificados aqueles que podem ser
utilizados como apoios dentro da estrutura argumentativa proposta por STEPHEN E.
TOULMIN3. Para cada voto dos Ministros proferidos nas ações analisadas, será
construído um esquema gráfico e, ao final, será empreendida uma análise
comparativa de todos os argumentos coletados. O intuito dessa identificação e
classificação dos argumentos é verificar como o Supremo Tribunal Federal, no
exercício da sua jurisdição constitucional, está justificando as suas conclusões e
como está processando algumas expectativas do ambiente externo ao sistema
jurídico.
Apresentada a base teórica e catalogados os argumentos proferidos pela
Corte Constitucional deste país, a presente tese de doutorado, buscará expor e
fundamentar a seguinte problemática: estaria o Supremo Tribunal Federal
interpretando o texto constitucional a partir de referências externas ao direito sem o
3 TOULMIN, Stephen E. Os usos do argumento. Tradução de Reinaldo Guarany. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
15
devido processamento pelo código lícito/ilícito e, com isso, colocando em risco o
Estado de Direito conquistado a duras penas pela sociedade contemporânea?
16
CAPÍTULO 1 – ESTADO DE DIREITO E CORRUPÇÃO ENTRE OS
CÓDIGOS INTERSISTÊMICOS
1.1 ESTADO: A DIVINDADE DO DIREITO?
A importância do estudo sobre o Estado para a Ciência Jurídica tem
diminuído no decorrer das décadas. Atualmente, não é usual ver este tema ser
tratado pelos juristas das denominadas “dogmáticas”, incluindo aqui os estudiosos
de “direito público”, que tem como objeto de análise o Estado, como sujeito das
relações jurídicas. Esse assunto tem ficado reservado aos cientistas políticos e aos
sociólogos, conforme alerta CELSO FERNANDES CAMPILONGO, preocupado com
o atual “status” da Teoria do Estado:
[...] pensa-se logo que, nas Faculdades de Direito, o tema Estado ou, de modo mais abrangente, Sistema Político, não vem merecendo a atenção didática pedagógica e teórica que lhe confere a legislação. É evidente que a afirmação não pode ser generalizada. Alguns cursos, sensíveis à expansão e importância do direito público para as sociedades democráticas, continuam reservando à Teoria Geral do Estado, à Ciência Política um importante papel [é o caso, dentre outras Faculdades, do curso de direito da PUC-SP]. Pode-se dizer, sem receio, que o Direito Constitucional e o Direito Administrativo, de um modo particular, e o Direito Moderno, como um todo, nunca serão compreendidos de maneira aprofundada sem uma sólida especulação teórica sobre os vínculos existentes entre o direito e a política.4 (Grifos do autor)
Este trabalho sobre a análise das decisões do Supremo Tribunal Federal
em matéria tributária valer-se-á de temas de Teoria Geral do Estado que serão
premissas importantes na construção das conclusões. Para tanto, levantam-se as
seguintes questões: (i) Em que acepção o termo “Estado” é utilizado na expressão
Estado-juiz?; (ii) O Estado representa todos os interesses políticos, religiosos,
econômicos etc. da sociedade?; (iii) O Estado é maior do que o direito positivo?; (iv)
4 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 16.
17
De que forma as pessoas que personificam os órgãos estatais processam a
diversidade de expectativas geradas pelo ambiente social em que estão inseridas?;
(v) Os atos estatais produzidos são (devem ser) respostas às expectativas
econômicas, sociais, religiosas e políticas da sociedade?
Têm-se séculos de produção de estudos sobre o Estado, compreendendo
investigações sobre o seu desenvolvimento histórico, a sua origem, as suas
estruturas, as suas funções etc. Muitos autores que se debruçaram sobre esse
tema, como Aristóteles, Weber, Marx, Hobbes, Durkheim, Kelsen, marcaram uma
época, e suas teorias serviram e servem de axiomas para autores atuais nos
diversos campos das ciências culturais, como a economia, a política, a sociologia, o
direito etc.
De pronto, porém, percebe-se que “Estado” é um termo polissêmico e que
os diversos autores que tratam do tema acabam por trabalhar em acepções muito
distintas. HANS KELSEN diz que essa imprecisão na utilização do termo gera
resultados insatisfatórios na produção de uma Ciência Política:
Ás vezes, a palavra [Estado] é usada em um sentido bem amplo, para indicar a “sociedade” como tal, ou alguma forma especial de sociedade. Mas a palavra é também com frequência usada com um sentido bem mais restrito, para indicar um órgão particular da sociedade – por exemplo, o governo, ou os sujeitos do governo, uma “nação”, ou o território que eles habitam. A situação insatisfatória da teoria política –que, essencialmente, é uma teoria do Estado – deve-se, boa parte, ao fato de diferentes autores tratarem de problemas bastante diferentes usando o mesmo termo e, até, de um mesmo autor usar inconscientemente a mesma palavra com vários significados.5
Diante dessa vaguidade, NOBERTO BOBBIO6 auxilia explicando que é
possível olhar para o Estado a partir de duas grandes lentes: a sociológica e a
jurídica. Por meio da primeira lente, olhar-se-á para o Estado como uma forma
complexa de organização social. Já por meio da segunda, o Estado, foco das
atenções, será aquele constituído como ordenamento jurídico.
5 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução Luís Carlos Borges. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 261. 6 BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: por uma teoria geral da política. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, pp. 56-57.
18
Encontra-se essa concepção dual na obra Teoria General Del Estado do
autor GEORG JELLINEK.7 Para esse autor alemão, que é referência obrigatória em
todas as obras sobre o tema, no estudo do Estado como fenômeno social,
sobrelevar-se-á a história dos Estados, a doutrina das suas origens, sua
transformação e decadência, bem como seus elementos e suas relações internas.
Já no estudo do aspecto jurídico do Estado analisar-se-ão as normas que
prescrevem a sua instituição, suas funções, bem como as relações dos fatos reais
da vida do Estado com os juízos normativos sobre os quais se apóiam o
conhecimento jurídico.
HANS KELSEN, por sua vez, rechaça essa dualidade e afirma que
Estado deve ser tido como sinônimo de ordem jurídica centralizada, e ressalta: “Não
existe nenhum conceito sociológico de Estado ao lado do conceito jurídico.” Afinal,
segundo ele, “O conceito sociológico de um padrão efetivo de conduta, orientado
para a ordem jurídica, não é um conceito de Estado; ele pressupõe o conceito de
Estado, que é um conceito jurídico.”8 O autor austríaco diz ser supérflua essa
duplicação de “Direito e Estado” e diz que se trata de uma “superstição animista”,
advinda da tendência metapsicológica de hipostatizar. Eis o seu pensamento: “[...]
por trás de um rio, uma ninfa; por trás da lua, uma divindade lunar; por trás do sol,
um deus sol. Desse modo, imaginamos por trás do Direito a sua personificação
hipostatizada, o Estado, a divindade do Direito .”9 (Grifou-se)
Esse entendimento de KELSEN causa um enorme repúdio do meio
acadêmico, pois vigora o entendimento pela impossibilidade de separar o jurídico do
político com relação ao Estado. Nessa linha, DALMO DE ABREU DALLARI diz ser
“[...] inaceitável, neste ponto, a proposição de KELSEN, que pretendeu limitar a
Teoria Geral do Estado ao estudo do Estado ‘como ele é’, sem indagar se ele deve
7 JELLINEK, Georg. Teoria General del Estado. Tradução para espanhol Fernando de los Rios. Argentina: Editorial Albatros, 1973, pp. 101-103 8 KELSEN. Teoria geral do direito e do Estado, 2005, p. 272. 9 Ibid., p. 275.
19
existir, por que, ou como, sendo-lhe vedado também preocupar-se com a busca do
‘melhor Estado’”.10
Apesar das objeções ao entendimento de KELSEN, parece que essa
diversidade de visões (concepções) de Estado está ligada à complexidade no
processo de formação e organização da sociedade. De fato, houve época em que
não era possível separar a economia, a política, a religião e o direito, uma vez que
não havia autonomia (numa linguagem luhmaniana) entre esses subsistemas
sociais.
Somente a partir do século XVIII é que será possível perceber com maior
nitidez as diferenças entre os sistemas político, econômico e jurídico, permitindo,
assim, reconhecer, consequentemente, o Estado criado pelo ordenamento jurídico,
que, neste trabalho, se denominará “Estado Jurisdicizado” ou, simplesmente,
“Estado”. Nesse sentido, foi apenas com a transição do Estado Absoluto ao Estado
Constitucional que o Estado como ordem jurídica adquire contornos mais nítidos.
Explica PAULO BONAVIDES:
Verifica-se, portanto, que a premissa capital do Estado Moderno é a conversão do Estado absoluto em Estado constitucional; o poder já não é de pessoas, mas de leis. São as leis, e não as personalidades, que governam o ordenamento social e político. A legalidade é a máxima de valor supremo e se traduz com toda energia no texto dos Códigos e das Constituições.11
O movimento liberal elege o direito como forma de limitar o Poder.12 E
uma forma de limitá-lo é delimitá-lo. Em outras palavras, é demarcando quais são os
órgãos estatais, suas funções, seus procedimentos que se prescreve o Estado
Jurisdicizado, que, por sua vez, surge como a única forma de garantir a liberdade
dos homens. Daí, afirmar LOURIVAL VILANOVA que:
A despolitização da economia, com o sistema liberal, o ingresso no exercício do poder estatal, pela nova classe, emergida da economia
10 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 127. 11 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 41. 12 “Poder” aqui compreendido como: “poder político”; dominação; relação de superioridade com utilização da força física.
20
liberal, precisavam de segurança jurídica, requeriam ordem nas relações sociais, previsão normativa do comportamento dos indivíduos titulares de governo e previsão normativa da conduta interindividual.13
Observa-se que, a partir dessa acepção de Estado Jurisdicizado, tem
razão HANS KELSEN ao criticar aqueles que descrevem o Estado como “o poder
que se encontra por trás do Direito, que impõe o Direito”,14 na medida em que o
Estado será o próprio poder positivado. Nesse sentido, acrescenta JELLINEK: “El
Estado desde su aspecto jurídico, según las anteriores observaciones críticas, no
puede considerarse sino como sujeto de derecho, y en este sentido está próximo al
concepto de la corporación, en el que es posible subsumirlo”.15
E a forma que a sociedade escolhe para delimitar o ente estatal é a
Constituição. Assim, o Estado Jurisdicizado é aquele que é criado pela Constituição
e que usualmente é chamado de Estado Constitucional. É desse Estado que falava
KELSEN, o Estado como sinônimo de norma jurídica e não o Estado como mito,
onipotente, onipresente e onisciente.
No próximo item, ver-se-á o Estado Jurisdicizado para, após, analisar os
limites a que o Judiciário está submetido, ao processar as expectativas políticas e
econômicas, quando da produção das decisões judiciais em matéria tributária.
1.2 ESTADO PERSONIFICADO PELO DIREITO
Na acepção adotada, não se encontra o Estado no mundo fenomênico
como um corpo visível e tangível. Ele não existirá por si só. É produto da criação do
homem por meio de um ato de fala, mais especificamente, um ato de fala deôntico.
Conforme explica TÁREK MOYSÉS MOUSSALEM, “[...] não se há de confundir as
coisas no mundo-das-coisas (coisa natural) com a coisa no mundo-social (coisa no
13 VILANOVA, Lourival. Proteção Jurisdicional dos Direitos numa Sociedade em Desenvolvimento. Escritos Jurídicos e Filosóficos, volume (2). Prefácio de Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: AxisMundi, Ibet, 2003, p. 465. 14 KELSEN. Teoria geral do direito e do Estado, 2005, p. 274. 15 JELLINEK. Teoria General del Estado, 1973, p. 135.
21
mundo-circundante).”16 Por certo, explica o autor, que, para se ter acesso aos fatos
ou às coisas, se necessita da linguagem. No entanto não se pode esquecer que
algumas coisas independem da linguagem para existir (realidade natural), e outras
só existem porque o homem as criou (realidade sociocultural).
Ainda que haja teses naturalistas, segundo JELLINEK, que defendem a
ideia de preexistência do Estado, com base em algumas organizações animais,
como as formigas e as abelhas, resta claro que esses pequenos insetos não fazem
parte das relações sociais e, portanto, estão distantes do objeto deste estudo.17 O
Estado não está na natureza e, portanto, não se encontra no mundo-das-coisas.
Trata-se de uma criação do homem por meio de uma outra criação que é o direito.
Observa-se, assim, que o homem criou o direito que, por sua vez, por
meio da sua linguagem prescritiva, criou o Estado. Tudo invenção do homem por
meio dos atos de fala deônticos.
Conforme explica LOURIVAL VILANOVA, o Estado será criado quando se
prescrever ao menos um indivíduo-órgão para o exercício do Poder: “Há, pelo
menos, uma norma (consuetudinária) de investidura: essa norma minimal é a
Constituição material, o estatuto orgânico do ente. Com esse conceito-limite [...], tem
origem o primeiro órgão e o ente coletivo personifica-se. Faz-se sujeito-de-direito.”18
E prossegue, ressaltando a imprescindibilidade do órgão estatal para existência do
Estado:
[...] suprimam-se os órgãos, ou o órgão único, e sobre-resta a comunidade nacional, pressuposto fáctico da subjetivação. Não, porém, o sujeito-de-direito estatal. Podem sobreviver o espaço físico, a coletividade, os usos e costumes, normas jurídicas dispersas, sem um foco comum de referência: aquele pluralismo de ordens jurídicas despolitizadas, ou, ainda, em estádio pré-político. Mas espaço, coletividade, normas, tudo se despolitiza com a supressão do sujeito-de-direito que exerça o poder de império. Persistem como formas de socialização da vida comum, sem alcançarem o grau de concentração maior que é forma política em Estado.19
16 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Revogação em matéria tributária. São Paulo: Noeses, 2005, p. 8. 17 JELLINEK. Teoria General del Estado, 1973, p. 61. 18 VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 255. 19 Ibid., p. 255.
22
Uma ação humana pode ser considerada ato de Estado, assim como, um
indivíduo (como ser vivo) pode ser considerado um órgão estatal, mas com esse não
se confunde. É preciso, portanto, uma atenção na leitura e investigação desse tema,
pois, ao reconhecer-se um indivíduo como órgão estatal, se está trabalhando dentro
do processo comunicacional jurídico e não fora dele. Assim, não se está
considerando a pessoa na sua completude psíquica e social, quando ela participa
das comunicações internas do sistema do direito. Os indivíduos não são
encarnações do Estado, como explica GEORG JELLINEK:
Las personas que ejercen la autoridad han sido consideradas en todos los tiempos por muchos, como la encarnación del Estado , y, por tanto, con su verdadera realidad. En el mundo cristiano encontró esta concepción un apoyo de grande importancia en las expresiones, tan comunes en el Nuevo Testamento, que sólo afirman del Estado la autoridad.20 (Grifou-se)
Tal concepção, objeto de crítica, encontrava respaldo na teoria
absolutista, segundo a qual território e povo seriam apenas objetos da atividade do
príncipe, e este precederia o Estado. Para tal doutrina é o príncipe que contém o
Estado, conforme expõe o autor supracitado: “La teoría francesa del absolutismo, tal
como fue formulada por Bossuet, declara sin vacilar, que todo el Estado se
encuentra contenido en el príncipe; así, pues, todo el pueblo queda absorbido en
éste, a quien eleva a un ser supraterreno.”21
Retrata muito bem essa concepção a célebre frase atribuída ao rei
francês Luis XIV: L'État c'est moi (“O Estado sou eu”). No entanto, caso se partisse
dessa visão pessoal de Estado, a morte de um monarca levaria à sua extinção. Por
esse motivo, ainda que se parta da unipessoalidade no exercício do poder, deve-se
encarar esse indivíduo (príncipe) como um órgão estatal único, criado por uma
norma jurídica, conforme elucida LOURIVAL VILANOVA:
Para que o monarca tenha titularidade, e não se confunda com um usurpador, um déspota, um mero poder de facto, uma norma, pelo menos, qualificou-o, incidindo em suporte fáctico – o poder efetivo – e deu-lhe efeitos jurídicos. Os atos desse poder são atos jurídicos: de
20 JELLINEK. Teoria General del Estado, 1973, p. 108. 21 Ibid., p. 108.
23
seus atos de ordenar provêm normas, medidas de governo, sentenças.22
Assim, para que haja o Estado é necessário que o direito crie ao menos
um órgão estatal. Será esse órgão ou o conjunto de diversos órgãos criados no
interior do sistema jurídico que dará personalidade (jurídica) ao Estado.
A questão, agora, é saber o que diferencia os atos de Estado das demais
ações humanas e o que diferencia o indivíduo dos órgãos estatais. HANS KELSEN
elucida que: “[...] um órgão é um indivíduo que cumpre uma função específica. A
qualidade de órgão de um indivíduo é constituída por sua função. Ele é um porque e
na medida em que executa uma função criadora de Direito ou aplicadora de
Direito.”23 E, nesse sentido, LOURIVAL VILANOVA diz:
[...] o direito é posto pela sociedade, diretamente (forma consuetudinária) ou mediante órgãos do poder, ali onde o processo de diferenciação social institui indivíduos-órgãos que fazem o direito e aplicam o direito como órgãos da sociedade (forma estatutária ou legislada – escrita).24 (Grifos do autor)
Tais funções criadora e aplicadora dos órgãos estatais, tratadas por
KELSEN e LOURIVAL VILANOVA, serão definidas pelo próprio ordenamento
jurídico. E as normas que estabelecem tais funções são denominadas pela Teoria
Geral do Direito como “normas de competência”. É o que expõe TÁCIO LACERDA
GAMA:
À norma de competência caberia estabelecer as condições necessárias para criar normas válidas, podendo – as normas de competência – ser divididas em três grupos: i) aquelas que qualificam a pessoa que poderá criar a norma (competência pessoal); ii) as que prescrevem o procedimento que deve ser seguido (competência processual); iii) aquel’outras que estabelecem o alcance da norma em relação ao seu sujeito, situação e tema (competência material).
22 VILANOVA. Causalidade e relação no direito, 2000, p. 262. 23 KELSEN. Teoria geral do direito e do Estado, 2005, p. 277. 24 VILANOVA. Proteção Jurisdicional dos Direitos numa Sociedade em Desenvolvimento. Escritos Jurídicos e Filosóficos, volume (2), 2003, p. 464.
24
Os três tipos de competência interagiriam na delimitação das condições para a criação de uma norma.25
Será, pois, a demarcação das funções dos órgãos estatais que garantirá a
diferença entre poder (político) e competência. Ensina CRISTIANE MENDONÇA:
Acreditamos que a jurisdicização do “poder” o torna competência. A existência de regras jurídicas, estabelecendo os órgãos estatais, demarcando o raio de ação, fixando as suas atribuições institucionais, estipulando o rito que deve ser observado para a sua manifestação/atuação, repele terminantemente a idéia de poder que é essencialmente ilimitada.26
Nesses termos, um órgão estatal não será detentor de poder político e
sim de competência. Versando sobre o tema, LOURIVAL VILANOVA afirma: “Cada
órgão é um plexo de atribuições, de faculdades, de poderes e de deveres: é um
feixe de competência.”27 Nesse sentido, JORGE MIRANDA ensina: “Repartido
juridicamente por órgãos e agentes do Estado, o poder toma, por outro lado, a
configuração de um conjunto de competências ou poderes funcionais de tais órgãos
[...].”28
Serão as normas de competência que disciplinarão a função de cada
órgão estatal, ao prescrever suas tarefas e atribuições, criando assim os diversos
“cargos” que vão preexistir ao seu titular. Explica REINHOLD ZIPPELIUS:
O cargo, enquanto âmbito institucionalizado de tarefas e competências, deve, portanto, distinguir-se do titular do cargo, ou seja, a pessoa a que compete exercer as funções desse cargo. Na verdade, este cargo subsiste independentemente de uma mudança do titular.29
25 GAMA, Tácio Lacerda. Competência Tributária: fundamentos para uma teoria da nulidade. São Paulo: Noeses, 2009, p. 38. 26 MENDONÇA, Cristiane. Competência Tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 42. 27 VILANOVA. Causalidade e relação no direito, 2000, p. 265. 28 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, Tomo III. 2. ed. revista (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 1988, p. 150. 29 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. CANOTILHO, J. J. GOMES (Coord.). Tradução de Karin Praefke-Aires Coutinho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 125.
25
E acrescenta DALMO DE ABREU DALLARI: “Não é difícil perceber que
as pessoas físicas, quando agem como órgãos do Estado, externam uma vontade
que só pode ser imputada a este e que não se confunde com as vontades
individuais.”30 Tal afirmação, fundamenta a opinião de que os ministros que
compõem o Supremo Tribunal Federal devem ser vistos como órgãos-indivíduos que
são constituídos e têm as suas atribuições delimitadas, primordialmente, pela
Constituição Federal. Eles serão participantes do processo comunicacional do
direito, e a forma como desempenharão os seus papéis como órgãos estatais será
decisiva para a manutenção do Estado de Direito. É o que será visto durante este
trabalho.
1.3 ESTADO DE DIREITO GARANTIDO PELA CONSTITUIÇÃO
A expressão “Estado de Direito” é utilizada pela comunidade jurídica com
sentidos diversos. Num primeiro momento, percebe-se uma definição que parte do
significado das palavras “Estado” e “Direito”, e chega-se à concepção de Estado
Jurisdicizado tratada no item 1.1. Se o direito, tido como um conjunto de normas, é
que dará a qualificação ao Estado, então “Estado de Direito” é o Estado regido por
leis. Nesse sentido, é valiosa a explicação de CARL SCHMITT: “Según la
significación general de la palabra, puede caracterizarse como Estado de Derecho
todo Estado que respete sin condiciones el Derecho objetivo vigente y los derechos
subjetivos que existan.” E acrescenta: “Así, puede decir Bluntschli (art.
<<Rechtstaat>>, en su Staatslexikon) que el Estado medieval (Lehenstaat) es un
Estado de Derecho; o Max Weber (Wirtschaftund Gesellschaft, pág. 745) que el
Estado de Derecho de la Edad Media fue un Estado de Derecho con derechos
subjetivos [...].”31
Entretanto, numa outra acepção, tida como “liberal”, a conceituação que a
doutrina apresenta para “Estado de Direito” contém a característica da legalidade,
mas vai além. Tal significado surge a partir do movimento ocorrido no século XVIII
30 DALLARI. Elementos de Teoria Geral do Estado, 2009, p. 125. 31 SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitución. Tradução de Francisco Ayala. Madri: Alianza Editorial, 1982, p. 141.
26
que tinha como aspiração principal a liberdade do homem perante o Estado da
época. Ao atribuir ao direito (conjunto de normas jurídicas) a função de limitar e
organizar o Poder e garantir o principal que era a liberdade do homem, o movimento
denomina esse Estado, que será submetido ao império do direito, de “Estado de
Direito.”32
Observa-se que o Estado de Direito surge como uma reação da
sociedade aos Estados Absolutistas. Neste último modelo, o subsistema do direito
ficava à mercê do subsistema da política, pois as regras jurídicas só eram utilizadas
para possibilitar o uso da violência (coação) pelo soberano. Com o aumento da
complexidade social, houve o fortalecimento da autonomia do direito e, por meio da
“codificação binária” (lícito/ilícito) se pôde delimitar a atuação do Estado e garantir
direitos subjetivos aos cidadãos. Daí NIKLAS LUHMANN afirmar: “Essa
diferenciação tem sido pesquisada e compreendida como uma aquisição
civilizacional , e como um triunfo do direito sobre a arbitrariedade da política, sob a
designação de Estado de Direito.”33 (Grifou-se)
Nesse sentido, foi atribuída ao direito a função de normatizar, por meio do
código lícito/ilícito, as funções estatais e os direitos subjetivos. Daí a doutrina indicar
algumas características necessárias34 para a configuração do Estado de Direito,
dentre as quais: (i) legalidade; (ii) divisão de poderes; (iii) garantias dos direitos
individuais. Explica JOSÉ AFONSO DA SILVA:
Na origem, como é sabido, Estado de Direito era um conceito tipicamente liberal; daí falar-se em Estado Liberal de Direito, cujas características básicas foram: (a) submissão ao império da lei, que era a nota primária de seu conceito, sendo a lei considerada como ato emanado formalmente do Poder Legislativo, composto de
32 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de direito e Constituição. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 1-4. 33 LUHMANN, Niklas. A Restituição do Décimo Segundo Camelo: Do Sentido de uma Análise Sociológica do Direito. In: ARNAUD, André-Jean (Org.); LOPES JR., Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: Do Sistema Social à Sociologia Jurídica. Tradução de Dalmir Lopes Jr., Daniele Andréa da Silva Manão e Flávio Elias Riche. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 95. 34 CELSO FERNANDES CAMPILONGO também destaca a publicidade como uma das características de Estado de Direito: “Estado de Direito significa a conjugação de pelo menos três elementos: a) o princípio da legalidade, vale dizer, o império da lei estatal, que é sua característica básica; b) princípio da publicidade, isto é, da transparência da atuação do Estado na produção das leis, decisões judiciais e atos administrativos; c) o princípio do equilíbrio e do controle entre os Poderes”. (CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e Democracia. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 112)
27
representantes do povo, mas do povo-cidadão; (b) divisão de poderes, que separe de forma independente e harmônica os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como técnica que assegure a produção de leis ao primeiro e a independência e imparcialidade do último em face dos demais e das pressões dos poderosos particulares; (c) enunciado e garantia dos direitos individuais. Essas exigências continuam a ser postulados básicos do Estado de Direito, que configura uma grande conquista da civilização liberal.35
E, para garantir a resistência do Estado de Direito diante das pressões
políticas, econômicas, religiosas etc., a disciplina normativa dos seus elementos
ocorrerá dentro do quadro constitucional. Será visto nos itens posteriores que a
Constituição regula a sua própria modificabilidade e controla a constitucionalidade
de todos os atos normativos do sistema jurídico. Daí decorrer outro código dentro
do sistema jurídico: constitucional/inconstitucional.
Assim, caberá à Constituição de uma sociedade moderna impor os
mecanismos dirigidos à permanência do Estado de Direito. Como explica MANOEL
GONÇALVES FERREIRA FILHO: “Nenhum órgão, ou agente do Estado, por mais
alta que seja a sua hierarquia, detém qualquer poder senão o que advém da
Constituição, e o tem de exercer rigorosamente pelo modo nesta definido.”36
Observa-se, no entanto, que a acepção formal de Constituição pode
abarcar, inclusive, Estados absolutistas ou totalitários. Donde se conclui que não é
a existência de um documento denominado “Constituição” condição suficiente para o
Estado de Direito. É necessário partir de uma concepção material de Constituição,
em que esta será tida como uma limitação jurídica ao poder, para se chegar à
afirmação proferida pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789:
“Qualquer sociedade em que não seja assegurada a garantia dos direitos, nem
estabelecida a separação dos poderes, não tem Constituição.”37
Nessa linha, resta claro que o texto constitucional vigente no nosso País,
ao veicular enunciados que garantem a legalidade, a separação dos poderes e os
35 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 116-117. 36 FERREIRA FILHO. Estado de direito e Constituição, 2007, p. 4. 37 Cf. NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 96.
28
direitos individuais,apresenta as características de uma Constituição, numa
concepção liberal, e consequentemente, os elementos necessários para a
caracterização do Estado de Direito.
Inclusive, a Constituição Federal de 1988 veicula a expressão “Estado de
Direito” com mais um qualificativo, ao prescrever no artigo 1º.: “A República
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel do Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito [...]” (Grifou-se).
Alerta, por isso, JOSÉ AFONSO DA SILVA que o Estado Democrático de Direito
acolhido pela Carta Magna “reúne os princípios do Estado Democrático e do Estado
de Direito”. E que a reunião desses dois promove a construção de um novo conceito,
pois, segundo ele: “A democracia, como realização de valores (igualdade, liberdade
e dignidade da pessoa) de convivência humana, é conceito mais abrangente do que
o de Estado de Direito, que surgiu como expressão jurídica da democracia liberal.”38
Não se questiona, assim, que a Constituição Federal de 1988 possui a
estrutura normativa necessária para configuração do Estado de Direito e possui
critérios que diferenciam o regime jurídico adotado no Brasil daqueles denominados
regimes totalitarista, absolutista e ditatorial. A questão está em saber em que medida
as leis, as decisões judiciais e os atos jurídicos em geral estão reproduzindo as
características prescritas no quadro constitucional vigente. Pois, conforme, será visto
durante este trabalho a “quebra de circularidade entre regras e decisões” e os
“bloqueios da concretização do direito constitucional” podem qualificar o Brasil como
um “país periférico”, distante, ainda, daqueles países centrais, tidos como
superdesenvolvidos. Estes últimos são assim qualificados por apresentarem, nas
palavras de MARCELO NEVES, “[...] uma complexidade social satisfatoriamente
estruturada, pelo primado da diferenciação funcional e pelo predomínio da
preferência por inclusão [...].”39
Antes dessa análise, porém, em razão do destaque dado ao Poder
Judiciário neste trabalho, tratar-se-á a seguir de um dos elementos do Estado de 38 SILVA. Curso de Direito Constitucional Positivo, 2000, p. 116. 39 NEVES, Marcelo. E se Faltar o Décimo Segundo Camelo? Do Direito Expropriador ao Direito Invadido. In: ARNAUD, André-Jean (Org.); LOPES JR., Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: Do Sistema Social à Sociologia Jurídica. Tradução de Dalmir Lopes Jr., Daniele Andréa da Silva Manão e Flávio Elias Riche. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 146-147.
29
Direito que é a “Separação dos Poderes”, para que se possa compreender o
fundamento da classificação e da divisão das principais funções estatais.
1.4 DIVISÃO DE PODERES COMO CONDIÇÃO NECESSÁRIA AO
ESTADO DE DIREITO
Conforme visto no item anterior, o equilíbrio entre os poderes é uma das
características fundamentais no conceito de Estado de Direito. A definição clássica
da Teoria da Separação dos Poderes, como se conhece hoje, surge em meados do
século XVIII, tendo como seus principais divulgadores ROUSSEAU (com a obra
Contrato Social) e MONTESQUIEU (com a obra Espírito das Leis). Tal teoria sugere
uma forma de prevenir a concentração de poderes num só eixo da autoridade
pública,40 por meio da divisão de funções e da independência entre órgãos estatais.
Como adverte ANDRÉ RAMOS TAVARES essa teoria parte de um
“pessimismo antropológico” com relação à tendência de corrupção do homem no
exercício do poder sem limites.41 Segundo CELSO RIBEIRO BASTOS:
Montesquieu tinha uma profunda descrença quanto ao homem desvencilhar-se de todos os desatinos que o poder o leva cometer. Para ele a força corruptora do exercício do mando político está sempre presente. Chegou mesmo a afirmar que, se todo poder corrompe o homem o poder soberano o corrompe soberanamente.42
A forma encontrada para evitar tais arbítrios foi a de dividir as principais
funções do Estado (executiva, legislativa e julgadora) entre três órgãos estatais. Em
razão de se ter como objeto deste trabalho o Órgão Judiciário e a triste constatação
de que o pessimismo antropológico tem sido nos dias atuais realidade no nosso
país, interessa citar a seguir um trecho da obra de MONTESQUIEU. Se a ele não se
pode dar o título de “criador” da teoria, em razão dos seus antecessores, deve-se,
40 Cf. BONAVIDES. Teoria do Estado, 2008, pp. 42-43. 41 TAVARES, André. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 995. 42 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de teoria do Estado e ciência política. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 77.
30
inquestionavelmente, reconhecer que foi ele quem melhor sistematizou e divulgou
essa teoria. Veja-se:
Há em cada Estado três espécies de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil.
Pelo primeiro poder, o príncipe ou o magistrado cria as leis para um tempo determinado ou para sempre, e corrige ou ab-roga aquelas que já estão feitas. Pelo segundo, determina a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes, ou julga as questões dos indivíduos. Chamaremos este último “o poder de julgar”, e o outro chamaremos, simplesmente, “o poder executivo do Estado”.
A liberdade política, em um cidadão, é essa tranqüilidade de espírito que decorre da opinião que cada um tem de sua segurança; e, para que se tenha essa liberdade, cumpre que o governo seja tal modo que um cidadão não possa temer outro cidadão.
Quando em uma só pessoa, ou em um mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não pode existir liberdade, pois se poderá temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado criem leis tirânicas para executá-las tiranicamente.
Também não haverá liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo. Se o poder executivo estiver unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria o legislador. E se estiver ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.
Tudo então estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou o dos nobres, ou o do povo exercesse estes três poderes: o de criar as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares.43 (Grifou-se)
Veiculado pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
aprovada pela Assembleia Constituinte da França de 1.789, o princípio da
separação dos poderes é tido por alguns como o axioma do Estado de Direito e até
mesmo como elemento do próprio conceito de Constituição, conforme o artigo 16
dessa Declaração transcrito anteriormente.
Por certo que a proposta de mecanismos de controle sugerida no século
XVIII sofreu adaptações, passando a receber títulos como “checks and balances”,
43 MONTESQUIEU, Charles de. Do Espírito das Leis. Tradução de Jean Melville. 1a. reimpressão. São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 165-166.
31
“freios e contrapesos”. Idealizada para evitar arbítrios na medida em que “o poder irá
frear o poder”, a proposta atual afasta a suposta rigidez inicial no relacionamento
entre os órgãos estatais, conforme explica NOBERTO BOBBIO:
[...] separação dos poderes quer dizer não que os três poderes devam ser reciprocamente independentes, mas que se deve excluir que quem possua todos os poderes de um determinado setor possua também todos os poderes de um outro, de modo a subverter o princípio sobre o qual se baseia uma constituição democrática, e que portanto é necessária uma certa independência entre os três poderes para que a cada um seja garantido o controle constitucional dos demais. 44
HANS KELSEN até mesmo julga falsa a hipótese de total independência
entre os órgãos:
O conceito de “separação de poderes” designa um princípio de organização política. Ele pressupõe que os chamados três poderes podem ser determinados como três funções distintas e coordenadas do Estado, e que é possível definir fronteiras separando cada uma das três funções. No entanto, essa pressuposição não é sustentada pelos fatos. [...] não é possível definir fronteiras separando essas funções entre si, já que a distinção entre criação e aplicação do Direito – subjacente ao dualismo de poder legislativo e executivo (no sentido mais amplo) – tem apenas um caráter relativo, a maioria dos atos do Estado, sendo, ao mesmo tempo, atos criadores e aplicadores de Direito. 45
Assim, seja pela impossibilidade afirmada por KELSEN, seja pela
necessidade de controle destacada por BOBBIO, a verdade é que os sistemas
jurídicos atuais, incluindo o brasileiro, prescrevem funções que são consideradas
típicas de cada órgão, bem como prescrevem funções atípicas. Aquelas são as que
os órgãos exercem de forma preponderante e que os qualifica nominalmente; já
estas são as exercidas minoritariamente.46 Explica SANTI ROMANO: “Cada das três
funções, em sentido material, é atribuída geralmente a uma determinada ordem de
44 BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: por uma teoria geral da política, 1987, p. 100. 45 KELSEN. Teoria geral do direito e do Estado, 2005, pp. 385-386. 46 Cf. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de teoria do Estado e ciência política. 1995, p. 79.
32
autoridade ou instituição, que apenas por exceção ou por disposições especiais
exerce algumas vezes a competência de uma outra função.”47
Será, portanto, a distribuição das funções típicas e atípicas que garantirá
o sistema de “freios e contrapesos”, como explana CARL SCHMITT:
El esquema de un contrapeso de los poderes distinguidos o, incluso, separados conduce a intervenciones e influencias recíprocas, con las cuales se llega a compensar las facultades contrapuestas y a llevarlas a un equilibrio. Todo robustecimiento de una parte ha de contrapesarse por la otra, y así, no se romperá el equilibrio por ninguna de las dos partes.48
No entanto, lembra J. H. MEIRELLES que tal distribuição deve ser
veiculada, exclusivamente, pela Constituição:
A distribuição de funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que a fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criar novas exceções , novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua tarefa específica [...].49 (Grifou-se)
A Constituição Federal de 1988 positiva tal teoria, no seu artigo 2º., ao
prescrever: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário”; e, em artigos posteriores (artigos 44 a 75, 76
a 91 e 92 a 135), ao disciplinar os órgãos, as composições, as competências, as
atribuições e as garantias de cada um desses poderes. Preocupou-se, ainda, o
legislador constituinte em reservar à separação dos Poderes a qualidade de cláusula
pétrea, insuscetível, pois, de ser objeto de emenda constitucional, de acordo com o
artigo 60, § 4º. da CF/88.
47 ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. Tradução de Maria Helena Diniz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 228. 48 SCHMITT. Teoria de la Constitución. 1982, p. 198. 49 TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de direito constitucional. GARCIA, Maria (Org.). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 592-593.
33
As expressões “independência” e “harmonia” prescritas pela CF/88 são
definidas por JOSÉ AFONSO DA SILVA da seguinte forma:
A independência dos poderes significa: (a) que a investidura e a permanência das pessoas num dos órgãos do governo não dependem da confiança nem da vontade dos outros; (b) que, no exercício das atribuições que lhes sejam próprias, não precisam os titulares consultar os outros nem necessitam de sua autorização; (c) que, na organização dos respectivos serviços, cada um é livre, observadas apenas as disposições constitucionais e legais;
[...]
A harmonia entre os poderes verifica-se primeiramente pelas normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente todos têm direito. De outro lado, cabe assinalar que nem a divisão de funções entre os órgãos do poder nem sua independência são absolutas. Há interferências que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados.50
Atenta-se para o fato de que a divisão de poderes dará a cada órgão
estatal do Executivo, do Legislativo e do Judiciário um feixe de competências, que
inclui atribuições, faculdades, deveres e instrumentos necessários à execução das
suas funções, mas é apenas o conjunto desses órgãos que se denomina Estado.
Lembrando com LOURIVAL VILANOVA que “Sem órgão, não sobre-resta o Estado;
sem o Estado, o órgão não é órgão”.51 E continua:
O Estado não preexiste nem sobrevive ao órgão. Em fases de desconcentração, há órgãos judicantes, administrativos (com direito não-legislado), dispersos, infixos, sem um centro comum de imputação. Com a estatização da nação (nação, povo, comunidade), confluem esses órgãos para um ponto, tornando-se partes do ente central.52
A seguir analisar-se-á a autonomia do Estado conferida pelo subsistema
social do direito, bem como a sua relação com os demais subsistemas sociais da
política e da economia.
50 SILVA. Curso de Direito Constitucional Positivo, 2000, p. 114. 51 VILANOVA. Causalidade e relação no direito, 2000, p. 275. 52 Ibid., p. 275.
34
1.5 AUTONOMIA OPERACIONAL DO DIREITO NO ESTADO DE
DIREITO
O Estado de Direito de que se tratou no item anterior não pode ser
confundido com uma organização social (sociedade ou comunidade) ou organização
política. Deve, sim, ser reconhecido, a partir de uma premissa sistêmica luhmaniana,
como uma organização que opera com código e programas próprios do sistema
jurídico. Explica MARCELO NEVES:
No modelo sistêmico, o Estado Democrático de Direito apresenta-se, em princípio, como autonomia operacional do direito. Significa que o sistema jurídico reproduz-se primariamente a partir de um código binário de preferência próprio (lícito/ilícito) e de seus próprios programas (Constituição, leis, decretos, jurisprudência, negócios jurídicos, atos administrativos etc.).53
A política, a economia, a religião, a moral etc. comporão o chamado
“ambiente” do sistema jurídico, e as trocas que são realizadas entre eles não só
gerarão uma evolução54 do sistema social como garantirão a própria autonomia do
direito e, consequentemente, do Estado de Direito. O contato com os demais
subsistemas sociais não enfraquece a autonomia, mas, ao contrário, fortalece a
diferença entre “sistema/ambiente” que é fundamental para a manutenção do caráter
autopoiético do direito e dos demais subsistemas sociais.55
Conforme tratado no item 1.1, a diferenciação entre os subsistemas surge
na sociedade moderna, bem como a sua autonomia. Não é outra a observação
efetuada por JOÃO MAURÍCIO ADEODATO:
53 NEVES. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Haberman, 2008, p. 85. 54 Pontua-se que essa evolução que trata a teoria dos sistemas não deve ser confundida como melhora, progresso ou aumento da felicidade. Releva MARCELO NEVES: “[...] evolução social não se configura como um processo de passagem para uma vida melhor, um maior grau de felicidade.” (NEVES. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas, 2008, p. 4). E explica CELSO FERNANDES CAMPILONGO que há evolução num determinado sistema quando há um processo de variação, seleção e estabilização das estruturas. (CAMPILONGO. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, 2002, p. 23) 55 Nesse sentido, o autor MARCELO NEVES ressalta que há uma interdependência entre os sistemas político e jurídico e que, para caracterizar o Estado de Direito, é necessária a diferenciação desses. (NEVES. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas, 2006, p. 85-95).
35
Pode-se definir uma sociedade como “complexa” com base na separação entre direito, religião, amizade, moral, política, economia, etiqueta etc., claro sem prejuízo de outras diferenciações; tacha-se de primitiva, indiferenciada, entre outros aspectos, aquela sociedade na qual, para dar um exemplo, a prática de um ilícito jurídico é ao mesmo tempo imoral e pecaminosa. Argumentos modernos como “pode não ser moral, mas é legal”, comuns no Brasil de hoje, não deveriam fazer muito sentido a um egípcio antigo ou aos contemporâneos de Sócrates.56
Numa concepção sistêmica luhmaniana, “autonomia” não significa
isolamento ou autarquia do sistema em relação ao ambiente, mas fechamento
operacional daquele. Isso significa que sobre cada subsistema social atuarão
diversas influências produzidas pelo ambiente, mas, para que se garanta a
autonomia de cada um deles, elas só deverão ser processadas de acordo com o
código-diferença de cada um.
Em se tratando do sistema jurídico, essas influências precisam ser
processadas pelo código lícito/ilícito (ou direito/não-direito). Já nos demais
subsistemas sociais, esse processamento se dará por meio de códigos binários
diversos, como, por exemplo, o código poder superior/poder inferior (ou
governo/oposição) no sistema político, o código ter/não-ter (ou custo/benefício) no
sistema econômico, o código conhecido/desconhecido (material/imaterial) no
sistema religioso.
Assim, para que se garanta a autonomia do sistema jurídico, a
comunicação realizada por esse subsistema social terá que ser organizada a partir
do seu código (lícito/ilícito), e veiculada por meio dos seus programas condicionais
(se/então). O direito não apreenderá outras expectativas que não sejam
processadas nos termos do seu código, do seu programa e da sua função.57
Relacionado a esse tema, CELSO FERNANDES CAMPILONGO traduz o seguinte
trecho da obra de JUAN ANTONIO GARCIA AMADO:
[...] o juiz, por exemplo, não atua em razão de fins, mas a partir do cumprimento de certas condições iniciais: as previstas na norma.
56 ADEODATO, João Maurício. Filosofia do direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência em contraposição à ontologia de Nicolai Hartmann. 3. ed. revista e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 214. 57 CAMPILONGO. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, 2002, p. 22.
36
Para Luhmann, desconhecer este dado e introduzir elementos teleológicos, cálculos sobre as conseqüências, discricionariedade judicial, etc. significa bloquear a função do direito como estabilizador de expectativas, inviabilizar a redução da complexidade alcançada com a divisão de tarefas entre o legislador e o aplicador das normas e questionar a autonomia do sistema face aos demais sistemas, como o político, o econômico, etc.58
Será, portanto, o fechamento operativo, realizado pelo código lícito/ilícito,
que garantirá a construção da complexidade interna do direito e, consequentemente,
sua autonomia. Mas, como dito acima, isso não significa que esse subsistema social
seja impermeável, pois existirão os entrelaçamentos comunicacionais entre os
diversos subsistemas por meio da chamada abertura cognitiva. Daí a afirmação de
que o sistema jurídico é fechado operativamente, mas aberto cognitivamente.
Por abertura cognitiva entende-se o processo de aprendizagem na
construção das novas informações provenientes das interferências do meio
envolvente. As influências do mundo exterior gerarão estímulos nos processos
internos do sistema jurídico,59 como será tratado no próximo item.
São vários subsistemas autopoiéticos60 que se comunicam (interferem) e
que estão dentro de outro sistema autopoiético que é o sistema social. Conforme
observa GUNTHER TEUBNER:
Os subsistemas não coexistem de modo separado, como se se encontrassem lado a lado, mas interferem mutuamente em, pelo menos, dois aspectos possíveis: uma comunicação participa simultaneamente em vários circuitos autopoiéticos e uma pessoa actua em contextos sistêmicos diferentes.61
58 AMADO, Juan Antonio García. La societé et le droit chez Luhmann. In: Niklas Luhmann du droit. Apud CAMPILONGO. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, 2002, p. 22. 59 TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Tradução de José Engrácia Antunes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, pp. 128-165. 60 Autopoiese significa autoprodução do sistema. O sistema produz a si mesmo. Poiesis significa “produção”, em grego. Essa expressão teria sido usada pela primeira vez por HUMBERTO MATURANA e FRANCISCO VARELA para definir os seres vivos. Segundo explica NIKLAS LUHMANN o conceito de autopoiesis de Maturana “[...] significa que um sistema só pode produzir operações na rede de suas próprias operações, sendo que a rede na qual essas operações se realizam é produzida por essas mesmas operações.” (LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Rio de Janeiro: Vozes, 2009, p. 297) 61 TEUBNER. O direito como sistema autopoiético, 1989, p. 207.
37
Nessa comunicação entre subsistemas sociais, a Constituição também
terá um papel fundamental na garantia da autonomia do direito e,
consequentemente, do Estado de Direito, uma vez que ela substituirá os apoios
externos que legitimavam o direito e que geravam uma hierarquização vertical do
direito com relação aos outros sistemas sociais.62 Antes da criação da Constituição,
o direito ficava submetido aos sistemas político, econômico e religioso, na medida
em que a decisão do lícito/ilícito era estabelecida a partir de critérios próprios
daqueles.
A existência de uma Constituição (no sentido moderno) indica que o
sistema jurídico é operacionalmente autodeterminado. Explica MARCELO NEVES:
“A interna hierarquização ‘Constituição/Lei’ atua como condição da reprodução
autopoiética do Direito moderno, serve, portanto, ao seu fechamento normativo,
operacional”.63
CELSO FERNANDES CAMPILONGO64 explica que a Constituição não só
dará as ferramentas para o fechamento operativo do direito como também servirá de
mecanismo para sua abertura cognitiva. Daí LOURIVAL VILANOVA ensinar que: “A
Constituição provém da realidade social e sobre a realidade social se volta para
modelar, i.e., dar forma às relações humanas, conferir segurança para o logro dos
fins.”65 (Grifos do autor)
Portanto, em síntese, ao se analisarem as comunicações intersistêmicas
do direito com a política e com a economia, deve-se lembrar que, para garantir a
autonomia do direito, tida como uma característica necessária do Estado de Direito,
é preciso assegurar o fechamento operacional do sistema jurídico, por meio do
código lícito/ilícito. Faz-se importante, ainda, que o observador certifique se a
comunicação foi realizada nos estritos termos da Constituição, conforme será
aprofundado a seguir.
62 Cf. NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, pp. 65-66. 63 Ibid., p. 66. 64 CAMPILONGO. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, 2002, p. 24. 65 VILANOVA. Proteção Jurisdicional dos Direitos numa Sociedade em Desenvolvimento. Escritos Jurídicos e Filosóficos, volume (2), 2003, p. 465.
38
1.6 PROCESSAMENTO DAS INFLUÊNCIAS POLÍTICAS E
ECONÔMICAS NO ESTADO DE DIREITO
É no estudo dos limites das repercussões das influências políticas e
econômicas no direito que a teoria sistêmica de Luhmann tratada nos itens
anteriores dará enormes contribuições. Sobre a importância dessa teoria na análise
da interação do direito com o meio, GUNTHER TEUBNER expõe:
A teoria dos sistemas deve muito do seu sucesso ao facto de perspectivar os sistemas como realidades abertas e adaptáveis ao respectivo meio envolvente (“Umwelt”, “environment”). Deixando de conceber estes como realidades fechadas e como mónadas opacas [...].66
Em conjunto com o fechamento operativo de cada sistema social está a
sua abertura cognitiva. Trata-se, segundo LUHMANN, de um paradoxo: “O sistema é
aberto porque é fechado, ou ainda, é fechado porque é aberto.”67 Tal paradoxo,
explica o autor, não é uma contradição lógica, mas uma questão que decorre da
própria definição de clausura operacional como reprodução recursiva por meio do
código lícito/ilícito e não como negação da abertura.
Aplicando os conceitos de fechamento e abertura da teoria sistêmica
luhmaniana, percebe-se, por um lado, que o fechamento do sistema jurídico é
garantido pela sua qualidade normativa, em que todas as comunicações necessitam
passar por normas jurídicas (“direito que cria direito por meio do direito”). E, por
outro lado, verifica-se que a abertura do sistema jurídico é tida como cognitiva, ou
seja, trata-se de um processo de aprendizado que será observado na interpretação
jurídica heterorreferente.
Não se pode negar que muitos atos jurídicos são condicionados por
influências políticas e econômicas. A questão está em saber como e em que medida
essas interferências podem ocorrer sem que se afaste a infungibilidade do código do
direito. Do contrário, haverá corrupção dos códigos intersistêmicos e, 66 TEUBNER. O direito como sistema autopoiético, 1989, pp. 27-28. 67 LUHMANN. A Restituição do Décimo Segundo Camelo: Do Sentido de uma Análise Sociológica do Direito. In: ARNAUD (Org.); LOPES JR. (Org.). Niklas Luhmann: Do Sistema Social à Sociologia Jurídica, 2004, p. 64.
39
consequentemente, bloqueios na concretização do direito constitucional. Sobre a
utilização dos códigos da política e da economia MARCELO NEVES comenta:
O sistema político reproduz-se, primariamente, de acordo com o código de preferência generalizado “poder superior/inferior (convertido contemporaneamente na diferença entre governo e oposição) e os seus respectivos programas, estabelecidos por procedimentos eleitorais, parlamentares, burocráticos etc. Nesse sentido, “poder ou não-poder” é uma disjunção que não se confunde com aquela entre “ter ou não-ter”. Em outras palavras, o código de preferência da economia não se sobrepõe ao código da política, nem vice-versa. Correspondentemente, os programas e critérios econômicos e políticos não se transportam, diretamente, de um para o outro.68
Observa-se, mais uma vez, que será a infungibilidade desses códigos que
garantirá a autonomia autorreferencial dos subsistemas sociais. A abertura cognitiva
que se opõe a essa clausura operacional não pode ser entendida como um contato
direto como meio.69 As interferências oriundas do ambiente deverão ser
processadas dentro de cada sistema social parcial, a partir dos seus próprios
códigos. Caso assim não fosse, voltar-se-ia aos sistemas abertos e retroceder-se-ia
ao período anterior ao Estado de Direito.
Por certo que a característica de autoprodução do direito (normas que
produzem normas) não pode levar à falsa ideia de que, na sua reprodução, o direito
criaria seus novos elementos sem nenhuma participação do ambiente externo. É
inquestionável que na (re)produção das normas há diversas influências dos diversos
subsistemas sociais, mormente, dos sistemas político e econômico. Nesse sentido,
explica GUNTHER TEUBNER:
[...] a teoria autopoética considera que a influência das condicionantes sociais, econômicas e políticas do direito não está excluída, mas é mesmo pressuposta, por um sistema jurídico auto-produtivo. Não é a inexistência desta influência proveniente do meio envolvente o que a teoria autopoética veio inovadoramente sublinhar, mas apenas a forma particular como aquela se repercute no sistema.70
68 NEVES. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas, 2008, p. 86. 69 Cf. TEUBNER. O direito como sistema autopoiético, 1989, p. 170. 70 Ibid., p. 45.
40
No entanto, essas interferências políticas e econômicas deverão ser
processadas unicamente pelo código lícito/ilícito do direito. Ensina CELSO
FERNANDES CAMPILONGO: “O direito positivo não entende outras razões além
daquelas traduzíveis no termos de seu código, programas e função.”71 Assim,
continua o autor: “Modificações nos sistemas político e econômico podem ser
captadas pelo sistema jurídico a partir dos respectivos acoplamentos estruturais.”72
A forma de interiorizar os ruídos do ambiente se dá por meio dos
acoplamentos estruturais, entendidos pela teoria sistêmica como a coligação das
situações e das mudanças ocorridas no ambiente por meio das suas operações
internas.73
O autor supracitado ajuda a esclarecer a diversidade desses ruídos entre
os subsistemas ao exemplificar que o não pagamento do preço acordado num
negócio jurídico gera um ruído econômico no direito. Aqui, porém, não interessa
para o direito saber se o não cumprimento pelo devedor foi mais conveniente ou
lucrativo, mas apenas saber qual a consequência jurídica de tal ato (lícito/ilícito).74
Há casos, porém, de neutralização (ausência de interferência) entre os
sistemas, como o que ocorre entre os sistemas econômico e político, exemplificado
por MARCELO NEVES, no qual nem sempre os mais ricos serão os “donos do
poder”.75
Os órgãos estatais responsáveis pela criação e aplicação das normas
jurídicas deverão processar esses ruídos políticos e econômicos sem perder de vista
a diferenciação entre os subsistemas sociais, sob pena de desestabilizar a
autonomia do direito. A comunicação do direito com os demais subsistemas terá a
interpretação e a decisão judicial como importantes instrumentos. É o que será
aprofundado nos próximos capítulos.
71 CAMPILONGO. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, 2002, p. 22. 72 Ibid., p. 97. 73 Ibid., p. 95. 74 Ibid., p. 97. 75 NEVES. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas, 2008, p. 86.
41
1.7 CORRUPÇÃO ENTRE OS CÓDIGOS E ESTADOS PERIFÉRICOS
Diz-se que ocorre “corrupção dos códigos” quando um subsistema social
utiliza um código que não lhe é próprio. Como visto acima, as relações entre “direito
e política” e “direito e economia” geram interconexões ou acoplamentos estruturais.
Entretanto, adverte CELSO FERNANDES CAMPILONGO: “[...] esses acoplamentos
podem atingir um ponto tão elevado que, muitas vezes, acabam por desnaturar a
forma de operação própria de cada subsistema. Dito de outro modo: produzem a
‘corrupção do código’ próprio a cada sistema.”76
Nos termos explicitados em itens anteriores, a sociedade moderna está
fundada na estabilização dos sistemas especializados, como o direito, a política e a
economia. A diferenciação funcional, derivada da complexidade social, garante que
não haja retorno às sociedades primitivas, nas quais a origem social, familiar ou o
status de nascimento eram critérios de inclusão nos sistemas.77 Para tanto, é
necessário que o fechamento e a abertura dos subsistemas sociais sejam
controlados.
O sistema jurídico foi por muito tempo submetido ao sistema político,
havendo uma prevalência (hierarquia) de um sobre o outro, como expõe MARCELO
NEVES:
Nas formas pré-modernas de dominação, assim como no absolutismo do início da era moderna e nas autocracias contemporâneas, configura-se a relação de subordinação do direito à política.” Explica o autor que não existia nessa época uma simetria na relação soberano e súdito, tendo uma relevância especial o princípio “o príncipe está isento da lei.78
O autor supracitado relata, em outra obra, que o controle da autonomia de
cada subsistema social vem ocorrendo com sucesso nas sociedades desenvolvidas,
nos Estados centrais, onde, a partir de uma demarcação clara das fronteiras de cada
subsistema social, o sistema jurídico vem mantendo sua diferenciação funcional. A
76 CAMILONGO. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, 2002, p. 61. 77 Cf. Ibid., p. 24. 78 NEVES. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas, 2008, p. 90.
42
dificuldade, entretanto, ainda reside nos chamados Estados periféricos, em que se
incluem os países da América Latina, da África, de grande parte da Ásia e da
Europa Oriental. Nesses, o paradoxo “lícito porque ilícito” é substituído, com
frequência, por “lícito porque poderoso”, “lícito porque rico”, “lícito porque amigo”.79
Nessa linha, MARCELO NEVES apresenta as seguintes situações que
podem ser visualizadas nos Estados periféricos, que são menos desenvolvidos e
com uma complexidade social insuficientemente estruturada: (i) autonomia do direito
não se realiza ou é insatisfatória; (ii) encadeamentos destrutivos dos diversos
códigos de comunicação nos respectivos contextos sociais; (iii) quebra de
circularidade entre regras e decisões; (iv) bloqueios da concretização do direito
constitucional; e (v) desconexão das decisões a argumentos juridicamente
consistentes e socialmente adequados.80
Nesse tipo de Estado pouco desenvolvido, a corrupção entre os códigos
pode ser visualizada com maior frequência entre os subsistemas político, econômico
e jurídico. O código-diferença deste último (lícito/ilícito) vem se apresentando,
constantemente, como um código fraco diante dos códigos da política (poder/não-
poder) e da economia (ter/não-ter). Isso pode ser detectado em muitas decisões
pautadas em fatores extrajurídicos os quais ignoram o texto constitucional e legal.
Os acoplamentos estruturais — interpenetrações e interferências — entre o
direito e os demais subsistemas sociais, decorrentes da abertura cognitiva, não só
ocorrem, mas também são necessárias para manter a autonomia do sistema
jurídico. No entanto, sem a manutenção da diferenciação do que é jurídico e do que
não é jurídico, instaura-se a insegurança na sociedade e nega-se a legitimidade do
direito como um sistema capaz de solucionar os conflitos intersubjetivos.
Com o escopo de analisar o grau dessas influências econômicas e
políticas no direito e a contribuição do STF para a manutenção do Estado de Direito,
por meio das suas decisões judiciais, é que se promoverá nos próximos capítulos
79 NEVES. E se Faltar o Décimo Segundo Camelo? Do Direito Expropriador ao Direito Invadido. In: ARNAUD (Org.); LOPES JR. (Org.). Niklas Luhmann: Do Sistema Social à Sociologia Jurídica, 2004, p. 146-147. 80 Ibid., p. 146.
43
um aprofundamento sobre os temas “interpretação jurídica” e “decisão judicial”,
utilizando-se dos instrumentais construídos pelo Construtivismo Lógico-Semântico e
pela Teoria dos Sistemas.
44
CAPÍTULO 2 – INTERPRETAÇÃO JURÍDICA E SEUS LIMITES
2.1 ENTENDIMENTO DOMINANTE SOBRE INTERPRETAÇÃO
JURÍDICA E SEUS MÉTODOS
O tema interpretação gera enormes polêmicas e uma infinidade de
trabalhos científicos nos diversos campos do saber humano. Diverso não ocorre na
Ciência do Direito, quando se fala de interpretação jurídica. O objetivo deste item é
explicitar qual é o pensamento dominante sobre o tema “interpretação jurídica” e
quais são os métodos indicados por essa teoria, para se proceder à atividade
interpretativa.
Na introdução de sua obra Hermenêutica e aplicação do direito, CARLOS
MAXIMILIANO apresenta a diferença entre hermenêutica e interpretação,81 sendo a
primeira a teoria científica da segunda. Para ele, interpretar é o ato de “explicar,
esclarecer; dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras
palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma
expressão; extrair de frase, sentença ou norma tudo o que na mesma se contém”.82
Observa-se que, no entendimento acima, os termos verdade e extração
remetem à ideia de um a priori ontológico, como se houvesse algo por detrás dos
vocábulos que pudesse ser desvendado ou extraído. Isso fica nítido quando o autor
afirma, posteriormente: “Não lhe compete [ao intérprete] apenas procurar atrás das
palavras os pensamentos possíveis, mas também entre os pensamentos possíveis o
único apropriado, correto, jurídico.”83
81 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 1. 82 Ibid., p. 7. 83 Ibid., p. 13.
45
Nota-se que tais conceitos partem da ideia de que o sentido estaria por
detrás das palavras, e o ato de interpretar seria o de demonstrar o verdadeiro
significado da expressão, conforme explica AURORA TOMAZINI DE CARVALHO:
“Durante muitos anos a tradição hermenêutica associou o termo ‘interpretação’ à
idéia de revelação do conteúdo contido no texto. Interpretar era mostrar o verdadeiro
sentido de uma expressão, extrair da frase ou sentença tudo o que ela contivesse”.84
A busca pela extração do real significado da lei, por sua vez, se divide
entre aqueles que buscam a identificação da voluntas legis e aqueles que procuram
detectar a voluntas legislatoris. Para o primeiro grupo, interpretar é descobrir o que
a lei diz; já para o segundo, interpretar é compreender o que quis dizer o
legislador.85
E, nessa linha de raciocínio, a teoria hermenêutica construiu diversos
métodos na busca do sentido da lei. O entendimento predominante86 adota os
seguintes métodos de interpretação das normas jurídicas: (i) gramatical; (ii) lógico;
(iii) sistemático; (iii) histórico; e (iv) teleológico. Veja-se.
(i) Método gramatical: constitui a identificação não só do significado
(gramatical), mas também a estrutura sintática das palavras utilizadas pelo
legislador. Trata-se do primeiro passo que deve ser dado pelo intérprete. Ressalta
DIMITRI DIMOULIS que: “[...] o significado gramatical dos termos legais funciona
como limite da interpretação”87 e acrescenta TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.:
“Parte-se do pressuposto de que a ordem das palavras e o modo como elas estão
conectadas são importantes para obter-se o correto significado da norma.”88
84 CARVALHO. Aurora Tomazini de. Interpretação e aplicação do direito. In: HARET, Florence (Coord); CARNEIRO, Jerson (Coord.). Vilém Flusser e juristas: comemoração dos 25 anos do grupo de estudo Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Noeses, 2009, p. 259. 85 Cf. FERRAZ JR., Tercio Ferraz. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008, pp. 230-234. 86 Cf. DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. 2. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 175-184. Cf. FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, 2008, p. 251-254. 87 DIMOULIS. Manual de introdução ao estudo do direito, 2007, p. 177. 88 FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, 2008, pp. 252-253.
46
(ii) Método lógico: servirá para descobrir o significado da norma, por meio
da observância aos princípios da lógica aplicáveis às relações entre as expressões
normativas, como o princípio lógico da identidade, do terceiro excluído etc.
(iii) Método sistemático: estabelece que na interpretação das normas
jurídicas é preciso levar em conta que o direito é um sistema composto por várias
normas, que estão em relações verticais e horizontais umas com as outras.
Segundo TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.: “[...] quando se enfrentam as questões
de compatibilidade num todo estrutural, falemos em interpretação sistemática (stricto
sensu).”89
(iii) Método histórico: impõe ao intérprete a busca pela vontade do
legislador, a sua intenção no momento da produção da norma jurídica. Segundo
DIMITRI DIMOULIS: “[...] aquilo que interessa não é a pretensão subjetiva que
permaneceu na cabeça do legislador e sim o entendimento dos motivos e das
finalidades da edição da lei mediante o debate político e científico da época”.90
(iv) Método teleológico: requer que o intérprete busque a finalidade da
norma jurídica, levando em conta o contexto atual. Resume o autor supracitado:
“Esse método propõe interpretar a norma de acordo com aquilo que o legislador teria
decidido se conhecesse a situação atual.”91
Tratam-se de métodos que, segundo a doutrina, deverão ser aplicados
conjuntamente, para que o intérprete possa chegar à correta busca pelo real sentido
da norma, seja pela identificação da “vontade da lei”, seja pela identificação da
“vontade do legislador”. O que se quer aqui ressaltar não é a aplicação dos métodos,
mas a crença de que, por meio deles, será possível chegar à verdadeira vontade da
lei ou do legislador.
