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SÉRIE SOCIOLOGIA Oswald de Andrade e Gilberto Freyre Sentidos do “nacional” e do “regional” na construção da brasilidade Rômulo Santos de Almeida

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SÉRIE SOCIOLOGIA

Oswald de Andrade e Gilberto Freyre Sentidos do “nacional” e do “regional” na construção da brasilidade

Rômulo Santos de Almeida

Universidade Federal de Pernambuco Centro de Filosofia e Ciências Humanas

Programa de Pós-Graduação em Sociologia

série sociologia

Rômulo Santos de Almeida

Oswald de Andrade e Gilberto Freyre:Sentidos do “nacional” e do “regional”

na construção da brasilidade

Recife 2020

A447o Almeida, Rômulo Santos de. Oswald de Andrade e Gilberto Freyre [recurso eletrônico] : sentidos

do “nacional” e do “regional” na construção da brasilidade / Rômulo Santos de Almeida. – Recife : Ed. UFPE, 2020.

(Coleção Sociologia).

Originalmente apresentada como dissertação do autor (mestrado – UFPE. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Sociologia, 2017) sob o mesmo título.

Inclui referências. ISBN 978-65-86732-97-9 (online)

1. Andrade, Oswald de, 1890-1954 – Crítica e interpretação. 2. Freyre, Gilberto, 1900- 1987 – Crítica e interpretação. 3. Sociologia. 4. Naciona-lismo e literatura – Brasil. 5. Regionalismo na literatura. 6. Modernismo (Literatura) – Brasil. I. Título. II. Título da coleção. 301 CDD (23.ed.) UFPE (BC2020-115)

Catalogação na fonte:Bibliotecária Kalina Ligia França da Silva, CRB4-1408

A meu pai, Manuel Almeida (In memoriam)

AGRADECIMENTOS

O seguinte livro é fruto da minha dissertação de mestrado, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. Gostaria de agradecer, em primeiro, lugar, aos meus fa-miliares, em especial, à minha mãe, Anísia, e às minhas irmãs, Amélia e Jarina. Muito obrigado por me apoiarem e me incentivarem a seguir em frente na busca dos meus objetivos. Sou muito grato pelo apoio enorme que recebo de vocês, pelos ensinamentos e pelo amor que sempre me transmitem, condições que julgo fundamentais para a minha formação ética e moral. Do mesmo modo, agradeço aos demais parentes que tor-ceram por mim no decorrer desta jornada.

Agradeço também a todas as pessoas que fizeram parte da minha turma de mestrado. Mesmo em tão pouco tempo foi possível conhe-cer novos colegas, levantar novas indagações, dialogar e aprender um pouco da vida com a experiência de cada um. Agradeço especialmen-te a Josemar Moura, por sua amizade e por sua disposição em ajudar e partilhar conhecimentos. Agradeço também a Inã Cândido, Gregório Mangana, Leandro Nunes, Roberto Lemos e Felipe Soares, amigos de proveitosas conversas e aprendizados. Agradeço também a Filipe Barreiros e a Anita Pequeno. Obrigado pelas conversas descontraídas, pelos risos e por serem sempre solícitos. Também sou muito grato a Flávio Aires e a Renato Silva, pessoas que desde o início me incentiva-ram e demonstraram interesse pelo meu trabalho. Da mesma forma, agradeço a André Azevedo, Rosano Freire e Joaquim Benevides, bons

amigos desde os tempos de graduação em Ciências Sociais. Agradeço também a Thiago Torres, pela ajuda na impressão de textos e demais ati-vidades ao longo do mestrado. Sou também imensamente grato à Aline Adelaide, pela disponibilidade e pela gentileza com que me auxiliou na formatação técnica do sumário da dissertação.

Meus agradecimentos também vão para os colegas do grupo “Sociedade Brasileira Contemporânea” e para todos os funcionários e professores do Departamento de Sociologia. Agradeço, em especial, às professoras Eliane da Fonte, Rosane Alencar, e aos professores Remo Mutzenberg e Alexandre Furtado. Agradeço, igualmente, à minha orientadora, Eliane Veras Soares, pela competência, dedicação e serie-dade com que me orientou durante toda a dissertação. Muito obrigado por acreditar no meu potencial e me fazer ver a Sociologia com no-vos olhares e perspectivas. Ser seu orientando constituiu para mim uma experiência estimulante e enriquecedora. Minha gratidão também vai para o professor José Afonso Chaves, por ter aceitado gentilmente ser o meu coorientador e pelo compromisso que demonstrou no decorrer da presente pesquisa. Agradeço as leituras cuidadosas e apuradas, assim como as ótimas indicações de livros e artigos. Sou também muito gra-to aos demais professores que se dispuseram a participar da banca exa-minadora: Paulo Marcondes Ferreira Soares, Antonio Paulo de Morais Rezende e Josefa Salete Barbosa Cavalcanti.

Por fim, agradeço ao CNPq pelo apoio oferecido no desenvolvimen-to deste livro, mediante concessão da bolsa de mestrado.

