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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP Ayrson Heráclito Novato Ferreira Além dos baihunos: tensões nas artes baianas e poéticas visuais à margem Doutorado em Comunicação e Semiótica São Paulo 2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

Ayrson Heráclito Novato Ferreira

Além dos baihunos: tensões nas artes baianas e poéticas visuais à margem

Doutorado em Comunicação e Semiótica

São Paulo

2016

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

Ayrson Heráclito Novato Ferreira

Além dos baihunos: tensões nas artes baianas e poéticas visuais à margem

Doutorado em Comunicação e Semiótica

Tese apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Amálio Pinheiro.

São Paulo

2016

Errata

Nas páginas 12 e 15, onde se lê “ bahiunos” , leia-se baihunos.

Na página 25, falta a nota de roda pé n.01 sobre O Novo Realismo: movimento artístico francês criado em 1960 pelos artistas Yves Klein, Arman,Dufrêne, Hains, Raysse, Restany, Spoerri, Tinguely e Villegle.

Na página 25, nas citações sobre o Manifesto do Rio Negro, onde se lê (KRAJBERG, 1992, p. 14), leia-se (apud MORAIS, 2004, p.125). Cuja a referencia bibliográfica é: MORAIS, F. Frans Krajberg: revolta. Rio de Janeiro: GB Arte, 2004.

Na página 27, falta a citação do artigo de Gilberto Freyre publicado originalmente na revista O Cruzeiro, edição de capa de 17 de novembro de 1962, página 112, com o título “Pensando na Bahia”.

Na página 38, onde se lê “II Bienal da Bahia de 1968” , leia-se “I Bienal da Bahia 1966/1967”.

Na página 40, onde se lê “1968”, leia-se “1966”.

Na página 66, (CRAVO JR, entrevista, 2014).

Na página 82, citação de Lina (BARDI, 1963, p.1).

Na página 88, (PARAÍSO, entrevista, 2014).

Na página 108, (DICINHO, entrevista, 2014).

Na página 118, incluir nas Referências: BARDI. Carta à Celso Furtado em 05/03/ 1963 (datilografada). Arquivo ILBPMB.

Na página 188, incluir nas Referências: CASTRO, E. V. Azouge 10: edição especial 2006-2008 (org. Sergio Cohn, Perdro Cesarino e Renato Rezende). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008 p. 23 - 36. Disponível em: http://blogs.cultura.gov.br/culturaepensamento/files/2010/10/revista-AZOUGUE-2006-2008.pdf

Na página 120, incluir nas Referências: PEDROSA, Mário. In Catálogo da VI Bienal de São Paulo. São Paulo, 1961.

Na pag. 121, incluir nas Referências: SOELLE, Ebongué. In Catálogo da I Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia, Salvador, 1967.

Na página 122, incluir nas Referências: XAVIER, Lívio. Carta à Lina Bo Bardi. Fortaleza, 2 de Agosto 1964 (datilografada). Arquivo do MAM-Bahia.

Termo de aprovação

São Paulo, ______, de _____________________ de 2016.

Banca examinadora

_____________________________________

_____________________________________

_____________________________________

_____________________________________

_____________________________________

Guardaremos na eternidade nosso adiado evento Um momento tão esperado não caberia no tempo Assim como o silêncio não cala essa voz que lá dentro nos fala O que não é ao tempo que cabe nada pode fazer que se acabe Haveremos de nos encontrar longe do tempo que viu se partir É o meu coração que me diz que um caminho ainda vai nos levar nós dois. Rogério Duarte

A Dicinho e Esmon Primo. Aos meus pais, Alberto Heráclito Ferreira e Lourdes Cardoso Novato. Aos meus irmãos Beto, Gal, Gil, Geo, Pio, Rosa e Léo. Aos meus sobrinhos Caíque e Omí. A Zita. A Joceval Santos de Jesus. A Tiago Sant’Ana. A José Carlos Lisboa A José Domingos Coni In memoriam Lina Bo, Edinízio, Rogério Duarte, Waly e Gaiaku Luiza.

AGRADECIMENTOS

A Amálio Pinheiro, meu orientador. Pelo seu carinho, amizade e

sabedoria. Ao me acolher nessa etapa importante da minha vida.

A Lucio Agra e Jerusa Pires Ferreira por compartilhar tanto

conhecimento.

A todos os mestiços do grupo de pesquisa Barroco e Mestiçagem.

A PUC de São Paulo e a seu Programa de Comunicação e Semiótica.

A todos os professores que contribuíram para a minha formação, além

da nossa Secretária Cida Bueno.

Agradeço a Universidade do Recôncavo da Bahia e ao Núcleo de

Capacitação dos Docentes da PRPPGG, assim como a todos os meus

colegas do curso de Artes Visuais do Centro de Artes Humanidades e Letras,

pelo incentivo e apoio. Aos meus queridos alunos e alunas, pelo carinho e

amizade.

A CAPES, pela bolsa PRODOUTORAL, que contribuiu para a minha

mobilidade entre Bahia e São Paulo.

Aos meus Voduns e minha família de axé.

A Solange Farkas e Roberto Conduru, pelo incentivo artístico e

intelectual.

Aos queridos amigos que colaboraram carinhosamente neste processo:

Tonico Portela, Edgard Oliva, Beatriz Franco, Fernando Pontes, Marcelo

Nascimento, Luiz de Abreu, Marco Aurélio Damasceno.

A Edward MacRae e Sandro Abade Pimentel, pela confiança e amizade.

A Oriana Duarte e Danillo Barata, que me apresentaram ao programa.

A toda a equipe da 3a Bienal da Bahia 2014, na figura do seu Diretor

Marcello Rezende.

A Sandra Regina Jesus, do Núcleo de Acervo e Pesquisa Museológica

do MAM-BA.

RESUMO Este trabalho tem como universo de pesquisa as tensões políticas e

culturais no campo das artes na Bahia. O eixo principal da investigação é

pontuar a emergência de coleções e artistas mais institucionalizados e, em

consequência disso, sinalizar a resistência de artistas que permaneceram às

margens desse processo. Esta iniciativa esmiúça documentos, entrevistas e

produções artísticas para compreender como se erigiu um cenário artístico na

Bahia a partir da década de 1960, tentando analisar criticamente construções

conceituais sobre a arte baiana. A pesquisa evidencia como projetos de

civilização e utopias pessoais contribuíram na tessitura e modificação de

políticas culturais específicas no estado da Bahia. Nesse sentido, o trabalho

está assentado num ideal que observa o sistema de arte mais

institucionalizado e também a existência de uma cena independente

materializada por artistas que possuem uma produção artística radical,

evidenciando as tensões sociais baianas no período da Ditadura Militar. De

tal modo, esta tese está lastreada nas seguintes questões: 1) os

imbricamentos entre projetos de civilização e políticas culturais; 2) a criação

de estruturas culturais no cenário artístico baiano decorrentes de utopias; 3) o

ato de colecionismo como uma estratégia política para as artes; 4) a

resistência cultural de artistas que produziram numa condição marginal aos

sistemas de arte na Bahia. Portanto, a relevância deste trabalho está na

possibilidade de pensar em reforços e fugas dos circuitos de arte – atentando

para a potência de produtores que, ainda que não sejam reconhecidos dentro

da História da Arte Baiana, trabalharam de forma significativa na construção

de uma visualidade inovadora e iminentemente radical.

Palavras-chave: Arte; Bahia; Políticas; Colecionismo; Arte marginal

ABSTRACT This thesis has as its universe the political and cultural tensions in the field of

art in Bahia. The main axis of this research is to point out to the emergence of

collections and institutionalized artists, and as a result of this vision to

signalize the artists who remained marginal of these process. This initiative

scrutinizes documents, interviews and artistic productions to understand how

the art scene in Bahia was built from the 1960s, trying to critically analyze

conceptual constructions about the art of Bahia. The research reveals how

civilizations projects and personal utopias contributed to the tessitura and

modification of the specific cultural policies in the state of Bahia. In this sense,

the work is settled on an ideal which observes the most institutionalized art

system and also on the existence of an independent scene materialized by

artists who have a radical artistic production, highlighting the social tensions in

Bahia in the period of military dictatorship. So, this thesis is backed by the

following questions: 1) the links between civilization projects and cultural

policies; 2) the creation of cultural structures in the Bahia’s art scene due to

utopias; 3) the collectionism action as a political strategy for the arts; 4) the

cultural resistance of artists who produced a marginal condition to art systems

in Bahia. Therefore, the relevance of this work is the possibility of thinking

about reinforcements and leakages of the art circuit - by attending to the

power of producers, although they are not recognized in the Art History of

Bahia, who worked significantly in building an innovative and imminently

radical visuality.

Keywords: Art; Bahia; policies; collectionism; marginal art

LISTA DE FIGURAS

Fig. 1 - Cartaz do filme registra artista e imagens-chave para a identificação

da obra

Fig. 2: Frame do filme Bahia, por exemplo em que Carybé desenha

Fig. 3 - Frame de Bahia, por exemplo com Dorival Caymmi

Fig. 4 - Hansen Bahia e sua esposa Ilse Hansen trabalhando em painel que

retrata cena cotidiana da Bahia

Fig. 5 - Mestre Didi em seus ateliê entre os seus “orikis visuais”

Fig. 6 - Coreografia de Lia Robatto cinematografada em Bahia, por exemplo

Fig. 7 - Genaro de Carvalho pinta modelo viva em trecho do filme

Fig. 8 - Jonathas Abbott. Pintura de João Lopes Rodrigues, acervo MAB.

Fig. 9 - Retrato de Manuel Querino constante do livro Artistas Bahianos

(indicações biographicas)

Fig. 10 - Carlos Chiacchio s/d autor desconhecido

Fig. 11 - Odorico Tavares, fotografia de J. Mendel, Recife, Paris. S/data

Fig. 12 - Retrato de Lina Bo Bardi, autor não identificado, acervo do MAM-BA.

Fig. 13 - Lina montando a exposição de Mario Cravo Junior no MAMB,

09/02/1960.

Fig. 14 - Exposição Sete Artistas Baianos MAMB, 05/04/1960.

Fig. 15 - Exposição Carrancas do São Francisco, 1961, MAMB.

Fig. 16 - Exposição de Le Corbusier (desenhos - 1963). Foto: A. Guthmann.

Fig. 17 - Exposição Nordeste, fotografia e planta baixa do térreo, MAP 1963.

Arquivo MAM-BA.

Fig. 18 - Exposição Nordeste, fotografia e planta baixa do térreo mais andar

superior, MAP 1963. Arquivo MAM-BA.

Fig. 19 - Sala Hélio Oiticica: Manifestaçao Ambiental n. 2. I Bienal Nacional

de Artes Plásticas da Bahia em, foto Rex Schindler, Salvador 1966.

Fig. 20 - Ligia Clark recebeu o Grande Prêmio Nacional. I Bienal Nacional de

Artes Plásticas da Bahia em, foto Rex Schindler, Salvador 1966

Fig. 21 - Agnaldo dos Santos com uma de suas obras. Salvador 1961

Fig. 22 – Pássaro cantando azul, pintura s/ papel artesanal de Edinízio

Ribeiro Primo

Fig. 23 - Flávio de Carvalho, em 1967, no Museu de Arte Brasileira da FAAP

Fig. 24 - ensaio de foto-performance publicado na Qorpo Estranho, 1976.

Foto de Regina Valter e Gerson Zanini.

Fig. 25 - Capa do álbum Expresso 222, de Gilberto Gil, 1972

Fig. 26 - Fachada da boutique Ao Dromedário Elegante. Foto arquivo de

Regina Boni s/d. São Paulo

Fig. 27 - Editorial de moda para revista Manchete, s/d - Ao Dromedário

Elegante. Dicinho de cachecol e Edinízio de xale.

Fig. 28 - Frutos de mi terra, s/d. Desenho. Hidrocor s/ papel. Dimensões: 38

x 26 cm.

Fig. 29 - Namoro de Negros, guache sobre papel milimetrado, 1974.

Fig. 30 – Cabaças, óleo sobre tela, 1972.

Fig. 31 - Capa do álbum Gal lançado em 1969

Fig. 32 - O Bode escultura 1972 de Dicinho, do época com Lina em São

Paulo.

Fig. 33 - Exposição Animais no Sesc Pompéia em São Paulo,1980.

Fig. 34 - A cabra, escultura pintada de Dicinho.

Fig. 35 - Macaco escultura pintada, 90 x 60 x 20 cm s/d.

Fig. 36 – Dicinho, terceiro da esquerda para direita (cima) posa para editorial

de moda da Arp.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO…………………………………………………………..…………12 NORDESTES E BAHIAS, POR EXEMPLO: PROJETOS DE CIVILIZAÇÃO E IMAGENS EM DISPUTA………………………………………………………….17 O LEITO DO RIO: COLEÇÕES, COLECIONADORES E POLÍTICAS DE LEGITIMAÇÃO DA ARTE NA BAHIA...........................................................41 A TODO VAPOR: POÉTICAS VISUAIS À MARGEM – DICINHO E EDINÍZIO RIBEIRO PRIMO............................................................................................89 CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................115 REFERÊNCIAS............................................................................................118 ANEXOS.......................................................................................................123

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INTRODUÇÃO

As tensões políticas e culturais no campo das artes na Bahia durante a

segunda metade do século XX, especificamente nas décadas de 1960 e 1970,

configuram e institucionalizam uma série de artistas, assistidos

principalmente pela ação dos colecionadores e da prática da coleção.

Todavia, uma outra parte dessa produção se manteve fora do circuito dos

interesse econômicos e estéticos, reservando-se à margem desse processo.

Movidos por uma desejo de adentrar caminhos ainda pouco estudados

em relação à história da arte baiana, propusemos investigar uma produção

artística que permaneceu fora de foco das políticas culturais e, por

consequência, da visibilidade pública. As causas desse fenômeno são

diversas e foram se revelando no decorrer da pesquisa através do trabalho

elaborado com múltiplas fontes documentais, entrevistas, produção artística,

produção teórica, acadêmica e bibliográfica. O título desta tese indica um

olhar para muitas histórias que ainda não foram escritas sobre a totalidade da

cena artística nas décadas de 1960 e 1970. Por isso a provocação para o

além dos ―bahiunos‖ - nominação cunhada por Millôr Fernandes em 1972

para definir os artistas baianos que ―deram certo‖ e foram absorvidos pela

indústria cultural, apesar das práticas de repressão militar, no Rio de Janeiro,

a exemplo de Gal Gosta, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Maria Bethânia. O

eixo desta pesquisa se concentra em projetos artísticos que não negociaram

com os sistemas de poderes vigentes devido a muitas razões, mas,

sobretudo, às incompatibilidades ideológicas e estéticas. Esse grupo de

artistas, também pertencentes ao movimento tropicalista, obtiveram um certo

destaque em um momento inicial, contudo, não conseguiram se manter em

evidência devido a não adaptação às regras reguladoras do sistema

Para a realização desta tese foram necessárias viagens regulares ao

interior da Bahia a fim de reunir obras artísticas inteiramente desconhecidas,

vestígios opacos de presenças em objetos pessoais, correspondências,

pessoas que conviveram com muitos dos sujeitos. Tal empreitada não foi

simples, pois as políticas que visam o apagamento da memória social são

bastante eficientes nos contextos oligárquicos no Estado, nos obrigando a um

árduo trabalho para a localização de peças desse intricado quebra-cabeça de

13

relações. O sentimento de persistência possibilitou encontrar, apesar da

precariedade de conservação e organização documental, alguns valiosos

arquivos particulares. Documentos guardados em caixas de sapato sobre

armários em dormitórios de residências humildes. Pessoas que, sem ao

menos ter conhecimento do valor do tema pesquisado, dispuseram

gentilmente a contribuir com diversos tipos de informação.

No decorrer do processo, verificamos que seria impossível desvelar o

universo dessas produções se não fizéssemos um estudo das tensões de

como se constituiu um sistema que institucionaliza uma parte significativa da

artes na Bahia e em seus contextos regionais.

De tal modo, no primeiro capítulo, realizamos o levantamento de

discussões sobre como projetos de civilização podem contribuir para uma

visão das artes no Nordeste e, mais especificamente, na Bahia. O eixo do

capítulo é perceber como são erigidos discursos em torno das utopias e

imagens regionais, balizando como essas construções conceituais

constituem em cenários de disputa. A proposta nesta parte do texto é

compreender como e de que forma imagens sobre o Nordeste e a Bahia

foram construídas tendo como referenciais conceitos gerados nessas

próprias regiões – rejeitando leituras que estão alocadas em um projeto de

modernismo referenciado pelo Sudeste.

Para esmiuçar esses contextos, tomamos como material histórico o

filme Bahia, por exemplo do cineasta Rex Schindler. Na obra, o diretor elenca

uma série de artistas para comentar sobre a condição de como é ser artista

na Bahia e também as influências e desdobramentos desses trabalhos. Além

disso, Schindler insiste numa possibilidade de cartografar cenas populares na

Bahia com a tentativa de criar uma diversificação do olhar sobre o estado.

Esse capítulo dá subsídio para as ideias que serão perfiladas na parte

seguinte, já que aponta as construções conceituais e utópicas como um

mecanismo de composição de políticas culturais e representações imagéticas

O capítulo é recortado pelos estudos sobre utopias e heterotopias,

cunhados pelo filósofo Michel Foucault, além de dialogar com trechos de

textos fundamentais sobre imagens do Nordeste e outras rotas possíveis na

tessitura de projetos de civilização, a exemplo do Manifesto Regionalista de

Gilberto Freyre e do Manifesto do Rio Negro de Pierry Restany.

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O segundo capítulo O leito do rio: coleções, colecionadores e políticas

de legitimação da arte na Bahia concentra-se numa revisão histórica

abrangente sobre os distintos contextos que legitimam uma produção oficial

na arte da baiana. A imagem do leito do rio ainda serve de referência para

pensarmos os fluxos da história. Quem se encontra alocados no interior de

seu duto e almeja o privilégio de navegar a favor de suas correntes?

Seguindo em frente experimenta um percurso favorável fluído e sem atritos

sobre seu leito? Esse curso líquido pode ser alterado e muitas vezes

manipulado pelos desejos humanos. Através de contenções, represamentos,

transposições e desvios para novas rotas, que são artificialmente definidas.

Aqui trataremos das produções simbólicas da arte, mas sobretudo do seu

complexo sistema de agenciamento estético que a insere em um patamar de

destaque a partir de determinações sociais. O poder das coleções e das

práticas do colecionismo através de seus autores, os colecionadores, na

criação de normas e padrões a seguir no leito favorável de certas trajetórias.

A análise se inicia na Bahia oitocentista com a ação inaugural do inglês

radicado em Salvador Jonathas Abbott - que forma a mais importante coleção

privada de arte no Estado e que participa da fundação da Sociedade de

Belas Artes, formada por um grupo de importantes nomes da vida baiana,

oriundos da classes média e alta. Sua coleção é formada a partir de inúmeras

viagens para Europa. Tais experiências são registradas no seu diário de

viagem. A formação de tal coleção consolida valores artísticos europeus na

sociedade baiana.

Em seguida, analisamos a fundação de duas importante instituições de

ensino da arte na Bahia: o Liceu de Artes e Ofícios, em 1872, e a Academia

de Belas Artes da Bahia (ABAB), em 1877. A importância desses dois

espaços interferiam na produção e distribuição da arte baiana. O

protagonismo do famoso aluno Manuel Raymundo Querino (1851-1923),

primeiro historiador da arte negro no Brasil e as tensões sociais que

enfrentou devido ser um intelectual negro.

O panorama da arte nas primeiras décadas do Século XX e a

movimentação cultural no pós-guerra são apresentado para introduzir

Odorico Tavares, uma das personalidades mais importantes e influentes

envolvidas com o mundo das artes, da política e da comunicação na Bahia

15

entre 1942 até 1980. O impacto do seu acervo artístico e a sua atividade

midiática no Diários Associados o transforma em um ícone que consolida

valores da arte moderna no Estado.

A presença de Lina Bo Bardi na Bahia é revista a partir de documentos

e bibliografias que revelam as tensões politicas e estéticas ao implementar as

suas concepções pedagógicas, marcadamente sociais em uma cidade ainda

dominada pelas elites oligárquicas locais.

E, por fim, as tensões que envolveram a realização dos projetos das

bienais nacionais de artes plásticas da Bahia em 1966 e 1668. Uma época

onde as práticas repressoras do regime militar se fazia presente na censura e

na perseguição de muitos artistas.

No terceiro capítulo À todo vapor: poéticas visuais à margem – Dicinho

e Edinízio Ribeiro Primo apresentamos a produção de dois artistas que

atestam a nossa tese de construção de uma poética visual que foi produzida

à margem dos grandes sistemas de legitimação da arte baiana. As obras e a

trajetória profissional de Edinízio Ribeiro Primo e Dicinho passaram à largo

dos interesses da pesquisa da arte contemporânea na Bahia. O estudo é

uma tentativa de trazer à tona essa produção que ficaram à margem dos

estudos sobre o movimento tropicalista na Bahia e no Brasil. A produção

artística desses dois protagonistas do movimento contracultural nas artes

visuais baianas foram gestadas na cidade de Jequié no inicio da década de

1960. Na época, a confluência de artistas e intelectuais na região é vista

como um epicentro de formulações estéticas e políticas que irão embasar

grande parte das propostas do movimento tropicalista.

O capítulo também dará voz ao que denominamos além dos bahiunos,

grande parte deles pertencente ao chamado ―Grupo de Jequié‖ que

permaneceram fora do sistema da arte baiana e brasileira. A total inexistência

de bibliografias e a dificuldade de reunir um acervo das obras desses artistas

torna árdua, mas necessária, a iniciativa de investigação para maior

compreensão do complexo fenômeno que caracterizará as expressões

culturais e artísticas em um momento de profunda transformação social no

mundo.

Edinízio Ribeiro Primo teve uma biografia extremamente intensa e

prematura. Sua morte aos 31 anos interromperá uma promissora carreira

16

artística. Sua obra se encontra completamente dispersa e com pouquíssimas

referências, necessitando de um contínuo trabalho de pesquisa.

Dicinho é um dos poucos artistas dessa geração que se encontra vivo.

Ele conseguiu sobreviver a todo um processo de invisibilidade, que acometeu

a outros da sua geração. A partir de diversas visitas ao seu atelier, motivadas

pela emergência de acessar os arquivos da produção cultural baiana das

décadas de 1960 e 1970, no momento em que se realizava as pesquisas

curatoriais para a III Bienal da Bahia em 2014, tivemos um contato decisivo

com o artista reafirmando a importância de sua produção.

17

CAPÍTULO 1 – NORDESTES E BAHIAS, POR EXEMPLO: PROJETOS DE

CIVILIZAÇÃO E IMAGENS EM DISPUTA

Como as utopias moveram iniciativas para pensar um outro projeto de

Nordeste e Bahia dentro do campo das artes? Quais as implicações de

iniciativas e concepções individuais na formação de um cenário artístico

baiano a partir da década de 1940? Os contextos e os bastidores que nos

conduzem sobre as utopias e os projetos de política culturais pensados para

a Bahia a partir das artes são bem complexos. É preciso emergir numa

historiografia e num emaranhado de iniciativas teóricas, políticas e sociais

para começar a puxar a teia de relações que foi tecida em terras baianas. As

utopias eram várias e o ideal de construir um projeto civilizatório novo era

quase inevitável. No entanto, essas utopias eram movidas a partir de ideais e

de meios muitas vezes individuais dentro de um cenário de intensa

instabilidade política. Antes de mais nada é preciso entender como essas

utopias operam e para isso, neste trabalho, seguimos os caminhos deixados

por Michel Foucault na conferência De outros espaços (2013).

A utopia é uma construção imaginária fruto de perspectivas individuais

ou coletivas que erigem um modo de criação de lugares não-reais. Ou seja,

uma utopia está intimamente ligada com processos de concepção de um

lugar a partir de desejos, aspirações e projetos complexos. É uma iniciativa

de ―melhoramento‖ da realidade em que estamos inseridos. No entanto,

essas utopias são incapazes de serem executadas e, por isso, se manifestam

por meio de falhas que são possíveis de serem percebidas fisicamente.

Esses processos de materialização incompleta da utopia, Foucault (2013) vai

denominar heterotopias. As heteropias, então, seriam como vestígios do

objetivo de construção de uma utopia.

A partir de uma concepção foucaultiana, as heterotopias seguem alguns

princípios, que as localiza dentro de uma perspectiva do real. Todas as

culturas produzem heterotopias, ainda que elas possuam lógicas específicas

em termos de forma. As heterotopias de crise são espaços que abrigam

pessoas que estão em desacordo com as normas sociais que vivem,

consistindo em lugares que são explorados para expressar atividades

reprovadas no seio social. Aliados a essas, a heterotopia de desvio são sítios

18

onde são postas pessoas que são transgressivas socialmente, a exemplo de

clínicas psiquiátricas e prisões. Nesses casos, as heterotopias estão a

serviço do ideal utópico de melhoramento social, tirando do convívio pessoas

que burlam esse ideal de civilização idealizado.

Um segundo princípio apontado por Foucault para entender as

heterotopias é que elas funcionam distintamente ao longo do tempo, dada as

circunstâncias socioculturais. As funções das heterotopias podem mudar de

acordo com o contexto da época. Além disso, elas têm a potencialidade da

justaposição - que implica que um mesmo local físico é capaz de possuir

diversas localizações que ocasionalmente são contraditórias. Portanto, as

heterotopias são capazes de conjulgar elementos que são diferentes e

distantes entre si.

Outro princípio apontado por Foucault é como as heterotopias estão

sintonizadas com heterocronias. O tempo, tal qual o conhecemos, é posto à

prova ao serem colocados elementos de tempos diferentes num mesmo lugar.

Por provocar essa dissicrônia entre os elementos, existe aí uma

característica de atemporalidade. Um bom exemplo disso é pensar como

museus confluem e confrontam obras e objetos de diferentes períodos no

mesmo espaço, sendo um lugar de intersecção entre os tempos e os

espaços.

As heterotopias edificam lógicas que lhes permitem isolamento e

penetrabilidade. O acesso a essas heterotopias ocorrem por

compulsoriedade ou por meio de rituais purificadores. Uma espécie de

inclusão exclusiva. Para concluir, Foucault caracteriza as heterotopias como

um lugar que constrói uma simulação/ficção de outro lugar. Ou seja, existem

heterotopias que se manifestam a partir da criação de um espaço ficcional e

regulado.

O legado do pensamento foucaultiano nos serve como ponto inicial para

imaginarmos as iniciativas que começaram a ser erigidas no Nordeste e,

mais especificamente, na Bahia, no campo das artes. A partir dessa mirada,

tentaremos pensar em propostas culturais e artísticas que se construíram

sobre o Nordeste do Brasil movidas por uma utopia de transformação social.

Projetos esses que não estavam ligados tão somente a construções

imagéticas e teóricas, mas também deram corpo à heterotopias. Neste

19

capítulo, especificamente, discorreremos sobre como as ideias sobre o

Nordeste viriam a criar projetos civilizatórios.

Inicialmente, traçaremos um breve trajeto histórico em que, em

diversos momentos e contextos, a questão da formação cultural identitária da

região Nordeste é argumentada como referencial de distinção. Começaremos

elencando algumas concepções da geografia sobre a região Nordeste.