Ao explicar o entendimento dominante sobre interpretação jurídica,
FRIEDRICH MÜLLER diz: “O critério da interpretação de uma prescrição legal é,
portanto a vontade objetivada do legislador expressa nessa prescrição, tal como ela
89 FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, 2008, p. 256. 90 DIMOULIS. Manual de introdução ao estudo do direito, 2007, p. 179. 91 Ibid., p. 180.
47
resulta do teor literal da determinação legal e do contexto de sentido, no qual ela
está inserida.”92 E cita o seguinte trecho de uma decisão da Corte Constitucional
Federal Alemã que evidencia o entendimento vigente:
Servem a esse objetivo de interpretação a interpretação a partir do teor literal da norma (interpretação gramatical), a partir do seu contexto (interpretação sistemática), a partir da sua finalidade (interpretação teleológica) e a partir dos materiais legais e da história da formação (interpretação histórica). Todos esses métodos de interpretação são lícitos para apreender a vontade objetiva do legislador . Eles não se excluem reciprocamente, mas complementam-se reciprocamente.93 (Grifou-se)
Não é outro o entendimento fixado pela jurisprudência brasileira. Como
pode ser observado nos trechos dos acórdãos abaixo, a interpretação jurídica é tida
como a busca pelo verdadeiro sentido da lei ou da vontade do legislador:
(i) RMS 19.612/PR, Relatora Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª. Turma, julgado em 29-09-2009, DJe 19-10-2009:
Ementa:
RECURSO ORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. MILITAR. RESERVA REMUNERADA. APLICAÇÃO DO ART. 201, § 9º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA E SISTEMÁTICA. POSSIBILIDADE.
[...]
2. Se tanto a reserva remunerada como a aposentadoria, para os militares, conduzem, de certo modo, a uma mesma definição, qual seja, a de que se trata da passagem do militar para a inatividade, por tempo de serviço, com o percebimento de seus proventos, razão não há para que o art. 201, § 9º, da Constituição seja interpretado restritivamente, sem que o verdadeiro sentido lhe seja extraído. Aplicabilidade dos métodos de interpretação sistemático e teleológico.
[...]
Voto:
Como se pode observar, a interpretação teleológica leva à possibilidade de o aplicador do direito, em caso de norma que conduza a mais de uma interpretação, optar pela interpretação que melhor corresponda ao seu objetivo, desde que consentânea com os fins pretendidos pelo legislador .
92 MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. Tradução de Ana Paula Barbosa-Fohrmann et al. 2. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 200. 93 Ibid., p. 200.
48
No caso da interpretação sistemática, esta pressupõe que determinado dispositivo da Constituição não se encontra isolado, mas inserido no todo da ordem constitucional, devendo ser compreendido em relação ao texto constitucional e ao sistema global do direito positivo em vigência.
(ii) RE 443388, Relatora Min. Ellen Gracie, 2ª. Turma, julgado em 18-08-2009, DJ 11-09-2009:
Voto:
Na realidade, com o emprego dos critérios teleológico e sistemático na interpretação do dispositivo ora analisado, observo que a lei expressamente pretendeu também punir o agente que, ao praticar qualquer uma das ações típicas contempladas no §1º., do art. 180, agiu com dolo eventual, mas tal medida não exclui, por óbvio, as hipóteses em que o agente agiu com dolo direto (e não apenas eventual).
No entanto a utilização desses métodos interpretativos pela busca do
verdadeiro sentido da norma jurídica tem se demonstrado insuficiente, na medida
em que se parte do pressuposto de que existe uma forma de acesso à realidade,
que, por sua vez, guarda a resposta verdadeira. Como explica TERCIO SAMPAIO
FERRAZ JR.: “Supõe-se, pois, que a realidade contém uma essência que tem um
sentido normativo independente do próprio discurso normativo.”94
Elucida LENIO LUIZ STRECK que esse pensamento, que ainda prevalece
no imaginário jurídico, decorre do paradigma epistemológico da filosofia da
consciência, “onde as formas da vida e relacionamentos são reificadas e
funcionalizadas, ficando tudo comprimido nas relações sujeito-objeto [...].”95 E, em
decorrência disso, continua o autor: “Não é temerário afirmar que, no campo jurídico
brasileiro, a linguagem ainda tem um caráter secundário, como terceira coisa que se
interpõe entre sujeito e objeto, enfim, uma espécie de instrumento ou veículo
condutor de essências e corretas exegeses dos textos legais.”96
Ocorre que a constante frustração vivida pela comunidade jurídica na
verificação de que a “real” intenção da lei ou do legislador é inalcançável vem
94 FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, 2008, p. 238. 95 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 57. 96 Ibid., p. 58.
49
fortalecendo um entendimento oposto ao almejado. Defendem alguns que não há
limites na interpretação jurídica, pois qualquer entendimento pode ser tido como
verdadeiro, caracterizando uma espécie de “corrente niilista da interpretação”.
“Nem tanto ao céu, nem tanto à terra”, diz o dito popular. É bem verdade
que a real vontade da lei ou do legislador é inalcançável, mas também é verdade
que é possível identificar limites na atividade interpretativa no processo
comunicacional jurídico. É o que JOÃO MAURÍCIO ADEODATO chamará de “meio-
termo teórico”:
[...] procura-se aqui um meio-termo teórico entro o casuísmo irracionalista, segundo cuja teoria o texto da norma jurídica quase nada significa e o juiz cria livremente o direito, e a defesa ingênua de uma verdade jurídica única para aplicação da Constituição diante de conflitos concretos, a crença na solução trazida por uma interpretação competente, justa e racionalmente cogente de textos jurídicos, adequada à “coisa” (res), isto é, a seu objeto.97
Partindo-se de paradigmas construídos por meio da Filosofia da
Linguagem e da Teoria dos Sistemas chegar-se-á, conforme será visto nos próximos
itens, a um outro conceito de interpretação jurídica e a outro objetivo na aplicação
dos métodos interpretativos indicados acima. E perceber-se-á a função da
interpretação na autodescrição do direito e a sua importância na manutenção da
autonomia do direito.
2.2 DEFINIÇÕES NECESSÁRIAS EM FUNÇÃO DA ADOÇÃO DA
FILOSOFIA DA LINGUAGEM E DA TEORIA SISTÊMICA
Neste trabalho, adotar-se-á um conceito de interpretação embasado nos
pressupostos da Filosofia da Linguagem e da Teoria dos Sistemas. No entanto, para
que se possa apreender os resultados da aplicação dessas teorias, necessário se
faz fixar a definição de alguns termos que serão utilizados e comentados, tais como:
(i) linguagem; (ii) língua; (iii) fala; (iv) signo; (v) símbolo; (vi) enunciação; (vii)
97 ADEODATO, João Maurício. A retórica constitucional (sobre a tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo). São Paulo: Saraiva, 2009, p. 139.
50
enunciado; (viii) atos de fala; (ix) comunicação; (x) sistema comunicacional; (xi)
observação; (xii) autodescrição.
A seguir, serão apresentados os conceitos para tais termos, não com o
escopo de exaurir tais definições, apontando a diversidade de enfoques teóricos
possíveis. O objetivo é o de fixar em que acepção tais expressões são utilizadas
nesta tese. Veja-se abaixo:
(i) Linguagem: é a forma de expressividade no processo comunicacional
que, segundo FERDINAND DE SAUSSURE,98 engloba a língua e a fala. Trata-se,
de acordo com PAULO DE BARROS CARVALHO, da capacidade do ser humano de
se comunicar por meio dos signos.99 ROMAN JAKOBSON explica: “[...] uma das
tarefas essenciais da linguagem é vencer o espaço, abolir a distância, criar uma
continuidade espacial, encontrar e estabelecer uma linguagem comum ‘através das
ondas’”.100
(ii) Língua: é o sistema convencional de signos utilizado para exprimir as
ideias. Refere-se a uma instituição social, de caráter homogêneo e concreto,
decorrente de uma espécie de contrato estabelecido entre os membros da
sociedade. A língua apresenta uma resistência às tentativas isoladas de modificação
por parte dos indivíduos.101
Explica SAUSSURE que a língua “é a parte social da linguagem, exterior
ao indivíduo, que, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe
senão em virtude duma espécie de contrato estabelecido entre os membros da
comunidade”102. Continua o autor: “Enquanto a linguagem é heterogênea, a língua
assim delimitada é de natureza homogênea: constitui-se num sistema de signos
98 SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 12. ed. São Paulo: Editora Cultrix, [ca. 1990], p. 92. 99 CARVALHO. Direito tributário, linguagem e método, 2008, pp. 30-32. 100 JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. Tradução de José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 20. ed. São Paulo: Cultrix, 1995, p. 24. 101 Cf. SAUSSURE. Curso de lingüística geral, p. 22-24. 102 Ibid., p.22.
51
onde, de essencial, só existe a união do sentido e da imagem acústica, e onde as
duas partes do signo são igualmente psíquicas.”103
(iii) Fala: segundo SAUSSURE, a fala é “[...] a soma do que as pessoas
dizem, e compreende: a) combinações individuais, dependentes da vontade dos que
falam; b) atos de fonação igualmente voluntários, necessários para a execução
dessas combinações.”104
Há entre a língua e a fala uma relação de dependência, pois a língua é
oriunda da fala e por ela atualizada. Nesse sentido, afirma TÁREK MOYSÉS
MOUSSALLEM: “A fala é o modo de atualizar a língua ao imprimir novos usos às
palavras.”105 Será necessário que haja uma massa falante para que exista uma
língua.106
(iv) Signo: é a representação de algo. Segundo a terminologia
husserliana, será a relação triádica entre suporte físico, significado e significação.
Sendo que por suporte físico se entende a base material com a qual temos contato
físico; por significado a referência externa do signo (algo que está no mundo); e por
último, a significação compreende a ideia, a noção ou o conceito suscitados na
mente de quem interpreta.107
(v) Símbolo: é um dos tipos de signo ao lado do ícone e do índice,
segundo a classificação proposta por CHARLES S. PIERCE.108 Os símbolos são
decorrentes de convenções estabelecidas entre os homens, arbitrariamente
construídos, como, por exemplo, as palavras, as notas musicais, as bandeiras, os
emblemas etc.. PAULO DE BARROS CARVALHO adverte que, não há, em
princípio, nenhuma ligação do símbolo com o objeto do mundo (significado) que ele
representa. Ensina o autor:
103 SAUSSURE. Curso de lingüística geral, p. 23. 104 Ibid., p. 28. 105 MOUSSALLEM. Revogação em matéria tributária, 2005, p. 15. 106 Cf. SAUSURE. Curso de lingüística geral, p. 92. 107 Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método, 2008, pp. 33-34. 108 PIERCE, Charles S. Semiótica. Tradução de José Teixeira Coelho Neto. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010, pp. 63-76.
52
Aceitos por convenção, os símbolos são largamente utilizados nos mais diferentes códigos da comunicação. Deles não pode haver melhor exemplo que as palavras de um determinado idioma. O vocábulo casa nada sugere, considerado em si mesmo, a respeito da entidade real que menciona. É produto de convenção, formada num processo evolutivo que a gramática histórica pode em parte explicar, se bem que a escolha propriamente dita, no seu modo primitivo de existir, continue sendo ato arbitrário.109
(vi) Enunciação: é o ato de produção do enunciado, visto como uma
atividade discursiva. Conforme explica TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM: “[...] a
enunciação se opõe ao enunciado como um processo a seu produto, algo dinâmico
em contraposição ao estático. Todo enunciado pressupõe enunciação.”110 Por ser o
aspecto dinâmico da língua, JOSÉ LUIZ FIORIN, citando Derbrat-Orecchioni, diz ser
impossível descrever o ato de enunciação em si mesmo.111
(vii) Enunciado: é a expressão linguística, produto da enunciação.
Segundo AURORA TOMAZINI DE CARVALHO: “[...] são as sentenças (frases)
formadas pelo conjunto de fonemas e grafemas devidamente estruturadas que tem
por finalidade transmitir o conteúdo completo, num contexto comunicacional.”112 Ele
consiste numa expressão material.
Para MANFREDO ARAÚJO DE OLIVEIRA, nos moldes da classificação
de J. L. AUSTIN, há dois tipos de enunciados: constativo e performativo. O primeiro
verificaria uma situação de fato, entre eles, encontra-se o declarativo. Já o segundo,
performativo, executa uma ação, como p. ex., “digo sim no casamento ao padre.”113
(viii) Atos de fala: são as expedições de enunciados, que podem ser tanto
escritos quanto orais. E outra vez levando em conta a proposta de AUSTIN, o autor
109 CARVALHO. Direito tributário, linguagem e método, 2008, p. 35. Nesse sentido, CARLOS SANTIAGO NINO informa que: “[…] los símbolos tienen sólo una relación convencional con los objetos representados;” (NINO, Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho, 2. ed. ampliada e revisada, 13. reimpressão. Buenos Aires: Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo Depalmasrl., 2005, p. 248.) 110 MOUSSALLEM. Revogação em matéria tributária, 2005, p. 24. 111 FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. 2. ed. São Paulo: Ática, 1999, p. 31. 112 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do direito: o constructivismo lógico-semântico. São Paulo: Noeses, 2009, p. 173. 113 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 1996, pp. 151-152.
53
supracitado explica que os atos de fala podem ser divididos em: (a) locucionários,
(b) ilocucionários e (c) perlocucionários. Tal classificação parte da diferença entre os
enunciados constativos e os performativos.114
De acordo com TÁREK MÓYSES MOUSSALLEM, o ato locucionário é
aquele referente ao próprio dizer (p. ex.: “Ela me disse: “Vá embora!”). O ato
ilocucionário versa sobre aquilo que se faz ao falar alguma coisa (p. ex.: “Ela me
convenceu a ir embora”). E, por último, o ato perlocucionário é o resultado verificado
no destinatário decorrente da ação de dizer algo (p. ex.: “Ela obrigou-me a ir
embora”).115
O importante é perceber nessa classificação que a linguagem não possui
tão somente a função descritiva, formada apenas por sentenças declarativas, como
supôs a teoria tradicional da linguagem.116
(ix) Comunicação: é o compartilhamento de informações. Numa acepção,
a comunicação será a transmissão de mensagens, de um emissor para um receptor,
por meio de um canal, num código em comum entre dois. PAULO DE BARROS
CARVALHO conceitua cada um desses elementos:
(1) emissor: é a fonte da mensagem, aquele que comporta as informações a serem transmitidas; (2) canal: é o suporte físico necessário à transmissão da mensagem, sendo o meio pelo qual os sinais são transmitidos (é o “ar”, para o caso da comunicação oral, mas pode apresentar-se em formas diversas, como faixas de freqüência de rádio, luzes, sistemas mecânicos ou eletrônicos, etc.); (3) mensagem: é a informação transmitida; (4) código ou repertório (comum a ambos): é o conjunto de signos e regras de combinações próprias a um sistema de sinais, conhecido e utilizado por um grupo de indivíduos ou, em outras palavras, é o quadro das regras de formação (morfologia) e de transformação (sintaxe) de signos; (5) receptor: a pessoa que recebe a mensagem, o destinatário da informação; (6) conexão psicológica: é a concentração subjetiva do emissor e receptor na expedição e na recepção da mensagem; e (7) contexto: é o meio envolvente e a realidade que circunscrevem o fenômeno observado.117
114 OLIVEIRA. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, 1996, pp. 157-161. 115 MOUSSALLEM. Revogação em matéria tributária, 2005, pp. 16-17. 116 Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, 1996, pp. 150-151 e MOUSSALEM, Tárek Moysés. Revogação em matéria tributária, 2005, p. 11. 117 CARVALHO. Direito tributário, linguagem e método, 2008, p. 167.
54
Dessa forma, para que haja a comunicação é necessário que emissor e
receptor tenham um código em comum. Em geral, nas comunicações sociais utiliza-
se a linguagem idiomática como código em comum, sendo a partir dela construído o
significado das mensagens. É nesse sentido, que ROMAN JAKOBSON denomina o
emissor de codificador da mensagem e o receptor de decodificador da mensagem.
Na comunicação, haverá troca de mensagens, por meio de um canal (natural ou
artificial) e de um código que seja comum ao emissor (remetente ou codificador) e
ao receptor (destinatário ou decodificador).118
Todavia, o termo “comunicação” será utilizado neste trabalho numa
acepção mais ampla do que a transmissão de mensagens entre emissor e receptor.
Num processo comunicativo será possível perceber uma conexão de seleções.
Explica NIKLAS LUHMANN: “Obtém-se a comunicação mediante uma síntese de
três diferentes seleções: a) a seleção da informação; b) a seleção do ato de
comunicar; e c) a seleção realizada no ato de entender (ou não entender) a
informação e o ato de comunicar.”119 Nessa linha, esclarece DALMIR LOPES JR.: “A
comunicação, assim apresentada, deve ser compreendida como uma junção de três
momentos: informação (Information); mensagem (Mitteilung) e compreensão
(Verstehen).”120
(x) Sistema Comunicacional: é o sistema social, também denominado
sistema funcional. É fechado operacionalmente por meio de código e programas
próprios.
Para a Teoria Sistêmica, os sistemas são estruturas que, por meio de
operações realizadas no seu interior, se diferenciam do seu ambiente. São três os
tipos de sistemas fechados: biológicos, psíquicos e sociais.121 Para qualificar um
sistema é necessário partir da diferença entre sistema e meio. O sistema é
proveniente de um ato de distinção, como destaca CELSO FERNANDES
118 JAKOBSON. Lingüística e Comunicação, 1995, p. 19-23. 119 LUHMANN. Introdução à teoria dos sistemas, 2009, p. 297. 120 LOPES JR., Dalmir. Introdução. In: ARNAUD (Org.); LOPES JR. (Org.). Niklas Luhmann: Do Sistema Social à Sociologia Jurídica, 2004, p. 14. 121 LUHMANN. Introdução à teoria dos sistemas, 2009, p. 74.
55
CAMPILONGO: “Não há sistema sem ambiente.”122. Assim preleciona NIKLAS
LUHMANN:
O que muda na atual compreensão da Teoria dos Sistemas, em relação aos avanços alcançados nos anos 1950 e 1960, é uma formulação mais radical, na medida em que se define o sistema como a diferença entre sistema e meio. Tal formulação necessita de um desenvolvimento explicativo, já que se apóia em um paradoxo de base: o sistema é a diferença resultante da diferença entre sistema e meio. O conceito de sistema aparece, na definição, duplicado no conceito de diferença. 123
NIKLAS LUHMANN separa os sistemas sociais (comunicacionais) dos
psíquicos. Ele não verá a sociedade como um conjunto de pessoas, mas como um
conjunto de comunicações, que se distinguem das operações que ocorrem no nível
da consciência, atividade cognitiva dos indivíduos. Como explica GOTTFRIED
STOCKINGER, essa distinção feita por LUHMANN não é ontológica, mas
epistemológica, no nível operacional dos sistemas sociais.124
A comunicação, como algo independente do indivíduo, é que será tida
como sistema. Enfatiza CELSO FERNANDES CAMPILONGO: “Tenha-se em mente
que, no âmbito social, sistemas são sempre sistemas de comunicação. Insista-se:
sistemas sociais são sistemas de comunicação. Comunicações formam a sociedade.
Operações sociais são comunicações.”125
(xi) Observação: é uma operação de distinção. É a escolha de um dos
lados da diferença. Como explica CELSO FERNANDES CAMPILONGO:
“Observação, portanto, é a operação de definição ou escolha por uma parte (e não
pela outra). Essa escolha depende da distinção entre dois lados. Outras distinções
dariam ao lado escolhido outro sentido. O processo de comunicação pode ser
122 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do direito e movimentos sociais: Hermenêutica do Sistema Jurídico e da Sociedade. Tese apresentada ao Concurso de Professor Titular junto ao Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011, p. 66. (Material inédito). 123 LUHMANN. Introdução à teoria dos sistemas, 2009, p. 81. 124 STOCKINGER, Gottfried. Para uma Teoria Sociológica da Comunicação. Salvador: Editoração Eletrônica Facom (UFBA), 2001, pp. 33-34. 125 CAMPILONGO. Interpretação do direito e movimentos sociais: Hermenêutica do Sistema Jurídico e da Sociedade, 2011, p. 64-65.
56
descrito como um contínuo de observações com a escolha de informações.”126 E,
como evidencia LUHMANN, uma observação produz a si mesma, ao produzir uma
observação.127
Por sua vez, o observador é aquele que observa, que realiza as
distinções. É ele que construirá as barreiras dos sistemas sociais. Para a teoria
sistêmica, o observador no sistema social, não será considerado como um sistema
psicológico ou uma consciência. O observador é construído pela própria observação.
Explica o autor supramencionado: “Observar é a operação, enquanto observador é
um sistema que utiliza as operações de observação de maneira recursiva, como
sequências para obter uma diferença em relação ao meio.”128
É a observação que estabelece os limites por meio da diferenciação. Ela
partirá sempre do sistema, podendo se referir a algo interno (auto-observação) ou a
algo externo (hetero-observação).
E, ainda, a observação poderá se dar em níveis distintos e infinitos. As
observações de primeira ordem são as distinções realizadas na demarcação do
sistema social. Aquelas que dão forma diante do meio. E as observações de
segunda ordem, aquelas observações das observações dos observadores. Como
explica CELSO FERNANDES CAMPILONGO: “A observação de segunda ordem
deve tentar observar aquilo que o observador de primeira ordem não pode ver: os
dois lados das distinções pressupostas nos movimentos de escolha do observador
de primeira ordem.”129 Podem ocorrer, a partir dessas, outras sobreposições de
observações.
(xii) Autodescrição: é a produção de textos que coordenam um grande
número de observações.130 A autodescrição, explicita NIKLAS LUHMANN, é: “[...] la
autodescripción es la elaboración de un texto autológico, un texto que se refiere a sí
126 CAMPILONGO. Interpretação do direito e movimentos sociais: Hermenêutica do Sistema Jurídico e da Sociedade, 2011, p. 72. 127 LUHMANN. Introdução à teoria dos sistemas, 2009, p. 153. 128 Ibid., p. 154. 129 CAMPILONGO. Interpretação do direito e movimentos sociais: Hermenêutica do Sistema Jurídico e da Sociedade, 2011, p. 73. 130 Cf. LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Mexico: Herder, 2006, p. 698-699.
57
mismo.”131 Explica o autor que a autodescrição será uma representação da unidade,
da função, da autonomia e da indiferença dos sistemas.
Como é a observação que constitui o observador, na teoria sistêmica,
será a descrição que constituirá a autodescrição, pois aqui não há pressuposição de
um sujeito separado do seu objeto. Como explica CELSO FERNANDES
CAMPILONGO: “Autodescrições cuidam da representação do sistema no próprio
sistema.”132
Assim, utilizando os termos aqui clarificados, buscar-se-á nos próximos
itens, compreender, a partir da Filosofia da Linguagem e da Teoria Sistêmica, a
atividade de interpretação dos textos jurídicos.
2.3 OUTRO CONCEITO DE INTERPRETAÇÃO
A concepção de que a interpretação partirá de um a priori ontológico que
encontra em ARISTÓTELES e KANT bases fortes, não é a adotada neste trabalho.
Será construído, portanto, aqui, um conceito de interpretação baseado nos
pressupostos da Filosofia de Linguagem e na Teoria dos Sistemas.
A Filosofia da Linguagem, também denominada de Giro Linguístico ou
Reviravolta Linguística, tem como marco inicial a publicação da obra “Tractatus
logico-philosophicus” de LUDWIG WITTGENSTEIN.133 O paradigma dessa Filosofia
é o de que a linguagem não é apenas um instrumento de comunicação, mas a
condição para construção do próprio conhecimento.134
MANFREDO ARAÚJO DE OLIVEIRA destaca que a ideia central desse
movimento filosófico é a de que “[...] não existe mundo totalmente independente da
131LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. 2. ed. Cidade do México: Universidad Iberoamericana, 2005, p. 570. 132 CAMPILONGO. Interpretação do direito e movimentos sociais: Hermenêutica do Sistema Jurídico e da Sociedade, 2011, p. 186. 133 Essa obra marca a primeira fase de Wittgenstein, segundo MANFREDO ARAÚJO DE OLIVEIRA. (OLIVEIRA. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea,1996, p. 94). 134 Cf. CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do direito: o construtivismo lógico-semântico, 2009, pp. 12-13.
58
linguagem, ou seja, não existe mundo que não seja exprimível na linguagem. A
linguagem é o espaço de expressividade do mundo, a instância de articulação de
sua inteligibilidade.”135
Nesse sentido, PAULO DE BARROS CARVALHO ensina que a
interpretação será atividade de: “[...] atribuir valores ao símbolo, isto é, adjudicar-lhes
significações e, por meio dessas, referências a objetos.”136 A interpretação, nessa
acepção, será uma atividade de criação (construção) do intérprete, a partir de um
dado suporte fático e não de “descobrimento”. Elucida o autor:
Segundo os padrões da moderna Ciência da Interpretação, o sujeito do conhecimento não “extrai” ou “descobre” o sentido que se achava oculto no texto. Ele o “constrói” em função de sua ideologia e, principalmente, dentro dos limites de seu “mundo”, vale dizer, do seu universo de linguagem.137
A compreensão de que o ato de interpretar é um ato de criação tem suas
bases teóricas no constructivismo lógico-semântico, como explica FABIANA DEL
PADRE TOMÉ:
O termo constructivismo é empregado para denominar teorias que defendem a idéia de que há sempre intervenção do sujeito na formação do objeto. É palavra ligada ao contexto epistemológico. Contrapõe-se à corrente descritivista, que concebe o conhecimento ao modo aristotélico, como um processo de assimilação das formas.138
A expressão lógico-semântico se deve ao fato de a construção ter limites
sintáticos e semânticos. Prossegue a autora: “Nessa linha metodológica, procura-se
amarrar as idéias, definir os termos importantes, para conferir firmeza ao discurso. E
135 OLIVEIRA. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, 1996, p. 13. 136 CARVALHO. Direito tributário, linguagem e método, 2008, p. 180. PAULO DE BARROS CARVALHO lembra que a expressão “interpretação” sofre da ambiguidade processo/produto, podendo tanto se referir à atividade interpretativa, quanto ao produto dessa atividade. (Ibid., p. 193). 137 Ibid., p. 194. 138 TOMÉ, Fabiana. Vilém Flusser e o constructivismo lógico-semântico. In: HARET (Coord.); CARNEIRO (Coord.). Vilém Flusser e juristas: comemoração dos 25 anos do grupo de estudo Paulo de Barros Carvalho, 2009, p. 323.
59
tal amarração opera-se no plano lógico e no plano semântico. Daí falar-se em
constructivismo lógico-semântico.”139
Na medida em que não se conceberão os sujeitos participantes da
comunicação, como sistemas psíquicos (consciências), o constructivismo também
abarcará o campo pragmático da linguagem, quando o intérprete construirá a
“intenção” de quem comunicou e registrará, também, as suas intenções na
interpretação.
O sujeito interpretante funcionará, utilizando-se das premissas da teoria
sistêmica, como um observador de primeira ordem. Com isso, quer-se dizer que
quem interpreta está realizando operações de definição ou escolhas para produzir a
representação do sistema dentro do próprio sistema, viabilizando a formação do
sistema comunicativo e viabilizando a autodescrição do sistema.140 O intérprete,
como observador, estará dentro do sistema e não fora dele! Ou olhando para dentro
(autorreferência) ou olhando para fora (heterorreferência).
Partindo-se do conceito de comunicação fixado acima, percebe-se que a
comunicação jurídica pressupõe interpretação jurídica. Pelo processo interpretativo,
o participante da comunicação, na construção do sentido da mensagem, fará a
seleção de conceitos, distinguirá entre aspecto interno/aspecto externo ao direito.
Promoverá, como será demonstrado adiante, redundância ou variação. Isso significa
dizer que, para se comunicar, o participante necessita construir o sentido por meio
de escolhas. O produto da interpretação, assim, já será o resultado de escolhas
realizadas pelo intérprete (ainda que inconscientemente!).
139 TOMÉ. Vilém Flusser e o constructivismo lógico-semântico. In: HARET (Coord.); CARNEIRO (Coord.). Vilém Flusser e juristas: comemoração dos 25 anos do grupo de estudo Paulo de Barros Carvalho, 2009, p. 325. 140 Nesse sentido, afirma CELSO FERNANDES CAMPILONGO: “Democracia, mercado, direito positivo, por exemplo, são autodescrições da sociedade moderna e indicadores de sua contingência.” (CAMPILONGO. Interpretação do direito e movimentos sociais: Hermenêutica do Sistema Jurídico e da Sociedade, 2011, p. 186).
60
2.4 TEXTO JURÍDICO: PONTO DE PARTIDA DA INTERPRETAÇÃO
JURÍDICA
O direito é um subsistema social comunicacional que visa à resolução de
conflitos intersubjetivos, por meio de regulação normativa das condutas. Também
chamado de sistema de mensagens por GREGORIO ROBLES,141 o direito não é
tido como uma coisa, mas como comunicação.
Seus textos, produzidos pelas pessoas legitimadas pelo próprio
subsistema, são compostos por símbolos da linguagem idiomática. Nesse tom,
CASTANHEIRA NEVES afirma:
[...] o direito é linguagem e terá de ser considerado em tudo e por tudo como uma linguagem. O que quer que seja e como quer que seja, o que quer que ele se proponha e como quer que nos toque, o Direito é-o numa linguagem e como linguagem - propõe-se sê-lo numa linguagem (nas significações lingüísticas em que se constitui e exprime) e atinge-nos através dessa linguagem, que é.142
Assim, conhecer e interpretar o direito é conhecer e interpretar a
linguagem pela qual ele se manifesta. Poetizando, GABRIEL IVO registra:
Não se pode fugir do cerco da linguagem. Ali onde houver porção jurídica, haverá normas. Tais normas, no entanto, só poderão encontrar como forma de expressão uma linguagem. Impossível uma norma expressar-se na ausência de uma linguagem. Por isso pode ser banal, mas o banal às vezes precisa ser ressaltado; onde houver norma, haverá, necessariamente, uma linguagem em que ela se manifesta. A linguagem consiste numa explosão sem a qual a norma não se mostra, não se constrói. Fica no limbo .143 (Grifou-se)
Em se tratando de interpretação jurídica, caberá ao intérprete das
mensagens prescritivas construir a significação, atribuindo valores aos símbolos
veiculados pelos textos jurídicos. Utilizando-se da expressão de ROMAN
141 ROBLES, Gregorio. O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito. Tradução de Roberto Barbosa Alves. São Paulo: Manole, 2005, p. 78-79. 142 NEVES, Castanheira. Metodologia jurídica: problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra, 1993, p. 90. 143 IVO, Gabriel. Norma jurídica: produção e controle. São Paulo: Noeses, 2006, p. XXXVI.
61
JAKOBSON, o intérprete será o decodificador da mensagem produzida pelo sistema
comunicacional do direito. Nas palavras do autor, o intérprete será o “destinatário
virtual da mensagem.”144
Como o direito moderno se manifesta por meio de textos que veiculam
enunciados prescritivos expressos em códigos idiomáticos, estruturados
sintaticamente, esses serão, indubitavelmente, o ponto de partida da interpretação
jurídica. Observa PAULO DE BARROS CARVALHO: “Em qualquer sistema de
signos, o esforço de decodificação tomará por base o texto, e o desenvolvimento
hermenêutico fixará nesta instância todo o apoio de suas construções.”145 Donde
conclui GABRIEL IVO:
O plano da expressão é o único dotado de objetividade. E é a partir dele que se pode avaliar a “correção” dos demais. Ele marca a validade e a vigência dos textos. Toda construção significativa só poderá ser validamente edificada em face de um plano de expressão vigente.146
O documento jurídico é o produto do processo de enunciação realizado
pelos agentes legitimados pelo sistema jurídico, por meio de um procedimento
também indicado por esse sistema. Nesse documento, produto da enunciação,
encontram-se dois tipos de enunciados, assinalados por TÁREK MOYSÉS
MOUSSALLEM: (i) enunciação-enunciada: que serão os enunciados referentes ao
momento da enunciação (agente competente, tempo e espaço em que foi produzido
o documento); e os (ii) enunciados-enunciados: que são os enunciados que não se
referem à enunciação e formam o conteúdo do documento.147 O processo de
enunciação do documento normativo termina com a publicação, nos termos
pontuados por GABRIEL IVO:
O documento normativo, como dito anteriormente, é publicado no diário oficial. O documento consiste em textos escritos em um suporte físico ( = no caso de uma lei, o papel seria o suporte físico ).
144 JAKOBSON. Lingüística e comunicação, p. 23. 145 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 15. 146 IVO. Norma jurídica: produção e controle, 2006, p. XLII. 147 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 137.
62
A publicação se consuma quando cópias do documento normativo são difundidas de forma oficial. O documento normativo original não fica materialmente acessível aos cidadãos. O que circula por meio do diário oficial são cópias firmadas pela autoridade competente, que reproduz fielmente o documento normativo.148
O texto jurídico surge, pois, com a publicação, mas o sentido do texto só
será construído por meio da interpretação, daí a imprescindibilidade dos
participantes da comunicação. É sabido com LUCIA SANTAELLA que:
Sem conhecer a história de um sistema de signos e do contexto sociocultural em que ele se situa, não se pode detectar as marcas que o contexto deixa na mensagem. Se o repertório de informações do receptor é muito baixo, a semiótica não pode realizar para esse receptor o milagre de fazê-lo produzir interpretantes que vão além do senso comum.149
O texto, por si só, nada fala. Quem fala é quem lê o texto. É o leitor que
construirá o conteúdo do texto, lembrando que tal conteúdo já é o produto de
seleções realizadas por ele. Partir-se-á, assim, do plano da expressão para se
alcançar o plano do conteúdo, que está no nível de compreensão do sujeito, como
observador de primeira ordem. E, conforme será visto adiante, ao “explicitar a
interpretação”, já será possível uma observação de segunda ordem, que é a
argumentação jurídica. Daí NIKLAS LUHMANN afirmar que “Precisamente porque
los textos realizan el enlace de la argumentación con la validez del derecho, los
textos tienen un significado excepcional para la argumentación jurídica –
especialmente los textos legales en el sentido normal y también en el
especializado.”150
E, valendo-se, ainda, dos ensinamentos do autor supracitado, o texto
escrito possibilitará a ilusão de que há simultaneidade no processo comunicacional
entre emissor e receptor. Ao rebater a ideia, ainda vigente, de que há uma
simultaneidade da presença do emissor e do receptor da mensagem na
comunicação, NIKLAS LUHMAN consigna:
148 IVO. Norma jurídica: produção e controle, 2006, pp. 40-41. 149 SANTAELLA, Lucia. Semiótica aplicada. São Paulo: Cengage Learning, 2008, p. 6. 150 LUHMANN. El derecho de la sociedad, 2005, p. 402.
63
Diz-se: a metáfora da transmissão pressupõe, portanto, simultaneidade. Ao estar ligada a um espaço delimitado pelas presenças individuais, a comunicação oral se torna dependente do presente. No entanto, o advento da escrita rompe com essa concepção espacial, já que consiste em uma organização totalmente nova da temporalidade da operação comunicacional. A escrita – evitando-se qualquer desvio interpretativo – também acontece no presente, e simultaneamente. Mas, com a escrita se realiza uma presença completamente nova do tempo; isto é, a ilusão da simultaneidade do não simultâneo.151
Sendo, pois, o texto jurídico a materialização da comunicação jurídica, a
observação da construção de sentido (“ato de entender”) realizada pelo intérprete
poderá ser feita a partir dos planos sintático, semântico e pragmático da linguagem.
2.4.1 Princípio da Legalidade e texto jurídico
Foi visto no Capítulo 1 que a legalidade surge como elemento necessário
no conceito de Estado de Direito. Para que esse seja identificado é imprescindível
que todos (cidadãos e órgãos estatais) estejam sob o “império da lei”. A vontade dos
homens é afastada em detrimento da “vontade” da lei. Ou seja, após a fixação de
uma norma geral, todos, inclusive quem a produziu, deverão a ela se submeter. Será
ela que possibilitará o fechamento operativo, por meio do código e do programa do
direito.
Por certo que um Estado de legalidade pode ser um Estado Ditatorial,
uma vez que a exigência de lei não assegura o seu conteúdo. Não obstante, a sua
importância está especificamente no aspecto formal, na medida em que impõe o
procedimento na produção da linguagem jurídica. O princípio da legalidade está,
assim, ligado ao exercício das fontes do direito: só será considerada legítima a fonte
do direito de normas gerais e abstratas que observar o procedimento legal e for
produzida por ente competente.
No ordenamento pátrio, o Princípio da Legalidade está previsto no art. 5º.,
inciso II da Constituição: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
151 LUHMANN. Introdução à teoria dos sistemas, 2009, p. 296.
64
coisa senão em virtude de lei”. Assim, sob o enfoque formal,152 o sistema brasileiro
exige que quaisquer prescrições de permissão, obrigação e proibição de conduta
sejam veiculadas por meio de veículos introdutores primários.153
Observa-se, contudo, que a lei prescrita pelo princípio da legalidade é
aquela proveniente do órgão de representação popular. É esse o órgão responsável,
segundo a delegação do povo-eleitor, pela edição das normas gerais que, por sua
vez, servem de auto-observação da sociedade. Leciona LOURIVAL VILANOVA:
“Como a ideologia de sustentação é a da soberania do povo, o órgão imediato, de
exercício dessa soberania, é o legislativo.”154 E afirma JOSÉ AFONSO DA SILVA:
O texto não há de ser compreendido isoladamente, mas dentro do sistema constitucional vigente, mormente em função das regras de distribuição de competência entre os órgãos do poder, de onde decorre que o princípio da legalidade ali consubstanciado se funda na previsão de competência geral do Poder Legislativo para legislar sobre matérias genericamente indicadas, de sorte que a idéia matriz está em que só o Poder Legislativo pode criar regras que contenham, originariamente, novidade modificativa da ordem jurídico-formal [...]155
Ao Poder Legislativo foi dada a aptidão de produzir normas gerais, e tal
aptidão é indelegável aos demais poderes. Assevera PAULO DE BARROS
CARVALHO: “O princípio da legalidade compele o intérprete, como é o caso dos
julgadores, a procurar frases prescritivas, única e exclusivamente, entre as
152 Sob tal enfoque, o princípio da legalidade garante a liberdade do indivíduo, uma vez que ele poderá fazer tudo o que a lei não proibir e só estará obrigado a fazer aquilo que a lei determinar. A partir de tal prisma, MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO ensina que: “[...] se o homem está obrigado exclusivamente a fazer o que a lei lhe impõe, se ele não está obrigado a fazer o que ela não lhe impõe, se todas as suas obrigações hão de ter como fonte a lei, o próprio Estado não lhe pode reclamar o que não é previsto em lei. O Executivo não lhe pode exigir uma conduta que já não esteja definida em lei, o Judiciário não lhe pode impor uma sanção que já não esteja definida em lei, o próprio Legislativo (que não declara sozinho a lei) não lhe pode nada prescrever por meio de uma lei (que apenas se tornará tal caso conte com a anuência do Executivo – a sanção).” (FERREIRA FILHO. Estado de direito e Constituição, 2007, p. 24.) Assim sendo, no mesmo momento em que garante a liberdade dos homens, o Princípio da Legalidade limita a atuação do Estado. 153 Para CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELO, a lei de que fala o art. 5º. da CF/88 é um dos veículos introdutores de que trata o art. 59 do texto constitucional. (MELO, Celso Antonio Bandeira. Curso de direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, pp. 102-103). 154 VILANOVA. Fundamentos do Estado de Direito, volume (1). Escritos Jurídicos e Filosóficos, 2003, p. 422. 155 SILVA. Curso de direito constitucional positivo, 2000, p. 421.
65
introduzidas no ordenamento positivo por via de lei ou de diploma que tenha o
mesmo status.” 156
Nessa mesma linha, NEIL MACCORMICK, ao falar da justificação na
decisão judicial, explica que os argumentos não poderão ser formulados em
interpretações baseadas no vazio:
No Direito, não formulamos nossos universais no vácuo, mas no contexto de regras previamente promulgadas por legisladores e discutidas ou propostas por juristas e juízes. Regras particulares devem ocupar seu espaço sob os constrangimentos de consistência, coerência e de uma avaliação razoável das conseqüências dentro de um corpo jurídico existente, mesmo que incompleto. Assim, as partes e os juízes têm apenas uma liberdade limitada ao tentarem alcançar uma decisão justificada como uma conclusão especificamente jurídica num caso percebido com um caso jurídico. 157
Em razão do princípio da legalidade, essencial à manutenção do
fechamento operativo e do Estado de Direito, a base da interpretação no exercício
da atividade jurisdicional serão os enunciados prescritivos veiculados por lei. Estes
deverão ser mencionados pelo julgador, na fundamentação das decisões judiciais,
ao cumprir o dever de motivar suas interpretações.
2.5 NORMAS JURÍDICAS CONSTRUÍDAS NA INTERPRETAÇÃO
A interpretação jurídica, promovida pelo observador de primeira ordem,
será etapa indispensável para a instauração do processo comunicacional do direito,
pois será ela que promoverá a construção do significado da informação e do ato de
comunicar,158 a partir da análise dos textos jurídicos. Lembre-se, contudo, que a
observação realizada pelo intérprete deverá partir do código lícito/ilícito, que é a
156 CARVALHO. Direito tributário, linguagem e método, 2008, p. 283. 157 MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. Tradução Conrado Hübner Mendes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, pp. 198-199. 158 Pontua-se que, para NIKLAS LUHMANN, o ato de entender (última etapa do processo comunicacional) não equivale à compreensão e sim ao último nível da comunicação. Segundo ele: “O ato de entender, tal como requer ser utilizado neste contexto, não deve ser compreendido como um estado substancialmente psíquico, mas somente como condição para que uma comunicação possa seguir adiante.” (LUHMANN. Introdução à teoria dos sistemas, 2009, p. 302).
66
diferença do direito com relação aos demais subsistemas sociais. Tal código é
orientado pelo programa condicional “se/então”, “hipótese/consequência”, como
explica CELSO FERNANDES CAMPILONGO:
Contudo, apesar de se delimitar uma forma (lícito/ilícito) pela validade, ainda não se define, com isso, o que é lícito e o que é ilícito. Para tanto são necessários programas. No direito, esses programas orientadores são condicionais (se/então, hipótese/conseqüência jurídica). Em resumo, o meio “validade” se cristaliza na atribuição dos valores lícito ou ilícito orientada por programas condicionais.159
Numa perspectiva da lógica jurídica, para que as mensagens produzidas
pelo sistema comunicacional do direito alcance a função reguladora proposta,
deverá apresentar-se numa estrutura hipotética-condicional, que associa, por meio
de um vínculo implicacional, uma consequência a um acontecimento factual. PAULO
DE BARROS CARVALHO salienta que essa é a forma sintática necessária dos
juízos construídos a partir dos enunciados prescritivos:
Para terem sentido e, portanto, serem devidamente compreendidos pelo destinatário, os comandos jurídicos devem revestir um quantum de estrutura formal. Em simbolismo lógico, teríamos: D [F → (S’RS’’)], que se interpreta da seguinte forma: “deve-ser que, dado o fato F, então se instale a relação jurídica R, entre os sujeitos S’ e S’’.” Apenas com esse esquema formal haverá possibilidade de sentido deôntico completo. 160
A significação condicional, construída pelo intérprete do direito, é
denominada norma jurídica em sentido estrito. Será, pois, por meio da linguagem
das normas jurídicas que o direito regulará as condutas intersubjetivas. Preconiza
LOURIVAL VILANOVA: “Altera-se o mundo físico mediante o trabalho e a
tecnologia, que o potencia em resultados. E altera-se o mundo social mediante a
linguagem das normas, uma classe da qual é a linguagem das normas do Direito.”161
159 CAMPILONGO. Interpretação do direito e movimentos sociais: Hermenêutica do Sistema Jurídico e da Sociedade, 2011, p. 69. 160 CARVALHO. Direito tributário, linguagem e método, 2008, p. 168. 161 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 40.
67
A norma jurídica não será extraída do texto jurídico, mas será fruto da
construção do intérprete, orientado pelo nexo implicacional. Aliás, tirando o plano da
expressão (S1 – a literalidade textual, suporte físico das significações jurídicas), os
demais planos da trajetória de construção de sentido, apontados por PAULO DE
BARROS CARVALHO, demandarão atividade interpretativa. São eles: S2: Plano das
significações – o conjunto dos conteúdos de significações dos enunciados jurídicos;
S3: Plano das normas jurídicas – o conjunto articulado das significações normativas
– o sistema de normas jurídicas stricto sensu; e S4: Plano da sistematização –
organização das normas numa estrutura escalonada – vínculos de coordenação e
de subordinação entre as regras jurídicas.162
JULIANO MARANHÃO explica que a interpretação do ordenamento
jurídico é a atividade de clarificação e determinação do conteúdo normativo, que se
restringe em identificar: “soluções normativas (obrigatório, permitido, proibido)
aplicáveis às ações em casos hipotéticos de conflito que sejam relevantes”. E diz ser
essa, pois, a função mais importante da dogmática jurídica: “Por meio da
interpretação, a dogmática orienta a conduta dos sujeitos normativos, respondendo
a questões hipotéticas da forma: de acordo com o ordenamento jurídico, o sujeito
normativo que se encontrar em determinada situação, deve, pode ou não realizar a
ação A?”163
Isso não quer dizer, esclarece JULIANO MARANHÃO, que a interpretação
jurídica ficará adstrita à forma “se b, então a” e não poderá estipular definições como
“circulação de mercadorias” ou ordenar a hierarquia dos princípios. Explica o autor:
“Tais proposições são empregadas com o objetivo de esclarecer conceitos
normativos, que ao final servirão para dar resposta às questões da forma proposta,
tais como, ‘se a matriz transfere um produto à sua filial, deve ou não recolher
imposto sobre circulação de mercadorias?’”.164
162 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, pp. 109-133. 163 MARANHÃO, Juliano. Padrões de racionalidade na sistematização de normas. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade de São Paulo, 2004, pp. 112-113. 164 Ibid., p. 113.
68
Em suma, entende-se que a interpretação jurídica será construída pelo
participante da comunicação que, após conferir significações aos símbolos
veiculados pelos documentos normativos, bem como ao ato de comunicar, produzirá
um conjunto sistematizado de normas jurídicas, identificando quais as condutas que
são permitidas, obrigatórias e proibidas.
2.6 “NECESSIDADE DE REDUNDÂNCIA” COMO LIMITE NO
PROCESSO INTERPRETATIVO
Sabe-se até aqui que interpretar o direito, a partir do paradigma da
Filosofia da Linguagem e da Teoria Sistêmica, não será um processo de
descobrimento do verdadeiro sentido dos enunciados jurídicos e, sim, um processo
de construção da significação desses enunciados realizado pelo sujeito interpretante
a partir dos textos normativos. Todavia, quando se reconhece o intérprete como o
único responsável pela produção da interpretação, não se pode dissociar a sua
atividade interpretativa individual das regras que foram eleitas coletivamente em
determinadas coordenadas de espaço e de tempo.
Se interpretar o direito é construir normas jurídicas a partir do texto
jurídico, a interpretação deverá observar as regras do jogo vigentes na comunidade
social com relação à utilização da língua que é o código utilizado na comunicação
jurídica. Daí afirmar TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR. que: “[...] para interpretar,
temos de decodificar os símbolos no seu uso, e isso significa conhecer-lhes as
regras de controle da denotação e conotação (regras semânticas), de controle das
combinatórias possíveis (regras sintáticas) e de controle de funções (regras
pragmáticas).”165
Destaca-se que a língua apresenta uma rigidez de regras decorrente do
tempo e da coletividade. Entre os objetos culturais, a língua é a que mais sofre
influência da coletividade, uma vez que é utilizada por todos, o tempo todo. No
entanto, será nela também que menos se verificarão mudanças. Isso decorre,
165 FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, 2008, p. 227.
69
segundo FERDINAND DE SAUSSURE, do peso da coletividade e do passado.
Explica ele:
Se a língua tem um caráter de fixidez, não é sòmente porque está ligada ao peso da coletividade, mas também porque está situada no tempo. Ambos os fatos são inseparáveis. A todo instante, a solidariedade com o passado põe em xeque a liberdade de escolher. Dizemos homem e cachorro porque antes de nós se disse homem e cachorro. Isso não impede que exista no fenômeno total um vínculo entre esses dois fatores antinômicos: a convenção arbitrária, em virtude da qual a escolha se faz livre, e o tempo, graças ao qual a escolha se acha fixada. Justamente porque o signo é arbitrário, não conhece outra lei senão a da tradição, e é por basear-se na tradição que pode ser arbitrário. 166
O termo “tradição” mencionado por SAUSSURE parece ter relação com o
termo “redundância” evidenciado por NIKLAS LUHMANN. A redundância, segundo o
autor, resulta da circularidade na utilização da informação precedente na produção
de novas operações do sistema autopoiético. Para que haja a manutenção de um
sistema social é necessário observar a redundância no processamento das
informações. O autor elucida: “Sin reduncancia, la perdida de información producida
por el mal funcionamiento de la transmisión de información en el sistema, se haría
irreconocible y, por lo tanto, incorregible. Mientras más informaciones tenga que
procesar un sistema, más dependerá de que haya consideración de las
informaciones importantes.”167
Com relação à linguagem idiomática, será possível ao longo do tempo
perceber alterações na língua decorrentes do ato de fala. No entanto, no caminho da
sua evolução, haverá uma fidelidade ao passado decorrente da sua característica de
continuidade. É o que esclarece FERDINAND DE SAUSSURE: “[...] o signo está em
condições de alterar-se porque se continua. O que domina, em toda alteração, é a
persistência da matéria velha;”.168
É por esse motivo que UMBERTO ECO, ao tratar de interpretação de
texto, explicita a necessidade de limites no processo interpretativo. Após
166 SAUSSURE. Curso de lingüística geral, [ca. 1990], p. 88. 167 LUHMANN. El derecho de la sociedad, 2005, p. 417. 168 SAUSSURE. Curso de lingüística geral, [ca. 1990], p. 89.
70
apresentaras teorias que defendem a infinitude no ato interpretativo, o autor declara:
“O que quero dizer aqui é que existem critérios para limitar a interpretação. Caso
contrário, correríamos o risco de nos ver diante de um paradoxo meramente
lingüístico do tipo formulado por Macedonio Fernandez: ‘Neste mundo faltam tantas
coisas que, se faltasse mais uma, não haveria lugar para ela’.”169
Não se quer com isso dizer que a interpretação jurídica se dará tão só a
partir de regras lógicas. Conforme alerta FABIANA DEL PADRE TOMÉ, sendo o
direito objeto cultural, o sujeito terá a possibilidade de construir várias significações
para os enunciados:
Sendo o direito um objeto cultural, criado pelo homem e integrado na cultura, a qual lhe dá sentido, não há como falar em uma solução única, quando se está diante da aplicação do direito. O adágio segundo o qual, “na clareza da lei cessa a interpretação”, não se sustenta. Até mesmo para dizer que uma lei é clara, demanda-se interpretação, a qual pretende dar, ingenuamente, aquele sentido unívoco.170
Resta claro que os Estados Modernos utilizam o texto jurídico como
instrumento de representação do sistema jurídico e a interpretação jurídica como a
construção da autodescrição desse sistema. Ressalta-se, contudo, que a presença
de um texto escrito no processo comunicativo não viabiliza a construção de uma
única interpretação. Essa, conforme já afirmado, será o produto de muitas escolhas
realizadas pelo intérprete ao longo do seu percurso de construção de sentido do
texto jurídico. Aí é que surge a denominada “discricionariedade” no ato interpretativo.
No entanto, da premissa de que não há uma única interpretação não
decorre a conclusão de que todas as interpretações são adequadas na manutenção
do fechamento operacional do sistema. Será a redundância na construção da
informação, promovida pela interpretação jurídica, que dará consistência ao sistema
jurídico, garantindo, com isso, a sua autonomia e a legitimidade concedida pela
sociedade na resolução dos conflitos intersubjetivos.
169 ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993, pp. 46-47. 170 TOMÉ. Vilém Flusser e o constructivismo lógico-semântico. In: HARET (Coord.); CARNEIRO (Coord.). Vilém Flusser e juristas: comemoração dos 25 anos do grupo de estudo Paulo de Barros Carvalho, 2009, p. 340.
71
No campo do direito, uma interpretação será prejudicial à autonomia do
sistema quando não obedecer às regras do jogo da linguagem jurídica. Caso o
intérprete construa tal interpretação, alheia às regras, afirmar-se-á que sua atitude
foi arbitrária. E, em se tratando de intérprete-julgador, tal atitude, se reiterada,
refletirá manutenção da consistência do sistema jurídico.
2.7 PLANOS SINTÁTICO, SEMÂNTICO E PRAGMÁTICO DA
COMUNICAÇÃO JURÍDICA
Com base no conceito de comunicação fixado anteriormente, é possível
aproximar a Semiótica da Teoria dos Sistemas, no que se refere à interpretação
jurídica realizada pelos observadores de primeira ordem acerca das informações
produzidas pelo legislador do direito positivo. Sobre essa relação, NIKLAS
LUHMANN ressalva o seguinte:
Assim, atualmente, fala-se na teoria da linguagem em sintática como o referente à estrutura do signo; em semântica, como o âmbito do designado; e em pragmática, com base na pergunta do que ou para quem deve estar endereçado o mencionado pela linguagem.
Essa estrutura triádica, poderia ser reformulada em termos da Teoria dos Sistemas, lançando-se mão das leis específicas da forma, segundo Spencer-Brow: distinção/indicação/re-entry.171
Recorda-se que a comunicação, como produtora de sistemas sociais
autônomos, se dá com a soma das três seguintes seleções: (i) seleção da
informação; (ii) seleção do ato de comunicar; (iii) seleção do ato de entender.
NIKLAS LUHMANN observa que esta última será tida como a síntese entre a
informação e o ato de comunicar:
Na aula referente à teoria semiótica do signo há uma similitude no esforço de explicação: o signo é o terceiro fator que possibilita a unidade da distinção significante/significado. Relembrando Pierce, o terceiro fator das funções da linguagem se resolve na pragmática. Essas tríades conceituais ressaltam a posição do observador, que o fator sobressalente guarda dentro do modelo.172
171 LUHMANN. Introdução à teoria dos sistemas, 2009, p. 290. 172 Ibid., p. 304.
72
A partir da observação de um processo comunicativo, é possível perceber
que, diverso do que havia sido proposto por outras teorias da comunicação, não
haverá “troca de informações” entre emissor e receptor. É necessário que as
informações passem por “sistemas cognitivos” de cada um dos participantes. Como
explica GOTTFRIED STOCKINGER: “Nada é ‘transferido’ de um sujeito para o outro
ou ‘trocado’ entre pessoas. O processo cognitivo é um processo autopoiético. Ou
seja, há uma contribuição ativa do sistema para compreender o sentido do
comunicado, para processá-lo e para aproveitá-lo.”173
Para se chegar ao ato de entender e, portanto, para participar do
processo comunicativo, é preciso perceber a diferença entre informação e ato de
comunicar. Ao analisar a informação, o receptor (observador) conseguirá distinguir o
que foi comunicado de quem comunicou, podendo, assim, interpretar o conteúdo
informativo e interpretar as razões que o outro teve para comunicar isso e não
aquilo. A linguagem idiomática escrita, utilizada pelo sistema jurídico, permitirá,
ainda, separar, no plano temporal e espacial, o ato de comunicar do ato de entender.
Alerta NIKLAS LUHMANN: “A escrita modifica radicalmente o conceito de
comunicação, ao desacoplar o próprio acontecimento comunicacional: o ato de
comunicar e o ato de entender ficam separados no plano espacial e no temporal.”174
E, como as informações são comunicadas por meio de signos, será
possível utilizar o instrumental da semiótica para observar a construção de sentido
realizada pelo intérprete. Com base na classificação dos planos de investigação em
sintático, semântico e pragmático, proposta por CHARLES MORRIS175, serão
evidenciadas algumas das regras que são observadas pelos participantes do
processo comunicativo (emissor e receptor) relativas à sintática e à semântica, bem
como serão destacados alguns pontos relacionados à pragmática que condicionam
o ato de entender.
173 STOCKINGER. Para uma Teoria Sociológica da Comunicação, 2001, pp. 45-46. 174 Cf. LUHMANN. Introdução à teoria do sistema, 2009, p. 314. 175 MORRIS, Charles. Fundamentos da teoria dos signos. Tradução de Paulo Alcoforado e Milton José Pinto. Rio de Janeiro: Eldorado Tijuca; e São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1976, pp. 17-18.
73
A investigação da interpretação por meio dos planos sintático, semântico
e pragmático não reflete o que de fato se passou no sistema cognitivo de cada um
dos participantes. Não se propõe, inclusive, com a apresentação desses planos, que
haja apenas um rito no processo interpretativo. Muito pelo contrário, o que se quer
aqui é apenas demonstrar que o processo interpretativo realizado pelo leitor-
intérprete da informação é um processo de escolhas, proporcionadas pela “textura
aberta” da linguagem.
2.7.1 Plano sintático: implica
Entende-se por dimensão sintática da linguagem a relação dos signos
entre si, afastando-se dessa análise a relação dos signos com o significado e com
os intérpretes. Segundo CHARLES MORRIS, o termo que reflete esse campo de
investigação é “implica”.176 Nesse plano, por meio de um processo de abstração, é
possível isolar os signos e submetê-los às regras lógicas, gramaticais e sistemáticas.
Acentua TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.: “Os problemas sintáticos referem-se a
questões de conexão das palavras nas sentenças: questões léxicas; à conexão de
uma expressão com outras expressões dentro de um contexto: questões lógicas; e à
conexão das sentenças num todo orgânico: questões sistemáticas.”177
Trata-se, pois, de um processo de abstração, uma vez que nenhuma
linguagem é destituída de significação, nem mesmo prescinde do sujeito para criá-la
e recriá-la. O que se quer aqui é sobrelevar a forma da composição dos códigos
idiomáticos, colocando, provisoriamente, entre parêntesis o conteúdo, que será
objeto de ulterior análise.178
176 MORRIS. Fundamentos da teoria dos signos. 1976, pp. 18, 19 e 27. 177 FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, 2008, p. 252. 178 Cf. VILANOVA, Lourival. Teoria das formas sintáticas. Escritos jurídicos e filosóficos, volume (2). São Paulo: Axis Mundi: Ibet, 2003, p. 94.
74
2.7.1.1 Lógica
Com relação à análise lógica, explica LOURIVAL VILANOVA que, para
esse fim, “[...]interessam as estruturas de linguagem mediante as quais se exprimam
proposições, isto é, asserções de que algo é algo, de que tal objeto tem a
propriedade tal.”179 Uma vez isoladas as proposições, elas serão formalizadas,
substituindo-se as expressões por variáveis lógicas. E aos elementos que compõem
a estrutura interna da proposição serão aplicadas as leis formais.180
PAULO DE BARROS CARVALHO na obra Direito tributário, linguagem e
método dedica um capítulo181 para traçar o desenvolvimento e a aplicação da lógica
na linguagem jurídica.182 Leciona o autor: “Enquanto linguagem, [a lógica] é um
sistema de significações dotado de regras sintáticas rígidas – com plano semântico
em que seus signos apresentam um e somente um sentido – e que procura
reproduzir, com recursos da simbologia, as relações que se estabelecem entre
termos, proposições e argumentos.”183
Com relação à linguagem do direito positivo, a formalização observará as
regras da Lógica deôntica, uma vez que a linguagem é prescritiva e está submetida
aos valores de validade e não-validade. Diverso é o que ocorre na linguagem da
Ciência do Direito, que se expressa por meio de uma linguagem descritiva, e,
portanto, é formalizada por meio das regras da Lógica apofântica.184
Sobrelevando a importância da lógica, PAULO DE BARROS CARVALHO
assinala: “Diante deste poderoso instrumental descritivo que é a Lógica, o exegeta
do direito encontrará racionalidade no discurso jurídico, sendo capaz, pela utilização
das leis e estruturas lógicas, de apontar uma infinidade de características, vícios e
contradições no ordenamento positivo.”185
179 VILANOVA. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, 1997, p. 39. 180 Cf. VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, 1997, p. 43. 181 CARVALHO. Direito tributário, linguagem e método, 2008, Capítulo 2, pp. 19-153. 182 PAULO DE BARROS CARVALHO diz serem três as linguagens-objeto que a Lógica formaliza: (i) a do direito positivo, (ii) a da Ciência do Direito e (iii) a da retórica do direito. (Ibid., p. 69) 183 Ibid., p. 68. 184 Ibid., pp. 83 e 90. 185 Ibid., p. 70.
75
Nesse sentido, a lógica auxiliará tanto o emissor quanto o receptor
(intérprete) na construção de enunciados com uma estrutura coerente e consistente,
evitando, com isso, a produção de enunciados sem sentido, ou categorias eivadas
de contra-sentido186.
2.7.1.2 Gramática
A interpretação jurídica deverá também observar o significado que a
Gramática atribui à ordem das palavras, bem como à forma como elas estão
relacionadas. Conforme explica ALF ROSS, “O significado de uma expressão
depende da ordem das palavras e da maneira em que se acham conectadas.”187 E,
para comprovar as suas assertivas, o autor apresenta várias situações em que a
interpretação de enunciados jurídicos poderia gerar dúvidas, em razão de problemas
como: adjetivos e frases adjetivais qualificando duas ou mais palavras, utilização de
pronomes demonstrativos e relativos, utilização de frases de modificação, exceção e
condição.188
A ordem e a forma como os códigos idiomáticos são dispostos num
determinado enunciado lhe dará o sentido (significado). Um erro na sua disposição
poderá gerar enunciados sem sentido. Será, pois, a Gramática189 que fixará as
regras na utilização de um determinado idioma. Cada idioma terá a sua própria
morfologia e sintaxe que deverão ser observadas na construção do significado das
orações. G. HENRIK VON WRIGHT ensina que a Gramática, assim como a lógica,
vai trabalhar com regras, com padrões fixos, e, por meio deles, será possível julgar
se o pensamento está correto ou não. É o que diz o autor:
Las reglas de la gramática (morfología y sintaxis) de un idioma natural son otro ejemplo del mismo tipo importante de norma que las reglas de un juego. A los movimientos de un juego como patrones corresponden las formas fijas del discurso correcto. Al jugar o a la actividad de jugar un juego corresponde el habla o la actividad de
186 Cf. VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, 1997, p. 195. 187 ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini. Revisão Técnica Alysson Leandro Mascaro. São Paulo: Edipro, 2000, p. 151. 188 Ibid., pp. 152-157. 189 A Filosofia levanta a possibilidade de se criar uma Gramática pura aplicável a todos os idiomas.