“A operação metafísica que se liga ao rito antropofági-co é a da transformação do tabu em totem. Do valor oposto, ao valor favorável. A vida é devoração pura. Nesse devorar que ameaça a cada minuto a existência humana, cabe ao homem totemizar o tabu”.

(Oswald de Andrade)

“Independentemente do “modernismo” do Rio e de São Paulo, houve um movimento também de revolu-ção cultural – e não apenas literária – na mais velha região do Brasil: no Nordeste. Igualmente exprimiu uma revolta contra o estreito colonialismo, dominante nos meios intelectuais e artísticos, ainda que não re-pudiasse a experiência brasileira nem a integração dos valores europeus e extraeuropeus durante a época co-lonial no conjunto da cultura brasileira em formação”.

(Gilberto Freyre)

PREFÁCIO

No livro que a leitora tem em mãos, o debate sobre os sentidos da construção da brasilidade recai na análise do “nacional” e do “regio-nal” a partir dos manifestos produzidos por Oswald de Andrade e Gilberto Freyre na década de 1920. Década tomada pelos ventos de transformação, renovação e mudanças sociais que afetavam a cidade de São Paulo em seu primeiro “surto” de industrialização; e pelas ten-sões resultantes da estagnação e paulatina decadência da economia da cana de açúcar que durante quase três séculos configurou a economia e a sociedade do nordeste do Brasil.

Em 1922, passado um século da proclamação da independência nacional, e mais de 30 anos da Abolição da Escravatura e Proclamação da República, um movimento artístico intelectual multifacetado ir-rompeu em São Paulo e no Rio de Janeiro. Esse movimento, autode-nominado modernista, teve um cariz profundamente político e no centro de sua efervescência estava o questionamento sobre o nacional. A brasilidade, tema deste trabalho, será redefinida de maneiras diver-sas pelos integrantes da Semana de Arte Moderna, realizada em 1922. Entretanto, o Manifesto Pau-Brasil, lançado em 1924 por Oswald de Andrade, teria produzido um marco a partir do qual perspectivas di-versas tomaram forma.

Nesse estudo, o autor revisita o cenário dos anos 1920 numa pers-pectiva comparada incluindo não somente Oswald de Andrade, autor do Manifesto Pau-Brasil, mas também o jovem intelectual pernambucano,

Gilberto Freyre, que protagonizou em Recife o movimento regiona-lista, antagonizando o modernismo dos paulistas. O trabalho cuida-doso de Rômulo Santos de Almeida está assentado na incorporação da vasta literatura produzida sobre o tema (muito mais volumosa so-bre o modernismo paulista), entretanto a sua originalidade reside na análise comparativa entre o Manifesto Pau-Brasil (1924) e o Manifesto Antropófago (1928), escritos por Oswald de Andrade, e o Manifesto Regionalista (1926), escrito por Gilberto Freyre.

Nesse diálogo, em lugar de produzir dicotomias já tão cristalizadas, o autor busca analisar os “sentidos de ‘nacional’ e de ‘regional’ presen-tes na ideia de ‘brasilidade’”, sugeridos nos manifestos, observando não apenas as diferenças, mas se perguntando sobre eventuais semelhanças sem descurar de suas contradições internas. Valeu-se nesta empreita da noção de “dialética do localismo e do cosmopolitismo”, elaborada por Antonio Candido, dialogando permanentemente com a dimensão esté-tica dos textos analisados e sua relação com “os contextos sócio históri-cos em que foram produzidos”.

Assim, Rômulo Almeida chega à configuração de dois mitos funda-cionais: o “Matriarcado de Pindorama” (Oswald de Andrade) e o “Mito das três raças” (Gilberto Freyre), buscando observar tanto as suas es-pecificidades quanto compreender se e em que medida os sentidos do nacional e do regional se interpenetram. Isso porque, para ele, “região e regionalismo, nação e nacionalismo, [são] vistos como construtos mul-tifacetados e heterogêneos, onde se constroem identidades e vínculos de pertencimento, todos fundamentais para a compreensão da brasi-lidade”. Enquanto no Manifesto Pau-Brasil Oswald de Andrade expri-mia a ideia de que só seremos modernos se formos nacionais, Gilberto Freyre conclamava ao reconhecimento da região como a unidade cul-tural que poderia produzir o sentido do nacional, o que levou Ruben Oliven a afirmar que para Freyre “o único modo de ser nacional num país de dimensões como o Brasil é ser primeiro regional”.

No Manifesto Antropófago, Rômulo Almeida concorda que Oswald de Andrade tenta superar a perspectiva do nacional como cópia da

civilização e cultura europeias, pelo reconhecimento de um “instinto antropofágico” capaz de destruir e ao mesmo tempo recompor elemen-tos exógenos, agora transformados pelo processamento do local. Nas palavras do autor,

Se em Oswald de Andrade, por exemplo, a relação entre o localismo e o cosmopolitismo se constrói mais nitidamente por uma via antropofágica, operando um desrecalque local/ regional (no sentido de mergulho no primitivo) das van-guardas europeias, Gilberto Freyre, por outro lado, pensa o regional como uma chave de intermediação para se chegar ao nacional e assegurar o ingresso do país na modernida-de. Pode-se afirmar que existe no pensamento do sociólogo pernambucano a busca, implícita ou explícita, por atingir o equilíbrio entre o tradicional e o moderno, aceitando as no-vidades industriais de forma moderada.