Existem três principais compreensões: uma tradicional, centrada na análise

das paisagens, nos aspectos físicos (clima, vegetação e relevo); outra

moderna, preocupada com a divisão territorial do trabalho, levando em

consideração aspectos socioeconômicos; e a terceira mais atual que enfatiza

a invenção dessa região por um determinado fenômeno sociocultural. Não é

o nosso objetivo aprofundarmos sobre elas, mas sim, compreender de forma

abrangente as razões que levam a formulação desta indagação - que insurge

em um discurso que quer negar, dissimular ou expandir a importância de se

ser ou não uma produção cultural regionalista.

No Manifesto Regionalista, escrito por Gilberto Freyre em 1926, foram

feitas críticas às tendências vanguardistas do Modernismo paulista. O autor

tece um discurso de distinção regional, defendendo a construção de uma

identidade nordestina embasada em valores tradicionalistas. Um Nordeste

profundo, tradicional, fruto da síntese miscigenada das três matrizes étnicas

da constituição do povo brasileiro. Uma política regionalista que preserva e

salvaguarda os bens culturais. O ataque regionalista freyriano ao

Modernismo de Mario de Andrade tinha como objetivo a crítica ao processo

de reelaboração da cultura tradicional sob o ponto de vista moderno. As duas

posturas visavam afirmar um discurso sobre a identidade nacional que

deveria ir de encontro à ideia de cultura colonizada.

Sem dúvida o Manifesto Regionalista irá definir uma visão bastante

peculiar sobre a produção artística do Nordeste. O texto alerta para possíveis

más interpretações, sobre intensões separatistas ou bairristas, anti-

internacionalista, anti-universalista ou antinacionalista. Defende-se um

flexível sistema político estatal, em que as regiões do país seriam superiores

em importância à ideia dos Estados. Freyre, de certa forma, antecipa a

discussão que reivindicava um lugar de fala, para dar voz aos distintos

modos de ser dos brasileiros.

20

[...] Pois são modos de ser - os caracterizados no brasileiro por suas formas regionais de expressão - que pedem estudos ou indagações dentro de um critério de inter-relação que ao mesmo tempo em que amplie, no nosso caso, o que é pernambucano, paraibano, norte-riograndense, piauiense e até maranhense, ou alagoano ou cearense em nordestino, articule o que é nordestino em conjunto com o que é geral e difusamente brasileiro ou vagamente americano.[...] (FREYRE, 1996, p. 48)

Contudo, o pensamento do sociólogo se esbarra na relação complexa

entre tradição e modernidade que será amplamente debatida entre os dois

pólos de pensamento cultural e artísticos no Brasil - o norte versus o sul - nos

anos 1930. Para se defender das críticas recebidas, Freyre esclarece que o

Regionalismo é apenas outra forma de modernismo que concilia a ideia de

futuro com as tradições regionais do País, sem promover uma síntese diluída

das "paisagens brasileiras" que fossem reorganizadas em um novo arquivo

operado pelos artistas a fim de criarem outras invenções não naturalistas e

recontextualizadas em outros arranjos. Freyre reage fortemente a essas

operações de cunho antropofágico, que transformaram as artes e tradições

nacionais em sintaxes para a livre criação na arte moderna. Esse acervo

matricial da cultura brasileira não pode ser compreendido nem operado como

mero elemento formal, desprovido de seus contextos regionais. Freyre luta

contra o que Mário de Andrade chamava de "apagamento dos regionalismos

pela descentralização da inteligência(ANDRADE,1974,p.237). Afinal onde

estava centralizada a inteligência?

O fato de Freyre se considerar um modernista amplia os rumos da

nossa pesquisa que busca investigar outros projeto para o entendimento da

arte e da cultura no Brasil. Descontruindo a ideia de um único projeto que

ainda hoje é citado nos conteúdos de livros didáticos como único e absoluto.

Gilberto se dizia modernista e, de fato, o levantamento que já havia feito confirmava os seus laços com Manuel Bandeira, Prudente de Morais Neto, Rodrigo Melo Franco de Andrade e — sugestivamente — Paulo Prado, Sérgio Buarque e Afonso Arinos. Vale a pena observar, porém, que expressiva parcela da crítica atual costuma classificá-lo exatamente na posição inversa, contrapondo a sua obra, pelo regionalismo e pelo perfil tradicional, aristocrático e conservador que a caracterizaria, às demandas modernizantes do modernismo paulista. (ARAUJO, 1994, p. 19)

No decorrer da pesquisa constatamos que são inúmeras as críticas

que reduzem o projeto Regionalista de Gilberto Freyre a algo absolutamente

21

reacionário e tradicionalista no sentido mais retrógrado. São poucos e

recentes os autores dentro e fora da região Nordeste do Brasil que

consideram o projeto apresentado no Manifesto Regionalista de Freyre como

outro caminho para se pensar o Modernismo no Brasil. As consequências

futuras e seus desdobramentos históricos e sociais quando são levadas a

cabo por um grupo de seguidores, absolutistas e regionalistas extremados,

devem ser criticamente consideradas. Novos olhares e novos discursos

devem ser evidenciados, visto que não podemos resumir as expressões da

arte brasileira a um só caminho.

A historiografia da arte brasileira precisa reconhecer que a existência

da Semana de 1922 e todo o pensamento que consolida o seu projeto, não

pode representar todos os caminhos deste continental país. É necessário dar

visibilidade a outros inúmeros itinerários que tangenciam e margeiam o

discurso hegemônico.

Como desdobramento do projeto regionalista de Freyre, surge em

Pernambuco, em 1950, o projeto Armorialista do paraibano radicado em

Recife Ariano Suassuna. Uma das suas mais evidentes heranças de Freyre é

a visão de pluralismo racial como elemento matricial para se pensar a cultura

brasileira. Distante das abordagens naturalistas da produção dos autores da

geração de 1930, Ariano se distingue ao criar um Nordeste ficcional e mítico,

combinando referências da cultura popular com a tradição ibérica medieval.

Tal operação instaura cânones para um novo projeto de modernismo a partir

do Nordeste. Esse projeto cultural irá informar e alicerçar políticas públicas

implementadas pelas elites governantes do estado de Pernambuco. Neste

contexto, o movimento armorial consolida uma visão hegemônica sobre um

Nordeste tradicional a partir de Pernambuco, legitimando dessa forma o

conceito de nordestinidade e a sua ampla apropriação popular. Esse

percurso reflexivo instaura em Pernambuco um espaço adverso a todas as

práticas artísticas e culturais que não dialogam com tais pressupostos.

Na tese de Durval Muniz de Albuquerque Jr, intitulada A invenção do

Nordeste: e outras artes (2011), o autor propõe, à maneira foucaultiana, uma

genealogia da ―Região Nordeste‖ a partir de diversos discursos que atestam

o seu caráter antimoderno. A tese apresenta discursos regionalistas e que os

22

mesmos só se tornam problemáticos quando vão de encontro a uma não

neutralidade política que orienta a hegemonia nas relações de poder:

Definir a região é pensá-la como um grupo de enunciados e imagens que repetem, com certa regularidade, em diferentes discursos, em diferentes épocas, com diferentes estilos e não pensá-la uma homogeneidade, uma identidade presente na natureza. ( ALBUQUERQUE, 2011, p. 35)

Estamos falando em uma atualidade, recorrente a um sistema de arte,

que reivindica uma inserção em um aguçado processo de universalização. A

imagem do ―Nordeste da Seca‖ já foi tema de uma ambígua tarefa de

desconstrução - enquanto imagem hegemônica - pelos novos rumos da

política nacional que elegeu um presidente da república nordestino.

Encontramo-nos em um momento onde a crítica ao pensamento moderno

ocidental reivindica uma visibilidade para eixos geopolíticos que até então

foram reservados a invisibilidade.

Sem querer traçar uma "sociologia da ausência‖, a produção artística

contemporânea do Nordeste do Brasil ocupa uma pequena parcela de

destaque, quase inexistente, no grande sistema da crítica e do mercado na

região Sudeste do Brasil. Por outro lado não é mais conveniente pensar em

termos esvaziados e genéricos como Arte Brasileira, Arte Pernambucana,

Arte Paraense e muito menos Arte Maranhense. Assistimos o

desenvolvimento de um discurso estratégico que permeia instituições

culturais, curadores, artistas e agenciadores estéticos que descartam a

identificação local de uma produção cultural como algo desnecessário para a

legitimação dentro de um sistema das artes. Nos parece que a ideia de

pertencimento, identificação a uma determinada região do país, que em

outros tempos no Brasil foi o motor de diversos manifestos artísticos,

inferioriza e cunha o rótulo "folclorizante regionalista" sobre a obra e o artista.

Isso nos remete ao pensamento de Boaventura de Sousa Santos, que

nos fala sobre o ―Pensamento Moderno Ocidental das distinções entre o

visível e o invisível e do fenômeno do desaparecimento de outras realidades

sociais fora do ―eixo‖:

Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de inclusão considerada como sendo o Outro. (SANTOS, 2010, p.32)

23

Nesse sentido reconhecemos uma grande produção de artistas no

Nordeste que vivem em uma condição de embassamento, reservados em

uma situação de opacidade e invisibilidade. Essa produção artística

ideologicamente não se comporta dentro dos padrões hegemônicos ditados

para os grandes centros.

A partir da não existência do grande mercado faz com que se

desenvolva uma autônoma cultura visual, particular e incomum. É pertinente

afirmar a necessidade de um novo olhar marcado pelas relações de

alteridade sobre esta produção.

Através de uma outra via de abordagem, uma importante obra escrita

em 1996, é publicada em uma versão resumida da tese O Engenho Anti-

moderno: A Invenção do Nordeste e Outras Artes do historiador Durval Muniz

de Albuquerque Júnior, sendo premiada no concurso Nelson Chaves da

Fundação Joaquim Nabuco. Tal obra apresenta uma abordagem desveladora

marcadamente crítica e severamente polêmica. A invenção imagética-

discursiva do Nordeste, entre a visibilidade e a dizibilidade. A obra

desconstrói o discurso regionalista sobre o Nordeste que, em muito, reduz à

paisagem, os temas e as abordagens em uma hegemônica construção de

caráter rural, tradicionalista, artesanal e folclorizado. Para nós a discussão de

Durval é fundamental pois apresenta de forma rigorosa uma leitura dos

mecanismos que elevam uma produção artística a categoria instrumental a

serviço da manutenção de relações de poder. Pensando o Nordeste como

uma (suposta) região que fora (dita) inventada e construída por determinados

grupos sociais internos e externos à ela, apontamos a ocorrência de uma

invenção engendrada e operada pelas mídias durante o século XX e pelos

discursos políticos na produção intelectual e artística, que legislava a não

inclusão dessa região dentro do panorama artístico nacional . ―O Nordeste,

assim como o Brasil, não são recortes naturais, políticos ou econômicos

apenas, mas, principalmente, construções imagéticas-discursivas,

constelações de sentidos (ALBUQUERQUE JR., 1990, p. 307).

Sobre essas construções imagéticas-discursivas, Durval nos apresenta

uma criteriosa revisão. Pontua o surgimento de um novo regionalismo na

década de 1920, diferente do olhar provinciano do século XIX e início do XX.

24

A partir daí, percebemos a consolidação de visões que até hoje nos são

caras. A construção de uma imagem de distinção entre São Paulo, com sua

modernização, e outras áreas do país. Em uma série de artigos de Paulo de

Morais Barros, intitulados "Impressões do Nordeste" e "Impressões de São

Paulo‖, publicados em 1923 afirma-se através de publicações periódicas no

jornal O Estado de S. Paulo, um "regionalismo de superioridade" paulista em

relação ao um "regionalismo de inferioridade" do nordestino.

[...] A estratégia era demonstrar a superioridade de São Paulo e da sua população, formada por elementos europeus. Nesses artigos, São Paulo aparece como um espaço vazio que teria sido preenchido por populações europeias. Assim, a escravidão e os negros parecem não ter aí existido; os índios e os mestiços menos ainda. São Paulo e todos os paulistas seriam europeus [...] ( ALBUQUERQUE JR, 2011, p.57).

O autor também relaciona diversas contradições narrativas de

viajantes pelo Nordeste, que, ao se depararem com os arquivos de imagens

pré-concebidas, muitas das vezes criadas e difundidas pelos regionalistas

nordestinos, tensionam entre o visto e o previsto. Chove-se muito no

Nordeste, existem grandes metrópoles e uma efervescente urbanidade, para

além das imagens paradigmáticas de ―Os Sertões‖ de Euclides da Cunha.

Mário de Andrade, em 1927, exercitando a sua alteridade paulista se

denomina de O Turista Aprendiz, na tentativa de anular o seu olhar sulista em

sua expedição pelo Norte e Nordeste do Brasil. Mário, como aprendiz,

reconhece a pluralidade e complexidade, contrastes e tensões da região, o

que será fundamental para a criação da sua ideia de nação em Macunaíma,

ao pensar a cultura brasileira como um encontro de tempos, espaços,

discursos e signos díspares.

Precisamente 51 anos mais tarde, em 1978, uma nova expedição pelo

Norte-Nordeste do país foi empreendida pelo filósofo francês Pierre Restany,

o escultor Frans Krajberg e o pintor Sepp Baendereck, saindo de São Paulo,

passando por Nova Viçosa e atravessando o Nordeste em direção ao Rio

Negro e alguns de seus afluentes até a fronteira entre a Amazônia brasileira,

Venezuela e Colômbia. Nessa viagem, um projeto ambicioso pelo interior da

floresta resulta em um famoso manifesto defendendo um novo naturalismo: O

Manifesto do Rio Negro. Nesse manifesto o filósofo e crítico de arte criador

25

do Novo Realismo 1, sintetiza a sua ideia de natureza integral, contrapondo

ao realismo:

Amazônia constitui hoje, sobre o nosso planeta, o "último reservatório", refúgio da natureza integral. Que tipo de arte, qual sistema de linguagem pode suscitar uma tal ambiência - excepcional sob todos os pontos de vista, exorbitante em relação ao senso comum? Um naturalismo do tipo essencialista e fundamental, que se opõe ao realismo e à própria continuidade da tradição realista, do espirito realista, além da sucessão de seus estilos e de suas formas. O espirito do realismo em toda a historia da arte não é o espirito da pura constatação, o testemunho da disponibilidade afetiva. O espirito do realismo é a metáfora; o realismo é, na verdade, a metáfora do poder: poder religioso, poder do dinheiro na época da Renascença, em seguida poder politico, realismo burguês, realismo socialista, poder da sociedade de consumo com a pop-art. [...] (KRAJBERG, 1992, p. 14).

O grupo adentra zonas pouco exploradas da Floresta Amazônica

através do Rio Negro. Lá eles instauram um verdadeiro ateliê flutuante de

criação artística e reflexão filosófica profunda sobre as relações entre arte e

natureza. Entre a imensidão do rio, o contato com os índios e exuberante

variedade da fauna e flora da floresta, um novo estado de percepção os

possui. Restany mais tarde sintetiza esta experiência com o "Amazon

Choque" - um brutal e avassalador choque de consciência distante do modus

vivendi Ocidental.

O manifesto se afina aos discursos ambientalistas internacionais da

década de 1970 e reconhece o nascimento de uma nova consciência oriunda

desse último refúgio de natureza integral. Indagam-se, também, sobre como

a beleza da natureza em seu estado original pode contribuir para a arte e

para o aperfeiçoamento das sociedades contemporâneas. Para o grupo, esse

momento de inter-relação entre natureza e arte é fundamental pois

representa um retorno a verdadeira natureza humana:

[...]Esta reestruturação perceptiva refere-se á uma real mudança e a desmaterialização do objeto de arte, sua interpretação idealista, a volta ao sentido oculto das coisas e sua simbologia constituem um conjunto de fenômenos que se inscrevem como um preâmbulo operacional à nossa Segunda Renascença - etapa necessária para uma mutação antropológica final.[...] (KRAJBERG, 1992, p. 14)

Dois bons exemplos para compreender este fenômeno podem ser

verificados na criação de imagens e discursos sobre os estados da Bahia e

1

26

de Pernambuco. Dois signos complexos foram utilizados como estereótipos.

Na Bahia, o signo da baianidade, e em Pernambuco, o signo da

nordestinidade, cunham um visão parcial e muitas vezes manipulada - fruto

de um conjunto de forças e tensões políticas - da contribuição cultural das

regiões para a cena artística brasileira. Pela importância capital de tais

constructos discursivos para o desenvolvimento da nossa reflexão no

presente trabalho iremos analisá-los amiúde.

A regionalização do território do Brasil durante o século XX passou por

diversas divisões. O estado da Bahia até a década de 1970 não pertencia à

região Nordeste. Conforme a divisão regional de 1945, a Bahia era o Leste

Setentrional e o Nordeste era dividido em oriental e ocidental. Nesta

perspectiva, não encontraremos o estado da Bahia no recorte feito por

Gilberto Freyre em seu importante ―Manifesto Regionalista‖ escrito em 1926.

As ideias desse movimento, contidas no documento, esboçam uma

reabilitação de valores regionais e tradicionais desta parte do Brasil.

A mudança da capital da colônia da Bahia para a nova sede

administrativa imperial no Rio de Janeiro no sec. XVIII, atesta o surgimento

de uma nova ordem na economia e na política brasileira. Nas palavras de

Antônio Risério sobre as consequências que também perpassam pelos

processos culturais:

[...] A Bahia vai mergulhar, por bem mais de cem anos, num período de relativo isolamento e solidão, antes que aconteça sua inserção periférica na expansão nordestina do capitalismo brasileiro.[...] (RISÉRIO, 1988, p.145).

O autor atribui a este momento de isolamento a criação desse

complexo cultural que hoje chamamos ―cultura baiana‖. A solidão da ―velha

senhora Bahia‖ é responsável pela sua singular distinção e pelo

desenvolvimento de práticas culturais de sínteses banto-luso-iorubana-tupi.

Sobre as diversas perdas econômicas que distanciava o estado de uma

modernização nacional, a Bahia ficara presa ao seu passado colonial.

Contudo é neste momento de hibernação que se elabora novas dinâmicas.

Nas palavras de Risério:

[...] E curioso é que quanto mais visível ia se tornando o seu tradicionalismo, mais esclarecia, em tudo que fosse Bahia, uma aura mítica. O Brasil passa a chamá-la ―a boa terra‖, epíteto da Bahia provinciana dos tempos recentes.[...] (RISÉRIO. 1988, p. 152)

27

A partir deste contexto podemos compreender como o conceito de

baianidade começou a se esboçar, resultando na criação de estereótipos e

pontos de vistas relativos à Bahia. O seu isolamento, a sua condição pouco

moderna e consequentemente detentora de um patrimônio cultural

absolutamente original que atrairia a atenção de muitos viajantes e

curiosos sobre sua condição matricial da cultura brasileira. Como todo

pensamento e discurso que tende ao hegemônico, não se constitui de forma

imediata segue uma temporalidade estendida, começaremos investigar

possíveis fenômenos que de certa forma contribuíram para a cristalização de

uma imagem externa e interna do Estado.

É interessante pontuar que Gilberto Freyre reinvidica a criação do termo

―baianidade‖, mas o faz pensando de maneira mais complexa, como no

trecho a seguir:

Faz mais de um ano, que não vou à Bahia e tenho pena. Porque que a Bahia me faz falta. A ausência da Bahia me deixa incompleto no meu brasileirismo. Preciso mais de ver a Bahia do que ouvir o Hino Nacional para me sentir ortodoxamente brasileiro. Não é retórica: é pura verdade. É o puro fato. Se há neologismo de que eu me orgulho de ter sido criador, é a expressão ―baianidade‖, que inventei em 1943 para definir uma condição complexamente psicocultural: a do baiano. A do brasileiro da Bahia. A do brasileiro de outra área que mergulha no ethos e no ambiente oleosamente baiano, imerso nesse óleo adquire atitudes, sentimentos, sutilezas de paladar, modos de ver e de agir – ou de não agir - próprios do baiano.

Freyre nesse depoimento assinala que é preciso se voltar à Bahia para

entender o sentimento de pertença de ser brasileiro, ainda que o fato de ser

baiano carregue consigo características muito específicas que outras regiões

do país não possua. Em outras palavras, Freyre considera que para entender

a condição de brasileiro é preciso se voltar para a Bahia.

Muitos dos primeiros signos modernos da baianidade que vigoram até

os dias de hoje ratificam aos olhares pouco atentos a ideia de uma afro-

baianidade como discurso que valoriza os elementos matriciais e

tradicionalistas da nossa cultura. Tais signos foram produzidos e veiculados

na mídia nacional pelas revistas O Cruzeiro e A Cigarra nos anos de 1946 a

1951. Estas publicações, de certa forma, elaboraram conceitos sobre a

cultura do estado e modelam pontos de vista que privilegiam apenas um

28

perspectiva ideológica. Ainda hoje, somos condicionados a pensar em uma

Bahia restrita a esta veiculação midiática. Quantos cartões postais e autores

veiculam uma Bahia sertaneja ou agreste? Somos induzidos a pensar na

cultura baiana como algo único e hegemônico e não exercitamos o nosso

olhar para a sua polivalência e multiplicidades. Constatamos a existência de

muitas Bahias distribuídas sobre uma vastíssima dimensão territorial.

Foram 25 matérias e 373 fotografias de Pierre Verger - em sua grande

maioria legendadas por Odorico Tavares - publicadas em duas mais

importantes empresas de comunicação nacional. Tais publicações tiveram

uma significativa tiragem, disseminando massivamente imagens e pontos de

vista. Sobre os temas abordados encontramos no artigo de Juciara Barbosa:

Todas as reportagens do período demonstram uma conotação eminentemente popular e na maioria dos temas escolhidos estava profundamente ligado ao dia-a-dia do povo simples, abordando seu ambiente de trabalho e lazer, seus afazeres, costumes, crenças e hábitos. (BARBOSA, 2007, p. 34)

Tais imagens criam uma visibilidade da Bahia no Brasil e no mundo,

que elege elementos da cultura como emblemas para definir algumas

características de um conceito que, paulatinamente se constrói: o de

―baianidade‖. Neste estão implícitos as imagens de uma Bahia exótica,

pitoresca e dita pouco moderna.

Soma-se a esta importante divulgação em mídia nacional de um

recorte da cultura baiana (a capital e sua hinterlândia) - produzida à época

por um olhar informado do viajante estrangeiro (Pierre Verger) e traduzida

pelo representante dos Diários Associados em Salvador (Odorico Tavares). A

produção literária de Jorge Amado - que difunde em narrativas envolventes

um modo de vida particular - ajuda a consolidar a noção de uma baianidade

mestiça e refratária à urbanidade moderna. Patrícia de Santana Pinho em

seu artigo a Negritude e baianidade na “terra da felicidade” realça a

importância do escritor na construção de uma imagem sobre a Bahia que até

hoje é propagada e negociada por elites políticas e culturais:

Jorge Amado foi fundamental nessa empreitada de transformar o que era entrave em impulso à formação da nação brasileira. Sua obra é permeada por ―tipos baianos‖, onde afloram heroínas e heróis mestiços e negros sobre uma paisagem mítica, completada por uma presença de mães de santo, capoeiristas, mulatas faceiras,

29

baianas de acarajé, e os mais diversos tipos de artistas. (PINHO, 2004, p. 212).

Importante ressaltar que a obra de Jorge Amado fora traduzida para 49

idiomas e que muitos viajantes vieram para o estado a fim de conhecer in

loco toda a atmosfera da ―Velha Cidade da Bahia‖ narrada pelo autor. Por

outro lado, muitos baianos começam a construir ideais de pertencimento

identitário a partir da obra amadiana.

Outras informações sobre uma ―baianidade‖ dengosa e musical

também foi veiculada pela obra do cantor e compositor Dorival Caymmi. O

artista obteve um grande sucesso internacional no final da década de 1930,

época que a sua música ―O Que é Que a Baiana Tem‖ fora gravada por

Carmem Miranda e apresentada no filme hollywoodiano ―Banana da Terra‖,

distribuído pela Metro-Goldwyn-Mayer do Brasil. Nesse contexto, é

importante ressaltar as relações políticas de Getúlio Vargas com os EUA.

Imagens do Brasil e da Bahia se construíam, atualizando visões pitorescas e

exóticas de um olhar estrangeiro e servido como produto para uma indústria

cultural ávida pelo "tradicional" e ―primitivo".

Carmen Miranda foi içada a simbolo da política de boa vizinhança

entre os EUA e o Brasil. Uma das mais populares e carismáticas artistas

brasileiras, Carmen chegou a ser associada a uma artista da América Latina.

Acabou sendo o símbolo maior da cooperação cultural no continente

americano através da musica e do cinema.

A cultura baiana, nos parece, ficou estrategicamente conhecida nas

mídias pelas imagens de Pierre Verger, pelas histórias narradas por Jorge

Amado e pela sonoridade de Dorival Caymmi. Não seria leviano afirmar que

até hoje em dia muitos olhares que buscam a Bahia estão introjetados por

uma expectativa de reconhecer essas imagens, que foram difundidas nas

obras desses artistas. Paralelo a esse fenômeno, foram publicizados diversos

conceitos veiculados ao modus vivendi baiano: mito do paraíso racial, da

mestiçagem sincrética e da terra da felicidade. A afirmação desses discursos

por uma elite intelectual e a sua veiculação midiática, servia de forma utilitária

à construção e legitimação de uma baianidade, muito bem apropriada pelas

forças políticas dominantes, esvaziando o seu capital cultural e

transformando-os em produtos turísticos.

30

Um registro histórico para pensar nas disputas e nas implicações que

a arte possui nos projetos civilizatórios para a Bahia é o filme Bahia, por

exemplo do diretor Rex Schindler. O filme, datado de 1971, tenta entender a

Bahia a partir da visão de artistas que produziam trabalhos relacionados com

os contextos locais naquele período. Já no início da obra, o diretor nos

informa que o filme ―é dedicado aos artistas que melhor do que ninguém

sabem compreender a Bahia‖.

Fig.1- Cartaz do filme registra artista e imagens-chave para a identificação da

obra

A película traz imagens que tentam diversificam a imagem da Bahia

praieira e relacionada com as culturas matriciais afrobrasileiras, no entanto,

não logra êxito nesse objetivo porque o tom das imagens de arquivo de

quase todo o filme reforça exatamente esse imaginário. A inserção de

registros de boiadeiros, vaqueiros e imagens mais urbanas da capital do

estado, ainda que integrem o filme, não conseguem complexificar a imagem

da baianidade hegemônica.

Além dos recursos cinematográficos que o diretor do filme recorreu,

vemos um desfilar de questões sobre a arte e a Bahia proferidas por um

grupo de artistas ativos no cenário da época. Antes de destrinchar as falas

desses artistas, vale pontuar que boa parte das fontes recorridas para tecer

os comentários no filme faziam parte de um grupo seleto que ocupava os

31

espaços culturais e que tinham, em alguma medida, um alinhamento com as

políticas culturais vigentes na época. O revés, artistas que trabalhavam de

maneira mais independente, também é mostrado – no entanto, com menos

ênfase. Assim, Bahia, por exemplo pode ser tomado para pensar como esses

depoimentos, ainda que introduzam a um clima da arte no estado, representa

apenas uma parte desse ambiente.

O primeiro depoimento do filme é de Carybé – artista argentino radicado

na Bahia e um dos principais divulgadores nas artes do cotidiano e herança

afrobrasileiros para fora do estado. No filme, Carybé justifica que escolheu a

Bahia para pintar devido a sua diferente e abundante a luz. O povo, a

paisagem, o mar – temas recorrentes em suas obras – também foram fatores

primordiais pela sua adoção à Bahia. Conforme depoimento, o artista afirma

que a Bahia tem uma plasticidade que lhe é muito particular e que isso pode

ser inferido pela forma como pintura e música produzidas na Bahia tem

coincidências em seus conteúdos e formas. Carybé defenda a ideia de que

os artistas baianos estariam envoltos numa mística decorrente do espaço que

é composto por arquiteturas, ritmos e luzes especiais.