76
hablar (y escribir) un idioma. De una persona que no habla con arreglo a las reglas de la gramática, decimos que habla incorrectamente o que no habla ese idioma. 190
No entanto, o autor supracitado vai alertar que apesar da relação de
proximidade da gramática com a lógica, as regras daquela são mais flexíveis do que
as desta. De fato, além de se referir à fala que está em constante atualização, a
gramática não formalizará as palavras que são, conforme será visto no próximo item,
potencialmente vagas e ambíguas. É de se observar, ainda, como bem alerta
PAULO DE BARROS CARVALHO, que segmentos de linguagem postos de forma
sintaticamente diversos podem ter a mesma significação, como nos seguintes
exemplos: “o movimento teve a adesão de muitos parlamentares” e “muitos
parlamentares aderiram ao movimento”. E o autor prossegue afirmando que se pode
ter a mesma estrutura sintática com duas significações distintas.191
Tais considerações, porém, não afastam a necessidade de os
participantes do processo comunicacional conhecerem as regras que direcionam as
investigações da morfologia e da sintaxe gramatical do idioma, por meio do qual
estão sendo expressos os enunciados jurídicos, objeto da atividade interpretativa do
observador.
2.7.1.3 Análise sistemática
A análise sistemática compreende a exigência de comparação de uma
palavra ou expressão com outras que compõem o mesmo sistema linguístico. Em se
tratando de enunciado prescritivo, o seu emissor bem como o intérprete levarão em
conta que esse enunciado está em relação com os demais que compõem o sistema
jurídico. Segundo DIMITRI DIMOULIS, que a esse tipo de análise também qualifica
190 VON WRIGHT, G. Henrik. Norma y Acción: una investigación lógica. Madri: Editorial Tecnos Madri, 179. 191 CARVALHO. Direito tributário, linguagem e método, 2008, pp. 85-86.
77
de lógica, “A interpretação sistemática objetiva integrar e harmonizar as normas
jurídicas considerando-as como um conjunto.”192
As regras relacionadas à análise sistemática, em suma, são as seguintes:
(i) não se poderá analisar um enunciado jurídico isoladamente, e (ii) deverá o
intérprete considerar que a linguagem do direito positivo está disposta de forma
escalonada, o que cria entre os enunciados relações de subordinação e de conexão.
Explica TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.:
Por fim, quando enfrentarem as questões de compatibilidade num todo estrutural, falemos em interpretação sistemática (stricto sensu). A pressuposição hermenêutica é a da unidade do sistema jurídico do ordenamento. Há aqui um paralelo entre a teoria das fontes e a teoria da interpretação. Correspondentemente à organização hierárquica das fontes, emergem recomendações sobre a subordinação e a conexão das normas do ordenamento num todo que culmina (e principia) pela primeira norma-origem do sistema, a Constituição. 193
Observa-se que aqui os autores se referem à análise sistemática
realizada, ainda, no nível sintático e não à interpretação sistemática que PAULO DE
BARROS CARVALHO qualifica como o método por excelência. Esta última já
engloba todos os níveis de investigação e compreende a totalidade das observações
realizadas pelo intérprete.194
2.7.2 Plano Semântico: designa e denota
O plano semântico de investigação, representado pelos termos “designa e
denota”, compreende a relação do signo com o objeto por ele apontado, segundo
CHARLES MORRIS.195 Antes da Filosofia da Linguagem, a análise semântica
significava a relação do signo com o objeto da realidade (do mundo exterior e
interior)e compreendia, assim,a busca do significado dos signos por meio do
descobrimento dos objetos.Após o Giro Linguístico, o objeto também será uma
192 DIMOULIS. Manual de introdução ao estudo do direito, 2007, p. 178. 193 FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, 2008, p. 256. 194 CARVALHO. Curso de direito tributário, 2008, p. 102. 195 MORRIS. Fundamentos da teoria dos signos, 1976, pp. 38-49.
78
construção da linguagem, deixando de ser a semântica uma relação do signo com o
seu objeto designado, e passando a ser uma relação entre signos em contextos
diversos de utilização.
As palavras que compõem os textos jurídicos são signos da espécie
símbolos, ou seja, são decorrentes de convenções, assim como as notas musicais,
as bandeiras etc.. O significado de uma palavra depende, portanto, de uma
convenção que vai explicitar suas regras de uso, cabendo aos participantes do
processo comunicacional conhecê-las para atribuir significado a um enunciado.
Discorrendo sobre a matéria GENARO R. CARRIÓ consigna:
El ‘significado’ de una palabra o expresión lingüística depende, por lo tanto, de una convención. Definir una palabra es hacer explícitas las reglas de uso de la misma, esto es, decir para qué sirve. Y señalar cuáles son las oportunidades, circunstancias o fenómenos en presencia de los cuales es “correcto” – según esas reglas de uso – valerse de la expresión definida.196
Os dicionários vão colecionar os diversos significados que uma expressão
pode apresentar. Demonstrarão também, por meio de exemplos, a sua utilização em
diversas orações. Haverá dicionários para as palavras utilizadas não só na
linguagem natural, mas também na linguagem científica (Dicionário de Filosofia,
Dicionário Jurídico, Dicionário de Psicologia etc.).
Assim, se interpretar juridicamente é atribuir significado aos enunciados
veiculados pelos textos normativos, precisa-se, atribuir, antes, significado às
palavras, bem como à estrutura sintática da sua formação. Ensina ALF ROSS: “O
princípio condutor para toda interpretação é o princípio da função primária
determinativa de significado da expressão como uma entidade e as conexões nas
quais ela aparece.”197 Também expõe CARLOS SANTIAGO NINO: “El significado de
las oraciones está determinado por el significado de las palabras que la integran y
por el ordenamiento sintáctico de ellas. En muchas ocasiones las palabras usadas
en una oración plantean problemas en cuanto a la determinación de su significado, y
196 CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre derecho y lenguage. 4. ed. corrigida e aumentada, 1ª. reimpressão. Buenos Aires: Abeledo-Perrot S.A., 1994, p. 92. 197 ROSS. Direito e Justiça, 2000, 145.
79
en otras el vínculo sintáctico entre los términos de la oración da lugar a
equívocos.”198
O significado de uma oração não se constrói com a simples soma dos
significados das palavras que a compõem. Necessário será também observar a
ordem em que essas palavras foram dispostas sintaticamente. Lembre-se que a
divisão em três planos de investigação, proposta por CHARLES MORRIS, é
derivada de um processo de abstração, uma vez que a observação de regras
sintáticas também influenciará na relação dos signos com o significado.
Será também relevante na construção do significado da expressão a
fixação do lapso temporal da sua produção e da sua utilização. Como explica
MAURO CAPPELLETTI: (....) quando [o juiz] repete as mesmas palavras de seus
predecessores, assumem elas na sua boca significado materialmente diverso, pelo
simples fato de que o homem do século XX não tem o poder de falar com o mesmo
tom e inflexão do homem do século XVII, XVIII ou XIX.” E destaca o autor italiano:
“Nesse sentido limitado, bem se pode dizer que o tempo nos usa a nós todos como
instrumentos de inovação.”199
Isso remete à importância do papel da tradição cultural na interpretação
jurídica, mencionada anteriormente. As regras de uso de uma palavra são
formuladas pelos usuários da língua e nascem da redundância da sua utilização.
Caso o intérprete deseje adicionar uma nova regra de uso para determinado termo
ou expressão, deverá acrescentar mais um argumento na apresentação da sua
interpretação e convencer o interlocutor dessa nova possibilidade. Assim como, caso
o legislador queira outorgar significado a uma palavra diferente daquele praticado
em outros sistemas comunicacionais, deverá designar o novo significado
expressamente.
198 NINO. Introducción al análisis del derecho, 2005, p. 259. 199 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores?. Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993, p. 23.
80
2.7.2.1 “Conotação e Vagueza” e “Denotação e Ambigüidade”
À maior parte das palavras é atribuído um significado200 conotativo e um
significado denotativo. O primeiro, conotativo, compreende as características que
uma palavra precisa ter para ser aplicada a um determinado objeto. Já o segundo,
denotativo, se refere ao conjunto de objetos que se aplica a uma determinada
palavra.201 Conforme explica CARLOS SANTIAGO NINO, a conotação e a
denotação estão em relação recíproca, ou seja: quando a conotação de uma palavra
é ampla (com muitas características definitórias), a denotação é restrita; já quando a
conotação de uma palavra é pequena, a extensão dos objetos que reúne os
elementos definitórios é grande.202
Tais palavras, com definição conotativa e denotativa, são as chamadas,
segundo o autor supracitado, de “palavras de classe”, pois, além de denotar coisas,
essas palavras também apontam as propriedades que essas coisas devem ter.
Diverso ocorre com os nomes próprios que possuem denotação, mas não possuem
conotação.203
Aqui se faz importante precisar, com TÁREK MOYSÉS MOUSSALEM, o
conceito de “classe”. Segundo o autor, “Na esteira do ensinamento de S. K.
LANGER, pode-se, satisfatoriamente, definir o conceito de ‘classe’ como ‘coleção de
todos aqueles e somente aqueles termos aos quais um certo conceito seja
aplicável’. Por outros torneios, classe é um campo de aplicabilidade (Field of
applicability), é a extensão de determinado conceito.” E, posteriormente, conclui:
“Nestes termos, o conceito de classe (coleção) difere do conceito de coletividade
(denotação). A denotação não é a classe, mas sim a coletividade dos membros. A
classe pode ser vazia, mas não a coletividade (denotação).”204
200 À atividade de atribuir significado a uma palavra bem como ao resultado dessa atividade dar-se-á o nome de definição. (Cf. NINO, Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho, 2005, p. 254). 201 Cf. CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre derecho y lenguaje, 1994, pp. 27-28; Cf. NINO, Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho, 2005, pp. 251-256. 202 NINO. Introducción al análisis del derecho, 2005, p. 252. 203 Ibid., p. 252. 204 MOUSSALLEM. Revogação em matéria tributária, 2005, p. 41.
81
Ainda que o intérprete se cerque de todos os elementos que compõem as
definições de cada palavra (a classe), restarão as ambiguidades e as vaguezas,
potencialmente presentes nas palavras e nas orações. Há ambiguidade, quando há
dois ou mais casos passíveis de aplicação de uma mesma palavra e há vagueza,
quando não se sabe quando termina o campo de atuação dessa palavra.205
A potencial vagueza presente nas palavras e nas orações caracteriza a
denominada “textura aberta” da linguagem, que, segundo CARRIÓ.206 Consiste na
impossibilidade de se estabelecer um critério que possa incluir ou excluir todos os
casos possíveis na utilização de uma palavra ou oração, uma vez que não se
consegue prever todos os casos possíveis na sua aplicação. Sempre, portanto,
haverá dúvidas sobre os limites exatos da extensão das palavras e das orações.
Sobre a “textura aberta” da linguagem, HERBERT L. A. HART, afirma que
“a incerteza na linha da fronteira é o preço que deve ser pago pelo uso de termos
classificatórios gerais em qualquer forma de comunicação que respeite a questões
de fato.” E adverte: “Os cânones de ‘interpretação’ não podem eliminar estas
incertezas, embora possam diminuí-las; porque estes cânones são eles próprios
regras gerais sobre o uso da linguagem e utilizam termos gerais que, eles próprios,
exigem interpretação.”207
Dizer, pois, que uma determinada situação está compreendida ou não
num dado conceito configura ato discricionário do intérprete. Ou seja, é uma escolha
perante a outras possíveis opções. Para afirmar que a sua escolha foi equivocada,
arbitrária, será preciso passar para um outro nível de observação: a observação da
observação do observador (observação de segunda ordem), que se dá na
argumentação jurídica, conforme será tratado neste trabalho.
205 Cf. CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre derecho y lenguaje, 1994, pp. 28-35. 206 Ibid., pp. 35-36. 207 HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Tradução Armindo Ribeiro Mendes. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1994, pp. 139-141.
82
2.7.2.2 Modificações histórico-evolutivas da língua
Em contraponto ao aspecto da imutabilidade da língua, SAUSSURE
também irá destacar a característica da mutabilidade, decorrente da continuidade
temporal de utilização da língua pela massa falante. O significado das palavras
também passará por um processo evolutivo, inerente ao aspecto cultural208 que elas
apresentam.
Dessa forma, ao construir o significado de uma expressão, o intérprete
deverá verificar o seu contexto cultural. Nas palavras de TERCIO SAMPAIO
FERRAZ JR.: “A hermenêutica pressupõe que tais significados são função da
conexão fática ou existencial em consideração ao conjunto vital – cultural, político e
econômico – que condiciona o uso da expressão.”209
Deverá, pois, o intérprete verificar o contexto cultural em que ela é
aplicada (presente) e o contexto cultural no qual ela foi produzida (passado). O que
é denominado pelo entendimento dominante método sociológico e método histórico,
respectivamente. Na visão de TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR. tais métodos são de
difícil cisão, pois, conforme expõe o autor:
Na prática, porém, é difícil sustentar a distinção. A busca do sentido efetivo na circunstância atual ou no momento de criação da norma mostra que ambos se interpenetram. Daí, às vezes, a idéia de uma interpretação histórico-evolutiva. É preciso ver as condições específicas do tempo em que a norma incide, mas não podemos desconhecer as condições em que ocorreu sua gênese.210
O conteúdo semântico de uma expressão, portanto, não será estático,
pois sofrerá uma atualização. Sendo um dado cultural, receberá, constantemente,
interferências humanas. No entanto, não se pode atribuir à palavra uma
208 Sobre cultura, explica TÁREK MOYSÉS MOUSSALEM: “Abstraindo-se a ambigüidade do léxico, empregar-se-á ‘cultura’ como o resultado da intervenção do homem junto ao mundo circundante. É objetivação do espírito mediante atribuição de sentido ao dado (ledonné). Este se converte em objeto cultural ao sofrer ação humana. SPRANGER define o conceito de cultura como ‘o conjunto de produtos com sentido que existem em um determinado tempo para um grupo humano’. Tal definição atrela inexoravelmente dois elementos doravante fundamentais: cultura e linguagem.” (MOUSSALLEM. Revogação em matéria tributária, 2005, p. 2). 209 FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, 2008, p. 261. 210 Ibid., p. 262.
83
vulnerabilidade tal que seja impossível dimensionar o seu conteúdo num dado
contexto histórico e social. Consoante elucida LOURIVAL VILANOVA, as palavras,
bem como a estrutura por elas formada (a frase), surgem com propósitos de
permanência. Se assim não fosse, não seria possível uma ordem nas inter-relações
humanas. Ensina o autor:
Em comparação com a subjetividade de cada um, o vocábulo e o sistema articulado que é a frase valem como o transubjetivo, a forma destacada que a vida individual e coletiva vai construindo como firmes pontos de apoio para ir prosseguindo em sua trajetória histórica. O vocábulo, por conseguinte, ao qual sempre voltamos e repetimos, reconhecendo como o idêntico fisicamente, com a mesma palavra, agrupa os diversos sujeitos numa comunidade, num universo intersubjetivo. Sem as palavras ou sem a linguagem como o sistema total de expressão, seguramente as inter-relações ou a interação humana não cobraria a estrutura de ordem, quer dizer, de ações uniformes e pautadas, vale dizer mesmo, de ações normadas, repetidas e identificadas como as mesmas, repetição que implica atos de compreensão, de entendimento recíproco, somente possíveis com o uso dos mesmos símbolos de expressão.211
Observa-se, assim, que o intérprete, ao analisar o texto jurídico, deverá
observar não apenas os registros de repetição dos significados, mas também as
variações que esse texto sofreu no decorrer do tempo. Tal observância
proporcionará a produção de argumentos mais convincentes na apresentação da
sua interpretação.
2.7.2.3 Zona de certeza semântica: casos típicos e atípicos na
interpretação jurídica
Das incertezas com relação à fixação de um único significado para um
determinado vocábulo ou estrutura de vocábulos decorre a afirmação, reiterada de
muitos juristas, de que é impossível chegar a uma única e correta interpretação dos
enunciados prescritivos. Contudo deve-se considerar também que quase sempre
haverá um mínimo denotativo, denominado aqui de “zona de certeza semântica”.
211 VILANOVA, Lourival. Notas para um ensaio sobre a cultura. Escritos Jurídicos e Filosóficos, volume (2). São Paulo: Axis Mundi: Ibet, 2003, p. 290.
84
Sempre haverá situações em que, convencionalmente, não restarão dúvidas de que
aquela expressão se aplica àquele caso, donde se conclui com DANIEL
MENDONCA e RICARDO A. GUIBOURG: “Aceptar que toda expresión muestra
siempre una zona de incertidumbre no implica conceder que nunca tenga una zona
de certeza.”212
Quanto ao conceito de classe fixado acima, existem situações nas quais
haverá dúvidas em afirmar se determinado elemento se enquadra numa
determinada classe (extensão do conceito), mas haverá situações que ele se
enquadrará em tudo e por tudo, não restando quaisquer dúvidas.
Assim como não se pode dizer que determinada nota musical é “dó”, se,
por convenção, determinaram que ela é “mi”,213 não se está autorizado a chamar de
“vassoura”, o que, por convenção, se estipulou ser “imóvel” (ainda que se parta da
ambiguidade e vagueza das palavras, conforme já foi visto). DANIEL MENDONCA e
RICARDO A. GUIBOURG explicam: “Es incorrecto usar una palabra para
representar a una cosa a la que por convención nos referimos con un palabra
diferente.”214
Foi visto anteriormente que a construção do sentido das expressões
linguísticas será feita a partir de uma “massa falante” (coletividade) num
determinado lapso espacial e temporal, não podendo o utente da linguagem
desprezar esses dois marcos. Ignorar o mínimo de consenso é uma liberdade que
não possui o intérprete ao lidar com os símbolos. Sobre a necessidade de um
“mínimo de consenso”, explica LOURIVAL VILANOVA:
Entregue cada sujeito à sua subjetividade, ninguém saberá o que pode e o que deve fazer, o que os demais farão ou deverão fazer. Com apoio no sujeito concreto, nenhum acordo, como vira Rousseau, seria cumprido, nenhum contrato contaria amanhã com a decisão de hoje. Mesmo o acordo, o mínimo de consenso que reside em toda espécie em interação, grupo, comunidade, associação, requer, por sobre os fins individuais, acima dos interesses e impulsos
212 MENDONCA, Daniel; GUIBOURG, Ricardo A. La odiseia constitucional: Constitución, teoria y método. Madrid: Marcial Pons, 2004, p. 96. 213 Notas taquigráficas de palestra proferida por TÁREK MÓYSÉS MOUSSALLEM no VI Congresso do IBET em São Paulo, no dia 10 de dezembro de 2009. 214 MENDONCA; GUIBOURG. La odiseia constitucional: Constitución, teoria y método. 2004, p. 97.
85
que partem do ego e a ele regressam (porque prisioneiros do círculo fechado da subjetividade).215
Por sua vez, TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.216 indica que as definições
tidas como reais, seriam verdadeiras ou falsas, de acordo com a realidade. E as
definições estipulativas seriam derivadas de uma decisão do intérprete, diante das
incertezas. Afirma que a liberdade de interpretação jurídica tem o texto normativo
como limite: “Afinal, o significado do texto tem de apontar para um universo material
verificável em comum ou para um uso comum e constante das expressões, pois,
sem isso, a comunicação seria impossível”.217 Sobre esse tema, observa CARLOS
SANTIAGO NINO:
En el primer caso se trata de una definición informativa o lexicográfica, que será verdadera o falsa según su correspondencia o no con el uso que pretende describir (un ejemplo de este modo de definición seria: “en la Argentina se usa la expresión traje para hacer referencia a un atuendo de saco y pantalón).
En el segundo caso, estamos frente a una definición estipulativa, que no puede ser verdadera ni falsa, puesto que con ella no se pretende describir un uso lingüístico sino expresar una decisión o directiva acerca del significado que habrá de darse a una palabra (por ejemplo, “usemos el término delito para hacer referencia sólo a las acciones castigadas con prisión”).218
Tal distinção entre as definições, também é sobrelevada por DANIEL
MENDONCA e RICARDO A. GUIBOURG: “Cada uno de estos enunciados se halla
vinculado, respectivamente, con los dos conceptos básicos de interpretación
considerados: interpretación como detección del significado de una formulación
215 VILANOVA, Lourival. Notas para um ensaio sobre a cultura. Escritos Jurídicos e Filosóficos, volume (2), 2003, p. 465. JOÃO MAURÍCIO ADEODATO enfatiza que “É preciso separar mais nitidamente a polissemia admissível da inadmissível.” (ADEODATO. A retórica constitucional (sobre a tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo), 2009, p. 151) 216 FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, 2008, p. 254. DANIEL MENDONCA e RICARDO A. GUIBOURG explicam que alguns enunciados interpretativos serão suscetíveis de verdade/falsidade e outros não, cabendo ao intérprete, neste último caso, a escolha, a estipulação, de um significado: “[...] la actividad interpretativa es una actividad cognoscitiva y em otras una actividad decisoria. Consecuentemente, algunos enunciados interpretativo son susceptibles de verdad o falsedad y otros no.” (MENDONCA; GUIBOURG. La odiseia constitucional: Constitución, teoria y método, 2004, p. 94) 217 FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, 2008, p. 255. 218 NINO. Introducción al análisis del derecho, 2005, pp. 254-255.
86
dada, por una parte, e interpretación como adjudicación de cierto a una formulación
determinada, por la otra.”219
O “marco definitório” de um termo ou de uma expressão será o critério
diferenciador na classificação da atividade interpretativa em casos típicos e casos
atípicos, como explicam os autores supramencionados:
Los primeros [casos típicos] son aquellos cuyas características constitutivas están claramente incluidas en el marco de significado central de los términos o expresiones que la formulación normativa contiene. Los segundos, en cambio, son aquellos cuyas características constitutivas no están claramente incluidas en el marco de significado central donde se congregan los casos típicos, pero tampoco inequívocamente excluidas de él.220
A rotulação de um caso em “típico” ou “atípico” configura um produto da
observação de segunda ordem, após a análise das observações registradas pelo
intérprete do texto jurídico. Essa observação se dará a partir da argumentação
jurídica, classificando-se ela de acordo com os critérios mencionados nesse item.
Não se trata, assim, de uma técnica interpretativa, mas de uma técnica que permitirá
a análise dos argumentos.
2.7.3 Plano pragmático: expressa
Por último, não se deve deixar de considerar o campo de investigação da
linguagem conhecido como pragmático, que representa a relação do signo com os
utentes da linguagem. Segundo CHARLES MORRIS: “[...] é uma caracterização
suficientemente precisa da pragmática dizer que ela trata dos aspectos bióticos da
semiose, isto é, de todos os fenômenos psicológicos, biológicos e sociológicos que
ocorrem no funcionamento dos signos.”221
219 MENDONCA; GUIBOURG. La odiseia constitucional: Constitución, teoria y método. 2004, p. 95. 220 Ibid., pp. 95-96. Essa diferenciação também foi proposta por GENARO R. CARRIÓ ao comentar que as palavras utilizadas para construção da norma jurídica possuem uma “zona de penumbra” (ou atual ou potencial). (CARRIÓ. Notas sobre derecho y lenguaje, 1994, p. 56). 221 MORRIS. Fundamento da teoria dos signos, 1976, p. 50.
87
No entanto, valendo-se de mais um ditado popular, deve-se alertar:
“Calma com o andor que o santo é de barro”. Com isso se quer registrar que é
preciso cautela ao aplicar a caracterização do plano pragmático suprafixada, quando
se trata de uma análise do processo comunicativo inerente aos sistemas sociais.
No campo pragmático, a circunscrição da análise é feita em torno do
emissor e do receptor (utentes da linguagem comunicacional). No entanto, recorde-
se que não se alcançará a consciência dos participantes, ou seja, os sistemas
psíquicos. Como explica NIKLAS LUHMANN: “[...] o que o outro percebeu não pode
ser negado, nem confirmado, tampouco questionado, ou rechaçado. A percepção
permanece subjugada no fechamento da consciência, e é totalmente invisível tanto
para o sistema de comunicação como para a consciência dos outros.”222
Por certo, a comunicação jurídica é um ato social que envolve pessoas
como sistemas vivos. Mas a comunicação se dará independentemente do que os
participantes pensaram ou sentiram ao produzir o texto ou ao entender o texto. Aqui
não importa o que se passou no interior do sistema psíquico de cada participante do
processo comunicacional, pois o direito, como comunicação, não será formado por
pessoas, mas pelas observações descritas no processo comunicativo.
Emissores e receptores só ouvem aquilo que “dizem” ouvir e só
compreendem aquilo que “dizem” compreender. A verdadeira intenção dos
participantes pode nunca ser revelada. Por isso, ela não poderia condicionar o
processo comunicacional. Como explica GOTTFRIED STOCKINGER: “Não há
instância alguma que pudesse avaliar com certeza o que a emissão e a recepção
têm em comum, já que eles se relacionam como ‘caixas pretas’ (Black boxes), cujo
conteúdo fica vedado ao observador externo.”223
A expressão “Não era isso que eu queria dizer, quando eu disse...” é
muito utilizada pelas pessoas ao perceberem que suas palavras causaram efeitos
por elas inesperados. No entanto, como não há uma relação linear entre os sistemas
psíquicos do emissor e do receptor, este último só terá sob sua observação o que foi
dito e redito. É isso que possibilita a mentira no processo comunicacional. 222 LUHMANN. Introdução à Teoria dos Sistemas, 2009, p. 298. 223 STOCKINGER. Para uma Teoria Sociológica da Comunicação, 2001, p. 46.
88
A constatação “O direito cria o direito, por meio do direito” caracteriza o
sistema jurídico como autopoiético e permite que ele adquira autonomia perante os
demais subsistemas sociais. Como pontua NIKLAS LUHMANN: “[...] o sistema de
comunicação é um sistema absolutamente encerrado em sua operação, já que cria
os elementos mediante os quais ele mesmo se reproduz.”224
É importante recordar que a interpretação não será um ato de
“descobrimento”, mas um ato de criação de sentido realizado pelo intérprete. Na
construção do significado também há intenção. O processo de construção de sentido
que leva o intérprete até ao ato de entender não deriva de um processo passivo do
observador. De acordo com GOTTFRIED STOCKINGER, o observador será o
sujeito criador do sentido: “Observação como ato criativo requer energia e tempo,
ação e reação. ‘Cada ação é percepção e cada percepção é ação’.”225
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR. também chama a atenção para tal
aspecto: “Na verdade, sendo um conjunto de paráfrases a serviço do poder de
violência simbólica, todo ato interpretativo tem primariamente uma qualidade
pragmática, isto é, deve ser entendido numa relação de comunicação entre
emissores e receptores das mensagens normativas.”226
Ademais, como foi comentado anteriormente, não se encontra no
documento jurídico a norma jurídica, pois esta é produto de uma atividade do utente
da linguagem. Sem o utente não há norma, só matéria bruta (texto)! JOÃO
MAURÍCIO ADEODATO registra: “[...] a ‘norma’ geral não é prévia, só o seu texto o
é. A norma geral previamente dada não existe, é uma ficção.” 227
Se se ignora o campo pragmático, estar-se-á ignorando que a norma
jurídica é produto de construção e não um dado objetivo. O sistema jurídico, assim
como todos os demais sistemas sociais, é construído pelos participantes do
processo comunicacional. Para GREGORIO ROBLES, “A teoria comunicacional
concebe o direito com um texto elaborado ou sistema que se desdobra em unidades 224 LUHMANN. Introdução à Teoria dos Sistemas, 2009, p. 301. 225 STOCKINGER. Para uma Teoria Sociológica da Comunicação, 2001, p. 52. 226 FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, 2008, p. 265. 227 ADEODATO. A retórica constitucional (sobre a tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo), 2009, p. 146.
89
simples, que são as normas jurídicas. Estas não são dadas pelo legislador (ou, em
geral, pelo gerador do texto bruto), mas são resultado de um trabalho de
reconstrução hermenêutica).”228
No entanto, ressalta LENIO LUIZ STRECK: “O não-relativismo
propugnado pela hermenêutica e sua aversão à discricionaridade não significa
“proibição de interpretar”, com a “exclusão da subjetividade”, das “vontades”, “dos
desejos”, das “preferências pessoais” etc., de cada intérprete”229. E prossegue:
“Mas, atenção: admitir que cada sujeito possua preferências pessoais, intuições,
valores, etc. – o que é inerente ao modo próprio de ser-no-mundo de cada pessoa –
não quer dizer que não possa haver condições de verificação sobre a correção ou
veracidade acerca de cada decisão que esse sujeito tomar (principalmente se se
tratar de um juiz).”230
O que geralmente assusta nesse campo de investigação é que os
símbolos possuem uma “carga emocional” garantida pela inserção de valores e pela
exteriorização de intencionalidades. Esclarece TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.:
[...] no contexto pragmático, os símbolos contêm uma carga emocional que pode produzir alterações na significação, ao mostrar a diferença na função, assim a entonação com que se lê um dispositivo: “enriquecimento sem causa”, se acentuamos “enriquecimento” podemos estar querendo dizer o enriquecimento, antes de mais nada, deve ser significativo; se acentuamos “sem causa”, o importante é que, seja qual for, o enriquecimento seja injustificado.231
Posturas pragmáticas-subjetivas, no entanto, que conferem liberdade
desmedida ao intérprete, são negligentes com os campos de investigação anteriores
(sintático e semântico) e têm causado estragos irreparáveis em diversos campos,
inclusive no campo da interpretação jurídica. As “zonas de incertezas semânticas”,
comentadas outrora, serão alargadas com a presença de valores e de
intencionalidades. Todavia, nesse campo de investigação o que se deve ter em
228 ROBLES. O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito, 2005, p. 14. 229 STRECK. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito, 2009, p. 362. 230 Ibid., p. 362. 231 FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, 2008, p. 225.
90
conta é que a pragmática da comunicação jurídica é vista no seu aspecto coletivo e
não individual.
É a carga emocional contida nos símbolos e presente nas intenções que
faz da pragmática um campo de investigação evitado por muitos estudiosos que
buscam cercar o seu raciocínio com o rigor que demanda o discurso científico. No
entanto, o “emocional” não pode ser tão sobrelevado a ponto de afastar a ideia
apresentada repetidas vezes neste trabalho: o sistema jurídico parte da coletividade
(e não do psíquico individual!). Assim, é necessário que haja redundância na
interpretação, para que o direito continue sendo um sistema social autônomo.
2.7.3.1 Valor e Heterorreferência
Há valor no direito, assim como há valor em qualquer dos objetos
culturais. O direito, como objeto cultural, como comunicação social, é uma
verdadeira colônia de valores. Verifica-se a presença de valores tanto na produção
legislativa dos enunciados jurídicos, quanto no ato de interpretação do direito.
Explica PAULO NADER:
[...] é um instrumento de aprovação do bem e de rejeição do mal. Ao disciplinar o convívio social em qualquer aspecto, o Direito apresenta um juízo de valor. A lei, ao proibir uma conduta, emite juízo de reprovação. O critério da fonte elaboradora assenta-se em base ética. Ao captar a noção de bem no mundo objetivo, onda a natureza humana é dado fundamental, a Moral limita e condiciona a ação do legislador, levando-o a acatar certos princípios.232
Não é possível ver o valor, mas apenas percebê-lo, como explicita
MANOEL GARCIA MORENTE: “(…) los valores no son, sino que valen. Una cosa es
valer y otra cosa es ser. Cuando decimos de algo que vale, no decimos nada de su
ser, sino decimos que nos es indiferente.”233
232 NADER, Paulo. Filosofia do Direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 61. 233 MORENTE, Manoel Garcia. Lecciones preliminares de filosofia. México: Editorial Porrúa, S. A., 1980, p. 274.
91
A Axiologia - ou “Teoria dos Valores” - é uma parte da filosofia que estuda
os valores. Há quem atribua a eles um status metafísico, identificando a sua
existência independente de qualquer ação humana, e há quem entenda que o valor
é uma produção humana.234 É neste último sentido que PAULO DE BARROS
CARVALHO adota o seguinte conceito: “Valor é um vínculo que se institui entre o
agente do conhecimento e o objeto, tal que, o sujeito, movido por uma necessidade,
não se comporta com indiferença, atribuindo-lhe qualidades positivas ou
negativas.”235
A partir daí, o autor supracitado sistematiza as características que, se
identificadas, apontam a presença de valor. São elas: (i) bipolaridade; (ii) implicação
recíproca; (iii) referibilidade; (iv) preferibilidade; (v) incomensurabilidade; (vi)
tendência à graduação hirárquica; (vii) objetividade; (viii) historicidade; (ix)
inexauribilidade; (x) atributividade.236
Os textos jurídicos, bem como a autodescrição do sistema jurídico
efetuada a partir das observações realizadas no processo comunicacional, vêm
carregadas de carga axiológica que, além da vagueza e da ambiguidade das
expressões, permite que o intérprete, na construção das significações normativas,
também dê “vazão” aos seus próprios valores. Estes convidam o intérprete a emitir
suas “preferências”, levando-o não só a questionar as intenções de quem valorou,
como a registrar suas próprias intenções.
A presença dos valores viabilizará a heterorreferência e facilitará a
produção de variações no sistema. No entanto, é preciso observar a seguinte regra,
sugerida por TERCIO SAMPAIO FERRAZ, na análise axiológica: “É preciso
neutralizar os conteúdos, o que não quer dizer eliminar a carga valorativa, mas
controlá-la. É preciso generalizar de tal modo esses valores que eles passem a
expressar ‘universais do sistema’.”237
234 Cf. PAULO NADER, Filosofia do Direito, 2011, p. 58. 235 CARVALHO. Direito tributário, linguagem e método, 2008, p. 175. 236 Ibid., pp. 177-179. 237 FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, 2008, p. 265.
92
JOÃO MAURÍCIO ADEODATO diz que não haveria mais uma “verdade
subjetiva’. Ensina: “[...] a solução passa por um conteúdo de sentido no âmbito de
uma linguagem comum a outras pessoas, na possibilidade de seguir, ou não, regras
publicamente controláveis. ”238 E ressalta: “Esses controles públicos da linguagem
são condicionais, temporários, autopoiéticos e circunstanciais; quanto mais
complexo o meio social, mais se acentua esse caráter mutante e mais difícil estudá-
los.”239
Expressões como “confisco”, “igualdade”, “certeza”, “função social”,
“dignidade”, “razoabilidade” etc. trazem em si a presença das características
axiológicas comentadas acima, na medida em que permitem ao observador “preferir”
uma coisa a outra. Tais valores, se fixados em plano constitucional, alcançam o
posto de “princípios”, sendo utilizados, frequentemente nas argumentações erísticas,
que serão comentadas no próximo capítulo.
Quando se analisa o direito, não se pode esquecer que se está diante de
um discurso comunicacional coletivo. Tal aspecto impede o intérprete de inserir na
construção da norma jurídica valores diferentes daqueles sedimentados nos demais
subsistemas sociais. O conteúdo do valor a ser identificado é aquele produto do
consenso coletivo.
Em outros termos, o utente deverá se valer do consenso já firmado nas
comunicações. Por exemplo, na interpretação do que seria “intervenção econômica”,
o exegeta não poderá partir de construções que levem em conta apenas aspectos
da sua vivência pessoal (sua opinião pessoal), mas deverá questionar de que forma
os utentes da linguagem valoram essa expressão e de que forma a economia já
generalizou essa expectativa social. O mesmo ocorre com expressões como
dignidade, moralidade, abuso etc. onde o intérprete deverá visitar, necessariamente,
esses valores já generalizados pelo subsistema da moral.
O que não se pode perder de vista, é que o direito deve manter o seu
fechamento operativo. Como ressalta LENIO LUIZ STRECK: “(....) o texto perde
238 ADEODATO. A retórica constitucional (sobre a tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo). 2009, p. 34. 239 Ibid., p. 35.
93
importância, na medida em que o intérprete atribui ‘qualquer’ norma ao texto, a partir
de um conjunto de valores – v.g., o que ocorre com a jurisprudência de valores e
com as demais teorias axiológicas da interpretação jurídica.”240
Adverte-se, contudo, com CELSO FERNANDES CAMPILONGO:
“Ninguém é contrário aos valores! Eles são indiscutíveis, mas passíveis de
interpretações e decisões diante de conflitos de valores.”241 O que não se pode é
esquecer que a variação e a redundância na produção das informações são
essenciais à manutenção do sistema funcional. Se o valor ocasionar mais variação
do que redundância, haverá mais abertura do que fechamento.
2.7.3.2 “Jurisprudência de conceitos” e “Jurisprudência de Interesses”:
intenção do texto ou intenção dos participantes?
Uma das regras do jogo estabelecida acima é a que a interpretação
jurídica terá sempre como ponto de partida o texto. UMBERTO ECO adverte que
entre a intenção do autor e a intenção do intérprete existe uma terceira
possibilidade: a intenção do texto. 242 Esse não pode ser ignorado no processo
interpretativo. Respondendo à crítica de que “um texto é apenas um piquenique
onde o autor entra com as palavras e os leitores com o sentido”, UMBERTO ECO
enfatiza: “[...] mesmo que isso fosse verdade, as palavras trazidas pelo autor são um
conjunto um tanto embaraçoso de evidências materiais que o leitor não pode deixar
passar em silêncio, nem em barulho”243.
Daí parte a seguinte dúvida: “O que se deve perseguir na interpretação
jurídica é a intenção do texto ou é a intenção dos participantes?” Com relação à
intenção dos participantes, recorda-se que não será necessário analisar o plano
psíquico no processo comunicacional social. Apenas deve-se realizar a análise das
240 STRECK, Lenio. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Da possibilidade á necessidade de respostas corretas em direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 165. 241 CAMPILONGO. Interpretação do direito e movimentos sociais: Hermenêutica do Sistema Jurídico e da Sociedade, 2011, p. 187. 242 ECO. Interpretação e superinterpretação, 1993, p. 29. 243 Ibid., p. 28.
94
observações registradas. A produção de um texto bem como a sua interpretação só
serão possíveis por meio de várias escolhas e são os registros dessas escolhas que
caracterizarão as denominadas “intenções”.
Percebe-se que o observador, ao passar pelos três planos de
investigação da linguagem, está alcançando a última etapa (lógica) da comunicação,
que é o ato de entender, que parte da distinção entre a informação e o ato de
comunicar. Em outros termos, deve-se distinguir “o que se comunicou” de “quem
comunicou”. Partindo-se, assim, da caracterização dos planos sintático, semântico e
pragmático de investigação da linguagem, será possível perceber as diferenças
entre as ênfases promovidas pela “Jurisprudência de Conceitos” e pela
“Jurisprudência de Interesses”.
A primeira corrente, denominada “Jurisprudência de Conceitos”, valoriza o
aspecto lógico-semântico do texto, orientando as interpretações por meio de
raciocínios lógicos, dedutivos e indutivos a partir de conceitos. Trata-se de uma
orientação da interpretação a partir dos planos sintático e semântico da linguagem
comunicativa do direito. Explica CELSO FERNANDES CAMPILONGO: “Os teóricos
da jurisprudência dos conceitos tinham como ponto comum o método formalista, a
busca de soluções jurídicas por meio de operações lógicas, da combinação do
raciocínio de indução e o de dedução.”244
Já a “Jurisprudência de Interesses” ressalta o caráter pragmático e
teleológico do direito. Os filiados dessa corrente entendem que não se chegará às
soluções jurídicas apenas por meio da aplicação de um método silogístico. Para o
autor supracitado: “A lei seria, então, destinada a resolver conflitos de interesses e,
ao mesmo tempo, seria ela própria resultante dos vários interesses – materiais,
nacionais, religiosos etc.”.245
Percebe-se, contudo, o equívoco em colocar essas duas correntes como
opções excludentes. CELSO FERNANDES CAMPILONGO nota que a
Jurisprudência de Conceitos valoriza a autorreferência em detrimento de
244 CAMPILONGO. Interpretação do direito e movimentos sociais: Hermenêutica do Sistema Jurídico e da Sociedade, 2011, p. 197. 245 Ibid. p. 204.
95
heterorreferência, valorizada pela Jurisprudência de Interesses. Assim, esta última
sobreleva mais a abertura cognitiva em detrimento do fechamento operativo,
valorizado pela Jurisprudência de Conceitos.246 E tanto o binômio autorreferência/
heterorreferência quanto o binômio fechamento/abertura são necessários para a
manutenção da autonomia do sistema jurídico.
Conforme visto, as variações promovidas pelo intérprete só serão aceitas
se restar evidenciado, por meio da argumentação jurídica, que a sua observação
(interpretação) foi realizada a partir do sistema jurídico e não do seu ambiente. O
que prejudica a autonomia do direito não é a variação na construção das
informações, mas a corrupção do seu código. Assim, as ditas “intenções” precisam
ser jurídicas e não extrajurídicas, para permitir que a heterorreferência gere a
abertura cognitiva necessária e não excessiva para a manutenção do Estado de
Direito.
2.8 “INTERPRETAÇÃO JURÍDICA” E “JANELAS DE COMUNICAÇÃO”
A permanência e a transformação pelas quais passa a linguagem jurídica,
em razão dos fatores que envolvem o plano semântico e pragmático da linguagem,
viabilizam a redundância e a variação na interpretação jurídica. O fechamento
operacional e a abertura cognoscitiva do sistema jurídico são, em parte, decorrentes,
respectivamente, da continuidade na utilização do código lícito/ilícito e do processo
de aprendizagem que a interpretação jurídica favorece no processo comunicacional.
Explica CELSO FERNANDES CAMPILONGO: “A interpretação jurídica é
operação de autodescrição do direito. Implica em auto-referência ao direito válido e
heterorreferência cognitiva aos demais sistemas.”247 Com isso, elucida o autor que a
interpretação jurídica poderá se dar em dois níveis: (i) na auto-referência, o sistema
jurídico interpreta a si mesmo; e (ii) na heterorreferência, a interpretação jurídica
será das interpretações dos demais sistemas.
246 CAMPILONGO. Interpretação do direito e movimentos sociais: Hermenêutica do Sistema Jurídico e da Sociedade, 2011, p. 222. Percebe-se, contudo, que há conceitos heterorreferentes e interesses autorreferentes, apesar de isso não ser o mais comum. 247 Ibid., p. 222.
96
A sobreposição de interpretações (interpretação jurídica sobre as
interpretações dos demais sistemas) compreende o que o autor supramencionado
denomina “janelas de comunicação”. Essas janelas representam a descrição das
interpretações econômicas, políticas, morais etc. produzidas pelos demais sistemas
funcionais. Mas tudo por meio dos “olhos e ‘dicionários’ do direito”, como alerta
CELSO FERNANDES CAMPILONGO:
Janelas só existem onde houver paredes. Apenas diferenciada de outros ambientes interpretativos, a interpretação pode ser autoconstruída, de um lado, e sociologicamente descrita de maneira adequada, de outro. Do contrário, perde-se totalmente a especificidade quer a relevância social da interpretação do direito. Ele se transforma em janela sem parede, quer dizer, janela inútil.248
É preciso que o paradoxo operativamente fechado e cognitivamente
aberto seja mantido, para que o sistema jurídico continue autônomo como um
sistema funcional. Para tanto, o que se recebe do entorno por meio da abertura
hermenêutica do sistema deve ser tratado por meio dos códigos e dos programas
próprios do sistema jurídico. É o que ocorre também nos demais sistemas sociais.
Permitir a entrada desmedida em nome da “abertura hermenêutica” é colocar em
risco o Estado de Direito.
As operações de comunicação realizadas pela interpretação jurídica
terão, nas palavras de NIKLAS LUHMANN, dupla função: serem fatores de produção
e serem conservadoras da estrutura. E com relação à conservação da estrutura,
afirma o autor: “Sólo el derecho puede decir lo que es derecho.”249
Assim, inspirados na expressão “janelas de comunicação”, deve-se evitar
que em nome da interpretação jurídica, se “construam” casas engraçadas, como a
descrita por Vinícius de Moraes, na qual ninguém podia entrar, por ausência de
parede, teto e chão, porém “[...] era feita com muito esmero, na rua dos Bobos,
número zero”.
248 CAMPILONGO. Interpretação do direito e movimentos sociais: Hermenêutica do Sistema Jurídico e da Sociedade, 2011, pp. 222-223. 249 LUHMANN. El derecho de la sociedad, 2005, pp. 105-106.
97
2.9 “INTERPRETAÇÃO NA ARGUMENTAÇÃO” E “ARGUMENTAÇÃO
NA INTERPRETAÇÃO”
Há uma confusão entre os conceitos de “interpretação jurídica” e de
“argumentação jurídica” quando se analisa a fundamentação de uma decisão
judicial. Neste momento, interessa destacar a diferença entre esses conceitos e
demonstrar como eles se relacionam. Conforme visto, será a interpretação que dará
sentido ao texto jurídico e viabilizará a interpretação jurídica. Texto sem
interpretação é um mero suporte físico, enquanto que argumentação é um passo
além da interpretação.
Enquanto a interpretação jurídica é vista como uma observação de
primeira ordem (autorreferente ou heterorreferente), a argumentação jurídica será,
necessariamente, uma observação de segunda ordem. Com isso, entende-se que,
na argumentação jurídica, o observador estará observando outros observadores,
inicialmente, a partir das seguintes perguntas: “Como se utiliza o texto jurídico na
comunicação?” e “Como se utiliza o texto de forma a convencer os demais
participantes do processo comunicacional?”250
A argumentação pressupõe convencimento. Segundo, JOÃO MAURÍCIO
ADEODATO, a Teoria da Argumentação é um componente da Retórica e refere-se
ao “conteúdo” persuasivo do discurso.251 No entanto, antes de se argumentar,
interpreta-se, assim como, para expor uma interpretação, se argumenta. Há,
portanto, uma relação íntima entre interpretação e argumentação, segundo
esclarece LENIO LUIZ STRECK:
A resposta correta à luz da hermenêutica (filosófica) será a “resposta hermeneuticamente correta” para aquele caso, que exsurge na síntese hermenêutica da apllicatio. Essa resposta propiciada pela hermenêutica deverá, a toda evidência, estar justificada (a fundamentação exigida pela Constituição implica a obrigação de justificar) no plano de uma argumentação racional, o que demonstra que, se a hermenêutica não pode ser confundida com teoria da argumentação, não prescinde, entretanto, de uma argumentação adequada (vetor de racionalidade de segundo nível, funciona no
250 Cf. LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad, 2005, pp. 404. 251 ADEODATO. A retórica constitucional (sobre a tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo), 2009, p. 28.
98
plano lógico-apofântico). Afinal, se interpretar é explicitar o compreendido (Gadamer), a tarefa de explicitar o que foi compreendido é reservado às teorias discursivas e, em especial, à teoria da argumentação jurídica. Mas esta não pode substituir ou se sobrepor àquela, pela simples razão de que é metódico-epistemológica.252
TORQUATO CASTRO JR. faz a seguinte ressalva: “[...] não deve haver
uma ‘teoria retórica’ da interpretação, embora haja um ‘olhar’ da retórica sobre a
interpretação. Quero dizer, noutras palavras, que não se pode exigir da retórica uma
‘teoria da interpretação’. Não seria esse o seu papel. Porém, certamente a retórica
se deixará afetar pelas diversas concepções teóricas relativas à interpretação.”253
Se, por um lado, reduzir a Retórica à interpretação jurídica é diminuir, e
muito, o espectro de estudo daquela; por outro lado, igualar a interpretação jurídica à
Retórica é ignorar que a observação de primeira ordem é que permitirá a
autodescrição do direito, ou seja, é ela que construirá o denominado “direito
positivo”.
Mais adiante debruçar-se-á sobre o tema da decisão judicial e se
analisará a argumentação jurídica na decisão judicial. Por ora, fica apenas o alerta
de que interpretação jurídica e argumentação jurídica estão em níveis diferentes de
observação e, portanto, possuem diferentes funções no direito.
252 STRECK. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito, 2009, p. 365. 253 CASTRO JR., Torquato. Retórica jurídica e teoria da interpretação. In: Congresso do IBET III. Interpretação e Estado de Direito. São Paulo: Editora Noeses, 2006, p. 867.
99
CAPÍTULO 3 – PODER JUDICIÁRIO E DECISÃO JUDICIAL
3.1 FUNÇÃO JURISDICIONAL DO PODER JUDICIÁRIO NO
ORDENAMENTO BRASILEIRO
Na divisão dos poderes apresentada anteriormente,coube ao Órgão-
Poder Judiciáriooexercício da função jurisdicional,que é entendida como a atividade
de aplicação da norma jurídica diante de situações concretas de conflitos entre
pessoas (físicas, jurídicas e políticas). O termo “jurisdição” compreende o exercício
do dever estatal tendente à composição de conflitos de interesses.
Caberá ao Estado-Juiz, uma vez provocado, resolver uma contenda,
construir, em caráter definitivo, a norma geral e abstrata a ser aplicada ao caso
concreto, bem como aplicá-la, indicando, entre outros elementos, os sujeitos da
relação jurídica e o conteúdo prescritivo da conduta, decorrentes da ocorrência de
determinado fato jurídico.
Explica HANS KELSEN que, apesar do termo “juris-dição” compreender
“declaração do direito”, o Judiciário não só declarará o direito como se fosse uma
“descoberta”, mas determinará a norma abstrata a ser aplicada ao caso concreto.
Tal determinação sempre terá o caráter constitutivo. 254
E, para que haja o exercício da função jurisdicional, o Estado-Juiz deverá
ser provocado. A partir daí, serão instauradas duas relações jurídicas-processuais:
uma entre o Estado-Juiz e o demandante (detentor do direito de ação) e outra entre
o Estado-Juiz e o demandado (detentor do direito de contradição). O órgão
jurisdicional figura como o termo comum dessas duas relações, com o dever de
prestar a tutela jurisdicional. LOURIVAL VILANOVA sintetiza a ideia:
254 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 264.
100
Ao direito de ação contrapõe-se o direito de defesa. No exercício de um e de outro, os sujeitos dirigem-se ao Estado-juiz, com este constituindo relação: o exercício do direito de ação provoca no órgão julgador o dever jurisdicional de acolher o pedido, o dever de praticar o ato processual – despachar e mandar citar o sujeito passivo. O exercício do direito de defesa dirige-se ao juiz e outra relação linear se constitui: o órgão julgador contrai o dever de acolher a defesa. As duas relações lineares, reunidas em um ponto – o órgão jurisdicional –, perfazem a angularidade da relação jurídico-processual. O objeto comum de ambos os sujeitos, o ativo e o passivo, é a prestação da tutela jurisdicional do Estado.255
Após ser provocado, o Poder Judiciário realizará os atos que compõem o
processo judicial. No entanto, uma vez demandado, o direito do Poder Judiciário de
solucionar conflitos também será um dever. Esse dever jurisdicional consiste em
proporcionar o exercício do direito à ação do autor e do direito à contradição e à
ampla defesa do réu. Em síntese, explana PAULO CONRADO:
Em resumo prático: todo aquele (autor) que pretender perceber tutela jurisdicional (veículo que contenha norma individual e concreta compositiva de conflito verificado em certa relação jurídica de direito material, potencial ou efetiva) deverá provocar o Estado-juiz (via petição inicial), ao qual caberá propiciar a prévia comunicação (contraditório) daquele contra quem a tutela se oporá (réu), que poderá, cientificado da pretensão, a ela resistir (ampla defesa). 256
Em muitos casos, entretanto, deverá o juiz, além de dizer e aplicar o
direito material, aplicar atos coercitivos, como garantia do cumprimento de uma
determinada obrigação. E,como a função jurisdicional é monopólio do Estado-Juiz,
será dele também a exclusividade do exercício do direito/dever subjetivo à aplicação
da sanção como coação. Assim, após ter sido acionado e ter confirmado a
pretensão do direito material, o Poder Judiciário,por meio do legítimo uso da força,
poderá/deverá coagir o demandado a cumprir com o seu dever.
Afora a prescrição de normas gerais e abstratas257 (primárias) impondo
deveres, decorrentes da realização de fatos lícitos ou ilícitos, o ordenamento
255 VILANOVA. Causalidade e relação no direito, 2000, p. 190. 256 CONRADO, Paulo Cesar. Processo tributário. 2. ed., São Paulo: Quatier Latin, 2007, p. 45. 257 Sobre essa classificação das normas em gerais, abstratas, individuais e concretas, PAULO DE BARROS CARVALHO ensina: “Costuma-se referir a generalidade e a individualidade da norma ao quadro de seus destinatários: geral, aquela que se dirige a um conjunto de sujeitos indeterminados,
101
também prevê outras normas gerais e abstratas (secundárias) que prescrevem, em
caso de descumprimento dos deveres prescritos nas primeiras, o exercício da
coação. Dessa forma, para garantir a eficácia social no cumprimento dos deveres,
indica-se que, para cada norma primária, haja uma secundária correspondente.
EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI258representa, formalmente, a estrutura mínima
de que o direito se vale para se aproximar da conduta prescrita, do seguinte modo:
D { [ (p → q ) . ( - q → r ) ] . [ ( - q v – r) → S ] }
(n. 1ª. d) (n. 1ª. s) (n. 2ª.)
Onde, a norma primária dispositiva (n. 1ª. d) representada pelo símbolo “p
→ q” (se “p”, então “q”) indica que a realização de um ato lícito poderá implicar o
nascimento de uma consequência jurídica. E esta, por sua vez, não observada,
gera o nascimento de outra consequência, agora representada pelo símbolo “- q →
r” (se “não q”, então “r”) denominado norma primária sancionadora (n.1ª. s). E, por
último, caso haja a inobservância de “q” e de “r”, caberá, ainda, a aplicação de outra
consequência, formalmente indicada pelo símbolo “[ ( - q v – r) → S ]” ( se “não q” e
se “não r”, então “S”) e denominada de norma secundária(n. 2ª.).
Será, pois, na norma secundária que estará prescrita a atividade do
Estado-Juiz de coagir. Essa norma, diversa das demais, terá na sua consequência a
previsão de uma relação processual, enfatizada por LOURIVAL VILANOVA da
seguinte maneira: “para valer-se da coação, o sujeito do direito reveste-se de
capacidade processual, que advém como efeito da incidência de norma processual;
do mesmo modo, o sujeito passivo investe-se de capacidade processual para se
opor.”259
quanto ao número; individual, a que se volta a certo indivíduo ou a grupo identificado de pessoas. Já a abstração e a concretude dizem respeito ao modo como se toma o fato descrito no antecedente. A tipificação de um conjunto de fatos realiza uma previsão abstrata, ao passo que a conduta especificada na espaço e no tempo dá caráter concreto ao comando normativo. (CARVALHO. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência tributária, 1998, p. 33) 258 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Lançamento tributário. 2. ed. revista e ampliada. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 44. 259 VILANOVA. Causalidade e relação no direito, 2000. p. 190.
102
Como o cumprimento espontâneo das normas jurídicas gerais e abstratas
não tem sido uma característica da sociedade complexa atual, a individualização e a
concreção das normas primárias têm funcionado apenas como a primeira etapa da
consecução dos atos executórios. Daí a execução da coação ser vista por muitos
como uma característica indispensável da função jurisdicional, chegando-se,
inclusive, a definir a função jurisdicional como uma função executória. ELIVAL DA
SILVA RAMOS sublinha esse aspecto: “Tradicionalmente se aponta o caráter da
jurisdição, em contraponto à natureza criativa ou inovadora da legislação. As leis,
por conseguinte, em sentido material seriam atos veiculadores de normas gerais,
abstratas e inovadoras da ordem jurídica, ao passo que as decisões judiciais seriam
meros atos de aplicação dessas normas.”260
No entanto, a função jurisdicional vai muito além da aplicação de atos
coativos. Não pode o juiz ser visto como mero executor de atos coercitivos. Deve-se
reconhecer o imprescindível papel que desempenha o procedimento judicial na
manutenção da autonomia do sistema do direito. Será esse procedimento que
legitimará as decisões judiciais, fazendo com que elas sejam obrigatórias e sejam
consideradas como premissas de comportamentos.
3.2 PROCESSO JUDICIALCOMO MICROSSISTEMA CENTRAL
Será o desenvolvimento de um procedimento judicial que dará
legitimidade para a decisão por ele produzida. Não importa se justa ou injusta,
correta ou incorreta, uma vez atendidas algumas particularidades, a decisão judicial,
proveniente do exercício da função jurisdicional, será de observância obrigatória. Por
esse motivo, NIKLAS LUHMANN enfatiza: “Os procedimentos juridicamente
organizados fazem parte dos atributos mais extraordinários do sistema político das
sociedades modernas.”261 Donde ele destaca os processos judiciais, os processos
de eleição política e legislação e os procedimentos decisórios da administração.
260 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 118-119. 261 LUHMAN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição. Brasília: Universidade de Brasília, 1980, p. 17.
103
Quando fala em “procedimento/processo judicial”, o autor supracitado
está se referindo a algo que vai além do rito processual. Ele vê os processos
judiciais como “sistemas de atuação organizados e empiricamente compreensíveis,
podendo ser orientados não só por meio de disposições jurídicas, mas também pelo
exercício social institucionalizado e, finalmente, pelas expectativas de
comportamento que se geram circunstancialmente a partir daí.”262
Os processos judiciais serão vistos neste trabalho como microssistemas
dentro do sistema jurídico.263 E mais: estarão no centro do sistema jurídico e terão à
sua volta (como ambiente) os procedimentos que dão origem às leis, aos acordos
coletivos, aos contratos privados, às normas das agências reguladoras, aos
convênios etc.264
Essa posição diferenciada dada aos processos judiciais se deve ao fato
de os juízes serem os únicos com o dever de julgar, mesmo diante da inexistência
de uma norma geral e abstrata que discipline especificamente o caso concreto, as
denominadas “lacunas”. Como ensina LOURIVAL VILANOVA, será, pois, a regra do
“non liquet” que garantirá a completude do sistema jurídico: “O juiz não tem o
indeclinável dever-de-julgar porque o sistema já é completo, mas o sistema é
completável, se o juiz deve julgar qualquer conflito de interesses que chegue
processualmente ao seu conhecimento.”265
E por ter essa responsabilidade, diversa dos demais procedimentos
situados no interior do sistema jurídico, é que o processo judicial requer maior
proteção com relação ao meio externo do que os demais procedimentos jurídicos.
Segundo NIKLAS LUHMANN, é necessário substituir o modelo hierárquico entre os
poderes por uma diferenciação centro/periferia e, por consequência, “(...) la
jurisdicción sería aquel sistema parcial (subsistema) en el que el sistema del
derecho tiene su centro.” E continua: “Todos los demás campos de trabajo (no
262 LUHMAN. Legitimação pelo procedimento, 1980, p. 52. 263 Aos subsistemas se aplicarão os mesmos conceitos destacados em tópicos anteriores relativos à teoria sistêmica luhmaniana, tais como: diferenciação, autonomia, papéis, ambiente, acoplamento etc. 264 Cf. LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad, 2005, pp. 383-384. 265 VILANOVA. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, 1997, p. 246.
judiciales) del sistema del derecho pertenecen a la
simplificada, poderia ser ilustrado por meio da seguinte figura:
O meio externo (ambiente) do procedimento judicial englobará todas as
atividades jurídicas não judiciais. De acordo com LUHMANN, a posição central do
processo judicial faz com que não haja um contato direto do juiz com o ambiente,
criando, em função da obrigatoriedade de julgar, um isolamento cognitivo maior do
aquele observado nos outros procedimentos jurídicos.
El centro requiere premisa con la que opera va en dirección opuesta. Por eso, los tribunales, si se los compara con los legisladores y los contratantes, trabajan en un aislamiento congnitivo mucho más drástico. Piénsese sólo en lasel acesso a los tribunales debe ser discreto y organizado lo más posible de manera selectiva.
Para que haja a produção da decisão judicial, será necessário o
desenvolvimento do processo judicial
direito, assim como também ocorre no processo legislativo e no processo
administrativo. Essas regras indicadas pelo ordenamento jurídico é que darão a
266 LUHMANN. El derecho de la sociedad267 Ibid., p. 384.
Contratos
judiciales) del sistema del derecho pertenecen a la periferia.”266
simplificada, poderia ser ilustrado por meio da seguinte figura:
O meio externo (ambiente) do procedimento judicial englobará todas as
atividades jurídicas não judiciais. De acordo com LUHMANN, a posição central do
processo judicial faz com que não haja um contato direto do juiz com o ambiente,
criando, em função da obrigatoriedade de julgar, um isolamento cognitivo maior do
aquele observado nos outros procedimentos jurídicos. Explicita o autor:
El centro requiere precisamente de esta protección dado que la premisa con la que opera va en dirección opuesta. Por eso, los tribunales, si se los compara con los legisladores y los contratantes, trabajan en un aislamiento congnitivo mucho más drástico. Piénsese sólo en las formalidades de los procedimientos probatorios. Además el acesso a los tribunales debe ser discreto y organizado lo más posible de manera selectiva.267
Para que haja a produção da decisão judicial, será necessário o
processo judicial a partir de modelos preconcebidos pelo próprio
direito, assim como também ocorre no processo legislativo e no processo
administrativo. Essas regras indicadas pelo ordenamento jurídico é que darão a
ho de la sociedad, 2005, p. 383.
Decisão Judicial
Leis Acordos coletivos
Contratos
Normas Reguladoras
Convênios
104
266 O que, de forma
O meio externo (ambiente) do procedimento judicial englobará todas as
atividades jurídicas não judiciais. De acordo com LUHMANN, a posição central do
processo judicial faz com que não haja um contato direto do juiz com o ambiente,
criando, em função da obrigatoriedade de julgar, um isolamento cognitivo maior do
o autor:
e esta protección dado que la premisa con la que opera va en dirección opuesta. Por eso, los tribunales, si se los compara con los legisladores y los contratantes, trabajan en un aislamiento congnitivo mucho más drástico. Piénsese
formalidades de los procedimientos probatorios. Además el acesso a los tribunales debe ser discreto y organizado lo más
Para que haja a produção da decisão judicial, será necessário o
artir de modelos preconcebidos pelo próprio
direito, assim como também ocorre no processo legislativo e no processo
administrativo. Essas regras indicadas pelo ordenamento jurídico é que darão a
105
possibilidade de construir um sistema de seleção das informações provenientes do
ambiente, que, uma vez inseridas, passarão a ser orientadas por regras e decisões
internas do subsistema judicial.268 Será a imposição de limites em face do meio
ambiente, promovida pela diferenciação, que absorverá as incertezas de direito e de
verdade dos fatos e criará o espaço propício para a decisão.
Nessa linha, HANS KELSEN diz caber ao ordenamento jurídico
determinar não só a consequência decorrente da realização de um determinado fato,
mas também indicar qual o órgão pelo qual e o processo no qual o fato concreto
seria verificado.269 Só a partir daí um fato natural seria transformado em fato jurídico:
Perante um fato determinado pela ordem jurídica como pressuposto de uma conseqüência, a primeira pergunta do jurista tem de ser: qual o órgão jurídico que, segundo o ordenamento jurídico, é competente para verificar este fato no caso concreto e qual é o processo determinado pela ordem jurídica segundo o qual essa verificação deve ser feita? Só através desta verificação entra o fato no domínio do Direito, somente através dela ele se transforma de fato natural em fato jurídico, só então ele é, pela vez primeira, juridicamente produzido como tal.270
LOURIVAL VILANOVA lembra que, para que a aplicação da norma
jurídica seja legitimada, o exercício da função jurisdicional precisa ocorrer nos
estritos termos da Constituição. Essa é uma conquista civilizacional denominada
Estado de Direito. Esclarece o autor: “No interior do ordenamento dado (positivo) é
que também tem lugar a função jurisdicional. É função proveniente de um órgão
poder, cuja existência só tem sentido dentro da ordem jurídica total, em cujo ápice
está a Constituição, que pôs a regra da qual provém o órgão do poder, com o seu
fascio di competenza.”271
Observa-se, contudo, que os modelos preestabelecidos pelo direito
processual não apontam apenas um caminho. Eles indicam as várias opções que
podem ser combinadas de diversas formas, a depender do desenvolvimento da
268 Cf. LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento, 1980, p. 53. 269 KELSEN. Teoria pura do direito, 1998, p. 265. 270 Ibid., p. 266. 271 VILANOVA. Proteção Jurisdicional dos Direitos numa Sociedade em Desenvolvimento. Escritos Jurídicos e Filosóficos, volume (2), 2003, p. 463.