A conclusão da análise é o ponto alto do trabalho, nela o autor sublinha alguns limites dos projetos de nação de Oswald de Andrade e de Gilberto Freyre. No caso de Oswald de Andrade e da antropofagia realizada pelo bárbaro natural tecnizado, que se alimenta “simbolicamente do coloniza-dor, reelaborando sua cultura e seus padrões mentais num gesto antro-pofágico de devoração universal”, Rômulo Almeida argumenta que fica em aberto a questão da “apropriação cultural e o ciclo de violência ligado muitas vezes à supressão da identidade do “outro” em proveito próprio, ou seja, da cultura que se está absorvendo”.

Quanto a Gilberto Freyre e o “Mito das três raças” — tendente a in-terpretar a fundação do Brasil como um encontro harmonioso entre o português, o africano e o indígena, em que zonas de confraternização teriam sido produzidas na, e por meio da, miscigenação biológica e cul-tural, forjando assim a nossa singularidade nacional — ainda que reco-nhecendo aspectos violentos da escravidão, sua narrativa produz o que Rômulo Almeida denomina “um arcabouço ideológico de justificação do domínio das classes dirigentes”.

Assim, a “brasilidade” encarnada em um e outro projeto de nação não teriam incluído efetivamente grande parcela daquilo que Darcy Ribeiro nomeará de Povo Brasileiro. Hoje, quase um século depois, parece que vivemos um momento de virada em que essa inclusão, sempre adiada, precisa ser politicamente e simbolicamente equacio-nada, sob a pena de não nos reconhecermos nem reconhecermos a nação que somos.

Eliane Veras SoaresRecife, 05 de maio de 2018

INTRODUÇÃO

Com este livro tem-se o objetivo de debater alguns aspectos relaciona-dos aos sentidos do “nacional” e do “regional”, utilizando-se, para tanto, de alguns textos basilares: o Manifesto Pau-Brasil (1924) e o Manifesto Antropófago (1928), escritos por Oswald de Andrade (1890–1954); e o Manifesto Regionalista (1926)1, escrito por Gilberto Freyre (1900–1987). Toma-se como quadro espelhar a ideia da “brasilidade”, considerando-a um construto social e simbólico que compreende o sentimento e o con-junto de características imaginariamente vinculadas ao Brasil. Na acep-ção de Velloso (1993, p. 15), tal noção pode ser pensada como um “estado natural de espírito”, que diz respeito à intuição de um sentimento nacio-nal, visceralmente brasileiro, diferenciando-se do “brasileirismo”, este as-sociado a sistemas filosóficos, escolas e partidos.

Embora se esteja trabalhando com um tema relativamente muito de-batido, existem questões que merecem ser mais bem focalizadas. Dentre elas, cumpre observar os sentidos atribuídos ao “nacional” e ao “regio-nal” na literatura modernista da primeira fase, tomando-se como objeto empírico os Manifestos Artísticos produzidos por Oswald de Andrade e Gilberto Freyre. O diálogo com o problema de pesquisa também se faz necessário, pois com ele tem-se como objetivo estudar como foi produ-zida a construção desses sentidos, ou seja, os processos que tornaram

1 Apesar de ser tradicionalmente relacionado ao ano 1926, o Manifesto Regionalista só foi pub-licado em 1952. Este detalhe será discutido mais profundamente ao longo deste livro.

possível viabilizar as relações entre ambos. Hipoteticamente, trabalha-se com a ideia de que possam existir prováveis semelhanças, similitudes e contradições entre tais sentidos. Para tanto, buscou-se observar em que medida eles se entrecruzam, convergem e se distanciam.

Talvez o maior desafio na compreensão desta temática seja o peso conceitual de uma bibliografia farta e plena de pontos de vista diversos. Com efeito, impressiona a maneira com que “o Modernismo brasileiro continua a despertar o interesse do investigador da cultura em diversas áreas do conhecimento, mesmo a despeito da vasta fortuna crítica que tem já acumulado e do expressivo leque de experimentações a que foi submetido” (teixeira, a. 2009, p. 11). No entanto, essa heterogeneidade parece demonstrar a riqueza reflexiva e forte dimensão sociológica pre-sente no Movimento, em especial quando se refere às diferentes maneiras de interpretar os nossos dilemas, com seus paradoxos e possibilidades de variadas abordagens. Paulatinamente, os contributos renovadores deixa-dos pelos intelectuais modernistas dos anos 1920 ajudaram a direcionar boa parte do nosso pensamento social para o estudo dos dilemas relativos aos processos de formação cultural e de atualização artística.