Quando questionado sobre sua aproximação com o candomblé, o

artista argumenta que os seus contatos iniciais foram com a intenção de

conhecer mais a religiosidade afrobrasileira e depois houve uma ligação mais

litúrgica. Vale lembrar que Carybé é um dos Obás de Xangô, no terreiro Ilê

Axé Opó Afonjá, um título de honra conferido apenas a homens de respeito

que contribuem para a salvaguarda e difusão do candomblé. Apesar de

considerar que há uma contradição entre sua origem geográfica e a cultura

religiosa que encontrou aqui, o artista fala em mudança de pensamentos e

em conflitos permanentes de ideias, que sempre acontecerão, mas que é

possível de conviver. Enquanto fala sobre o assunto, Carybé desenha a

figura de três homens com grande chapéu manipulando um carvão.

32

Fig. 2 - Frame do filme Bahia, por exemplo em que Carybé desenha

Uma das partes mais interessantes da entrevista de Carybé no filme é

quando questionado o motivo de não aderir ao Abstracionismo. ―Vim à Bahia

e nasci na América do Sul. Para mim, o continente menos abstrato possível,

não é um lugar bitolado. Aqui é um pouco anárquico. O abstracionismo é uma

coisa intelectual, super cerebral. Não coincide com nossa vida aqui, com o

que nos rodeia, com o que vemos e comemos‖. Voltaremos a essa discussão

posteriormente.

Carybé ressalta o quanto a cultura negra e suas dimensões religiosa,

plástica e audiovisual foram fatores preponderantes para sua vinda à Bahia.

Segundo ele, essa região é ―um cadinho da América do Sul onde se funde

tudo‖. O artista também reafirma como a mestiçagem atribuiu potência e

singularidade ao povo baiano.

Antes do próximo depoimento, Rex Schindler registra o processo de

composição de uma obra do artista alemão Hansen Bahia, além de utilizar

um arsenal de imagens que retratam as regiões do Abaeté e de Itapuã, locais

que foram consagrados no cancioneiro musical da Bahia, tendo Dorival

Caymmi como uma espécie de arauto, sendo mostrado tocando violão junto a

pescadores nesse trecho da película.

33

Fig.3 - Frame de Bahia, por exemplo com Dorival Caymmi

Outro artista ouvido no filme é o sergipano radicado em Salvador,

Jenner Augusto. Ele começa sua entrevista falando da vinda para a cidade e

da desvalorização da profissão de professora – cargo ocupado por sua mãe.

Jenner é mostrado pintando no bairro de Alagados, uma região periférica de

Salvador, erigida em palafitas sobre no mar. O artista afirma que gosta de

pintar temas que estejam relacionados ao povo e que necessitem de contato

com as pessoas. Conforme relato no filme, Jenner afirma que o espaço ao

redor traz comoção ao pintor.

Genaro de Carvalho, artista baiano e investigador da tapeçaria moderna,

em seu depoimento no filme, propõe um intercâmbio entre as linguagens

artísticas. Para ele, a arte contemporânea dispõe de diversos meios para

realizar uma obra. Assim, relata que se opõe à ortodoxia da tapeçaria. É

possível combinar diversos suportes e construir uma técnica que não seja

pura. Afirma que muitos fatores operam para realização das suas obras, mas

a Bahia influencia através do clima, da cor, das pessoas, das tradições. Traz

inspiração e motivação.

Já o artista Carlos Bastos assinala que vivendo e nascendo na Bahia é

influencia pelo Barroco local. Na película, defende que sua principal

investigação é uma tentativa de dar uma nova roupagem moderna ao

Barroco. ―Sempre o sentimento é pensando no Barroco‖. Para além dessa

investigação, Carlos Bastos também expõe que já pintou cenas do século

34

XIX do porto de Salvador. Retratava o comércio na região da Cidade Baixa

soteropolitana, tentando realizar um instantâneo da época.

Bahia, por exemplo também conta com entrevista ao escritor baiano

Jorge Amado. Ele explica que vive na Bahia porque gosta, preferindo morar

em Salvador do que em qualquer outra cidade brasileira. O motivo disso é

que a capital da Bahia é uma das raras cidade que foram feitas para as

pessoas viverem. Amado analisa que as cidades são campos de trabalho e

de luta, em que o objetivo maior das pessoas é ganhar dinheiro. ―A existência

se transforma numa corrida em busca de dinheiro e posição social‖. Apesar

de ter essa visão de Salvador como um lugar ideal para viver, Jorge afirma

que o local está crescendo muito. Ainda assim, continuava gostando da

cidade porque percebia como a sua vida e obra estava fundidas com o

cotidiano de Salvador. Para ele, a Bahia é tem as raízes do humanismo e é

exatamente nesse local que sua obra e sua visão pessoal estão assentadas.

Quando perguntando sobre a arte baiana, ele afirma que as criações

locais possuem como originalidade o fato de que elas decorrerem do povo.

Jorge defende que a emergência das artes na Bahia se dão a partir de uma

esfera popular, sendo essa a característica mais importa das artes

produzidas no estado.

Assim como Carybé, retratado anteriormente no filme, Jorge Amado

também diz que é um Obá de Xangô. Analisa que a Bahia tem duas

realidades: uma que está vinculada à sua posição de Terceiro Mundo, que

estava falando cada vez mais dentro de uma dimensão sociopolítica global. E

outra é a cultura rica feita nessas terras graças à mestiçagem. A mestiçagem,

para Jorge, é uma solução que a Bahia dá para o mundo – já que póe em

questão o racismo e a superioridade/pureza das raças.

Quando questionado sobre as visões políticas e a questão da

religiosidade, Jorge Amado se coloca como materialista – apontando que

tudo que é místico tem a tendência de limitar de certa maneira. Contudo, se

opõe à qualquer absolutismo dogmático, ratificando que em alguns

momentos a força decorrência de um universo místico pode ser um elemento

revolucionário relevante. Quanto à temática de suas obras, Amado fala que

abordou elementos da vida popular baiana, que é cheia de potencialidades.

Diz que tentou retratar não somente Salvador, mas também a região sul do

35

estado da Bahia, lugar onde nasceu e que tem uma cultura vinculada com as

atividades do campo.

Inscrevendo uma visão para o futuro, o escritor ressalta que é preciso

impedir uma quebra entre o que se fez naquela época, oriundo da criação

popular, e o que se construirá depois. Ressaltando que é preciso

salvaguardar o que havia sido realizado até então para que não houvesse

nenhum tipo de esquecimento.

Outro artista baiano que é ouvido no filme é Mario Cravo. Inicialmente,

ele aponta que o artista representa um dos valores primordiais na sociedade.

A função do artista, na visão dele, é especular as questões sociais através de

uma linguagem básica que é a criação. No entanto, o artistas também vive

problemas e situações de conflito. Defende que o artista necessita dialogar

com a sociedade, as pessoas e o tempo para que seja mais socialmente

integrante.

Cravo indica que o artista não nasce porque foi gerado biologicamente

num lugar, para ele, o nascer é o encontro da arte e da cultura com o lugar

que lhe é caro, que move à criação. Apresenta que o artista é um político

através da sua prática profissional. A palavra política do artista implica numa

ação política do artista. A ação política do artista é através da sua linguagem

específica. O artista baiano apregoa que a arte é uma manifestação

espontânea. Além disso, diz que a ação racional e dirigida faz com que se

perca uma parte da potência criativa. Para finalizar, Cravo reafirma que todos

os povos possuem sua arte política comandada pelo estado e quase sempre

essa arte encomendada pelo estado é de ―quinta categoria‖.

O cineasta baiano Glauber Rocha também é entrevistado na parte final

do filme. Segundo ele, a Bahia tem uma projeção internacional tão grande

quanto o Brasil. Quando se refere ao filme Terra em transe, obra que não foi

gravada em terras baianas, ele diz que ainda assim ele tem seu cinema

vinculado com o cenário da Bahia.

Quando indagado sobre a influência do Barroquismo em sua obra,

Glauber expõe que ele está presente, no entanto, não necessariamente de

forma deliberada, mas está ―impregnado em seu temperamento‖. Para o

cineasta, a musica baiana é de certa forma barroca também, haja vista a sua

36

complexidade. O artista baiano cita uma espécie de musica ―barroco

tropicalista‖.

Glauber Rocha afirma que as linhas de arte geométrica e arte abstrata

em São Paulo e no Rio de Janeiro entendem a arte baiana como uma arte

acadêmica, uma arte do passado, mas não compreendem como que essa

forma de fazer é específica da Bahia, ainda que as artes produzidas no

estado seja uma criação profundamente brasileira, revelando um outro

aspecto da cultura brasileira.

Além desses artistas que deram depoimentos para o filme Bahia, por

exemplo um conjunto de outras pessoas que participavam do universo

artístico do estado foram mostradas no filme. Hansen Bahia, Mestre Didi, Lia

Robatto, Gal Costa, além de cenas da I Bienal da Bahia podem ser vistas no

documentário.

Hansen Bahia foi um artista alemão naturalizado brasileiro que se

radicou na Bahia. Foi professor da Escola de Belas Artes da Universidade

Federal da Bahia. Seu trabalho tinha como principal universo de investigação

as representações das culturas negras, tendo ilustrado obras de Jorge

Amado e o poema Navio negreiro do poeta Castro Alves.

Fig. 4 - Hansen Bahia e sua esposa Ilse Hansen trabalhando em painel que

retrata cena cotidiana da Bahia

37

Mestre Didi era um artista visual e sacerdote do candomblé. É

interessante notar que ele era tomado na época do filme como um artesão

negro. Sua produção, portanto, não estava nos circuitos das artes baianas,

sendo que seu reconhecimento só viria a acontecer pelo mercado de arte

décadas mais tarde. O trabalho de Mestre Didi é uma meticulosa composição

de artefatos rituais relacionados ao candomblé. Uma espécie de inscrição

das mitologias em estruturas e suportes escultóricos. Mestre Didi é um único

artista negro mostrado em Bahia, por exemplo, ainda assim em um insert

sem que seja dado espaço para sua fala.

Fig. 5 - Mestre Didi em seus ateliê entre os seus “orikis visuais”

Além desses, um trecho significativo do filme é dedicado à

apresentação da obra da coereógrafa Lia Robatto. A participação do trabalho

dela no filme se articula como uma maneira de mostrar a dança se

relacionando com o campo das artes visuais. Através de objetos em

interação com coordenações corporais de 4 dançarinas, é composto um balé

visual para as lentes de Rex Schindler. O espaço utilizado pelo grupo de

dança é a praça do Solar Do Unhão, antigo engenho que foi projetado por

Lina Bo Bardi para ter encontros, feiras, festas e performances. Lia Robatto

representa o impacto da dança moderna na Bahia, já que foi assistente e

discípula da coreográfa polonesa Yanka Rudzka, uma das fundadoras da

escola de Dança da UFBA. Rudzka, inclusive, é responsável pela vinda de

Lia Robatto para a Bahia.

38

Fig. 6 - Coreografia de Lia Robatto cinematografada em Bahia, por exemplo

Um pequeno videoclipe com Gal Costa também faz parte do conteúdo

de Bahia, por exemplo. A cantora, uma das integrantes da Tropicália,

apresenta a música Divino, maravilhoso composta por Caetano Veloso e

Gilberto Gil. Gal e Glauber representam um contraponto dentro do filme, haja

vista que possuíam posições mais radicais e de desobediência aos sistemas

políticos daquele período – ainda que ambos tenham logrado em êxito dentro

do mercado artístico brasileiro.

Outras cenas interessante de serem citadas são as atividades da II

Bienal da Bahia de 1968, naquele contexto formada por artista que tinham

como perspectiva uma posição de questionamento não somente às posições

de repressão política mas também aos próprios modos e suportes de fazer

artes visuais na Bahia. Falaremos mais sobre a Bienal da Bahia no capítulo

seguinte.

De maneira geral, Bahia, por exemplo é um rico material que registra o

cenário das artes do estado. No entanto, é necessário analisar a posição que

a maioria dos artistas que são entrevistados defendem em suas falas. Antes

de mais nada, deve ser pontuado como existe uma vinculação dos artistas a

projetos mais institucionais tanto do estado da Bahia quanto do cenário

artístico mais hegemônico.

Artistas como Carybé, Jorge Amado e Dorival Caymmi, por exemplo,

contribuíram muito para a imagem artística da Bahia fora do estado, além de

39

fazerem um reforço da imagem mais aventada de baianidade, como

discutimos anteriormente. Ou seja, o filme reafirma um mercado de arte

naquele momento, apostando em artistas que tinham uma visão específica

sobre a Bahia. A maioria dos artistas exibidos no filme também serão

utilizadas como máquina do governo baiano para a venda externamente da

imagem da Bahia paradisíaca, negra e sensual. Jenner Augusto ilustrou livro

de Jorge Amado, além de retratar o cotidiano de cidades do Recôncavo da

Bahia. Genaro de Carvalho no filme pinta uma modela negra nua em uma

das suas obras.

Fig. 7 - Genaro de Carvalho pinta modelo viva em trecho do filme

Além dessas discussões, é importante pontuar um outro debate

recorrente no filme: a oposição entre arte abstrata e a arte que se produzia

na Bahia. Carybé aponta que o fato da Bahia ter uma potência de imagens

muito grande e diversa, é impossível se produzir algo que tenha uma

característica que obedeça puramente à princípios geométricos e analíticos.

Ou seja, a condição de contrastes na Bahia, impediria que os artistas

passasem ilesos aos contextos culturais da época e isso fosse abstraído da

arte para que fosse produzido uma outra temática mais abstrata. Mario Cravo

também parece defender essa posição ao colocar que a interação social é

um dos princípios do fazer artística. Glauber Rocha ao falar sobre o Barroco

também sinaliza que a visão que se tem da arte baiana ainda é considerada

conservadora no sudeste, exatamente por se opor a esse modelo de arte que

40

se fazia nessa outra região do país. Apesar disso, vale lembrar que os

artistas premiados na Bienal da Bahia, realizada em 1968, são exatamente

Lygia Clark e Helio Oiticica, que produziam obras que impactadas por

referências neo-concretas e geométricas.

Toda essa disputa de construção de conceitos, imagens, utopias e

tentativas de políticas culturais para a região Nordeste e, mais

especificamente, a Bahia comporam cenários que contribuíram para a

criação de estruturas específicas e heterotópicas. Uma maneira de identificar

isso é como esses ideais contribuíram para erigir de uma ―cultura colecionista‖

na Bahia, em que artistas eram elencados para ocupar acervos construídos,

em boa parte, para defender uma forma de observar, preservar e inscrever a

arte em contextos socioculturais e temporais. Há um conjunto de iniciativas

que nos fazem pensar como o avançar das discussões sobre os projetos

civilizatórios para o Nordeste e a Bahia desembocam em políticas culturais -

como a criação de museus e escolas de arte. As nuances das consequências

dessas utopias serão dissecadas mais especificamente no próximo capítulo.

41

CAPÍTULO II – O LEITO DO RIO: COLEÇÕES, COLECIONADORES E

POLÍTICAS DE LEGITIMAÇÃO DA ARTE NA BAHIA

O ato de reunir coisas, preservá-las e não necessariamente exibí-las

publicamente definem a prática do colecionismo. Compreendida como uma

ação presente em diversas culturas do mundo, revelando características

distintas, quer na natureza da coleção, quer nos propósitos dos seus

criadores. A prática de colecionamento pode ser considerada universal. Em

todas as culturas humanas, os indivíduos formam coleções, sejam

particulares, sejam coletivas. (ABREU, 2005, p. 103).

No contexto da arte baiana encontramos, em diferentes épocas,

importantes protagonistas que reunirão diversos acervos de arte. A nossa

intenção é analisar como essas coleções, agem e impactam nas políticas de

arte no contexto social do estado. Para tal empreitada, inicialmente, é

necessário aferir algumas questões teóricas que nos ajudarão a desvelar um

pouco a natureza desse fenômeno.

Coleção, colecionadores e a experiência do colecionismo são

conteúdos que motivaram reflexões de importantes teóricos como Walter

Benjamin, Krzystof Pomian, Philipp Blom e Jean Baudrillard. Esses autores

propõem a análise de tal fenômeno em diferentes perspectivas históricas

investigando a complexidade dos temas a partir de seus pontos de vistas.

No seu ensaio O colecionador, Benjamin compreende este como

alguém que ―[...]reúne as coisas que são afins; consegue, deste modo,

informar a respeito das coisas através de suas afinidades ou de sucessão no

tempo.‖ (BENJAMIN, 2006, p. 245). Seu acervo torna-se uma espécie de

enciclopédia mágica, que em cada peça da coleção abarca um parte do

mundo.

Para Benjamin, o ato de colecionar promove um desligamento do objeto

de suas funções de origem, inserindo-o em um novo ―sistema histórico‖

criado especialmente para comportá-lo: a coleção. Tal deslocamento instaura

em cada item da coleção uma aura sagrada. Onde o olhar do colecionador é

quem define e reconhece a sua escolha e posteriormente a sua aquisição.

Por não ser um escolha arbitrária cada objeto fala por si e mesmo despido da

sua função original, se torna valioso na sua unicidade dentro do novo

42

contexto que o constitui no grupo. Como se cada elemento funcionasse na

criação de uma sintática e que definirá um sistema de significados,

constituindo assim essa espécie de enciclopédia mágica que nos fala o autor.

Para o historiador Pomian Krzysztof, que dirige o comité científico do

Museu da Europa 2 , sediado na cidade de Bruxelas, os objetos de uma

coleção desempenha uma função de ―intermediários entre os espectadores e

um mundo visível de que falam os mitos e as histórias‖ (POMIAN, 1984, p.

67). Ele também concorda com as ideias de Benjamin em relação a

transformação e a perda do valor de uso que o objeto sofre quando é inserido

em uma coleção, afirmando que tal perda do valor de uso é que o legitimaria

o seu status de objeto de coleção. As peças de uma coleção devem ser

mantidas, temporariamente ou definitivamente, fora de qualquer circuito de

agenciamento estético. Sendo assim os objetos perderiam o seu valor e uso

original se transformando em preciosidades cuidadosamente conservadas

para o futuro.

Desde os primórdios da produção de imagens no mundo, o humano tem

projetado o invisível no visível, a partir da capacidade de relacionar-se com o

ausente. Pomian propõe uma divisão no interior do visível, distinguindo

coisas e semióforos. As coisas são objetos úteis que ajudam de forma prática

a vida das pessoas. Pomian define os semióforos como objetos que não têm

utilidade prática, contudo são representações do invisível, não sendo mais

utilizados são apenas apresentados e expostos ao olhar. O valor dos objetos

de uma coleção reside na sua inutilidade enquanto artefato, objetos

descolados da sua função cotidiana mas carregados de significado que

representam o que é invisível ou o que está ausente quando os mesmos são

colocados exposição. Tornam preciosidades, objetos que se sacralizam

quando apresentados em um contexto expositivo.

Philipp Blom destaca que o colecionador, através dos objetos do seu

acervo, deseja a sua imortalidade. Tal desejo revela que seu projeto de vida,

marcado pela importância do seu feito, deva ser legitimado por gerações

futuras ―o colecionador pode continuar a viver depois que sua própria vida

2 Em 1997, o Museu da Europa ainda era um projeto lançado por um pequeno grupo de

historiadores e promotores culturais da sociedade civil. Com a ambição de apresentar aos europeus as raízes da sua civilização comum.

43

termina; e a coleção torna-se um baluarte contra a mortalidade‖ (BLOM, 2003,

p. 177). Ainda segundo o autor

Cada coleção é um teatro da memória, uma dramatização e uma mise-en- scène de passados pessoais e coletivos, de uma infância relembrada e da lembrança após a morte. Ela garante a presença dessas lembranças por meio dos objetos que as evocam. É mais do que uma presença simbólica: é uma transubstanciação. O mundo além do que podemos focar está dentro de nós e através delas, e por intermédio da comunhão com a coleção é possível comungar com ele e se tornar parte dele. (BLOM, 2003, p. 219).

Essa ideia, reflete um importante desejo do colecionador de estabelecer

uma relação com o passado e sua memória, salvaguardando uma série de

objetos, dado a sua importância histórica ou outros sentidos que a coleção

lhe afere.

Através de uma viés sociológico, Jean Baudrillard, em seu texto O

sistema dos objetos, realiza um estudo sobre o comportamento dos

colecionadores e suas coleções. Para o autor as coisas têm duas funções:

serem utilizadas ou serem possuídas. A utilização é uma mediação prática

que não é a posse das coisas. A posse de algo não se relaciona com o

utilização do mesmo, não se possui apenas pela utilização e sim a um objeto

abstraído de sua função e relacionado ao indivíduo. Baudrillard exemplifica

com a utilização de um refrigerador com o fim de refrigeração, e argumenta:

―trata-se de uma mediação prática: não se trata de um objeto, mas de um

refrigerador. Nesta medida não o possuo. A posse jamais é a de um utensílio,

pois este me devolve ao mundo [...]‖ (BAUDRILLARD, 2004, p. 94).

A complexa relação que se constrói entre os seres humanos e as coisas

é problematizada por Baudrillard. O autor nos interroga sobre de que forma

os valores são atribuídos aos objetos e como possuí-los representaria um

sentimento de profunda conquista emocional. Ele classifica as coisas em

duas funções: para serem utilizadas ou serem possuídas. A utilização das

coisas e da posse das mesmas são bastante distintas. Para as coisas se

tornarem objetos de coleção têm que serem privadas de sua utilização,

sacralizadas pela ação do colecionador e a sua posse e aquisição uma

imensa satisfação racional.

A breve discursão apresentada anteriormente oferece subsídios para

aprofundarmos o tema do colecionismo na Bahia como uma prática

recorrente em diferentes momentos históricos e como essa prática produzem

44

impactos na vida e nas políticas culturais no estado. As abordagens sobre o

tema apresentados pelos autores acima citados nos convida a refletir os

diferentes contextos e sentidos da prática do colecionismo na Bahia. Em

nossa experiência local, a partir da formação de coleções baianas,

verificamos o desejo de imortalidades de seus autores, a fim da permanência

de um legado cultural intimamente associado com as suas história de vida,

suas ideologias e políticas frente ao contexto social. A coleção se torna um

mundo, apresentando normas e modelos a serem seguidos a partir de um

ponto de vista do seu autor. Soma-se a isso, a ideia da coleção como meio

de sacralização ou não de valores culturais que devem ser servir como

instrumental nas praticas pedagógicas.

Na experiência baiana, podemos indicar que muitas das coleções -

privadas e públicas - foram criadas com o intuito de colaborar com a

formação e o desenvolvimento de um espaço cultural no Estado. Tal espaço,

no decorrer do final do século XIX até meados do século XX, promove

legitimações de um parte da produção artística assistidas principalmente

pelas experiências de coleções e colecionadores. Todavia uma outra parte

dessa produção se manteve fora do foco dos interesses das ―coleções

oficiais‖ e são esses fenômenos que nos motivaram a uma análise histórica

da arte baiana, a fim de investigar poéticas artísticas que se mantiveram a

margem.

Na Bahia oitocentista, assim como em outros estados do Brasil, é

recorrente o desejo de viajar para a Europa para adquirir acervos de objetos

artísticos do passado, colecioná-los e exibí-los coletivamente. Tais práticas

revelam estratégias pessoais de construção de uma espécie de civilidade

clássica ocidental no chamado Novo Mundo, que deveria ser promovida a fim

de afugentar uma deficiência cultural local.

Na cidade de Salvador, no século XIX, encontramos alguns exemplos

de pessoas da alta sociedade que fundam as primeiras coleções privadas

que darão início aos acervos de importantes museus públicos e privados do

estado. Em 1859, é fundada na cidade de Salvador a Sociedade de Belas

Artes, formada por um grupo de importantes nomes da vida baiana, oriundos

da classes média e alta - professores, artistas, intelectuais e profissionais

liberais amantes da letras e das artes, a fim de promover um

45

desenvolvimento cultura através da prática do colecionismo.

objectivo de despertar o gosto pelas manifestações literárias, elevando moralmente a classe dos artistas e, ainda, dando a oportunidade, oferecendo exposições anuais. Mais tarde, a Sociedade de Belas Artes convidou as pessoas que quisessem vender quadros, esboços, desenhos, gravuras ou outras quaisquer peças de arte, para organização da sua biblioteca (QUIRINO, 1911, p. 105-106)

Tal elite intelectual fundadora da Sociedade era composta pelo Dr.

Jonathas Abbott (presidente da Sociedade e o maior colecionador de arte da

época), o Dr. Antônio José Alves (pai de Castro Alves, também um grande

colecionador), o Dr. João José Barbosa de Oliveira (pai de Rui Barbosa), o

dramaturgo Agrário de Meneses, o poeta Muniz Barreto, o diplomata Gaspar

José Lisboa e o pintor Rodrigues Nunes (OLIVEIRA, 2013).

Tais coleções expressam a singularidades dos objetos como obras de

arte, pertencente ao passado do ―mundo dito civilizado‖, que uma vez

apresentados para um público restrito asseguraria um processo pedagógico

de transformação cultural na cidade. Sendo assim, as possibilidades de

aprendizagem que tais acervos poderiam deflagrar nesses grupos sociais,

que eram formados majoritariamente pela elite econômica e cultural, eram

imprescindíveis para sua formação cultural.

Ensinamentos sobre o que é ser civilizado nos trópicos fomentou o

início de algumas coleções de arte na Bahia. Motivado por um espírito de

uma época que revelou um desenvolvimento internacional do colecionismo

artístico e pela pretensão de uma ascensão social e reconhecimento público,

o imigrante Inglês de origem humilde Jonathas Abbott inaugura a sua prática

de colecionador ao adquirir sua primeira peça na cidade italiana de Palermo

no ano de 1831. Trata-se de uma cópia do pintor Correggio – a Cabeça de

Cristo agonizando, atualmente no acervo do Museu de Arte da Bahia.

Jonathas Abbott constitui a sua famosa coleção como um projeto de

vida, sendo reflexo de suas inquietações. Uma coleção heterogênica que

combina obras europeias com obras da conhecida Escola Baiana de Pintura.

Diretor do Museu de Arte da Bahia de 1933 a 1942, em seguida ingressará

como professor de estética da Universidade do Estado da Bahia e escreve

sobre o conjunto extremamente desigual, de caráter eclético e heterogênico.

como um todo, extremamente desigual, eclética, sem uma unidade de obras, objetos, temáticas, artistas e/ou linguagem poética, pois é

46

composta de obras e artistas provenientes de distintas linguagens pictóricas, cujas temáticas também são extremamente ecléticas – incluindo a representação dos principais artistas da Escola Baiana de Pintura. Contudo, ressaltamos que o ecletismo das coleções no século XIX eram uma especificidade do colecionismo na época. A variedade e a heterogeneidade que regem uma coleção são justificadas pela lógica que o colecionador lhe outorga. Para Abbott, os objetos (fossem obras de arte ou objetos ―quaisquer‖) tinham caráter universal e didático com atuação na consciência presente. (VALLADARES, 1951, p. 6)

Fig. 8 - Jonathas Abbott. Pintura de João Lopes Rodrigues, acervo MAB.