106
comunicação realizada entre os detentores dos papéis envolvidos no processo. Será
da relação dos participantes com as regras do jogo indicadas pelo ordenamento
jurídico que surgirá uma diferente história para cada processo judicial.272
As partes que desempenharão os papéis institucionalizados273 terão
várias possibilidades de escolhas durante o desenvolvimento do processo. NIKLAS
LUHMANN salienta que cada escolha realizada eliminará outras alternativas,
reduzindo, assim, a complexidade inicial:
À medida que o processo se desenrola, reduzem-se as possibilidades de atuação dos participantes. Cada um tem de tomar em consideração aquilo que já disse, ou se absteve de dizer. As declarações comprometem. As oportunidades desperdiçadas não voltam mais. Os protestos atrasados não são dignos de crédito. Só por meio de ardis especiais se pode voltar a abrir uma complexidade já reduzida, se pode conseguir uma nova segurança e se pode fazer que volte a acontecer o que já aconteceu; 274
Esses participantes, observadores, assumirão diferentes papéis criados
artificialmente pelo sistema jurídico. Como já foi dito, somente após a filtragem
realizada por esses papéis, em cada processo judicial, as informações provenientes
do ambiente externo serão validadas, a fim de possibilitar a prestação da tutela
jurisdicional.275 No entanto, para que as informações trazidas para o interior do
sistema deem a segurança necessária para a tomada da decisão final, será
necessário obter um distanciamento das pessoas (como seres vivos e
comunicacionais) com relação aos papéis que exercem no processo judicial. Quer-
se dizer com isso que o participante de um processo jurídico não poderá trazer para
o seu interior a totalidade dos aspectos que envolvem os outros papéis que ele
exerce na sociedade, como o de pai, vizinho, professor, amigo, cristão etc. Exceto
se a situação demanda uma análise do comportamento de uma determinada pessoa
que se apresente, por exemplo, como testemunha ou réu.
272 Cf. LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento, 1980, pp. 37-38. 273 Ibid., p. 98. 274 Ibid., p. 42. 275 Ibid., p. 53.
107
NIKLAS LUHMANN preconiza que essa impessoalidade foi a forma que a
sociedade criou não só para manter a diferenciação do procedimento judicial com
relação aos demais procedimentos existentes no sistema social, mas também para
promover a seleção necessária para a decisão:
No interesse da manutenção duma organização social complexa e dum sistema de procedimento relativamente autônomo dentro dela, todos aqueles que têm uma participação profissional no processo como presidentes ou vogais, advogados ou representantes de interesses, secretários ou moços de recados, são obrigados a apresentar uma conduta impessoal.
[...]
A impessoalidade é estabelecida institucionalmente como filtro de ação unilateral e não como separação completa.276
Todos os participantes, cada um dando ênfase aos seus interesses e nos
limites da atuação dos seus papéis, são observadores e produtores de textos e vão
compondo o processo de comunicação que, pouco a pouco, vai estabelecendo as
barreiras que serão consideradas na tomada da decisão pelo juiz. Assegurada,
assim, a autonomia de cada processo judicial e efetivado o processo de
comunicação, em conformidade com o ordenamento jurídico, legitimada estará a
decisão final. O que significa que, ainda que desagrade a alguns, a decisão final
será observada por todos os envolvidos nessa comunicação.277
Percebe-se, pois, que a legitimação da decisão pelo procedimento
judicial, além de outros requisitos, apresenta ao juiz uma grande responsabilidade. E
é em razão da importância desse papel na comunicação estabelecida no processo
judicial, que se analisará no próximo item, com maior profundidade, a atuação desse
participante, observador, na produção da decisão judicial.
276 LUHMANN. Legitimação pelo procedimento, 1980, p. 82. 277 Ibid., p. 35.
108
3.3 INDEPENDÊNCIA E CRIATIVIDADE DO JUIZ NO ESTADO DE
DIREITO
Entre os papéis institucionalizados exercidos no processo judicial está o
do juiz, órgão-indivíduo estatal e observador de primeira ordem do sistema jurídico.
Caberá a ele a produção da decisão com vistas a solucionar o conflito apresentado.
Ocorre que, com o crescimento da complexidade social, o papel do juiz foi
adquirindo novos contornos jurídicos e políticos. Hoje se conferem ao Poder
Judiciário atribuições antes reservadas a outros setores da sociedade. E, ao se
eleger a via judicial como a forma mais eficaz de defesa e de garantia dos direitos
individuais e coletivos, a sociedade coloca o juiz como protagonista de incontáveis
conflitos que vão desde divergências afetivas até divergências de ordem político-
internacionais.
A forma como se dá o exercício desse papel tem-se modificado ao longo
da história. Essa nova projeção do juiz, segundo LUIZ WERNECK VIANNA,
MARCELO BAUMANN BURGOS e PAULA MARTINS SALLES, pode ser constatada
com maior evidência a partir do segundo pós-guerra. Asseveram os autores:
Da guerra igualmente veio a motivação, de importância crucial, para que as constituições trouxessem em seu corpo um “núcleo dogmático”, na expressão de J. Habermans, explicitando valores fundamentais a obrigar o poder soberano. O chamado constitucionalismo democrático reclamava, portanto, um judiciário dotado da capacidade de exercer jurisdição sobre a legislação produzida pelo poder soberano. E, na esteira da guerra, o Welfare State, com suas ambições de organizar o capitalismo e introduzir relações de harmonia entre as classes sociais, com suas fortes repercussões no sentido de trazer o direito para o centro da vida social.278
Essas modificações estão relacionadas à própria evolução do Estado,
bem como às diversas considerações realizadas pelas teorias do direito. É possível,
inclusive, construir os arquétipos que representam algumas dessas fases históricas.
CELSO FERNANDES CAMPILONGO, com base na doutrina de CARLO
278 VIANNA, Luiz Werneck; BURGOS, Marcelo Baumann; SALLES, Paula Martins. Dezessete anos de judicialização da política. Revista de sociologia da USP. São Paulo, v. 19, n. 2, p. 40.
109
GUARNIERI, apresenta os seguintes quatro modelos típicos ideais de juiz: (i) juiz-
executor; (ii) juiz-delegado; (iii) juiz-guardião; (iv) juiz-político.
A classificação em quatro modelos partirá de dois critérios
diferenciadores: independência e criatividade. Por independência, entende-se: “a
não-interferência de Poderes externos (Executivo e Legislativo) e internos (pressões
dos Tribunais ou Cortes Superiores sobre o juiz) no processo decisório judicial.”279 E
por criatividade compreende-se a atividade de interpretação dos enunciados
jurídicos, vista como criação do direito. CELSO FERNANDES CAMPILONGO
explica: “O juiz não apenas declara o direito existente como também cria direito
novo. Declarar o direito e criar direito não são funções contraditórias, mas sim
complementares.”280 Em seguida, passam a ser explicitados os referidos modelos:
(i) “Juiz-executor”: baixa independência e baixa criatividade.
O juiz nesse modelo-ideal apresenta-se subordinado aos demais Poderes
e apenas executa o que está prescrito na “clareza” da lei. Esse tipo de juiz é
denominado “Júpiter” por FRANÇOIS OST e está baseado no modelo de direito que,
uma vez codificado e escalonado hierarquicamente, apresenta as qualidades de
“coerência, completude, clareza, não-redundância, simplicidade e
flexibilidade.”281Aqui cabe ao juiz, na aplicação da norma ao fato, o raciocínio
dedutivo e linear.
ELIVAL DA SILVA RAMOS sustenta que essa concepção privilegiava
uma subordinação dos outros Poderes ao Legislativo:
Na verdade, o princípio da supremacia da lei, embora teoricamente distinto, se confundia, na prática, como o princípio da supremacia do Parlamento, órgão que, com exceção do instituto do veto monárquico, passou a monopolizar a atividade legiferante. O esquema de organização de Poderes, de feições nitidamente legicêntricas, refletia o predomínio político do Poder Legislativo,
279 CAMPILONGO. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, 2002, p. 46. 280 Ibid., p. 47. 281 OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez.Tradução de Isabel Lifante Vidal. In DOXA. Cuadernos de filosofía del derecho [Publicaciones periodicas]. n. 14, Espanha: Universidad de Alicante, 1993, p. 174.
110
exatamente porque a lei “que dele provém é a pauta a que se devem ajustar quer o Executivo, quer o Judiciário”. 282
Esse foi o modelo vigente no século XIX, decorrente da exaltação da lei
como a única forma de limitar a atuação arbitrária do Estado e de garantir as
liberdades individuais.
(ii) “Juiz-delegado”: baixa independência e alta criatividade.
Nesse segundo tipo ideal, o juiz continua subordinado aos demais
Poderes, mas, agora, com maior espaço para a interpretação. CELSO FERNANDES
CAMPILONGO registra: “O modelo do juiz-delegado enfatiza a inevitabilidade da
atuação política do magistrado e, complementarmente, reconhece também que nem
sempre o ordenamento jurídico oferece regras claras e precisas para a solução dos
casos.”283
Diverso do primeiro modelo, este se aproxima do “juiz-Hércules”, descrito
por FRANÇOIS OST, no que tange à alta criatividade. Aqui, substitui-se o monismo
normativo e o raciocínio dedutivo, respectivamente, por uma proliferação de
decisões particulares e um raciocínio indutivo.
Esse modelo é característico da corrente denominada “Movimento do
Direito Livre”, que vai além do reconhecimento do amplo espaço de interpretação
para defender o subjetivismo particular do juiz. Primeiro, o juiz decide; depois busca
algum respaldo na lei.284
(iii) “Juiz-guardião”: alta independência e baixa criatividade.
Nesse tipo de modelo, encontra-se um juiz com alto grau de autonomia
perante os demais Poderes, devendo a esses se opor quando houver ameaça à
Constituição. No entanto, aqui ele apresentará baixa discricionariedade de criação
em face das normas constitucionais. Além disso, CELSO FERNANDES
CAMPILONGO alerta: “Ressurgem, também, propostas de outros mecanismos que –
282 RAMOS. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos, 2010, p. 67. 283 CAMPILONGO. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, 2002, p. 52. 284 Cf. RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos, 2010, p. 46.
111
reconhecendo que a criatividade judicial é inerente à função judicante – controlem,
limitem e legitimem a atuação do juiz”.285
Nesse modelo, a lei é suplantada pela Constituição Federal. E esta, por
sua vez, é vista como um veículo de ordens valorativas que limitam objetivamente a
atividade criativa judicial. Chega-se até mesmo a defender que, com base na
Constituição, haveria apenas uma resposta correta.286
Entre os defensores dessa corrente denominada “Jurisprudência
Sociológica”, estão, com variáveis entre si, RONALD DWORKIN, JUNGER
HABERMAS e ROBERT ALEXY. Ao explicar a teoria desenvolvida por HABERMAS,
THAMY POGREBINSCHI observa:
Habermas reivindica que a distinção entre discursos de aplicação e de justificação de normas oferece um critério teórico-argumentativo para demarcar as tarefas respectivas que o judiciário e o legislativo podem legitimamente cumprir. Esta demarcação estabelece que o legislativo deve interpretar, elaborar e criar direito, enquanto o judiciário deve buscar efetuar decisões coerentes em casos concretos individuais. As cortes constitucionais não possuem, portanto, a tarefa de dar significado ao texto constitucional e, principalmente, não podem imiscuir-se no sistema de direito. Elas devem apenas velá-lo.287
Conforme destaca o próprio FRANÇOIS OST esse modelo se aproxima
mais do Juiz-Hércules de DWORKIN:
Si Júpiter se humaniza, Hércules podría también, a la inversa, alejarse – al menos parcialmente – de su humana condición y elevarse a cualquier forma de racionalidad superior. Es exactamente por esta vía por la que camina el Hércules de Dworkin, este juez racional que <<toma los derechos fundamentales en serio>>, que domina el <<imperio del Derecho>>, que se consagra en toda ocasión, y particularmente en los <<casos difíciles>>, a encontrar la <<respuesta correcta>> que se impone. 288
285 CAMPILONGO. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, 2002, p. 54. 286 Cf. RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos, 2010, p. 51. 287 POGREBINSCHI, Thamy. Ativismo Judicial e Direito: Considerações sobre o debate contemporâneo, Revista Direito, Estado e Sociedade. n . 17, ago-dez de 2000. Rio de Janeiro: PUC, p. 135. 288 OST. Júpiter, Hércules, Hermes: três modelos de juez, 1993, p. 180.
112
Os valores, aqui, serão tidos na sua dimensão metafísica. Eles estariam
pressupostos no processo de comunicação do direito, sendo capazes de orientar,
objetivamente, as decisões. Daí, a baixa criatividade atribuída a esse modelo de juiz.
(iv) “Juiz-político”: alta independência e alta criatividade.
Nesse tipo ideal combina-se a não subordinação do Judiciário aos demais
Poderes e a liberdade de criação do direito. Aqui, a decisão judicial ocupa um lugar
importante no centro do sistema jurídico. E o juiz surge como um agente político, na
medida em que as suas decisões são vistas como intervenções na realidade social.
Trata-se de um modelo pós-moderno que nasce diante da constatação de
que a interpretação da linguagem jurídica é inesgotável e que a atividade do juiz,
assim como a de outros órgãos estatais, é responsável por canalizar as informações
provenientes de outros subsistemas sociais. FRANÇOIS OST ao descrever as
características do “Juiz-Hermes”, que em muito se aproxima deste modelo do Juiz-
político, refere-se ao direito em forma de rede. Expõe o autor:
Si la montaña o la pirámide convenían a la majestad de Júpiter, y el embudo al pragmatismo de Hércules, en cambio, la trayectoria que dibuja Hermes adopta la forma de una red. No tanto un polo ni dos, ni incluso la superposición de los dos, sino una multitud de puntos en interrelación. Un campo jurídico que se analiza como una combinación infinita de poderes, tan pronto separados como confundidos, a menudo intercambiables; una multiplicación de los actores, una diversificación de los roles, una inversión de las réplicas. Tal circulación de significados e informaciones no se deja ya contener en un código o en un dossier; se expresa bajo la forma de un banco de datos. El Derecho postmoderno, o Derecho de Hermes, es una estructura en red que se traduce en infinitas informaciones disponibles instantáneamente y, al mismo tiempo, difícilmente matizables, tal como puede serlo un banco de datos.289
São necessários, porém, alguns cuidados na utilização do termo
“criatividade”, pois alguns o empregam numa acepção mais ampla do que aquela
relacionada ao próprio conceito de interpretação. São os defensores do
“Pragmatismo Jurídico” –“Ativismo Jurídico”–, que valorizam os interesses, em
289 OST. Júpiter, Hércules, Hermes: três modelos de juez, 1993, p. 172.
113
detrimento dos conceitos.290 No próximo item, restará evidenciado que o
denominado juiz ativista se encontra desvinculado do texto normativo e não promove
a evolução do sistema jurídico.
Deve-se reconhecer a alta criatividade do juiz dentro da extensão da
atividade interpretativa. MAURO CAPPELLETTI ressalta que o problema não está
em aceitar a criatividade do juiz, pois esta é inerente à atividade de interpretação. A
questão é saber os limites dessa criatividade. Segundo ele: “O verdadeiro problema,
portanto, não é o da clara oposição, na realidade inexistente, entre os conceitos de
interpretação e criação do direito. O verdadeiro problema é outro, ou seja, o do grau
de criatividade e dos modos, limites e aceitabilidade da criação do direito por obra
dos tribunais judiciários”. 291
Assim, se o ato de criação é proveniente da aplicação da norma geral e
abstrata que, por sua vez, é produto de uma interpretação, dever-se-á, num primeiro
momento, considerar o ambiente de ordem sintática da linguagem jurídica.
Conforme explica FRANÇOIS OST: “Se verá entonces que el sentido producido de
la red no es totalmente imprevisible, porque siempre hay textos a interpretar.”292Para
tanto, vale revisitar todos os alertas que foram feitos no capítulo anterior com relação
à interpretação jurídica, para que o juiz, como observador de primeira ordem que é,
não seja causador de mais variações que o sistema jurídico pode suportar.
Diga-se o mesmo com relação à independência do juiz diante do Poder
Legislativo. Não agir subordinado ao Legislativo não quer dizer que o juiz deverá
desconsiderar a lei. Preleciona LOURIVAL VILANOVA: “Sem o agente legislativo, o
juiz seria legislador, o que lhe daria descomedido poder. Ou julgaria sem norma, o
que lhe proporcionaria descomedido arbítrio.”293 Legislador e juiz são participantes
de um processo comunicativo que, em razão de se utilizar um texto escrito, não será
fisicamente simultâneo, mas nem por isso identificável.
290 Cf. POGREBINSCHI, Thamy. Ativismo Judicial e Direito: Considerações sobre o debate contemporâneo, 2000, p. 122. 291 CAPPELLETTI. Juízes legisladores? 1993, p. 21. 292 OST. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez, 1993, p. 183. 293 VILANOVA. O Poder de Julgar e a Norma. Escritos Jurídicos e Filosóficos, volume (1). Escritos Jurídicos e Filosóficos. São Paulo: Axis Mundi, Ibet, 2003, p. 355.
114
Assim, as características de criatividade e de independência do juiz
devem partir do paradigma do Estado de Direito. Não se pode, portanto, confundir
“criatividade” com “subjetivismo particular do magistrado”, nem “independência” com
“autocracia” do Poder Judiciário. Observadas essas condições e lembrando que o
termo “político” não se confunde com atuações partidárias, entende-se que o modelo
do “Juiz-Político” é o mais adequado ao sistema jurídico.
3.3.1 Juiz-Político e Ativismo Judicial
Sabe-se que a neutralidade e a imparcialidade do juiz são características
garantidas por aquelas sociedades que sobrelevam em seus ordenamentos jurídicos
a manutenção do Estado de Direito. CELSO FERNANDES CAMPILONGO é
categórico ao afirmar: “[...] o Poder Judiciário cunhou a imagem de um Poder Neutro
e imune às influências políticas, econômicas ou de qualquer outra natureza que
pudessem corromper sua fidelidade interior aos sistemas normativos.”294 Assim,
ainda que não haja correspondência com a realidade, explica o autor que o
liberalismo político identificou o Judiciário como “[...] uma organização burocrática e
fechada a pressões de seu ambiente externo.”295
Conforme já foi dito acima, cada participante do processo judicial
assumirá com impessoalidade o papel institucionalizado pelo sistema. LOURIVAL
VILANOVA entende que esse é um distanciamento necessário para a legitimação da
decisão final:
Quando o juiz julga, quando o tribunal sentencia, unipessoal ali, pluripessoal aqui, o julgador, em rigor, é o Estado, ou para indicar que este não se destaca como ser por si suficiente, em rigor, dizemos, é a comunidade-Estado que emite o julgamento. A personalidade do Estado absorve a pessoalidade que vincula inquebrantavelmente o ato ao seu emitente. A sentença despreende-se do julgador, no que tem ele de individualíssimo sujeito, comprometido existencialmente aqui e agora, no contexto familiar, no contexto grupal, na ambiência de conceitos e desconceitos, de ideais e ideologias que se condensam, é certo, em grupos, mas
294 CAMPILONGO. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, 2002, p. 27. 295 Ibid., p. 27.
115
representam espessa e compacta capa de convicções que se espalham por todos os indivíduos.296
NIKLAS LUHMAN diz que, na garantia da diferenciação do sistema
judicial, é imprescindível a existência de dois pontos: (i) canalização e controle das
influências sociais por meio da legislação; e (ii) impedimento expresso pelo
ordenamento de que o juiz considere os outros papéis que ele exerce.297
No primeiro caso, explica o autor que o juiz deve reconhecer que é a
legislação que fará a canalização e o controle das influências sociais, em contato
direto com o entorno do sistema, cabendo ao juiz construir a sua interpretação a
partir desses textos, como um “estranho”. Já no segundo, a neutralização do juiz
deverá ser imposta expressamente pelo próprio sistema. Vale transcrever suas
palavras:
Para a outra instituição, o papel do juiz tem de ser diferenciado. Ele tem, por outras palavras, de ser eximido da consideração dos outros papéis que o podem motivar para decisões definidas como membro duma determinada família ou camada social, duma igreja ou seita, dum partido, dum clube, dum bairro. Se esta isenção for institucionalizada como obrigação para um parecer objetivo e imparcial, com o tratamento de todos os assuntos com igualdade e apartidarismo, então neutralizam-se as relações particulares para com a pessoa do decisor.298
No entanto, não se entende mais possível sustentar (e defender!) a
neutralidade do Juiz como a sua total blindagem às questões presentes no ambiente
externo ao sistema do direito. Há que se perceber a possibilidade de uma atuação
política do juiz, por meio da interpretação, sem que com isso haja a corrupção dos
códigos entre os diversos subsistemas sociais.
Essa atuação equilibrada é um ponto difícil de encontrar nas diversas
teorias jurídicas surgidas no decorrer da história. Pois, se, por um lado, a tentativa
de “exorcizar” o denominado formalismo do ato da decisão judicial, entendido como
296 VILANOVA. O Poder de Julgar e a Norma. Escritos Jurídicos e Filosóficos, volume (1), 2003, p. 357. 297 LUHMANN. Legitimação pelo procedimento, 1980, pp. 56-59. 298 Ibid., p. 57.
116
a aplicação mecânica da norma jurídica, fez surgir “assombrações” bem mais
amedrontadoras; por outro lado, a luta pela defesa do formalismo gerou uma
cegueira às importantes demonstrações realizadas por teorias do direito que
rejeitam o formalismo, mas respeitam a autonomia do direito. Sobre as teorias que
surgiram movidas por uma “revolta” ao formalismo, discorre MAURO CAPPELLETTI:
Em todas as suas expressões, o formalismo tendia a acentuar o elemento da lógica pura e mecânica no processo jurisdicional, ignorando ou encobrindo, ao contrário, o elemento voluntarístico, discricional, da escolha. Típico de todas essas revoltas – representadas por várias escolas de pensamento, como a sociological jurisprudence e o legal realism nos Estados Unidos, a Interessenjurisprudenz e a Freirechtsschule na Alemanha, e o método da libre recherche scientifique de François Gény e de seus seguidores em França – foi, ao contrário, o reconhecimento do caráter fictício da concepção da interpretação, de tradição justiniana e montesquiana, como atividade puramente cognoscitiva e mecânica e, assim, do juiz como mera e passiva “inanimada boca da lei”.299
O “ativismo judicial” está entre essas reações ao formalismo. Herdeiro do
realismo jurídico que surgiu a partir da década de vinte do século passado nos
Estados Unidos, o ativismo judicial também vai sobrelevar a prática judicial diante
das disposições legais, num movimento em total oposição ao formalismo.300
THAMY POGREBINSCHI destaca a diversidade de definições de ativismo
judicial e propõe três características de um juiz ativista: “Consideraremos ativista o
juiz que: a) use o seu poder de forma a rever e contestar decisões dos demais
poderes do estado; b) promova, através das suas decisões, políticas públicas; c) não
considere os princípios da coerência do direito e da segurança jurídica como limites
à sua atividade.”301
No entanto, são necessários alguns cuidados ao se defender a figura do
juiz ativista, uma vez que ele encontra as suas bases no modelo americano e inglês
da comon law o que prejudica a sua adoção em regimes de civil law, como é o caso
do Brasil. O modelo do juiz ativista é visto por muitos como uma invasão do
299 CAPPELLETTI. Juízes legisladores? 1993, p. 21. 300 Cf. RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos, 2010, p. 29. 301 POGREBINSCHI. Ativismo Judicial e Direito: Considerações sobre o debate contemporâneo, 2000, p. 122.
117
Judiciário em esferas pertencentes a outros poderes e até mesmo a outros
subsistemas sociais.
ELIVAL DA SILVA RAMOS contrapõe o ativismo judicial ao Estado de
Direito e destaca a necessidade de observância ao princípio da separação dos
poderes, nos seguintes termos: “Ao se fazer menção ao ativismo judicial, o que se
está a referir é à ultrapassagem das linhas demarcatórias da função jurisdicional, em
detrimento principalmente da função legislativa, mas, também, da função
administrativa e, até mesmo, da função de governo.”302
Adotando-se o modelo do Juiz-Político e partindo-se da teoria sistêmica
luhmaniana, coloca-se a seguinte questão: “Como descrever um juiz sensível às
questões políticas, econômicas, morais etc. que, ao mesmo temo, garanta a
imparcialidade, a legalidade e a não confusão de papéis?”. CELSO FERNANDES
CAMPILONGO salienta que é justamente desse paradoxo que surge a função
política do magistrado: “(...) o juiz deve, necessariamente, decidir e fundamentar sua
decisão em conformidade com o direito vigente; mas deve, igualmente, interpretar,
construir, formular novas regras, acomodar a legislação em face das influências
políticas”.303
Ao fazer uma defesa do Juiz-Político que atua dentro do Estado de
Direito, o autor supracitado explica que a politização do juiz não se confunde com a
partidarização da jurisdição, pois essa é a submissão da vontade do juiz à vontade
de grupos políticos, o que gera uma imparcialidade prejudicial à consistência do
sistema jurídico.304 Tampouco se quer relacionar a atitude política do juiz com a
contestação ou a negação da lei, mas apenas sobrelevar que o modelo do Juiz-
Político é o que mais se coaduna com a visão da hermenêutica atual, no momento
em que se evidencia que não há um caráter absoluto na “certeza do direito”, ou seja,
não há univocidade na interpretação da lei.
Assim, é necessário que o juiz promova a observação heterorreferente
sem que se confunda o seu papel com o do político, ou seja, sem que ele saia do
302 RAMOS. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos, 2010, p. 116. 303 CAMPILONGO. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, 2002, p. 61. 304 Ibid., pp. 57-63.
118
sistema jurídico. Trata-se da abertura cognitiva que precisa conviver com o
fechamento operativo. É preciso olhar pelas “janelas de comunicação”, sem sair de
casa.
Conforme evidenciado, será o próprio Poder Legislativo que possibilitará a
heterorreferência na interpretação realizada pelo juiz, ao criar leis com signos vagos
e indeterminados e ao registrar suas intenções por meio dos valores. Explicam LUIZ
WERNECK VIANNA, MARCELO BAUMANN BURGOS e PAULA MARTINS
SALLES: “Tal caráter indeterminado, nas controvérsias sobre a sua interpretação em
casos concretos, põe o juiz na situação nova de um legislador implícito, com as
naturais repercussões desse seu inédito papel na vida republicana e,
particularmente, nas relações entre os Três Poderes.”305
Assim, a criação de vários canais (“janelas de comunicação”)
estabelecidos com os outros subsistemas sociais por meio da interpretação jurídica,
a impossibilidade de revisão das decisões judiciais pelos outros poderes e a
atribuição dada ao Judiciário para realizar o controle da constitucional contribuem
para que a sociedade atribua ao juiz a imagem de “Oráculo da Justiça”.
É preciso, por esse motivo, ter muito cuidado com a defesa de um “Juiz
Ativista”, como um “Justiceiro”, que, imbuído das melhores intenções, vai garantir a
aplicação dos valores mais sublimes do ser humano. Em muitos casos, os caminhos
que aparentemente levam ao céu podem ser os mesmos que levam ao inferno.
O juiz não poderá decidir à margem da referência interna do direito,
levando em conta apenas heterorreferências.306 O controle da observância desses
limites só poderá ser feito a partir da análise da fundamentação presente na decisão
judicial. Adianta-se: sua decisão deve estar fundamentada no ordenamento jurídico,
ainda que seja vago, contraditório e omisso. Caso isso não ocorra, não haverá
autodescrição. Haverá corrupção dos códigos intersistêmicos e enfraquecimento do
Estado de Direito.
305 VIANNA; BURGOS; SALLES. Dezessete anos de judicialização da política. Revista de sociologia da USP. São Paulo, v. 19, n. 2, p. 40. 306 Cf. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, 2002, pp. 61-63.
119
3.4 DECISÃO JUDICIAL
O procedimento judicial se desenvolve com vistas a alcançar a decisão
judicial. Esta, por sua vez, será apresentada como uma consequência dos fatos e
das normas relacionados à comunicação estabelecida no interior do procedimento
judicial, que, uma vez proferida, deverá, nas palavras de NIKLAS LUHMANN, ser
considerada como premissa de comportamento para os participantes do processo
comunicacional.307
A decisão judicial ser considerada como obrigatória na tomada de novos
comportamentos é o resultado que se espera ao se institucionalizar, nas sociedades
complexas, os conflitos e os procedimentos decisórios. Almeja-se que os conflitos
que motivaram o início e o desenvolvimento do processo judicial “terminem” com o
ato da decisão judicial. A solução dos conflitos não surgirá com o alcance, pela
decisão, da harmonia e do consenso entre os participantes, mas com a fixação do
termo final da comunicação desenvolvida no processo judicial. Elucida TÉRCIO
SAMPAIO FERRAZ JUNIOR: “A institucionalização do conflito e do procedimento
decisório confere aos conflitos jurídicos uma qualidade especial: eles terminam. Ou
seja, a decisão jurídica é aquela capaz de lhes pôr um fim, não no sentido de que os
elimina, mas que impede sua continuação. Ela não os termina por meio de uma
dissolução, mas os soluciona, pondo-lhes um fim.”308
Observa-se que a decisão judicial concluirá uma etapa do processo
comunicativo, no momento em que o juiz produz expressamente o “ato de entender”
da comunicação. A partir daí podem ser instaurados (e são) outros processos
comunicativos, porque “comunicação gera comunicação”. A análise da decisão
judicial permitirá a análise do processo interpretativo desenvolvido pelo juiz e
registrado por meio da argumentação jurídica.
A decisão judicial é vista pela dogmática jurídica tanto no aspecto formal,
quanto no aspecto material. No primeiro caso, temos a decisão como veículo
307 LUHMANN. Legitimação pelo procedimento, 1980, pp. 91-92. 308 FERRAZ JR. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão e dominação, 2008, p. 289.
120
introdutor (enunciação-enunciada), ou seja, como norma introdutora. Já no segundo
caso,a decisão pode ser vista pelo conteúdo do veículo, como norma individual e
concreta.309 Neste último caso, afirma TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM que se
estará diante de enunciados-enunciados:
(...) percebemos que uma das características da função jurisdicional é demonstrar, no produto de sua atividade, a aplicação do direito tanto no que concerne às normas de produção jurídica (veículo introdutor) quanto no que diz respeito ao enunciado-enunciado. (...) Em outros termos: pelo resultado do exercício da competência jurisdicional vislumbramos duas espécies de aplicação de normas jurídicas: a aplicação localizada no veículo introdutor e a aplicação localizada no enunciado-enunciado.310
PAULO CESAR CONRADO conceitua tutela jurisdicional destacando a
norma individual e concreta presente no conteúdo do veículo introdutor, por ser ela
a resposta ao conflito intersubjetivo que originou o procedimento judicial, in verbis:
Tutela jurisdicional, guardadas tais observações, é: (i) o ato-fim do processo, (ii) produzido pelo órgão que responde à missão jurisdicional (Estado-juiz), (iii) tendo por objetivo a composição do conflito traduzido no ato-início do processo. Ademais dessas três vertentes conceptuais, possível identificar, naquilo que estamos a chamar de tutela jurisdicional, um’a outra (valiosíssima) particularidade: sua face normativa. Lembre-se: (i) o fato jurídico ensejador da relação processual (o conflito), embora constituído por instrumento de linguagem (petição inicial, v.g.) que não se aporta no “direito material”, a ele sempre se referirá – o processo não é um fim em si mesmo; (ii) derivando, assim, do “direito material”, nele próprio encontrará sua razão, vale dizer, a produção de norma individual e concreta (de “direito material”). Pois é justamente tal norma (individual e concreta) que encarna a noção de tutela jurisdicional.311
Voltando-se ao para o aspecto do conteúdo de uma decisão judicial,
destaca-se o que prescreve o art. 458 do Código de Processo Civil sobre os
requisitos que devem ser observados numa sentença:
Art. 458. São requisitos essenciais da sentença:
309 Excepcionalmente, encontra-se no interior da decisão norma geral e concreta, como é caso de controle de constitucionalidade concentrado. 310 MOUSSALLEM. Fontes do direito tributário, 2001, pp.160-161. 311 CONRADO. Processo tributário, 2007, p. 139.
121
I. o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;
II. os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;
III. o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes lhe submeterem.
Como neste trabalho interessa observar a observação do juiz, a parte do
conteúdo das sentenças que ganhará maior destaque será a referente aos
fundamentos. Ali estará a argumentação jurídica, que exporá a interpretação jurídica
construída pelo magistrado. E fornecerá elementos, para que, por meio de uma
observação de terceira ordem, se diga se ocorreu ou não a corrupção dos códigos
entre os sistemas sociais.
3.5 INCIDÊNCIA JURÍDICA E A PERMANÊNCIA DO SILOGISMO NA
DECISÃO JUDICIAL
A norma individual e concreta, ou geral e concreta, encontrada no
conteúdo da decisão judicial, é produto da aplicação da norma geral e abstrata,
construída a partir dos enunciados prescritivos vigentes no ordenamento jurídico. A
partir do movimento do Giro Linguístico, entende-se que o momento da incidência da
norma jurídica se dará no mesmo átimo do da aplicação. Isso porque a incidência
entendida, sob o prisma lógico, como a soma de duas operações formais– uma da
subsunção e outra da implicação– só se dará na produção da linguagem
competente produzida pelo aplicador.
Nesse sentido, a incidência de uma norma jurídica não se dará
automática e infalivelmente, como supunham as teorias tradicionais. Para que haja
incidência, é necessário que haja a aplicação (produção de linguagem) pelo
participante do processo comunicacional, autorizado para tanto. Nas palavras de
PAULO DE BARROS CARVALHO: “Em rigor, não é o texto normativo que incide
sobre o fato social, tornando-o jurídico. É o ser humano que, buscando fundamento
de validade em norma geral e abstrata, constrói a norma jurídica individual e
122
concreta, na sua bimembridade constitutiva, empregando, para tanto, a linguagem
que o sistema estabelece como adequada, vale dizer, a linguagem competente.”312
É por meio da incidência que se dará a concretização das normas e se
buscará o condicionamento das condutas intersubjetivas prescritas no ordenamento.
O autor supracitado recorda que, para efeitos analíticos, é possível destacar os dois
momentos lógicos que se operam na incidência da norma:
Percebe-se, portanto, que a chamada “incidência jurídica” reduz-se, pelo prisma lógico, a duas operações formais: a primeira, a subsunção ou inclusão de classes, em que se reconhece que uma ocorrência concreta, localizada em determinado ponto do espaço social e em específica unidade de tempo, inclui-se na classe dos fatos previstos no suposto da norma geral e abstrata; outra, a segunda, de implicação, porquanto a fórmula normativa prescreve que o antecedente implica a tese, vale dizer, o fato concreto, ocorrido hic et nunc, faz surgir uma relação jurídica também determinada, entre dois ou mais sujeitos de direito.313
Voltando o olhar para o primeiro momento da incidência, o da subsunção,
identificar-se-á que aqui residem as críticas sobre a afirmação de que o ato decisório
seria um ato mecânico de dedução. Apesar de se concordar com os críticos de que
o ato de decisão não é um ato de dedução, é preciso filtrar essas colocações, para
pontuar que o silogismo não é suficiente para se promover a interpretação jurídica,
mas é a forma utilizada na decisão judicial para demonstrar a incidência normativa
viabilizada pelo observador de primeira ordem.
Por silogismo se entende a dedução (conclusão) feita a partir do cálculo
da premissa maior e da premissa menor. DIMITRI DIMOULIS explica que a
aplicação do silogismo jurídico está fundamentada na operação de subsunção do
fato à norma. A premissa maior é a norma geral e abstrata; a premissa menor, o fato
concreto; e a conclusão, a norma individual e concreta.314
Certo é que, com base nos estudos efetuados no Capítulo 2 deste
trabalho, não há como imaginar incidência jurídica sem interpretação. Haverá
312 CARVALHO. Direito tributário, linguagem e método, 2008, p. 588. 313 Ibid., p. 588. 314 DIMOULIS. Manual de introdução ao estudo do direito, 2007, p. 94.
123
interpretação tanto na construção da norma (premissa maior), quanto na avaliação
probatória para a construção do fato (premissa menor).
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR. ressalta que a construção da premissa
maior no ato de decisão é extremamente difícil, uma vez que, segundo ele, “a
hipótese normativa não é uma simples descrição abstrata e genérica de uma
situação concretamente possível, mas traz em si elementos prescritivos.”315 Tais
elementos deverão ser interpretados levando em conta todas as possibilidades e
todos os limites descritos no capítulo anterior. Só após, ter-se-á a qualificação
jurídica como premissa maior.
No entanto, apesar de exaustiva tal atividade, ela não será suficiente na
construção da norma geral e abstrata para que haja a subsunção. Será também
imprescindível a construção dos fatos, por meio das provas,que, como ensina
FABIANA DEL PADRE TOMÉ, exige um procedimento próprio:
Não podemos esquecer que provar significa enunciar um fato, constituindo-o na realidade jurídica. Esse processo probatório há de seguir, necessariamente, o trâmite legalmente prescrito, que denominamos procedimento organizacional da prova, composto pelo conjunto e regras que regulam a admissão, produção e valoração dos elementos levados aos autos, determinando o transcurso probatório.316
Dessa forma, não há como atribuir à subsunção o automatismo lógico da
dedução, negando ao ato judicial decisório o seu poder criativo. Daí LOURIVAL
VILANOVA afirmar que se pedia “... à Lógica, ou se justificava com a Lógica o que a
Lógica não podia dar”, negando que a decisão judicial seja produto de um silogismo:
(...) quando os juristas da escola dogmática da exegese pensavam que somente com a Lógica o juiz podia decidir os casos controvertidos da vida cotidiana, não procediam como Mr. Jourdan, que fazia prosa sem o saber: acreditavam fazer Lógica, mas faziam outra coisa sem o saber. Faziam interpretação e aplicação do Direito positivo, que se não consomem no formal do silogismo, sem valorações e sem referências à realidade social subjacente.317
315 FERRAZ JR. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação, 2008, p. 293. 316 TOMÉ, Fabiana Del Padre. A prova no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2005, p. 68. 317 VILANOVA. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, 1997, pp. 322 e 325.
124
No entanto, ainda que se evidencie a insuficiência do silogismo jurídico na
produção da decisão judicial, sempre haverá uma alusão silogística na decisão
judicial para demonstrar que houve incidência jurídica. Isso faz lembrar EURICO
MARCOS DINIZ DE SANTI, que ao, parafrasear ANDRÉ COMTE-SPONVILLE, diz:
“a Lógica não é tudo, é quase nada, mas o homem também é quase um animal.”318
Mesmo que o julgador omita algumas premissas maiores, o texto da
decisão será estruturado em forma de silogismo, e a conclusão será apresentada
como uma dedução. Embora defensora do entimema, KATHARINA SOBOTA
reconhece o caráter persuasivo dos silogismos, presentes na retórica do discurso
racionalmente fundamentado. Afirma a autora alemã:
(...) o conceito de silogismo não é meramente uma ilusão. Ele é uma ilusão com efeitos poderosos sobre a realidade. O silogismo é uma das idéias subjacentes mais fortes dentro do pensamento ocidental e do processo decisório jurídico e, desse modo, ele molda o discurso jurídico, por vez a tal ponto que se confunde com a própria realidade – como se a argumentação jurídica fosse silogística.319
Por sua vez, NEIL MACCORMICK faz a seguinte defesa ao uso do
silogismo: “O que precisa ser entendido é que o silogismo desempenha um papel
estruturante fundamental no pensamento jurídico, ainda que este não seja exaurido
por essa estrutura apenas. A lógica formal e a dedução importam no Direito.”320 É o
silogismo que dará a moldura a partir da qual os outros argumentos terão utilidade
como argumentos jurídicos.
Dessa forma, ainda que o silogismo jurídico não seja suficiente na
produção da decisão judicial (e não é!) é necessário reconhecer que a sua
permanência no discurso jurídico tem muita utilidade na análise da interpretação
jurídica. Tal reconhecimento, porém, não leva à defesa do formalismo e da teoria
mecanicista do direito, ou mesmo à limitação da criatividade judicial, pois, ao lado da
318 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Decadência e prescrição no direito tributário. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 55. 319 SOBOTA, Katharina. Não mencione a norma!. Tradução de João Maurício Adeodato. Anuário do Mestrado da Faculdade de Direito do Recife, n. 7. Recife: UFPE, 1996, pp. 251-273. 320 MACCORMICK. Retórica e o Estado de Direito, 2008, p. 44.
125
estrutura silogística da aplicação,está a complexidade que é a interpretação jurídica
e a comunicação.
3.6 FUNDAMENTO DA DECISÃO JUDICIAL: EXPLICAÇÃO “DO
PORQUÊ” OU JUSTIFICATIVA “DO COMO”?
Partindo da diferença entre contexto da descoberta e contexto de
justificação das teorias científicas, MANUEL ATIENZA ensina que, numa decisão
judicial, se pode encontrar a explicação do por que se chegou a uma determinada
conclusão, como também se pode (e se deve!) encontrar a justificativa de como se
chegou a determinada conclusão, ipsis litteris: “(...) uma coisa é o procedimento
mediante o qual se estabelece uma determinada premissa ou conclusão, e outra
coisa é o procedimento que consiste em justificar essa premissa e conclusão.” O
primeiro seria um procedimento explicativo; já o segundo, justificativo. Exemplifica o
autor:
Se considerarmos o argumento que conclui afirmando ser “necessário alimentar à força os detentos do GRAPO”, a distinção pode ser traçada entre as causas psicológicas, o contexto social, as circunstâncias ideológicas etc. que levaram um determinado juiz a emitir essa resolução, e as razões dadas pelo órgão em questão para mostrar que a sua decisão é correta ou aceitável (que está justificada). Dizer que o juiz tomou essa decisão devido às suas fortes crenças religiosas significa enunciar uma razão explicativa; dizer que a decisão do juiz se baseou num determinada interpretação do art. 15 da Constituição significa enunciar uma razão justificadora.321
Partindo dessa distinção, pode-se afirmar que os juízes e os tribunais no
Brasil não precisarão explicar as suas decisões, mas justificá-las. Essa é a
determinação do art. 93, IX da CF/88: “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder
Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade
[...].” Nessa linha, o art. 165 do Código de Processo Civil estabelece que: “as
321 ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy Editora, 2006, p. 20.
126
sentenças e acórdãos serão proferidos com observância do disposto no art. 458; as
demais decisões serão fundamentadas, ainda que de modo conciso.”
Não é outro o entendimento de DIMITRI DIMOULIS, para o qual os juízes
não devem ser guiados pelas suas preferências, devendo com isso sempre
apresentar a justificativa das suas decisões: “Por sua parte, os juízes não podem
decidir segundo suas preferências. Devem sempre justificar sua opção com
argumentos racionais, que possam convencer os cidadãos. A fundamentação das
decisões do Judiciário constitui obrigação constitucional (...).”322
Numa visão da teoria sistêmica desenvolvida no capítulo anterior, não
bastaria a explicação como fundamentação, porque isso só evidenciaria as
intenções (interesses) do legislador e do juiz. Mas não permitiria reconhecer a
construção da informação pelo observador-juiz. Ou seja, só evidenciaria uma das
partes do “ato de entender” alcançado pela comunicação. No fundamento está a
demonstração do trajeto da interpretação das informações e do ato de comunicar,
nos termos expostos no capítulo anterior.
Com isso não se quer dizer que o juiz não terá “intenções” na tomada de
decisão, chegando até, como sugerem alguns autores, a privilegiá-las em detrimento
dos conceitos jurídicos, configurando o seguinte adágio: “Primeiro o juiz decide, só
depois ele busca fundamentos para sua decisão”. Mas ainda que isso ocorra (e intui-
se que ocorre!), não se tem como alcançar a consciência do observador-juiz no
processo da comunicação jurídica. E se a consciência não será alcançada na
comunicação social, porque se perderia tempo tentando desvendá-la?
O juiz não poderá apenas registrar as suas intenções, sob pena de não
permitir a autorreferência fundamental na observação. Assim, ainda que essa não
tenha sido determinante na sua interpretação, ele deverá, ao menos, registrar que
houve autorreferência. Em outros termos, MANUEL ATIENZA pondera: “É possível
que, de fato, as decisões sejam tomadas, pelo menos em parte, como eles sugerem,
isto é, que o processo mental do juiz vá da conclusão às premissas e inclusive que a
322 DIMOULIS. Manual de introdução ao estudo do direito, 2007, p. 184.
127
decisão seja, sobretudo, fruto de preconceitos; mas isso não anula a necessidade de
justificar a decisão e tampouco converte essa tarefa em algo impossível.”323
A necessidade de explicitar as justificativas das suas interpretações
jurídicas, mesmo em caso de omissões legislativas, é a grande diferença entre as
decisões tomadas pelo juiz e as decisões tomadas por outros órgãos estatais, como
pontua ELIVAL DA SILVA RAMOS:
(...) mesmo nos casos em que há amplo espaço para a movimentação do juiz, por inexistir precedente aplicável ou por existir um texto legislativo vazado em linguagem da qual decorram conceitos amplos e indeterminados, não se comportam os órgãos de jurisdição como um autêntico legislador, tanto mais que estão compelidos, ao contrário deste, a justificar suas decisões, o que fazem lançando mão de argumentação técnico-jurídica (escolha de método de interpretação adequado, integração por meio de princípios gerais de direito ou analogia etc.).324
Partindo do conceito de razão como símbolos construídos pelo
observador (de terceira ordem) para representar as redundâncias no sistema,
concordar-se-á com a colocação de NIKLAS LUHMANN de que, para que haja a
manutenção da autopoiese do direito, será necessário que a fundamentação da
decisão judicial venha preenchida por “boas razões”.325 Em outras palavras, que o
juiz mantenha a consistência do sistema jurídico, por meio das operações de
autorreferência.
3.7 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA NA DECISÃO JUDICIAL
A Teoria da Argumentação vem ganhando maior atenção da Ciência do
Direito nas últimas cinco décadas. Entre os autores mais referenciados sobressaem
os seguintes: CHAÏM PERELMAN, MANUEL ATIENZA, NEIL MACCORMICK,
ROBERTO ALEXY, STEPHEN E. TOULMIN e THEODOR VIEHWEG.
323 ATIENZA. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica, 2006, p. 23. 324 RAMOS. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos, 2010, p. 109. 325 LUHMANN. El derecho de la sociedad, 2005, p. 437.
128
Relata-se que a teoria da argumentação surgiu como uma reação à visão
positivista propagada, especialmente, por HANS KELSEN, que, segundo os seus
críticos, via a atividade jurisdicional como operações lógico-dedutivas.326 Os
pioneiros no renascimento das ideias de ARISTÓTELES e CÍCERO, no que tange
ao estudo da Retórica, são THEODOR VIEHWEG, com a primeira edição da obra
Tópica e Jurisprudência327 datada de 1953, e CHAÏM PERELMAN, com a primeira
edição em 1958 da obra Tratado da Argumentação328, escrita em colaboração com
OLBRECHT-TYTECA.
Como ensina MANUEL ATIENZA, a utilização de argumentos no discurso
jurídico pode ser analisada em três momentos distintos: (i) momento da produção
das normas gerais e abstratas; (ii) momento da aplicação da norma jurídica; e (iii)
momento da produção da dogmática jurídica.329
Na produção das normas gerais e abstratas, é possível distinguir os
argumentos utilizados no momento pré-legislativo daqueles utilizados no momento
legislativo. Aqueles representam a opinião pública, e estes as questões ligadas à
técnica legislativa, discutida pelos órgãos legislativos. Já no momento da aplicação
da norma jurídica, realizada pelos juízes, pelos órgãos administrativos e, algumas
vezes, pelo próprio particular, os argumentos referem-se tanto aos fatos quanto à
interpretação do direito. Por último, no momento da produção da dogmática jurídica,
os argumentos não vão se diferenciar dos utilizados pelos aplicadores do direito,
com a diferença que a Ciência do Direito trabalhará com situações abstratas.
No presente trabalho, interessam os argumentos utilizados na decisão
judicial para fundamentar o “ato de entender” a que chegou o juiz na comunicação
realizada no processo judicial. Recorda-se que, com base na Teoria dos Sistemas,
a interpretação jurídica será uma observação de primeira ordem que consiste na
326 Cf. CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 136. 327 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tércio Sampaio Ferraz Junior. Coleção Pensamento Jurídico Contemporâneo. Brasília: Ministério da Justiça, Departamento de Imprensa Nacional, 1979. 328 PERELMAN, Chaïm. Retóricas. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. E obra em coautoria com LUCIE OLBRECHTES-TYTECA, Tratado da Argumentação. Tradução de João Duarte. Lisboa: Instituto Piaget. 329 ATIENZA. As razões do direito: teoria da argumentação jurídica, 2006, pp. 18-19.
129
racionalização do texto jurídico. Já a argumentação estaria numa segunda ordem.
Assim, a análise das argumentações jurídicas registradas na decisão judicial só
seria possível numa observação de terceira ordem (observação das observações
observadas pelos observadores!).330
Diverso do defendido por alguns teóricos, a argumentação jurídica, nessa
acepção, não surgirá apenas nos denominados “casos difíceis”, em que, segundo
eles, a demonstração do simples silogismo não seria suficiente para justificar a
decisão. A argumentação jurídica é a descrição da interpretação realizada pelo
observador de primeira ordem e, em se tratando de decisão judicial, ela será
obrigatória para realizar a fundamentação da decisão. Sendo, inclusive, um
argumento a demonstração do silogismo.
No capítulo anterior, foi visto que a denominada “Jurisprudência de
Conceitos” e a “Jurisprudência de Interesses” podem coexistir sem que, com isso,
haja um desfazimento da unidade concedida ao sistema jurídico. O que se deverá
controlar é a quantidade de variação em face das redundâncias produzidas pelo
intérprete-observador. E isso, em se tratando do observador-juiz, só será possível
por meio da análise da argumentação jurídica utilizada na fundamentação da
decisão judicial.
3.7.1 Classificação dos argumentos como instrumento de controle
da autonomia da comunicação jurídica
Na análise das obras que tratam de argumentação, é possível encontrar
várias propostas para classificar os argumentos. Tais classificações partem de
critérios diferenciadores diversos e, dependendo do enfoque que se queira dar, elas
podem ser utilizadas por várias áreas do conhecimento.
Neste trabalho, será mencionada a diferença entre os “argumentos
formais” e os “argumentos substantivos ou materiais”, proposta por NIKLAS
LUHMANN. O critério diferenciador dessa classificação é a referência na observação
330 Cf. LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad, 2005, pp. 402-471.
130
realizada pelo intérprete-observador. Os argumentos poderão representar uma
observação autorreferente ou uma observação heterorreferente. No primeiro caso
ter-se-á o argumento formal e, no segundo, o argumento substantivo, nos termos
explicado pelo autor:
En sentido muy general se pueden distinguir entre argumentos formales y argumentos sustantivos. Los argumentos formales desembocan en el sistema, en el texto, en los protocolos (por ejemplo: documentos notariales). Estos argumentos formales están destinados a impedir que haya desviaciones respecto de los argumentos objetivos. Per el contrario, los argumentos sustantivos involucran consideraciones que encuentran reconocimiento fuera del sistema (como si se reconocieran dentro del sistema).Con una argumentación formal, el sistema pone en práctica la autorreferencia; con una argumentación sustantiva, la heterorreferencia.331
Tal diferenciação pode ser aproximada das propostas classificatórias de
NEIL MACCORMICK e STEPHEN E. TOULMIN. Abstraindo-se as diferenças que há
entre as teorias classificatórias, a tentativa de criar entre elas conexões tem por
condão fortalecer a demonstração da ocorrência de corrupção entre os códigos
sistêmicos nas decisões judiciais.
NEIL MACCORMICK subdivide os Argumentos Interpretativos em três
grupos: (i) argumentos linguísticos; (ii) argumentos sistêmicos; (iii) argumentos
teleológicos-avaliativos.332 Veja-se o que compreende cada um deles:
Os argumentos lingüísticos (i) estão relacionados ao sentido das palavras,
partindo-se do seu uso na “linguagem ordinária”. Explica o autor que argumentos
desse tipo são frequentemente utilizados pelos juristas acrescidos da expressão
“sentido claro” da lei.333 A expressão “A regra é clara!”, inclusive, passou a ser
utilizada no Brasil em diferentes situações, em razão do jargão que foi cunhado pelo
locutor de futebol Arnaldo Cesar Coelho, quando queria ratificar ou retificar as
atitudes dos árbitros. Argumentos com esse viés estão relacionados aos campos de
investigação sintático e semântico, tratados no capítulo sobre interpretação jurídica.
331 LUHMANN. El derecho de la sociedad, 2005, p. 457. 332 MACCORMICK. Retórica e o Estado de Direito, 2008, pp. 165-166. 333 Cf. MACCORMICK. Neil. Retórica e o Estado de Direito, 2008, pp. 167-169.
131
Já os argumentos sistêmicos (ii) se voltam para o contexto jurídico em
que se encontra o enunciado jurídico objeto de interpretação. Percebe-se que,
enquanto os argumentos linguísticos estão ligados ao uso das palavras numa
linguagem ordinária, os sistêmicos relacionam-se ao contexto da comunicação
jurídica. Estes, por sua vez, são subdivididos pelo autor em argumentos relativos à
harmonização contextual (ii.1); argumentos a partir de precedentes (ii.2);
argumentos por analogia (ii.3); argumentos conceituais (ii.4); argumentos a partir de
princípios gerais (ii.5); argumentos a partir da história (ii.6).334
Por último, os argumentos teleológicos-avaliativos (iii) partem da ideia de
que os valores que precedem à produção da lei têm o condão de orientar não só a
interpretação da lei a que se referem aqueles valores sobrelevados, mas também a
interpretação de outras leis que se subordinam àquela. Trata-se dos argumentos
denominados consequencialistas. Aqui entra a análise de intenções, mormente, a
intenção do legislador.335
Nesta breve análise, percebe-se que os argumentos classificados por
NEIL MACCORMICK de linguísticos e sistêmicos constituem, em sua maioria, os
argumentos denominados formais por NIKLAS LUHMANN. Já os teleológicos-
avaliativos, equivaleriam aos argumentos classificados por este último como
substantivos.
Assim, pode-se concluir que, por um lado, os argumentos linguísticos e
sistêmicos vão representar, em grande medida, as observações autorreferentes, o
que favorece a produção de redundância na comunicação. E, por outro lado, os
argumentos teleológicos-avaliativos vão representar as observações
heterorreferentes, que, por sua vez, favorecem a variação das informações na
comunicação.
Por último, resta referenciar a classificação de STEPHEN E. TOULMIN
que parte de uma “estrutura” prévia, por ele denominada layout de
argumentos.336Tal estrutura, segundo o autor, tem a proposta de ser um pouco mais
334 MACCORMICK. Neil. Retórica e o Estado de Direito, 2008, pp. 169-175. 335 Ibid., pp. 175-182. 336 TOULMIN. Os usos do argumento, 2006, pp. 135-207.
132
complexa do que aquela adotada no silogismo aristotélico, apresentando,
inicialmente, os seguintes elementos: dados, alegação, garantia e apoio. E pode ser
representada, graficamente, da seguinte forma:
O autor adota as seguintes acepções para cada um dos elementos
mencionados acima: (i) alegação é a representação da conclusão cujos méritos se
busca estabelecer no processo comunicacional, que serve tanto para iniciar um
debate, quanto para conclui-lo; (ii) os dados são as razões que dão causa à
alegação e que sejam, como explica MANUEL ATIENZA, “ao mesmo tempo
relevantes e suficientes”;337 (iii) garantia é o enunciado que autoriza a passagem da
razão para a pretensão; e (iv) apoio é o que respalda a emissão da garantia.
Para testar esses conceitos, parte-se de uma alegação hipotética de que
“O estabelecimento ‘A’ deverá pagar R$ 17.000,00 (dezessete mil reais) para o
Estado do Espírito Santo, a título de ICMS”. Veja-se de que forma os argumentos
que embasam essa alegação são apresentados na estrutura proposta por
TOULMIN:
337 ATIENZA. As razões do direito: teoria da argumentação jurídica, 2006, p. 96.
DADOS
("se"):
ALEGAÇÃO
("deve-ser"): (“então”)
GARANTIAS
(“já que”):
APOIOS
(“por conta de”):
133
Com isso, é possível perceber que sob a denominação “garantia” pode-se
incluir informações relacionadas à “premissa maior”— qualificação jurídica— e à
comprovação da “premissa menor” que está mencionada nos “dados”. Já os “apoios”
são compostos pelos argumentos que sustentam as garantias.
Os dados e a alegação estão ligados pelo vínculo implicacional
(se/então). Já a garantia entra como uma confirmação de que há uma relação de
implicação entre os dados e a alegação pressuposta ou, no caso do direito, imposta.
As garantias, segundo TOULMIN, dão a possibilidade de, algumas vezes, usar o
advérbio “necessariamente” e outras vezes de usar modais como “provavelmente” e
DADOS ("se"):
O estabelecimento "A", situado no Estado do Espírito Santo, realizou uma venda de mercadoria num total de R$ 100.000 (cem mil reais) para consumidor localizado no mesmo Estado .
ALEGAÇÃO ("deve-ser"):
O estabelecimento "A" deverá pagar R$ 17.000,00 (dezessete mil reais) para o Estado do Espírito Santo, a título de ICMS.
(“então”)
GARANTIAS (“já que”):
• Há uma norma que diz que, em ocorrendo uma operação de circulação de mercadoria dentro do Estado do Espírito Santo, no momento da saída da mercadoria do estabelecimento comercial (hipótese tributária), deverá ser o pagamento de ICMS, pelo estabelecimento "A" ao Estado do Espírito Santo, o montante de 17% sobre o valor da operação de circulação de mercadoria. • Restou comprovado, por meio da nota fiscal, a ocorrência da operação de venda de mercadoria.
APOIOS (“por conta de”):
• O Estado do Espírito Santo é competente para instituir o ICMS sobre operações de circulação de mercadoria, de acordo com o art. 155, II da CF/88.
• O Estado do Espírito Santo, por meio da lei 7.000/01, prescreve o pagamento do ICMS, informando todos os elementos da regra-matriz de incidência tributária, em consonância com à LC 87/96 e às Resoluções do Senado, conforme exige o art. 155, §2o., XII e o art. 155, IV e V da CF/88
• A venda realizada por "A" configura "operação de circulação de mercadoria".
• A nota fiscal é indicada pela legislação como documento hábil para comprovar que houve a operação de circulação de mercadoria.
134
“presumivelmente”.338 E, por último, o apoio da garantia, que, para o autor, são os
avais “sem os quais nem as próprias garantias teriam autoridade ou vigência.”339
A partir desses elementos, TOULMIN classifica os argumentos em formais
e não-formais. Os argumentos formais são aqueles que sugerem que há uma
relação necessária entre o apoio e a garantia. E os argumentos não-formais são
aqueles que propõem razões de relevâncias externas para respaldar, apoiar, a
utilização de determinada garantia.
Dá a entender que o que para TOULMIN se refere à ligação formal entre
apoio e garantia estaria relacionado ao que foi denominado, neste trabalho, relação
conceitual. E o que ele denomina relevância externa seria o aqui denominado
“intenção”. Assim, é possível perceber as semelhanças entre as propostas de
TOULMIN e de LUHMANN: os argumentos formais de TOULMIN vão favorecer a
autorreferência e os não-formais, a heterorreferência.
Há argumentos, porém, que não favorecem nem as redundâncias
sistêmicas, necessárias para a manutenção da autopoiese, nem mesmo produzem
variações aceitáveis e almejadas para que haja evolução do sistema jurídico. Trata-
se de arbitrariedades.
3.8 DECISÕES ARBITRÁRIAS
Ao se analisarem os argumentos registrados em decisões judiciais, pode-
se perceber que algumas colocações não podem pertencer à classe de argumentos
jurídicos. Não se trata de diferenças entre correntes formais ou pragmáticas. Trata-
se de erros, de arbitrariedades, de confusão entre papéis pessoais e papéis
institucionais. Em razão da importância do tema, vale transcrever as características
de uma decisão arbitrária sistematizadas por GENARO R. CARRIÓ. Segundo ele,
uma arbitrariedade pode ser causada pelas seguintes situações:
(i) quanto à pretensão objeto da decisão:
338 TOULMIN. Os usos do argumento, 2006, p. 144. 339 Ibid., p. 148.
135
(i.1) omissão quanto à resolução ou consideração das pretensões
fixadas no processo judicial; ou
(i.2) resolução de pretensões não apresentadas no processo
judicial;
(ii) Quanto aos fundamentos da decisão:
(ii.1) relacionados à premissa maior:
(ii.1.1) referência a enunciados que não estão nos textos
legislados, indo além da ordem jurídica; ou
(ii.1.2) falta de demonstração das razões que levaram à
desconsideração de textos legais; ou
(ii.1.3) aplicação de dispositivos revogados; ou
(ii.1.4) fundamentação com excessiva amplitude quando há
normas jurídicas diretamente aplicáveis à pretensão;
(ii.2) relacionados à premissa menor:
(ii.2.1) abstração da prova decisiva; ou
(ii.2.2) invocação à prova inexistente; ou
(ii.2.3) contradição evidente a outras instâncias dos autos;
(ii.3) relacionados à passagem das premissas para a conclusão:
(ii.3.1) afirmações dogmáticas; ou
(ii.3.2) uso excessivo de formalismo; ou
(ii.3.3) autocontradição;
(iii) Quanto aos efeitos da decisão:
(iii.1) pretensão de deixar sem efeito as decisões já firmadas.340
Afastando as dificuldades inerentes à tradução, bem como a omissão do
contexto no qual o autor utilizou a apresentação dessas características, é possível 340 CARRIÓ. Notas sobre derecho y lenguaje, 1994, pp. 297-298.
136
perceber que o estudo realizado por CARRIÓ pode ser alinhavado, em grande parte,
com o que se firmou até aqui sobre interpretação e argumentação jurídicas. A
demonstração permite perceber as falibilidades no ato de decidir. E, destaca NEIL
MACCORMICK: “Se o Estado de Direito significa um governo de leis e não dos
homens, ele é impossível de se realizar se a tese de infalibilidade judicial é
verdadeira.”341
O fato de a decisão judicial ser proveniente de um órgão estatal não a
imunizará da demonstração dos erros incorridos pelo seu produtor. Juiz, como
observador-intérprete que é, também erra! O seu papel é institucional e a sua
autoridade não pode implicar autoritarismo. Enfatiza TÁREK MOYSÉS
MOUSSALLEM:
Em todos os casos, a argumentação jurídica não pode seguir a regra do “tudo é permitido”.
Vale lembrar as sábias palavras de Fiodor Dostoievski em seu clássico “Irmãos Karamazov”: “Se Deus não existe tudo é permitido. Metaforicamente, traduzida para a Ciência do Direito ter-se-ia: “Se a norma não existe, então tudo é permitido”.