Como foi ressaltado acima, as análises estiveram concentradas na pri-meira fase do Movimento Modernista brasileiro, deflagrado oficialmente em 1922. Desde os anos 1920, quando vislumbrou seu espaço nas artes e na literatura, o Modernismo levantou questionamentos e foi se inserindo como signo de mudanças relevantes. De acordo com Eduardo Jardim de Moraes (1978), esse movimento foi responsável, conforme demonstra a historiografia, por uma atualização mais sólida do Brasil no concerto das “nações cultas”, ou seja, no conjunto de países cujas experimentações de criação literária e artística vivenciavam transformações sociais, políticas e culturais decisivas. Antonio Candido também compartilha de uma opi-nião semelhante, ao afirmar o seguinte:

O Modernismo foi complexo e contraditório, com li-nhas centrais e linhas secundárias, mas iniciou uma era de transformações essenciais. Depois de ter sido considerado

excentricidade e afronta ao bom gosto, acabou tornando-se um grande fator de renovação e o ponto de referência da ati-vidade artística e literária. De certo modo, abriu a fase mais fecunda da literatura brasileira, que já havia adquirido matu-ridade suficiente para assimilar com originalidade as suges-tões das matrizes culturais, produzindo em larga escala uma literatura própria (candido, 2010b, p. 87).

A maior parte desses eventos começou a ganhar força a partir da Semana de Arte Moderna, considerada simbolicamente o momento da ruptura com antigos valores passadistas e promotora de um novo na-cionalismo artístico. Ao longo da década de 1920 os estudos sobre a cultura brasileira tornaram-se mais recorrentes, estimulando o conta-to dos grupos modernistas com diversos dilemas do país, ajudando-os a enfrentar com outra atitude os paradoxos da nossa realidade “peri-férica”. Nesse contexto, o tema da brasilidade ocupou espaço central, pois ela serviu de matéria-prima para as observações desta realidade (moraes, e., 1978). Este quadro de transformações ensejou em muitos intelectuais brasileiros o desejo profundo de modernização das artes, mediante a ruptura com cânones estéticos considerados antigos e an-tiquados para a nova sensibilidade que surgia. Por tais contributos o Modernismo se configura numa de nossas principais tradições intelec-tuais, viabilizando novos rumos para a nacionalidade e fazendo da cul-tura um instrumento de conhecimento e investigação. Após quase um século desde seu aparecimento, ainda é possível encontrar essa herança para a história das artes, da literatura e do pensamento social (zilio, 1997). Conforme diz Ana Lúcia de Freitas Teixeira:

Ainda em termos gerais, o pensamento brasileiro dedicado ao movimento modernista, tanto em seus aspectos propria-mente artísticos quanto naqueles de traçado mais teórico, que buscavam produzir as orientações para a produção de uma arte brasileira, se tinham o objetivo de fazê-lo, natural-mente que recortariam do cenário brasileiro aquilo em cujo

crédito depositariam o teor de especificidade de uma possível brasilidade. Tratou-se, portanto, de buscar a singularidade, a especificidade de uma nação em gestação (teixeira, a. 2009, p. 17).

Porém, é fundamental entender que não foi um mérito exclusivo do Modernismo a preocupação com elaborar e construir narrativas que ex-pusessem um suposto sentimento de brasilidade. Antes dele, mas em situação distinta, o Movimento Romântico já tinha iniciado essa tarefa, inaugurando mais nitidamente uma nova problemática em nossa his-tória cultural, debatida pela elite intelectualizada da época (candido, 2010a, 2010b, 2014; moraes, e., 1978). Por isso mesmo, o fato da brasi-lidade ter novamente despertado o interesse de muitos autores moder-nistas, possivelmente estabelecendo elos com as discussões acerca do primitivismo da arte européia, reacende o debate sobre suas implica-ções filosóficas e reflexivas (moraes, e., 1978). Sabe-se, contudo, que o modelo com o qual os românticos pensavam o “nacional” dizia respeito “antes a ideais estrangeiros do que, propriamente, a realidade do país” (thomaz, 2015, p. 18).

A diferença mais importante entre eles e os modernistas estava no modo com que estes últimos tentaram contextualizar o pensamen-to e a ação com a sociedade em que viveram2. Por conseguinte, uma das contribuições do Movimento Modernista “consiste justamente em

2 E. Moraes (1978, p. 165–166) alerta que, apesar da importância crucial do Romantismo, a brasilidade romântica se manteve sempre no estreito campo das realizações literárias. Ao se observar a situação do literato do período, percebe-se, por um lado, a existência de uma literatura que explora os temas que retratam a realidade nacional e, por outro lado, verifica-se o engajamento do cidadão, escritor romântico, nas grandes causas que sacudiam o país nos meados do século XIX. Já no período modernista o que ocorreu foi a “abolição” entre a práti-ca literária e a atividade política do escritor. Aos poucos a brasilidade deixou de se apresentar como questão de caráter puramente literário, num movimento que foi se radicalizando e ter-minando por não permitir mais a distinção entre vida literária e engajamento político. Para mais informações recomenda-se a consulta do seguinte livro: moraes, Eduardo Jardim de. A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica. Rio de Janeiro: Edições graal, 1978.