Em seu diário de viagem à Europa escrito entre 1830 e 1832, ele narra

o encontro com a cultura europeia, especialmente com a francesa e italiana.

Sobre Roma, ele narra o impacto como o grande acervo artístico que

combinava tempos históricos diferentes, uma cidade relíquia mas

completamente viva e não cenográfica, diz:

Vi o soberbo castelo de Sant‘Angelo, e passei à basílica de São Pedro. Vista mais nobre não pode haver, as belas fontes, as colunatas de rico e antigo mármore, ágata e pórfiro, o mosaico mais delicado exato, as estátuas colossais de bronze e mármore, o altar de pontífices, tudo imortalizado por gênios também imortais; em suma, é escusado tentar uma descrição quando essa força será pobre... apesar de estar ali por quatro horas esbugalhando o olho, não vi ainda a vigésima parte. [...] Subi o soberbo capitólio e parei diante da estátua equestre de Marco Aurélio, menos para examinar essa soberba relíquia que para refletir que meus pés profanavam terreno sagrado. Quantos heróis endeusados ali receberam os

47

seus louros? Quantos monarcas cativos ali aumentaram o triunfo do vencedor! [...] Eu ouço os quatro milhões de romanos enviar aos céus os seus ardentes votos, estou vendo as mães entregarem seus filhos, suas joias para a salvação da pátria; César, Bruto, Régulo e mil outros, eu os vejo e estou convosco no capitólio. Ah! minha alma não cabe no seu cárcere estreito, o coração me bate forte e as lágrimas me impedem de ver o que me rodeia [...]. (GALVÃO, 2007, p. 504)

A impressão da cidade sobre as percepções do jovem inglês é fundante

para definir o seu gosto estético e como diferentes tempos e estilísticas

distintas poderiam confluir para uma unidade. Tal compreensão irá informar

as aquisições da sua coleção marcadamente heterogênica. A viagem para o

―inglês pobre‖, como Gilberto Freyre (2000) o definiu, torna-se primordial para

sua formação e das suas escolhas. Sendo um caminho de possibilidade de

trocas na sua formação cultural, como se refere Norbert Elias ―as pessoas

colecionam para se civilizar‖ (ELIAS, 1995, p. 85). Colecionar é um ato de

civilidade e Abbott não estava só nesse projeto individual que se estende

pelos anos e séculos seguintes. Aliás, as transformações de uma sociedade,

as mudanças educacionais e do bem viver não são produzidas

individualmente, elas se relacionam com outros atos de sujeitos singulares

que se agregam.

A coleção de Abbot é vista por Paulo Knauss como um lugar de contato

entre a arte europeia e a produção da chamada Escola Baiana de Pintura.

Além de funcionar com um espaço de legitimação de valores artísticos que

iram informar e validar o pequeno mercado de arte que se inaugura.

Entre cópias e originais atribuídos a mestres ou a escolas de grandes como Tintoretto, Corregio, Anibal Carraci, Caravagio, Boucher entre outros, juntam-se as obras dos mais destacados artistas da Bahia, que constituíam a maioria do acervo. (KNAUSS, 2001, p. 27)

O acervo de Abbott formada por esse encontro entre arte europeia de

diferentes períodos artísticos e a arte baiana na transição do estilo Barroco

ao Neoclássico representa em seu conjunto a diversidade de mentalidades

em Salvador no sec. XIX. Isso influenciará na construção de um juízo de

gosto marcadamente eclético, referenciado pela cultura visual europeia e

também consagrando a arte dos artistas locais, fomentando um pequeno

mercado e definindo modelos pictóricos a serem seguidos.

48

Nesta perspectiva, podemos afirmar que a coleção Abbott, criada em

um período em que não havia nenhum museu em Salvador, desempenha um

protagonismo inaugural, contribuindo para a consolidação de valores

artísticos europeus na sociedade baiana. Servindo dessa maneira, como um

parâmetro para se pensar a arte produzida no Estado. Ou seja, esse

fenômeno pode também nos ajudar a compreender como a Academia de

Belas Artes da Bahia no sec. XIX, e, assim como, a própria construção das

bases do modernismo baiano nas primeiras décadas do sec. XX, serão

subordinados a essa referência externa oriunda de uma duradoura ideologia

colonialista europeia, não apenas lusitana.

Salvador vivia um momento de grandes transformações urbanas com a

chegada da iluminação publica à gás, o telégrafo e grandes investimentos na

área dos transportes e saneamento. Em 1860, a cidade seria reconhecida

como o maior pólo nacional do setor têxtil, caracterizando um grande

desenvolvimento no setor industrial e, consequentemente, a criação de

ferrovias para o escoamento da produção. As transformações no mundo do

trabalho marcam esse momento histórico de uma sociedade que busca se

adequar às exigências de um sistema capitalista. A inauguração do Elevador

Lacerda em 1873 marca uma maior mobilidade urbana com a ligação de

duas regiões: a cidade baixa e cidade alta.

Katia Mattoso, em seu livro Bahia: A Cidade Do Salvador e seu

mercado no século XIX, analisa a estratificação social local por volta de 1800

e reconhece a existência de 4 grupos distintos: o primeiro formado pela ―elite‖,

composta de altos funcionários da admiração real, militares de altas patentes,

alto clero secular e regular, grandes mercadores, grandes proprietários rurais;

o segundo identificado com as camadas médias, diferenciadas por níveis

inferiores (funcionários) ou por níveis de renda (comerciantes e lavradores),

composto de proprietários, profissionais liberais e alguns mestres de ofícios

nobres; o terceiro composto de funcionários subalternos da administração

real, militares, profissionais liberais secundários, oficiais mecânicos,

pequenos comerciantes ambulantes, pescadores, marinheiros do Recôncavo,

condutores de gênero alimentícios e fornecedores de pescados à população;

e quarto grupo onde encontravam os escravos, mendigos e vagabundos

49

(MATTOSO, 1978).

A construção de um livre comércio de circulação de mercadorias na

ordem do liberalismo econômico que se instala no Brasil e na Bahia no

século XIX, será fundamental para o crescimento da prática do colecionismo.

Tal contexto fomenta a criação de instituições artísticas que tinha como

função a formação de artistas ou artesãos, especializados na produção de

objetos artísticos. Essa produção irá responder às necessidades de um

nascente mercado de colecionadores de arte.

Na segunda metade do século XIX, duas importantes instituições de

arte são fundadas na cidade de Salvador: o Liceu de Artes e Ofícios em 1872

e posteriormente a Academia de Belas Artes da Bahia (ABAB) em 18773.

A partir dessa fundação, foram o Liceu de Artes e Ofícios e Academia de Belas Artes que passaram a ditar os padrões estéticos que vigoraram durante longo período na Bahia, especialmente em Salvador. A República, que transformaria a Academia em Escola de Belas Artes, manteria, por muitos anos ainda, os mesmos padrões estéticos (FLEXOR, 2011, p. 4)

O Liceu irá oferecer um formação profissional para uma significativo

números de trabalhadores que buscava uma maior qualificação para sua

inserção no mundo do trabalho em uma época de profundas transformações

sociais. A historiadora Maria das Graças de Andrade Leal, em sua análise

afirma sobre a clientela atingida pelas duas instituições:

[...] a academia fora criada para atender a uma clientela de elite, o que sinalizava a influência de tornar-se uma escola superior, enquanto o Liceu era destinado à atender as classes populares, enquanto escola do povo (LEAL, 1995, p.182)

Em estudos, a pesquisadora Viviane Rummler (2008) comprova através

da leitura de atas que a Academia de Belas Artes da Bahia, desde sua

fundação gratificava algum alunos com abonos de matrículas. Diversas

políticas foram implantadas para a diversificação social na Academia, desde

eventuais prestações de serviços até bolsas de gratuidade para pessoas que

3 Duas dissertações de mestrado merecem destaques: uma sobre o Liceu de Maria das

Graças de Andrade Leal (1996), intitulada: A arte de ter um ofício: Liceu de Artes e Ofícios da Bahia 1872 – 1996, a outra Vivianne Rummler da Silva (2008), intitulada: Pintores fundadores da Academia de Belas Artes da Bahia: João Francisco Lopes Rodrigues (1825-1893) e Miguel Navarro y Cañizares (1834-1913)

50

comprovassem pobreza.

As particularidades dessas duas instituições demarcam um momento

inicial da profissionalização de uma cadeia produtiva nas artes que irá

atender a um incipiente mercado local. A Academia de Belas Artes da Bahia,

mesmo oferecendo bolsas e descontos para alguns alunos menos

favorecidos, não omite as tensões dos conflitos sociais vigentes à época. Se

pegarmos a participação na ABAB do famoso aluno negro Manuel Raymundo

Querino (1851-1923), que se transformará em artista, ativista, intelectual,

professor e primeiro historiador da arte baiana, revela as tensões entre as

particularidades das duas instituições.

Fig. 9 - Retrato de Manuel Querino constante do livro Artistas Bahianos (indicações biographicas)

A história de Querino atravessa esse importante momento de

legitimação e institucionalização social das artes na Bahia. Ele ainda jovem,

ingressou no Liceu como aluno fundador do curso de desenho no ano de

1872, sob a tutela do pintor espanhol Miguel Navarro y Cañizares (1834-

1913). O mesmo que em 1877 deixará o Liceu e fundará a Academia de

Belas Artes da Bahia. Querino se transfere com estudante dos cursos de

Desenho e Arquitetura. E em 1882 se forma somente em desenho, pois ficou

impedido de prestar os exames finais em Arquitetura devido a ausência de

professor. Contudo, Maria das Graças de Andrade Leal nos chama atenção

para um dado biográfico fundamental da relação de Manuel Quirino com a

51

ABAB:

[…] Como artista, diplomado desenhista pela Academia de Belas Artes, em 1895 foi preterido ao cargo de Professor da cadeira de Desenho Linear, para a qual fora empossado o antigo colega e professor do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia Agripiniano Barros. Em requerimento à Congregação, Querino manifestou a sua frustração, sentido-se prejudicado. (LEAL, 2012, p.6.)

Com a frustrada tentativa de se tornar professor da Academia de Belas

Artes da Bahia, o professor negro de talento já reconhecido, dedicou-se ao

ensino de desenho industrial no Colégio dos Órfãos de São Joaquim e no

Liceu de Artes e Ofícios, instituições para uma clientela popular. Esse fato

nos revela que nunca foi fácil na Cidade do Salvador do século XIX a

ascensão artística e profissional de negros. Quirino continuou o seu empenho

pelo reconhecimento intelectual e profissional sendo elogiado por sua

participação em 1883 no Congresso Pedagógico do Rio de Janeiro com o

seu revolucionário plano arquitetônico Modelos de casas escolares

adaptadas ao clima do Brasil e posteriormente a publicação de sua obra

seminal Artistas Bahianos; indicações biográficas, em que escreve relatos

biográficos de artistas e operários da época4. O pesquisador baiano Luiz

Alberto Ribeiro Freire analisa diversos aspectos referente ao nosso mais

remoto texto sobre a história da arte do autor, e destaca um dado curioso

texto:

Se considerarmos o elevado grau de engajamento de Querino em prol da raça negra no Brasil, fica sem compreensão as razões porque omitiu a identificação da cor dos artistas, mesmo daqueles seus contemporâneos, que bem podia identificar. Também nos estranha a ausência de relação entre o negro e o mestiço com o trabalho artístico, já que se empenhava em provar para a sociedade brasileira a importância do negro como agente civilizador do Brasil. Tal omissão deve se justificar nas dificuldades de comprovação desses vínculos, ausência de menção documental e parca memória oral. (FREIRE. 2010, p. 532)

Os motivos justificados por Freire para tal omissão devem ser

4

Por isso hoje devemos celebrar a importante projeção histórica no século XX de protagonistas negros na Escola de Belas Artes da Bahia, professores e artistas como Juarez Paraiso, Ieda Maria, Edsoleda dos Santos entre outros.

52

considerados do ponto de vista acadêmicos - suas regras e métodos de

comprovação - contudo acreditamos que tal fato necessite de uma análise

mais aguda em relação ao contexto social à época. Sabemos hoje o quanto

foi conturbado e complexo as articulações entre a questão racial e o fim do

escravismo no Brasil. ―[...] O processo de racialização no Brasil no final do

século XIX, apesar de essencialmente velado, foi fundamental para o

estabelecimento de critérios diferenciados de cidadania e para a construção

de lugares sociais quantitativamente distintos.[...]‖ (ALBUQUERQUE. 2009, P.

242)

Mesmo sendo o nosso primeiro historiador da arte, Querino encontrou

muitas dificuldades para ser legitimado e interferir com suas ideias no

sistema artístico que se constrói na Bahia. Sua obra, devido a parca

documentação escrita e rica de fontes orais, muitas vezes desconsideradas

pelos os historiadores estrangeiros como Carlos Ott, passou durante muito

tempo não sendo reconhecida pela historiografia oficial. Contudo o seu

trabalho de registro de uma importante produção já se declarava como uma

homenagem a classe social a qual pertence (QUERINO, 1911).

A Bahia entre 1912 a 1924, anos que atravessaram os governos de J. J.

Seabra5, floresceu uma campanha ideológica desenvolvimentista, em que

ideias de progresso se refletem em profundas transformações urbanas. Muito

influenciados pelo pensamento do Barão Haussmann – ―o artista demolidor‖

que realizou a reforma urbana em Paris. A historiadora Maria Helena Ochi

Flexor se dedicou a pesquisar os impactos de tal ideologia de modernização

sobre os patrimônio arquitetônico na cidade de Salvador e afirma:

[...] A derrubada da Sé mostra que não havia qualquer preocupação com os monumentos tradicionais - como aliás o próprio Haussmann não a teve - e vários monumentos foram destruídos ou mutilados. Foram cortados os Conventos de São Bento e das Mercês, a igreja do Rosário de João Pereira, e todo o lado de terra da atual avenida Sete de Setembro, a principal obra de Seabra. E foram derrubadas, e mudadas de lugar, a Igreja de São Pedro (velho), da Ajuda, estação do Plano Inclinado, casas da rua Chile e da Misericórdia, edifícios da Praça Castro Alves, incluindo, posteriormente o Teatro São João.[...] (FLEXOR, 1997, s/p)

5 J. J. Seabra foi governador da Bahia em dois períodos: a primeira gestão de 1912-1916; e

a segunda gestão de 1920-1924.

53

Nesse contexto é que nas primeiras décadas do século XX grande parte

da produção e distribuição da arte baiana se relacionava basicamente em

torno da Academia de Belas Artes da Bahia. O seu projeto pedagógico se

destaca em relação a outros estados do Nordeste como nos conta o

pesquisador Gabriel Bechara Filho em sua tese intitulada A construção do

campo artístico na Bahia e Paraíba de 1930-19596.

A arte Baiana, até os anos 40, gravitava em torno da Escola de Belas Artes. Era uma situação semelhante à que ocorria em Porto Alegre, apesar das singularidades próprias de cada região e de sua história. A Bahia conseguira, ainda no século XIX, montar um projeto pedagógico voltado para a arte que nenhum outro estado do Nordeste alcançara até a década de 30 do século XX, quando, finalmente foi criada a Escola de Belas-Artes de Recife, em 1930. (BECHARA. 2007, p. 135)

O autor também salienta que nos anos de 1930 o mercado de arte na

Bahia era muito insipiente. Afirmando que apenas o pintor Presciliano Silva7

havia conquistado uma independência financeira com a venda de suas obras,

os demais artistas tiveram que realizar outras atividades para sobreviverem.

[...] Não havia galerias de arte e a comercialização era feita,

principalmente, pelo contato direto dos artistas com o cliente.

Fazer exposições individuais pressupunha um grande

investimento dos artistas sem garantia de retorno. As tintas

importadas eram caras; muitos trabalhos demorados. Os

artistas também apelaram para casas comerciais que,

eventualmente, cediam uma parede para exposição de

trabalhos artísticos. [...] ( BRECHARA FILHO, 2007, p.146)

A movimentação de um pequeno mercado de arte em Salvador irá

legitimar professores e alunos da Academia de Belas Artes da Bahia além de

despertar o interesse de alguns colecionadores que iram se destacar no

decorrer das primeiras décadas do século XX pelos interesse por obras de

arte e acervos de antiguidades oriundos do fausto colonial.

A partir de 1936 a 1947 é realizado em setembro em Salvador o Salão

da ALA (Ala de Letras e Artes), organizado pelo crítico de arte Carlos

6 Tese defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais na UFBA em 2007.

7 Sobre o refúgio do pintor Presciliano Silva nos interiores das igrejas barrocas na Bahia. Em

1945, cerca de 6.000 pessoas registraram presença para contemplar a silenciosa obra ―Interior de S. Francisco‖ encomendada pelo Banco do Brasil - Nunca o silêncio na arte da Bahia foi tão reverenciado.

54

Chiacchio8 , também criador da revista Arco e Flexa. Afirmou-se como o

evento de maior significação para as artes plásticas, tendo com objetivo dar

visibilidade a uma produção artística que não encontrava apoio dos grandes

patronos e do próprio governo.

Não sendo restrito às artes plásticas, o movimento ALA também incluía

intelectuais e escritores que editaram o jornal ALA que tinha como objetivo

promover arte e cultura em um período pouco propício. Uma crise político-

econômica promovida por diversos fatores: a falência das famílias

oligárquicas, o crescimento massivo da industrial cultural e a falta de uma

política cultural consistente na era do governo Vargas (BRECHARA FILHO,

2007)

Fig. 10 - Carlos Chiacchio s/d autor desconhecido

Os espaços ocupados pelas diversas edições do Salão foram

inicialmente a Escola de Belas Artes e a galeria Conde dos Arcos, situada na

antiga Biblioteca pública, onde hoje se localiza a Prefeitura de Salvador.

Sobre a estilística das obras apresentadas, verificamos um panorama de

artistas localizados entre correntes já consolidadas de referências européias,

indicando limites e restrições às estéticas modernistas, como revela o crítico

em seu artigo no jornal A Tarde de 8 de outubro de 1941: ―A ALA admitia

somente o saudável impressionismo romântico que é a seiva tradicional

8 Carlos Chiacchio (1884-1947) foi um importante agitador cultura de Minas Gerais, que se

transfere em sua juventude para Salvador, se tornando um importante médico local, jornalista, ensaísta, poeta, professor da EBA e Crítico de arte.

55

dessa arte que podemos chamar de escola baiana de pintura‖ (CHIACCHIO,

1941). Com a morte de Carlos Chiacchio em 1947, os salões foram

finalizados abrindo espaço, em 1949, para a realização das edições do Salão

Baiano de Belas Arte, que sinalizam uma transição entre as estéticas de um

academicismo e impressionismo tardio da Escola de Belas Artes para as

inquietações da já profícua produção modernista baiana. Artistas da

conhecida segunda geração de modernistas como Calasans Neto, Juarez

Paraíso e Sante Scaldaferri já participam da mostra desde a sua primeira

edição.

Outros eventos de pequeno porte movimentam a cena artística da

cidade marcando a década de 1940 com discussões em torno das novas

estéticas artísticas. Em espaços como a Biblioteca Pública, Associação

Cultural Brasil Estados Unidos e no Bar Anjo Azul, exposições individuais e

coletivas como a histórica exposição de 1944 organizada pelo artista paulista,

de vertente comunista Manuel Martins9, Jorge Amado e o já colecionador

Odorico Tavares - que colabora com o empréstimo de algumas obras do seu

acervo particular. As obras apresentas eram de artistas como Manuel Martins,

Lasar Segall, Alberto Gomide, Tarsila do Amaral, Volpi, Flávio de Carvalho,

Portinari, Di Cavalcanti, Pancetti, Cícero Dias, entre outros. Um bom

panorama das artes plásticas do modernismo da época, especialmente da

produção paulista. Tal mostra foi muito criticada pela sociedade baiana,

acusada de amadorística na sua montagem como nos informa a

pesquisadora Maria Helena Ochi Flexor:

O ambiente da exposição de Manoel Martins foi montado dentro de uma nova concepção valorizando, inclusive, as características locais. Isto levou o jornal A Tarde a criticar a pobreza do ambiente, desde o pano de juta nacional que forrava as paredes, até à falta de molduras caríssimas que geralmente se vem (FLEXOR, 2011, p. 10)

Tal momento revelaria o protagonismo do jovem jornalista

pernambucano Odorico Tavares, recém chegado à cidade e o seu desejo de

consolidar uma importante coleção de arte na Bahia.

Odorico Tavares (1912 - 1980) foi uma das personalidades mais

9 O artista Manuel Martins a convite de Jorge Amado, inicialmente veio para Salvador para

ilustrar o seu livro Bahia de Todos os Santos. Na ocasião, propôs uma grande exposição coletiva de seus trabalhos e de outros artistas modernos na Biblioteca Pública.

56

importantes e influentes envolvidas com o mundo das artes, da política e da

comunicação na Bahia entre 1942 até 1980. Pernambucano da cidade de

Timbaúba, será popularmente conhecido como ―O Homem de Chatô‖, dado a

sua relação de amizade e de colaboração profissional com Assis

Chateaubriand, o paraibano que se tornara o magnata das comunicações no

Brasil de 1930 à início dos anos 1960, proprietário dos Diários Associados.

Fig. 11 - Odorico Tavares, fotografia de J. Mendel, Recife, Paris. S/data

Bacharel de Direito, formado pela Faculdade de Direito de Recife, inicia

sua carreira como jornalista no Diário de Pernambuco, pertencente a

Chateaubriand e sob a direção de Aníbal Fernandes. A pesquisadora

Jancileide Souza dos Santos (SANTOS. 2013) afirma que a vinda de Odorico

Tavares em 1941 para dirigir a sucursal de Salvador dos Diários Associados

foi proveniente das pressões e perseguições que sofreu em Recife, por se

opor à ditadura de Getúlio Vargas. Contudo, como se sabe, o poder e a

influencia de Chatô, sua polêmica personalidade, não encontrará problemas

para conseguir o que desejava em pleno Estado Novo. As relações de

Chateaubriand com Vargas são extensivamente narradas na sua biografia

57

escrita por Fernando Morais10. Cabe aqui ressaltar que o seu comportamento

aético, o colocava acima do bem e do mal. Na vida pessoal e empresarial,

movia práticas e conquistas construída através de muitas chantagens,

fraudes e relações interesseiras com grandes políticos e representantes das

elites econômicas brasileira. Este paradoxal ―coronel‖ da modernidade

brasileira, ―o Rei do Brasil‖ será uma grande referência para Odorico,

influenciando muito na sua personalidade: o amor pela arte mas também pelo

poder.

Outra influência que devemos destacar na vida de Odorico é do

colecionador de arte pernambucano Abelardo Rodrigues. Abelardo reuniu,

em Recife, um dos mais importantes acervos de Arte Sacra do Brasil e, para

o jovem Odorico que frequentava sua casa e conhecia a sua coleção, foi o

início de uma grande paixão e aprendizagem pela arte. Esse gosto e amor

posteriormente se consolidará definitivamente através de sua convivência

com Assis Chateaubriand.

Em Salvador, Odorico irá se envolver diretamente ou indiretamente com

toda movimentação cultural que florescia no Estado a partir do final de 1940.

O seu gosto pelas artes e artistas construirá uma rede de sociabilidade que o

insere na mais elevada elite cultural local e também nos rumos das mais

avançadas preposições vanguardistas. Em sua coluna diária, não por acaso

denominada Rosa dos Ventos, no jornal Diário de Notícias ele atuava

especialmente na divulgação e promoção especialmente das artes plásticas.

Podemos analisar as ações culturais e políticas de Odorico Tavares em dois

grandes momentos: primeiro, a partir de sua chegada em Salvador, em 1941,

até o golpe militar; e segundo a partir das suas relações com o novo sistema

ditatorial. Sendo que, nesta tese, daremos destaque na primeira fase onde se

constituiu o maior número de peças do acervo.

No primeiro momento, as articulações que Odorico constrói em

Salvador sinalizam a construção de amizades e parcerias profissionais que

terão objetivo de promover a arte e a cultura local. Vários artistas, intelectuais

10 Fernando Morais em Chatô, o rei do Brasil escreveu uma longa biografia sobre Assis

Chateaubriand. Descrevendo detalhadamente a sua personalidade artística e cultural e também as sua articulações politica.

58

e instituições farão parte desse momento em que a promoção da ideia de

modernização e desenvolvimentismo urbano deveria retirar a cidade e o

Estado da condição provinciana. Não seria desmedido, mas esse momento

costuma-se ser chamado dos ―Anos Dourados‖ da Bahia com todas as

transformações ocorridas na cidade, com a implantação da Universidade da

Bahia a partir 1946. Uma lista vasta de personalidades nesse momento será

apoiada pelos veículos dos Diários Associados sob o comando de Odorico: O

reitor Edgard Santos, o arquiteto Diógenes Rebouças, o escritor Jorge

Amado, o fotografo Pierre Verger, Carybé, Mário Cravo Júnior, Dorival

Caymmi, Lina Bo Bardi, o teatrólogo Martins Gonçalves, Clarival Prado

Valadares, Carlos Eduardo da Rocha, Godofredo Filho, o geógrafo Milton

Santos, os políticos Otávio Mangabeira, Juracy Magalhães, Antônio Carlos

Magalhães e os jovens Glauber Rocha e Helena Ignez, entre muitos outros.

Nesse primeiro momento, se destaca as 23 reportagens sobre a Bahia

escritas por Odorico publicadas na Revista Cruzeiro. Sendo 18 delas em

parceria com Pierre Verger. Entre outubro de 1946 a julho de 1951 eles

construíram nessa mídia uma divulgação massiva sobre diferentes aspectos

culturais da Bahia. Sobre os temas dessas matérias que inclui festas

populares, cultura afro-baiana, religiosidade, gastronomia, musica, artes

plásticas, a pesquisadora Juciara Barbosa destaca o trabalho fotográfico de

Pierre Verger na Revista Cruzeiro como um potente veículo de divulgação da

imagem da Bahia:

Verger traduziu em imagens os poetas da literatura de cordel, os frequentadores de terreiros de candomblé, os sambistas, as baianas com seus ricos trajes nas festas, os católicos seguindo as procissões, os trabalhadores das feiras livres e do porto, a sensualidade, e a gestualidade do povo baiano. E só a partir de então vai-se destacar a cidade da Bahia, já descrita por Jorge Amado e cantada por Dorival Caymmi, agora em imagens de Pierre Verger[...] (BARBOSA, p. 39, 2007)

Como citamos no capítulo anterior, Jorge Amado, Dorival Caymmi,

Pierre Verger e, nesse contexto, Odorico Tavares sem dúvidas serão grandes

responsáveis pela criação de uma imagem da Bahia amplamente divulgada

nas grandes mídias no Brasil e que na atualidades informa toda uma

expectativa de turistas ou visitantes que a conhece pela primeira vez. Não é

59

difícil de se encontrar o desejo de conhecer essa Bahia mítica, essa Bahia de

Jorge Amado, essa Bahia de Caymmi e de Verger.

Além de participar dessa construção externa e interna da Bahia através

da grande mídia, Odorico irá também interferir ao registrar a partir das suas

observações em textos publicados na sua coluna Rosa dos Ventos do jornal

o Diário de Noticias e futuramente reunidos em livros.