O discurso desatento dos “princípios” e “direitos humanos” corrobora a pemissividade e liberalidade implantada pela modernidade, o que leva à pior espécie de autoritarismo: a autoridade da autoridade, porque é autoridade!342
Com isso pode-se perceber que a Teoria da Argumentação não favorece
o acobertamento de ações arbitrárias, mas o inverso: a conceituação e a
classificação dos argumentos propostos por muitos teóricos serão instrumentais
indispensáveis na identificação de atitudes maléficas à manutenção da consistência
do sistema jurídico.
341 MACCORMICK. Retórica e o Estado de Direito, 2008, p. 357. 342 MOUSSALLEM. Argumentação consequencialista na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Congresso do IBET VI. São Paulo: Noeses, 2009, p. 981.
137
3.9 PRINCÍPIOS NA ARGUMENTAÇÃO COM PRINCÍPIOS JURÍDICOS
Os denominados princípios jurídicos estão, ultimamente, presentes em
toda argumentação erística. A sua utilização nesse tipo de argumentação tem como
objetivo conceder status “jurídico inconteste” ao que está sendo objeto de
convencimento. Ao se dizer, via de regra, nesse tipo de base sofística, que um
raciocínio contrário “fere um princípio jurídico”, ou que o juízo defendido está
“fundamentado em princípios jurídicos”, quer-se unicamente vencer o debate por
meio de “afirmações evidentes”.
Atribui-se, assim, ao princípio jurídico o caráter de onisciência,
onipotência e onipresença. Ocorre que, infelizmente, os objetos culturais criados
pelos homens não detêm essa qualidade divina, devendo, por isso, ser tratados com
muita parcimônia. Conforme explica LENIO LUIZ STRECK, os princípios jurídicos
hoje são tidos como o “suporte dos valores da sociedade” e a “positivação dos
valores”:
(...) assim se costuma anunciar os princípios constitucionais, circunstância que facilita a “criação” (sic), em um segundo momento, de todo tipo de “princípio” (sic), como se o paradigma do Estado Democrático de Direito fosse a “pedra filosofal da legitimidade principiológica”, da qual pudessem ser retirados tantos princípios quantos necessários para solvermos os casos difíceis ou “corrigir” (sic) as incertezas da linguagem.343
Há uma lista enorme de princípios jurídicos construídos, em tese, a partir
do texto constitucional. Alguns, de fato, estão dentro dos limites semânticos e
pragmáticos do texto e possuem uma função importante na construção
hermenêutica do sistema jurídico. Outros, porém, são criados ao alvedrio do
intérprete que os intitula de “supraconstitucional” e confere a condição de “verdade”
a toda e qualquer resposta. São alguns exemplos desses princípios:344 “princípio da
343 STRECK. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito, 2009, p. 477. 344 Esses e outros princípios são comentados pelo autor STRECK, Lenio. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Da possibilidade á necessidade de respostas corretas em direito, 2009, pp. 475-496.
138
afetividade”,345 “princípio da absoluta prioridade”,346 “princípio da precaução”,347
“princípio da lealdade”,348 “princípio da veracidade”, “princípio da boa-fé” e “princípio
da confiança”.
Grande parte dos argumentos pautados em princípios desse viés são
argumentos tautológicos que em nada deveriam modificar a conclusão do raciocínio
jurídico. Se a modificam é porque ou se convenceu o “adversário”, por meio do
argumento emocional, ou porque se nega o fechamento operativo no sistema
jurídico. Neste último sentido, explica NIKLAS LUHMANN:
Esto sobre todo es válido cuando los principios se complementan con la “moral”, la “ética” o la “razionabilidad”. Cuando una teoría de la argmentación está establecida de esta manera, no se puede aceptar la tesis de la clausura operativa del sistema del derecho y tenderá a apoyarse en razones de la praxis argumentativa misma – razones que hablan en contra de esta cerradura. […]
Es también posible suponer que con los princípios (proporcionalidad, adecuación, ponderación de valores…) frecuentemente, si no siempre, se lleguen a funamentar decisiones contrarias y contradictorias.349
Utilizando-se da expressão “a vida como ela é”, consagrada pelo escritor
Nelson Rodrigues, ressalta-se uma premissa epistemológica imprescindível: o
Direito, como subsistema social, não é aquele produto da ideologia individual, não é
fruto das individuais convicções morais, políticas, religiosas etc., mas um complexo
de linguagem comunicacional prescritiva, produzida pelo homem e por ele
movimentado.
345 REsp 945283/RN, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 15/09/2009, DJe 28/09/2009. Disponível em: <http//:www.stj.jus.br.>. Acesso em: 25 de agosto de 2011. 346 REsp 1199587/SE, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/10/2010, DJe 12/11/2010). Disponível em: <http//:www.stj.jus.br.>. Acesso em: 25 de agosto de 2011. 347 REsp 1090968/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 15/06/2010, DJe 03/08/2010. Disponível em: <http//:www.stj.jus.br.>. Acesso em: 25 de agosto de 2011. 348 AgRg no REsp 485863/RS, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 15/04/2003, DJ 05/05/2003, p. 312. Disponível em: <http//:www.stj.jus.br.>. Acesso em: 25 de agosto de 2011. 349 LUHMANN. El derecho de la sociedad, 2005, p. 411.
139
O que se quer sobrelevar com a menção da expressão acima é que a
percepção é a de que algumas ditas “imoralidades” não estão simples e unicamente
nos denominados “operadores do direito”, mas no próprio objeto que a sociedade
construiu. Querer que o direito diga algo que ele não disse é querer ser “mais
realista que o rei”. Algumas interpretações vigentes só são possíveis hoje porque o
próprio objeto inseriu suporte para tanto. Por certo que esse objeto de estudo possui
algumas características que não gostaríamos que tivesse, mas ele as tem, e, por
isso, precisam ser observadas, analisadas e sistematizadas.
Ao se colocar o direito como algo indissociável da moral, ou ao se
conceber o legislador como intérprete da justiça (positivismo ideológico, segundo
Bobbio), cria-se uma falsa ideia que precisa ser rechaçada: o direito nem sempre vai
dar a melhor solução. Se se concede ao direito um papel divino, cria-se uma teoria
de bases fracas, pois se constrói um objeto hipotético, distante da realidade e da
sociedade.
Não adianta iludir a sociedade com a construção de princípios
impregnados por uma utópica concepção de justiça e moral, tais como “princípio do
bom-senso”, “princípio da afetividade”, “princípio da precaução”, “princípio da
confiança”. Quando o próprio sistema jurídica não fornece critérios objetivos para
caracterização e aplicação desses mandamentos, a utilização no discurso jurídico
serve apenas para disfarçar “verdades individuais”.
Além disso, as proposições dos subsistemas da moral, da economia, da
política não podem ser utilizadas na defesa das verdades jurídicas, mas apenas das
verdades morais, econômicas e políticas. Se se tiver como proposta investigar as
proposições jurídicas, será preciso estar consciente de que se habita a linguagem
comunicacional do subsistema social direito.
É necessário lembrar que há o embate de ideologias, interesses e
expectativas350 antes da produção dos documentos jurídicos e que, após, é preciso
garantir o fechamento operacional do direito e não permitir que as conveniências dos
“perdedores” ganhem foros de “argumentos jurídicos”.
350 Cf. ADEODATO, João Maurício. A retórica constitucional (sobre a tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo), 2009, p. 93.
140
Há uma urgência no trato dessa questão, pois a entrada constante desses
argumentos “principiológicos” no subsistema social do direito vem afetando a sua
autonomia, construída a duras penas. Se não se garante a autonomia do direito,
retorna-se às sociedades primitivas sem, entretanto, se ter a simplicidade daquelas
organizações, pois hoje vivemos numa inquestionavelmente alta complexidade
social.
Essas interferências, que alhures foram denominadas “corrupção
sistêmica”, corroem a autonomia do Estado, colocando por terra também a
democracia e o Estado de Direito. Ressalta JOÃO MAURÍCIO ADEODATO:
“(...) a justiça do amor não é a justiça, é mais do que justiça, axiologicamente falando, e dela não cuida a função normativa do direito positivo. Justiça jurídica é reagir aos maus tratos e aos incompetentes, é administrar as desigualdades de todos os tipos existentes no meio social, é castigar os eticamente hipossuficientes. Os invejosos, ingratos e concupiscentes são tratados por outros sistemas de normas éticas.351
Nessa linha, a aceitação constante de argumentos embasados em
“princípios jurídicos de amor” pode levar a sociedade a ficar sem o amor e sem o
direito.
351 ADEODATO, João Maurício. A retórica constitucional (sobre a tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo), 2009, p. 93.
141
CAPÍTULO 4 – CONTROLE JUDICIAL DE CONSTITUCIONALIDADE
DAS NORMAS TRIBUTÁRIAS
4.1 CONSTITUIÇÃO JURÍDICA E CONSTITUIÇÃO POLÍTICA
O termo Constituição sofre de ambiguidade e de vaguidade que são
comuns a maior parte das palavras. No entanto, quando esse termo é utilizado na
comunicação jurídica e política, a dificuldade para delimitar o seu conceito vai bem
além da sua abertura semântica. A palavra Constituição carrega consigo a história
de uma revolução contra a preponderância da política perante os outros sistemas
sociais e esse aspecto pragmático gera uma dificuldade na delimitação do conceito.
MARCELO NEVES explica que o termo Constituição se presta a “usos
arbitrariamente metafóricos”. Na época do movimento revolucionário, a Constituição
era designada por expressões como “catecismo do gênero humano”, “pergaminho
mágico”, “Bíblia política do Estado” etc.352 E perdura até os dias atuais esse excesso
de intenção emocional na utilização da palavra Constituição, o que acaba por
esvaziar o significado semântico da expressão. Como ensina o autor:
A Constituição não pode, portanto, ser caracterizada como um mera metáfora, desvinculada de certas implicações estruturais. Neste contexto, denomino “mera metáfora” aquela carente de função ou valor descritivo em virtude de as possibilidades de seu deslocamento serem ilimitadas, arbitrárias ou aleatórias.
[...]
Esse entusiasmo constitucionalista original perdurou e, com o tempo, abriu espaço para uma certa tendência a que o conceito de Constituição ou constitucionalismo perdesse qualquer contorno, deixando de ser um “conceito-guia” para se tornar um “conceito-panaceia”.353
352 NEVES. Transconstitucionalismo, 2009, p. 4. 353 Ibid., p. 5.
142
Por esse motivo, é necessário afastar o tom metafísico que envolve a
Constituição e focar no entendimento que, como explica GILBERTO BERCOVICI, é
comum a autores de diferentes tendências, qual seja: a Constituição compreende o
regime político-social de um país. Ou, limitando-se ao texto constitucional, o
entendimento de que a Constituição regula os comportamentos dos agentes
estatais.354
Observa-se, com isso, que a Constituição sempre apresenta como
objetivo, entre outros possíveis, o de delimitar as condutas dos órgãos-estatais. Em
outros termos, entre as suas funções está a de organizar o poder político. Tal
organização ganha fortes contornos no segundo pós-guerra, pois percebeu-se que,
mesmo com o advento da Constituição, ainda era possível cometer muitas
arbitrariedades, com a diferença de que, agora, elas teriam embasamento
constitucional (formal).
Sobre a função da Constituição em organizar o poder político, explica J. J.
GOMES CANOTILHO:
A organização do poder político pela constituição não se limita à criação de órgãos e definição das respectivas competências e funções. À constituição pertence definir os princípios estruturantes da organização do poder político (ex.: princípio da separação e interdependência), recortar as relações intercorrentes entre os órgãos de soberania bem como o desenhar a repartição entre os mesmos do poder político. É neste sentido que se diz que a constituição “dá forma” ao estado através da constitucionalização da forma de governo (“governo parlamentar”, “governo presidencialista”, “governo semipresidencialista”, etc.).355
Deve-se questionar, portanto, de que forma política e direito podem
conviver na Constituição sem que tal relação gere uma descaracterização desses
subsistemas sociais. GILBERTO BERCOVICI relata que dessa difícil relação entre a
Constituição e a política, surge, inicialmente, uma proposta denominada “Teoria da
Constituição Dirigente”. Para tal doutrina, segundo ele, devem-se abstrair da
354 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e política: uma relação difícil. Lua Nova Revista de Cultura e Política. São Paulo, v. 61, 2004, p. 7. 355 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição, 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1441.
143
Constituição os aspectos políticos que a envolvem, admitido-os apenas na
instauração do Poder Constituinte Originário. O que gera, de acordo com o autor,
juristas constitucionais que ignoram a realidade política na qual se manifesta o
direito constitucional:
A Teoria da Constituição Dirigente é uma Teoria da Constituição sem Teoria do Estado e sem política. E é justamente por meio da política e do Estado que a Constituição vai ser concretizada. Será essa a maneira totalizante (e, paradoxalmente, excludente) de compreender a Teoria da Constituição, sem política e sem Estado, ao lado do poder crescente dos tribunais constitucionais [...]356
Tal atitude retira a Constituição do tempo e do espaço em que está
inserida. Reconhecer o aspecto político da Constituição apenas numa menção
“povo” no seu preâmbulo é ignorar que os sistemas sociais são comunicacionais, e o
ambiente que circunda cada um deles não só é importante, como imprescindível
para a manutenção da sua autonomia sistêmica.
A questão está em saber em que medida se pode dar essa relação entre
Constituição e política sem que, com isso, se comprometa a autonomia operativa do
direito e da política. Ensina NIKLAS LUHMANN que a Constituição deriva de um
acoplamento estrutural entre os sistemas jurídico e político, na medida em que
permite: “[...] que el derecho positivo se convierta en un medio de conformación
política, así como que el derecho constitucional devenga un instrumento jurídico
para la implantación de uma disciplina política.”357
A partir daí, não esquecendo que a complexidade social trouxe a
necessidade de diferenciação entre os sistemas sociais, a Constituição terá
sentidos diferentes para os sistemas jurídico e político. Resume o autor supracitado:
Resumiendo, podemos decir que la Constitución logra soluciones políticas para el problema de la autorreferencia del derecho y soluciones jurídicas para el problema de la autorrefererencia política. […] Con relación a esto, la Constitución que conforma y determina el Estado asume un sentido diferente en ambos sistemas: para el sistema jurídico es una ley suprema, una ley fundamental; para el sistema político es un instrumento político en el doble sentido de
356 BERCOVICI. Constituição e política: uma relação difícil, 2004, p. 13. 357 LUHMANN. El derecho de la sociedad, 2005, p. 540.
144
política instrumental – modificadora de situaciones – y de política simbólica – no modificadora de situaciones.358
É possível (e necessário), pois, separar o sentido jurídico do sentido
político da Constituição. Essa separação de sentidos, entretanto, não afasta o
reconhecimento das constantes irritabilidades entre política e Constituição,
ocasionadas pelo acoplamento estrutural.359 É preciso apenas que os participantes
da comunicação jurídica saibam que as questões políticas que ingressam no
sistema jurídico devem ser processadas pelo seu código interno – lícito/ilícito - e não
pelo código “governo/oposição”, que é próprio da política.
4.2 CARACTERÍSTICAS DE UM TEXTO CONSTITUCIONAL
Num sentido jurídico, a Constituição será normativa, ou seja, será o
conjunto de normas jurídicas constitucionais que, construídas a partir de texto
jurídico, apontarão para a diferenciação lícito/ilícito. E mais: nos termos tratado neste
capítulo, ela também fixará os limites da sua modificabilidade/imodificabilidade e de
controle da sua estrutura normativa, por meio do código
constitucional/inconstitucional.
O texto jurídico constitucional não encerra a norma jurídica constitucional.
É de fundamental importância o alerta de JOÃO MAURÍCIO ADEODATO: “[...] o
sistema vai muito além dessas bases textuais, é uma conclusão direta: o sentido
e o alcance dos termos, a coerência argumentativa e os conflitos não estão ali nesse
livro que se chama ‘a Constituição’ e, nem por isso deixam de fazer parte do
universo constitucional.”360 E continua:
Pela função que exerce no sistema democrático, servindo de base argumentativa para uma imensa gama de casos, o texto constitucional quase sempre aparece mais geral e daí mais vago e
358 LUHMANN. El derecho de la sociedad, 2005, p. 548. 359 Nesse sentido ver: CAMPILONGO. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, 2002, pp. 95-100. LUHMANN. El derecho de la sociedade, 2005, pp.507-566. 360 ADEODATO. A retórica constitucional (sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo), 2009, p. 140.
145
ambíguo do que outros textos jurídicos, ainda que todos, em alguma medida, guardem essas características.361
As Constituições são feitas para durar muitos anos. Nenhuma sociedade
produz um documento de tamanha relevância para vigorar por pouco tempo. Para
tanto, observa-se nas Constituições atuais a seguinte recomendação que, segundo
DANIEL MENDONCA e RICARDO GUIBOURG, foi feita por Napoleão: “uma
Constituição deve ser curta e obscura”. Explicam os autores a conveniência da
obscuridade no texto constitucional:
En verdad, las constituciones tienen, por lo común, una dosis especial de imprecisión, producto de su tradicional brevedad y laconismo, normalmente intencional. Se estima que, si la constitución está destinada a regir por largo tiempo, resulta conveniente que siente sólo unas directivas fundamentales y que el resto quede en manos de los operadores de la constitución (gobernantes, legisladores y jueces). De allí que las cláusulas constitucionales den al intérprete, habitualmente, un generoso radio de acción; esto es, le permitam atribuir a su texto, a la hora de aplicarlo, varios posibles significados.362
Os efeitos de uma textura aberta de um texto jurídico já foram tratados no
capítulo sobre interpretação jurídica e se repetem aqui no caso do texto
constitucional. A presença demasiada de valores e a falta de contornos semânticos
mais precisos possibilitarão ao intérprete-observador do texto constitucional maior
quantidade de observações heterorreferentes.
O texto constitucional, segundo NIKLAS LUHMANN, terá características
diferenciadas com relação aos demais textos jurídicos, derivadas do seu caráter
autológico. Pontua o autor que a autologia da Constituição deriva das suas
seguintes propriedades: (i) prever a si mesmo como parte do direito; (ii) regular sua
própria modificabilidade/imodificabilidade; (iii) regular se alguém pode ser controlado
(e quem), se o direito corresponder com ela ou a violar; e (iv) conter a proclamação
361 ADEODATO. A retórica constitucional (sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo), 2009, p. 140. 362 MENDONCA; GUIBOURG. La odisea constitucional, 2004, p. 91.
146
da própria Constituição e exteriorizar isso apelando à vontade divina ou à vontade
do povo.363
Tais características presentes no texto constitucional garantem a defesa
da sua supremacia perante os demais textos jurídicos vigentes num país, permitindo
que as teorias do direito lhe atribuam o posto de maior hierarquia, numa visão
escalonada.
4.3 INSTRUMENTOS CONSTITUCIONAIS DIRIGIDOS À
PERMANÊNCIA DO ESTADO DE DIREITO
Nos termos destacados em momento anterior, o Estado de Direito é
caracterizado pela existência de uma Constituição que assegure (i) legalidade, (ii)
divisão de poderes e (iii) direitos individuais. É o caso do texto constitucional vigente
no Brasil – Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – que contém
todos os elementos materiais necessários para a caracterização do Estado de
Direito.
No intuito de impedir que o Estado de Direito fixado na Constituição se
perca após a sua promulgação de um texto constitucional, dois instrumentos se
fazem imprescindíveis: (i) imposição (por ela mesma!) de limites para
modificabilidade/imodificabilidade do seu texto; e (ii) correção das situações de
violação dos seus dispositivos.
Por esse motivo J. J. GOMES CANOTILHO dá ao Estado de Direito uma
dimensão material e formal. Segundo o autor português, o Estado de Direito não é
um conceito pré ou extrajurídico, mas um conceito constitucionalmente caracterizado
que conjuga elementos formais e materiais:
Ele [Estado de Direito] é, desde logo, uma forma de racionalização de uma estrutura estadual-constitucional. No princípio do estado de direito conjugam-se elementos formais e materiais, exprimindo, deste modo, a profunda imbricação entre forma e conteúdo no exercício de actividades do poder público ou de entidades dotadas de poderes
363 LUHMANN. El derecho de la sociedad, 2005, p. 543.
147
públicos. Na exposição subseqüente procurar-se-ão identificar alguns elementos mas sem se fazer uma absoluta diferenciação entre elementos formais e materiais. As dimensões materiais do estado de direito de modo algum se podem considerar ao contrário das dimensões formais. No entanto, para quem pretender manter estas categorias dir-se-á que, em geral, os elementos considerados como momentos formais do estão de direito são: (1) o princípio da constitucionalidade e correlativo princípio da supremacia da constituição [...]364
A previsão de aplicação de tais instrumentos constitucionais garante o
posto de supremacia do texto constitucional. Tal ideia de superioridade da
Constituição está ligada, comumente, à visão hierarquizada do ordenamento
jurídico. A Constituição Federal estaria no topo do sistema jurídico, servindo de
fundamento de validade para todos os demais diplomas normativos, de ordem
hierárquica inferior. Essa visão escalonada do direito que coloca a Constituição em
posição hierárquica privilegiada tem HANS KELSEN como seu principal precursor.
Explica ele:
A relação entre a norma que regula a produção de uma outra e a norma assim regularmente produzida pode ser figurada pela imagem espacial da supra-infra-ordenação. A norma que regula a produção é a norma superior, a norma produzida segunda as determinações daquela é a norma inferior. A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas.
[...]
Se começarmos levando em conta apenas a ordem jurídica estadual, a Constituição representa o escalão de Direito positivo mais elevado.365
Para fins retóricos, a metáfora da pirâmide cumpre importante função, na
medida em que realça que o texto constitucional tem uma diferença com relação aos
demais textos. Seu fundamento está em si mesmo, mas ele serve de fundamento
para a produção de todos os demais textos. A partir disso surge a diferenciação
acima/abaixo.
364 CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2003, p. 255. 365 KELSEN. Teoria pura do direito, 1998, p. 247.
148
Normas jurídicas que não têm fundamento no texto constitucional ou que
o violam podem ser qualificadas de inconstitucionais, após o controle pelos órgãos
competentes. Deriva-se daí outra diferenciação importante no âmbito interno do
sistema jurídico: constitucional/inconstitucional.
Versando sobre as denominadas garantias preventivas/repressivas
necessárias à proteção da Constituição, HANS KELSEN enfatiza que as primeiras
tendem a evitar a produção de “atos irregulares”; já as segundas reagem contra os
“atos irregulares”, produzidos e “[...] tendem a impedir a sua renovação no futuro, a
reparar o dano que ele causou, a fazê-lo desaparecer e, eventualmente, a substituí-
lo por um ato regular”.366
Para o autor austríaco, uma Constituição que prescinda do instrumento de
anulabilidade dos atos inconstitucionais não pode ser considerada tecnicamente
como obrigatória:
Uma Constituição em que falte a garantia da anulabilidade dos atos inconstitucionais não é plenamente obrigatória, no sentido técnico. Muito embora não se tenha em geral consciência disso, porque uma teoria jurídica dominante pela política não permite tomar tal consciência, uma Constituição em que os atos inconstitucionais, e em particular as leis inconstitucionais também permanecem válidos – na medida em que sua inconstitucionalidade não permite que sejam anulados – equivale mais ou menos, do ponto de vista propriamente jurídico, a um anseio sem força obrigatória.367
Para J. J. GOMES CANOTILHO, da supremacia normativa da
Constituição decorre a necessidade de os atos normativos em geral serem
compatíveis formal (superlegalidade formal) e materialmente (superlegalidade
material) com os parâmetros nela instituídos. Em acréscimo, o autor preleciona que
a preeminência formal da Constituição justifica a tendência de rigidez das leis
constitucionais, que demandam rito mais qualificado de produção normativa.
Conclui afirmando que o “princípio fundamental da constitucionalidade dos actos
366 KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 139. 367 Ibid., p. 179.
149
normativos” é decorrência da primazia constitucional formal e material da Lex
Superior:
Ao falar-se do valor normativo da constituição aludiu-se à constituição como lex superior, quer porque ela é fonte da produção normativa (norma normarum) quer porque lhe é reconhecido um valor normativo hierarquicamente superior (superlegalidade material) que faz dela um parâmetro obrigatório de todos os actos estaduais. A idéia de superlegalidade formal (a constituição como norma primária da produção jurídica) justifica a tendencial rigidez das leis fundamentais, traduzida na consagração, para as leis de revisão, de exigências processuais, formais e materiais, ´agravadas´ ou ´reforçadas´ relativamente às leis ordinárias. Por sua vez, a parametricidade material das normas constitucionais conduz à exigência da conformidade substancial de todos os actos do Estado e dos poderes públicos com as normas e princípios hierarquicamente superiores da constituição. Da conjugação destas duas dimensões – superlegalidade material e superlegalidade formal da constituição – deriva o princípio fundamental da constitucionalidade dos actos normativos : os actos normativos só estarão conformes com a constituição quando não violem o sistema formal, constitucionalmente estabelecido, da produção desses actos, e quando não contrariem, positiva ou negativamente, os parâmetros materiais plasmados nas regras ou princípios constitucionais. (Grifos Originais)368
Numa tentativa de aproximação dos conceitos, pode-se supor que o limite
de modificabilidade/imodificabilidade, apontado acima, estaria relacionado à
“supralegalidade formal” indicada por CANOTILHO. Assim como, o controle de
constitucionalidade/inconstitucionaldiade, estariam voltado para o conceito de
supralegalidade material defendido pelo autor.
Por sua vez, CLÈMERSON MERLIN CLÈVE enfatiza que a supremacia
da Constituição na ordem jurídica será garantida por meio de instrumentos que
sustentem juridicamente tal predicado:
A compreensão, todavia, da Constituição como Lei Fundamental implica não apenas o reconhecimento da supremacia da Constituição na ordem jurídica, mas, igualmente, a existência de mecanismos suficientes para garantir juridicamente (eis um ponto importante) essa referida qualidade. A supremacia, diga-se logo, não exige apenas a compatibilidade formal do direito infraconstitucional com os seus comandos definidores do modo de produção das normas jurídicas, mas também a observância de sua dimensão material. A
368 CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2003, p. 890.
150
Constituição, afinal, como quer Hesse, é uma ´ordem fundamental, material e aberta de uma comunidade´. É ordem fundamental, posto que reside em posição de supremacia. É, ademais, ordem material porque além de normas contém ordem de valores: os conteúdos do direito, que não podem ser desatendidos pelo direito infraconstitucional.369
A seguir será dado destaque a forma de implementação desses
instrumentos destinados à permanência da supremacia constitucional. Lembra-se,
contudo, que não é esse o único de concretizar uma Constituição e de garantir o
Estado de Direito.
4.4 FISCALIZAÇÃO E INTERPRETAÇÃO DA NORMA JURÍDICA
CONSTITUCIONAL
Antes, porém, de apurar “quem” e “como” se dará o controle de
constitucionalidade/inconstitucionalidade de uma norma jurídica, é necessário
pontuar que o conceito de concretização da norma constitucional, em termos
comunicativos, difere do de aplicação da norma jurídica, bem como do de execução
do controle de constitucionalidade. Tal diferenciação é apontada por JOÃO
MAURÍCIO ADEODATO na análise do conceito de “jurisdição constitucional”:
[...] concretização não significa silogismo, subsunção, efetivação, aplicação ou individualização do direito na moldura da norma geral. Esses critérios, puramente cognitivos e lógicos, sem exigências de responsabilidade e fundamentação, constituem herança tradicionalista do positivismo exegético e dedutivista.
[...] a concretização provém de toda e qualquer utilização da constituição, independentemente do judiciário, pois todos concretizam as normas, a partir dos textos e da realidade. Neste sentido, a jurisdição constitucional é uma parte importante da concretização, mas apenas uma parte dela.370
369 CLÉVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, pp. 20-21. 370 ADEODATO. A retórica constitucional (sobre a tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo), 2009, p. 147.
151
É preciso, pois, lembrar que a importância da interpretação da
Constituição não está apenas no controle de constitucionalidade/
inconstitucionalidade. Tal controle é uma das garantias da sua supremacia, mas não
é pré-requisito de sua interpretação. A atividade de interpretar a Constituição é,
segundo DANIEL MENDONCA e RICARDO A. GUIBOURG, uma questão
importante, polêmica e tendenciosa. Explicam:
Importante, porque la suerte de la propia constitución y de sus instituciones depende, en gran medida, de su interpretación; polémica, porque encubre normalmente una disputa entre posturas ideológicas, conservadoras o progresistas, autoritarias o liberales; y tendenciosa, porque con frecuencia, la interpretación propuesta protege en forma no siempre bien encubierta poderosos intereses sectoriales. 371
A comunicação no sistema jurídico se dará a partir da interpretação
jurídica, que é construtora das normas jurídicas. Dessa forma, a produção de
normas constitucionais não ficará pendente de controles de constitucionalidade. Ela
se dará antes, durante e depois desse controle.
Há muito tempo a doutrina vem se dedicando à investigação dos meios
ou dos mecanismos experimentados na história do constitucionalismo para garantir
a anulabilidade dos atos normativos produzidos em desconformidade com a
Constituição, e, por via de consequência, assegurar a primazia do Texto
Constitucional sobre os demais atos infraconstitucionais.
Dissertando sobre inconstitucionalidade e garantia, JORGE MIRANDA
destaca que a garantia está fora da norma e representa “[...] algo de acessório, que
se acrescenta, que reforça a norma, que lhe imprime um poder ou um alcance
maior”.372 Diz também que a garantia da constitucionalidade corresponde à
inconstitucionalidade.
Em acréscimo, o constitucionalista português ensina que, quando a
garantia se exerce por meios institucionais, assume a forma de fiscalização. JORGE
371 MENDONCA; GUIBOURG. La odisea constitucional: constitución, teoría y método, p. 92. 372 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, Tomo VI. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 47.
152
MIRANDA define a fiscalização como “[...] um meio institucionalizado, um sistema,
um aparelho orgânico ou um processo criados a título mais ou menos específico
para tal fim.” 373 Cotejando “garantia” e “fiscalização”, o autor nota que a primeira é
mais um fim do que um meio; já a segunda, nunca um fim em si, mas um meio, ou
ainda, uma atividade. Em caso de atos normativos, o ponto de separação entre a
fiscalização preventiva e a fiscalização “sucessiva” (ou repressiva nos moldes da
doutrina predominante) é a publicação do referido ato e não sua entrada em vigor.
No Estado Brasileiro, a tarefa de controle de constitucionalidade das leis é
marcadamente jurisdicional e está atribuída primordialmente ao Poder Judiciário.
Com isso, não se está afirmando que tal controle seja desempenhado com
exclusividade pelos órgãos judiciais. Não é isso.
Em vários momentos, o Texto Constitucional de 1988 fixou a competência
para que outras porções orgânicas participem do processo de defesa da
Constituição e dos enunciados prescritivos nela veiculados, objetivando a
manutenção da sua supremacia.
Na esfera do denominado “controle preventivo” de constitucionalidade,
por exemplo, o Chefe do Executivo está habilitado a “vetar” total ou parcialmente, na
forma prevista no art. 66, § 1.º da CF/88, o projeto de lei considerado
inconstitucional. Como o próprio nome diz, em tal situação, o que se controla não é
um ato normativo pronto e acabado, mas um diploma normativo que está em
processo criativo, em fase de elaboração.
As Comissões de Constituição e Justiça das diferentes Casas Legislativas
(nas órbitas federal, estadual, municipal e distrital) também possuem como atividade
precípua o exercício do “controle preventivo” de constitucionalidade, destinado a
investigar, no bojo do processo legislativo, se os atos normativos em formação
veiculam ou não inconstitucionalidades.
Uma vez pronto e inserto no ordenamento jurídico, o ato normativo criado
passa a ser controlado de modo “repressivo” ou “corretivo”. Apesar de no Brasil tal
tarefa ser confiada com predominância ao Poder Judiciário, ANDRÉ RAMOS
373 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, Tomo VI, 2005, p. 51.
153
TAVARES registra que os Poderes Legislativo [nos termos do art. 49, inc. IV da
CF/88 (quando o Congresso Nacional susta os atos normativos do Executivo que
exorbitam do poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa) e do art.
62 da CF/88 (quando da análise das Medidas Provisórias pelo Congresso Nacional]
e Executivo (quando a Administração Pública, em sede de autocontrole, anula os
seus próprios atos) também exercem tal tipo de controle.374
Portanto, mesmo em sede de “controle repressivo” de constitucionalidade,
quando o que se está a cotejar com o texto constitucional é ato normativo já
pertencente ao sistema jurídico, o Poder Judiciário não figura como o único
habilitado para aferir a compatibilidade/incompatibilidade do novo diploma legal com
os preceitos integrantes da Constituição.
A controle de constitucionalidade/inconstitucionalidade será realizado por
vários órgãos estatais, mas caberá ao Judiciário, conforme será visto nos próximos
itens, a maior efetividade desse controle. Por esse motivo, quando se fala em
interpretação da Constituição vincula-se, automaticamente, o caráter processual do
seu controle, fortalecendo, com isso, a afirmação de que “Constituição é aquilo que
o STF diz que é.”
Com base nessas considerações, acusam a Teoria da Constituição de
valorizar em demasiado o aspecto processual do controle em detrimento do
interpretativo. O que gera, segundo JOÃO MAURÍCIO ADEODATO, um crescimento
da importância da cúpula do Judiciário:
Observa-se, do outro lado do debate, que há um irracionalismo decisionista que despreza inteiramente o texto. Seus representantes não chegam a dizer que a concretização pelo judiciário resolve, pois são mais céticos. Mas dizem que, independentemente de juízos sobre se isso é bom ou mau, o juiz “faz” o direito. No Brasil, a cúpula do judiciário não só ganha poder jurídico e político às expensas do legislativo, mas também do Ministério Público.375
374 TAVARES. Curso de Direito Constitucional, 2006, p. 214. 375 ADEODATO. A retórica constitucional (sobre a tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo), 2009, p. 148.
154
Isso gera uma omissão da importância que é observação do texto
constitucional por toda a sociedade, mormente, pela comunidade jurídica. Enfatizam,
nesse sentido, DANIEL MENDONCA e RICARDO A. GUIBOURG:
Si desde cierto punto de vista la constitución es, en lo inmediato, lo que los jueces dicen que es, lo que dicen los jueces (o los funcionarios, o cualquier persona con algún dosis de poder) es, en el mediano plazo, lo que los ciudadanos están dispuestos a admitir que digan.376
Feitas essas ressalvas, cumpre adiante analisar “como” apurar se os atos
normativos infraconstitucionais foram ou não produzidos de modo compatível com
os seus preceitos e “quem” poderá ser incumbido da importante tarefa de zelar pela
supremacia normativa da Constituição.
4.5 “GUARDIÃO” DO CÓDIGO CONSTITUCIONAL/
INCONSTITUCIONAL
Durante muito tempo, a doutrina da Teoria da Constituição se dedicou a
responder a esta pergunta — “Quem deve ser o Defensor da Constituição?” — e a
identificar o Órgão a quem deveria ser atribuída a função de zelar pela Constituição
e de realizar o controle de constitucionalidade das leis, com o fito de garantir a
supremacia do Texto Constitucional.
A despeito da inexistência de consenso sobre a titularidade de tal
prerrogativa, cumpre notar que a atuação voltada à preservação dos enunciados
prescritivos que integram a Constituição de determinado Estado e ao controle dos
atos normativos infraconstitucionais pode ser implementada por um órgão político ou
jurisdicional.
De acordo com PAULO BONAVIDES, o controle de constitucionalidade
surge como uma consequência do sistema das Constituições rígidas, construído a
partir da diferença entre “poder constituinte” e “poderes constituídos”. Na avaliação
376 MENDONCA; GUIBOURG. La odisea constitucional, 2004, p. 79.
155
do autor, o ponto mais crítico dessa questão consiste em determinar o órgão que
deve exercer o referido controle:
As Constituições rígidas, sendo Constituições em sentido formal, demandam um processo especial de revisão. Esse processo lhes confere estabilidade ou rigidez bem superior àquela que as leis ordinárias desfrutam. Daqui procede pois a supremacia incontrastável da lei constitucional sobre as demais regras de direito vigentes num determinado ordenamento. Compõe-se assim uma hierarquia jurídica, que se estende da norma constitucional às normas inferiores (leis, decretos-leis, regulamentos, etc.), e a que corresponde por igual uma hierarquia de órgãos.
A conseqüência dessa hierarquia é o reconhecimento da ´superlegalidade constitucional´, que faz da Constituição a lei das leis, a lex legum, ou seja, a mais alta expressão jurídica da soberania.
[....]
O ponto mais grave da questão reside em determinar que órgão deve exercer o chamado controle de constitucionalidade. Sem esse controle, a supremacia da norma constitucional seria vã, frustrando-se assim a máxima vantagem que a Constituição rígida e limitativa de poderes oferece ao correto, harmônico e equilibrado funcionamento dos órgãos do Estado e sobretudo à garantia dos direitos enumerados na lei fundamental. 377
Após efetuar uma análise acerca dos diferentes tipos de controle de
constitucionalidade das leis, BONAVIDES conclui que o controle jurisdicional é mais
compatível com as Constituições rígidas e com a garantia da liberdade dos
cidadãos:
Não há dúvida de que exercido no interesse dos cidadãos, o controle juridisdicional se compadece melhor com a natureza das Constituições rígidas e sobretudo com o centro de sua inspiração primordial – a garantia da liberdade humana, a guarda e proteção de alguns valores liberais que as sociedades livres reputam inabdicáveis. A introdução do sobredito controle no ordenamento jurídico é coluna de sustentação do Estado de direito, onde ele se alicerça sobre o formalismo hierárquico das leis. 378
HANS KELSEN, após defender que uma Constituição só pode ser
verdadeiramente garantida quando se faz possível a anulação dos atos
377 BONAVIDES. Curso de Direito Constitucional, 2009, pp. 296-297. 378 Ibid., p. 301.
156
inconstitucionais,379 registra que seria “ingenuidade política” pensar que o Poder
Legislativo “[...] anularia uma lei votada por ele próprio [...]”. Afirma:
O órgão legislativo se considera na realidade um livre criador do direito, e não um órgão de aplicação do direito, vinculado pela Constituição, quando teoricamente ele o é sim, embora numa medida relativamente restrita. Portanto não é com o próprio Parlamento que podemos contar para efetuar sua subordinação à Constituição. É um órgão diferente dele, independente dele e, por conseguinte, também de qualquer outra autoridade estatal que deve ser encarregado da anulação de seus atos inconstitucionais – isto é, uma jurisdição ou um tribunal constitucional. 380
Em obra dedicada ao assunto, o autor supracitado critica a posição de
CARL SCHMITT — para quem o “Defensor da Constituição” deveria ser o Chefe de
Estado — e defende que tal papel seja desempenhado por um Tribunal
Constitucional. Entre os fundamentos utilizados por KELSEN para sustentar tal idéia,
figura a seguinte:
Pero entonces la institución de la Justicia constitucional no está en absoluto en contradicción con el principio de separación de poderes sino que constituye, por el contrario, una afirmación del mismo. El problema de saber si el órgano llamado a anular las leyes inconstitucionales puede ser un Tribunal, carece, por consiguiente, de dificultad. Su independencia, tanto frente al Parlamento como frente al Gobierno, es un postulado evidente. Porque son precisamente el Parlamento y el Gobierno, en su calidad de órganos que participan en el procedimiento legislativo, quienes deben ser controlados por la Justicia constitucional. 381
Não foi outra a ideia defendida por JORGE MIRANDA,382 para quem o
Estado de Direito exige um controle jurídico de constitucionalidade dos atos
normativos realizado pelos Tribunais e não um controle político.
Versando sobre o assunto, MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO
deixa assentado que SIEYÉS chegou a propor a criação de um Tribunal
constitucional com a incumbência de apreciar “os atos de qualquer dos Poderes, 379 KELSEN. Jurisdição Constitucional, 2007, p. 148-149. 380 Ibid., p. 150. 381 KELSEN, Hans. Quién Debe ser el Defensor de la Constitución? 2. ed. Madrid: Tecnos, 1999, pp. 38-39. 382 MIRANDA. Manual de Direito Constitucional Tomo II, 1988, pp. 323-324.
157
inclusive a lei, em face da Constituição [...]” e de declarar “[...] nulos e írritos os que
as contradissessem [...]”. O autor registra, entretanto, que coube a MARSHALL
colocar o controle de constitucionalidade “[...] no âmbito do Judiciário”383.
Essa desconfiança do Legislativo é derivada, como explica OSCAR
VILHENA VIEIRA, da desconfiança da democracia:
[...] muitas constituições contemporâneas são descofiadas do legislador, optando por sobre tudo decidir e deixando ao legislador e ao executivo apenas a função de implementação da vontade do constituinte, enquanto ao judiciário fica entregue a função última de guardião da constituição. A hiper-constitucionalização da vida contemporânea, no entanto, é conseqüência da desconfiança na democracia e não a sua causa. 384
Tudo isso, porém, origina um amesquinhamento do sistema
representativo e uma importância desmedida para a cúpula do Poder Judiciário.
4.5.1 STF e sua difícil tarefa “Guardião”
Nos termos fixados na ordem constitucional vigente (art. 102), é
incumbência precípua do Supremo Tribunal Federal a “guarda da Constituição”, que
se realiza por intermédio da realização do controle repressivo de constitucionalidade
dos atos normativos em geral.
Como repara DALMO DE ABREU DALLARI, a atribuição do Supremo
Tribunal Federal não se resume à defesa do texto constitucional vigente. É
extremamente ampla e vai muito além:
O exame de suas atribuições demonstra que ele exerce o papel de tribunal constitucional, mas também o de solucionador de conflitos entre tribunais superiores, além de atuar como instância de apelação ou unificador de jurisprudência em determinados casos. O Supremo Tribunal Federal tem ainda algumas competências originárias, para decidir sobre matérias expressamente enumeradas na Constituição, como nos casos de conflitos que envolvem autoridades federais de
383 FERREIRA FILHO. Estado de Direito e Constituição, 2007, p. 88. 384 VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV. São Paulo, v. 8, p. 443, 2008.
158
alto nível e naqueles em que há litígio entre entidade federativa brasileira e um Estado Estrangeiro ou organismo internacional.
Além disso, pela Emenda Constitucional n. 45 o Supremo Tribunal recebeu competência para processar e julgar as ações contra o Conselho Nacional de Justiça contra o Conselho Nacional do Ministério Público.
Como se pode perceber, as competências do Supremo Tribunal Federal são exageradamente amplas, devendo-se notar que elas eram ainda mais extensas, tendo sido parcialmente reduzidas pela Constituição de 1988, que criou o Superior Tribunal de Justiça. Ele recebeu várias competências que antes eram do Supremo Tribunal, além de outras que lhe foram atribuídas pela Constituição. Mas o Supremo Tribunal continuou sobrecarregado.385
A conformação da Corte Constitucional Brasileira está fixada no art. 101
da Constituição Federal de 1988, que prevê, desde a Constituição de 1891, onze
Ministros, escolhidos entre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de
sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada. São
esses os requisitos objetivos e subjetivos que o Texto Constitucional vigente
estabelece para a assunção ao cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal. O
parágrafo único do art. 101 da CF/88 estabelece que a nomeação dos Ministros do
Supremo Tribunal Federal se dá pelo Presidente da República, depois de aprovada
a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, ipsis litteris:
Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada.
Parágrafo único. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.
ANDRÉ RAMOS TAVARES adverte que, na maioria dos países, se
observa que os integrantes dos Tribunais Constitucionais são indicados por outras
autoridades estatais e que, como regra geral, há a manifestação da vontade de mais
de uma autoridade estabelecida na indicação dos membros que deles farão parte.
Para exemplificar, o autor faz alusão a países como a Áustria (onde os membros são
indicados pelo Presidente da Federação entre nomes propostos pelo Governo
385 DALLARI. O Poder dos Juízes. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 113.
159
Federal, pelo Conselho Nacional e pelo Conselho Federal), a Itália (em que o
Presidente da República, o Parlamento e as Magistraturas Supremas indicam
determinado número de membros), a França (onde os membros são indicados pelo
Presidente da República, pela Assembleia Nacional e pelo Presidente do Senado), a
Bélgica (o Rei designa os membros a partir de uma lista apresentada,
alternativamente, pelo Senado e pela Câmara) e a Rússia (onde os membros são
eleitos pelo Conselho da Federação, por maioria absoluta, a partir de proposta feita
pelo Presidente da Federação).386
Apesar de tal confortável constatação de ordem comparativa, DALMO DE
ABREU DALLARI avalia que o “[...] processo de escolha dos Ministros do Supremo
Tribunal Federal tem produzido resultados duvidosos [...]”. Em acréscimo, nota que
“[...] são conhecidos muitos casos de homens que foram indicados para o tribunal
máximo do país por suas antigas ligações político-partidárias, ou por relações de
amizades com o Presidente da República e com pessoas muito influentes do
governo. Isso tem levado, às vezes, à escolha de juízes sem verdadeira
independência política ou moral ou sem a estatura intelectual que o cargo
pressupõe”.387
Analisando o tema ANDRÉ RAMOS TAVARES consigna, ainda, que a
despeito de a conformação dos Tribunais Constitucionais ser comumente precedida
de indicação política, a atribuição de tais órgãos não pode ser definida como
“política”, sendo que a perenidade dos seus membros previne sua partidarização ou
politização. São estas as palavras do autor:
A constatação de que praticamente é genérica a opção por uma indicação de cunho político não é suficiente, por si só, para subsidiar o entendimento — geralmente proclamado pela imprensa em determinados momentos — de que o Tribunal Constitucional seria um órgão político, e não jurídico ou judicial.
Nesse ponto — da fórmula de indicação de seus componentes — basta referir que a indicação de origem política não afeta a atividade a ser desenvolvida pelo indicado, que pode ser, perfeitamente, jurídica, por ser absolutamente independente do fato ´indicação´.
A perenidade dos membros do Tribunal Constitucional atua como fator positivo na prevenção contra a partidarização ou politização dos
386 Cf. TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, 2006, p. 216. 387 DALLARI. O Poder dos Juízes, 2010, p. 116.
160
membros do Tribunal Constitucional. Em diversos Tribunais Constitucionais, seus integrantes gozam, tal como ocorre no Brasil, da vitaliciedade nos respectivos cargos.388
Observa-se que, dentro do entendimento adotado, política não se
confunde com “partidarização”. Se a expressão “política” estiver sendo utilizada nos
termos no Capítulo 3 deste trabalho, quando se falou do “Juiz-Político”, não haverá
nenhuma dificuldade em reconhecer o papel político dessa Corte.
Assim, como também se deve recordar, que sendo a Constituição produto
de acoplamento estrutural entre direito e política, o papel desempenhado pelo STF
também poderá ser observado a partir do código da política. Nessa linha, pontua
LOURIVAL VILANOVA:
O Supremo Tribunal Federal – é patente – não dá-se, ele próprio sua existência. Não elabora as regras numa espécie de exercício de auto-regramento, pois, então, antes de ser como estrutura jurídica em forma, seria puro fato, processo social desprovido de qualquer competência: exerceria poder de autoconstituir-se, como poder fáctico autolimitando-se. Mas seria então poder constituinte, o que contraria sua substância mesma, que é de poder constituído, cuja existência deriva do resultado do ato constituinte, i.é., da Constituição.389
No entanto, apesar da importância dessas investigações, percebe-se que
o fato de se reconhecer ou não o aspecto político na atuação do STF, não toca os
perigos que hoje rondam a manutenção do Estado de Direito por esse órgão
constitucional.
O aumento dos dissensos na sociedade complexa, acrescido ao fato de,
no Brasil, uma elevada quantidade de matérias receber tratamento constitucional,
acarreta uma corrida descontrolada ao controle de constitucionalidade exercido pelo
STF.
388 TAVARES. Curso de Direito Constitucional, 2006, pp. 216-217. 389 VILANOVA, Lourival. A dimensão política nas funções do Supremo Tribunal Federal. Escritos Jurídicos e Filosóficos, volume (1). São Paulo: Axis Mundi, Ibet, 2003, p. 379.
161
Nas colocações de OSCAR VILHENA, como “[...] tudo no Brasil parece
exigir uma ‘última palavra’ do Supremo Tribunal Federal”390, haverá não apenas uma
sobrecarga para a atividade dos onze ministros, como se dificultará a manutenção
da redundância tão necessária na interpretação jurídica.
Após essa análise do STF, retorna-se à forma de controle do código
constitucional/inconstitucional. De acordo com o art. 102, inc. I, “a” e inc. III, alíneas
“a”, “b” e “c” da Carta Constitucional de 1988, compete a esse Supremo Tribunal
Federal a realização do controle repressivo de constitucionalidade das leis, que
poderá ser efetuado pela via de ação (controle abstrato) ou pela via de exceção
(controle concreto). É o que será explicitado a seguir.
4.6 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS NO ESTADO
BRASILEIRO
Como aponta DANIEL MENDONCA, depois da Segunda Guerra Mundial
e em virtude do crescente interesse pelo Direito Constitucional dos Estados Unidos
— precursor, como se verá, do modelo difuso de constitucionalidade — o controle
jurisdicional de constitucionalidade das leis começou a se afirmar e a gozar de
popularidade. 391
Em obra dedicada ao assunto, BIANCA STAMATO assevera que os dois
grandes modelos de jurisdição constitucional são o difuso ou norte-americano e o
concentrado ou austríaco. Ao analisar a lógica das gêneses de ambos os modelos, a
autora registra o seguinte:
Tratam-se de modelos distintos de controle de constitucionalidade, tanto no seu aspecto subjetivo como no seu aspecto modal assim como nos seus efeitos, mas o estudo de ambos e o seu cotejo nos ensinam que sua implementação foi igualmente tormentosa e que os paradoxos surgem em ambos os modelos.
[...]
390 VIEIRA. Supremocracia, 2008, p. 451. 391 MENDONCA, Daniel. Analisis Constitucional una Introducción. 2. ed, Bogotá: Editorial Universidad del Rosario, 2009, p. 90.
162
Como se verá mais adiante, as bases teóricas do ‘judicial review’ norte-americano assentam-se no direito natural e em uma fé nos julgamentos emanados dos juízes, enquanto no modelo austríaco as bases teóricas se fundam no positivismo e em uma desconfiança quanto ao desempenho de juízes de carreira. A fundamentação do ‘judicial review’ situa-se dentro do esquema de freios e contrapesos e está arrimado no princípio da supremacia da Constituição. Por seu turno, a justiça constitucional austríaca está inserida dentro de uma função legislativa negativa e é encarada como instrumento de garantia do atributo da eficácia da Constituição.392
A doutrina do Direito Constitucional identifica distintos tipos de controle de
constitucionalidade previstos nos diferentes ordenamentos jurídicos. De acordo com
ANDRÉ RAMOS TAVARES, as espécies de controle de constitucionalidade podem
ser classificadas em virtude da natureza do órgão (político/jurisdicional), do objetivo
do controle (concreto/abstrato), do momento em que é realizado
(preventivo/repressivo), do tipo de conduta avaliada (ação/omissão) e do número de
órgãos habilitados a exercê-lo (único/plúrimo).393
Neste trabalho, o que se pretende analisar é exatamente a fiscalização
repressiva de constitucionalidade realizada pelo Poder Judiciário, mais
especificamente, aquela efetuada pelo Supremo Tribunal Federal, na via de ação
(abstrata) e na via de exceção (concreta).
Para delimitar o alcance deste tema, faz-se necessário esclarecer,
portanto, em que consiste o controle de constitucionalidade exercitado no Brasil nas
vias de ação (também denominado “abstrato”) e de exceção (também designado
“concreto”) e quem está habilitado a encetá-lo.
A distinção entre os controles de constitucionalidade denominados
“abstrato” e “concreto” depende da análise dos seus objetivos. Quando o que se
busca com a medida judicial é exatamente a análise da
constitucionalidade/inconstitucionalidade de determinado ato normativo em face da
Constituição, estar-se-á diante do primeiro. Quando, ao revés, o objetivo da
demanda judicial é a resolução de um litígio determinado, estabelecido entre duas
partes, dir-se-á que o controle de constitucionalidade efetuado se dá de modo 392 STAMATO, Bianca. Jurisdição Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 56. 393 TAVARES. Curso de Direito Constitucional, 2006, pp. 213-215.
163
concreto. Tais mecanismos de controle de constitucionalidade podem ser
designados, respectivamente, de subjetivo e de objetivo. CLÈMERSON MERLIN
CLÈVE explica:
Tomando-se a finalidade e a causa como critérios classificatórios, a fiscalização da constitucionalidade pode ser designada como (i) subjetiva ou (ii) objetiva. A primeira tem por causa e por finalidade principal a defesa do interesse juridicamente protegido de alguém (de um direito subjetivo ou de um interesse legítimo), e não propriamente a da Constituição objetivamente considerada. Por objetiva, designa-se a fiscalização quando, ´à margem de tal ou qual interesse, tem em vista a preservação ou a reconstituição da constitucionalidade objetiva, quando o que avulta é a constante conformidade ou procura de conformidade de comportamentos, dos actos e das normas comas regras constitucionais´.394
Concluindo, CLÈMERSON MERLIN CLÉVE afirma que no direito
brasileiro “[...] a fiscalização incidental (por via de exceção ou de defesa) será
sempre subjetiva[...]” e a “[...] fiscalização por via principal (por via de ação direta) é,
em princípio, objetiva.”395
Feitas essas breves considerações, destaca-se a seguir que matéria
tributária está sujeita ao controle constitucional/inconstitucional realizado pelo STF,
por meio dos controles “abstrato” ou “concreto”.
4.7 DIREITO TRIBUTÁRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Interessa neste item destacar a matéria tributária constitucional que
poderá ser objeto de interpretação e argumentação pelo STF no exercício da sua
atividade jurisdicional. A importância aqui é destacar os enunciados constitucionais
que compõem o subsistema constitucional tributário. Para tanto é necessário, antes,
firmar o que se entende por direito tributário.
Nas palavras de PAULO DE BARROS CARVALHO, “direito tributário
positivo é o ramo didaticamente autônomo do direito, integrado pelo conjunto das
394 CLÉVE. A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro, 1995, p. 62. 395 Ibid. p. 62.
164
proposições jurídico-normativas que correspondam, direta ou indiretamente, à
instituição, arrecadação e fiscalização de tributos”.396 A partir desse conceito
recortar-se-ão metodologicamente do texto constitucional os enunciados que se
relacionam ao exercício da tributação, no intuito de promover a interpretação
jurídica.
Perceberá com isso o observador da Constituição Federal de 1988 que o
texto constitucional brasileiro possui uma distinção perante os textos dos outros
países. O constituinte brasileiro não seguiu, por motivos vários, a indicação de que
um texto constitucional deve ser curto, mantendo apenas a recomendação da
obscuridade, em alguns casos. Nesse sentido, destaca PAULO DE BARROS
CARVALHO:
O estudo de Direito Comparado oferece-nos material valioso para percebermos aspectos da fisionomia peculiar do nosso sistema constitucional tributário. Enquanto os sistemas de outros países de cultura ocidental pouco se demoram nesse campo, cingindo-se a um número reduzido de disposições, que ferem tão-somente pontos essenciais, deixando à atividade legislativa infraconstitucional a grande tarefa de modelar o conjunto, o nosso, pelo contrário, foi abundante, dispensando à matéria tributária farta messe de preceitos, que dão pouca mobilidade para o legislador ordinário, em termos de exercitar seu gênio criativo.397
Ainda sobre essa singularidade da Constituição brasileira, SACHA
CALMON NAVARRO COÊLHO destaca algumas decorrências dessa demasiada
extensão textual:
O Brasil, ao contrário [de outros países], inundou a Constituição com princípios e regras atinentes ao Direito Tributário. Somos, indubitavelmente, o país cuja Constituição é a mais extensa e minuciosa em tema de tributação. Este cariz, tão nosso, nos conduz a três importantes conclusões:
Primus – os fundamentos do Direito Tributário brasileiro estão enraizados na Constituição, de onde se projetam sobre as ordens jurídicas parciais da União, dos estados e dos municípios;
Secundus – o Direito Tributário posto na Constituição deve, antes de tudo, merecer as primícias dos juristas e dos operadores do Direito, porquanto é o texto fundante da ordem jurídico-tributária;
396 CARVALHO. Curso de direito tributário, 2008, p. 15. 397 Ibid., pp. 157-158.
165
Tertius – as doutrinas forâneas devem ser recebidas com cautela, tendo em vista as diversidades constitucionais. 398
O Capítulo I do Título VI da CF/88 intitulado “Do Sistema Tributário
Nacional” é composto pelas seguintes seções: (i) Seção I: Dos Princípios Gerais; (ii)
Seção II: Das Limitações do Poder de Tributar; (iii) Seção III: Dos Impostos Da
União; (iv) Seção IV: Dos Impostos dos Estados e do Distrito Federal; (v) Seção V:
Dos Impostos dos Municípios; (vi) Seção VI: Da Repartição Das Receitas Tributárias.
Com relação à última seção, alguns entendem que ela não comporá o direito
tributário constitucional por estarem relacionados às questões orçamentárias,
compondo, assim, o “Direito Financeiro”. Há também outros dispositivos referentes
ao exercício da tributação dispersos no texto constitucional, como: art. 195, art. 212,
§5º., art. 239 e art. 240.
A doutrina destaca como matérias constitucionais tributárias as seguintes:
(i) Competência tributária; (ii) Classificação constitucional dos tributos; (iii)
Imunidades tributárias; (iv) Princípios constitucionais tributários; (v) Normas gerais
em matéria tributária; e (vi) Especificidades constitucionais para alguns tributos.
Em grande medida, aplicam-se os dispositivos constitucionais a todas as
espécies de tributos, daí a afirmação de ROQUE ANTONIO CARRAZZA: “A
Constituição Federal, no Brasil, é a lei tributária fundamental, por conter as diretrizes
básicas aplicáveis a todos os tributos.”399
Constata-se que o texto constitucional publicado em 5 de outubro de 1988
sofreu até o ano de 2010 alterações de sete emendas constitucionais (EC 3/93, EC
29/00, EC 33/01, EC 39/02, EC 37/02, EC 41/03 e EC 42/03). E ainda tramitam no
Congresso Nacional inúmeros Projetos de Emenda Constitucional (PECs) que
preveem outras várias modificações no texto constitucional.
Dessa profusão de enunciados linguísticos surgem algumas
consequências, entre as quais: (i) necessidade de maior controle
398 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 43-44. 399 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 428.
166
constitucional/inconstitucional do sistema tributário infraconstitucional; e (ii) intensa
atividade jurisdicional do STF em matéria tributária.
Tudo que aqui foi dito sobre os efeitos das irritações provocadas entre
direito e política aplicar-se-á ao direito constitucional tributário. Em razão dessa
íntima relação do direito com a política, por meio da Constituição, o direito tributário
constitucional sofrerá constantes perturbações que promoverão novas informações,
provenientes de interpretações heterorreferentes. Essas observações serão
percebidas no direito tributário constitucional, em maior escala, com relação à
economia e à política, nos termos apontados nos próximos itens.
4.8 AUTODESCRIÇÃO PROMOVIDA PELA DOUTRINA TRIBUTÁRIA
BRASILEIRA
A doutrina jurídica brasileira referente ao direito tributário saiu à frente de
muitas outras no que tange à diferenciação entre os subsistemas jurídico,
econômico e político. ALFREDO AUGUSTO BECKER assume uma função muito
importante nesse histórico de alertar sobre os perigos de se transportar para o
sistema jurídico tributário o que é próprio de outros sistemas sociais:
Nesta perigosa atitude mental, incorrem muitos daqueles que põem o fundamento do tributo (e conseqüentemente do Direito Tributário) na Soberania do Estado e cujo raciocínio em síntese é este: o Estado tem necessidade de meios financeiros para custear suas atividades e com tal finalidade (aí surge o problema da natureza da tributação extrafiscal) tributa e tributa (inclusive extra-fiscalmente) porque é Soberano; destas premissas se conclui, obviamente, que o tributo é uma obrigação ex-lege.400
A necessidade da diferenciação entre o direito tributário e os demais
subsistemas sociais tem sido preocupação constante de PAULO DE BARROS
CARVALHO:
400 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 1998, p. 12.
167
Não há como aceitar uma interpretação econômica do direito ou um interpretação histórica do direito, mecanismos espúrios que ainda contaminam nossa cultura jurídica. Mais a mais, um sistema não age sobre outro sistema, modificando-o. O que pode acontecer é o sistema S’ tomar conhecimento de informações do sistema S’’ e processar esses dados segundo seu código de diferença, vale dizer, submetendo-o ao seu peculiar critério operacional. Em linguagem jurídica, é o direito recebendo fatos econômicos, por exemplo, em suas hipóteses normativas e, a partir delas, produzindo novas relações jurídicas por meio dos operadores deônticos (V, P e O). Já se vê que a identidade auto-referencial do sistema jurídico impede qualquer esforço externo no sentido de seu conhecimento operacional, que somente será possível à medida que se considere o conjunto na complexidade de sua organização interior.401
Esses autores já perceberam há algum tempo que a autodescrição do
sistema jurídico é fundamental para manutenção da sua autonomia sistêmica. A
observação interna do sistema jurídico não só promove maior aprofundamento
teórico com relação às operações internas, mas também permite que se evidencie
com maior clareza a ocorrência de corrupção entre os códigos intersistêmicos, nos
termos pontuados pela teoria sistêmica luhmaniana.
Há ainda, entretanto, quem defenda que o direito tributário tem finalidades
sociais, econômicas e políticas que devem ser consideradas no momento da
interpretação de uma norma jurídica constitucional. Dando destaque à necessidade
de o Estado custear as suas atividades por meio dos tributos, TATHIANE DOS
SANTOS PISCITELLI propõe o seguinte conceito de direito tributário:
[...] o direito tributário consiste na prática normativa relativa à criação, cobrança, fiscalização e pagamento de tributos que se justificam em face da necessidade de os participantes fornecerem meios materiais para o Estado cumprir com suas tarefas básicas, como segurança e ordem interna. Contudo, tendo-se em vista a premissa de que o direito tributário é parte constitutiva do Estado, é defensável afirmar que ele será também um instrumento para a realização dos fins estatais e isso está diretamente conectado ao modelo de Estado constituído.402
401 CARVALHO. Curso de direito tributário, 2008, p. 151. 402 PISCITELLI, Tathiane dos Santos. Argumentando pelas consequências no direito tributário. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade de São Paulo, 2010, p. 103.
168
A partir dessa concepção a autora defende que é necessário interpretar o
direito tributário a partir de duas importantes finalidades: (i) fornecer recursos para a
Constituição e permanência do Estado; e (ii) assegurar a realização do Estado
democrático do direito.
Outros autores, porém, destacam que a interpretação do direito
constitucional tributário brasileiro deve ter como finalidade precípua a justiça fiscal a
partir da capacidade individual de cada contribuinte, nos termos destacados por
FERNANDO LEMME WEISS:
Claramente delineado na Constituição, portanto, o moralizador e isonômico instituto da interpretação econômica, que deve preponderar sobre a “denominação jurídica”, dos fatos geradores subjacentes a rendimentos, títulos ou direitos. A interpretação econômica consiste em uma das formas de interpretação conforme a Constituição, que é uma obrigação de todo o jurista e não se restringe às ações declaratórias de inconstitucionalidade.