ter colocado tanto a questão da atualização artístico-cultural de uma sociedade subdesenvolvida quanto a problemática da nacionalidade” (oliven, 2006, p. 41). A Antropofagia, por exemplo, irá apresentar uma reflexão sobre a peculiaridade “original” da cultura brasileira que, ainda na década de 1920, com a “digestão” dos “ismos” plenamente realizada, “assimila a presença do elemento estrangeiro e passa a uma política de exportação e não mais de importação, como havia aconte-cido até então” (schwartz, 1983, p. 48).

O devido entendimento dos alicerces filosóficos da brasilidade modernista requer, no entanto, uma rápida consulta ao pensamen-to de Graça Aranha (1868–1931), escritor, diplomata e um dos princi-pais representantes da Semana de Arte Moderna. Mesmo não fazen-do parte do corpus principal das discursões e possuindo antecedentes teóricos e literários produzidos em circunstâncias distintas daquelas que foi produzida a obra dos modernistas, não se pode compreender a questão da brasilidade sem a intervenção deste autor. No seu livro, A estética da vida, publicado em 1921, ele reivindicava que a intuição sentimental da realidade permitiria alcançar a brasilidade, através de uma psicologia profunda da “alma” coletiva. Existiriam, para tanto, duas categorias-chave: a intuição estética do todo, que autorizaria a de-finição da brasilidade e, aliada a ela, quase se confundido, a categoria de integração do eu no cosmos, que caracterizaria a possibilidade de superar o dualismo entre o eu e o cosmos (moraes, e., 1978).

A brasilidade só seria devidamente apreendida por meio deste es-forço de superação do dualismo entre o eu e o cosmos, através do mo-nismo filosófico, postulado herdado em suas grandes linhas da Escola do Recife e do contato entusiasta de Graça Aranha com a figura de Tobias Barreto (1839–1889). Este intelectual, influenciado pelo pensa-mento alemão, defendia uma visão sintética do universo, visto como um todo infinito e em movimento. Todavia, a realização desta síntese não deveria ocorrer pela via puramente analítica da ciência, pois esta possuiria uma perspectiva fragmentada do todo, oferecendo apenas a apreensão dos fenômenos, mas nunca a integração do universo como

um todo infinito. Ao contrário disso, “a visão do todo propiciado pela integração no cosmos são metas que só podem ser atingidas pelo sen-timento, por vias emocionais como a religião, a filosofia, a arte e o amor” (moraes, e., 1978, p. 24). Exigia-se, portanto, uma solução emo-tiva a ser concretizada na apreensão intuitiva da realidade, superando o distanciamento entre o eu e o mundo e propondo a perspectiva de uma fusão da dualidade no todo, que é o ponto de chegada e também de regressão à situação original (moraes, e., 1978). A mesma situação é explicitada com mais detalhes por Eduardo Jardim de Moraes (1978) no trecho abaixo:

São sobretudo os sentimentos que contam na definição da brasilidade. Os dados que compõem a unidade da nação podem ser diversos do ponto de vista geográfico, históri-co ou social. No entanto, se os analisarmos de um ponto de vista que vá além das aparentes dessemelhanças, pela via da intuição, podemos perceber a grande unidade sentimental que garante a coerência da totalidade da nação. A intuição é então a faculdade privilegiada na apreensão dessa unidade de sentimentos, na medida em que ela própria, ao contrário da ciência, não é uma faculdade puramente intelectual. Por ser sobretudo sensível aos dados emocionais, ela pode, mais que o puro intelecto, medir a unidade mais fundamental da nação que se realiza ao nível dos sentimentos (moraes, e., 1978, p. 130).

Será esta a concepção que marcará toda a primeira fase do Modernismo, disseminando-se em praticamente todas as correntes e subcorrentes modernistas interessadas no estudo da brasilidade nos mais diferen-tes aspectos e tendências (moraes, e., 1978). Convergindo e divergin-do entre si, os modernistas buscaram estudar a brasilidade através da língua, do folclore, da dança, da música, da ideia de “miscigenação” e de variadas interpretações do passado colonial. Explicando com mais detalhes esta situação, Schøllhammer (2011, p. 269) afirma que o

Modernismo se desenvolveu em dois movimentos principais: em pri-meiro lugar procurou romper com as tradições e o academismo, apro-ximando a arte do racionalismo moderno e do futurismo; em segundo lugar buscou construir uma identidade nacional fundada na recupe-ração do componente primitivo, arcaico e bárbaro, entendido como o sentimento de “brasilidade”3. Este sentimento poderia ser encontra-do não apenas num “impulso humano” ou “num gesto-síntese”, mas também numa “criatividade vital, numa expressão genuína ou, enfim, numa linguagem dinâmica que estaria contida virtualmente em todos os recantos da vida brasileira: na música, na comida, na religiosidade, no erotismo, nas cores da natureza, na dança, na história” (schøl-lhammer, 2011, p. 269).