No livro de Odorico Tavares intitulado Bahia: Imagem da Terra e do

Povo, publicado em 1951, o autor reserva um capítulo sobre ―Os

Colecionadores‖, fazendo uma revisão histórica da prática. Ele nos apresenta

um panorama dos ricos acervos acumulados nas casas grandes e sobrados

pelos senhores de engenho do período colonial no Recôncavo da Bahia e em

Pernambuco. E como à época de seu declínio decorrente da crise econômica

do antigo sistema colonial foram adquiridos por importantes colecionadores

tais como Francisco Marques de Góis Calmon (1874-1932), Antônio

Fernandes Dias, Carlos Costa Pinto (1885-1946) e Alberto Martins Catarino.

O estado de abandono que se encontravam os ―tesouros‖ patrimoniais de

muitas famílias ilustres arruinadas pelas novas ordens econômicas eram

compostos de mobiliário, porcelanas, joias, cristais, pinturas e esculturas

religiosas. Tais mercadorias eram colocadas no mercado pelas próprias

famílias ou por comerciantes entre mascates e antiquários.

Grande parte desses peças foram vendidas para colecionadores de fora

do estado e do país, esfacelando conjuntos de acervos. Devido esse contexto

uma importante discursão promovida por uma elite intelectual da época,

sobre as infindáveis perdas desse patrimônio e sua dispersão, sensibiliza o

então govenador, Góes Calmon sancionar uma lei que procurava deter a

saída das antiguidades baianas.

Odorico em seu texto faz um valioso registro do protagonismo dos

colecionadores na Bahia, mesmo não se referindo ao legado de Jonathas

Abbott, delonga-se sobre a importância da contribuição de Góes Calmon,

que o considerava precursora.

O governador Góis Calmon foi um precursor apaixonado dos colecionadores baianos. Sua cultura, seu bom gosto influíram, enormemente, para prosseguir na coleção que lhe doou seu tio Alexandre Góis. Contam-se episódios dos mais pitorescos de atividades suas para salvar tantas peças de valor desdenhada, abandonada em depósitos de coisas

60

imprestáveis. Saltando, certa vez, de um bonde atrás de um carregador que conduzia balaústre de jacarandá em pedaços. Para o lixo, que lhe mandara o patrão. (TAVARES,1961, p.256 )

A coleção de Góis Calmon e suas ações políticas de preservação do

patrimônio artístico baiano se relacionam diretamente com a própria história

do Museu do Estado da Bahia que foi fundado em 1918.11 Em 1934 o museu

se transfere para o palacete em que vivia o ex-governador e sua família

juntamente com a sua coleção, adquirido pelo estado, o novo prédio oferece

melhores condições para abrigar o acervo permanecendo até o ano de

1959.12

O rico comerciante e exportador de açúcar Carlos Costa Pinto mantinha

o hábito de colecionar objetos da antiga aristocracia açucareira baiana. Um

grande acervo de mobiliário e ourivesaria destacando as famosas joias de

crioulas e suas pencas de balangandãs, porcelanas e centenas de objetos de

prata. Em 1969, é fundado o Museu Carlos Costa Pinto com a coleção

reunida e organizada em um grande casa no corredor da Vitória.

No capítulo sobre os colecionadores baianos escrito por Odorico,

também registra a prática de uma elite de intelectuais, empresários e

comerciante que se dedicam ao colecionismo. Por exemplo, Antônio

Fernandes Dias - comerciante, filho de português que tivera uma formação

educacional em colégios da Europa no inicio do século XX que o fez

despertar o gosto pelas artes e em especial pelas porcelanas orientais. Suas

peças foram adquiridas por outros colecionadores baianos quando sua

transferência para o Rio de Janeiro. Alberto Martins Catarino também é

registrado no texto de Odorico, e segundo ele, em sua residência na rua da

Graça, encontrava-se a mais bem disposta coleção baiana.

Em 1956, a coleção de Odorico é abrigada em Salvador em uma casa

construída e projetada pelo arquiteto Diógenes Rebouças na Rua Cândido

Portinari no morro do Ipiranga em Salvador.13 A casa possuía condições

11

Maiores informações sobre a história do Museu do Estado da Bahia atual MAB se encontra no texto de Athayde (1997). 12

O livro O solar Góes Calmon, escrito por Edivaldo M. Boaventura, narra toda história da casa que atualmente sedia a Academia de Letras da Bahia. 13 No Morro do Ipiranga em Salvador, localização nobre da cidade, encontramos diversas

pequenas ruas com nomes em homenagem a artistas e personalidades que Odorico

61

físicas, com grandes salões e galerias para acolher as numerosas peças da

imaginária do barroco brasileiro, mobiliário do século XVIII e XIX e a

vastíssima coleção de arte moderna. Sobre o nome da rua em que sua casa

foi construída, o próprio Odorico afirma o seu poder político com os gestores

públicos do grupo que apoiava publicado 9 de setembro em 1973 na coluna

Rosas dos Ventos no Diário de Noticias:

[...] Clériston Andrade sancionou com rapidez a lei pela Câmera de Vereadores, dando o nome de Cândido Portinari à rua em que moro. Isso porque eu me mexo com minha colher de angú das artes e, como todo brasileiro que se preza, admiro o pintor. [...] E também por que Portinari gostava dos morros onde os meninos jogam suas peladas e empinam suas arraias [...] Espero que a favela existente aqui perto fique iluminada como ele iluminava a dele. (TAVARES, 1973, p.14 )

Em um outro texto escrito em 1974 em forma de poema, Odorico revela

o quanto foi importante e significativo quando deram o nome da sua rua de

Candido Portinari. O evento contou com a presença do governador do estado

Antônio Carlos Magalhães, do prefeito Clériston Andrade, de artista e

familiares do pintor, Maria e João Cândido, além dos moradores da rua.

A sua coleção reunia inúmeros obras de artistas estrangeiros

geralmente adquiridas em viagens internacionais especialmente para Europa.

Diversas gravuras sobre papel de artistas como Pablo Picasso, Georges

Rouault, Joan Miró, Henri Matisse, Alan Davie, Alfred Manessier, Kami Sugai,

Waichi Tsutaka, Yozo Hamaguchi, desenhos de Modesto Cuixart, e pintura

de Georges Rouault, Mario Sironi, Filippo de Pisis. Grande parte dessas

obras são de estilo abstrato que irão contrapor com as obras de artistas

brasileiros de fama internacional, que marcaram uma grande presença na

coleção de Odorico, como Emiliano Di Cavalcanti e Cândido Portinari. As

mulatas de Di Cavalcanti e os meninos e as paisagem de Brodowski de

Portinari irão fascinar o colecionador. Merece destaque os retratos que Di

Cavalcanti realizou de Odorico e o retrato de Leda Tavares pintado em 1948

por Portinari. Contudo, destacamos a sua amizade e mecenato com o pintor

José Pancetti. Odorico irá adquirir inúmeras obras de diferentes fase do

artista. Entre marinhas, autorretratos, retratos e paisagens. Em 1950, o artista

estimava, como a Rua Cândido Portinari, a Rua José Pancetti e a Rua Carlos Chiacchio. O morro se tornaria o seu monte Parnaso.

62

se transfere para Salvador, incentivado pelo colecionador, onde permanece

até 1957. Pancetti tinha uma grande projeção nacional e internacional

havendo já participado da Bienal de Veneza e tendo obras em acervos de

importantes museus internacionais. A sua estadia na Bahia se desdobra de

forma midiática nos meios em que Odorico operava. A revista O Cruzeiro de

7 de Janeiro de 1956, afirma que Pancetti seria ―o novo Gauguin‖, e em 9 de

fevereiro 1957, na mesma revista, uma nova reportagem escrita e fotografada

por Luis Carlos Barreto e contando também com as emblemáticas fotos em

preto e branco de Pierre Verger na matéria intitulada “Abaeté pousa para

Pancetti”. Esse título revela a extremada pretensão de como a Bahia estava

a serviço do artista. Neste contexto, uma das mais significativas fases na

obra do artista foi realizada aqui em Salvador sobre incentivos e promoção de

Odorico.

Seguem inúmeros outros artistas brasileiros que estão representados

na coleção de Odorico: Aldo Bonadei, Dijanira, Alberto da Veiga Guignard,

Alfredo Volpi, Carlos Scliar, Aldemir Martins, Milton da Costa, Antônio

Bandeira, Poty Lazarotto, Francisco Brennand, Franz Krajcberg, Maria

Leontina, Noemia Mourão, Clóvis Graciliano, Lina Bo Bardi, Lívio Abramo,

Eros Martins Gonçalves, Emeric Marcier, Manabu Mabe, Flávio Shiró,

Wakabayashi, Tomie Ohtake. Entre os baianos Mário Cravo Júnior, Genaro

de Carvalho, Carybé, Hansen Bahia, Floriano Teixeira, Mário Cravo Neto,

José de Dome, Henrique Oswald, José Maria, Hélio Oliveira, Emanoel Araujo,

João Alves, Willys, Cardoso e Silva e muitos outros.

O atual curador da coleção Emanoel Araujo (ARAUJO, 2005) destaca a

presença no acervo de alguns artistas baianos negros de origem popular, que

o colecionador nutria muito carinho e admiração: o xilogravador Hélio Oliveira

neto do famoso Babalorixá Procópio, José Maria, o pintor João Alves, José

de Dome e Cardoso e Silva.

Em 2005, a coleção foi apresentada em uma série de exposições em

São Paulo e Curitiba todas com curadoria de Emanoel Araujo. O recorte

curatorial subdivide o acervo em artistas internacionais, artistas nacionais,

artistas baianos e documentos, cartas, fotografias e poemas apresentando

um vasto panorama da trajetória de vida e colecionismo dos anos 40 a 70.

As repercussões e o impacto da coleção de Odorico sobre a arte e a

63

cena artísticas na Bahia são inegáveis, merecendo ser analisadas mais

profundamente em outras pesquisas. O fato é que seu acervo reflete a sua

história pessoal, profissional e suas ações na política local. A grande maioria

dos artistas e obras que estão representados na coleção foram legitimados

por instituições e pelo pequeno sistema mercadológico local.

Outra questão relevante percebida na nossa pesquisa é a existência de

muitos artistas, representados na sua coleção, que tiveram destaque em

exposições individuais e coletivas organizadas por Lina Bo Bardi no MAMB

entre 1960 a 1964. Isso nos faz pensar em uma hipótese de que o momento

de grande atividade da arquiteta em Salvador poderia ter influenciado as

escolhas do colecionador. Como o acervo foi formado, como as obras foram

adquiridas, em quais situações e contextos históricos? Tal investigação

demandaria um outro e original trabalho, que não é o nosso objetivo nesse

momento, contudo sinalizamos para a relevância de tal caminho para

pesquisas futuras.

A vinda de Lina Bo Bardi para Salvador em 1958 promove uma

importante transformação cultural no Estado. A arquiteta anteriormente já

havia trabalhado no projeto de implantação do MASP, em sua primeira sede

na rua 7 de Abril e participado da direção e edição da revista Habitat

juntamente com Flávio Mota, Pietro Maria Bardi e Geraldo N. Serra. Em sua

passagem pela Bahia, se tornará por um semestre professora da Escola de

Belas Arte, editora do suplemento cultural, dominical do jornal Diários de

Notícias e diretora fundadora do Museu de Arte Moderna da Bahia e do

Museu de Arte Popular.

64

Fig. 12 - Retrato de Lina Bo Bardi, autor não identificado, acervo do MAM-BA.

Em 1958, a arquiteta italiana desloca-se de São Paulo para Salvador

para lecionar no curso de Arquitetura da Escola de Belas Artes da Bahia à

convite dos professores da Universidade da Bahia, inicialmente pelo diretor

da escola Mendonça Filho para proferir duas palestras e posteriormente pelo

arquiteto Diógenes Rebouças 14 . Em 1959 é convidada pelo governador

Juracy Magalhães para fundar o Museu de Arte Moderna da Bahia(1960).

O convite para implantação do primeiro museu de arte moderna no

Nordeste do Brasil, estimula a arquiteta a pensar um modelo de instituição

voltado para o social, através de concepções pedagógicas direcionada para a

idéia de ―nacional-popular‖ formuladas por Antônio Gramsci.

Tal contexto dialoga, de forma indireta e distinta, com a criação

concomitante de outros importantes museus que promovem o modernismo

no Brasil: o Museu de Arte Moderna do Rio Janeiro e o MAM de São Paulo

(1948), ambos inspirados no modelo do Museum of Modern Art (MoMA) de

Nova York.

14 Em entrevista para o pesquisador Pereira (2006: p. 254-264), o arquiteto Paulo Ormindo

de Azevedo que foi aluno dos cursos de Lina na EBA, afirma sobre a vinda de Lina para Bahia, a arquiteta que estava inscrita para o concurso da FAU/USP, contudo ela tinha perdido todos os seus documento quando a sua cidade de Milão foi bombardeada na guerra, e que teria que ter alguma experiência didática para a sua prova de tirocínio. Como ela nunca tinha dado aulas em universidades na Europa, o professor e arquiteto Diógenes Rebouças, amigo de Odorico Tavares, consegue que Lina ministre aulas na EBA junto com ele.

65

O MAM do Rio tem sua ata de fundação escrita em 1948, sob a

presidência do grande empresário Raymundo Ottoni de Castro Maya e a

participação efetiva das colecionadoras Ema e Eva Klabin, mas que de fato

fora aberto em sua sede própria com o seu Bloco de Exposições em 1963. O

MAM carioca em muitos dos seus projetos se espelhava no modelo

americano, a exemplo da criação de sua cinemateca como difusora do

cinema como signo da moderna sociedade de massas, banindo do futuro da

arte e da cultura brasileira qualquer traço de pensamento dos tempos

coloniais.

O MAM de São Paulo fundado em 1948 em sua sede na Rua Sete de

Abril foi inicialmente presidido pelo industrial ítalo-brasileiro Francisco

―Ciccillo‖ Matarazzo Sobrinho e sua esposa a aristocrata Yolanda Pendeado,

produz uma exposição inaugural organizada pelo diretor da época, o crítico

de arte belga Léon Degand. Tal mostra sinaliza o tom da política cultural que

se pretendia implantar ao apresentar, em quase sua totalidade, obras de

artistas europeus abstracionistas.

No outro lado do país, na "Velha Bahia", que na época transita entre a

tradição e a modernidade, outros caminhos são almejados sobre a tutela de

uma jovem arquiteta italiana radical, fortemente influenciada pela teoria

gramsciana, que encontra um espaço propício para se pensar outros

percursos para o moderno no Brasil.

Para podermos compreender melhor esse período de transformações

políticas e ideológicas das artes no pais, é importante apresentar questões

que relacionem alguns dos seu protagonistas. Lina Bo Bardi era casada com

Pietro Maria Bardi - fundador do Museu de Arte de São Paulo (MASP)

juntamente com Assis Chateaubriand - e trabalhou na implantação do museu

em sua primeira sede, até ter sido escolhida como a arquiteta que construirá

sua sede definitiva na avenida paulista em 1968. Chateaubriand, o dono das

Emissoras e Diários Associados15, elegerá o importante casal de italianos,

os Bardis, como um referencial de eficiência, que melhor poderia pensar

15 Assis Chateaubriand implementou uma campanha jornalística desmoralizante contra o

grande empresário italiano radicado em São Paulo o Conde Francisco Matarazzo, fundadores do MAM de São Paulo.

66

modelos de museus que traduzissem as suas concepções de identidade

artística e cultura para o Brasil.

Lina chega à Bahia no final da década de 1950 muito bem recebida

pelo influente representante dos Diários Associados na Bahia o jornalista e

colecionador Odorico Tavares. Eles, como ironicamente assinala Santana

(2012) eram funcionários da ―mesmas empresa‖ unidos pelo comando geral

de Assis Chateaubriand.

Em entrevista ao documentário Cuíca de Santo Amaro (2004), o artista

Mário Cravo Júnior apresenta a sua versão sobre a vinda de Lina para

Bahia:

Lina veio aqui, inclusive, em uma trama política de interesses, aonde os Diários Associados era uma espécie de Super Globo de hoje. A Bahia levou 15 anos com uma única televisão (risos), com três jornais. Odorico mandava! como Chatô mandava. Ai que está o problema! A presença de Lina, os Associados, a força dos Diários Associados e Odorico Tavares. Foi Odorico que interferiu profundamente, no apoio a vinda de Lina para cá, e foi por isso que Lina trouxe, sendo ela esposa do professor Pietro Bardi, o material fantástico.16

O tom de desabafo de Mario Cravo Júnior sobre a vinda de Lina para

Salvador é revelador. O artista, que na época já gozava de destaque e de

muita influência política na Bahia, era amigo e colaborador da arquiteta, pelo

menos no período em que esteve à frente dos museus. Dividiam afinidades

intelectuais e estéticas, sendo membros da comissão de implantação do

MAMB. É inegável o apoio que a arquiteta deu à carreira artística do escultor

especialmente na divulgação das suas obras em importantes exposições

sobretudo em São Paulo.17

Retomamos brevemente agora a passagem de Lina Bardi pela

Universidade da Bahia. Em 1958, inicialmente ela leciona no curso de

Arquitetura, que na época funcionava na EBA. Contratada por um semestre

para dividir as turmas de Teoria e Filosofia da Arquitetura com o arquiteto e

professor Diógenes Rebouças, as suas críticas severas sobre os rumos do

16

Mário Cravo Junior em entrevista publicado em 5 de mar de 2014, no extra do DVD do filme ― Cuica de Santo Amaro‖ disponivel no Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=lh7Y5u21XEU - no trecho, 5‘47‖ a 7‘10‖ 17

Com a demissão de Lina dos museus em 1964 pela ditadura militar, a direção do MAMB e MAP é assumido interinamente por Renato Ferraz, cunhado de Mario, deixando em seguida para Mário Cravo Junior dirigir entre 1966 a 1967.

67

desing, e a mercantilização da arte geraram tensões entre os professores

mais tradicionais da escola que não concordavam com suas defesas. O

professor italiano Romano Galeffi e o professor Américo Simas, a partir de

suas influencias na EBA, organizam uma campanha para a não renovação do

seu contrato na instituição, devido a oposição que lhes faziam em relação as

suas concepções sobre arte. (SANTANA, 2011).

No segundo semestre de 1958, ela se aproxima do diretor da escola de

teatro Martim Gonçalves e conquista a amizade de jovens estudantes como

Glauber Rocha, Paulo Gil Soares e Fernando da Rocha Peres que serão seu

grandes admiradores durante esse momento de formação e, posteriormente,

na implantação dos futuros projetos museológicos. Nesse mesmo ano, ela

publicou a página cultural Crônicas de arte, de história, de costumes, de

cultura da vida, que saía aos domingos no jornal Diário de Noticias, sob a

direção de Odorico Tavares. Serão nove publicações entre setembro e

novembro de 1958, contando com a colaboração de artigos de diversos

artistas e intelectuais como o músico Koellreuter, Martim Gonçalves, Gianii

Ratto, Mário Cravo Junior, o fotógrafo Pierre Verger, Sílvio Robato e Ennes

S. Mello (LAURENTIZ, 2000).

Com o fim do seu contrato como professora na EBA no início de 1959,

Lina que já gozava um significativo prestigio local, é convidada pela primeira

dama do estado Lavínia Magalhães, esposa de Juracy Magalhães 18 ,

presidente do conselho criador do MAMB, para ser a primeira diretora da

instituição. Juntamente com uma comissão de implantação do museu

composta por José Valladares, Clarival do Prado Valladares, Walter da

Silveira, Godofredo Jr., Mario Cravo Júnior, Odorico Tavares e Carlos Bastos.

Tendo como conselho consultivo Assis Chateaubriand, Miguel Calmon

Sobrinho, Clemente Mariani, Gileno Amado, Fernando Correia Ribeiro e

Lavínha Magalhães.

Em 5 de agosto de 1959, é registrada na coluna Rosas dos Ventos, do

Diário de Notícias de Odorico Tavares algumas doações de Assis

18 Em 23 de julho de 1959 O Governador Juracy Magalhães sanciona a lei 1.152 que funda

o Museu de Arte Moderna da Bahia, Diário Oficial do Estado da Bahia, de 23 de julho de 1959.

68

Chateaubriand de obras para o acervo do recém criado Museu de Arte

Moderna da Bahia, que ainda não possuía sede própria. Nesse mesmo ano,

em setembro, Martim Gonçalves e Lina realizam a revolucionária exposição

Bahia no Ibirapuera, à convite da organização da V Bienal de São Paulo. Tal

exposição demonstra as profundas trocas e afinidades conceituais entre o

teatrólogo e a arquiteta. Lina em 1961, fala dos papeis que desempenharam

no projeto:

A Exposição Bahia apresentada na V Bienal de São Paulo (e não na segunda, como disse o articulista), e que tanto despertou o interesse dos meios artísticos e sociais do Brasil e do estrangeiro, foi pensada, planejada e realizada pelo diretor da Escola de Teatro da Universidade da Bahia, professor Martim Gonçalves, que procurou revelar, com meios estéticos de uma apresentação ―teatral‖, as raízes populares da cultura baiana, em contraste com as correntes de importação que caracterizam a grande manifestação paulista.(...) Minha colaboração foi especialmente na parte arquitetônica, ligada ao conteúdo da Exposição (...) a descoberta daqueles elementos da cultura baiana, por mim antes desconhecidos, fora resultado da minha aceitação de

dirigir o Museu de Arte Moderna da Bahia. (A TARDE, 1961)

Essa declaração em defesa de Martim Gonçalves em 1961 coincide

com o ano em que o seu amigo foi praticamente expulso da direção da

Escola de Teatro e da Bahia por não aceitar uma solicitação de Odorico

Tavares em televisionar o espetáculo a Ópera dos Três Vinténs, recém

montado no TCA, para a programação de abertura da TV – Itapoan, sem o

pagamento dos cachês dos atores e músicos. A partir de então se instala

uma grande campanha de difamação e rebaixamento do teatrólogo,

comandada pelos Diários e Emissoras Associados culminando com a sua

saída do Estado.19

O projeto do MAMB, atual MAM-BA, para Lina, era marcadamente

pedagógico em sua concepção. O Museu teria duas grandes metas de ação:

1) a constituição e apresentação didática da sua pinacoteca e 2) o

oferecimento de cursos e atividades culturais para a população. Como ainda

não existia uma pinacoteca formada, a ideia de conservação de um acervo

não poderia acontecer (PEREIRA, 2006). O Museu, então, seria pensado

19 Santana (2011) em sua tese resgata uma importante depoimento da atriz: Em Martim

Gonçalves Quem? O Prêmio? Entrevista de Jurema Penna a Márcio Meirelles, na coluna Teatro, A Tarde, em 10 de março de 1984

69

por Lina como um espaço que deveria se chamar ―Centro, Movimento,

Escola‖. A proposta era que o museu articulasse toda produção cultural do

Nordeste do Brasil como um pólo, reconhecendo a importância da cultura

popular para a construção de uma identidade brasileira. Lina publica suas

concepções para o MAMB:

Este nosso não é um Museu, o termo é impróprio: o Museu conserva e nossa pinacoteca ainda não existe. Esse nosso deveria chamar-se Centro, Movimento, Escola e futura coleção, bem programada segundo critérios didáticos e não ocasionais, deveria chamar-se: Exposição Permanente. nesse sentido que adotamos a palavra Museu. (BARDI, 1959, p. 2)

Lina reforma o recém incendiado foyer do Teatro Castro Alves na praça

do Campo Grande em Salvador para instalar a primeira sede do MAMB. O

reduzido acervo inicial era composto por 87 obras doadas pelo Museu de

Arte do Estado. Constando obras de artistas modernistas como Oswaldo

Goeldi, Di Cavalcante, Vicente Rego Monteiro, Quirino da Silva, José Pancett,

Djanira, Buler Marx, Poty, Bonadei, Augusto Rodrigues, Marcelo Grassmann,

Flexor, Aloisio Magalhães. Posteriormente, outras importantes obras do

modernismo brasileiro foram incorporadas ao acervo como o quadro da fase

Antropofágica de Tarsila do Amaral O Touro (Boi na Floresta) através de

doação do Banco da Bahia e Tabacaria Brasil. Progressivamente, a coleção

irá se constituir através de inúmeras doações feitas por Assis Chateaubriand,

Odorico Tavares, Pietro Maria Bardi, entre outros.

O MAMB é inaugurado oficialmente no foyer do Teatro Castro Alves,em

6 de janeiro de 196020. Na exposição inaugural, a arquiteta propõe uma

expografia revolucionária, construindo quatro salas com cortinas e suprimindo

as paredes fixas, apresentando as obras presas sobre hastes de aço do chão

ao teto, onde as pinturas pareciam flutuar no espaço. Na mostra foi montada

uma exposição individual com 31 obras do artista cearense Antônio

Bandeiras, 20 esculturas em bronze de Edgard Degas (bailarinas), oriundas

20 Santana (2011) apresenta que houve uma ação ―inaugural do MAMB‖ em 17 de outubro

de 1959 na Escola de Teatro promovida por Lina já diretora do museu. Uma conferência do artista plástico e cenógrafo francês Felix Labisse com o tema ―Teatro e Cenografia‖. O artista que a época estava no Brasil para participar da Bienal de São Paulo. O evento foi divulgado na coluna Krista, em 17 de outubro de 1959, Diário de Notícias, Bahia; Em Labisse Fará Conferência Inaugural do Mam Hoje, em 17 de outubro de 1959.

70

do acervo do MASP, uma sala dedicada a artistas brasileiros e estrangeiros

com destaque para as três obras de Portinari como O vendedor de

passarinho, São Francisco, e A menina e A flor - pertencentes ao recente

acervo em formação da instituição. Entre os artistas brasileiros também

tiveram suas obras apresentadas Di Cavalcanti, Dijanira, Panceti, Burle Marx,

Augusto Rodrigues e os baianos Genaro de Carvalho e Mario Cravo Jr. A

abertura também contou com uma original e inusitada exposição de Formas

Naturais, que apresentava uma acervo de vegetais e minerais como fonte de

pesquisa para os processos de criação modernistas a partir das relações

entre arte e natureza.

A primeira exposição já define um postura critica e pedagógica que

caracterizaram as outras futuras mostras organizadas pelo MAMB. Como a

própria Lina afirma no folheto de abertura o Museu de Arte Moderna da Bahia

―pertence ao grupo de Museus-Escola‖ 21 , em que o MASP ocupava a

centralidade. Tal postura se reflete na própria concepção de montagem onde

as soluções didáticas que acompanhavam o percurso expositivo incluíam em

cada obra exposta pequenos textos com informações e contextualizações

sobre o momento histórico em que fora produzida. Tais textos apresentavam

sempre no final a sua importância na continuidade histórica, com isso

favorecia a compreensão da Arte Moderna como uma soma do passado.

O Museu de Arte Moderna da Bahia teria como desafio a formação de

um público ampliado para além das elites apreciadoras das artes. O seu

maior foco foi o popular, para tanto o museu deveria funcionar como um

veículo de comunicação direta com as massas, daí a atenção a seu caráter

didático. Lina propõe um fim das categorias hierárquicas entre público e obra

no processo de fruição estética. A espacialização das suas montagens

promove uma aproximação direta das obras com o público. Nessa

perspectiva o conceito de modernidade em Lina também permite que obras

de diferentes períodos, de diferentes status artísticos, estivessem curadas de

forma a promoverem uma leitura horizontalizada. Com isso, Lina promove

para o observador um contato com a obra de forma livre de uma escala de

valoração.

21 O MASP implantou no Brasil, a concepção de museus-escola, semelhante ao programa

do MOMA.

71

Fig. 13 - Lina montando a exposição de Mario Cravo Junior no MAMB, 09/02/1960.