Só ela é capaz de garantir que a contribuição individual à manutenção do Estado decorra da verdadeira idoneidade econômica para suportar tal ônus, e não de eventual discriminação arbritrária prevista ou permitida pela lei.403
RICARDO LOBO TORRES defende que não se pode excluir a apreciação
teleológica da interpretação das normas jurídicas tributárias:
A interpretação lógico-sistemática do Direito Tributário, além da incongruência de se aplicar apenas aos conceitos tributários constitucionalizados, está em franco declínio na consideração da doutrina jurídica, por excluir a apreciação teleológica. E, juntamente com ela, os seus corolários inevitáveis: o primado do Direito Privado, a separação entre o sistema do Direito e da Economia, a licitude da elisão e a exclusividade da legislação como fonte do Direito Tributário.404
Observa-se, contudo, que tanto aqueles que pregam que o direito
tributário tem como fim a sustentação financeira do Estado, quanto aqueles que
defendem a finalidade do direito tributário a partir da perspectiva individual do 403 WEISS, Fernando Lemme. Justiça tributária: um enfoque sobre as renúncias fiscais, a reforma tributária de 2003/2004 e os códigos de defesa dos contribuintes (ES, IT, SP, MG e o projeto brasileiro). 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 33. 404 TORRES, Ricardo Lobo. Normas de interpretação e integração do direito tributário. 3 ed., revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 194.
169
contribuinte estão corretos nas suas afirmações. As duas finalidades (intenções), de
fato, podem ser observadas na análise do sistema social que compõe o ambiente do
sistema jurídico. A questão é que sobrelevar uma finalidade em detrimento da outra
é uma opção do intérprete de acordo com as suas intenções pessoais.
Essas propostas de interpretações finalísticas são valorativas e, sendo
valor, permitem um excesso de heterorreferências na interpretação jurídica do direito
tributário e uma diminuição de autorreferências. Isso impede a promoção de
redundância na interpretação jurídica e, consequentemente, a autodescrição do
direito tributário, tão imprescindível num Estado de Direito.
4.8.1 Heterorreferências econômicas na interpretação do direito
constitucional tributário
De que forma a economia produz irritações no direito tributário e o direito
tributário produz perturbações na economia, numa visão sistêmica? Sobre essa
relação, explica FLÁVIA SOUSA DANTAS PINTO:
Apesar de ser sempre veiculado por meio de lei (instrumento específico do sistema político), o tributo também comporta uma leitura sob a ótica da linguagem econômica por pressupor relação direta com a circulação da moeda, sujeitando-se, por conseguinte, ao código próprio da economia “Ter/Não Ter” e aos respectivos programas orientados por preços ou valores contraprestacionais.405
O pagamento dos tributos, entretanto, como ressalta a autora, não será
vinculado à relação “custo/benefício”, uma vez que o cumprimento do dever de
pagar não está adstrito unicamente à vontade do contribuinte, bem como o
pagamento não decorre de um interesse na aquisição de um bem ou de um
serviço.406
405 PINTO, Flávia Sousa Dantas. Tributos, Tribunos, Tribunais e Policies: uma análise sistêmica da participação estratégica dos tributos nas políticas públicas. Tese (Doutorado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2010, p. 42. 406 Ibid., pp. 43-45.
170
No campo constitucional, a relação entre direito tributário e economia é
ressaltado pela doutrina, por exemplo, nos seguintes casos: (i) Definição de fato
jurídico tributário; (ii) Aferição da base de cálculo; (iii) Princípio da capacidade
contributiva; (iv) Princípio do não-confisco; (v) Norma de competência da
contribuição de intervenção do domínio econômico; (vi) Atividade financeira do
Estado. Vejam-se, em linhas gerais, algumas considerações doutrinárias sobre
esses temas:
(i) Definição de fato jurídico tributário:
Segunda a doutrina tradicional o “fato gerador” de um tributo, antes de ser
fato jurídico, é fato econômico. Explica AMÍLCAR DE ARAÚJO FALCÃO:
Uma peculiaridade, entretanto, possui esse fato juridicamente relevante para o Direito Tributário: constituir um critério, um índice ou um indício para a aferição da capacidade econômica ou contributiva dos sujeitos aos quais se atribui. Por outras palavras, em sua essência, substância ou consistência é o fato gerador um fato econômico, ao qual o Direito empresta relevo jurídico.407
Com algumas diferenças teóricas, DINO JARACH também sobreleva o
aspecto econômico:
Nós não desconhecemos o fato de que há impostos em cujo fato imponível ocupa um lugar, uma relação jurídica de direito privado, mas sustentamos que o negócio ou o ato jurídico não tem importância para o nascimento da obrigação impositiva enquanto negócio ou ato jurídico, senão pela relação econômica que ele cria. O que constitui o pressuposto de fato de todos os impostos, também dos titulados aos negócios ou à circulação jurídica dos bens, não é o negócio, ou seja, a manifestação de vontade que cria uma relação econômica jurídica, senão esta última, que, por sua natureza de relação econômica, está apta para colocar em evidência a capacidade contributiva.408
(ii) Aferição da base de cálculo:
407 FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato gerador da obrigação tributária. 6 ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 29. 408 JARACH, Dino. O fato imponível: teoria geral do direito tributário substantivo. 2. ed. revista Tradução: Djalma de Campos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 137.
171
Ao promover um estudo sobre a relação da base de cálculo com os
princípios constitucionais, AIRES BARRETO faz os seguintes esclarecimentos
sobre alguns conceitos importantes na composição da base de cálculo:
Ao preço real ou efetivo da coisa produzida ou adquirida designa-se preço ou custo; àquele estabelecido em certo momento, no mercado, de preço corrente, ao acordado entre partes contratantes, de preço ajustado; àquele que se apresenta indicado por uma quantia certa ou por uma determinada soma preestabelecida em dinheiro, designa-se preço certo; o preço estatuído por arbitradores ou avaliadores é o chamado de avaliação; ainda, ao maior lanço oferecido, designa-se preço de arrematação.409
Explica o autor que o direito tributário jurisdicizou, ainda, proposições
matemáticas: “[...] acolher expressões indicativas de percentagem, ou unidades de
sistemas de medida, importa o acolhimento, também, das operações fundamentais e
das regras que lhe dizem respeito.”410
(iii) Princípio da capacidade contributiva:
O art. 145, §1º. da CF/88 prescreve: “Sempre que possível, os impostos
terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do
contribuinte [...].” A utilização da expressão “econômica” permite várias
considerações por parte da doutrina.
REGINA HELENA COSTA, em obra sobre o tema, ressaltou o impacto da
inflação na época na aplicação desse princípio:
Sabemos que o legislador, ao escolher as hipóteses de incidência dos impostos, toma fatos denotadores de riqueza, ou seja, signos presuntivos de riqueza.
Na elaboração da norma jurídica-tributária, portanto, deverá atentar para os índices de capacidade econômica identificados pela Ciência das Finanças.
[...]
409 BARRETO, Aires. Base de cálculo, alíquota e princípios constitucionais. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 64. 410 Ibid., p. 32.
172
Desse modo, a capacidade contributiva a ser considerada na hipótese de incidência não pode ser aparente, sob pena de ter-se uma capacidade econômica vazia. Neste ponto impede impende abordarmos uma questão há muito atual, que à da inflação. É do conhecimento de todos que esta provoca o crescimento nominal do capital, acarretando uma riqueza numérica, falsa. A tributação desta significaria ignorar a efetividade da capacidade contributiva. 411
Nesse sentido, afirma ROQUE ANTONIO CARRAZA que: “Estamos
percebendo que, no Brasil, capacidade contributiva é o mesmo que capacidade
econômica.”412
(iv) Princípio do não-confisco:
A doutrina do princípio do não-confisco em matéria tributária, prescrito no
art. 150, IV da CF/88, está relacionada à manutenção do direito de propriedade
privada prescrito no art. 5º., XXII e art. 170, II e à preservação da livre iniciativa
prescrita no art. 1º., IV e art. 170, caput, todos constantes no texto constitucional de
1988. Explica HUGO DE BRITO MACHADO:
O Estado, ao adotar o regime da livre empresa, utiliza o tributo como instrumento através do qual as empresas privadas suprem os seus cofres dos recursos financeiros necessários ao desempenho de suas atividades. Assim, tributá-las até a exaustão seria uma atitude absurdamente incoerente. Seria matar a galinha dos ovos de ouro. Extinguir a fonte de onde se nutrem os recursos financeiros.413
(v) Competência tributária para instituição das contribuições de
intervenção de domínio econômico:
No caso da competência tributária da União para instituir contribuições de
intervenção de domínio econômico – CIDEs -, prescrita no art. 149 da CF/88, várias
411 COSTA, Regina Helena. Princípio da capacidade contributiva. 2. ed. São Paulo: Malheiros editores, 1996, pp. 83-84. 412 CARRAZZA. Curso de direito constitucional tributário, 2002, p. 88. 413 MACHADO, Hugo de Brito. Os princípios jurídicos da tributação na Constituição de 1988. 4 ed. São Paulo: Dialética, 2001, p. 103.
173
são as incursões feitas no subsistema da economia. Sobre essa contribuição explica
TÁCIO LACERDA GAMA:
[...] para que se possa falar em domínio econômico, é preciso a referência à produção de riqueza. Daí o terceiro e último critério referir-se à produção e circulação de bens e prestação de serviços para o mercado. Esse terceiro critério serve para separar os fatos sociais desenvolvidos no domínio econômico, dos demais fatos sociais de natureza não econômica, como os fatos morais, religiosos, políticos, por exemplo.414
(vi) Autonomia financeira do Estado:
Com base nos artigos que delegam a aptidão para a União, Estados,
Distrito Federal e Municípios para que instituam tributos, destaca TATHIANE DOS
SANTOS PISCITELLI:
Partindo-se da hipótese de que o fundamento do sistema constitucional tributário está na necessidade de tributação, tendo-se em vista o papel financiador que os tributos exercem e que esse fundamento se manifesta normativamente pela delimitação das competências tributárias [...]415
Com relação à visão do direito tributário a partir da observação dos
participantes da comunicação econômica, nota-se que as finanças públicas, que têm
como componente a receita tributária, serão estudadas pela Economia Pública,
conforme observa a autora supra. Com relação às novas teorias de análise
econômica do direito, pontua CRISTIANO CARVALHO:
A moderna Análise Econômica do Direito, surge, no entanto, com Ronald Coase, economista inglês e professor da Universidade de Chicago, laureado com o Nobel de Economia em 1991. O seu célebre artigo de 1960, “The Problem of Social Cost”, é considerado a pedra fundamental do nascente movimento teórico que dominaria as décadas seguintes, principalmente através da famosa Escola de Chicago, e que lhe traria a premiação máxima da Ciência Econômica416.
414 GAMA. Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 231. 415 PISCITELLI. Argumentando pelas consequências no direito tributário, 2010, p. 141. 416 CARVALHO, Cristiano. A Análise Econômica do Direito Tributário. Congresso Nacional de Estudos Tributários V. São Paulo: Noeses, 2008, p. 175.
174
Com relação às heterorreferências realizadas pelo intérprete-observador
jurídico ao sistema da economia, a interpretação jurídica não pode produzir
variações demasiadas que abalem a consistência do sistema jurídico. Os intérpretes
do direito deverão se voltar para o sistema jurídico, passando as informações
econômicas pelo filtro do código lícito/ilícito. Essa é a preocupação de CELSO
FERNANDES CAMPILONGO ao comentar a relação da globalização econômica e
as teorias do direito:
O problema reside que no fato de que essas descrições do direito, por vezes, abandonam por completo a especificidade funcional do sistema jurídico moderno, descrevendo-o como mero apêndice na nova articulação política internacional (a pax americana) ou como o reflexo automático das práticas comerciais da economia globalizada (a Lex marcatoria).417
E , mais especificamente, da relação do direito tributário com a economia
PAULO DE BARROS CARVALHO ressalta a seguinte diferença entre fatos
econômicos e fatos jurídicos:
[...] a doutrina tradicional vem conotando certos fatos jurídicos, tal qual o fato elisivo, como construção de conteúdo econômico, com efeitos jurídicos. Assim o entende, Amílcar de Araújo Falcão, que o qualifica como fato jurídico de conteúdo econômico de relevância jurídica. Distrações desse gênero, conduziram o pensamento à idéia de que seja necessário ao direito tomar emprestado o fato econômico para cumprir com suas funções prescritivas de conduta.418
As questões referentes aos impactos da tributação na economia geram
constantes irritações entre os subsistemas econômico e político. As decisões,
entretanto, de concessão de benefícios fiscais para, por exemplo, diminuir o preço
dos produtos e dos serviços, incentivar o crescimento de algum setor econômico,
aumentar a competitividade do mercado nacional etc. são decisões políticas. Estas,
por sua vez, serão processadas pelo código governo/oposição e, se for o caso,
417 CAMPILONGO. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 150. 418 CARVALHO, Paulo de Barros. O absurdo da interpretação econômica do “fato gerador” – Direito e sua autonomia – O paradoxo da interdisciplinariedade. Revista de Direito Tributário. São Paulo, v. 97, 2007, p. 10.
175
levadas à esfera legislativa. A partir daí, a relação será entre política e direito. E não
entre direito e economia.
4.8.2 Heterorreferências políticas na interpretação do direito
tributário constitucional
Conforme firmado, a Constituição será produto de um grande
acoplamento entre direito e política. Assim, apontar os dispositivos do direito
constitucional tributário que apresentam intersecções entre esses dois subsistemas
sociais seria além de cansativo, infrutífero.
A existência do tributo remonta à época das sociedades mais primitivas,
em que ainda não existia a diferenciação entre os subsistemas sociais. Com o
aumento da complexidade social, o tributo passa a ser, inclusive, instrumento de
subordinação do direito à política, uma vez que permitia que, com base em recursos
financeiros recolhidos da população, as pessoas se perpetuassem no poder.
Com o advento da Constituição surge em alguns países a prescrição de
que o tributo fosse instituído apenas após o referendo do povo. Sendo necessário,
que a expectativas políticas e econômicas passassem pela representação popular
das casas legislativas. Essa determinação, denominada Princípio da Estrita
Legalidade, é encontrada no art. 150, I da CF/88, que prescreve que, sem prejuízo
de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado aos entes políticos
tributantes “Exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça”.
O mesmo ocorre nos casos de desoneração da carga tributária.
Prescreve o art. 150, §6º. da Constituição de 1988, com redação dada pela EC 3/93:
Art. 150. [...]
§ 6º. Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g.”
176
Decisões relacionadas não só aos valores pecuniários dos tributos, mas
também aos deveres instrumentais também estão relacionadas à política fiscal. A
criação de instrumentos mais céleres de arrecadação e mais eficazes de
fiscalização, como é o caso da substituição tributária “pra frente”, prescrita no art.
150, § 7º. da CF/88, com redação também da EC 3/93, é perfeitamente afeita às
questões políticas.
A característica extrafiscal da competência tributária, apontada pela
doutrina, evidencia que o tributo poderá ser utilizado não só para fins arrecadatórios,
mas também para o alcance de outros objetivos, como explica PAULO DE BARROS
CARVALHO:
A experiência jurídica nos mostra, porém, que vezes sem conta a compostura da legislação de um tributo vem pontilhada de inequívocas providências no sentido de prestigiar situações, tidas como social, política ou economicamente valiosas, às quais o legislador dispensa tratamento mais confortável ou menos gravoso.419
Fica sim caracterizado que o regime jurídico tributário apresentará o perfil
que atenda as expectativas relacionadas à política fiscal. Sobre a relação entre
direito tributário e política, FLÁVIA SOUSA DANTAS PINTO explica:
[...] o tributo e todos os demais institutos e atividades a ele relativos são, sob o aspecto eminentemente político, “decisões programadoras”, sujeitas ao código Governo/Oposição e a programas finalísticos que repercutirão em outros sistemas, particularmente no econômico, enquanto principal via de acoplamento estrutural entre política e economia.420
Explica a autora que discussões políticas sobre a atividade tributante são
mais amplas e exigem a participação de várias setores da sociedade, uma vez que
há a necessidade de alto índice de consenso para garantir a manutenção do
governo no poder. A arrecadação tributária é um ponto de muito conflito político do
Brasil. Ressalta: “A ‘antipatia’ por parte da sociedade brasileira com respeito aos
419 CARVALHO. Curso de direito tributário, 2008, pp. 251-252. 420 PINTO. Tributos, Tribunos, Tribunais e Policies: uma análise sistêmica da participação estratégica dos tributos nas políticas públicas, 2010, p. 62.
177
tributos é grande problemática enfrentada pelos Tribunos no equacionamento da
relação Fisco/Contribuinte com vistas à adequação das receitas tributárias às
necessidades sociais politicamente eleitas como prioritárias.”421
Com isso não se quer dizer que a interpretação do direito tributário deverá
ficar vinculada às análises das intenções políticas na sua produção. Os
acoplamentos apenas viabilizarão as heterorreferências na interpretação jurídica. O
observador do sistema jurídico não poderá esquecer que a denominada “política
tributária” – “política fiscal” - é política e não direito.
4.9 PRINCÍPIOS-VALORES CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS E A
MOEDA DE CÉSAR
A doutrina tributária brasileira destaca os princípios constitucionais
tributários como vetores da interpretação do texto jurídico tributário constitucional e
infraconstitucional. Explica GERALDO ATALIBA: “Os princípios são as linhas
mestras, os grandes nortes, as diretrizes magnas do sistema jurídico. Apontam os
rumos a serem seguidos por toda a sociedade e obrigatoriamente perseguidos pelos
órgãos do governo (poderes constituídos).”422
Algumas prescrições constitucionais ganham “foros” de princípios, em
razão da carga valorativa identificada pelo observador-intérprete. PAULO DE
BARROS CARVALHO classifica os princípios constitucionais tributários em
“princípios-valor” e “princípios-limite objetivo”. Nos primeiros seria possível identificar
a presença de valores no próprio enunciado prescritivo, por meio das características
indicadas pela Axiologia. Já nos demais, princípios-limite objetivo, os valores seriam
observados nas metas, nos fins que eles perseguem.423
421 PINTO. Tributos, Tribunos, Tribunais e Policies: uma análise sistêmica da participação estratégica dos tributos nas políticas públicas, 2010, p. 63. 422 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed., 2. tiragem, atualizada por Rosalea Miranda Folgosi, 2001, p. 34. 423 Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário, 2008, pp. 158-163.
178
Em síntese, destacam-se os seguintes princípios e os artigos da CF/88
que são, comumente, apontados pela doutrina: (i) Estrita legalidade tributária, art.
150, I; (ii) Isonomia tributária, art. 150, II; (iii) Irretroatividade tributária, art. 150, III,
“a”; (iv) Anterioridade tributária, art. 150, III, “b”; (v) Anterioridade nonagesimal, art.
150, III, “c”; (vi) Não-confisco, art. 150, IV; (vii) Liberdade de tráfego, art. 150, V; (viii)
Uniformidade geográfica, art. 151, I; (ix) Capacidade contributiva, art. 145, §1º.; (x)
Não-discriminação tributária, em razão da procedência ou do destino dos bens, art.
152; (xi) Não-cumulatividade, arts. 153, § 3º., II, 155, § 2º., I, 154, I e 195, § 4º.; (xii)
Seletividade, arts. 153, § 3º., I, 155, § 2º., III; (xiii) Generalidade, universalidade e
progressividade no imposto sobre a renda, art. 153, § 2º., I; (xiv) Progressividade no
imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, art. 156, §2º.
Alguns autores, ainda, qualificam as imunidades prescritas no art. 150, VI
de princípios constitucionais tributários, em razão das finalidades social, econômica
e política que fundamentaram as suas criações pelo legislador constituinte.
Baseado em direitos fundamentais, dando destaque ao valor da dignidade
da pessoa humana, ROBERTO WAGNER LIMA NOGUEIRA aponta, ainda, os
seguintes princípios, segundo ele, implícitos no texto constitucional de 1988:
princípio da liberdade fiscal, princípio da transparência fiscal, princípio da
solidariedade fiscal, princípio do justo gasto do tributo afetado, princípio da cidadania
fiscal, princípio da intributabilidade do mínimo existencial, princípio da
improjetabilidade da lei tributária.424
É em defesa dos valores que muitos intérpretes indicam a presença
desses princípios constitucionais tributários na CF/88. Defendem que a interpretação
das normas constitucionais tributárias e, portanto, o controle
constitucional/inconstitucional das normas tributárias infraconstitucionais, devem ser
realizados com base nesses princípios constitucionais tributários, para que se
garanta a tão almejada “Justiça Fiscal”.
Como já pontuado anteriormente, permitir que valores construídos com
base na comunicação extrajurídica prevaleçam na interpretação do sistema jurídico
424 NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Direito Financeiro e Justiça Tributária, 2004. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pp. 139-175.
179
é colocar em risco a manutenção da autonomia do direito e, no presente caso, do
direito tributário brasileiro. Com isso, pode-se viabilizar que pessoas mal-
intencionadas deixem a sociedade com seus valores, mas sem o direito para
garantir as expectativas normativas nos conflitos intersubjetivos entre Fisco e
contribuintes.
Em uma passagem bíblica, Jesus deixa evidenciada a diferença entre
tributo e religião. Uma vez questionado se seria lícito ou não pagar o imposto a
César, Jesus pediu: “Mostrai-me a moeda do imposto.” E, após constatar que a
figura na moeda era a face de César, indicou: “Dai a César o que é de César, e a
Deus o que é de Deus.” Trazendo-se essas orientações para os dias atuais,
entende-se que cabe aos intérpretes do direito constitucional tributário ver a “figura”
registrada nas argumentações e constatar o que é jurídico e o que não é jurídico.
180
CAPÍTULO 5 - ANÁLISE DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA EM
DECISÕES DO STF EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA A PARTIR DE CASOS
CONCRETOS
5.1 OBJETIVO DA ANÁLISE COM CASOS CONCRETOS
Este capítulo final tem como objetivo demonstrar como os juristas podem
observar as argumentações presentes nas decisões judiciais, valendo-se dos
conceitos sobrelevados no decorrer deste trabalho. O resultado dessas observações
jurídicas, por sua vez, pode evidenciar a ocorrência de desvios na interpretação
jurídica que em nada contribuem para a manutenção do Estado de Direito.
Foram eleitos os seguintes critérios para promover a coleta das decisões
judiciais que passariam numa primeira análise: (i) ser proferida pelo STF; (ii) estar
relacionada à matéria constitucional tributária; (iii) versar sobre as normas
constitucionais vigentes após a promulgação da Constituição Federal de 1988. A
partir daí, foram separadas as decisões que apresentavam argumentos que, à
primeira vista, poderiam refletir, de um lado, os interesses de grandes grupos
econômicos e, de outro lado, uma representativa diminuição na arrecadação pelo
Poder Público.
Há uma enorme lista de julgados em outras áreas do direito que retratam,
até com maior clareza, a corrupção intersistêmica, mas a análise deste trabalho ficou
adstrita aos conflitos derivados do exercício da tributação pelos entes políticos.
Ao se querer falar de tudo, muitas vezes acaba-se por falar pouco de
muita coisa. Por esse motivo é que foram eleitas apenas duas decisões para realizar
a demonstração pormenorizada na construção da estrutura de argumentação
proposta por STEPHEN E. TOULMIN, comentada no Capítulo 3. As decisões são
atinentes aos pedidos de concessão de medida cautelar e de declaração de
inconstitucionalidade constantes da ADI nº 1089-1.
181
Após a apresentação dessas duas decisões serão pontuados outros
acórdãos que poderiam sofrer o mesmo tipo de análise, chegando-se a conclusões
semelhantes às construídas a partir da ADI 1089-1.
Recorda-se que a observação empreendida neste capítulo é de terceira
ordem, ou seja, trata-se de uma observação da argumentação (segunda ordem)
realizada pelo intérprete (primeira ordem) do direito. Assim, será possível não
apenas apresentar a escolha realizada pelo intérprete, mas também comentar o que
foi por ele desprezado (intencionalmente ou não!).
O intuito é o de delinear a observação (interpretação) realizada pelos
participantes desses procedimentos judiciais para, a partir daí, classificar os
argumentos e concluir se esses representam interpretações autorreferentes ou
heterorreferentes. Ou mesmo, se essa observação evidencia alguma arbitrariedade,
nos termos da classificação proposta por CARRIÓ ou uma corrupção sistêmica, na
linha da Teoria dos Sistemas.
Com isso, espera-se demonstrar que o jurista tem hoje nas mãos
instrumentais eficientes para evidenciar como o mau desempenho pelos
participantes da comunicação jurídica, no exercício de papéis jurídicos institucionais,
pode ser encoberto com o manto das expressões “argumentação jurídica” e
“interpretação jurídica”.
5.2 DECISÕES JUDICIAIS RELACIONADAS AO ICMS NAS
PRESTAÇÕES DE SERVIÇO DE TRANSPORTE AÉREO
As decisões que serão analisadas a seguir versam sobre a incidência do
ICMS – imposto sobre operações de circulação de mercadoria e prestação de
serviço de transporte interestadual e intermunicipal e serviço de comunicação –
sobre a prestação de serviços de transporte aéreo.
Em breve síntese, recorda-se que o imposto sobre operações relativas à
circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte
interestadual e intermunicipal e de comunicação – ICMS -, previsto no art. 155,
182
inciso II da CF/88, é da competência dos Estados e do Distrito Federal e
excepcionalmente da União (art. 154, II e art. 147 da CF/88).
Após a edição da Constituição de 1988 foi adicionada a letra “S” à sigla
ICM, acrescentando-se, a partir de então, à operação de circulação de mercadoria,
duas prestações de serviços: transporte interestadual e intermunicipal e
comunicação, que não compõem o ISS – imposto sobre serviços de qualquer
natureza -, da competência dos municípios (art. 156, III).
À lei complementar cabe estabelecer as normas gerais em matéria de
ICMS, de acordo com art. 146, III e o art. 155, §2o., XII, devendo dispor sobre o “fato
gerador”, a base de cálculo, contribuintes, substituição tributária, regime de
compensação etc. Se, no prazo de sessenta dias contados da promulgação da
CF/88, não fosse editada a referida lei complementar, os Estados e o Distrito
Federal, mediante convênio, celebrado nos termos do Convênio nº 24/75, poderiam
regular provisoriamente a matéria, consoante prescrição do art. 34, §8º. do ADCT.
Até 1996 vigorou o Convênio nº 66/88, ano em que foi publicada a Lei
Complementar nº 87. No entanto, a Constituição, o Convênio e a Lei Complementar
não instituíram o ICMS, apenas desenharam os limites em que os Estados e o
Distrito Federal poderiam atuar na instituição desse imposto. É de responsabilidade
de cada Estado da Federação e do Distrito Federal prescrever todos os elementos
da regra-matriz de incidência tributária (hipótese tributária, base de cálculo, alíquota,
sujeito ativo e sujeito passivo) necessários para a cobrança do ICMS no território de
sua competência.
O que fez o Conv. nº 66/88 e, posteriormente, a LC nº 87/96, foi
disciplinar as normas gerais necessárias à instituição do ICMS. Com relação ao
ICMS-Transporte, esses documentos normativos prescreveram o conteúdo possível
dos elementos da regra-matriz, o qual em linhas gerais, pode ser esquematizado da
seguinte forma:
183
HIPÓTESE TRIBUTÁRIA:
Critério material : prestar serviços de transporte interestadual e
intermunicipal, por qualquer via,425 de pessoas, bens, mercadorias ou
valores (art. 2º., IX do Conv. nº 66/88 e art. 2o., II da LC 87/96);
Critério temporal : no início da prestação do serviço (art. 27, II, “b” do
Conv. nº 66/88 e art. 13, V da LC 87/96);
Critério espacial : limites geográficos dos Estados e do Distrito Federal
onde se inicia a prestação de serviço (art. 27, II, “b” do Conv. nº 66/88 e
art. 11, II, “a” da LC 87/96)
CONSEQUENTE TRIBUTÁRIO:
Critério quantitativo :
Base de cálculo : o preço do serviço (art. 4º. do Conv. nº 66/88 e art.
13, III da LC 87/96);
Alíquota : aquela fixada pelo ente político competente, dentro dos
limites impostos pelo Senado Federal (art. 155, §2o., IV da CF);
Critério pessoal :
Sujeito Ativo : Estado e Distrito Federal (art. 155, II da CF);
Sujeito Passivo : qualquer pessoa, física ou jurídica, que realize, com
habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial,
prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal (art.
21, caput e parágrafo único, II do Conv. nº 66/88 e art. 4o., caput da LC
87/96).
A partir desses dispositivos, os Estados e o Distrito Federal editaram as
suas leis ordinárias instituindo o ICMS-Transporte no âmbito da sua competência,
bem como fixaram outros dispositivos necessários à operacionalização da
arrecadação e da fiscalização desse tributo.
425 A expressão “por qualquer via” só aparece na LC 87/96 (art. 2º., inciso II).
184
Ocorre que os dispositivos tanto os do Convênio nº 66/88, quanto os da
LC nº 87/96 não veiculam a expressão “transporte aéreo”. Eles apenas disciplinam a
possível incidência do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte
interestadual e intermunicipal, sem fazer menção expressa a esse tipo de transporte.
Tal omissão possibilitou a criação de argumentos pela não-incidência desse imposto
no setor aéreo.
O que se busca nas ações judiciais é a declaração de
inconstitucionalidade da norma jurídica geral e abstrata que, construída a partir
desses veículos normativos, permite a instituição do ICMS sobre a prestação de
serviço de transporte aéreo, impedindo, assim, que os Estados e o Distrito Federal
cobrem ICMS sobre esse tipo de prestação de serviço.
Observa-se que as declarações de inconstitucionalidade sob análise não
terão por objeto o campo sintático dos enunciados prescritivos, ou seja, não
causarão supressão de texto. Os pedidos dessas ações são as declarações de
inconstitucionalidade da possível interpretação construída a partir do enunciado
“prestação de serviço de transporte”, no intuito de abarcar a “prestação de serviço
transporte aéreo” no campo de incidência de ICMS. A questão versa sobre os
campos semântico e pragmático dos textos jurídicos.426
Nos tópicos seguintes, dar-se-á destaque aos fundamentos arrolados na
decisão da Medida Liminar na ADI nº 1089-1427 – julgada em 04-08-1994 e publicada
no D.J. 27-06-1997 –, e na Decisão Final da ADI nº 1089-1428 – julgada em 12-09-
1996 e publicada no D.J. 27-06-1997. Essas decisões versam sobre a
426 CRISTIANE MENDONÇA explica a diferença entre declaração de inconstitucionalidade com ou sem redução de texto: “Pela declaração de inconstitucionalidade com redução de texto, o Judiciário opera no plano da literalidade textual, com vista a expulsar do sistema normativo aqueles signos lingüísticos que se incompatibilizam com a Constituição, ou mesmo o próprio veículo introdutor de normas. [...] Já na hipótese de declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, o suporte textual (palavras, frases, parágrafos, etc...) é mantido inalterado pelo Judiciário. Declara-se inconstitucional determinada norma jurídica (significação) que se incompatibiliza com o Diploma Maior. O produto legislado permanece igualmente intacto quando a técnica de decisão utilizada é a interpretação conforme a Constituição. (Competência Tributária, 2005, pp. 274-275). 427 ADI 1089 MC, Relator(a): Min. FRANCISCO REZEK, Tribunal Pleno, julgado em 04-08-1994, DJ 27-06-1997, PP-30224 EMENT VOL-01875-01 PP-00180. Disponível em: <http//:www.stf.jus.br.> Acesso em: 9 de agosto de 2011. 428 ADI 1089, Relator(a): Min. FRANCISCO REZEK, Tribunal Pleno, julgado em 29-05-1996, DJ 27-06-1997 PP-30224 EMENT VOL-01875-02 PP-00220. Disponível em: <http//:www.stf.jus.br>. Acesso em: 9 de agosto de 2011.
185
inconstitucionalidade dos dispositivos do Convênio nº 66/88, que, antes da edição da
LC 87/96, com base no art. 34, §8º. da ADCT, fixou as normas gerais necessárias à
instituição do ICMS pelos Estados e pelo Distrito Federal até a edição da lei
complementar.
Após, a análise de cada voto dos ministros que participaram das sessões
de julgamento, será dedicado um item para se falar sobre a decisão final na ADI
1600-8 que trata do mesmo tema, mas se refere aos dispositivos da Lei
Complementar nº 87/96, que foi editada com fundamento no art. 146, III e art. 155,
§2º., XII da CF/88. Essa lei, conhecida como Lei Kandir, estabelece as normas
gerais do ICMS e revogou o Convênio nº 66/88.
Segundo o STF, os Estados e o Distrito Federal não poderão tributar, por
meio do ICMS, o serviço de transporte aéreo, pois as normas gerais e abstratas
construídas a partir da expressão “prestação de serviço de transporte interestadual e
intermunicipal”, veiculada nos textos jurídicos do Conv. nº 66/88 e da LC nº 87/96,
que alcançam a prestação de serviço de transporte aéreo, são, segundo os ministros
da Corte Suprema, inconstitucionais.
Em síntese, valendo-se da estrutura de argumentação proposta por
TOULMIN, é possível visualizar, inicialmente, a “alegação” e os “dados” das ADIs
que se refere ao Conv. nº 66/88 e à LC nº 87/96, respectivamente:
ADI nº 1089-1
(Objeto de inconstitucionalidade: norma jurídica construída a partir do
Convênio 66/88)
DADOS ("se"):
O texto do Convênio nº 66/88, publicado em 6-12-1988, não menciona expressamente "transporte aéreo", mas viabiliza a construção da norma jurídica que permite aos Estados e ao Distrito Federal instituírem o ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo interestadual e intermunicipal, sem respaldo constitucional.
ALEGAÇÃO ("deve-ser"):
O STF deverá declarar inconstitucional a norma jurídica que permite a instituição do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, construída a partir do Convênio nº 66/88.
(“então”)
186
ADI nº 1600-8
(Objeto de inconstitucionalidade: norma jurídica construída a partir da LC
87/96)
Percebe-se, de pronto, que a dificuldade de se passar dos “dados” para a
“alegação” não se deve apenas a uma possível falta de familiaridade no manejo de
tais conceitos, mas à omissão das “garantias” e dos “apoios” que são partes
imprescindíveis da estrutura argumentativa e que devem ser construídas a partir da
argumentação registrada pelo intérprete.
5.3 MEDIDA CAUTELAR NA ADI Nº 1089-1 E ADI Nº 1089-1
Em 04 de agosto de 1994, o STF concedeu, por maioria dos votos, a
medida liminar para suspender os efeitos dos atos normativos que previam a
incidência do ICMS sobre a prestação de serviços de navegação aérea na ADI
1089-1. E, em 12 de setembro de 1996, o STF julgou, por unanimidade, julgou
procedente essa Ação Direta de Inconstitucionalidade para excluir da interpretação
do Convênio nº 66/88 a navegação aérea, sem redução de texto, no âmbito de
compreensão das palavras “serviços de transportes interestadual e intermunicipal”.
O Procurador-Geral da República, Aristides Junqueira Alvarenga, propôs
a ADI 1089-1,429 utilizando-se dos fundamentos expostos na inicial da ADI 1083-2,430
429 Petição inicial disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=1089&processo=1089>. Acesso em: 13 de agosto de 2011.
DADOS ("se"):
O texto da LC 87/96, publicado em 16-9-1996, não menciona expressamente "transporte aéreo", mas viabiliza a construção da norma jurídica que permite aos Estados e ao Distrito Federal instituírem o ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo interestadual e intermunicipal, sem respaldo constitucional.
ALEGAÇÃO ("deve-ser"):
O STF deverá declarar inconstitucional a norma jurídica que permite a instituição do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, construída a partir da LC 87/96.
(“então”)
187
proposta pelo Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias.431 Esta última foi
julgada extinta, em razão da ilegitimidade ativa do Sindicato, mas apensada à ADI
1089-1.
5.3.1 Argumentos do Procurador-Geral da República para embasar
o pedido de declaração de inconstitucionalidade
Como tanto os argumentos elencados pelo Sindicato, quanto os
acrescentados pelo Procurador-Geral da República são mencionados pelos
Ministros nos seus votos, abaixo eles serão tratados conjuntamente, registrando-se,
após a transcrição, a autoria da peça processual da qual eles foram retirados.
Vejam-se o seguinte:
(a) O serviço transporte aéreo não está contido na expressão “serviço de
transporte”, utilizada no art. 155, I, “b” da CF/88, como evidencia a análise histórica
da utilização da expressão e dos trabalhos da Assembleia Constituinte:
A expressão serviço de transporte não alcança os serviços de transporte aéreo, integrante do conceito de navegação aérea, que a constituição define como serviço público, atribuindo a sua exploração e regulamentação privativamente à União.
[...]
Sendo competência privativa da União, legislar sobre os serviços da navegação aérea, não podem os Estados invadir essa área de competência exclusiva, tendo o legislador constituinte de 88, inclusive, evitado na dicção constitucional a utilização do vocábulo “transporte”, de tal forma que não considerou a navegação aérea como tributável e, desta forma, a cobrança de ICMS pelos Estados é ilegítima e inconstitucional.
[...]
A constituição Federal, nas letras “b”, inciso I do art. 155, ao estabelecer a competência aos Estados e ao Distrito Federal, para cobrança do ICMS, determinou a incidência do Imposto sobre “Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de
430 Petição inicial disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=1083&processo=1083.>. Acesso em: 13 de agosto de 2011. 431 Antes da alteração feita pela Emenda Constitucional nº 3, de 17 de março de 1993, o ICMS estava previsto no art. 155, I, “b”.
188
Comunicações, ainda que as operações e as prestações se iniciam no exterior.
É oportuno ressaltar que, na expressão genérica TRANSPORTE, não se insere a NAVEGAÇÃO AÉREA, por serem atividades distintas, e essa distinção é feita pela própria Constituição Federal, em seus artigos 21 e 22 [...].
(Petição do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias)
--------------------------------------------------------------------------------------------
A locução “serviços de transporte interestadual e intermunicipal”, constante do art. 155, I, alínea b, da Constituição Federal, contudo, não compreende a navegação aérea. Demonstra-o o elemento histórico, seja, pelo significado que se atribuiu a expressões idênticas nos textos constitucionais precedentes, especificamente para efeito de incidência de impostos sobre serviços de transporte, seja pelos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, que revelam o objetivo de ampliar o campo de incidência do artigo ICM, nele incluindo os serviços de qualquer natureza anteriormente submetidos à tributação municipal, e os serviços de transporte rodoviário interestadual e intermunicipal de passageiros e cargas, até então sujeitos à tributação federal. Demonstra-o, igualmente, a própria dicção constitucional, e que se utiliza as expressões “serviços de transporte” para referir o transporte rodoviário e ferroviário (CF/88, art. 21, XII e XIII, e 22, IX) e “navegação aérea e aeroespacial”, no tocante à exploração dos serviços aéreos e aeroespaciais (CF/88, arts. 21, XII, e 22, X).
(Petição Inicial do Procurador-Geral da República)
(b) O Convênio não pode autorizar a instituição do ICMS sobre o
transporte aéreo, pois essa matéria é exclusiva da União:
O art. 24, inciso I, parágrafo 3º. não dá respaldo para que, na falta de lei complementar, exercitem competência legislativa plena, instituindo o ICMS sobre os serviços de navegação aérea em seus respectivos territórios.
A navegação aérea não têm caráter local e sim nacional, não estando, pois, na previsão do parágrafo 3º. do Artigo 24 da CF, que se refere ao atendimento de peculiaridades de cada unidade da federação.
Em decorrência dessas circunstâncias, os Estados não podem, via convênio legislarem, quando a existência de lei complementar é necessária e prevista, como no caso da navegação aérea e, portanto, imprescindível.
Os fundamentos acima expostos evidenciam que é da competência exclusiva da União legislar sobre ICMS para navegação aérea, sendo, desta forma, inconstitucional o CONVÊNIO ICMS 66/88, e demais convênios posteriores que regularam a matéria e que já foram mencionados no preâmbulo desta petição.
[...]
189
Os serviços de NAVEGAÇÃO AÉREA, por serem ESSENCIAIS, UNIVERSAIS E DE SEGURANÇA NACIONAL, não podem ficar sujeitos à qualquer espécie de interferência de outras entidades da Federação, seja Estadual, ou Municipal, daí resultando a razão de ser privativa a competência legislativa, sem qualquer exceção de natureza constitucional.
(Petição Inicial do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias)
--------------------------------------------------------------------------------------------
Ademais, a competência para legislar sobre navegação aérea é privativa da União, à qual também compete a exploração desse serviço, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão (CF/88, arts. 22, I e X, e 21, XII, c). Nenhuma ressalva inequívoca existe no texto constitucional que permita aos Estados legislar para o exercício do pretendido poder impositivo na matéria.
(Petição Inicial do Procurador-Geral da República)
(c) O Convênio não pode autorizar a instituição do ICMS sobre o
transporte aéreo, mas apenas regular provisoriamente a matéria, pois se trata de
imposto novo:
A nova constituição, de 1988, modificando o sistema tributário, possibilitou aos Estados a cobrança de ICMS sobre determinadas transações, mas não autorizou, sem lei complementar a cobrança de ICMS, sobre a Navegação Aérea. O caso presente se reveste de característica especial, de vez que as Empresas Regulares de Transporte Aéreo estavam isentas do antigo imposto correspondente, e essa cobrança representa um novo imposto e somente Lei Complementar pode autorizar.
(Petição Inicial do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias)
(d) Os Estados em nada contribuem para a manutenção e para a
conservação dos aeroportos, e a cobrança do ICMS sobre o serviço de transporte
geraria duplicidade de contribuição:
Cabem ao Ministério da Aeronáutica e à Infraero, a construção, manutenção e conservação dos aeroportos e serviços de comunicação, imprescindíveis à Navegação Aérea. Esses serviços são pagos pelas empresas de navegação aérea e representam elevados custos.
Os Estados nada fazem, e a prevalecer a interpretação por eles pretendida, ficariam com a arrecadação sem quaisquer atribuições e responsabilidades e as empresas aéreas, contribuindo em duplicidade.
Para comprovar que há duplicidade de contribuição das empresas de navegação aérea, o requerente registra, a seguir, o que vem sendo pago de tarifas aeroportuárias por uma das Empresas – a VARIG, que serve de exemplo para as demais.
(Petição Inicial do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias)
190
(e) A imunidade tributária recíproca alcança as empresas aéreas, por
serem elas prestadoras de serviço público:
A análise dos dispositivos constitucionais aplicáveis à imunidade tributária dos serviços públicos, leva à conclusão de que a Navegação Aérea, estando incluída entre esses mesmos serviços públicos, não é alcançada pelo ICMS [...].
A incidência do ICMS recai, pois, sobre fatos decorrentes de contratos de cunho eminentemente privado. Os serviços “de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicações” sobre os quais incide o imposto são, exclusivamente, os regidos pelo direito privado, em que constata a igualdade das partes contratantes e a autonomia das vontades.
[...]
É incontroverso que os serviços de navegação aérea, independentemente da natureza da pessoa jurídica que os exerça, é um serviço eminentemente público, havendo, pois, sua submissão ao regime de direito público decorrente da lei, pois nas concessões o que se concede não é o serviço, mas a sua execução. O serviço é sempre público, o titular é sempre pessoa pública.
A navegação aérea é, pois induvidosamente um serviço público e a CONSTITUIÇÃO FEDERAL coloca fora do campo tributável da UNIÃO, dos ESTADOS, do DISTRITO FEDERAL e dos MUNICÍPIOS, certos bens, pessoas e serviços.
(Petição Inicial do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias)
(f) A navegação aérea só poderia ser tributada por taxa, por ser um
serviço público:
No sistema constitucional tributário brasileiro, sempre que se criar tributos sobre serviços públicos, necessariamente deverá ter a natureza de taxa.
[...]
Os serviços públicos subordinam-se ao regime de Direito Público, não se confundindo com os serviços prestados sob o regime de direito privado, passível de tributação por imposto.
[...]
Não há, pois, como se pretender cobrar ICMS sobre serviços de navegação aérea e, portanto, sobre serviços públicos insuscetíveis de tributação através de imposto.
(Petição Inicial do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias)
(g) O Convênio 66/88 fere o princípio da isonomia tributária:
A ISONOMIA TRIBUTÁRIA é princípio constitucional e a análise dos julgados mencionados acima, que exigem lei complementar para aplicação do Convênio 66/89 nos casos que especifica, leva, induvidosamente à conclusão de que a exigência de Lei
191
Complementar, para que se possa aplicar o referido convênio às empresas de transporte aéreo, que se incluem nas normas Constitucionais da navegação aérea se enquadra, perfeitamente, no princípio acima mencionado.
(Petição Inicial do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias)
Observa-se que os argumentos acima transcritos são utilizados como
apoio das garantias. Estas, por sua vez, permitem a relação de implicação entre os
dados e a alegação. Veja-se a estrutura da argumentação do pedido no seguinte
esquema:
DADOS ("se"):
O texto do Convênio nº 66/88, publicado em 6-12-1988, não menciona expressamente "transporte aéreo", mas viabiliza a construção da norma jurídica que permite aos Estados e ao Distrito Federal instituírem o ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo interestadual e intermunicipal, sem respaldo constitucional.
ALEGAÇÃO ("deve-ser"):
O STF deverá declarar inconstitucional a norma jurídica que permite a instituição do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, construída a partir do Convênio nº 66/88.
(“então”)
GARANTIAS (“já que”):
• Compete ao STF declarar a inconstitucionalidade das normas jurídicas veiculadas em atos normativos infraconstitucionais. • A norma jurídica construída a partir do texto do Convênio nº 66/88, que permite a instituição do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, é inconstitucional.
APOIOS (“por conta de”):
o A competência do STF para julgar a ADI 1089-1 está prescrita pela CF/88 no artigo 102, I, "a". o A inconstitucionalidade da norma jurídica está demonstrada, uma vez que:
o O serviço transporte aéreo não está contido na expressão “serviço de transporte”, utilizada no art. 155, II da CF/88, como evidencia a análise histórica da utilização da expressão e dos trabalhos da Assembleia Constituinte (Argumento “a”);
o O Convênio não pode autorizar a instituição do ICMS sobre o transporte aéreo, pois essa matéria é exclusiva da União (Argumento “b”);
o O Convênio não pode autorizar a instituição do ICMS sobre o transporte aéreo, mas apenas regular provisoriamente a matéria, pois se trata de imposto novo (Argumento “c”);
o Os Estados em nada contribuem para a manutenção e conservação dos aeroportos, e a cobrança do ICMS sobre o serviço de transporte geraria duplicidade de contribuição (Argumento “d”);
o A imunidade tributária recíproca alcança as empresas aéreas, por serem elas prestadoras de serviço público (Argumento “e”);
o A navegação aérea só poderia ser tributada por taxa, por ser um serviço público (Argumento “f”); o O Convênio 66/88 fere o princípio da isonomia tributária (Argumento “g”).
192
5.3.2 Argumentos para o pedido de medida cautelar
Ao final da petição inicial, o Procurador-Geral da República pede a
concessão de medida cautelar valendo-se também dos fundamentos formulados
pelo Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias no ajuizamento da ADI 1083-2,
que apresentou os seguintes argumentos para a alegação de que o STF deveria
suspender, liminarmente, os efeitos da suposta norma inconstitucional construída a
partir do texto do Convênio 66/88:
(a) A situação financeira das empresas aéreas é precária:
O requerente junta à presente algumas publicações de conceituados órgãos da nossa imprensa que divulgam seguidamente notícias sobre a precária situação econômico-financeira das Empresas Brasileiras de Navegação Aérea. (doc. ).
As três principais Empresas VARIG, TRANSBRASIL E VASP, que representam cerca de 90% dos serviços de navegação aérea do país, de 1989 para cá, estão acumulando grandes prejuízos, tendo havido, praticamente a erosão de todo o seu patrimônio resultado em todas elas, quase meio século de trabalho dedicado.
Transcreve-se abaixo a evolução do patrimônio líquido das Empresas, verificando-se que de um patrimônio positivo de US$ 872.366,00 (OITOCENTOS E SETENTA E DOIS MIL, TREZENTOS E SESSENTA E SEIS DÓLARES) passou-se para um patrimônio negativo de US$ 251.454,00 (DUZENTOS E CINQÜENTA E UM MIL, QUATROCENTOS E CINQÜENTA E QUATRO DÓLARES).
(Petição Inicial do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias)
(b) O efeito social é sentido com a redução da força de trabalho:
A evolução da força de trabalho na Indústria de Transporte Aéreo, conforme quadro que se transcreve abaixo, demonstra que nos último 5 anos houve uma redução da força de trabalho de cerca de 5.000 funcionários. Caso não haja uma reversão da expectativa, essa redução da força de trabalho deverá alcançar 10.000 funcionários. Somente a VARIG, anunciou uma nova redução imediata de mais 2.800 funcionários, merecendo destaque que essa redução, na grande maioria, se constitui de trabalhadores altamente qualificados.
(Petição Inicial do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias)
Visualiza-se, a partir da daí, a seguinte estrutura argumentativa:
193
5.3.3 Fundamentação dos votos dos ministros referentes ao pedido
de medida cautelar na ADI 1089-1
Neste tópico serão destacados os argumentos registrados nos votos dos
nove432 ministros que participaram das sessões de julgamento do pedido da medida
liminar na ADI 1089-1. Os nove ministros, citados em ordem de votação, são:
Francisco Rezek (Relator), Ilmar Galvão, Marco Aurélio, Carlos Velloso, Sepúlveda
Pertence, Sydney Sanches, Néri da Silveira, Moreira Alves e Paulo Brossat.
Após a síntese de cada argumento, será transcrito o trecho do voto de
onde aquele argumento foi retirado. Quando o ministro utilizar os fundamentos
registrados no voto de outro ministro, só os argumentos serão repetidos. Ao final,
será apresentada a estrutura de argumentação de cada voto, onde constarão
apenas os argumentos que, inicialmente, parecem ter alguma relação com as
432 O Ministro Celso de Mello participou das sessões de julgamento, mas o seu voto não consta no processo, apesar de ser mencionado no Extrato de Ata, como autor de um dos votos vencidos.
DADOS ("se"):
A tese apresentada na ADI 1089-1 possui razoabilidade jurídica (fumus boni juris) e o lapso temporal entre o ajuizamento dessa ação e a decisão final pode causar danos de difícil reparação (periculum in mora) às empresas aéreas.
ALEGAÇÃO ("deve-ser"):
O STF deverá conceder medida cautelar para suspender os efeitos da norma questionada até a decisão final da ADI 1089-1.
(“então”)
GARANTIAS (“já que”): • Compete ao STF processar e julgar o pedido de medida cautelar nas ações diretas de inconstitucionalidade; • A presença de fumus boni juris e de periculum in mora justifica a concessão da medida cautelar.
APOIOS (“por conta de”):
• A competência do STF para julgar o pedido de medida cautelar na ADI 1089-1 está prescrita na CF/88 no art. 102, I, "p".
• O fumus boni juris e o periculum in mora encontram-se presentes na ADI 1089-1, uma vez que: o A situação financeira das empresas aéreas é precária; o O efeito social é sentido com a redução da força de trabalho.
194
garantias fixadas. Os demais serão comentados fora da estrutura e, no próximo
item, serão reanalisados.
5.3.3.1 Voto do Ministro Relator Francisco Rezek
O Ministro Francisco Rezek figurou como Ministro Relator tanto na
decisão da medida cautelar, quanto na decisão final da ADI 1089-1. Destacam-se os
seguintes argumentos registrados no voto do ministro que decidiu pelo deferimento
da medida:
(a) A tese de que as empresas aéreas estariam imunes tem fundamento
teórico, mas colide com a prática tributária:
Sob uma ótica estritamente teórica, ela [a tese da imunidade recíproca] faz sentido. Um serviço público não o deixa de ser, para determinar-se a pertinência ou não do princípio da imunidade recíproca, pelo fato de materializar-se na ação de empresa a tanto autorizada pelo poder público. A proposta nada tem de extravagante, mas colide com os ensinamentos da nossa prática tributária. Não é preciso ir longe para encontrar situações em que também nos vemos diante de concessão ou permissão do poder público sem que, por isso, a instituição particular concessionária ou permissionária esteja liberada de honrar determinadas obrigações tributárias. O princípio da imunidade recíproca, decididamente, não tem aí operado.
Ante a verossimilhança da tese no plano teórico e sua dificuldade de ajuste à nossa tradição tributária, diríamos ver aí bom material de análise para a Suprema Corte à hora do julgamento do mérito da ação direta.
(b) A tese da lei complementar não foi o “ânimo” para concessão da
cautelar, uma vez que se opõe ao prescrito no art. 34, §8º. da ADCT, que permite a
edição de convênio:
Um segundo e último exemplo de proposição da inicial, a depender da qual não teria me animado a proferir o despacho concessivo da liminar ad referendum é a tese pertinente à lei complementar.
[...]
A tese de que lei complementar teria sido necessária para aquilo que esta série de convênios veio produzir, opõe-se o art. 34, §8º do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias [...].
(c) A tese essencial que levou à concessão da cautelar está ligada ao
significado da expressão “serviços de transporte interestadual e intermunicipal”, não
195
ao alcance semântico, mas àquele querido pelo legislador constituinte, conforme
pode ser constatado na análise histórica dos trabalhos realizados pela Assembleia
Constituinte:
[...] a expressão transportes é semanticamente capaz de compreender tudo quanto tenha a virtude de fazer mover alguma coisa de um ponto a outro do espaço. Parece-me, portanto, ociosa a discussão em torno de saber se o transporte aéreo é ou não espécie do gênero transporte. Não é esse o ponto.
Não foi com base numa interpretação esotérica da palavra transportes que me animei a conceder a liminar, mas foi mediante a análise da composição desta alínea no contexto dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte.
Tive, naturalmente, que socorrer-me de anais e de doutrina, a fim de ver o que exatamente aconteceu. E resultou claríssimo que o Constituinte de 1988, quando construiu o chamado “novo ICMS”, fê-lo por composição de ingredientes vários, entre os quais não se encontrava nada que dissesse respeito ao transporte aéreo – como, de resto, tampouco ao transporte ferroviários. O elemento tributário que veio a compor, ao lado dos outros, o novo ICMS, era um imposto relacionado única e exclusivamente com o transporte de superfície, com o transporte rodoviário.
A esse respeito, dados originários do Congresso Nacional fazem ver que na Carta de 67 ficara estatuído (artigo 22) que compete à União decretar imposto sobre serviços de transportes e comunicações. Um decreto-lei do mesmo ano instituiu então o imposto sobre o transporte interestadual e intermunicipal de passageiros, efetuado por empresas rodoviárias. A Emenda 69 não muda coisa alguma. Um decreto-lei no ano de 75 estende a incidência do imposto para o transporte de cargas [...].
(Grifou-se)
(d) Se as empresas aéreas não pertencem ao Estado nem dele recebem
subsídios, ao menos deve ser-lhes dado um tratamento fiscal condizente com o alto
risco do empreendimento:
Anos atrás causa espécie o fato de que o Brasil perfilasse, com os Estados Unidos da América, entre aqueles raros países onde a aviação civil internacional era exercitada por empresa particular, quando a regra não era essa. A regra era e continua sendo – apesar de alguns empreendimentos privatizantes, destacadamente no Reino Unido – a empresa pertencer ao Estado. Se não lhe pertence é de algum modo por ele subsidiada. Se a ele não pertence nem por ele é subsidiada, é objeto de um tratamento fiscal condizente com a percepção do alto risco que esse tipo de empreendimento comporta.
(e) Uma coisa é aquilo que o convênio pode naturalmente estabelecer, e
outra coisa é aquilo que ele pode prever quando, excepcionalmente, trata de matéria
196
reservada à lei complementar. A inovação trazida pelo convênio com relação ao
transporte aéreo teria causado menos surpresa se tivesse sido tratada por lei
complementar:
Parece-me, por outro lado, que uma coisa é aquilo que o convênio pode naturalmente estabelecer; e outra coisa é aquilo que o convênio pode estabelecer quando ele está, excepcionalmente, sendo chamado a fazer as vezes de lei complementar à Constituição. Essa importante inovação, consistente em trazer a aviação civil ao âmbito do ICMS, talvez surpreendesse menos se a própria lei complementar houvesse tomado tal caminho.
(f) Apesar de ser um defensor de que o periculum in mora não se justifica
nos casos em que muito tempo transcorreu entre a suposta inconstitucionalidade e o
ajuizamento da ação, o caso em questão traz uma singularidade que é a gravidade
dos riscos econômicos das empresas aéreas, apesar da demora dessas em
procurar o Judiciário.
Fui ao longo de anos uma das vozes mais insistentes na tese de que não é justo pedir-se ao Supremo uma decisão rápida, em juízo liminar, quando se esperou muito tempo para trazer a matéria ao Tribunal. Entretanto, o quadro com que defrontamos neste caso é singular. Estamos vivendo um momento internacional de sucessivas falências neste exato setor. A mais tradicional das companhias aéreas da mais pujante das democracias ocidentais quebrou, estrondosamente, há cerca de dois anos. [...] De fato, as normas em exame são do final dos anos oitenta, e não de alguns meses atrás. Sucede que só recentemente a máquina fiscal parece ter criado para o contribuinte um risco de efetivo de colapso.
(g) Com relação ao lapso temporal, atenua-se a demora em razão das
dúvidas sobre a legitimidade ativa do sindicato e destaca-se que, em data recente, o
Procurador-Geral tomou conhecimento e ficou sensível à tese das empresas aéreas:
Vale lembrar também que neste caso o autor da ação direta é o Procurador-Geral da República. Sabemos que ele foi sensível à tese das empresas desde quando teve conhecimento desta postulação, e portanto em data recente. Mas é atenuante dessa demora o fato de que havia dúvidas sobre a própria legitimidade do sindicato dessas empresas.
A partir desses argumentos é possível visualizar a seguinte estrutura de
argumentação:
197
Com relação aos demais argumentos que não compuseram a estrutura
apresentada acima, pode-se afirmar que:
(i) os argumentos “a” e “b” negam a garantia, na medida em que afastam
a razoabilidade das teses sobre a imunidade tributária das empresas aéreas e sobre
a necessidade de lei complementar;
(ii) os argumentos “d” e “e” em nada se relacionam às garantias, uma vez
que, da constatação de que no Brasil há uma política pública com relação às
MC/ADI 1089-1 - Voto do Ministro Relator Francisco Rezek
DADOS ("se"):
A tese apresentada na ADI 1089-1 possui razoabilidade jurídica (fumus boni juris) e o lapso temporal entre o ajuizamento dessa ação e a decisão final pode causar danos de difícil reparação (periculum in mora) às empresas aéreas.
ALEGAÇÃO ("deve-ser"):
O STF deverá conceder medida cautelar para suspender os efeitos da norma questionada até a decisão final da ADI 1089-1.
(“então”)
GARANTIAS (“já que”): • Compete ao STF processar e julgar o pedido de medida cautelar nas ações diretas de inconstitucionalidade; • A presença de fumus boni juris e de periculum in mora justifica a concessão da medida cautelar.
APOIOS (“por conta de”):
• A competência do STF para julgar o pedido de medida cautelar na ADI 1089-1 está prescrita pela CF/88 no art. 102, I, "p".
• O fumus boni juris e o periculum in mora encontram-se presentes na ADI 1089-1, uma vez que:
o Há razoabilidade na tese com relação ao significado da expressão “serviços de transporte interestadual e intermunicipal”, não ao alcance semântico, mas àquele querido pelo legislador constituinte, conforme pode ser constatado na análise histórica dos trabalhos realizados pela Assembleia Constituinte (Argumento “c”);
o Apesar de ser um defensor de que o periculum in mora não se justifica nos casos em que muito tempo transcorreu entre a suposta inconstitucionalidade e o ajuizamento da ação, o caso em questão traz uma singularidade que é a gravidade dos riscos econômicos das empresas aéreas, apesar da demora dessas em procurar o Judiciário (Argumento “f”);
o A demora na propositura da ação também decorre das dúvidas sobre a legitimidade ativa do sindicato e destaca-se que, em data recente, o Procurador-Geral tomou conhecimento e ficou sensível à tese das empresas aéreas (Argumento “g”).
198
empresas aéreas diversa da de outros países e de que a lei complementar causaria
“menos surpresa” do que o Convênio não se chega à afirmação de que há fumus
boni juris nem de que há periculum in mora.
5.3.3.2 Voto do Ministro Ilmar Galvão
O Ministro Ilmar Galvão deferiu o pedido de medida cautelar, com base
nos argumentos pontuados abaixo e com apoio nos argumentos do Min. Francisco
Rezek no que tange ao periculum in mora:
(a) Há relevância na questão apreciada:
[...] sem aprofundar a análise de mérito do pedido, que fica relegada para o julgamento final, não posso, entretanto, deixar de reconhecer relevância na questão ora apreciada [...].
(b) Não se vislumbra ausência de lei complementar, pois essa foi
substituída pelo convênio nos termos do art. 34, § 4º. do ADCT:
[....] não vislumbro ausência de lei complementar, que tenho por legitimamente substituída pelo convênio, como autorizado no art. 34, § 8º., do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias [...].
(c) Não se trata de imunidade tributária:
[...] nem no fato e tratar-se de serviço federal concedido, já que os concessionários não desfrutam de imunidade tributária, mas, sim, no inusitado da exigência fiscal sobre transporte aéreo, apesar de o transporte, tal como genericamente descrito na atual Constituição, já ter sido anteriormente tido como hipótese de incidência tributária, embora alusiva a imposto federal, sem que jamais a União houvesse tomado a iniciativa de tributar essa espécie de atividade.
(d) A navegação aérea não se confunde com transporte aéreo, como
sustentado na inicial:
[...] navegação aérea, efetivamente, não se confunde com transporte para os efeitos fiscais, como sustentado na inicial.
199
(e) A relevância está aliada ao periculum in mora tratado no voto do Min.
Rel. Francisco Rezek:
A relevância, no caso, está aliada ao periculum in mora, como bem demonstrou o eminente Relator, encontrando-se presentes, portanto, os pressupostos da cautelar que, por isso, também defiro.
Dessa forma, tem-se a seguinte estrutura de argumentação:
DADOS ("se"):
A tese apresentada na ADI 1089-1 possui razoabilidade jurídica (fumus boni juris) e o lapso temporal entre o ajuizamento dessa ação e a decisão final pode causar danos de difícil reparação (periculum in mora) às empresas aéreas.
ALEGAÇÃO ("deve-ser"):
O STF deverá conceder medida cautelar para suspender os efeitos da norma questionada até a decisão final da ADI 1089-1.
(“então”)
GARANTIAS (“já que”): • Compete ao STF processar e julgar o pedido de medida cautelar nas ações diretas de inconstitucionalidade; • A presença de fumus boni juris e de periculum in mora justifica a concessão da medida cautelar.
MC/ADI 1089-1 - Voto do Ministro Ilmar Galvão
APOIOS (“por conta de”):
• A competência do STF para julgar o pedido de medida cautelar na ADI 1089-1 está prescrita pela CF/88 no art. 102, I, "p".
• O fumus boni juris e o periculum in mora encontram-se presentes na ADI 1089-1, uma vez que:
o Há relevância na questão apreciada (Argumento “a”); o A navegação aérea não se confunde com transporte aéreo, como sustentado na inicial (Argumento
“d”); o A relevância está aliada ao periculum in mora tratado no voto do Min. Rel. Francisco Rezek
(Argumento “e”).