Em tal contexto, a cultura tornou-se uma ferramenta privilegiada para a análise da realidade social, conferindo-lhe uma dimensão par-ticular. Talvez isso explique os motivos da literatura ter se tornado pal-co de lutas simbólicas e políticas na procura por apresentar visões de mundo mais autênticas sobre o país. Muitos intelectuais e artistas pas-saram a tomar consciência da nossa diversidade, buscando integrá-la em suas obras. O dado local deveria ser construído em consonância com as vanguardas internacionais, concentrando-se no primitivismo das supostas “raízes” brasileiras, ou seja, em subsídios que pudessem servir de pano de fundo no intuito de oferecer um panorama dos nos-sos particularismos e características a serem delineadas.

Além disso, quando se faz analogias do Modernismo brasileiro com as suas influências externas observa-se que “ao que sucedeu na Europa na década de [19]10, a década de [19]20 dará lugar na América

3 Pode-se considerar neste aparente paradoxo uma característica comum do Modernismo que “se catalisa, por um lado, entre a vontade de transgressão da tradição e, por outro lado, o desejo de recuperação redentora da mesma” (schøllhammer, 2011, p. 268). Para mais in-formações recomenda-se consultar o seguinte texto: schøllhammer, Karl Erik. A Imagem Canibalizada: A Antropofagia na Pintura de Tarsila do Amaral. In: ruffinelli, Jorge; ro-cha, João Cezar de Castro (orgs.). Antropofagia hoje? Oswald de Andrade em Cena. São Paulo: É Realizações Editora, 2011.

Latina a uma epidemia de manifestos, revistas e polêmicas locais pro-duzidos pela importação direta ou indireta de modelos gerados pelos sucessivos movimentos de vanguarda europeus” (schwartz, 1983 p. 45). Partia-se de uma “revalorização da iconografia nacional, buscan-do elementos constitutivos para uma expressão genuína da identida-de brasileira, numa linguagem moderna e universal e, ao mesmo tem-po, arcaica, primitiva e nacional” (schøllhammer, 2011, p. 268). Do mesmo modo, as tensões que constituem a nossa vida intelectual tam-bém estruturaram este “redescobrimento” do Brasil, permeadas por uma heterogeneidade de narrativas e pontos de vista complementares e conflitantes.

A partir de agora é necessário tecer algumas considerações meto-dológicas que deixarão mais claro o percurso adotado na confecção deste livro4. Para começar, pode-se considerar a metodologia de um trabalho a “forma de discurso que apresenta o método escolhido como lente para o encaminhamento da pesquisa” (lima; mioto, 2007, p. 39). Ao ter isso em mente, o desenho metodológico que foi desenvolvido envolve um esforço bibliográfico, histórico e qualitativo. É bibliográfico na medida em que se debruça na procura de livros e trabalhos acadê-micos como meios primordiais de coleta de dados; é histórico porque busca estudar acontecimentos passados que não podem ser repetidos ou vivenciados diretamente pelo pesquisador; por fim, seu escopo é qualitativo porque é aplicado ao estudo da história, das representa-ções, das interpretações, e não existe a intenção primária de trabalhar com informações estatísticas e variáveis numéricas (denzin; lincoln, 2006; minayo, 2010). Nesse sentido, o uso de técnicas para o manejo

4 A apresentação do método é imprescindível no estabelecimento dos parâmetros que norma-tizaram todo o trabalho da pesquisa, descrevendo os percursos que organizaram a investi-gação, a coleta e a construção dos dados. Becker (2007, p. 115) afirma que na ausência de tais fatores, o pesquisador acaba lidando com um obstáculo significativo na descrição e na análise dos fenômenos sociais, caindo na ilusão de conhecer a maior parte das respostas antes mes-mo do estudo a que se propõe. Consultar: becker, Howard. Segredos e truques da pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

dos dados buscou obedecer ao rigor científico e crítico, considerando a confiabilidade e a preocupação com as questões éticas envolvidas (sil-verman, 2009). Para tanto, o desenho metodológico desta pesquisa atendeu ao esquema de relações entre os objetivos a serem examinados e o tipo de técnica de pesquisa a que cada um corresponde.