A ação curatorial de Lina frente ao MAMB em estatística foi

qualitativamente e quantitativamente surpreendente. Entre 1960 a 1964

foram cerca de 109 exposições, individuais e coletivas, com uma pluralidade

de artistas e temáticas que afirmava a sua forma de pensar a função da arte

e da cultura no Nordeste. É importante trazer para o corpo da tese, na íntegra,

os dados coletados nos arquivos do MAMB que registram as exposições

realizadas por Lina nos quatro anos da sua direção. Tais informações nunca

foram apresentadas na sua totalidade22 e devem incentivar futuras pesquisas

sobre a presença da arquiteta frente ao MAMB.

No ano de 1960 foram realizadas 26 exposições com destaque para a

artistas brasileiro e internacionais do abstracionismo - Informal, Tachismo e

Gestual. Destacando artistas nipo-brasileiros residentes em São Paulo.

Também fizeram presentes em importantes mostras os artistas da geração

modernistas baiana e os novos talentos locais. Além de apresentar os

grandes mestres da arte moderna europeia pertencente ao acervo do MASP.

22 Exposições realizadas no MAMB durante a direção de Lina até 1960, foram registradas

em um artigo de Glauber Rocha: Exposições Realizadas: Resumo. ROCHA,Glauber.

MAMB não é Museu: é escola e Movimento. Por um arte que não seja desligada do homem,

Jornal da Bahia, 21 de setembro de 1960.

72

Toda essa defesa da estética modernista era intercalada pela valorização da

arte e da cultura popular do Nordeste através do cunho didático-pedagógico

do projeto de museu escola.

06/01/1960 – Antonio Bandeira e Edgar Degas, 15/01/1960 – Mario

Cravo Jr, 09/02/1960 – Flavio Tanaka, 04/03/1960 – Manabu Mabe,

26/04/1960 – Waichi Tsutaka, 15/05/1960 – Ver a Pintura – Didática,

29/03/1960 – Três Pintores (Cezanne, Van Gogh, Renoir), 05/04/1960 – Sete

Artistas Baianos: Calazans, Jacyra, josé Maria, Juarez, H.Oswald, Riolan e

Sante – Nós e o Passado, – Formas Naturais, 26/04/1960 - Aldemir Martins,

17/05/1960 Acervo do MAM - Novas Aquisições – Vários artistas, 31/05/1960

- Georges Mathieu, 20/06/1960 - Genaro de Carvalho, 12/07/1960 - Paolo

Rissone, 14/08/1960 - Montez Magno, 06/09/1960 – Roberto Burle Marx,

11/10/1960 – Fernando Odriozola, 23/10/1960 Exposição – Desenho

Concreto, - Forma como Escultura (Criação do Museu de Arte Popular),

25/10/1960 – Jenner Augusto, 18/11/1960 – Cinco Pintores Argentinos,

06/12/1960 Exposição – Adam Firnekaes /Lançamento de Livro Alemão de

arte, 09/05/1960 – Betty King / Helio Carvalho.

Fig. 14 - Exposição Sete Artistas Baianos MAMB, 05/04/1960.

73

No ano de 1961 foram realizadas 25 exposições com a produção de

artistas judeus, como Olly Reiner e a mostra dos Israelitas, de importantes

artistas populares que na época eram vistos como primitivos, uma grande

visibilidade para a arte da gravura e da fotografia. O museu organizou

juntamente com o a Associação de Fotógrafos Amadores da Bahia o Salão

Nacional de Fotografia expondo 136 obras de diferentes artistas. Nesse ano,

verifica-se uma grande participação de artistas mulheres e de artistas negros.

É importante ressaltar o caráter inaugural do conceito de arte afro brasileira,

pela primeira vez apresentado em uma mostra na Bahia.

18/01/1961 Exposição Didática Arte como Historia, – Riolan Coutinho,

31/01/1961 – Olly Reinheimer, 25/02/1961 Exposição – Artistas Israelitas,

07/03/1961 – Carlos Magano e Tana Magano, 28/03/1961 – Felicia Leirner,

28/03/1961 - João Alves e Agostinho Batista Freitas, 12/04/1961 – Francisco

Brennand, 05/1961 Moderno Teatro Norte Americano, 23/03/1961 - Sante

Scaldaferri, 05/06/1961 - Emanoel Araujo / Sonia Castro, 14/06/1961 - Aldo

Franceschini, Salão Nacional de Arte Fotografia, 03/11/1961 - Ivan Freitas,

13/12/1961 - 55 Cartazes de Artistas Suíços, 05/10/1961 - Exposição arte

Peruana, 16/08/1961 – Ann Kendell, 17/07/1961 – Lula Cardoso Ayres,

29/08/1961 – Agnaldo Manuel dos Santos, 12/09/1961 – Käthe Kollwitz,

02/10/1961 - Rosário Moreno, Alda Maria Armagni, 08/1961 - Mostra de

Escultura Afro Brasileira, Abelardo da Hora, Carrancas do Rio São Francisco.

74

Fig. 15 - Exposição Carrancas do São Francisco, 1961, MAMB.

No ano 1962 serão 25 exposições que apresentam uma forte relação

entre arte e política. O viés social e o engajamento de muitas das mostras,

aprofunda as questões relativas as formas de se pensar a arte o artesanato e

o desenho industrial.

02/1/1962 – Arte da União Soviética, 23/01/1962 Exposição: A cadeira

na Historia, 08/02/1962 - Renato Guttuso, 03/1962 - Daniel e Renee Sasson,

18/03/1962 – Rene Brochard, 10/04/1962 – Leonardo Alencar, 10/04/1962 –

Cândido Portinari, 09/05/1962 – Clara Barreto Melro, 09/05/1962 – Hélio de

Oliveira, 09/05/1962 – Oswaldo Goeldi, 22/05/1962 – Calazans Neto,

10/07/1962 – Mario Cravo Junior, 10/07/1962 – Cândida Jorge dos Santos

(Candoca) , 10/08/1962 - Sérvelo Esmeraldo, 05/09/1962 – Cartazes

Publicitario Ingleses, 25/09/1962 – Marcelo Grassmann, 25/09/1962 – Prêmio

Leirner, 03/10/1962 – Eugenie Smythe, 03/10/1962 Vida e Obra de Van

Gogh, Sara Piñeiro, , 28/10/1962 – Artesanato e desenho Industrial,

06/11/1962 Exposição – Cartográficas, 13/11/1962 – Carybé, Hélio Oliveira.

75

No ano de 1963, Lina se divide entre a organização das exposições do

Museu de Arte Moderna e a reforma do Solar do Unhão, futura sede do

Museu de Arte Popular e a provisória do MAMB. As exposições ainda

realizadas no foyer do TCA seguem na promoção de artistas brasileiros e

internacionais. Com destaque, a exposição de desenhos de Le Corbusier e

para o estabelecimento das parcerias com Lívio Xavier, fundador e diretor do

Museu de Arte da Universidade do Ceará, e com Francisco Brennand do

MCP, Movimento de Cultura Popular de Recife. Em 3 de novembro de 1963 é

inaugurado o MAP no Solar do Unhão.

06/01/1963 - José Guadalupe Pasader, 08/01/1963 – Marysia Portinari,

15/01/1963 – Juarez Paraíso, 05/02/1963 – Mariana Caram, 20/03/1963

Desenhos de Le Corbusier, 05/05/1963 - Fotografias dos Repórteres de “O

Cruzeiro” , 07/05/1963 – Bethy King, 28/05/1963 - Jesuino Ribeiro,

20/06/1963 - Artistas do Ceará (Oito Artistas do MAUC), 06/1963 - Joseph M.

Ruffo, 16/07/1963 - Maria Zélia Calmon / Antonio José Pinheiro, 03/09/1963

- Gravadores Espanhóis, 30/07/1963 - Antonio Rebouças, 20/08/1963 - Ruth

Cardoso, 20/08/1963 - Domenico Calabrone, 19/09/1963 Manoel Araujo –

Mostra de Desenhos em Tecidos, 29/10/1963 - Cartazes do Japão, 10/1963 -

Exposição – Comemorativa do 10º Aniversario da Petrobrás, 10/1963 –

Artistas Pernambucanos, 26/11/1963 - Exposição Coletiva de Artistas

Japoneses

76

Fig. 16 - Exposição de Le Corbusier (desenhos - 1963). Foto: A. Guthmann.

No ano de 1964 Lina é afastada em agosto, mas só é oficializada sua

saída em 03/08/1964 quadro envia sua carta de demissão para o presidente

da Fundação MAMB. Não podemos precisar quantas de fato foram as

mostras realizadas no museu, contudo nos arquivos consultados houve um

destaque para artistas internacionais, para a exposição de Francisco

Liberato: 03/01/1964 - Carlos Coelho Lousada, – Edison Benicio da Luz, -

Floriano Teixeira, 28/01/1964 - Joaquim Pedroso Gomes, 18/02/1964 -

Pintura Contemporânea do México, 11/03/1964 - Artistas Holandeses,

14/04/1964 - Francisco Liberato de Matos, 11/07/1964 - “Gravuras de Yara

Tupynambá”, e ainda em 1964 sem data definida nos registros do MAMB :

Wilton de Souza, Maria de Jesus, Retrato Bahiano, Artista da Áustria/

Canadá/ Holanda.

Ao se deparar com as particularidades culturais de Salvador, suas

tradições e costumes, a arquiteta estabelece uma relação de trocas

contínuas com os saberes locais. As singularidades culturais seriam bases

para conferir ao seu projeto de modernidade no Nordeste um diferencial

baiano. A identidade local encanta e provoca em Lina um desejo de ampliar a

sua função inicial de diretora do MAMB ambicionando construção de três

estruturas que poderiam a partir daí por em prática suas concepções

77

artísticas: O Museu de Arte Moderna, o Museu de Arte Popular e a Escola de

Desenho Industrial, tendo como sua base a herança cultural tradicional-

popular. Com essas abordagem teóricas afastaria o seu projeto das

influências americanas que informam a implantação dos MAMs do Rio de

Janeiro e de São Paulo.

O projeto artístico e sua concepção social do MAMB é construído em

uma época de encontros mais diretos e intensos, foi uma das grandes

agitações e expectativas das metrópoles do Sudeste. A localização

estratégica do Museu no foyer do Teatro Castro Alves convida para uma

grande participação popular na formação de um público raramente antes

registrados em eventos dessa natureza no Estado. Além de formar uma

geração de jovens criadores, artistas, colecionadores que teriam um impacto

nos novos rumos da arte e da cultura nacional.

Contudo, além dessa grande contribuição no MAMB, a arquiteta irá

ambicionar maiores pretensões a partir da implantação do projeto do Museu

de Arte Popular no Solar do Unhão. Um novo modelo de ocupação em

espaços arquitetônicos, integrando edifícios de diversos usos e feitios, a uma

arrojada concepção de intervenção em um patrimônio histórico, será o

espaço para a realização do seu projeto de museu. Entendendo o seu acervo

como um Centro de Documentação para sua tão sua sonhada Universidade

Popular. Em novembro de 1963, é inaugurado o MAP, apresentando duas

mostras simultâneas: uma de objetos populares do Nordeste ou Civilização

Nordeste e outra de artistas do Nordeste.

Lina movida por uma sensibilidade antropológica e uma experiência

estética e política internacional, implanta um projeto de museu avançado em

que os objetos do seu acervos não funcionassem com uma espécie de

semióforos. Isto é, os objetos do acervo não estariam mortos distanciados da

sua utilidade original e sacralizado pela instituição. Eles funcionariam com

uma biblioteca viva, documentos de referências, das artes e dos fazeres

populares do Nordeste. O acervo de objetos era pensado com fontes de

referência, a serem utilizados pelos alunos da sua almejada ―Escola de

Mestres e Projetistas‖, onde saberes populares dialogariam com os saberes

acadêmicos, colocando lado a lado alunos universitários e mestres artesãos,

com trocas de experiências compartilhadas e objetivando a construção de

78

objetos-tipos visando uma série industrial a partir dos conhecimentos da

cultura pré-artesanal.

A primeira etapa de implantação do projeto seria a reunião de um

vasto acervo de objetos populares recolhidos no Nordeste. Tal empreitada só

fora possível graças a colaboração entre outros estados do Nordeste. No

Ceará, contará com o empenho de Lívio Xavier e em Pernambuco com

Francisco Brennand.

Em carta que Lívio Xavier escreveu em 1963 para Lina, ele revela

como foi o processo de aquisição de algumas peças da coleção:

Devo viajar para Crato e Juazeiro e de lá mesmo despacharei para Salvador o que comprar; ao voltar do sul do estado irei a Aracati, Cascavel, Viçosa e Granja, na Zona Norte. São estes os centros mais férteis no material que precisamos.(...) Vou mandar esta semana o material de nosso acervo ( ex-votos, santos populares, etc).

23 (XAVIER, 1963, P.1)

Tais objetos deveriam ser adquiridos em feiras ou espaços de produção

dos mesmos. Assim, os objetos coletados, inseridos em seu contexto original,

conservaria a sua atualidade utilitária. O deslocamento para o contexto do

museu não os transformariam em objetos ou fetiches de exposição. Seriam

apresentado como documentos contemporâneo da sua existência,

visibilizando a sua utilidade em suas soluções construtivas. Os objetos do

passado não deveriam fazer parte da coleção Porque não representariam as

soluções vivas da sua artesania e seu contexto social.

A formação dessa tríade entre os colaboradores da Bahia, Ceará e

Pernambuco formaria um abrangente panorama da produção de objetos

populares do Nordeste atual, distanciando dos conceitos tradicionais de

coleções museais que reúnem em seus acervos objetos do passado. A

coleção do MAP serviria como fontes primárias para pesquisas da sua

idealizada e moderna Escola de Desenho Industrial.

A ideia de Lina era que diante do processo dinâmico do

desenvolvimento tecnológico, de industrialização, o Museu de Arte Popular

cumpriria o papel de ponte entre a ideia de modernização da sociedade em

diálogo com a sua identidade cultural.

23 Carta de Lívio Xavier à Lina Bo Bardi. Fortaleza, 2 de agosto de 1964. (datilografada).

Arquivo do Museu de Arte Moderna da Bahia.

79

Radicalmente original, a concepção de Lina sobre o acervo cultural foi

elaborada a partir da revisão de conceitos sobre o popular: as ideias de povo,

de popular, de folclore, de artesanato. Inicialmente, define a ideia de nação a

partir de uma conceituação e de uma caracterização de povo. Reconhecendo

o caráter dinâmico das tradições populares, seu caráter vivo e não preso a

um passado estático, Lina propõe uma nova abordagem que resultaria na

concepção de povo-nação que definiria a famosa Civilização Nordeste. A

nova cultura, reunindo as massas populares dissolveria a separação entre

cultura moderna e cultura popular. Esta última, até então vista por alguns, na

acepção de Lina, condenada a estagnação pela ideia do folclore.

Lina pretendia retirar a produção popular do reducionismo folclórico e

segue defendendo a sua compreensão sobre o artesanato (que ela não mais

acredita na existência no mundo, devido ao desenvolvimento industrial), o

que ela entende e vê na produção popular nordestina se encaixa no seu

conceito de pré-artesanato, devido as suas condições precárias de produção,

realizadas por pequenas famílias economicamente sobreviventes em estado

de miséria.

Uma das mostra que inaugura o Museu de Arte Popular, sob o título

de Nordeste, para Lina deveria ser chamada a Civilização Nordeste,

composta por um acervo de mais de mil peças produzidas por uma

população pobre e carente, pequenos grupos isolados e que são

sobreviventes naturais, fadados ao desaparecimento, tão logo acontecesse o

mínimo de florescimento econômico no Nordeste. No folder da apresentação

da exposição, Lina escreve:

Esta exposição que inaugura o Museu de Arte Popular do Unhão deveria chamar-se Civilização do Nordeste. Civilização. (...) Civilização é o aspecto prático da cultura, é a vida dos homens em todos os instantes. Esta exposição procura apresentar uma civilização pensada em todos os detalhes, estudada tecnicamente, (mesmo se a palavra técnico define aqui um trabalho primitivo), desde a iluminação às colheres de cozinha, às colchas, às roupas, bules, brinquedos, móveis, armas.

(...) Matéria prima: o lixo.

Lâmpadas queimadas, recortes de tecidos, latas de lubrificantes, caixas velhas e jornais. Cada objeto risca o limite do nada da miséria. Esse limite e a contínua e martelada presença do útil e necessário é que constituem o valor desta produção, sua poética das coisas humanas não-gratuitas, não criadas pela

80

mera fantasia. É neste sentido de moderna realidade que apresentamos criticamente esta exposição. Como exemplo de simplificação direta de formas cheias de eletricidade vital. Formas de desenho artesanal e industrial. Insistimos na identidade objeto artesanal – padrão industrial baseada na produção técnica ligada à realidade dos materiais e não à abstração formal folklórico-coreográfica.(BARDI,1963, p.1)

A exposição foi montada no grande casarão do Solar do Unhão, onde

se encontra a escultórica escadaria instalada por Lina, unindo o pavimento

inferior ao superior. No térreo foram organizadas peças de grande dimensão

com destaque para uma escultura central em madeira de um índio fazendo

referencia ao Caboclo, símbolo cívico e mítico da independência da Bahia

comemorada em 2 de julho. Ao fundo um exército formado por uma série de

dez carrancas do São Francisco - muitas das clássicas peças do Mestre

Biquiba Guarani - davam o tom solene e hierático à organização do espaço.

Em paralelo a um jangada de pescadores, um grupo de pilões alinhados

sobre uma base de madeira e tendo suas ―mãos‖ suspensas por fios

transparentes. O pilão é um utensílio essencial na culinária africana e, nas

religiões afrobrasileiras, está relacionado à divindades de luta e poder como

Nanã, Oxaguian e Xangô. Circundando esses elementos, havia uma coleção

de ex-votos e santos populares exposta em estantes e suportes. Podemos

interpretar que a escolha das peças reforçam a ideia das matrizes

miscigenadas da cultural popular baiana nordestina. O caráter ritualístico da

montagem, nesse primeiro pavimento, ressoa aos versos da poesia popular

na tradição da literatura de cordel que é exposto em um painel ao fundo.

81

Fig. 17 - Exposição Nordeste, fotografia e planta baixa do térreo, MAP 1963. Arquivo MAM-BA.

A impressão que temos ao analisarmos essa parte da exposição é de

que Lina estaria proferindo um manifesto transcendente calcado no

imaginário popular que relaciona a religião, o trabalho e a comunicação como

bases para organização social. Contudo afirmando que todos os objetos são

úteis e cumpre através da sua eficiência a sua função utilitária independente

do seu sentido mítico. Os ex-votos são apresentados como objetos

necessários e não como ―esculturas‖(in SUZUKI 1994, p. 33).

No andar superior, a montagem obedece uma outra lógica, mais

pragmática e menos metafísica, mesmo contando com uma painel de objetos

do candomblé. Uma grande estante organiza de forma a apresentar a

multiplicidade de objetos de uso cotidianos. Expostos de maneira muito

semelhante das barracas de feiras onde são vendidos. Não importava

destacar a individualidade dos mesmo. O importante era a série, a variedade

de tamanhos, cor, materiais e padrões: canecas e bules de lata reciclados,

lamparinas, vasos, potes, panelas, colheres de pau, pratos, cestos,

vassouras e etc. Redes de dormir são penduradas sobre o vão da escada,

82

vestimentas de vaqueiros e celas, um carro de boi e um painel de armas.

Fig. 18 - Exposição Nordeste, fotografia e planta baixa do térreo mais andar superior, MAP 1963. Arquivo MAM-BA.

Grande parte dos objetos reunidos na exposição formaria o arquivo de

referência para o projeto pedagógico da universidade. Em uma

correspondência a Celso Furtado em 05 de março de 1964, Lina esclarece o

seu objetivo com o Museu de Arte popular:

Queremos construir uma Universidade Popular, para

formação de operários profissionais, o Museu de Arte

Popular será somente o Centro de Documentação junto a

biblioteca. Mas o ‗material‘ humano deverá ser ligado à

prática da realidade. 24 (NOME, ANO, p.)

Em março 1964 o presidente João Goulart é destituído do cargo por

setores das Forças Armadas e uma frente da sociedade civil composta pela

extrema-direita, conservadores e também por liberais, instaurando no país

24 Gentile Dr. Celso Furtado – carta datilografada de Lina Bo Bardi 05/03/1963. Material

consultado no ILBPMB.

83

uma longa ditadura em que mecanismos de controle social reestabeleceria a

―ordem‖ banindo do pais tods as ameaças comunistas e subversivas . Do

ponto de vista dos militares, a tomada ―à força‖ do governo, representaria não

um Golpe Militar e sim uma ―revolução‖. Violentas ações coercitivas e todo

tipo de arbitrariedades contra os direitos humanos e liberdade de expressão

fora implementadas.

Como noticiou antecipadamente o jornal Diários de Notícias do dia 07

de agosto de 1964, Lina deixa a Bahia. Contudo, arquiteta só se desligaria

oficialmente em 03/08/1964, quando envia sua carta de demissão para o

presidente da Fundação MAMB Oscar Tarquínio Pontes. Os museus são

unificados sob a administração do Museu de Arte Moderna da Bahia25.

A passagem de Lina e o seu convívio com artistas e intelectuais em

Salvador alicerçou pesquisas e experimentações artísticas no Estado. O seu

legado influenciou diretamente a produção de uma jovem geração de

escritores, artistas plásticos, músicos e cineastas baianos, como Glauber

Rocha e a geração de artistas da Tropicália.

Após sua saída, em 1966 um grupo de artistas jovens oriundos da

Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, diretamente ligados

ao convívio com Lina, promoveram articulações polóticas a fim de reativar a

cena cultural, em meio à nova ordem política no país implantada pelos

militares. Tal grupo era composto pelos artistas Juarez Paraíso, Riolan

Coutinho e posteriormente por Chico Liberato e Leonardo Alencar26, movidos

pelo desejo de criar uma Bienal de Artes Plásticas na Bahia. E assim fizeram

25 Em uma das últimas entrevista concedidas a pesquisadora Olivia de Oliveira, em 1991

seis meses antes de sua morte, que lhe perguntou sobre o por que de sua saída as pressas de Salvador em 1964, Lina declara: Porque veio toda essa confusão de 1964 e em Salvador tudo era muito reacionário. As pessoas começaram a ter medo de nós e já estava marcada pela cosa così, como de esquerda. Estava, aqui, em São Paulo, e recebi um telegrama de meu secretario, que era cunhado do escultor Mário Cravo, dizendo: ― Madalena ( uma filhote de cachorra vira-lata que havia encontrada na rua e que tinha criado ali, no teatro, no museu) está doente; melhor que não venha até que melhore‖. E disse para mim mesma: ―aconteceu algo ruim lá e eu não posso voltar‖ A cachorra não morreu, depois ficou bem. Assim foi, esperei até o golpe... aquilo não foi um golpe, foi algo completamente diferente. Mas na Bahia, a Marinha era terrível. E abriram um processo contra mim. Me escondi, desapareci. Então eu voltei em junho com a abolição do Ato Institucional, mas me dei conta de que não restava nada, acabaram com tudo e aquilo não voltaria nuca, nunca mais, tudo se acabou. 26 Tal grupo tem sido reconhecidos pela crítica cultural local como integrantes da segunda

geração de artistas modernos da Bahia que tinha como característica uma tendência ao abstracionismo.

84

entre 1966/1967. A primeira Bienal da Bahia teve como presidente de honra

nada menos que Assis Chateaubriand, isso revela o poder de articulação

política e cultural do grupo. O evento, organizado em duas edições, a

primeira em 1966/1967 e a segunda em 1968. A bienal exterioriza o desejo

de seus organizadores em instaurar um evento de âmbito nacional que

pudesse promover um debate sobre a arte brasileira. Isso se distinguiria do

projeto da Bienal de São Paulo e sua abrangência internacional. Uma força

tarefa foi reunida em tornos de importantes nomes da política cultural baiana

brasileira, a fim de realização do projeto. Sobre o patrocínio do Governo do

Estado da Bahia e através da sua superintendência da divisão cultural da

secretaria de educação e cultura tendo como governador Lomanto Júnior e

secretário de educação Alaour Coutinho. Importantes nomes da área cultural

também prestigiaram a bienal, como Jorge Amado, Carlos Eduardo da Rocha,

Clemente Mariani, Dom Clemente Maria da Silva Nigra, Jorge Calmon, Milton

Tavares, Odorico Tavares, Clarival do Prado Valadares, Wilson Rocha,

Carlos Eduardo da Rocha, Mário Schenberg entre outros.

Fig. 19 - Sala Hélio Oiticica: Manifestação Ambiental n. 2. I Bienal Nacional de Artes

Plásticas da Bahia em, foto Rex Schindler, Salvador 1966.

85

A primeira edição da Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia em

1966 contou com um recorte monográfico de salas ―hors concours‖ com os

artistas José Pancetti, Agnaldo dos Santos, Raimundo de Oliveira, Henrique

Oswald, Adam Firnekaes, Alfredo Volpi e Milton da Costa e uma sala sobre a

gravura na Bahia; de salas especiais divididas por regiões brasileiras, com

seleção de artistas convidados. Os representantes da Bahia foram Mario

Cravo Jr, Carybé, Rubem Valentim, Jenner Augusto, Genaro de Carvalho e

Carlos Bastos; de São Paulo Maria Bonomi, Nícolas Vlavianos, Marcelo

Grassman, Míriam Chiaverini e Waldemar Cordeiro; de Pernambuco:

Francisco Brennand; da Guanabara: Ligia Clark, Ivan Serp, Fayga Ostrower,

Hélio Oiticica, Franz Krajcberg; do Rio Grande do Sul: Franciscc Stockinger e

Iberê Camargo.

Fig. 20 - Ligia Clark recebeu o Grande Prêmio Nacional. I Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia em, foto Rex Schindler, Salvador 1966

Além das salas gerais separadas pelas linguagens artísticas: pintura,

desenho, gravura, escultura, artes decorativas27 e dança.

27 É interessante localizar a obra do Mestre Didi nesse recorte de artes decorativas da Bienal,

realizada com a técnica: Tradicional Africana. Quando Agnaldo do Santos é legitimada como um grande escultor da arte brasileira.

86

A diversidade das obras apresentadas em seu conjunto revelam um

interesse de apresentar uma produção artística brasileira atual, dentro das

correntes da arte abstrata informal e geométrica e seu diálogo com

produções que atravessam elementos da cultura popular e afrobrasilidade.

De certa forma esse recorte segue as mesmas tendências da seleção

brasileira nas últimas bienais de São Paulo em que o abstracionismo, o

concretismo e o neo-concretismo, os signográficos e neo-dadaistas refletem

o que se produzia na arte brasileira a partir da metade dos anos de 195028.

Destacaria aqui o reconhecimento da obra do artista Agnaldo dos Santo,

falecido em 1962, e premiado como escultor no Primeiro Festival Mundial de

Arte Negra em Dakar em 1966, e reconhecido pelo critico Clarivaldo Prado

Valadares29 em uma monografia sobre o autor. A valorização de Agnaldo do

Santos na Primeira Bienal da Bahia é celebrada no catálogo da mostra com a

publicação de importantes trechos das críticas, nacionais e internacionais,

que inserem a obra entre a produção dos vanguardistas e dos primitivos.