200
5.3.3.3 Voto do Ministro Marco Aurélio
O Ministro Marco Aurélio chega à decisão, que ele diz tomar “com o
coração partido”, de que o STF não deve conceder a medida cautelar na ADI 1089-
1. Percebe-se, pois, na estrutura abaixo que os dados, a alegação e as garantias
são negados pelo Ministro, em razão dos seguintes argumentos:
(a) O transporte aéreo está incluído no significado da expressão
“transporte” do art. 155, II da CF/88, uma vez que a questão semântica é conclusiva
e não há ressalvas no texto da Constituição:
Admitiu S. Exa. que, em bom vernáculo, em bom português, a alusão à prestação de serviço de transporte interestadual e intermunicipal alcança o transporte rodoviário, o ferroviário, o lacustre, o fluvial e também o marítimo. E a meu ver, Sr. Presidente, de início, diante da inexistência de qualquer ressalva contida nesse dispositivo, alcança, também, o transporte aéreo.
(b) Não se pode cogitar de imunidade tributária, pois as empresas não
estão incluídas no art. 150, VI, “a” e §2º.:
[...] não se pode cogitar, na espécie, de imunidade, porque o instituto está contemplado, na Carta de 1988, mediante preceitos exaustivos. Temos, no inciso VI do artigo 150, mais precisamente na alínea a, a vedação quanto à instituição de impostos sobre patrimônio, renda, ou serviço uns dos outros. A norma poderia suscitar dúvidas no tocante às autarquias e às fundações públicas. Objetivando afastá-las em definitivo, inseriu-se na Carta de 1988 o § 2º. do artigo em comento.
(c) A exclusividade da União prescrita no art. 21, XII, alínea “c” não obsta
à instituição do ICMS:
Argumentou-se, Senhor Presidente, que o tema em debate é da disciplina exclusiva da União. E o é. [...] Indaga-se: esse fato é suficiente a atrair a impossibilidade de os Estados virem a optar pela incidência do ICMS? Não, não o é, porque, caso contrário, teríamos que admitir a mesma coisa quanto à energia elétrica, à informática, às telecomunicações, à radiodifusão, às comunicações, à propaganda comercial e, até mesmo, ao transporte rodoviário.
(d) O convênio substitui a lei complementar, nos termos do art. 34, §8º. do
ADCT:
201
[...] o § 8º do artigo 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, preceito que teve e ainda tem como escopo, acima de tudo, obstar a inércia do legislador e as nefastas repercussões dessa inércia [...]. Os Estados atuaram em face da autorização contida no §8º do artigo 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias do Diploma Básico de 1988.
(e) A grave situação das empresas não pode ser enquadrada como
periculum in mora, uma vez que os Estados não têm culpa quanto ao descompasso
entre preço e custo:
Tenho conhecimento da grave situação das empresas de transporte aéreo e, como cidadão, preocupa-me muito a quadra que essas empresas aéreas atravessam, que, dizem decorre dos diversos planos econômicos que foram lançados nos últimos anos e do achatamento dos preços das passagens aéreas. Indago: que culpa têm os Estados quanto a um descompasso existente entre esses preços e os custos dos serviços? Disse o Ministro Francisco Rezek que o ICMS foi previsto e passamos, portanto, a ter incidência do tributo em 1988. Devo presumir que, nos preços praticados hoje em dia, já se tenha a satisfação pelo contribuinte de fato, ou seja, a inserção da parte referente ao ICMS.
(f) O lapso temporal entre a edição do convênio e o ajuizamento da ação
é extenso para justificar o periculum in mora:
Esta ação somente foi ajuizada em 1994, seis anos após. Posso ver, no caso concreto, periculum in mora? Não posso, Senhor Presidente, segundo a jurisprudência sedimentada, porque repetida em inúmeros acórdãos, desta mesma Corte.
E com base nesses argumentos, é possível construir a seguinte estrutura:
202
5.3.3.4 Voto do Ministro Carlos Velloso
O ministro Carlos Velloso também negou a concessão da medida cautelar
na ADI 1089-1, com base nos seguintes argumentos:
MC/ADI 1089-1 - Voto do Ministro Marco Aurélio
DADOS ("se"):
A tese apresentada na ADI 1089-1 NÃO possui razoabilidade jurídica (fumus boni juris) e o lapso temporal entre o ajuizamento dessa ação e a decisão final NÃO pode causar danos de difícil reparação (periculum in mora) às empresas aéreas.
ALEGAÇÃO ("deve-ser"):
O STF NÃO deverá conceder medida cautelar para suspender os efeitos da norma questionada até a decisão final da ADI 1089-1.
(“então”)
APOIOS (“por conta de”):
• A competência do STF para julgar o pedido de medida cautelar na ADI 1089-1 está prescrita na CF/88 no art. 102, I, "p".
• O fumus boni juris e o periculum in mora NÃO se encontram presentes na ADI 1089-1, uma vez que:
o O transporte aéreo está incluído no significado da expressão “transporte” do art. 155, I, “b” da CF/88, uma vez que a questão semântica é conclusiva e não há ressalvas no texto da Constituição (Argumento “a”);
o Não se pode cogitar de imunidade tributária, pois as empresas não estão incluídas no art. 150, VI, “a” e §2º. (Argumento “b”);
o A exclusividade da União prescrita no art. 21, XII, alínea “c” não obsta a instituição do ICMS (Argumento “c”);
o O convênio substitui a lei complementar, nos termos do art. 34, §8º. do ADCT (Argumento “d”);
o O lapso temporal entre a edição do convênio e o ajuizamento da ação é extenso para justificar o periculum in mora (Argumento “f”).
GARANTIAS (“já que”): • Compete ao STF processar e julgar o pedido de medida cautelar nas ações diretas de inconstitucionalidade; • A ausência de fumus boni juris e de periculum in mora justifica a concessão da medida cautelar.
203
(a) A permissão para a instituição de tributo sobre o transporte aéreo já
existia nas Cartas anteriores e era de competência da União, o que não existia era
norma infraconstitucional prescrevendo a incidência:
Certo é que as normas infraconstitucionais que regulavam a matéria – imposto sobre transportes, salvo os de natureza estritamente municipal – não estabeleciam como hipótese de incidência a execução de serviço que a Constituição denomina de navegação aérea. Todavia, parece-me, diante do quadro normativo instaurado pela Constituição vigente, que é perfeitamente possível ao Estado-membro estabelecer, como hipóteses de incidência do ICMS, a execução do serviço de transporte aéreo (C.F. art. 155, II).
(b) A faculdade do art. 34, §8º só é possível em se tratando de imposto
novo, que é justamente o caso do ICMS sobre transporte:
A faculdade posta no § 8º do art. 34 do ADCT, para a edição de convênio pelos Estados-membros, como sucedâneo da lei complementar, em razão da inércia do Congresso, somente é possível em se tratando de imposto novo. É o que está no art. 34, § 8º, ADCT.
(c) O que foi tratado no julgamento do adicional de IR relaciona-se a outra
situação e não pode ser aplicado ao caso do Convênio nº 66/88:
O Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de leis complementares estaduais que estabeleciam o adicional de imposto de renda e o fundamento foi a inexistência de lei complementar. [...] Aqui, entretanto, o caso é diverso. Aqui, o convênio pode dispor a respeito.
(d) A imunidade recíproca refere-se ao ente público e não às empresas
privadas, como são as aeroviárias:
A imunidade posta no referido dispositivo constitucional, é sabido, é do ente público, é da administração direta, estendida às autarquias e às fundações públicas, na forma do § 2º do art. 150 da Constituição.
A disposição posta no § 3º no mesmo artigo 150 afastaria a pretensão de estender a imunidade a serviços que a Constituição considera públicos, cuja execução é concedida a particulares.
É possível, a partir daí, apresentar a seguinte estrutura de argumentação:
204
5.3.3.5 Voto do Ministro Sepúlveda Pertence
O ministro Sepúlveda Pertence iniciou o seu voto registrando que não
havia vencido “algumas perplexidades que o tema suscita”, mas que, entretanto,
votaria no mesmo sentido do Ministro Relator Francisco Rezek, registrando os
seguintes argumentos:
(a) A interpretação gramatical do art. 155, I, “b” da CF/88 não prevalece
em relação às demais interpretações:
MC/ADI 1089-1 - Voto do Ministro Carlos Velloso
DADOS ("se"):
A tese apresentada na ADI 1089-1 NÃO possui razoabilidade jurídica (fumus boni juris) e o lapso temporal entre o ajuizamento dessa ação e a decisão final NÃO pode causar danos de difícil reparação (periculum in mora) às empresas aéreas.
ALEGAÇÃO ("deve-ser"):
O STF NÃO deverá conceder medida cautelar para suspender os efeitos da norma questionada até a decisão final da ADI 1089-1.
(“então”)
APOIOS (“por conta de”):
• A competência do STF para julgar o pedido de medida cautelar na ADI 1089-1 está prescrita na CF/88 no art. 102, I, "p".
• O fumus boni juris e o periculum in mora NÃO se encontram presentes na ADI 1089-1, uma vez que:
o A permissão para a instituição de tributo sobre o transporte aéreo já existia nas Cartas anteriores e era de competência da União, o que não existia era norma infraconstitucional prescrevendo a incidência (Argumento “a”);
o A faculdade do art. 34, §8º só é possível em se tratando de imposto novo, que é justamente o caso do ICMS sobre transporte (Argumento “b”);
o O que foi tratado no julgamento do adicional de IR relaciona-se a outra situação e não pode ser aplicado ao caso do Convênio nº 66/88 (Argumento “c”);
o A imunidade recíproca refere-se ao ente público e não às empresas privadas, como são as aéreas (Argumento “d”).
GARANTIAS (“já que”): • Compete ao STF processar e julgar o pedido de medida cautelar nas ações diretas de inconstitucionalidade; • A ausência de fumus boni juris e de periculum in mora justifica a concessão da medida cautelar.
205
[...] no âmbito do julgamento cautelar em que estamos, Sr. Presidente, o voto do eminente Relator se me afigurou exemplar: bastou-me ele para me colocar em guarda contra a prevalência, no caso, interpretação gramatical do art. 155, I, b, da Constituição, de modo a inserir atividade econômica tão característica quanto a navegação aérea no conceito de transporte, que, é claro, literalmente a abrangeria.
(b) A relevância do tema está nas possíveis dificuldades na manutenção
de uma política nacional de tarifas, em razão da descentralização dos Estados-
membros no tratamento tributário da atividade de transporte aéreo e da inexistência
de normas centrais:
[...] as dificuldades da descentralização pelos Estados-membros do tratamento tributário desta atividade, sem a existência de normas centrais de sua compatibilização com uma política necessariamente nacional de tarifas de serviços aéreos, levam-me, pelo menos, a não poder negar a relevância da questão constitucional posta.
(c) A análise do periculum in mora é uma das tarefas mais cruciais do
STF:
Quanto ao periculum in mora , Sr. Presidente, é essa uma das tarefas mais cruciais desta Corte, desde quando este poder excepcional de suspensão de cautelar das normas argüidas de inconstitucionais se tornou, por efeito mesmo do congestionamento dos trabalhos do Tribunal, uma rotina, em que, muitas vezes, temos, à vista das circunstâncias, de abrandar a excepcionalidade que deveria ter o seu emprego.
(d) A exarcebação internacional da crise no setor aéreo afasta o óbice do
extenso lapso temporal até o ajuizamento da ação:
Mas, ainda aí, Sr. Presidente, a demonstração ou a recordação pelo eminente Relator do fato notório, da exarcebação internacional da crise da aviação comercial – [...] – parece-me bastante a superar, no caso concreto, o óbice do lapso temporal entre o primeiro dos convênios impugnados e o seu questionamento na via do controle abstrato de constitucionalidade.
(e) A crise é mais um argumento para mostrar que a atividade de
navegação aérea é muito séria para se deixada na mão de particulares:
[...] fato notório, da exarcebação internacional da crise da aviação comercial -, um argumento a mais, perdoem-me os neo-liberais açaimados, para mostrar que a atividade é muito séria para ser deixada em mãos de empresas privadas – [...].
206
Com relação aos demais argumentos, observa-se que:
(i) O argumento “b” fala da relevância política e econômica do tema e não
da relevância jurídica. A importância, segundo o Ministro está nas possíveis
dificuldades na manutenção de uma política nacional de tarifas, em razão da
descentralização dos Estados-membros no tratamento tributário da atividade de
transporte aéreo e da inexistência de normas centrais.
(ii) Os argumentos “c” e “e” em nada tocam as garantias. São impressões
pessoais do Ministro.
DADOS ("se"):
A tese apresentada na ADI 1089-1 possui razoabilidade jurídica (fumus boni juris) e o lapso temporal entre o ajuizamento dessa ação e a decisão final pode causar danos de difícil reparação (periculum in mora) às empresas aéreas.
ALEGAÇÃO ("deve-ser"):
O STF deverá conceder medida cautelar para suspender os efeitos da norma questionada até a decisão final da ADI 1089-1.
(“então”)
GARANTIAS (“já que”): • Compete ao STF processar e julgar o pedido de medida cautelar nas ações diretas de inconstitucionalidade; • A presença de fumus boni juris e de periculum in mora justifica a concessão da medida cautelar.
MC/ADI 1089-1 - Voto do Ministro Sepúlveda Pertence
APOIOS (“por conta de”):
• A competência do STF para julgar o pedido de medida cautelar na ADI 1089-1 está prescrita pela CF/88 no art. 102, I, "p".
• O fumus boni juris e o periculum in mora encontram-se presentes na ADI 1089-1, uma vez que:
• A interpretação gramatical do art. 155, I, “b” da CF/88 não prevalece em relação às demais interpretações (Argumento “a”);
• A exarcebação internacional da crise no setor aéreo afasta o óbice do extenso lapso temporal até o ajuizamento da ação (Argumento “d”).
207
5.3.3.6 Voto do Ministro Sidney Sanches
O Ministro Sidney Sanches votou pelo deferimento da medida cautelar,
após registrar que o autor da ação não pretende a declaração de
inconstitucionalidade da expressão “serviços de transporte interestadual e
intermunicipal”, mas que ela seja interpretada conforme a Constituição. São os seus
argumentos:
(a) Não se pode negar que literalmente a expressão “transporte
interestadual e intermunicipal” abrange o transporte aéreo. No entanto, a literalidade
não supera a tradição de nosso direito que usa essa expressão só para transportes
de superfície. Além disso, a Constituição utiliza a expressão “navegação” para se
referir ao aéreo, o que evidencia uma diferença entre “transporte e navegação”:
Não posso negar que, ao menos literalmente, a expressão “transporte interestadual e intermunicipal”, contida no art. 155, inc. I, “b”, da Constituição Federal de 1988, abrange o transporte aéreo. Mas só literalmente.
É que na tradição de nosso direito, a expressão “transporte interestadual e intermunicipal”, vem sendo usada como alusiva ao transporte de superfície.
E a própria Constituição, embora também se refira a “transportes aéreo, marítimo e terrestre”, no art. 178, inc. I, usa, noutros pontos, do vocábulo “navegação”, ao invés de “transporte”, quando, por exemplo, no art. 22, inc. X, se refere à “navegação aeroespacial” , e no art. 21, inc. XII, “c”, quando alude à “navegação aérea”.
É certo que se deve fazer a distinção entre “navegação” e “transporte”, pois, na primeira, a atenção se volta para a própria ordem e segurança na movimentação e circulação dos veículos, ao passo que, no segundo, importa, mais, a finalidade da própria circulação e movimentação.
(b) É possível que o constituinte haja pretendido alcançar o transporte
aéreo interior, mas esse seria um entendimento a que se chegaria por
considerações implícitas, e uma inovação de tamanha relevância não poderia ser
admitida dessa forma:
É possível que o constituinte de 1988, ao tratar da competência dos Estados e do Distrito Federal, para instituir imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual, e intermunicipal, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior, haja pretendido abranger o transporte aéreo interior, inclusive o iniciado no exterior.
208
Mas esse entendimento só se deve extrair, “prima facie”, por implicitude.
Ora, não é curial que inovação tão importante e de tanta repercussão, no âmbito do transporte ou da navegação aérea, pudesse ser admitida, de pronto, por meras considerações de implicitude.
(c) Uma inovação tão importante e com tanta repercussão só poderia ser
feita por Lei complementar:
Ora, não é curial que inovação tão importante e de tanta repercussão, no âmbito do transporte ou da navegação aérea, pudesse ser admitida, de pronto, por meras considerações de implicitude. Ou, mesmo, mediante explicitação em simples convênios entre Estados interessados no tributo, sem uma lei complementar, de caráter nacional, que a fizesse antes.
(d) Não parece que se tenha querido introduzir uma inovação em que há
o envolvimento de interesses econômicos, financeiros, tributários e que está
relacionada a um meio de transporte que tem um alto significado para o país:
Não me parece, neste primeiro momento, de apreciação de simples medida cautelar, que tenha pretendido introduzir tão significativa alteração, em campo que não é só de interesse da economia, das finanças públicas ou, mas especificamente, de direito tributário, mas, também e principalmente, relacionado com o transporte aéreo nacional e internacional e seu alto significado para o país.
(e) Quanto ao periculum in mora, verifica-se, no sopesamento das
dificuldades dos Estados e das empresas aéreas, que estas serão dura e quase que
irremediavelmente mais atingidas do que os Estados:
Quanto ao periculum in mora, penso que a verificação do requisito deve resultar, no caso, do sopesamento das dificuldades que poderão resultar para os Estados e Distrito Federal e para as empresas aéreas.
Não me parece, em exame menos aprofundado, como é o desta cognição superficial e sumária, que tais unidades da Federação entrarão em colapso, se, temporariamente, no curso da ação, deixarem de arrecadar o tributo em questão. E, por outro lado, é inevitável que as empresas aéreas sejam dura e quase que irremediavelmente atingidas se tiverem de recolhê-lo, desde a vigência dos Convênios, tal a situação financeira de cada uma, na atualidade. Por isso mesmo é que estão se defendendo em Juízo de 1º. Grau, ora obtendo êxito, ora não.
209
(f) Há uma alta conveniência da Administração Pública que não pode
deixar de se preocupar com a regularidade do transporte aéreo nacional e
internacional:
[...] deve estar atenta, principalmente, à alta conveniência da administração pública do País, que não pode deixar de se preocupar com a regularidade do transporte aéreo nacional e internacional, este iniciado, ou terminado, em seu território.
(g) Observa-se que os Estados vêm reduzindo as alíquotas do ICMS
sobre o setor aéreo:
Observo, também, que, nos sucessivos convênios, os Estados foram procedendo a significativas reduções nas alíquotas do imposto, como que a reconhecer o gravame que as anteriores vinham causando às empresas.
(h) Não se pode deixar de considerar a perplexidade que pode resultar na
aplicação do ICMS quando houver escalas no transporte aéreo em inúmeros
Estados:
Por outro lado, não pode deixar de ser considerada, ao menos neste primeiro exame, a perplexidade que possa resultar, quando o transporte aéreo se faça, com escala em inúmeros Estados. A cada um deles será devido o tributo? E no caso de transporte aéreo intermunicipal? E se as alíquotas de cada Estado podem ser diferençadas, como a União haverá de fixar previamente as tarifas aéreas, com uniformidade, ou, ao menos, com segurança?
(i) O periculum in mora deve ser analisado também em face dos altos
interesses nacionais:
Levando em consideração todos esses aspectos, que conduzem ao reconhecimento da relevância jurídica da ação (“fumus boni iuris”) e do risco da demora (“periculum in mora”), este avaliado, também, em face dos altos interesses nacionais, tenho por cabível a concessão da medida cautelar.
A partir desses argumentos é possível construir a seguinte estrutura:
210
Merecem destaque os argumentos “d”, “f”, “g”, “h” e “i” que não devem
compor a estrutura de argumentação de um intérprete do direito por serem
argumentos próprios dos sistemas econômico e político e não guardarem nenhuma
relação com as garantias apontadas.
MC/ADI 1089-1 - Voto do Ministro Sydney Sanches
DADOS ("se"):
A tese apresentada na ADI 1089-1 possui razoabilidade jurídica (fumus boni juris) e o lapso temporal entre o ajuizamento dessa ação e a decisão final pode causar danos de difícil reparação (periculum in mora) às empresas aéreas.
ALEGAÇÃO ("deve-ser"):
O STF deverá conceder medida cautelar para suspender os efeitos da norma questionada até a decisão final da ADI 1089-1.
(“então”)
GARANTIAS (“já que”): • Compete ao STF processar e julgar o pedido de medida cautelar nas ações diretas de inconstitucionalidade; • A presença de fumus boni juris e de periculum in mora justifica a concessão da medida cautelar.
APOIOS (“por conta de”):
• A competência do STF para julgar o pedido de medida cautelar na ADI 1089-1 está prescrita pela CF/88 no art. 102, I, "p".
• O fumus boni juris e o periculum in mora encontram-se presentes na ADI 1089-1, uma vez que:
o Não se pode negar que literalmente a expressão “transporte interestadual e intermunicipal” abrange o transporte aéreo. No entanto, a literalidade não supera a tradição de nosso direito que usa essa expressão só para transportes de superfície. Além disso, a Constituição utiliza a expressão “navegação” para se referir ao aéreo, o que evidencia uma diferença entre “transporte e navegação” (Argumento “a”);
o É possível que o constituinte haja pretendido alcançar o transporte aéreo interior, mas esse seria um entendimento a que se chegaria por considerações implícitas, e uma inovação de tamanha relevância não poderia ser admitida dessa forma (Argumento “b”);
o Uma inovação tão importante e com tanta repercussão só poderia ser feita por Lei complementar (Argumento “c”);
o Quanto ao periculum in mora, verifica-se no sopesamento das dificuldades dos Estados e das empresas aéreas, que estas serão dura e quase que irremediavelmente mais atingidas do que os Estados (Argumento “e”).
211
5.3.3.7 Voto do Ministro Néri da Silveira
Os argumentos identificados no voto do Ministro Néri da Silveira
compõem a tese vencida no julgamento, na medida em que ele decide pelo não
deferimento da liminar, embasado no seguinte:
(a) O art. 155, I, “b” da CF/88 utiliza uma fórmula genérica que alcança
todos os tipos de transporte:
Compreendo, do exame do art. 155, I, letra “b”, da Lei Maior, que a não-discriminação, mas a utilização de fórmula genérica, é efetivamente abrangente de todos os meios de transporte interestadual e intermunicipal. A Constituição prevê no art. 155, I, letra “b”, a competência dos Estados para instituir impostos sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal.
(b) Se houvesse a intenção de restringir os meios de transporte passíveis
de tributação, a CF/88 teria sido expressa:
Se houvesse, em realidade, a intenção da Constituição em limitar o imposto ao transporte rodoviário, ou mesmo ao transporte ferroviário, teria feito essa menção, assim como ocorre no art. 21, XII, letras “c”, “d”, “e” e “f”, ao referir a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária, os serviços de transporte ferroviário e aquaviário, transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros.
(c) A expressão “navegação aérea” também inclui transporte aéreo:
Ninguém pode negar, no caso, que a referência à navegação aérea abrange, também, transporte pelo uso de aeronaves, constituindo tal forma de prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal.
(d) O art. 34, § 8º. do ADCT autoriza a celebração de convênio até a
edição da lei complementar:
Relativamente à utilização do convênio e não da lei complementar, penso como o eminente Ministro-Relator e os que o seguiram, no ponto, que o art. 34, §8º., do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias, autorizava essa forma de procedimento pelos Estados, no que concerne ao ICMS, eis que não editada pela União a lei complementar a que se refere o dispositivo constitucional, no prazo previsto pela Lei Magna em vigor.
(e) Não cabe a tese de que as empresas aéreas estariam imunes, pois
trata-se de serviços executados por empresas privadas:
212
Também não há falar em imunidade tributária a favorecer esses serviços, diante da norma do art. 150, VI, letra “a”, e §§2º. e 3º., da Constituição. Na realidade, trata-se, aí, de serviços concedidos, executados por empresas privadas que estão na exploração de atividades econômicas e sujeitas, portanto, ao regime próprio das empresas privadas. Não há aqui como invocar a norma do art. 150, VI, da Carta Política, a afastar a pretensão dos Estados quanto à cobrança do ICMS nesses serviços.
(f) A diferença desse julgado com relação àquele sobre o adicional de
imposto de renda, é que, no presente caso, o ICMS será pago pelo usuário do
serviço de transporte. Se as empresas aéreas não recolhem o tributo, estarão
retendo indevidamente o ICMS:
[...] e outras disposições mencionadas no art. 146, III, da Constituição, que esta Corte invocou, ao compreender necessária lei complementar em se cuidando da imposição do adicional do imposto de renda de até 5% que for pago à União por pessoas físicas ou jurídicas, domiciliadas nos respectivos territórios dos Estados. Cumpre, entretanto, anotar uma diferença que tenho como fundamental na espécie: o ICMS é um imposto que vai ser pago pelo usuário do serviço de transporte, como contribuinte de fato, não recaindo sobre a empresa aérea. Se as empresas recolhem o tributo, o estão retendo indevidamente.
(g) Com relação ao periculum in mora, não podem os Estados ser
responsáveis por dificuldades que decorram do recolhimento do tributo:
Os Estados não poderão ser responsáveis por dificuldades que decorram do recolhimento do tributo. A matéria há de ser posta em outro plano; de contrário, o raciocínio levaria à conclusão de que as empresas, que exploram determinados serviços e se encontram em dificuldades financeiras, não devem pagar imposto.
Os argumentos supracitados compõem a seguinte estrutura de
argumentação do Ministro:
213
O argumento “f” não foi inserido na estrutura, pois a alegação de que o
usuário vai pagar o ICMS é uma questão de cunho econômico que em nada toca a
garantia, já que o contribuinte do ICMS é o prestador do serviço do transporte.
MC/ADI 1089-1 - Voto do Ministro Néri da Silveira
DADOS ("se"):
A tese apresentada na ADI 1089-1 NÃO possui razoabilidade jurídica (fumus boni juris) e o lapso temporal entre o ajuizamento dessa ação e a decisão final NÃO pode causar danos de difícil reparação (periculum in mora) às empresas aéreas.
ALEGAÇÃO ("deve-ser"):
O STF NÃO deverá conceder medida cautelar para suspender os efeitos da norma questionada até a decisão final da ADI 1089-1.
(“então”)
APOIOS (“por conta de”):
• A competência do STF para julgar o pedido de medida cautelar na ADI 1089-1 está prescrita na CF/88 no art. 102, I, "p".
• O fumus boni juris e o periculum in mora NÃO se encontram presentes na ADI 1089-1, uma vez que:
o O art. 155, I, “b” da CF/88 utiliza uma fórmula genérica que alcança todos os tipos de transporte (Argumento “a”);
o Se houvesse a intenção de restringir os meios de transporte passíveis de tributação, a CF/88 teria sido expressa (Argumento “b”);
o A expressão “navegação aérea” também inclui transporte aéreo (Argumento “c”); o O art. 34, § 8º. do ADCT autoriza a celebração de convênio até a edição da lei complementar
(Argumento “d”); o Não cabe a tese de que as empresas aéreas estariam imunes, pois trata-se de serviços
executados por empresas privadas (Argumento “e”); o Com relação ao periculum in mora, não podem os Estados ser responsáveis por dificuldades que
decorram do recolhimento do tributo (Argumento “g”).
GARANTIAS (“já que”): • Compete ao STF processar e julgar o pedido de medida cautelar nas ações diretas de inconstitucionalidade; • A ausência de fumus boni juris e de periculum in mora justifica a concessão da medida cautelar.
214
5.3.3.8 Voto do Ministro Moreira Alves
O Ministro Moreira Alves votou pela concessão da liminar, uma vez que
entendeu por relevante a fundamentação jurídica da arguição de
inconstitucionalidade, acompanhando o Ministro Relator Francisco Rezek, que
apresentou os seguintes argumentos:
(a) A tese de que as empresas aéreas estariam imunes tem fundamento
teórico, mas colide com a prática tributária;
(b) A tese da lei complementar não foi o “ânimo” na concessão da liminar,
uma vez que se opõe ao prescrito no art. 34, §8º. da ADCT, que permite a edição de
convênio;
(c) A tese essencial que levou à concessão da liminar está ligada ao
significado da expressão “serviços de transporte interestadual e intermunicipal”, não
ao significado semântico, mas àquele querido pelo legislador constituinte, conforme
pode ser constatado na análise histórica dos trabalhos realizados pela Assembleia
Constituinte;
(d) Se as empresas aéreas não pertencem ao Estado nem dele recebem
subsídios, ao menos deve ser lhes dado um tratamento fiscal condizente;
(e) Uma coisa é aquilo que o convênio pode naturalmente estabelecer, e
outra coisa é aquilo que ele pode estabelecer quando, excepcionalmente trata de
matéria de lei complementar. A inovação trazida pelo convênio com relação ao
transporte aéreo teria causado menos surpresa se tivesse sido por lei
complementar;
(f) Apesar de ser um defensor de que o periculum in mora não se justifica
nos casos em que muito tempo transcorreu entre a suposta inconstitucionalidade e o
ajuizamento da ação, o caso em questão traz uma singularidade que é a gravidade
dos riscos econômicos das empresas aéreas, apesar da demora destas em procurar
o Judiciário;
215
(g) Com relação ao lapso temporal, atenua-se a demora em razão das
dúvidas sobre a legitimidade ativa do sindicato e destaca-se que, em data recente, o
Procurador-Geral tomou conhecimento e ficou sensível à tese das empresas aéreas.
Apresenta-se aqui, pois, a seguinte estrutura de argumentação idêntica à
do Ministro Francisco Rezek:
Os argumentos “a”, “b”, “d” e “e” foram retirados da estrutura acima, pelos
mesmos motivos arrolados no voto do Ministro Francisco Rezek.
MC/ADI 1089-1 - Voto do Ministro Moreira Alves
DADOS ("se"):
A tese apresentada na ADI 1089-1 possui razoabilidade jurídica (fumus boni juris) e o lapso temporal entre o ajuizamento dessa ação e a decisão final pode causar danos de difícil reparação (periculum in mora) às empresas aéreas.
ALEGAÇÃO ("deve-ser"):
O STF deverá conceder medida cautelar para suspender os efeitos da norma questionada até a decisão final da ADI 1089-1.
(“então”)
GARANTIAS (“já que”): • Compete ao STF processar e julgar o pedido de medida cautelar nas ações diretas de inconstitucionalidade; • A presença de fumus boni juris e de periculum in mora justifica a concessão da medida cautelar.
APOIOS (“por conta de”):
• A competência do STF para julgar o pedido de medida cautelar na ADI 1089-1 está prescrita pela CF/88 no art. 102, I, "p".
• O fumus boni juris e o periculum in mora encontram-se presentes na ADI 1089-1, uma vez que:
o Há razoabilidade na tese com relação ao significado da expressão “serviços de transporte interestadual e intermunicipal”. Não ao significado semântico, mas àquele querido pelo legislador constituinte, conforme pode ser constatado na análise histórica dos trabalhos realizados pela Assembleia Constituinte (Argumento “c”);
o Apesar de ser um defensor de que o periculum in mora não se justifica nos casos em que muito tempo transcorreu entre a suposta inconstitucionalidade e o ajuizamento da ação, o caso em questão traz uma singularidade que é a gravidade dos riscos econômicos das empresas aéreas, apesar da demora delas em procurar o Judiciário (Argumento “f”);
o A demora na propositura da ação também decorre das dúvidas sobre a legitimidade ativa do sindicato e destaca-se que, em data recente, o Procurador-Geral tomou conhecimento e ficou sensível à tese das empresas aéreas (Argumento “g”).
216
5.3.3.9 Voto do Ministro Paulo Brossard
O Ministro Paulo Brossard presidiu o julgamento e votou pelo deferimento
da medida liminar nos termos dos seguintes argumentos:
(a) Há relevo jurídico excepcional no tema, evidenciado no fato de a
sessão de julgamento ter ocupado praticamente a tarde toda e ter propiciado muitos
debates:
A complexidade e a importância da matéria estão patentes no fato de que o julgamento ter ocupado praticamente toda a tarde, nas dissensões havidas, nos argumentos trocados e nas razões oferecidas. Tenho como inequívoco o relevo jurídico – quase diria excepcional – da medida cautelar requerida.
(b) O periculum in mora é “um” dado e não “o” dado a ser considerado:
Creio que o periculum in mora é um dado a ser considerado, mas é “um” dado, não é “o” dado.
(c) A ação que é tardiamente ajuizada vai perdendo o seu prestígio, mas
ela não pode ser desprezada, pois como não há prazo para o ajuizamento da ação,
com o tempo o caso concreto pode apresentar importância, relevância social e
repercussões antes não notadas:
É claro que uma ação tardiamente ajuizada contra uma medida que está em vigor vai perdendo, com o tempo, o seu prestígio, mas isso não quer dizer que ela possa e venha a ser desprezada; a lei não fixa prazo para o ajuizamento de ação direta. É preciso considerar o caso concreto: a importância, a relevância social, as repercussões. E pode ocorrer – como parece estar ocorrendo no caso vertente – que, no andar do tempo, vão se tornando mais vivos, mais patentes, mais sensíveis os efeitos perniciosos, de uma forma legal, defeitos que de início não foram notados.
(d) É possível, mas não pode ser afirmado que, diante de um crise quase
universal no setor aéreo, o problema tenha ganho uma dimensão que antes não
possuía:
É possível – não estou a afirmar – que, em virtude da situação geral, eu diria quase universal, que atravessa a indústria de navegação aérea, o problema tenha ganho uma dimensão que inicialmente não
217
possuía e por isto mesmo só agora a questão tenha sido suscitada perante o eminente Procurador-Geral, que propôs a ação, cuja cautelar está sendo examinada.
A partir da leitura do voto do Ministro é possível verificar a seguinte
estrutura de argumentação:
O argumento “a” que conclui pela relevância jurídica do tema em razão do
tempo da sessão é falacioso, pois entre os termos “tempo de julgamento” e
“relevância jurídica” não há nenhuma relação de causalidade ou de implicação.
MC/ADI 1089-1 - Voto do Ministro Paulo Brossard
DADOS ("se"):
A tese apresentada na ADI 1089-1 possui razoabilidade jurídica (fumus boni juris) e o lapso temporal entre o ajuizamento dessa ação e a decisão final pode causar danos de difícil reparação (periculum in mora) às empresas aéreas.
ALEGAÇÃO ("deve-ser"):
O STF deverá conceder medida cautelar para suspender os efeitos da norma questionada até a decisão final da ADI 1089-1.
(“então”)
GARANTIAS (“já que”): • Compete ao STF processar e julgar o pedido de medida cautelar nas ações diretas de inconstitucionalidade; • A presença de fumus boni juris e de periculum in mora justifica a concessão da medida cautelar.
APOIOS (“por conta de”):
• A competência do STF para julgar o pedido de medida cautelar na ADI 1089-1 está prescrita pela CF/88 no art. 102, I, "p".
• O fumus boni juris e o periculum in mora encontram-se presentes na ADI 1089-1, uma vez que:
o O periculum in mora é “um” dado e não “o” dado a ser considerado (Argumento “b”); o A ação que é tardiamente ajuizada vai perdendo o seu prestígio, mas ela não pode ser desprezada,
pois como não há prazo para o ajuizamento da ação, com o tempo o caso concreto pode apresentar importância, relevância social e repercussões antes não notadas (Argumento “c”);
o É possível, mas não pode ser afirmado que, diante de um crise quase universal no setor aéreo, o problema tenha ganho uma dimensão que antes não possuía (Argumento “d”).
218
5.3.4 Deferimento da medida liminar na ADI 1089-1: resultado da
apuração dos votos e análise dos argumentos
Por maioria dos votos (6 votos x 4 votos), decidiu-se pela concessão da
medida cautelar na ADI 1089-1, o que deu origem à seguinte ementa:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA LIMINAR. CONVÊNIOS ICMS. TRANSPORTE AÉREO CIVIL COMERCIAL. EXIGÊNCIA DO ICMS NOS SERVIÇOS DE NAVEGAÇÃO AÉREA. SIGNIFICADO CONSTITUCIONAL DA EXPRESSÃO "SERVIÇO DE TRANSPORTE INTERESTADUAL E INTEMUNICIPAL". Aspecto de bom direito na tese restritiva do significado constitucional da expressão "serviços de transporte interestadual e intermunicipal", constante do art.155-I-b da Carta da República, à vista de sua gênese na Assembléia Nacional Constituinte. Reconhecimento dos riscos indicados pelo autor. Hipótese de deferimento da liminar.
(ADI 1089 MC, Relator(a): Min. FRANCISCO REZEK, Tribunal Pleno, julgado em 04-08-1994, DJ 27-06-1997 PP-30224 EMENT VOL-01875-01 PP-00180)
Abaixo, é possível visualizar, por meio de um quadro comparativo, de
modo sintético, os argumentos que apoiam as garantias da alegação pelo
deferimento e pelo indeferimento da medida cautelar.
Votos dos Ministros
Argumentos que apoiam a garantia de que HÁ o fumus boni juris e o periculum in mora na ADI 1089
Argumentos que apoiam a garantia de que NÃO HÁ o fumus boni juris e
o periculum in mora na ADI 1089
Min. Francisco Rezek
• O significado querido pelo legislador constituinte com relação à expressão “serviços de transporte interestadual e intermunicipal” é diferente do semântico.
• O caso em questão é singular em razão da gravidade dos riscos econômicos das empresas aéreas, o que justifica o periculum in mora, mesmo com lapso temporal excessivo.
• A demora justifica-se pelas dúvidas sobre a legitimidade ativa do sindicato.
• Não cabe a tese da imunidade tributária. • A tese da lei complementar não foi o
“ânimo” para a concessão da liminar, uma vez que se opõe ao prescrito no art. 34, §8º. da ADCT, que permite a edição de convênio.
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Votos dos Ministros
Argumentos que apoiam a garantia de que HÁ o fumus boni juris e o periculum in mora na ADI 1089
Argumentos que apoiam a garantia de que NÃO HÁ o fumus boni juris e
o periculum in mora na ADI 1089
Min. Ilmar Galvão • Há diferença entre as expressões “navegação aérea” e “transporte aéreo”.
• A relevância está aliada ao periculum in mora, nos termos do voto do Min. Rel. Francisco Rezek.
• Não se trata de imunidade tributária. • A lei complementar foi substituída pelo
convênio nos termos do art. 34, §8º. da ADCT.
Min. Marco Aurélio • O transporte aéreo está incluído no significado da expressão “transporte” do art. 155, II da CF/88.
• Não se pode cogitar de imunidade tributária.
• A exclusividade da União prescrita no art. 21, XII, alínea “c” não obsta à instituição do ICMS.
• O convênio substitui a lei complementar, nos termos do art. 34, §8º. do ADCT.
• A grave situação das empresas não pode ser enquadrada como periculum in mora.
• O lapso temporal entre a edição do convênio e o ajuizamento da ação é extenso para justificar o periculum in mora.
Min. Carlos Velloso • A permissão para a instituição de imposto sobre transporte aéreo já existia nas Cartas anteriores, só que a União não havia instituído.
• A faculdade do art. 34, §8º se enquadra para imposto novo.
• O julgamento do adicional de IR relaciona-se a outra situação e não pode ser aplicado ao caso do Convênio nº 66/88.
• Não cabe a tese da imunidade recíproca.
Min. Sepúlveda Pertence
• A interpretação gramatical do art. 155, I, “b” da CF/88 não prevalece em relação às demais interpretações.
• A crise no setor aéreo afasta o óbice do extenso lapso temporal para o ajuizamento da ação.
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Votos dos Ministros
Argumentos que apoiam a garantia de que HÁ o fumus boni juris e o periculum in mora na ADI 1089
Argumentos que apoiam a garantia de que NÃO HÁ o fumus boni juris e
o periculum in mora na ADI 1089
Min. Sydney Sanches
• A literalidade não supera a tradição de nosso direito e a diferença entre “navegação aérea” e “transporte aéreo”.
• Uma inovação de tamanha relevância não poderia ser admitida por considerações implícitas.
• Necessidade de lei complementar para uma inovação com tanta repercussão.
• Há periculum in mora verificado no sopesamento das dificuldades dos Estados e das empresas aéreas.
Min. Néri da Silveira • O art. 155, I, “b” da CF/88 alcança todos os tipos de transporte.
• Se houvesse a intenção de restringir, a CF/88 teria sido expressa.
• A expressão “navegação aérea” também inclui transporte aéreo.
• O art. 34, § 8º. do ADCT autoriza a celebração de convênio.
• Não cabe a tese da imunidade tributária. • Não podem os Estados ser responsáveis
por dificuldades que decorram do recolhimento do tributo.
Min. Moreira Alves • Os mesmos do Min. Francisco Rezek.
Min. Paulo Brossad • O periculum in mora é “um” dado e não “o” dado a ser considerado.
• Como não há prazo para o ajuizamento da ação, com o tempo, o caso concreto pode apresentar importância, relevância social e repercussões antes não notadas que justifiquem o periculum in mora.
• Com a crise quase universal no setor aéreo , o problema ganhou uma dimensão que antes não possuía.
Conclui-se, assim, a partir da análise da tabela acima, que os argumentos
que apoiam a concessão da medida cautelar podem ser resumidos em apenas dois:
(i) Há razoabilidade da tese (“fumos boni iuris”) de que o significado do vocábulo
“transporte” contido no art. 155, I, “b” da CF/88 (antes da redação da EC 3/93) não
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alcança o transporte aéreo; e (ii) Há perigo na demora (periculum in mora) em razão
da crise no setor aéreo.
No entanto, saltam aos olhos que, em todos os votos pelo deferimento da
medida cautelar, tanto a razoabilidade, quanto a constatação dos riscos na demora
foram relacionadas às questões econômicas e políticas que o setor aéreo vivia na
época do julgamento da Medida Cautelar.
Muitos dos argumentos, inclusive, tiveram que ser deixados de fora
porque não foi possível relacioná-los às garantias, tais como: “a atividade de
navegação aérea é muito séria para ser deixar na mão de particulares”, “o risco da
demora deve ser avaliado, também, em face dos altos interesses nacionais”, “não
se pode deixar de considerar a perplexidade que pode resultar quando houver
escalas em inúmeros Estados”, entre outros.
Dessa forma, colocam-se as seguintes questões: (i) Será que a
observação das dificuldades econômicas vividas pelas empresas-contribuintes deve
ser realizada na interpretação constitucional sobre a competência tributária? (ii) Será
que a crise econômica supostamente vivenciada pelo setor aéreo no momento da
propositura da ADI, 6 anos após a edição do Conv. 66/88, pode respaldar o
periculum in mora exigido para a concessão da medida cautelar pleiteada? (iii) O
STF manteve a redundância na interpretação jurídica que vinha realizando sobre o
periculum in mora?.
A resposta é “NÃO” para todas as perguntas formuladas, pelas seguintes
razões: (i) a análise da competência tributária prescinde da observação de eventuais
dificuldades políticas e econômicas pelas quais passam determinados setores
comerciais; (ii) a dificuldade econômica do contribuinte poderia até ser avaliada pelo
intérprete no que tange ao periculum in mora, mas, para tanto, precisaria haver uma
relação entre a norma tida por inconstitucional e o impacto econômico que ela
provocaria no setor no momento da sua edição; (iii) os próprios Ministros ressaltam
que esse não é o entendimento sedimentado pelo STF com relação ao periculum in
mora quando há um excessivo decurso de prazo entre a edição da norma
inconstitucional e o ajuizamento da ação.
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A observação da situação econômica dessas empresas não pode ser
admitida como uma heterorreferência, nos termos trabalhados no capítulo 2, mas
deve ser reconhecida como uma nítida corrupção entre os códigos dos subsistemas
da economia e do direito. Resta claro que, se o STF decidisse essa questão hoje,
quando está comprovado o elevado crescimento das empresas aéreas brasileiras,os
Ministros teriam que se valer de argumentos não-econômicos, o que comprova que
eles não são imprescindíveis na análise do pedido.
Essas afirmações poderiam ser afastadas com a alegação de que a
decisão analisada versa sobre pedido de medida cautelar que, em razão da
provisoriedade dos efeitos, não requer uma análise mais aprofundada. No entanto,
necessário se faz investigar quais serão os argumentos dos ministros na decisão
que julgou procedente o pedido de declaração de inconstitucionalidade, destacados
nos próximos tópicos.
5.3.5 Fundamentação nos votos dos ministros presentes nas
sessões de julgamento do mérito
Após a análise da decisão com relação ao pedido de Medida Cautelar na
ADI 1089-1, cabe agora analisar os votos que compõem a decisão referente ao
pedido de declaração de inconstitucionalidade formulado na ADI 1089-1. Serão
destacados os argumentos registrados nos votos dos oito433 ministros que
participaram das sessões de julgamento. São os seguintes os Ministros, citados em
ordem de votação: Francisco Rezek (Relator), Maurício Corrêa, Ilmar Galvão,
Octavio Gallotti, Sydney Sanches, Néri da Silveira, Moreira Alves, Sepúlveda
Pertence.
Os Ministros Maurício Corrêa e Octavio Gallotti não participaram da
votação do pedido de medida liminar, mas participaram da decisão final objeto de
análise. Já os Ministros Carlos Velloso, Marco Aurélio e Paulo Brossard que
433 O Ministro Celso de Mello também participou das sessões de julgamento da decisão de mérito, mas o seu voto, mais uma vez, não consta no processo, apesar de ser mencionado no Extrato de Ata, como autor, agora, de um dos votos vencedores.
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participaram do julgamento da medida liminar não participaram da decisão final. Os
dois primeiros justificaram as suas ausências, e o último, Min. Paulo Brossard, já
estava aposentado à época da sessão.
A seguir, valendo-se da mesma metodologia utilizada acima, será
apresentado cada um dos nove votos.
5.3.5.1 Voto do Ministro Francisco Rezek
Antes de destacar os fundamentos que motivaram o seu voto pela
procedência da ação, o Ministro Francisco Rezek, a título de leitura do voto por ele
proferido no deferimento do pedido de liminar, repetiu todos os argumentos
registrados no voto da decisão que concedeu a medida liminar. Acrescentou, após
essa leitura, o seguinte:
(a) Ao STF cabe interpretar a Constituição e não analisar fatores
econômicos da incidência do ICMS:
Não é portanto questão de saber como enfrentam as companhias aéreas, eventualmente não todas, a crise que alegadamente se abate sobre o setor; não é questão de avaliar, também, a necessidade de arrecadação das Unidades Federadas num momento difícil para o tesouro público; não é questão de tecer considerações sobre o tema da dimensão econômica dos usuários de transporte aéreo, por contraste com a dimensão econômica dos usuários do transporte rodoviário. Esta casa não é um legislador que possa inspirar-se no fato social, no fato econômico, para editar normas. O que nos cumpre é interpretar a Constituição.
(b) Os usuários é que suportariam a incidência do ICMS:
É óbvio que, se cobrado esse imposto, ele há de repercutir sobre o custo do transporte aéreo tal como pago pelos seus usuários. Não seriam bem as empresas aéreas, mas os usuários que suportariam o custo do tributo.
(c) A questão econômica está no domínio metajurídico:
Nada disso é decisivo para a deliberação do tribunal. Como quer que se apresentassem os dados nesse domínio metajurídico, qualquer que fosse a deliberação da corte sobre o que significa a Constituição e como ela deve ser interpretada, em face da legislação ordinária aqui atacada, as coisas em seguida se acomodariam.
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(d) Tem razão o Estado, segundo o qual o transporte aéreo estaria
contido no significado semântico da expressão “transporte interestadual e
intermunicipal”:
Os argumentos desenvolvidos pelos Estados federados, neste caso, foram-no de modo erudito e combativo; mas são argumentos, em última análise, concentrados em teses simples e de verossimilhança irrecusável. O que dizem os Estados é que a expressão “transporte interestadual, intermunicipal”, usada na Carta, pode incluir, pelo seu significado semântico, o transporte aéreo. A tese dos Estados não poderia ser glosada com a extensão caricatural que o elemento semântico poderia gerar. Não levaria necessariamente a dizer que engenhos extra-atmosféricos, emitidos da base aérea de Alcântara, poderiam ser tributados; que o próprio ser humano poderia ser tributado na medida em que transporta coisas de um lugar para outro. Nada disso. Os Estados sustentam que o transporte é tributável à luz de uma interpretação escorreita da Constituição, na medida em que ele se traduz numa atividade comercial.
(e) O critério histórico da hermenêutica constitucional é unívoco no
sentido de que não houve a intenção da Assembleia Constituinte de incluir o
transporte aéreo na incidência do ICMS:
[...] o constituinte de 88 compôs o novo ICMS à base de certos elementos, nenhum dos quais incluía essa forma de atividade econômica. O material de informação que flui dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte é de inteira univocidade. [...]O histórico a este propósito é unívoco.
(f) Como se trata de uma figura nova, somente a lei complementar
poderia prever a incidência do ICMS sobre o setor aéreo, pois o convênio é
produzido pelo Executivo e não pelo Legislativo (constituído de representantes do
povo):
[...] a situação seria outra se o próprio Congresso Nacional, em trabalho complementar à Constituição da República, fosse o inventor da figura nova. Dada a dificuldade de dizer que esse imposto não é uma inovação, diante da irrecusável novidade no quadro tributário geral, defrontar-nos-íamos com uma situação diferente se a legislação complementar á Constituição, editada no prazo ou fora dele, mas editada um dia pelos representantes do povo, reunidos no Congresso Nacional, assim estabelecesse.
[...]
Nesse particular, parece-me de inteira procedência a tese do Procurador-Geral da República. O que aconteceu não foi uma fixação de normas para regular provisioriamente a matéria à luz do figurino da LC 24/75. O que aconteceu foi rigorosamente uma inovação no domínio tributário, foi a invenção de uma nova hipótese de incidência tributária.
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[...]
A composição do colégio convenente é executiva. Ela não tem cunho legislativo.
(g) É preciso esperar a lei complementar para que haja a cobrança do
imposto:
Ao fim e ao cabo parece-me que, para valorizar, na Constituição de 1988, a respeito da matéria tributária, o que ela ostenta de mais central e inabdicável, é preciso esperar que a lei complementar, se o quiser o legislador federal em nível de complementaridade à Constituição, o determine. Nesse caso, toda a argumentação metajurídica que desabou sobre a mesa do Supremo Tribunal a propósito do caso estará realmente varrida do cenário, porque chegaremos ao que importa, ou seja, a um exercício não mais discutível em nome de razões estranhas à estrita aplicação do direito, no exercício do poder de complementar a Constituição e de estabelecer nova hipótese de incidência tributária.
Mais adiante, após os votos dos ministros Maurício Corrêa e Ilmar Galvão,
o Ministro Francisco Rezek fez a confirmação do seu voto quando ressaltou, ainda,
os seguintes argumentos:
(h) Não se contradisse que a palavra “transporte” semanticamente inclui o
transporte aéreo, mas se ressalta que da análise dos anais da Assembleia
Constituinte conclui que nunca no passado se entendeu essa atividade tributável:
S. Exa. assenta as preliminares de seu voto em algo que jamais foi contraditado: a palavra “transporte” semanticamente compreende qualquer transporte aéreo. Citou S.Exa. doutrina da melhor qualidade nesse sentido – e não há dúvida de que a doutrina, mesmo a de não tão boa qualidade, é uníssona em dizer o que significa transporte. Mas não é isso o que juízes pedem à doutrina, que diga o que significam as palavras. Pede-se um pouco mais em matéria de informação, e isso é o que dificilmente se encontra nas abordagens doutrinárias sobre este tema: o que está acontecendo, o que houve no passado e o que sucede hoje. Essa informação veio dos anais da Assembléia Nacional Constituinte. Ali se ficou sabendo que, o que quer que signifique semanticamente a palavra “transporte”, nunca se entendeu, no passado, tributável essa atividade.
(i) Não pode uma nova hipótese de incidência tributária ser inventada por
um colegiado de demissíveis ad nutum:
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A grande questão que se coloca nesse caso, a meu ver, é esta: pode uma nova hipótese de incidência tributária ser inventada por um colegiado de demissíveis ad nutum? Colocada assim a questão, penso que a resposta só pode ser uma. É aquela que em tantos e tantos casos assemelhados esta Casa deu no passado! Não!
(j) A questão não é dizer o que é justo ou injusto em matéria tributária,
mas saber em que consiste o novo ICMS no quadro normativo vigente:
Não temos mandato para saber o que é justo é o que injusto em matéria tributária. A questão era saber em que consiste o novo ICMS, dado o quadro normativo ora existente. E à vista disso pareceu ao relator e ao eminente Ministro Corrêa, como tinha parecido ao Procurador-Geral da República, proponente da ação, que tínhamos esse pressuposto sobre a mesa: não se instituíra semelhante imposto no passado. Disse o Ministro Ilmar Galvão que a União não chegou a tributar o transporte aéreo; que não há a mínima evidência de que a União tenha imaginado que deveria fazê-lo à luz da ordem constitucional vigente.
(k) O argumento do advogado do Estado de São Paulo é surrealista:
No dia do início do julgamento principal, ilustre advogado do Estado de São Paulo lançava a curiosa tese de que, por haver certo texto normativo, em determinado momento, enumerado as contribuições do transporte aéreo, isso significava dizer “implicitamente” que os demais tributos eram cobráveis (entre eles o ICM) e que era aquele favor fiscal que o estava tornando inaplicável. Argumento surrealista, sem embargo de seriedade com que o sustentou, na defesa do tesouro público paulista, o ilustre procurador.
(l) Por ter sido Procurador da República sempre fui mais sensível às teses
do Tesouro Público do que às do contribuinte, especialmente às do grande
contribuinte, mas há um limite que não pode se ultrapassar “não há tributo sem
representação popular”:
Não é segredo para ninguém: cada um de nós examina questões constitucionais com o rigor técnico que sua formação determina, mas de certo modo sob a marca do seu próprio passado, e o meu é o de antigo Procurador da República, sempre cioso dos interesses do Tesouro Público; que naquelas situações mais nebulosas que se colocaram no plenário, no passado, sempre foi mais sensível às angústias do Tesouro Público do que àquelas do contribuinte, especialmente as do grande contribuinte. Mas há um limite além do qual não se pode ir, sob pena de solapamento total dos princípios que em matéria tributária orientam a nossa ordem constitucional, como orientam todas as ordens constitucionais do Ocidente, desde o reinado de João sem Terra é a formulação do princípio de que não há tributo sem representação, não há tributo sem que o tenha criado, sem que o tenha concebido um colegiado representativo popular; um colegiado representativo da sociedade, de acordo com a metodologia
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que em certo momento histórico se adote para compor colegiados representativos do povo, investidos de poder legislativo.
A partir daí é possível, visualizar a seguinte estrutura de argumentação do
voto:
ADI 1089-1 - Voto do Ministro Relator Francisco Rezek
DADOS ("se"):
O texto do Convênio nº 66/88, publicado em 6-12-1988, não menciona expressamente "transporte aéreo", mas viabiliza a construção da norma jurídica que permite aos Estados e ao Distrito Federal instituírem o ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo interestadual e intermunicipal, sem respaldo constitucional.
ALEGAÇÃO ("deve-ser")
O STF deverá declarar inconstitucional a norma jurídica que permite a instituição do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, construída a partir do Convênio nº 66/88.
(“então”)
GARANTIAS (“já que”):
• Compete ao STF declarar a inconstitucionalidade das normas jurídicas veiculadas em atos normativos infraconstitucionais. • A norma jurídica construída a partir do texto do Convênio nº 66/88, que permite a instituição do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, é inconstitucional.
APOIOS (“por conta de”):
o A competência do STF para julgar a ADI 1089-1 está prescrita pela CF/88 no artigo 102, I, "a". o A inconstitucionalidade da norma jurídica está demonstrada, uma vez que: o O critério histórico da hermenêutica constitucional é unívoco no sentido de que não houve a intenção da
Assembleia Constituinte de incluir o transporte aéreo na incidência do ICMS (Argumento “e”); o Como se trata de uma figura nova, somente a lei complementar poderia prever a incidência do ICMS
sobre o setor aéreo, pois o convênio é produzido pelo Executivo e não pelo Legislativo (constituído de representantes do povo) (Argumento “f”);
o É preciso esperar a lei complementar para que haja a cobrança do imposto (Argumento “g”); o Não se contradisse que a palavra “transporte” semanticamente inclui o transporte aéreo, mas se ressalta
que da análise dos anais da Assembleia Constituinte conclui-se que nunca no passado se entendeu essa atividade tributável (Argumento “h”);
o Não pode uma nova hipótese de incidência tributária ser inventada por um colegiado de demissíveis ad nutum (Argumento “i”);
o Por ter sido Procurador da República sempre fui mais sensível às teses do Tesouro Público do que às do contribuinte, especialmente às do grande contribuinte, mas há um limite que não pode se ultrapassar “não há tributo sem representação popular” (Argumento “l”).
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Os argumentos “a”, “b”, “c”, “d”, “j” e “k” não têm nenhuma relação com a
garantia que permite a sustentação de inconstitucionalidade. O fato de o Ministro
afirmar que não pode o STF analisar questões econômicas, por elas estarem num
âmbito metajurídico, ou mesmo que não cabe ao STF dizer o que é justo ou injusto
em matéria tributária são argumentos que podem ser utilizados por quem está
observando a interpretação do STF. Tais considerações feitas pelo próprio intérprete
da Constituição em nada apoiam a garantia de que cabe a ele processar e julgar as
ações que envolvem inconstitucionalidade de atos infraconstitucionais ou mesmo
que a norma jurídica em questão é inconstitucional.
5.3.5.2 Voto do Ministro Maurício Corrêa
O Ministro Maurício Corrêa não participou da decisão que versou sobre a
medida liminar da ADI 1089-1. Da motivação do voto que compôs a decisão final
pela procedência do pedido de inconstitucionalidade destacam-se os seguintes
pontos:
(a) A competência para legislar sobre navegação aérea é da União
Federal, portanto não poderia ser matéria de Convênio:
[...] a competência para legislar sobre navegação aérea é da União Federal, a teor dos artigos 21, XII, c e 22, X, da Constituição Federal, complementando o art. 155, I, letra b, que compete aos Estados e Distrito Federal instituir impostos sobre as operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicações, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.
Como a Constituição é um conjunto de conceitos que deve ser interpretado em harmonia, comparando-se o seu todo para chegar-se á exegese do que certa disposição quer dizer, extraio que sobre navegação aérea não poderia o Confaz legislar impondo regras para cobrança do ICMS.
[...] na hipótese, se pelo artigo 146, da CF, a fim de que seja definido o fato gerador, a base de cálculo e contribuintes, torna-se necessário o respectivo disciplinamento por lei complementar desse mecanismo de tributação, ainda inexistente.
(b) Trata-se de uma matéria de profunda significação social e econômica
que mexe com parte significativa da economia brasileira no setor:
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Atenho-me especificamente nessa temática à argumentação da relevância da questão posta nessa ação direta de inconstitucionalidade. Creio que é uma matéria de profunda significação, do ponto de vista social e econômico, que mexe praticamente com boa parte da economia brasileira no setor; que toca diretamente com os Estados e interfere na economia doméstica das empresas aéreas e até nas relações internacionais desse tipo de transporte.
(c) Só os representantes do povo poderiam dizer, por meio de lei
complementar, se se deve ou não pagar ICMS sobre transporte aéreo ou se as
empresas desse setor devem ser isentadas:
Tema desta grandeza, desta magnitude, não poderia estar afeto a convênio celebrado pelos Estados e, sim, que seja equacionado no âmbito de uma profunda discussão, através de lei complementar cuja votação exige quorum qualificado nas duas Casas do Congresso Nacional; tudo isso para que o povo participe, através de seus representantes, se deve ou não pagar o ICMS em tais operações ou se essas devem ser isentas, como parece querer dizer o texto constitucional.
(d) A necessidade de lei complementar também se justifica pela
insuficiência do convênio ao tratar do tema:
Todavia o fundamental é que haja lei complementar que regulamente as situações em todos os seus ângulos, e não que o tributo passe a ser cobrado em função de convênio, cuja regulamentação padece desse vício de origem que o contamina, senão também pela insuficiência do que previu, tendo em vista o elenco de fatos e circunstâncias específicas e especialíssimas que envolve o tema.
(e) A paralisação dos efeitos da liminar causaria uma crise no segmento
que só agora conseguiu se arrumar:
Há ainda a sopesar conveniência de natureza prática oriunda do deferimento cautelar, que caso venha a ser alterado, provocaria profunda crise num segmento que somente agora parece se arrumar, depois de longos anos de desequilíbrio. Tais conseqüências ainda seriam acrescidas da taxação que passaria a ser cobrada doravante, o que implicaria aumento das tarifas, que neste estágio se encontram compostas sem o ônus dessa imposição.
(f) Como a navegação comercial aérea é um serviço que depende de
autorização governamental, o Estado deve proteger esse setor:
Como a navegação comercial aérea é um serviço que depende de autorização governamental, com a fiscalização direta do DAC, órgão integrante do Ministério da Aeronáutica, de certo modo ligada até às questões de segurança nacional, tenho que o Estado deve proteger o
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setor aéreo concedido, no que for possível, até mesmo para evitar que as grandes companhias internacionais que dominam em grande parte esse mercado mundial, acabem por açambarcar também o mercado interno, já que o externo é com elas dividido, em termos da clientela nacional e estrangeira e das mercadorias que transporta.
(g) Se for permitida a incidência do ICMS sobre o transporte aéreo quem
sofrerá será o usuário ou o próprio Estado com as possíveis quebradeiras:
Se o contrário ocorrer, quem por fim vai sofrer todas essas conseqüências será o usuário ou o próprio Estado, com interferências que resultam sempre em ônus para o Tesouro, se o pior não suceder com quebradeiras aéreas, aumentando ainda mais o cenário de angústia social.
(h) Levantamentos realizados pelas empresas aéreas apontam para
sérios riscos quanto ao destino da aviação comercial brasileira:
Os levantamentos estatísticos e diversos gráficos efetuados pelas empresas aéreas, e que instruem memoriais que nos foram distribuídos, apontam para um sério risco quanto ao destino da aviação comercial brasileira, caso se acresça mais um ônus com o qual não contabilizam, o que levaria a um resultado imprevisível no que diz respeito à sua própria sobrevivência.
(i) Se o legislador constituinte quisesse impor essa tributação teria
redigido com mais clareza, principalmente sabendo-se que os parlamentares são
usuários permanentes do transporte aéreo:
Se o constituinte tivesse a intenção explícita de colocar no artigo 155, inciso II, da CF, que essas operações incluiriam navegação aérea, teria sido explícito, porque o que se menciona, ali, são “operações intermunicipais” e “interestaduais”.
Ora, quem está no Congresso Nacional sabe perfeitamente que se quisesse o constituinte impor essa tributação às empresas de navegação aérea, o dispositivo teria sido redigido com mais clareza, certeza e segurança, principalmente sabendo-se que os parlamentares são usuários permanentes do transporte aéreo e conhecem muito bem as deficiências da aviação comercial, seus problemas e as dificuldades por que passa. A ausência dessa especificação expressa não foi ocasional, mas sim proposital, na visão da problemática que cerca a aviação comercial.