O objetivo geral diz respeito ao exame dos sentidos do nacio-nal e do regional presente nos Manifestos Pau-Brasil, Antropófago e Regionalista, empenhados na construção da brasilidade. Para apreen-dê-los foram empregadas as pesquisas bibliográfica e documental. Poderiam ser utilizadas outras modalidades de pesquisa, como a aná-lise do discurso e o uso de imagens, buscando, assim, captar as vozes contidas nos textos e a representação imagética do problema. Todavia, em razão de uma maior adequação aos objetivos averiguados, optou-se por fazer um estudo baseado em um escopo bibliográfico e documen-tal. A mesma escolha metodológica se processou no exame dos obje-tivos específicos. Com o primeiro deles buscou-se identificar as no-ções atribuídas aos sentidos do nacional e do regional em cada um dos Manifestos supracitados. Com o segundo tentou-se encontrar possíveis semelhanças, diferenças e contradições entre os sentidos do nacional e do regional. Com o terceiro procurou-se analisar a heterogeneidade estético-política manisfesta no processo de elaboração destes sentidos. Por fim, com o quarto objetivo almejou-se investigar em que medida os sentidos do nacional e do regional se interpenetram.

O próximo passo do trajeto metodológico diz respeito a concei-tuação da pesquisa bibliográfica e documental, respectivamente. Começando pela pesquisa bibliográfica, pode-se defini-la como sen-do a revisão da literatura sobre “as principais teorias que norteiam o trabalho científico. Essa revisão é o que chamamos de levantamento bibliográfico ou revisão bibliográfica, a qual pode ser realizada em li-vros, periódicos, artigo de jornais, sítios da Internet, entre outras fon-tes” (pizzani et al., 2012, p. 54). O referido tipo de pesquisa fundamen-ta-se na busca de informações bibliográficas, na seleção de documentos que se relacionam com o problema de pesquisa e no fichamento das

referências para que sejam posteriormente manuseadas na identifica-ção do material referenciado ou na bibliografia final5 (boccato, 2006; macedo, 1994; piana, 2009).

No cumprimento desses requisitos, não se pode esquecer que o ob-jeto de estudo se localiza no passado, cabendo-lhe uma atenção especial. Tal fato decorre da dificuldade de tentar apreendê-lo em seu contexto histórico para entender melhor suas dinâmicas, não se devendo inibir a relevância em apontar críticas e possíveis paradoxos surgidos poste-riormente. Logo, “embora alguns personagens, instituições e aconteci-mentos não pertençam ao cenário atual, isto não significa que estejam confinados ao esquecimento” (pimentel, 2001, p. 192). Conforme diz Antonio Carlos Gil, “a pesquisa bibliográfica também é indispensável nos estudos históricos. Em muitas situações, não há outra maneira de conhecer os fatos passados se não com base em dados bibliográficos” (gil, 2010, p. 30). Por lidar com eventos relacionados ao passado, existe, conforme está posto acima, uma preocupação histórica que não pode ser ignorada. Essa inquietação deve estimular o pesquisador a localizar, avaliar e sintetizar de maneira objetiva e sistemática as “provas”, para estabelecer os fatos e obter conclusões referentes aos episódios do pas-sado, especialmente quando esse passado pode ser referenciado por re-gistros escritos (richardson, 1999).

Para T. C. S. Lima e R. C. T. Mioto (2007), os procedimentos carac-terísticos da pesquisa bibliográfica podem ser divididos em três passos. O primeiro deles é a “exposição do método”, responsável, segundo as au-toras, na definição da pesquisa, ao apresentar o “caminho do pensamen-to” e a “prática exercida” na apreensão da realidade, construindo-se uma síntese entre a realidade e a visão social de mundo veiculada pela teoria

5 Sobre isso, concorda-se com Volpato (2000), ao dizer que antes de iniciar o trabalho de uma pesquisa bibliográfica deve-se definir com clareza o tema da pesquisa, podendo-se também adotar muito do que já foi produzido sobre a área de interesse. Consultar: volpato, e. s. n. Pesquisa bibliográfica em ciências biomédicas. J. Pneumol., São Paulo, v. 26, n. 2, p. 77–80, Mar./Apr. 2000.

da qual o pesquisador se vale. O segundo passo debruça-se na “cons-trução do desenho metodológico”, recomendando-se fazer não apenas o levantamento dos textos, mas também das informações contida nos mesmos. A leitura torna-se a técnica principal, pois é através dela que se pode identificar os dados procurados e verificar as relações existentes entre eles6. O terceiro e último passo concentra-se na “apresentação do percurso da pesquisa”, consistindo em três etapas principais. A primeira é o “levantamento do material bibliográfico”, referindo-se à classificação do material selecionado como fonte de pesquisa, incluindo livros, cole-tânea de textos, periódicos e demais fontes pertinentes. Em vista disso, a consulta de novas ideias e sugestões de leituras foi fundamental durante todo o trajeto de escrita. A segunda etapa é o “teste para levantamento das informações”, entendido como o processo de exploração do material bibliográfico. Finalmente, a terceira etapa é o “levantamento das infor-mações”, cujo foco se refere ao detalhamento das fontes bibliográficas incluídas no estudo (lima; mioto, 2007).