Destacamos aqui um em especial de Ebongué Soelle:

Graças a Agnaldo dos Santos, o Brasil Ganhou o prêmio de Escultura no Primeiro Festival das Artes Negras (...) A honra feita à obra de Agnaldo dos Santos não chamaria especialmente a minha atenção se o destino daquele que iniciou sua vida plantando Mandioca nao me obrigasse. (...) Que a vida deste homem a quem o mundo negro africano acaba de prestar uma homenagem póstuma possa servir de exemplo para todos aqueles que acreditam ter uma mensagem para a humanidade. Ebongué Soelle, Dakar – Manhã, de 8 de abril de 1966.

30 (SOELLE, 1966, p.12)

28 Comentário de Mário Pedrosa sobre a seleção dos artistas brasileiros no catálogo da VI

Bienal de São Paulo 29 VALLADARES, Clarival do Prado. Agnaldo Manoel dos Santos: origem e revelação de um

escultor primitivo. Afro-Ásia, n. 14, p. 22-39, 1983. 30 Publicado no catálogo da I Bienal da Bahia em frances : ―Gráce à Agnaldo dos Santos le

Bresil, a emporté le prix de sculture au Premier Festival Mondial des Arts Négres (...) L'honneur fait à l'ouvre d'Agnaldo dos Santos ne retiendrait pas spécialment mon attention si le destin de celui qui débuta dans la vie comme planteur de manioc, ne m'y obligeait. (...) Puisse la vie de celui à qui le monde nègre-africain vient de presenter les lauriers à titre posthume, servi d'exemple à tous ceux qui croient avoir un message à confier à l'humanité. Ebongué Soelle, Dakar - Matin, 8 abril, 1966‖ ( Tradução para o Português de Xavier Vatim)

87

Fig. 21 - Agnaldo dos Santos com uma de suas obras. Salvador 1961

Um espaço singular é criado sobre sua obra ao reconhecê-la como fruto

dos fluxos diaspóricos que unem Brasil e África.

A II Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia foi inaugurada em 20

de dezembro de 1968, no Convento da Lapa, em Salvador, pelo então

governador do estado Luís Viana Filho 31 . A exposição é marcada pela

intervenção militar que encera a suas atividades logo após sua abertura. A

censura do evento reflete o contexto de autoritarismo do Regime Militar,

acirrado pelo Ato Institucional número 5. Foram presos os seus

organizadores Juarez Paraíso, que era o secretário geral, e Luis Henrique

Tavares, diretor do DESC, que apoiava oficialmente a Bienal. Entre oito a dez

obras foram acusadas de subversivas e confiscadas pelos militares. Este

violento ato de censura, de certa forma, marca o inicio de diversas ações

coercitivas em relação a cultura no Brasil.

Em 2014 Juarez Paraiso em uma entrevista cedida para o projeto de

realização da III Bienal da Bahia, organizada 46 anos depois, pelo Governo

31 O jornal Diário de Noticias em 21/12/1968: Em ato presidido pelo governador Luís Viana

Filho foi inaugurado ontem, às 18 horas, no convento da Lapa, a II Bienal Nacional de Artes Plásticas, cujo vencedor foi o pintor paulista Yutaka Toyota, conquistando o prêmio de dez mil cruzeiros novos.

88

do Estado da Bahia, através da Secretaria de Cultura do Estado e sobre a

direção do MAM-Ba, nos descreve os momentos de tensões vividos quando

foi preso por trintas dias, onde sofreu com torturas psicológicas:

A Bienal foi um instrumento comunista, financiado pelo Olho de Moscou. (risos) Verdade. Eu tô falando serio, porque as entrevistas que eu tive no Quartel General, com o Major Bendocfer, o tratamento era esse .(...) Eu fui interrogado pelo o major Bendocfer, que sempre procurou de mim uma confissão sobre o caráter politico da Bienal. A Bienal era um instrumento dos comunistas, organizada por comunistas e com a finalidade de converter, né? Ele era inteligente, né? A obra de arte pode ser um instrumento de persuasão politica. Claro que pode. (...) O objetivo maior era que eu confessasse que a Bienal foi feita com o dinheiro do partido Comunista, que foi orientada como uma coisa comunista, que o Secretário de Educação era um Comunista e que um e outro era comunista. Então eu que vou agora dizer quem é ou não comunista? Mas eu dizia ― não é, não é. O objetivo é outro‖. E eles: então você não quer ir pra casa? E eu: Quero, mas não vou inventar coisas. E eles: então você tá defendendo esses homens, né? Pois agora eu vou lhe mostrar. Aí mandou um cara trazer uma coisa gravada que eu era culpado por tudo aquilo, que fui eu que coloquei os quadros subversivos e tal. E que eles tinham me

ordenado a tirar os quadros antes, mas que eu era teimoso e tal.32

Juarez Paraíso, que foi o grande idealizador do projeto, acusado de

subversivo, sofre cerceamento de sua ação cultural na cidade por parte dos

militares. Posteriormente, suas atividades são restritas às aulas na Escola de

Belas Artes.

Neste contexto de repressão a liberdade criativa muitos artistas baianos

migraram para o interior do estado ou para o sudeste do pais. Os jovens

artistas Edinizio Ribeiro Primo, Rogério Duarte e Dicinho partiram com fúria

para o Rio de Janeiro e para São Paulo para participar da construção de um

outro capítulo da historia da arte baiana e brasileira: o tropicalismo. A

produção desses artistas, ainda pouco conhecida, teve um grande impacto

quando foram criadas e posteriormente passaram à largo, à margem dos

sistemas de legitimação da arte. Nosso desejo é revisitar as suas poéticas

em um momento histórico de crise, através das suas potências e evocar a

deliberada liberdade criativa que as constituíram.

32 Entrevista de Juarez Paraíso para os curadores da III Bienal da Bahia, Ayrson Heráclito e

Fernando Oliva, Salvador 2014.

89

A TODO VAPOR: POÉTICAS VISUAIS À MARGEM – DICINHO E EDINÍZIO

RIBEIRO PRIMO

Ao som do aço de Joplin e Hendrix, a atmosfera era de uma intensa

inquietude movida por densas e delirantes fumaças alucinógenas, por uma

utopia da liberdade e de insurgências às normas sociais opressoras. A

liberdade que se desejava para a vida era a mesma que movia a filosofia

criadora dos artistas dessa particular NAVILOUCA que viveram o período de

repressão mais feroz no Brasil e mesmo assim semearam o Câncer da Flor

do Mal.

A Tropicália metia os pés nas portas podres do conservadorismo e

reunia uma série de artistas que realizava um clímax anarcovisionário nos

trópicos, mediadas pelo experimentalismo musical e por uma visualidade em

puro transe psicodélico. O corpo era um local de transgressão, através de

happenings, proposições, indumentárias mutantes e de estados alterados de

consciência.

Fig. 22 – Pássaro cantando azul, pintura s/ papel artesanal de Edinízio Ribeiro

Primo

Em uma entrevista concedida para a III Bienal da Bahia, em 2014, o

artista Rogério Duarte fala do Tropicalismo como uma vocação cultural de um

90

país como o Brasil e não como um movimento artístico meramente comercial.

O verdadeiro sentido do movimento é absorver tudo de forma ―super tropical‖,

retomando a ideia da antropofagia de Oswald de Andrade. Em um processo

dinâmico, marcado pelo contato direto com a diversidade cultural - que não

se encerra em nada e afirma o desejo de absorver tudo e invadir o outro

mundo. Contínuo e permanente estado de movimento.

Em uma entrevista, Eduardo Viveiros de Castro fala sobre o livro o

Balanço da bossa de Augusto de Campos e analisa a aliança dos artistas

concretos ao movimento tropicalista

Eu acho que a grande contribuição dos concretos ao debate cultural no Brasil foi a redescoberta que fizeram de Oswald, em parte por via da aliança com o tropicalismo. Essa redescoberta me pareceria talvez até mais importante, no frigir dos ovos, que a teoria da poesia concreta enquanto tal. Mas não é possível separar uma coisa da outra. Afinal, o que os concretos nos legaram foi antes de tudo um paideuma rigoroso mas aberto, que transversalizou completamente os totemismos nacionalistas, colocando a arte brasileira em um campo estético poliglota e multívoco, sem hierarquias prévias ou extrínsecas. O Balanço da bossa... Esse livro do Augusto de Campos foi uma intervenção iluminada. Um divisor de águas, ao perceber na primeira hora que o tropicalismo era a bola da vez. E o Augusto produziu aí uma teoria, que na verdade foi uma redescoberta do Oswald pela ―alta cultura‖, no sentido da ―alta costura‖ dos concretos. Porque havia uma série de conflitos, e de repente o tropicalismo chegou para resolver o problema de alguma maneira, porque ele fez a síntese. Não uma síntese conjuntiva, mas uma ―síntese disjuntiva‖, diria Deleuze: Vicente Celestino e John Cage. E essa é a resposta que a América Latina tem que dar para a alienação cultural, é a única proposta de contra-alienação plausível, a única teoria de libertação e autonomia culturais produzida na América Latina.33 (CASTRO, 2008, p.23-36)

As colocações de Viveiros de Castro sobre o livro de Augusto de

Campos corroboram com o ponto de vista de Rogério Duarte em relação a

Oswald. Contudo, é importante reconhecer que o Tropicalismo foi um

33 Entrevista com Eduardo Viveiros de Castro por Pedro Cesarino e Sergio Cohn. Publicado

originalmente na revista Azougue 10: edição especial 2006-2008 (org. Sergio Cohn, Perdro Cesarino e Renato Rezende). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008 p. 23 - 36. Disponível em: http://blogs.cultura.gov.br/culturaepensamento/files/2010/10/revista-AZOUGUE-2006-2008.pdf

91

movimento abrangente no sentido de englobar diversas poéticas e que nem

todos os seus integrantes foram aceitos e absorvidos pelo mercado cultural.

Rogério nos fala de algum motivos que geraram uma visibilidade maior

para alguns artistas e não para outros e define os dois lados do movimento.

Em um determinado momento da produção brasileira, por volta de 1968, 1970 por aí, houve um movimento mundial para apagar aquilo. De fora e de dentro, me lembrando da A Flor do Mal que a gente editava... aí veio a revista Rolling Stones oferecer dinheiro para a gente parar a nossa produção. Porque estava vendendo e era um concorrente, entendeu?! Acabou contratando a minha equipe inteira para ir fazer a Rolling Stones e aí a gente teve que fechar por causa de dinheiro a Flor do Mal. A ditadura, um outro fator massacrante e também a pasteurização necessária de uma determinada forma dessa produção que era na área da mísica popular. Então, gerou, eu diria, que a tropicália haviam os baihunos (nominação cunhada por Millôr Fernandes em 1972 para definir os artistas baianos no Rio de Janeiro: Gal, Gil, Caetano e Bethânia). Os baihunos tomaram o poder e tinham uma produtora que era a Garra produções de Guilherme Araújo. Então, eles conseguiram sobreviver à ditadura. Ou seja, conseguiram compor de maneira que viabilizasse suas produções, sua continuidade.

Enquanto que o outro seguimento foi realmente destruído. Torquatro, Hélio, Edinízio Ribeiro, Dicinho, mil caras que estavam ali fazendo coisas também. Não tiveram a mesma possibilidade de continuar a produção. Tudo foi canalizado, pasteurizado, habilmente pinçou-se deste conjunto os elementos necessários para consolidar essa Tropicália oficial. E o todo da produção foi digamos assim esparramado. Hélio foi para New York, eu fui para o interior da Bahia, onde vivi vinte anos de solidão, totalmente marginalizado, até que voltei em 1990. De 70 à 90 eu vivi confinado. Mas eu sempre estive produzindo independente do lugar. (DUARTE, entrevista 2014)

É exatamente esse contexto que habita Edinízio Ribeiro Primo, nascido

em Ibirataia na Bahia, em 1945. Artista plástico e designer, se destacou em

técnicas gráficas como o desenho, a gravura e a criação de cenários e

figurinos para espetáculos teatrais e shows musicais nas décadas de 1960 e

1970. Um dos mestres da visualidade do movimento tropicalista, sua obra,

movida pelo experimentalismo e inovação, se encontra dispersa e pouco

conhecida devido a sua morte prematura aos 31 anos em Búzios, no Rio de

Janeiro, em 1976. O início da sua produção coincide com a transferência de

92

sua família para a cidade baiana de Jequié, onde tem contato direto com

jovens artistas integrantes do ―Grupo de Jequié‖, como define o pesquisador

Narlan Matos:

(...) os artistas plásticos Edinízio Ribeiro e Dicinho, os poetas Jorge e Waly Salomão, juntamente com o grupo musical Bossa Seis, e os talentos multifacetados de Lula Martins, César Zama e Maurício Bastos – todos de Jequié – foram responsáveis diretos pela construção da fase mais underground do tropicalismo, influenciando significativamente as mais variadas linguagens artísticas no cenário pós-moderno a partir da década de 70. (MATOS, 2013, p.170)

Soma-se outros nomes na lista dos citados por Narlan Matos como

Rogerio Duarte, Robinson Roberto, Tuna Espinheira, Bené Sena e etc. Esse

encontro de tantos artistas em Jequié produzirá um cenário artísticO

efervescente na pequena cidade do Sudoeste da Bahia nos anos 1960 e

1970. A produção de poetas, cineasta, músicos e artistas plásticos davam

corpo às inquietações do pensamento tropicalista. Não seria incorreto pensar

que a cidade, na época, era um epicentro das mais vívidas experimentações

artísticas no interior do Estado. São muitos talentos que nasceram ou

habitaram a cidade nessa época. A boca de brasa do poeta Waly Salomão

jocosamente definia o espirito da cidade: ―Se bicha fosse bala e maconha

fosse fuzil, Jequié estava pronta para defender o Brasil‖.

Um dos poucos textos produzidos sobre o artista foi escrito pelo

pesquisador Dermival Ribeiro Rios, intitulada Edinízio Ribeiro: um artista

insubmisso, uma amorosa biografia que reúne informações pessoais e de

sua trajetória artística profissional. A qualidade do texto e a forma poética em

que foi produzido apresenta um importante documento para a pesquisa sobre

sua obra, iremos transcrever alguns trechos:

Jequieense de opção e coração, apesar de nascido na zona rural da cidade de Ibirataia (BA), em terras de cacau do sul da Bahia, em 15 de maio de 1945. Criança ainda, Edinízio já se preocupava com a forma, e realizava trabalhos em argila. Na escola primária, o menino pintava em cadernos seus e dos colegas, em troca de namoricos ou merendas.

Tinha doze anos de idade quando a família se mudou para Jequié, nos idos de 1957, e foi morar no Jequiezinho, numa travessa da ladeira da Balança. Seu Nenzinho, o sisudo e correto Salmon Ribeiro, o pai, preocupado com a educação dos filhos em idade escolar, queria viver numa

93

cidade maior, que oferecesse o curso ginasial e o colegial, ainda distantes da pequena Ibirataia daqueles tempos. Mas já no ano seguinte, em 1959, o pai morre no interior de Minas Gerais, deixando Edinízio órfão, numa família de muitos irmãos e irmãs, maiores e menores que ele.(...) (RIBEIRO,2014, s/p )

Segundo as pesquisas de Dermival Ribeiro Rios, o artista se transfere

para São Paulo com sua família em 1966, onde se aproxima da cena artística

e intelectual da grande metrópole. É reconhecido como um jovem talento pelo

crítico Mário Schemberg e pelo casal Pietro Maria Bardi e Lina Bo Bardi, que

oferecem a chancela para sua introdução na cena artística da cidade. Por

intermédio de Mário Schemberg, ingressa como bolsista na Fundação

Armando Álvares Penteado – FAAP, onde se destaca obtendo prêmios e

desenvolvendo trabalhos gráficos como, por exemplo, a criação do catálogo

da importante exposição de Flávio de Carvalho, em 1967, no Museu de Arte

Brasileira da FAAP.

Fig. 23 - Flávio de Carvalho, em 1967, no Museu de Arte Brasileira da FAAP

O autor salienta a importância desse momento na sua trajetória artística

e nas suas definições políticas e existenciais:

(...) EDINÍZIO se torna por algum tempo funcionário público do Museu de Arte Brasileira para catálogos e exposições, e monta ateliê nas imediações da Av. da Consolação, mais propriamente próximo ao Cemitério da Consolação, local onde pratica uma gama variada de serviços: faz cartazes, cria roupas e sacolas… enfim, tudo o que viria compor o visual e a personalidade de artistas e conjuntos da época. Era a fase que se convencionou chamar hippie.

O Brasil vivia um momento fortemente rebelde, em que os artistas se alinhavam às forças democráticas para combater a ditadura

94

militar instalada em 1964. Estudantes protestavam em todos os cantos, criadores em geral buscavam com garra encontrar os próprios e libertários caminhos. Tempos duros. Prisões arbitrárias se sucediam por quaisquer motivos e sem motivo algum, bastava que um policial cismasse do cabelo comprido de um, da

aparência hippie de outro. (...)(RIBEIRO,2014, s/p )

A cena cultural e existencial que se constrói em torno do ateliê da rua

da Consolação, no final dos anos 1960, define a sua participação ativa no

movimento do tropicalismo. O atelier se torna o reduto dos artistas baianos

em São Paulo, Caetano, Gil, Gal Costa, assim como os seus amigos do

grupo de Jequié: Dicinho, Jorge e Waly Salomão, Tuna Espinheira, Alba e

Chico Liberato, Lula Martins, Bené Sena, César Zama, entre outros. Arte,

sexo, vida em comunidade, profundas experiências com alteradores de

consciência definem uma geração ultracriativa e libertária. O mundo da

música o fascina e oferece um universo para exercitar suas propostas

estéticas. Os Mutantes, Secos e Molhados e os Novos Baianos estarão na

lista de amigos e colaboradores. Foi cenógrafo de vários shows, como o

primeiro de Gal Costa em São Paulo, Divino maravilhoso, em 1972, fez a

revolucionária capa do LP Expresso 2222, de Gilberto Gil e as capas

dos LPs Drama, de Maria Bethânia, e Índia, de Gal Costa.

Outra experiência fundante na sua trajetória foi a sua vivência com o

Teatro Oficina, liderado por Zé Celso. Envolvido com a construção de

cenários e figurinos, nesse processo chegou a ser preso por 45 dias no

presídio Carandiru, com outros componentes do grupo.

Manteve uma parceria muito produtiva com os irmãos poetas e

ensaístas Haroldo, Augusto de Campos e Júlio Plaza, com os quais trabalhou

no projeto Caixa preta, de música e arte, quando participa da

publicação Qorpo extranho, inserindo um encarte central com o registro

fotográfico da performance intitulada Modo de volar.

Dentro do universo das mostras artísticas, participou de exposições

importantes, entre as quais o III Salão de Arte Contemporânea, em Campinas,

SP, e a I Bienal Nacional de Artes Plásticas, em Salvador, com a

obra Instrumentos de posse, em 1971, realizou sua primeira exposição

individual, no Museu de Arte Brasileira da FAAP.

95

Em 1967, de forma obscura, morre afogado nas águas de Búzios, no

Rio de Janeiro, aos 31 anos, sendo que seu corpo nunca foi encontrado.

Alguns pesquisadores brasileiros da área de arte já começam a se

interessar pela investigação de uma produção artística que passou por um

longo período na invisibilidade por diversos motivos, dentre os quais a falta

de legitimação no sistema comercial, a inexistência de trabalhos críticos e

historiográficos, o desconhecimento e quase apagamento do pensamento e

da produção artística que fora taxada de subversiva pelo regime da ditadura

militar, condenando ao esquecimento essa produção por não ser conveniente

aos sistemas artísticos implantados e controlados por uma elite política.

A iniciativa da 3a Bienal da Bahia, em 2014, pretendia apresentar a obra

do artista em uma mostra ―Monográfica‖, a fim de contribuir para a redução

desse hiato, apresentando uma quantidade significativa de obras recolhidas

em diversos lugares no Brasil. Edinízio define o espírito nocivo e repressivo

da época em que viveu na seguinte reflexão:

Pior do que a mutilação dos pés e das mãos é a mutilação que se tem aí fora – a mutilação de ideias. Aqui se vê claramente que não existe mais arte de protesto. Hoje, as repressões são demonstradas e sentidas sobre o corpo. Quem livrou o corpo está fora de tudo. (PRIMO, apud SOUZA 1976, p. 79)

Em outra declaração, desta vez dada a Percival de Souza, enquanto

estava na condição de preso político no Pavilhão 2 do Carandirú, o artista

define a sua obra de forma ampliada e sem limites estéticos, transcendente,

revelando a profundidade de suas questões filosóficas e existenciais:

Fui do primitivismo autodidata, anterior aos 13 anos, para o expressionismo político de Portinari, até uma integração com as artes em geral. E estou caminhando para as influências do Extremo Oriente (Osawa e a macrobiótica). Uma fase a ser chamada de científica, que é o conhecimento das forças-cores Yin e Yang, que regem a natureza: amarelo, luz solar; magenta, ultravioleta; e azul, espaço e água. (PRIMO apud SOUZA, 1976, p79)

O restrito acervo de obra e documentos levantados na pesquisa

realizada para a 3a Bienal da Bahia foram colhidos entre as cidades de

Jequié, Vitória da Conquista, Ibirataia, Ilhéus e em São Paulo, pertencentes a

amigos e familiares. Composto por 42 itens entre fotografias, impressos,

96

capas de disco, registro fílmico de figurino de show, desenhos e pinturas. É

complexo traçar uma análise crítica sobre a obra do artista com tão restrito

acervo. Contudo, é possível tecermos algumas considerações que possam

revelar um pouco da sua trajetória.

As fotografias deste acervo apresentam o artista em seu atelier,

produzindo uma das suas obra; fotografias que registram suas interversões

performáticas na feira livre da cidade de Jequié; um precioso ensaio de foto-

performance publicado na Qorpo Estranho - Revista de Criação

intersemiótica n. 1, editada em 1976 por Júlio Plaza e pelo Régis Bonvicino.

Fig. 24 - ensaio de foto-performance publicado na Qorpo Estranho, 1976. Foto de Regina Valter e Gerson Zanini.

Os 8 desenhos preparatórios da série FRUTOS DE MI TERRA; a série

de 3 estudos de Leões Alados e 1 lagarto feito com esferográfica; 1 esboço

com indicação de cores para uma serigravura de mãos superposta por um

transparente triângulo; 1 estudo de azulejos; 1 estudo para a serigrafia o

Namoro de Negros; 1 estudo para a serigrafia intitulada Gaiolas. 6 pinturas

realizadas em diferentes técnicas e suportes: Galo cantando azul, óleo sobre

bastidor; Cabaças, 1972, óleo sobre tela; Galos de briga, 1971, óleo sobre

tela; o díptico - Homem na guerra e homem na Lua; Mulher grávida, 1966, em

técnica mista sobre compensado; pintura S/ título, 1974 sobre placa de vinil;

uma pintura S/ título da série de Mancha Rorschach sobre entretela; três

capas de discos, capa do Expresso 222 de Gilberto Gil, Capa de Índia de Gal

Costa e Drama de Maria Bethânia; um conjunto de 5 gravuras Galo

97

fantástico/, s/d; Flor de bananeira brava, 1975; e 3 litogravuras de natureza.

Registro da performance de Caetano Veloso vestindo figurino Edinízio no

Filme do filme PHONO 73: o canto de um povo.

Fig. 25 - Capa do álbum Expresso 222, de Gilberto Gil, 1972

Um dos seus trabalho mais conhecidos foi a criação da famosa capa do

disco de Gilberto Gil Expresso 2222 em 1972. Uma capa absolutamente

radical em sua concepção pois não se tratava da tradicional capa quadrada

mas sim de um grande circulo que se desdobrava. O produtor do disco

Roberto Menescal revela:

O artista responsável (Edinízio Ribeiro Primo) me mostrou o projeto, redondo, redondo, bacana. ―Tá, agora só vamos ter que reduzir para caber no quadrado da capa padrão.‖ Ele: ―Não, meu projeto é assim mesmo.‖ ―Mas temos as caixas-padrão para armazenar os discos.‖ ―Vocês podem fazer caixas maiores.‖ ―Mas tem as nossas prateleiras, o espaço das lojas.‖ E ele respondendo que tudo podia ser mudado para caber o disco. Demorei a convencê-lo a fazer como saiu, dobrando para ficar quadrado. Mesmo assim, saiu caro. A cada disco vendido, perdíamos o equivalente a R$ 1. Mas era investimento.34 (MENESCAL, apud LICHOTE, 2012, s/p.)

A capa era uma audacioso projeto gráfico, onde dois círculos se uniam

formando um frente verso. A imagem de Gil ainda criança emoldurado pelo

aro de uma tábua de jogo de ifá e sobre ele apenas o numero 2222 e o nome

34 O Globo, 11/11/2012 artigo de Leonardo Lichote sobre os 40 anos do álbum -

relançamento em versão digital.

98

do artista com uma tipologia de poesia visual na cor vermelha. No verso da

capa uma composição concêntrica de círculos e quadrados que

desdobravam ao infinito. Nuvens e astros celestes promoviam um efeito

óptico mítico e sideral sobre fotos em transparência dos integrante da banda.

Esta capa revela a necessidade de experimentação do artista inserida

nas mídias de massa. O gosto pela produção em série, através da produção

de gravuras é presente em sua obra incentivada pelo contato do artista com a

poesia concreta. Edinízio reunia uma grande talento e fartura técnica para o

desenho e para as técnica de impressão, seguida de uma liberdade poética

onde combinava elementos da cultura popular nordestina com o repertório

urbano das grandes metrópoles brasileira. As ideias de Lina Bo Bardi em

relação aos rumos da arte brasileira habitavam o seu universo criativo.

Edinízio teve mais contato com a arquiteta em São Paulo do que no seu

período que esteve na Bahia.

Uma outra vertente de sua obra que merece destaque é a criação de

figurinos e cenários. Edinízio e Dicinho foram ativos colaboradores da famosa

boutique Ao Dromedário Elegante da estilista Regina Boni.

Fig. 26 - Fachada da boutique Ao Dromedário Elegante. Foto arquivo de Regina Boni s/d. São Paulo

Edinízio e Dicinho se desdobravam trabalhando na produção de peças

gráficas e também atuando como modelos para editoriais nas revistas. As

99

bases para um novo conceito de vestir eram criadas nesse universo de trocas

intensas com os artistas. A revolução deveria ser vestida também, saído das

teorias dos livros e invadindo as ruas. Vestir é ato mágico, como sugeriu

Hélio Oiticica. A moda mutante do Dromedário Elegante refletia no

comportamento da juventude reafirmando a ideia que a roupa é um

prolongamento do corpo sendo uma construção estética e ideológica. Regina

Boni em um depoimento para a publicação do SESC em homenagem à

Tropicália revela:

(...)O tropicalismo é antes mais nada um bicho de sete cabeças, arquetípico, faminto e esplendoroso, que habita as águas profundas deste pequeno universo de todos nós. Um bicho lindo, alegórico, feito de isopor e purpurina, cujo dramático destino é desafiar eternamente. (...) Não eram Roupas, mas uma espécie de organização do delírio, ou melhor, uma declaração de amor e felicidade em estado bruto, como alto teor de pureza.(...) Dromedário acabou em 69. Tínhamos nos dispersado. Caetano e Gil exilados em Londres. Waly sumido, Gal no Rio, Hélio em Nova York ; Torquato morreu, Edinizio desaparece, Rosão e Péricles também se foram para longe. Deixei que morresse por asfixia e não sinto remorsos nem saudades.35 (BONI, 1987,s/p)

Desta época ainda não encontramos nem uma peça original produzida

pelo artista. Temos uma ideia das suas produções através de relatos de

familiares e do próprio Dicinho. Um figurino para Caetano Veloso no PHONO

73, e um importante editorial para revista Manchete.