(j) Ainda que o convênio fosse constitucional, seria incompleto:
Ademais, ainda que se admita a constitucionalidade do referido Convênio, é o mesmo insuficiente na sua completitude, porque não disciplinou de forma correta com a ótica voltada às implicações conjunturais da arrecadação do tributo, tendo em vista as particularidades de cada Estado neste conjunto operacional.
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Os demais argumentos – “b”, “e”, “f”, “g”, “h” e “j” - são declaradamente
econômicos e políticos. Inclusive o Ministro cita os impactos políticos de uma
possível tributação e menciona as planilhas apresentadas pelas empresas aéreas.
Mesmo argumentos que foram incluídos como apoios, assustam pelo
grau de intencionalidade que os motiva, como é, por exemplo, o argumento “i”, em
que o Ministro justifica a sua interpretação, a princípio teleológica, do significado da
expressão “transporte”, lembrando que os parlamentares são usuários permanentes
do transporte aéreo.
ALEGAÇÃO ("deve-ser")
O STF deverá declarar inconstitucional a norma jurídica que permite a instituição do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, construída a partir do Convênio nº 66/88.
ADI 1089-1 - Voto do Ministro Maurício Corrêa
DADOS ("se"):
O texto do Convênio nº 66/88, publicado em 6-12-1988, não menciona expressamente "transporte aéreo", mas viabiliza a construção da norma jurídica que permite aos Estados e ao Distrito Federal instituírem o ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo interestadual e intermunicipal, sem respaldo constitucional.
(“então”)
GARANTIAS (“já que”):
• Compete ao STF declarar a inconstitucionalidade das normas jurídicas veiculadas em atos normativos infraconstitucionais. • A norma jurídica construída a partir do texto do Convênio nº 66/88, que permite a instituição do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, é inconstitucional.
APOIOS (“por conta de”):
o A competência do STF para julgar a ADI 1089-1 está prescrita pela CF/88 no artigo 102, I, "a". o A inconstitucionalidade da norma jurídica está demonstrada, uma vez que:
o A competência para legislar sobre navegação aérea é da União Federal, portanto não poderia ser matéria de Convênio (Argumento “a”);
o Só os representantes do povo poderiam dizer, por meio de lei complementar, se se deve ou não pagar ICMS sobre transporte aéreo ou se as empresas desse setor devem ser isentadas (Argumento “c”);
o A necessidade de lei complementar também se justifica pela insuficiência do convênio ao tratar do tema (Argumento “d”);
o Se o legislador constituinte quisesse impor essa tributação teria redigido com mais clareza, principalmente sabendo-se que os parlamentares são usuários permanentes do transporte aéreo (Argumento “i”).
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5.3.5.3 Voto do Ministros Ilmar Galvão
Também pela inconstitucionalidade dos dispositivos que previam a
incidência do ICMS sobre os serviços aéreos, o ministro Ilmar Galvão, após realizar
um relatório minucioso dos argumentos que embasaram o pedido do Procurador-
Geral da República, destacou os seus seguintes argumentos:
(a) O fato de a União não ter tributado o setor aéreo, quando o tributo era
da sua competência, não vincula os Estados que, em bloco, nos termos do art. 155,
XII, “g”, podem excluir o transporte aéreo da incidência do ICMS:
É certo que a União não chegou a tributar o transporte por via aérea, circunstância que, todavia, não pode ser atribuída senão a razões de conveniência do legislador federal, fato esse que, em absoluto, não tem o efeito de vincular, presentemente, o legislador estadual, não obstante não tenham os Estados-membros, qualquer parcela de participação mais significativa no desenvolvimento do transporte aéreo, entre nós, circunstância a que, certamente, se deve repugnância que causa a tributação, por eles, dessa atividade de transporte.
[...]
A eventual decisão dos Estados no sentido de excluir o serviço de transporte aéreo da incidência do ICMS somente poderia ser tomada em bloco, por meio de convênio, face à norma do art. 155, XII, g, c/c com a LC 24/75.
(b) Não se pode confundir competência executiva (art. 21) ou legislativa
(art. 22) com competência tributária, sob pena de inviabilizar a tributação pelos
Estados e pelo DF:
Na verdade, como sustentaram as referidas unidades federadas em suas informações, não há confundir competência executiva (art. 21 da CF) ou legislativa (art. 22) com competência tributária, sob pena de ter-se inviável a tributação, pelos Estados e pelo Distrito Federal, de qualquer espécie de serviço de transporte, ou de comunicação, posto que todos eles se acham, por igual, sob as competências executiva e legislativa da União, por força da norma dos referidos arts. 21 (XII, a,d e e) e 22 (I, IX, X, XI).
(c) Não há distinção entre “navegação aérea” e “serviços de transporte”
no texto constitucional, como comprova a redação do art. 178, I da CF/88:
Não é de ter-se, portanto, por estabelecida, pela CF 88, para efeitos tributários, a distinção – defendida com brilhantismo em preciosos memoriais distribuídos sobre a matéria - entre transporte aéreo e as demais modalidades de transporte, pelo simples fato de haver o
233
primeiro, no art. 21, sido referido como “navegação aérea”, e as demais como “serviços de transporte”. Mesmo porque a Constituição não se revelou infensa à expressão “transporte aéreo”, já que a utilizou no art. 178, I, ao lado do transporte marítimo e do terrestre.
(d) Não se aplica a imunidade recíproca às empresas aéreas, por não
estarem elas incluídas no rol do art. 150, VI, a e §2º. da CF/88:
Sem serventia, por igual, para as empresas aéreas, no caso, o princípio da recíproca imunidade de impostos, estabelecida no art. 150, VI, a, da CF/88, posto ter ele aplicação restrita à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios e às autarquias e fundações por eles instituídas, e, assim mesmo, sem estender-se ao “patrimônio, às rendas e aos serviços relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário”, conforme ressalvado no §3º. do referido dispositivo.
(e) O Convênio 66/88 possui validade formal, em razão do prescrito no art. 34, §8º. do ADCT:
[...] é fora de dúvida que o ICMS, no tocante à parte que resultou do acréscimo feito pela CF/88 ao antigo ICM, a sua instituição e cobrança pelos Estados e pelo DF estava condicionado à edição da lei complementar acima enfocada, a ser editada pelo legislador federal. [...]
Confirmada a mora do Poder Legislativo, utilizaram-se os Estados da faculdade que lhes conferiu a norma transcrita [Art. 34, §8º do ADCT], elaborando, de acordo com as regras (modus faciendi ) estabelecidas na LC nº 24/75, o Convênio ICM 66/88, de 14.14.88, alterado sucessivamente pelos que se acham enumerados na inicial, por meio dos quais edificara o quadro normativo que, presentemente, no que concerne ao ICMS, serve de sucedâneo transitório à lei complementar prevista nos arts. 146, I e III e 155, da Constituição.
Trata-se de diplomas normativos que, com eficácia de lei complementar conferida pela Constituição – insista-se -, não tiveram o escopo de instituir o novo ICMS, mas de viabilizar a instituição deste pelos Estados e pelo Distrito Federal, antes da data prevista para a vigência do novo sistema tributário, por meio de leis locais, no exercício da competência tributária que lhes conferiu o art. 155, caput, da Constituição.
Estabelecida, de modo incontrastável, a validade formal do Convênio ICM 66/88 como diploma regulador da instituição do novo ICMS, resta perquirir-lhe a validade material, por meio de um exame de seu conteúdo, em ordem a ver-se se exibe ele, ou não, os requisitos caracterizadores da lei complementar cuja ausência estaria fadado a suprir em caráter provisório.
234
(f) O Conv. nº 66/88 não tem validade material, sendo, portanto,
inconstitucional, em razão de não ter previsto regras destinadas a prevenir conflitos
de competência, no caso de prestação de serviço de transporte aéreo:
Sobretudo, é mister examinar se contém ele normas destinadas a prevenir conflitos de competência, dado que, no caso, as operações tributadas – a prestação de serviço de transporte aéreo – quase sempre envolvem mais de uma unidade federada, circunstância capaz de gerar choques de interesse em torno do produto da arrecadação do imposto, choques esses que, justamente, incumbiria ao Convênio prevenir (CF, art. 146, I).
Em leitura do mencionado documento (e dos que o complementaram), revela, de pronto, que define o fato gerador do ICMS [...]. Nada provê, entretanto, acerca do ponto anteriormente assinalado, o modo como serão dirimidos os conflitos em inevitavelmente estarão envolvidos os Estados e o Distrito Federal, e por igual os Municípios (cf. art. 158, IV, parágrafo único, I), em torno da competência impositiva e, consequentemente, da partilha do produto do imposto, face à circunstância, já assinalada, de a prestação de serviço de transporte envolver, e ordinário, mais de um Estado ou, pelo menos, mais de um Município.
Na hipótese específica do transporte de passageiros não há norma apta a definir cada um dos lugares em que se deve reputar executado o serviço e, conseqüentemente, verificado o fato gerador do tributo e, bem assim, os sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária, e o modo pelo qual haverá esta de ser reputada cumprida, na hipótese, v. g., de alguém adquirir, em Brasília, um bilhete de passagem para uma viagem aérea, de ida e volta entre Manaus e Porto Alegre, eventualmente cumprida com interrupções temporárias em escalas intermediárias, com baldeações, com a utilização de rotas alternativas e com trechos cobertos por empresa diversa, incidentes rotineiros em viagens da espécie.
235
Como pode ser observado, apenas o argumento “f” apoia a garantia da
inconstitucionalidade da norma que permite a instituição do ICMS sobre transporte
aéreo, construída a partir do Convênio nº 66/88. Os demais argumentos (“a”, “b”, “c”,
“d” e “e”), muito ao contrário, afirmam a constitucionalidade da norma jurídica em
questão.
5.3.5.4 Voto do Ministro Octavio Gallotti
O Ministro Octavio Gallotti votou pela inconstitucionalidade material nos
termos dos votos dos Ministros Ilmar Galvão e Celso de Mello, registrando que,
dessa forma, ele seria coerente com o voto que proferiu acerca do adicional estadual
ALEGAÇÃO ("deve-ser")
O STF deverá declarar inconstitucional a norma jurídica que permite a instituição do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, construída a partir do Convênio nº 66/88.
DADOS ("se"):
O texto do Convênio nº 66/88, publicado em 6-12-1988, não menciona expressamente "transporte aéreo", mas viabiliza a construção da norma jurídica que permite aos Estados e ao Distrito Federal instituírem o ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo interestadual e intermunicipal, sem respaldo constitucional.
(“então”)
GARANTIAS (“já que”):
• Compete ao STF declarar a inconstitucionalidade das normas jurídicas veiculadas em atos normativos infraconstitucionais. • A norma jurídica construída a partir do texto do Convênio nº 66/88, que permite a instituição do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, é inconstitucional.
ADI 1089-1 - Voto do Ministro Ilmar Galvão
APOIOS (“por conta de”):
o A competência do STF para julgar a ADI 1089-1 está prescrita pela CF/88 no artigo 102, I, "a". o A inconstitucionalidade da norma jurídica está demonstrada, uma vez que:
o O Conv. nº 66/88 não tem validade material, sendo, portanto, inconstitucional, razão de não ter previsto regras destinadas a prevenir conflitos de competência, no caso de prestação de serviço de transporte aéreo (Argumento “f”).
236
de Imposto de Renda. Como o voto do ministro Celso de Mello não consta dos
autos, fica como argumento o seguinte:
(a) O Conv. nº 66/88 não tem validade material, sendo, portanto,
inconstitucional, em razão de não ter previsto regras destinadas a prevenir conflitos
de competência no caso de prestação de serviço de transporte aéreo.
ADI 1089-1 - Voto do Ministro Octavio Galotti
DADOS ("se"):
O texto do Convênio nº 66/88, publicado em 6-12-1988, não menciona expressamente "transporte aéreo", mas viabiliza a construção da norma jurídica que permite aos Estados e ao Distrito Federal instituírem o ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo interestadual e intermunicipal, sem respaldo constitucional.
(“então”)
GARANTIAS (“já que”):
• Compete ao STF declarar a inconstitucionalidade das normas jurídicas veiculadas em atos normativos infraconstitucionais. • A norma jurídica construída a partir do texto do Convênio nº 66/88, que permite a instituição do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, é inconstitucional.
ALEGAÇÃO ("deve-ser")
O STF deverá declarar inconstitucional a norma jurídica que permite a instituição do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, construída a partir do Convênio nº 66/88.
APOIOS (“por conta de”):
o A competência do STF para julgar a ADI 1089-1 está prescrita pela CF/88 no artigo 102, I, "a". o A inconstitucionalidade da norma jurídica está demonstrada, uma vez que:
o O Conv. nº 66/88 não tem validade material, sendo, portanto, inconstitucional, razão de não ter previsto regras destinadas a prevenir conflitos de competência, no caso de prestação de serviço de transporte aéreo (Argumento “f”).
237
5.3.5.5 Voto do Ministro Sydney Sanches
O Ministro Sydney Sanches ressaltou que tem dúvida “sobre se uma lei
complementar pode fazer o que o convênio tentou fazer”, mas isso, segundo ele,
“não está em julgamento por ora”. Utilizou para fundamentar a inconstitucionalidade
do convênio, os argumentos expostos nos votos que antecederam o seu dos
Ministros Francisco Rezek, Maurício Corrêa, Ilmar Galvão, e Octávio Gallotti.
Resumidos, nos seguintes argumentos:
(a) O critério histórico da hermenêutica constitucional é unívoco no
sentido de que não houve a intenção da Assembleia Constituinte de incluir o
transporte aéreo na incidência do ICMS;
(b) Como se trata de uma figura nova, somente a lei complementar
poderia prever a incidência do ICMS sobre o setor aéreo, pois o convênio é
produzido pelo Executivo e não pelo Legislativo (constituído de representantes do
povo);
(c) É preciso esperar a lei complementar para que haja a cobrança do
imposto;
(d) Não se contradisse que a palavra “transporte” semanticamente inclui o
transporte aéreo, mas se ressalta que da análise dos anais da Assembleia
Constituinte conclui que nunca no passado se entendeu essa atividade tributável;
(e) Não pode uma nova hipótese de incidência tributária ser inventada por
um colegiado de demissíveis ad nutum;
(f) Por ter sido Procurador da República sempre fui mais sensível às teses
do Tesouro Público do que às do contribuinte, especialmente às do grande
contribuinte, mas há um limite que não pode se ultrapassar “não há tributo sem
representação popular”;
(g) A competência para legislar sobre navegação aérea é da União
Federal, portanto não poderia ser matéria de Convênio;
(h) Só os representantes do povo poderiam dizer, por meio de lei
complementar, se se deve ou não pagar ICMS sobre transporte aéreo ou se as
empresas desse setor devem ser isentadas;
238
(i) A necessidade de lei complementar também se justifica pela
insuficiência do convênio ao tratar do tema;
(j) Se o legislador constituinte quisesse impor essa tributação teria
redigido com mais clareza, principalmente sabendo-se que os parlamentares são
usuários permanentes do transporte aéreo;
(k) O Conv. nº 66/88 não tem validade material, sendo, portanto,
inconstitucional, em razão de não ter previsto regras destinadas a prevenir conflitos
de competência no caso de prestação de serviço de transporte aéreo.
ALEGAÇÃO ("deve -ser")
O STF deverá declarar inconstitucional a norma jurídica que permite a instituição do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, construída a partir do Convênio nº 66/88.
DADOS ("se"):
O texto do Convênio nº 66/88, publicado em 6-12-1988, não menciona expressamente "transporte aéreo", mas viabiliza a construção da norma jurídica que permite aos Estados e ao Distrito Federal instituírem o ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo interestadual e intermunicipal, sem respaldo constitucional.
(“então”)
GARANTIAS (“já que”):
• Compete ao STF declarar a inconstitucionalidade das normas jurídicas veiculadas em atos normativos infraconstitucionais. • A norma jurídica construída a partir do texto do Convênio nº 66/88, que permite a instituição do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, é inconstitucional.
ADI 1089-1 - Voto do Ministro Sydney Sanches
APOIOS (“por conta de”): o A competência do STF para julgar a ADI 1089-1 está prescrita pela CF/88 no artigo 102, I, "a". o A inconstitucionalidade da norma jurídica está demonstrada, uma vez que: o Argumentos “f”, “g”, “h”, “i” e “l” do Min. Francisco Rezek; o Argumentos “a”, “c”, “d” e “i” do Min. Maurício Corrêa; o Argumento “f” dos Min. Ilmar Galvão e Octavio Gallotti.
239
5.3.5.6 Voto do Ministro Néri da Silveira
O Ministro Néri da Silveira havia decidido pelo indeferimento da medida
cautelar, com base nos argumentos apontados no tópico anterior. No entanto, no
julgamento do pedido de declaração de inconstitucionalidade, o Ministro julgou pela
sua procedência do mesmo, com base nos seguintes argumentos:
(a) Há a necessidade de lei complementar, nos termos do art. 146, I da
CF/88, conforme julgamentos, posteriores ao seu voto, relacionados ao Adicional
Estadual de IR:
A questão que ganha relevo para o desate dessa controvérsia é, sem dúvida, a que se põe em torno da compreensão do art. 34, §8º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e da eficácia desse dispositivo em ordem a que possam os Estados estipularem em convênio essa incidência de ICMS no transporte marítimo, aéreo, interestadual ou intermunicipal.
Esse ponto não foi objeto de mais larga consideração por mim naquele momento. [...]
Posteriormente, a corte apreciou dois recursos extraordinários, numa mesma assentada, em torno do adicional estadual ao IR, que fora também previsto em resolução, com base nesse mesmo dispositivo. [...] O importante é que o Tribunal acentuou, a respeito do ICMS, ou de adicional estadual de Imposto de Renda, enfim, do exercício dessa competência dos Estados, a necessidade de lei complementar prevista no art. 146, I da CF, sempre que houvesse a possibilidade da disciplina estadual, estabelecida pelas diversas unidades da Federação, poder resultar em situações de conflito, de tratamento desigual ou de competição entre os Estados, decorrente dessa posição na impositividade estabelecida.
(b) A navegação aérea tem uma importância em termos nacionais e
internacionais, havendo, por esse motivo, uma necessidade de lei complementar:
Quanto ao transporte aéreo – no voto do eminente Ministro-Relator foi bem destacada a significação da navegação aérea em termos nacionais e mesmo nas relações internacionais do País, - a importância, portanto, desse transporte. Há necessidade de uma disciplina que provenha exclusivamente de um órgão, habilitado pela Constituição, em razão da sua função política, para estabelecer o regramento segundo o interesse nacional, prevendo, assim, as diretrizes básicas para a eventual cobrança desse tributo.
(c) A inconstitucionalidade reside também na insuficiência do convênio em
disciplinar a matéria, hipótese de inconstitucionalidade formal:
240
Para concluir, também entendo que a inconstitucionalidade reside exatamente na insuficiência do convênio para disciplinar essa matéria e, assim, configura-se hipótese de inconstitucionalidade formal.
5.3.5.7 Voto do Ministro Moreira Alves
O ministro Moreira Alves votou pela procedência da ADI 1089-1, mas
pontuo que “Com referência aos vários fundamentos, reservo-me, com relação a
alguns deles, para meditar melhor”. Expressa, portanto, apenas os seguintes
argumentos para fundamentar o seu voto:
ADI 1089-1 - Voto do Ministro Néri da Silveira
DADOS ("se"):
O texto do Convênio nº 66/88, publicado em 6-12-1988, não menciona expressamente "transporte aéreo", mas viabiliza a construção da norma jurídica que permite aos Estados e ao Distrito Federal instituírem o ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo interestadual e intermunicipal, sem respaldo constitucional.
(“então”)
GARANTIAS (“já que”):
• Compete ao STF declarar a inconstitucionalidade das normas jurídicas veiculadas em atos normativos infraconstitucionais. • A norma jurídica construída a partir do texto do Convênio nº 66/88, que permite a instituição do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, é inconstitucional.
ALEGAÇÃO ("deve-ser")
O STF deverá declarar inconstitucional a norma jurídica que permite a instituição do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, construída a partir do Convênio nº 66/88.
APOIOS (“por conta de”):
o A competência do STF para julgar a ADI 1089-1 está prescrita pela CF/88 no artigo 102, I, "a". o A inconstitucionalidade da norma jurídica está demonstrada, uma vez que:
o Há necessidade de lei complementar, nos termos do art. 146, I da CF/88, conforme julgamentos, posteriores ao seu voto, relacionados ao Adicional Estadual de IR (Argumento “a”);
o A navegação aérea tem uma importância em termos nacionais e internacionais, havendo, por esse motivo, uma necessidade de lei complementar (Argumento “b”);
o A inconstitucionalidade reside também na insuficiência do convênio em disciplinar a matéria, hipótese de inconstitucionalidade formal (Argumento “c”).
241
(a) A Constituição não deu ao convênio toda a competência reservada à
lei complementar:
Essa matéria é daquelas em que a Constituição não deu ao convênio, a meu ver, pelo menos à primeira vista, toda a competência reservada à lei complementar.
(b) A questão não é semântica, pois é óbvio que a navegação aérea se
inclui entre serviços de transporte aéreo. O problema é que a própria Constituição
distinguiu os serviços que poderão ser prestados pela União ou que poderiam ser
objeto de concessão, atribuindo-se à navegação aérea uma diferença nítida perante
os demais, pois o problema da navegação aérea é mais delicado que qualquer outro
tipo de transporte:
O problema da navegação aérea é bem mais delicado que qualquer outro tipo de transporte, porque, como salientei anteriormente, quando a Constituição estabelecer os serviços que poderão ser prestados pela União ou por concessão, faz ela distinção entre navegação aérea, aeroespacial e infra-estrutura aeroportuária e os serviços de transporte ferroviários, rodoviário e aquaviários. O problema aqui é semântico; não é dizer obviamente, que navegação aérea não se inclui entre serviço de transporte aéreo. O problema aqui é que a própria Constituição, no momento que enumerou quais eram os serviços que poderiam ser prestados pela União ou poderiam ser objeto de concessão, fez diferença bastante nítida, o que só explica pelas peculiaridades das navegações aéreas e aeroespacial.
(c) Há necessidade de lei complementar para essa hipótese, nos termos
do voto do Min. Néri da Silveira:
Tenho para mim que o fato de o convênio não tratar dessa matéria já basta para declarar a inconstitucionalidade em causa. Mas, em princípio, também sou inclinado a seguir a linha do Sr. Ministro Néri da Silveira no sentido de que, para essa hipótese, há necessidade especificamente de lei complementar.
242
5.3.5.8 Voto do Ministro Sepúlveda Pertence
O ministro Sepúlveda Pertence que havia votado pela concessão da
medida cautelar, votou pela procedência da ADI 1089-1. Agora, com base nos
seguintes argumentos:
(a) o Convênio 66/88 é insuficiente por não ter regulado conflitos
meramente fiscais:
Mas, mostrou também o Ministro Ilmar Galvão que, de qualquer sorte, a disciplina do convênio é de manifesta insuficiência, porque não regulou sequer aqueles conflitos meramente fiscais que poderiam surgir entre os Estados covenentes.
ADI 1089-1 - Voto do Ministro Moreira Alves
DADOS ("se"):
O texto do Convênio nº 66/88, publicado em 6-12-1988, não menciona expressamente "transporte aéreo", mas viabiliza a construção da norma jurídica que permite aos Estados e ao Distrito Federal instituírem o ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo interestadual e intermunicipal, sem respaldo constitucional.
(“então”)
GARANTIAS (“já que”):
• Compete ao STF declarar a inconstitucionalidade das normas jurídicas veiculadas em atos normativos infraconstitucionais. • A norma jurídica construída a partir do texto do Convênio nº 66/88, que permite a instituição do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, é inconstitucional.
ALEGAÇÃO ("deve-ser")
O STF deverá declarar inconstitucional a norma jurídica que permite a instituição do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, construída a partir do Convênio nº 66/88.
APOIOS (“por conta de”):
o A competência do STF para julgar a ADI 1089-1 está prescrita pela CF/88 no artigo 102, I, "a". o A inconstitucionalidade da norma jurídica está demonstrada, uma vez que:
o A Constituição não deu ao convênio toda a competência reservada à lei complementar (Argumento “a”);
o A questão não é semântica, pois é óbvio que a navegação aérea se inclui entre serviços de transporte aéreo. O problema é que a própria Constituição distinguiu os serviços que poderão ser prestados pela União ou que poderiam ser objeto de concessão, atribuindo-se à navegação aérea uma diferença nítida perante os demais, pois o problema da navegação aérea é mais delicado que qualquer outro tipo de transporte (Argumento “b”);
o Há necessidade de lei complementar para essa hipótese, nos termos do voto do Min. Néri da Silveira (Argumento “c”);
243
(b) Há problemas maiores a resolver no que tange à compatibilização da
tributação dos transportes aéreos e a política nacional desse tipo de transporte, por
isso países “mais sabidos” que o nosso costumam considerar a navegação aérea
muito séria para ser entregue aos particulares:
Deixo claro, no entanto, que propendo a considerar que há aí problemas maiores a resolver que os conflitos de mero interesse fiscal entre Estados. Há o de compatibilização da tributação dos transportes aéreos, que ainda pode ser outorgado aos Estados como fonte de arrecadação fiscal, mas que hão de conciliar-se com a política, esta necessariamente nacional, da navegação aérea.
Por isso, na liminar, na linha do voto do Ministro Francisco Rezek, acentuava que não é à toa que países mais sabidos do que o nosso costumam considerar a navegação aérea coisa muito séria para ser entregue a particulares.
ADI 1089-1 - Voto do Ministro Sepúlveda Pertence
DADOS ("se"):
O texto do Convênio nº 66/88, publicado em 6-12-1988, não menciona expressamente "transporte aéreo", mas viabiliza a construção da norma jurídica que permite aos Estados e ao Distrito Federal instituírem o ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo interestadual e intermunicipal, sem respaldo constitucional.
(“então”)
GARANTIAS (“já que”):
• Compete ao STF declarar a inconstitucionalidade das normas jurídicas veiculadas em atos normativos infraconstitucionais. • A norma jurídica construída a partir do texto do Convênio nº 66/88, que permite a instituição do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, é inconstitucional.
ALEGAÇÃO ("deve-ser")
O STF deverá declarar inconstitucional a norma jurídica que permite a instituição do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, construída a partir do Convênio nº 66/88.
APOIOS (“por conta de” ):
• A competência do STF para julgar a ADI 1089-1 está prescrita pela CF/88 no artigo 102, I, "a".
• A inconstitucionalidade da norma jurídica está demonstrada, uma vez que: o O Convênio 66/88 é insuficiente por não ter regulado conflitos meramente fiscais (Argumento “a”);
o Há problemas maiores a resolver no que tange à compatibilização da tributação dos transportes aéreos e a política nacional desse tipo de transporte, por isso países “mais sabidos” que o nosso costumam considerar a navegação aérea muito séria para ser entregue aos particulares (Argumento “b).
244
5.3.6 Procedência do pedido de declaração de
inconstitucionalidade na ADI 1089-1: resultado da apuração dos
votos
Julgada procedente, por unanimidade, a Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 1089-1, ajuizada pelo Procurador-Geral da República,
apresentou a seguinte ementa:
EMENTA: TRANSPORTE AÉREO. ICMS. Dada a gênese do novo ICMS na Constituição de 1988, tem-se que sua exigência no caso dos transportes aéreos configura nova hipótese de incidência tributária, dependente de norma complementar à própria carta, e insuscetível, à luz de princípios e garantias essenciais daquela, de ser inventada, mediante convênio, por um colegiado de demissíveis ad nutum. Procedência da ação direta com que o Procurador-Geral da República atacou o regramento convenial da exigência do ICMS no caso dos transportes aéreos.
(ADI 1089, Min. Relator FRANCISCO REZEK, Tribunal Pleno, julgado em 29-05-1996, DJ 27-06-1997)
Por meio do seguinte quadro comparativo, destacam-se, sinteticamente,
os argumentos constantes nos votos dos ministros que apoiam a
inconstitucionalidade da norma jurídica que permite a instituição do ICMS sobre a
prestação de serviço de transporte aéreo, construída a partir do Convênio nº 66/88 e
os que negam as teses de inconstitucionalidade.
Votos dos Ministros
Argumentos que apoiam a inconstitucionalidade alegada
na ADI 1089-1
Argumentos que negam a inconstitucionalidade alegada
na ADI 1089-1
Min. Francisco Rezek • O critério histórico da hermenêutica constitucional é unívoco no sentido de não incluir o transporte aéreo na incidência do ICMS.
• Como se trata de uma figura nova, somente a lei complementar poderia prever a incidência do ICMS sobre o setor aéreo.
• Não pode uma nova hipótese de incidência tributária ser inventada por um colegiado de demissíveis ad nutum.
• Mesmo sendo mais sensível às teses do Tesouro Público do que às do
245
Votos dos Ministros
Argumentos que apoiam a inconstitucionalidade alegada
na ADI 1089-1
Argumentos que negam a inconstitucionalidade alegada
na ADI 1089-1
contribuinte, há um limite que não pode ultrapassar: “não há tributo sem representação popular”.
Min. Maurício Corrêa • A competência para legislar sobre navegação aérea é da União Federal, portanto não poderia ser matéria de Convênio.
• Só os representantes do povo poderiam dizer, por meio de lei complementar, se se deve ou não pagar ICMS sobre transporte aéreo.
• A necessidade de lei complementar também se justifica pela insuficiência do convênio ao tratar do tema.
• Se o legislador constituinte quisesse impor essa tributação teria redigido com mais clareza, principalmente sabendo-se que os parlamentares são usuários permanentes do transporte aéreo.
Min. Ilmar Galvão • O Conv. nº 66/88 não tem validade material, sendo, portanto, inconstitucional, em razão de não ter previsto regras destinadas a prevenir conflitos de competência, no caso de prestação de serviço de transporte aéreo:
• O fato de a União não ter tributado o setor aéreo, quando o tributo era da sua competência, não vincula os Estados que, em bloco, nos termos do art. 155, XII, “g”, podem excluir o transporte aéreo da incidência do ICMS.
• Não se pode confundir competência executiva (art. 21) ou legislativa (art. 22) com competência tributária, sob pena de inviabilizar a tributação pelos Estados e pelo DF.
• Não há distinção entre “navegação aérea” e “serviços de transporte” no texto constitucional, como comprova a redação do art. 178, I da CF/88.
• Não se aplica a imunidade recíproca às empresas aéreas, por não estarem essas incluídas no rol do art. 150, VI, a e §2º. da CF/88.
• O Convênio 66/88 possui validade formal, em razão do prescrito no art. 34, §8º. do ADCT.
Min. Octávio Gallotti • O Conv. nº 66/88 não tem validade
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Votos dos Ministros
Argumentos que apoiam a inconstitucionalidade alegada
na ADI 1089-1
Argumentos que negam a inconstitucionalidade alegada
na ADI 1089-1
(seguiu o voto do Min. Ilmar Galvão)
material, sendo, portanto, inconstitucional, em razão de não ter previsto regras destinadas a prevenir conflitos de competência, no caso de prestação de serviço de transporte aéreo.
Min. Sydney Sanches • Os mesmos dos Ministros Francisco Rezek, Ilmar Galvão e Octavio Gallotti.
Min. Néri da Silveira • Necessidade de lei complementar, nos termos do art. 146, I da CF/88, conforme julgamentos relacionados ao Adicional Estadual de IR.
• A navegação aérea tem uma importância em termos nacionais e internacionais, havendo, por esse motivo, uma necessidade de lei complementar.
• A inconstitucionalidade reside também na insuficiência do convênio em disciplinar a matéria, hipótese de inconstitucionalidade formal.
Min. Moreira Alves • A Constituição não deu ao convênio toda a competência reservada à lei complementar.
• A questão não é semântica, pois é óbvio que a navegação aérea se inclui entre serviços de transporte aéreo. O problema é que a própria Constituição distinguiu os serviços que poderão ser prestados pela União ou que poderiam ser objeto de concessão, atribuindo-se à navegação aérea uma diferença nítida perante os demais, pois o problema da navegação aérea é mais delicado que qualquer outro tipo de transporte.
• Há necessidade de lei complementar para essa hipótese, nos termos do voto do Min. Néri da Silveira.
Min. Sepúlveda Pertence • O Convênio 66/88 é insuficiente por não ter regulado conflitos meramente fiscais.
247
Votos dos Ministros
Argumentos que apoiam a inconstitucionalidade alegada
na ADI 1089-1
Argumentos que negam a inconstitucionalidade alegada
na ADI 1089-1
• Há problemas maiores a resolver no que tange à compatibilização da tributação dos transportes aéreos e política nacional desse tipo de transporte, por isso é que países “mais sabidos” que o nosso, costumam considerar a navegação aérea muito séria para ser entregue aos particulares.
Após a análise do quadro acima, pode-se concluir que duas conclusões
prevaleceram no deferimento da ADI 1089-1: 1º.) O vocábulo “transporte” constante
no art. 155, I, “b” da CF/88 não inclui o transporte aéreo. 2º.) Há necessidade de lei
complementar para tratar da matéria.
A primeira conclusão é sustentada por argumentos que poderiam ser
classificados, com base na proposta de NEIL MACCORMICK apresentada no
capítulo 3, em: (i) argumentos sistêmico-contextais: os embasados na leitura de
outros dispositivos da Constituição; (ii) argumentos sistêmico-históricos: os
referentes ao passado da tributação no setor aéreo; (iii) argumentos teleológicos: os
baseados na intenção do legislador constituinte com relação aos efeitos
econômicos e políticos que geram a tributação do setor aéreo.
Não se adota nesse trabalho a “regra de ouro” defendida, segundo
MACCORMICK, pelos juristas escoceses e ingleses, para os quais só prevalecem os
argumentos sistêmicos, quando há problemas nos argumentos linguísticos e, por
sua vez, só se socorre aos argumentos teleológicos, se os sistêmicos não
conseguem solucionar as dúvidas. 434
No entanto, os argumentos utilizados pelos ministros para negar o
argumento lingüístico de que o vocábulo “transporte” abrange também aquele
realizado pela via aérea, contêm as seguintes inconsistências: (i) os argumentos
“sistêmicos-contextuais”, pecam por ignorar a redação do art. 178, I da CF/88 e por
pretender concluir que haveria uma diferença entre os vocábulos “navegação” e
434 MACCORMICKl. Retórica e Estado de Direito, 2008, p. 183.
248
“transporte”, por estarem em incisos distintos; (ii) o argumento “sistêmico-histórico”
abstrai da sua conclusão a informação de que, com base no texto constitucional
anterior à CF/88, a tributação sobre o transporte competia à União, e a não
instituição do tributo foi uma decisão tomada no campo infraconstitucional; e (iii) o
argumento teleológico baseia-se em impressões pessoais dos ministros sobre a
importância política e econômica das empresas aéreas no Brasil e não sobre a
comprovação da intenção do legislador. A menção do ministro Francisco Rezek aos
anais da Assembleia Nacional Constituinte é referente à análise histórica do
vocábulo “transporte”.
Já a segunda conclusão de que há necessidade de lei complementar para
prescrever a norma jurídica atacada na ADI 1089-1 está baseada nos seguintes
argumentos: (i) os convênios são produzidos pelo Executivo e só os representantes
do povo, por meio de lei complementar, poderiam falar sobre uma nova figura
tributária; (ii) o STF já havia se manifestado pela inconstitucionalidade do Adicional
sobre o Imposto de Renda, por ausência de lei complementar; (iii) o convênio é
insuficiente, pois não previu formas de impedir conflitos de competência entre os
Estados e o DF.
Tais argumentos, porém, ignoram algumas incoerências: (i) os Ministros
não negam que o art. 34, §8º. do ADCT prescreve, justamente, a provisoriedade do
convênio celebrado diante da omissão do Congresso Nacional. Tampouco levam em
conta o art. 24, §3º. da Carta Magna, citados em vários acórdãos anteriores, que
prescreve que a ausência de lei que estabeleça as normas gerais não obsta ao
exercício da competência pelos Estados; (ii) o argumento de que o STF já havia
decidido pela inconstitucionalidade do Adicional do Imposto de Renda, por ausência
de lei complementar, ignora a informação de que naquele caso o objeto de análise
era lei estadual e não convênio, editado nos termos do art. 34, §8º do ADCT; e (iii) o
argumento de que Convênio nº 66/88 é inconstitucional por ser insuficiente não só
cria uma interpretação até então inexistente, mas também implica a
inconstitucionalidade de todo o Convênio, pois, com relação às outras
materialidades do ICMS, também não há regras que cheguem a tal grau de
especificidade a fim de evitar conflitos de competência entre os Estados.
249
As inconsistências de tais argumentos ficam mais evidentes quando da
análise da ADI 1600-3 que será comentada no tópico seguinte. A declaração pela
inconstitucionalidade da norma jurídica que permite a instituição do ICMS sobre
transporte aéreo foi julgada novamente procedente pelo STF, mesmo em se
tratando de interpretação de texto jurídico veiculado por lei complementar (LC 87/96)
sem vícios formais.
O que deixa evidente que houve corrupção entre os códigos, entre os
sistemas da política, da economia e do direito na interpretação jurídica realizada no
bojo da ADI 1089-1, é a presença em massa de considerações pessoais,
econômicas e políticas registradas nos votos transcritos acima. Tais como:
(i) “Os usuários é que suportariam o custo do tributo”;
(ii) “Não é segredo para ninguém: cada um de nós examina questões
constitucionais com o rigor técnico que sua formação determina, mas de certo modo
sob a marca do seu próprio passado [...]”;
(iii) “[...] sempre foi mais sensível às angústias do Tesouro Público do que
àquelas do contribuinte, especialmente às do grande contribuinte [...]”;
(iv) “Creio que é uma matéria de profunda significação, do ponto de vista
social e econômico, que mexe praticamente com boa parte da economia brasileira
no setor [...];
(v) “[...] conveniência de natureza prática oriunda do deferimento cautelar,
que caso venha a ser alterado, provocaria profunda crise num segmento que
somente agora parece se arrumar, depois de longos anos de desequilíbrio”;
(vi) “[...] tenho que o Estado deve proteger o setor aéreo concedido, no
que for possível, até mesmo para evitar que as grandes companhias internacionais
que dominam em grande parte esse mercado mundial acabem por açambarcar
também o mercado interno, já que o externo é com elas dividido, em termos da
clientela nacional e estrangeira e das mercadorias que transporta”;
250
(vii) “Os levantamentos estatísticos e diversos gráficos efetuados pelas
empresas aéreas, e que instruem memoriais que nos foram distribuídos, apontam
para um sério risco quanto ao destino da aviação comercial brasileira [...]”;
(viii) “[...] teria sido redigido com mais clareza, certeza e segurança,
principalmente sabendo-se que os parlamentares são usuários permanentes do
transporte aéreo e conhecem muito bem as deficiências da aviação comercial, seus
problemas e as dificuldades por que passa”;
(ix) “[...] acentuava que não é à toa que países mais sabidos do que o
nosso costumam considerar a navegação aérea coisa muito séria para ser entregue
a particulares.”
Considerações desse viés não devem ser apenas qualificadas como
“despropositadas” pelos juristas, na posição de observadores de terceira ordem,
mas devem ser evidenciadas por eles como riscos à autonomia do sistema jurídico
brasileiro.
Perguntas como “O que decidiriam os ministros se o julgamento tivesse
sido hoje, momento em que as empresas aéreas brasileiras vivem um elevado
crescimento econômico?”435 não podem fazer parte do rol de dúvidas de um
observador de interpretações jurídicas. Não se pode supor que o fato de a aviação
brasileira estar vivenciando outro momento econômico mudaria a interpretação
sobre a constitucionalidade de uma norma jurídica.
Essas considerações não refletem a heterorreferência que é tão
imprescindível na manutenção da autonomia sistêmica. São exposições que
evidenciam a ocorrência de um desvio no exercício de papéis institucionais tão
relevantes na manutenção do Estado de Direito.
435 Cf. Reportagem “TAM e Gol foram as empresas aéreas de capital aberto mais lucrativas da América Latina e EUA no ano passado” publicada”. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/economia/mat/2010/04/14/tam-gol-foram-as-empresas-aereas-de-capital-aberto-mais-lucrativas-da-america-latina-eua-no-ano-passado-916333349.asp.>. Acesso em 17 de agosto de 2011.
251
5.4 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 1600-8 –
JULGADA EM 26-11-2001 E PUBLICADA NO D.J. 20-06-2003
Em 26 de novembro de 2001, por maioria de votos, o STF
julgouparcialmente procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1600-8,436
ajuizada pelo Procurador-Geral da República, Dr. Geraldo Brindeiro. O Supremo
declarou inconstitucional a norma jurídica construída a partir da LC 87/96 que
permite a incidência do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo de
passageiros e de transporte aéreo internacional de cargas. O presente acórdão
apresentou a seguinte ementa:
CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. LEI COMPLEMENTAR 87/96. ICMS E SUA INSTITUIÇÃO. ARTS. 150, II; 155, § 2º, VII 'A', E INCISO VIII, CF. CONCEITOS DE PASSAGEIRO E DE DESTINATÁRIO DO SERVIÇO. FATO GERADOR. OCORRÊNCIA. ALÍQUOTAS PARA OPERAÇÕES INTERESTADUAIS E PARA AS OPERAÇÕES INTERNAS. INAPLICABILIDADE DA FÓRMULA CONSTITUCIONAL DE PARTIÇÃO DA RECEITA DO ICMS ENTRE OS ESTADOS. OMISSÃO QUANTO A ELEMENTOS NECESSÁRIOS À INSTITUIÇÃO DO ICMS SOBRE NAVEGAÇÃO AÉREA. OPERAÇÕES DE TRÁFEGO AÉREO INTERNACIONAL. TRANSPORTE AÉREO INTERNACIONAL DE CARGAS. TRIBUTAÇÃO DAS EMPRESAS NACIONAIS. QUANTO ÀS EMPRESAS ESTRANGEIRAS, VALEM OS ACORDOS INTERNACIONAIS - RECIPROCIDADE. VIAGENS NACIONAL OU INTERNACIONAL - DIFERENÇA DE TRATAMENTO. AUSÊNCIA DE NORMAS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS DE COMPETÊNCIA ENTRE AS UNIDADES FEDERADAS. ÂMBITO DE APLICAÇÃO DO ART. 151, CF É O DAS RELAÇÕES DAS ENTIDADES FEDERADAS ENTRE SI. NÃO TEM POR OBJETO A UNIÃO QUANDO ESTA SE APRESENTA NA ORDEM EXTERNA. NÃO INCIDÊNCIA SOBRE A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE TRANSPORTE AÉREO, DE PASSAGEIROS - INTERMUNICIPAL, INTERESTADUAL E INTERNACIONAL. INCONSTITUCIONALIDADE DA EXIGÊNCIA DO ICMS NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE TRANSPORTE AÉREO INTERNACIONAL DE CARGAS PELAS EMPRESAS AÉREAS NACIONAIS, ENQUANTO PERSISTIREM OS CONVÊNIOS DE ISENÇÃO DE EMPRESAS ESTRANGEIRAS. AÇÃO JULGADA, PARCIALMENTE PROCEDENTE.
436 ADI 1600, Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES, Relator(a) p/ Acórdão: Min. NELSON JOBIM, Tribunal Pleno, julgado em 26-11-2001, DJ 20-06-2003 PP-00056 EMENT VOL-02115-09 PP-01751. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 17 de agosto de 2011.
252
Para sustentar a alegação de que o STF deverá declarar inconstitucional
a norma jurídica, construída a partir da LC 87/96, que permite a incidência do ICMS
sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, devem-se apresentar os
argumentos que apoiam a pressuposta inconstitucionalidade. Entre os Ministros que
votaram pela procedência do pedido estão: Nelson Jobim, Ellien Gracie, Maurício
Corrêa, Ilmar Galvão e Celso de Mello.
Destacam-se abaixo alguns dos argumentos que embasaram os votos
dos Ministros pela inconstitucionalidade da permissão de instituição do ICMS sobre
prestações de serviço de transporte aéreo:
(a) Voto do Ministro Nelson Jobim:
Após analisar as alíquotas internas e interestaduais fixadas,
respectivamente, pelo Convênio ICMS 120, 13-12-1996 e pela Resolução do
Senado 95, 13-12-1996, destacar a não-cumulatividade do ICMS, diferenciar bens
de capital de não-capital, diferenciar operações internas das operações
interestaduais, o Ministro argumentou que a LC 87/96 é insuficiente para normatizar
a tributação do ICMS sobre o transporte aéreo. Para demonstrar a inconsistência,o
Ministro apresentou as seguintes cinco inconsistências da LC 87/96:
1ª.) Não há respostas na lei sobre a questão de como a pessoa jurídica,
adquirente do bilhete para o passageiro, vai creditar-se do valor do ICMS pago sobre
o transporte aéreo, afrontando, assim, à regra da não-cumulatividade;
2ª.) A lei não esclarece se o passageiro, o único personagem que integra
o bilhete de passagem, é o “consumidor final localizado em outro Estado”. Explica:
Observe-se: Se “João Sem Nome” é o passageiro em nome do qual foi emitido bilhete.
Pergunto: ¿O transporte de “João sem nome” é um serviço destinado a consumidor final localizado em outro Estado?
Ora, só poderia ser um serviço destinado “... a consumidor final localizado em outro Estado...” se o transporte fosse do cadáver de “João Sem Nome”.
Mas, nesse caso, não há bilhete em nome do cadáver.
Cadáver não é passageiro.
É carga.
253
Ainda, sobre a segunda inconsistência, no caso de o passageiro ser
considerado o destinatário final do serviço, como saber se ele é um contribuinte do
imposto, para adoção da alíquota interestadual, ou se não é contribuinte, para
adoção da alíquota interna?
3ª.) De um lado, a lei prescreve que o fato gerador ocorre no início da
prestação de serviço de transporte (art. 12, V da LC 87/96). De outro, define como
contribuinte a pessoa que realiza a prestação de serviços de transporte. Dessa
forma, a alíquota seria sempre a interna, e o imposto competiria sempre ao Estado
do embarque, onde se iniciou o transporte.
4ª.) A lei define como local da prestação de serviço, o do estabelecimento
do destinatário do serviço, na hipótese de utilização, pelo contribuinte, de prestação
iniciada em outro Estado e que não esteja vinculada à operação ou prestação
subsequente. Mas não há resposta na lei para a pergunta: “Como saber, com o
bilhete, que a prestação, iniciada em outro Estado, não está “...vinculada à ...
prestação subseqüente?”.
5ª.) Se a lei prescreve que o tributo é devido, ainda que as prestações se
iniciem no exterior (art. 1º. da LC 87/96), e a lei considera o fato gerador ocorrido no
ato final do transporte iniciado no exterior (art. 12, VI da LC 87/96), quando o
transporte for efetuado por empresa estrangeira não será devido o imposto.
(b) Voto da Ministra Ellien Gracie:
O argumento pela inconstitucionalidade em razão da insuficiência da LC
87/96 na normatização da incidência do ICMS sobre o transporte aéreo, foi seguido
pela Ministra Ellien Gracie, com a ressalva de que a norma seria inconstitucional não
em razão da sua “imperfeição”, mas em razão da sua “imprestabilidade”. Segue o
trecho do voto:
[...] porque a lei seja imperfeita e não baste para solver todos os conflitos que decorram de sua aplicação, não se lhe declara a inconstitucionalidade. Tampouco porque apresente em seu próprio corpo inconsistências capazes de gerar perplexidades e semear
254
conflitos. O controle concentrado se destina a contrastar as leis e os atos normativos em face da regra constitucional. Somente se a legislação infraconstitucional excede ou contraria o texto maior é que se lhe pode suspender a vigência ou em definitivo extirpá-la do ordenamento positivo. O Supremo Tribunal anula, nesta circunstância excepcional, a atuação do próprio Parlamento que pode muito, mas nada pode contra a Constituição.
Aqui não se trata, porém, de simples imperfeição da norma. O que se cogita é de sua total imprestabilidade para os efeitos de abarcar as hipóteses relativas ao transporte aéreo de passageiro. E, não apenas porque deixe em aberto o regramento de situações corriqueiras na prática da aviação comercial, mas e, principalmente, porque torne inaplicáveis ao referido segmento da atividade econômica princípios gerais inerentes ao tributo que intenta regular, ensejando, com isso, agressão ao texto constitucional.
(c) Voto do Ministro Maurício Corrêa:
O Ministro Maurício Corrêa adotou na integridade os fundamentos
arrolados pelo Min. Nelson Jobim, fazendo apenas a seguinte consideração:
“[...] é bom que se tenham encontrado toda essas inconstitucionalidades com base no diploma legal impugnado, face à notória situação, que não tem nada a ver sob o ponto e vista jurídico, mas é um fundamento de natureza, de certo modo política, pertinente ao estado caótico em que se encontra o setor de transporte aéreo no Brasil.”
(d) Voto do Ministro Ilmar Galvão:
O Ministro Ilmar Galvão citou alguns trechos dos votos constantes na ADI
1089-1, exaustivamente comentada acima, concluindo que:
Vê-se, portanto, que a inconstitucionalidade da cobrança do ICMS sobre transporte aéreo acabou declarada em face de o referido ato normativo haver-se revelado insuficiente para o embasamento da exigência do ICMS sobre transporte aéreo de passageiros, seja por não conter regras capazes de prevenir conflitos de competência, seja por não atender às especificidades que revestem a navegação aérea; [...]
E, após constatar que “[...] a Lei Complementar nº 87/96 não se revelou
infensa à anemia normativa de que padecia o convênio [...]”, acompanhou o voto do
Ministro Nelson Jobim.
255
(e) Voto do Ministro Celso de Mello
O Ministro Celso de Mello também votou pela inconstitucionalidade da
norma nos termos do voto do Min. Nelson Jobim, por entender que a insuficiência no
regramento da tributação do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo
inviabiliza “a incidência de postulados básicos inerentes a esse tributo estadual”.
Com isso, percebe-se que a edição de uma lei complementar, votada por
maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional e que prescreve,
expressamente, que o ICMS poderá incidir sobre a prestação de serviço de
transporte interestadual e intermunicipal, por qualquer via , de pessoas, bens,
mercadorias ou valores (art. 2º. da LC 87/96. Grifou-se) não basta para afirmar a
constitucionalidade da norma em questão.
Os Ministros se valem de argumentos que não são utilizados no exame
em controle concentrado de constitucionalidade das normas infraconstitucionais.
São questões que não estão ligadas à matéria pertinente à lei complementar, nos
termos dos arts. 146 e 155, §2º., XII da CF/88.
Se ainda assim não o fosse, vale registrar que algumas das questões
formuladas pelo Ministro Nelson Jobim, e encampadas pelos outros ministros,
representam dúvidas do intérprete frente à complexidade que é o ICMS, mas a que
se poderia SIM com base no texto da LC 87/96. Não se trata de inconsistência e
sim de complexidade do imposto!
Ainda que as informações suscitadas sejam imprescindíveis na incidência
do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo, os Ministros do STF
sabem que a LC 87/96 não institui o ICMS. A instituição do ICMS, com a prescrição
de todos os elementos das regras-matrizes que compõem o imposto, cabe aos
Estados e ao Distrito Federal. Caso tais “inconsistências” da LC 87/96 fossem
demonstrações de inconstitucionalidades, o STF teria que declarar inconstitucional
todo o ICMS, uma vez que isso também ocorre com relação às demais
materialidades.
256
Tais observações, assim, permitem o registro da seguinte questão: “O
STF, nesse caso, decidiu baseado no “[...] estado caótico em que se encontra o
setor de transporte aéreo no Brasil”, como expressou o Ministro Maurício Corrêa, ou
decidiu com fundamento no ordenamento?
5.5 OUTRAS DECISÕES ANALISADAS
Entre outras ações que demandaram do STF uma argumentação sobre a
constitucionalidade de norma jurídica tributária e que suscitam interesse por uma
análise mais aprofundada com base nas teorias adotadas neste trabalho, podem-se
destacar as seguintes:
(i) Inconstitucionalidade da incidência do IPVA - Imposto sobre
propriedade de veículos automotores - sobre embarcações e aeronaves:
• RE 255111, julgado pelo Tribunal Pleno, em 29-05-2002437;
• RE 134509, julgado pelo Tribunal Pleno, em 29-05-2002438;
• RE 379572, julgado pelo Tribunal Pleno, em 11-04-2007439;
(ii) Imunidade tributária da “Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos”:
• ACO 959, julgado Tribunal Pleno, em 17-03-2008440;
• ACO 765, julgado Tribunal Pleno, em 13-05-2009441;
437 RE 255111, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 29-05-2002, DJ 13-12-2002 PP-00060 EMENT VOL-02095-02 PP-00343. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 17 de agosto de 2011. 438 RE 134509, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 29-05-2002, DJ 13-09-2002 PP-00064 EMENT VOL-02082-02 PP-00364. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 17 de agosto de 2011. 439 RE 379572, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 11-04-2007, DJe-018 DIVULG 31-01-2008 PUBLIC 01-02-2008 EMENT VOL-02305-04 PP-00870. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 17 de agosto de 2011. 440 ACO 959, Relator(a): Min. MENEZES DIREITO, Tribunal Pleno, julgado em 17-03-2008, DJe-088 DIVULG 15-05-2008 PUBLIC 16-05-2008 EMENT VOL-02319-01 PP-00001 RTJ VOL-00204-02 PP-00518 LEXSTF v. 30, n. 356, 2008, p. 23-37. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 17 de agosto de 2011.
257
• RE 443648, julgado pela Segunda Turma, em 20-04-2010442;
• ACO 789, julgada pelo Tribunal Pleno, em 1-9-2010443.
(iii) Inconstitucionalidade da incidência do ISS – Imposto sobre serviços
de qualquer natureza – sobre “leasing” financeira:
• RE 206069, julgado pelo Tribunal Pleno, em 1-09-2005444;
• RE 461968, julgado pelo Tribunal Pleno, em 30-5-2007445;
• RE 592905, julgado pelo Tribunal Pleno, em 2-12-2009446;
• RE 547245, julgado pelo Tribunal Pleno, em 2-12- 2009447;
(iv) Inconstitucionalidade no creditamento do IPI quando a operação
anterior foi isenta ou imune:
• RE 350446, julgado pelo Tribunal Pleno, em 18-12-2002448;
441 ACO 765, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MENEZES DIREITO, Tribunal Pleno, julgado em 13-05-2009, DJe-167 DIVULG 03-09-2009 PUBLIC 04-09-2009 EMENT VOL-02372-01 PP-00001 LEXSTF v. 31, n. 369, 2009, p. 21-45. Disponível em: <http://www.stf.jus.br.>. Acesso em: 17 de agosto de 2011. 442 RE 443648 AgR, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 20-04-2010, DJe-096 DIVULG 27-05-2010 PUBLIC 28-05-2010 EMENT VOL-02403-05 PP-01367. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 17 de agosto de 2011. 443 ACO 789, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 01-09-2010, DJe-194 DIVULG 14-10-2010 PUBLIC 15-10-2010 EMENT VOL-02419-01 PP-00001. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 17 de agosto de 2011. 444 RE 206069, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 01-09-2005, DJ 01-09-2006 PP-00019 EMENT VOL-02245-05 PP-01116 RTJ VOL-00199-01 PP-00368 LEXSTF v. 28, n. 334, 2006, p. 255-267 RT v. 96, n. 855, 2007, p. 186-192 RDDT n. 134, 2006, p. 154-159. Disponível em http://www.stf.jus.br. Acesso em 17 de agosto de 2011. 445 RE 461968, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 30-05-2007, DJe-087 DIVULG 23-08-2007 PUBLIC 24-08-2007 DJ 24-08-2007 PP-00056 EMENT VOL-02286-14 PP-02713 RDDT n. 145, 2007, p. 228 RDDT n. 146, 2007, p. 151-156). Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 17 de agosto de 2011. 446 RE 592905, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 02-12-2009, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-040 DIVULG 04-03-2010 PUBLIC 05-03-2010 EMENT VOL-02392-05 PP-00996 LEXSTF v. 32, n. 375, 2010, p. 187-204. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 17 de agosto de 2011. 447 RE 547245, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 02-12-2009, DJe-040 DIVULG 04-03-2010 PUBLIC 05-03-2010 EMENT VOL-02392-04 PP-00857 RT v. 99, n. 897, 2010, p. 143-159 LEXSTF v. 32, n. 376, 2010, p. 175-20. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 17 de agosto de 2011.
258
• RE 353657, julgado pelo Tribunal Pleno, em 25-06-2007449.
• RE 370682, julgado pelo Tribunal Pleno, em 25-06-2007450;
• RE 562980, julgado pelo Tribunal Pleno, em 06-05-2009451;
• RE 475551, julgado pelo Tribunal Pleno, em 06-05-2009452;
• RE 475551, julgado pelo Tribunal Pleno, em 06-05-2009453;
• RE 577302, julgado pelo Tribunal Pleno, em 13-08-2009454.
O apontamento de tais decisões no presente item não tem o condão de
afirmar que é possível constatar da análise da argumentação presente nessas
decisões desvios que podem ser caracterizados como “corrupção intersistêmica”.
Objetiva-se, apenas, destacar a importância do tema tratado neste trabalho e deixar
evidenciado que ainda há um longo caminho a ser percorrido pelos juristas em
matéria tributária no que tange ao tema “Argumentação jurídica nas decisões do
STF em matéria tributária e o Estado de Direito”.
448 RE 350446, Relator(a): Min. NELSON JOBIM, Tribunal Pleno, julgado em 18-12-2002, DJ 06-06-2003 PP-00032 EMENT VOL-02113-04 PP-00680. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 17 de agosto de 2011. 449 RE 353657, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 25-06-2007, DJe-041 DIVULG 06-03-2008 PUBLIC 07-03-2008 EMENT VOL-02310-03 PP-00502 RTJ VOL-00205-02 PP-00807. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 17 de agosto de 2011. 450 RE 370682, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 25-06-2007, DJe-165 DIVULG 18-12-2007 PUBLIC 19-12-2007 DJ 19-12-2007 PP-00024 EMENT VOL-02304-03 PP-00392. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 17 de agosto de 2011. 451 RE 562980, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 06-05-2009, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-167 DIVULG 03-09-2009 PUBLIC 04-09-2009 EMENT VOL-02372-03 PP-00626 LEXSTF v. 31, n. 369, 2009, p. 285-306. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 17 de agosto de 2011. 452 RE 475551, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 06-05-2009, DJe-213 DIVULG 12-11-2009 PUBLIC 13-11-2009 EMENT VOL-02382-03 PP-00568). Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 17 de agosto de 2011. 453 RE 475551, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 06-05-2009, DJe-213 DIVULG 12-11-2009 PUBLIC 13-11-2009 EMENT VOL-02382-03 PP-00568. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 17 de agosto de 2011. 454 RE 577302, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 13-08-2009, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-223 DIVULG 26-11-2009 PUBLIC 27-11-2009 EMENT VOL-02384-05 PP-01004). Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 17 de agosto de 2011.
259
CONCLUSÃO
A presente pesquisa sobre a Argumentação jurídica nas decisões do STF
em matéria tributária e o Estado de Direito objetivou sobrelevar o compromisso e a
responsabilidade que os juristas têm na manutenção do Estado de Direito no Brasil.
Todos aqueles que se debruçam diariamente sobre textos jurídicos,
interpretações jurídicas, argumentações jurídicas, decisões judiciais etc. têm a
possibilidade de perceber os desvios cometidos pelos participantes da comunicação
jurídica e os bloqueios realizados na concretização constitucional do texto de 1988.
Consciente de sua aptidão de interpretar com mais precisão textos
jurídicos, o jurista deverá, também, conscientizar-se da sua responsabilidade no
processo comunicacional social. Mais que quaisquer outros, um cientista do direito
tem a capacidade de figurar como observador interno e externo do sistema jurídico.
Essa aptidão é qualificada pelo seu conhecimento diferenciado sobre temas internos
do sistema jurídico.
No decorrer do trabalho quis se demonstrar que, se o jurista empreender
uma observação-interpretação impessoal, ele será capaz de evidenciar as
arbitrariedades que ainda se cometem no interior do sistema jurídico em nome da
“interpretação”.
Ressaltou-se que Constituição (formal) também tinham os Estados
absolutistas ou totalitários. Donde se concluiu que a existência de um documento
denominado “Constituição” não é condição suficiente para o Estado de Direito. Para
que se tenha um Estado de Direito é necessário que, no mínimo, a Constituição
garanta a legalidade, a separação dos poderes e os direitos individuais.
O texto constitucional de 1988 possui o caráter normativo necessário para
configuração do Estado de Direito e possui critérios que diferenciam o Brasil de
Estados totalitaristas, absolutistas e ditatoriais. O problema é que o texto não fala
por si. São os observadores-intérpretes que falam (argumentam). E na análise de
tais discursos percebeu-se os rompimentos na circularidade entre regras e decisões
e os bloqueios na concretização do direito constitucional.
260
A garantia do Estado de Direito se dá por meio da concretização
constitucional, oriunda das interpretações jurídicas realizadas por todos os
participantes do processo comunicacional social. A produção de argumentações
veiculadoras de códigos extrajurídicos corrompe a interpretação jurídica do texto
constitucional.
Restou evidenciado, assim, que esse é um dos motivos que deixa o
Brasil, ainda, no rol dos países periféricos, distante da manutenção da diferenciação
funcional do direito com relação aos demais sistemas sociais. E da estabilização dos
sistemas especializados.
Ressaltou-se o Estado de Direito como uma conquista civilizacional,
resultado de movimentos sociais intensos e dolorosos. Dessa forma, quis se
defender que não se pode perdê-lo por omissão. É necessário que os juristas lutem
pela sua permanência, comprovando a presença de obstáculos na concretização
constitucional da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Com isso não se desejou pregar uma análise sociológica do direito
tributário. Muito longe disso. O que se defendeu é que é preciso parar com a ideia
de que na interpretação tudo é possível. Só continuará sendo possível se a
comunidade jurídica permitir que seja.
Evidenciou-se que as heterorreferências direcionadas à economia e à
política, realizadas pelo observador-intérprete do direito tributário, são possíveis e
necessárias para a manutenção da autonomia do sistema. No entanto, constatou-se
que, em alguns casos, as questões econômicas e políticas não passaram pelo filtro
do lícito/ilícito, o que causa uma corrupção entre códigos intersistêmicos.
A pregação que existe hoje de que a interpretação jurídica do direito
tributário precisa perseguir “valores” e “princípios constitucionais”, por meio de
argumentos denominados consequencialistas, bloqueia a concretização
constitucional do direito tributário, e deixa-o sem valor para a sociedade e causa
instabilidades na manutenção do Estado de Direito.
No que tange às decisões em matéria tributária pelo STF, órgão a quem
se atribui “a palavra final”, percebeu-se que as argumentações, que refletem as
261
interpretações realizadas pelos Ministros sobre o direito tributário, são, algumas
vezes, carregadas de códigos econômicos e políticos. Ou até mesmo refletem
intenções pessoais do julgador.
A academia jurídica brasileira é, atualmente, formada por juristas
altamente qualificados. Alguns, inclusive, reconhecidos não só nacionalmente, mas
também internacionalmente. Com isso, têm-se condições suficientes para se
evidenciarem as arbitrariedades que se cometem em nome da “interpretação
jurídica” e da “argumentação jurídica”. Tais evidências poderão inibir a corrupção
intersistêmica dentro do sistema jurídico, fornecendo à sociedade brasileira os
benefícios de viver num Estado de Direito.
262
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