35 BONI, Regina. Tropicália 20 anos, SESC, 1987

100

Fig. 27 - Editorial de moda para revista Manchete, s/d - Ao Dromedário Elegante. Dicinho de cachecol e Edinízio de xale.

A série de desenhos preparatórios para o álbum, não concluído,

FRUTOS DE MI TERRA, foram encontradas em diferentes acervos.

Realizado em diferentes tipos de papel, em lápis e canetas Hidrocor, nas

dimensões A-3, provavelmente realizadas entre 1971 a 1974 para a empresa

de serigrafia Kompass que tinha como diretor de arte o Crítico de Arte Harry

Laus, que em 1974, inaugura a Kompass Cultura Galeria de Arte com uma

exposição coletiva em que Edinízio participa.

A temática dessa série está relacionada ao livro de poemas de André

Gide Les Nourritures Terrestre (lançado em português como Os Frutos da

Terra). Este livro marca profundamente o artista, que se identifica com o

lirismo libertário e sensual do autor, a partir da conexão com as ideias de

Gide, de acordar os sentidos para a matéria, os elementos naturais, a

sensualidade da vida relacionada os ciclos da terra, pelas colheitas, pelos

frutos e por tudo que se relaciona com o carnal, um hino de sensualidade

poética.

A primeira prancha do álbum representa o torço de um homem em

posição frontal, sua cabeça é substituída por uma grande jaca. Um fruto

tropical que fascinava o artista, não apenas pelo seu sabor, como também

pela sua cor e rico padrão visual da sua casca. A imagem nos remete às

101

pinturas metafísicas do René Magritte, em que o autor esconde o rotos de

seus personagens burocráticos com um a figura de uma maçã verde. A

imagem de Edinízio nos convida a pensar em um abordagem mais holística,

um acordar para a natureza tropical que nos constitui. O homem com cabeça

de jaca de Edinízo também nos remete para situações performativas de

hibridações ente natureza e cultura. As outras pranchas elege outras frutas e

leguminosas como: Macaxera/Mandioca/Aipim, Cacau – chocolate, Fruta

pão, Jaca – Cajá, Banana e o Mamão com o passarinho. A organização

espacial da composição combina palavras e imagens ativando sonoridade e

sensações que estimulam novas percepções. Existe uma clara aproximação

da poesia visual e do lirismo indicado pela sua fonte de referência em Gide. A

série nos faz pensar em um álbum de um naturalista contemporâneo,

redescobrindo sensualmente ao acordar de todos os seus sentidos para um

mundo a qual lhe pertence.

Não sabemos se essa pranchas somam para formar uma totalidade da

série. Através de consultas aos proprietários dos desenhos não obtivemos

respostas. Todos os desenhos foram distribuídos entre os irmãos logo após a

sua morte em 1976.

102

Fig. 28 - Frutos de mi terra, s/d. Desenho. Hidrocor s/ papel. Dimensões: 38 x 26 cm

Uma outra grande influência na obra de Edinízio é a Poesia Concreta e

o artista Maurits Cornelis Escher. A obra gráfica do artista o fascinava. A

pesquisa por forma modulares e em estado contínuo de transformação

estimulava a sua imaginação. Desdobramentos de padrões geométricos que

se entrecruzavam, promovendo desvios de ordem como em uma alucinação.

É importante destacar aqui que o artista fazia uso regular de alteradores de

consciência, desde as ervas e chás psicoativos até drogas mais fortes como

a heroína. Além disso, como uma grande parcela da sua geração, era adepto

da alimentação macrobiótica e das práticas orientais de meditação e yoga.

Isso pode ser relevante para compreendermos mais o seu processo de

criação. Outro dado que atravessa a sua obra é a questão racial e de gênero.

Edinízio era negro e homossexual e tinha um comportamento combativo em

relação ao preconceito. Não chegou a militar em nenhuma das causas, mas

sua postura frente ao meio social sempre foi ativa, revelando uma

personalidade forte e irada ao sinal de qualquer preconceito.

Em um projeto para serigrafia, Namoro de Negros, o artista cria um

composição com forte teor pop narrativo lembrado uma história em quadrinho.

103

Fig. 29 - Namoro de Negros, guache sobre papel milimetrado, 1974.

Com apenas duas cores complementares mais o preto, uma história

de amor é apresentada. Os retratos superiores dos personagem estão unidos

por uma vibração concêntrica de um coração revelando a grande emoção

das partes. Na região central, closes dos olhos e do beijo como o anúncio

preliminar dos torços nus que se seguem. A base da composição é o

entrelaçamento das mãos que remetem a um abraço perfumado de rosas

vermelhas. Essa obra se destaca no repertório temático da produção da

chamada arte afrobrasileira pelo seu caráter profundamente romântico e

sensual. O tema de amor entre negros foi pouco explorado pelos artistas

brasileiros.

Uma pintura sobre tela que gostaria de comentar é o jogo das cabeças

Cabaças, uma obra de 1972. A composição se organiza no encache de

quatro cabaças, onde o centro é formado pelo encontro da parte superior das

mesmas sobre um circulo vermelho. Um arranjo de grande inteligência visual

onde a precisão formal remete as conquistas da arte geométrica brasileira.

Mas não é só o sentido construtivo, a imagem nos remete para um mundo

mítico de um Brasil profundo.

104

Fig. 30 - Cabaças, óleo sobre tela, 1972.

A cabaça, esse fruto grande da ávore cabaceira, que após seco é

limpo, se presta com recipiente de líquidos e outro matérias domestico, é

amplamente utilizado no Nordeste do Brasil. Tendo fortes relação com as

culturas indígenas e africanas a cabaça miticamente está associado a um

receptáculo onde se guarda a sabedoria e a própria existência. As cabaças

pintadas por Edinízio revelam seu interior a partir de cortes circulares

apresentando uma engrenagem de signos. Associados às cabeças rementem

ao conhecimento e a memória, que, na obra, reverbera sobre um universo

em azul.

Adilson Costa Carvalho, Dicinho, nasceu em 9 de janeiro 1945 na

cidade de Jequié, ele começou a fazer arte com o seu pai Lourival Carvalho

conhecido como Vavá, que nasceu no dia 5 de janeiro, e, segundo a cabala,

os nascidos nesse período são dotados de uma criatividade impressionante.

O artista nos conta que o pai era um pintor mas uma espécie de inventor

Ele era um inventor. Se precisasse um bule para a minha casa, ele pegava os materiais, soldava e fazia um bule. Então, ele tinha uma praticidade e eu fui vendo aquilo, mas nem se falava em escultura ou pintura. Lá em casa a gente nem tratava disso. Ele fazia isso para poder auxiliar na renda da casa pois éramos uma família muito humilde, pobre. Então, para auxiliar, ele fazia os móveis da casa e aquilo foi me fascinando. (DICINHO, entrevista, 2014)

105

Essa habilidade em trabalhar diversos materiais com inventividade irá

marcar o futuro trabalho artístico de Dicinho. As produções de Dicinho e

Edinízio só podem ser compreendidas se foram alocadas dentro de um

contexto de intensa inquietude e invenção . Ambos têm em suas construções

poéticas o apreço pela criação de métodos e procedimentos particulares ao

fazer artístico, instaurando novas faturas com investigação de materiais e

criação de ferramentas – a exemplo das espátulas e tekes feitos com talheres

por Dicinho ou as manchas sobre entretelas inspiradas no método Rorschach

de Edinízio.

Dicinho se revela um exímio artesão ao trabalhar com o couro na

criação de bolsas, sandálias e acessórios. Em 1967, se transfere para

Salvador, montando um atelier no bairro do Pelourinho, junto com um amigo

de Jequié Lula Martins36. Mas, nesse momento, Dicinho também se dedica à

escultura, trabalhando com entalhe em madeira.

Nesse período em Salvador, o artista conhece Edinizio, que já estava

residindo e trabalhando em São Paulo. O encontro marca o início de uma

grande amizade. Edinízio, que já era um artista conhecido pelos jovens

artistas da Tropicália, apresenta-o para o poeta Capinam e, posteriormente,

para sua grande musa: Gal Costa. Esse encontro com a cantora marca a

careira do artista que revela que quando a conheceu ele estava fazendo um

medalhão para uma peça de teatro em Salvador. O adereço constava de dois

lados, sendo que um deles tinha a imagem de Karl Marx e a outo a face de

Tio Patinhas. Gal ficou fascinada pela peça e encomendou outras coisas,

como revela Dicinho:

Quando Gal viu essa coisa, ela disse: eu quero que você faça um cinto para mim. Porque eu trabalhava com o couro. Ela me encomendou um cinto. Aí eu fiz o cinto que era toda uma leitura do mundo que vivíamos, todo desenhado com cenas de jornais, bem assim astronautas... Ela gostou muito do cinto, pois naquela época estávamos passando uma avalanche de querer conhecer tudo, do homem chegando na lua, Pelé era uma ídolo. Então era uma época, muito intensa. E aí, paralelo a essa coisa, a vida que a gente tinha nos obrigava a nos virar com a repressão policial. Eu era meio

36 Lula Martins: Ator, poeta, escultor, diretor, cantor e compositor. Foi protagonista do filme

Meteorango kid- Herói intergaláctico de André Luiz de Oliveira em 1969.

106

idealista, pertencia ao partido comunista, e os meus amigos começaram a morrer.37 (DICINHO, entrevista, 2014))

Gal Costa a partir de então elege Dicinho como um grande

colaborador artístico. Futuramente, é convidado para fazer a capa do seu

disco em 1969 assim com acessórios para shows.

Entre 1968 e 1969, Edinízio convida Dicinho para se mudar para São

Paulo a fim de trabalharem juntos em sua casa-ateliê na Consolação. A casa

seria um espaço de encontro onde reuniam muitos artistas e produtores

culturais como Regina Boni, Waly Salomão, Ney Matogrosso, Caetano

Veloso, Gal Costa, Os mutantes, Zé Celso Martinez e muitos outros. A casa

que irá se destacar como um lugar de liberdade e experimentação criativa

também irá abrigar muitos amigos perseguidos pelos militares acusados de

―subversão à ordem‖. Assim, se transformaria em um espaço muito visado

pela polícia e sujeito à diversas revistas. Foram muitas as situações de

tensão que insurgiram sobre os integrantes da casa, mas eles não se

acovardaram.

Fig. 31 - Capa do álbum Gal lançado em 1969

37 Através de textos e informações sobre política enviados por Waly Salomão de Salvador

para os seus amigos de Jequié, no período eles fundam o Partido Comunista da cidade.

107

Em 1969, Gal Costa convida Dicinho para fazer a capa do seu álbum

Gal. O disco traz a famosa faixa Meu nome é Gal , composta por Roberto e

Erasmo Carlos, cuja a letra traz um trecho em recitativo que a cantora fala:

Meu nome é Gal, tenho 24 anos Nasci na Barra Avenida, Bahia Todo dia eu sonho alguém pra mim Acredito em Deus, gosto de baile, cinema Admiro Caetano, Gil, Roberto, Erasmo, Macalé, Paulinho da Viola, Lanny Rogério Sganzerla, Jorge Ben, Rogério Duprat, Waly, Dircinho, Nando, E o pessoal da pesada E se um dia eu tiver alguém com bastante amor pra me dar Não precisa sobrenome Pois é o amor que faz o homem."

O trecho da canção apresenta uma declaração de carinho da cantora

por diversas pessoas que admirava. Dicinho consta na seleta seleção.

A capa que desenvolveu para o disco traz uma imagem intrigante, um

misterioso retrato da cantora pintado com uma cor verde musgo e com a

grande cabeleira que abriga animais, seres metafísicos e monstros. Um

desenho realizado com lápis Caran D‘Ache em um jogo subliminar contra a

censura repressiva, traduzia um leão com olhos esbugalhados, diretamente

ligado ao signo do zodíaco da cantora, convive lado a lado com dedos

arredondados que apertam o espírito etéreo de um ser indefinido.

A obra aponta para a aspereza de um psicodelismo em transe rastafári -

tradutor de uma exuberância criativa mestiça e livre de obstáculos, que

engendra um sotaque visual nômade articulando outras rotas de erupções

estéticas, oriundas de um trânsito entre Jamaica, Suriname, São Luiz do

Maranhão, Canoa Quebrada e Arembepe. Tal imagem nos convida a pensar

em uma visualidade fruto de encontros mestiços, de ―marchetarias instáveis‖

que só podem ser percebidas a partir um exercício pelo víeis decolonial.

Observamos como um desejo internacional hippie enquanto projeto de vida

se reconfigura em um mosaico sob o sol e os sabores tropicais, se

relacionado também às possibilidades de alterações de consciência, às

religiosidades afro-indígenas e orientais.

108

Nesse momento Dicinho, é apresentado ao casal Pietro e Lina Bardi

por Eugênio Hirsch, que era capista da José Olympio Editora e havia o

conhecido no Rio. Ele narra como foi inusitado o encontro com o casal na

Casa de Vidro e como a empatia com o casal foi imediata:

quando eu conheci Dona Lina, Eugênio disse eu faço questão que ele dance aqui para vocês verem. Bardi comentou com Ednízio: mas aqui na minha casa, aqui não dar para dançar. Não, não... Eugênio disse: mas eu trouxe ele do Rio só para mostrar esse menino dançando. Ele também é artista plástico. Aí, quando eu dancei, Bardi gostou muito e Dona Lina também.(...) Sr. Bardi pegou o equivalente a 3 mil reais e colocou em meu bolço e disse aqui é para pagar o espetáculo de dança que você me proporcionou.(...) Dona Lina me disse que queria se encontrar comigo para a gente fazer uma exposição. Eu disse que eu nem tinha trabalhos. Ele me disse: não me interessa, vamos fazer. Você sabe como é um santo bater com o seu? Era eu e Dona Lina. Ai eu fiz uma exposição no Museu de Arte de São Paulo chamada A anunciação que era um tributo a James Dean.

Dicinho nos contou detalhes do seu primeiro trabalho com Lina. Ele

propôs para ela a realização de uma performance que contava com uma

dança ritual com um grande bode que berrava muito alto e vomitava. A

proposta não agradou Pietro que achou abusivamente estranha para ser

apresentada no MASP. Lina então propôs a Dicinho realizar o evento no

Circo Piolin, que 1972 estava montado sob o vão livre do Museu, devido

comemorativo aos cinquentenário da Semana de Arte Moderna. Dicinho

adorou a ideia e organizou uma grande performance e uma exposição que se

chamava Anunciação. A mostra causou grande comoção ao público. A partir

do sucesso do evento, a parceria entre os dois foi grande e sempre marcada

de ludicidade. Os seus amigos não compreendiam o por que de uma mulher

tão importante e famosa reservasse para ele tanta atenção.

109

Fig. 32 - O Bode escultura 1972 de Dicinho, do época com Lina em São Paulo

Seguiram outras exposições com curadoria ou consultoria de Lina. Não

temos muitas informações sobre as mostras e o currículo de Dicinho não é

organizado com os registros das datas. Ele não se lembra muito bem quando

consultado. Aproximadamente em 1975, ele realiza a exposição Fragmentos

Fragmentos, na Capela do Solar do Unhão no Museu de Arte Moderna da

Bahia. Ao consultar os registros das exposições do museu no período, não

encontramos nenhuma informação sobre o evento. Dicinho nos informa que a

mostra, não oficialmente, inaugurava a capela como espaço expositivo, dai a

falta de registro. A exposição era organizada com a apresentação de várias

cenas sobre o vasto leque das emoções humanas: ira, rancor, mágoa, etc e

que todos os objetos eram construídos com materiais reciclados recolhidos

do lixo, palitos de fósforo, caixas de papelão, latas, entre outros. O evento

culminava com um intensa performance solo de dança iluminada por

candeeiros populares do tipo fifó. O artista realizava um poderoso ritual em

tributo a Janis Joplin, recentemente falecida.

110

Fig. 33 - Exposição Animais no Sesc Pompéia em São Paulo,1980

Em São Paulo, no ano de 1980, Lina monta duas exposições do artista:

Animais no Sesc Pompéia e Espaço Aberto no Sesc Vila Nova. As peças

apresentadas eram compostas por esculturas e relevos, de diversos animais

realizada com a sua original Massa Copageti. Tal técnica é uma mistura de

polpa de papel com gesso e cola. A superfície das peças lembram a da

cerâmica. Polidas e regulares serviriam para as suas intervenções de pintura.

A pintura sobre suas esculturas funcionam com um pele, uma camada

profundamente complexa e minuciosamente realizada criando padrões

geométricos repetidos e organizados de forma hipnótica. Em determinados

momentos, nos faz lembrar a pintura corporal dos indígenas brasileiros

combinada em alguns casos com as influências de Fernand Léger sobre a

obra da Tarsila do Amaral.

111

Fig. 34 - A cabra, escultura pintada de Dicinho.

As ferramenta para a realização da pintura são todas criada pelo artista.

Desde os pinceis de um único fio até uma série de pequenos carimbos

confeccionados a partir de alumínio reciclado de latas de refrigerantes e

borracha de sandálias.

No texto para o catálogo da exposição Espaço Aberto no Sesc Vila

Nova em 1980, Antonio Risério sintetiza

Dicinho é um criador visual. A expressão ―artista plástico‖

cobre apenas uma pequena faixa do largo espectro da

criação visual, e a verdade é que Dicinho passeia livremente

nos campos do visível. Ele tanto participa de exposições

coletivas e individuais de pintura quanto transa o visual do

show de Gal Costa no Teatro Oficina; tanto cria a capa do

disco de Moraes Moreira quanto desenha para as revistas

Realidade, Planeta e Pop, e os jornais Flor do Mal, Verbo

Encantado e Jornal da Tarde; tanto ministra um curso de arte

na Bahia quanto participa da execução dos figurinos da peça

Na Selva das Cidades, dirigida pelo Zé Celso Martinez, etc.

Além de dançar, é claro. E de construir bichos, espelhos,

camas, frutas, etc, servindo-se das mais variadas técnicas e

linguagens, invariavelmente projetadas em formas orgânicas.

(RISÉRIO, 1980, s/p.)

112

O texto de Risério é bastante eficiente em apresentar as múltiplas

qualidades artísticas de Dicinho. Sendo necessário destacarmos aqui uma

característica na sua obra que a torna singular: a relação entre valores

pictóricos e tridimensionais. O artista promove um perfeito encontro entre a

pintura e a escultura.

A sua obra Macaco nos toma pela impressionante capacidade de articulação

entre essas duas linguagens expressivas. Geralmente, a pintura sobre

escultura é praticada com o objetivo de reforçar a sua volumetria pela o uso

da cor. No caso de Dicinho a obra figurativa tridimensional se justaposição

pela bidimensionalidade de uma superfície pintada com padrões figurativos.

São duas obras que podem existir independentes uma da outra. Mas no seu

processo elas coexistem de forma surpreendente. Há uma convívio que

reúne as duas dimensões visuais, afim de gerar um terceira unitária. Não se

trata de uma decoração meramente estética, percebemos uma

simultaneidade de agência. Ou seja, a pintura age sobre a escultura e a

escultura age sobre a pintura de forma a promover as suas eficácias,

ampliando suas potências. No corpo do macaco, se descortina um mundo

figural, absolutamente tropical. Uma narrativa mítica que fala do seu mundo

natural. Reunindo em seu corpo a exterioridade da floresta onde vive.

Fig. 35 - Macaco escultura pintada, 90 x 60 x 20 cm s/d.

113

Rogério Duarte, ao analisar a obra do amigo, que ele considera ser O

Ágora da Tropicália, também chama atenção para multiplicidade criativa e

fala de seus líquidos caminho que vão: ―(...)desde vanguarda erudita do

modernismo à arte popular. Desde Ismael Neri, Volpi, Tarcila à cerâmica

nordestina de Vitalino e a escultura religiosa afro-brasileira.(...)‖ (DUARTE,

s/d, s/p.)

Pensar os mistérios desses dois artistas conjuntamente é também

estabelecer um reencontro. Reencontro de uma maneira distinta. Primeiro,

pela presença-ausência de Edinízio, desaparecido desde 1976 nas águas de

Búzios, no Rio de Janeiro, e nunca encontrado. E depois pela confluência

face a face dos universos poéticos desses dois artistas, que ainda habitam o

campo de uma invisibilidade cruel e injusta.

Fig. 36 – Dicinho, terceiro da esquerda para direita (cima) posa para editorial de

moda da Arp

Ambos artistas resistem ao tempo. Basta pensar nas obras de Edinízio -

reunidas com a ajuda da família e de amigos e restauradas para participar da

3ª. Bienal da Bahia. Ou encontrar Dicinho que traz ainda hoje nos trabalhos a

obsessão fabulosa e cromática presente em cada ponto gravado

individualmente em suas peças escultóricas.

114

Como sugeriu Dermerval Ribeiro (RIBEIRO, 2014) sobre Edinízio, e que

temos a ousadia de estender aos esses dois personagens da cena

tropicalista deste momento, são artistas insubmissos. Que a mesma nebulosa

criativa que perpassam as constelações artísticas de Edinízio Ribeiro Primo e

Dicinho possa, a todo vapor, nos contaminar.

115

CONSIDERAÇOES FINAIS

Inicialmente, a pesquisa foi pensada como uma grande revisão sobre

alguns discursos a respeito de projetos de civilização que contribuíram para

uma visão da arte nordestina e, mais especificamente, a arte baiana. Essa

tese foi realizada assentada em várias perspectivas e discursos, sobretudo,

os mais ignorados dentro de um sistema acadêmico. Ou seja, demos

preferência por apostar em estratégias que promovem um desmonte crítico a

respeito das verdades absolutas no campo das artes. A partir de diversas

discursões sobre projetos e utopias que tem intenções civilizatórias,

reconhecemos as implicações sociais de falas referentes à construção da

experiência cultural e histórica da arte do Nordeste e como elas foram e são

proferidas a partir de tensões políticas e culturais locais.

Ressaltamos a necessidade de revisitar os discursos sobre os cenários

artísticos e praticarmos um processo desmistificador da própria história da

arte - uma disciplina que, na maioria das vezes, ainda é exercida a partir de

experiência externas às diversidades culturais brasileiras. Aprendemos

também como pensar nossas experiências locais rejeitando leituras

generalistas e reducionistas. A intensão permanente de se interrogar e tentar

lançar um olhar com maior criticidade à história da arte perpassou todo o

nosso processo. O que são os Nordestes? Como são suas civilizações?

Como elas são construídas? O que são as artes produzidas neles? O que se

fala e o que se escreve sobre elas?

Durante a realização da pesquisa, fomos atravessados pelo o convite

feito ao autor desta tese para compor o time de curadores da, já histórica, 3a

Bienal da Bahia. O convite formal feito pelos organizadores foi imediatamente

aceito. Era a chance das pesquisa já iniciadas no início de 2010 sobre arte

baiana e nordestina saltarem da esfera teórica para resoluções curatoriais

práticas. Vivenciamos um contexto muito favorável para se trabalhar temas e

repertórios ainda pouco explorados. Um desafio em vários sentidos, primeiro,

por realizar todo um trabalho de pesquisa sem muita estrutura financeira,

segundo, porque o universo de uma produção fragilizada pelo sua condição

marginal é de difícil organização.

116

Assim, em 2014 o Governo do Estado da Bahia, através da Secretaria

de Cultura e do Museu de Arte Moderna, retoma o projeto da Bienal da Bahia,

interrompido há 46 anos após o seu fechamento em 1968 pelo Regime Militar.

O então governador do Estado Jaques Wagner, a partir de um decreto lei,

institui a realização da 3a Bienal da Bahia. Foi criado um conselho da Bienal

para definir o regulamento e o projeto curatorial do evento.

Os membros do conselho decidiram que a 3a Bienal da Bahia deveria

retomar seu projeto, interrompido pela ditadura militar. O projeto curatorial

teve como tema a seguinte indagação: É Tudo Nordeste? A questão

formulada pela 3a Bienal da Bahia se interroga sobre os processos

constitutivos da experiência cultural e histórica do Nordeste a partir da

perspectiva baiana e seu diálogo com o Brasil e a experiência universal.

O retorno da Bienal indica um trabalho de dever com a memória em

relação às intenções do projeto original, retomando percursos criativos que

foram severamente descartados ou ignorados. O evento ativou muitas ações

investigativas sobre a produção artística da Bahia e do Nordeste das décadas

de 1960 e 1970. Um dos maiores méritos da 3a Bienal foi a realização de um

amplo levantamento de dados sobre essa produção.

É necessário pontuar, portanto, que as políticas culturais e as imagens

sobre a Bahia e o Nordeste continuam em disputa. A 3a Bienal da Bahia,

ainda que trabalhasse de forma institucionalizada, haja vista sua vinculação

com o governo estadual, foi uma experiência que catalisou processos de

discussão sobre as potências políticas que as artes possuem no estado.

Apostou em diversas iniciativas que estavam longe do cânone, como uma

forma de disparar novos processos de produção e reflexão sobre a arte. A 3a

Bienal da Bahia consistiu numa interessante plataforma para refletir como as

formas de agenciamento das artes podem não somente reforçar a ordem

vigente, mas também provocar fissuras em seus processos.

A 3a Bienal da Bahia se articula com os processos deste trabalho na

medida em que traz consigo um acúmulo histórico e poético de diversos

artistas que passaram 46 anos calados pelos regimes didatoriais e também

pelos sistemas de arte. Reconhecemos a importância do trabalho da Bienal,

no sentido de dar espaço a um universo de artistas de grande valor que ainda

permanecem inteiramente desconhecidos e negligenciados pela própria

117

história da arte na Bahia. Assim, esta pesquisa embasou a realização de

projetos expositivos e relacionais de forma monográfica sobre a obra de

artistas trabalhados aqui como Edinízo, Dicinho e Rogério Duarte.

Assim, devemos ressaltar que durante os 100 dias de atividade, a

Bienal foi capaz de reunir artistas de diferentes linguagens e gerações, mas

que tinham como elo o desejo de entender a arte como um propagador de

novos modos de vida e arte – consistindo numa alternativa interessante de

observar e questionar os modos de produção artística e suas políticas

culturais.

Os impactos da Bienal continuam acontecendo, a exemplo da

publicação de diversas teses e dissertações que estão pautadas em

experiências internas e externas de quem construiu ou participou da Bienal.

O fato da organização de exposições com artistas antes não vistos por boa

parte do público contribui também no despertar para novos processos de

investigação sobre essas poéticas. De tal modo, é importante situar as obras

desses artistas não como estruturas fixa e impenetráveis, mas sim, como

materiais que são capazes de gerar novas interpretações sobre esses

processos históricos.

118

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123

ANEXOS

Arte popular. Diário de Notícias, Salvador, 5 nov. 1963. p.2.

124

Bardi Lina Bo. [A "Manchete" de 26 de agosto publica um artigo pintor bahiano Carybé...]

[s.d].

125

Bardi Lina Bo. [A "Manchete" de 26 de agosto publica um artigo pintor bahiano Carybé...]

[s.d].

126

Currículo de Ednízio Ribeiró Primo. Acervo Esmon Primo.

127

Texto de Antônio Risério no folder da exposição Espaço Aberto de Dicinho no Sesc Vila Nova, 1980, São Paulo,

128

Texto de Antônio Risério no folder da exposição Espaço Aberto de Dicinho no Sesc Vila Nova, 1980, São Paulo,

129

Edinízio Ribeiro Primo em exposição na FAAP, São Paulo, s/d