Retomando o que já foi enfatizado, além da pesquisa bibliográfica também se fez uso da pesquisa documental, que corresponde ao con-junto de operações intelectuais, visando à descrição e representação dos documentos de uma forma unificada e sistemática (souza; kantorski;

6 Tanto T. C. S. Lima e R. C. T. Mioto (2007) quanto Antonio Carlos Gil (2010) afirmam que ao se tomar posse do material bibliográfico deve-se priorizar quatro modalidades de leituras. A primeira é a “leitura exploratória”, que tem por objetivo verificar em que medida a obra con-sultada é útil à pesquisa. A segunda é a “leitura seletiva”, ou seja, à determinação do material que de fato interessa, evitando a leitura de textos que não contribuam para a solução do prob-lema. A terceira é a “leitura analítica ou reflexiva”, cujo percurso é feito com base nos textos selecionados. Para cumprir tais requisitos devem-se realizar leituras integrais das principais obras e textos, identificando as ideias-chave e hierarquizando-as de acordo com a ordem de relevância. A quarta é a “leitura interpretativa”, considerada a última etapa do processo de lei-tura das fontes bibliográficas. Ela é a mais complexa e tem como meta relacionar o que o autor afirma com o problema para o qual se propõe uma solução. Recomenda-se consultar: lima, t. c. s.; mioto, r. c. t. Procedimentos metodológicos na construção do conhecimento científico: a pesquisa bibliográfica. Rev. Katál., Florianópolis, v. 10 n. esp., p. 37–45, 2007. Ver também: GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 5ª. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

luis, 2011). Porém, um dos principais desafios no uso de documentos reside nas definições que o cercam. Com efeito, o documento pode ser visto como uma fonte textual produzida por órgãos oficiais, mas numa conceituação mais ampla ele passa a abarcar diversas fontes, tanto em ter-mos de suporte material quanto de formas de produção (vasconcellos; silva, 2013).

Importa saber que os documentos podem contribuir no entendimen-to da realidade social e histórica, tornando possível trazer reflexões para compreender o momento presente. A aplicação deles auxilia o estudo e pode ser fonte de autenticidade, credibilidade, representatividade e sig-nificação (flick, 2009). Para tanto, a procura de livros, artigos e demais trabalhos acadêmicos, fez parte dos principais esforços e ocupou o maior tempo das atividades. A leitura realizada obedeceu a uma ordem de prio-ridade, visando eliminar referências pouco relevantes e fazendo uso de um vocábulo controlado para realizar a pesquisa em bases de dados con-fiáveis (pizzani et al., 2012). Igualmente, o diálogo com autores da socio-logia brasileira que tratam da literatura modernista constituiu um elo ne-cessário para embasar e situar outros aspectos do problema investigado.

Todavia, de que maneira se deve proceder na construção dos dados numa pesquisa documental? Sobre isso, André Cellard (2008) propõe uma avaliação preliminar dos documentos que deve incluir o exame do contexto histórico em que eles foram produzidos, observando-se tam-bém a identificação dos possíveis autores, a autenticidade e confiabilida-de do texto e, por fim, sua natureza e lógica interna. Tal fase preparatória permite ao pesquisador iniciar a análise propriamente dita dos dados e o exame do contexto social global no qual foi produzido o documento. Do mesmo modo, pode ajudar no esclarecimento das relações entre o au-tor do documento e seus possíveis destinatários, fazendo desta etapa um artefato primordial em todas as etapas de uma análise documental, seja qual tenha sido a época em que o texto em questão foi escrito.

É importante frisar que o Manifesto Pau-Brasil, o Manifesto Antropófago e o Manifesto Regionalista, objetos empíricos deste livro, constituíram os principais documentos aqui problematizados. O maior

desafio residiu no entendimento do contexto, na interpretação e na coleta de dados suficientes para construir as relações entre os sentidos do “na-cional” e do “regional”. Portanto, os documentos foram usados não como meros instrumentos de consulta, mas como peças necessárias que permi-tiram “ampliar o entendimento de objetos cuja compreensão necessita de contextualização histórica e sociocultural” (sá-silva; almeida; guinda-ni, 2009, p. 2). Sabendo-se que muitos pesquisadores sociais têm a ten-dência de subestimar materiais textuais como dados, nessa investigação, ao contrário, eles se tornaram bases de grande utilidade. De acordo com Martin W. Bauer, o texto é uma forma de expressão por meio do qual se inferem contextos e reconstroem representações (bauer, 2002). Tendo isso em mente, as fontes literárias, ainda que nos limites do ficcional, po-dem objetivar a realidade através de múltiplas reconstruções históricas e ambientais (pais, 1984).

Mesmo que pareça simples, essa temática é permeada de uma rique-za multidisciplinar, não estando isenta de conflitos, disputas e contradi-ções. Os questionamentos problematizados guardam relação, por exem-plo, com o campo da Sociologia da Literatura, Sociologia da Cultura, Sociologia da Arte e com a Etnologia brasileira. Ao buscar compreen-dê-los também existe o propósito de colaborar com a discussão sobre o papel da literatura e das artes no Brasil, ambas relacionadas a interesses e diversos significados compartilhados por parte dos estudiosos do nosso Modernismo. Como diz Cellard (2008, p. 305), a qualidade e a validade de uma pesquisa resultam, em boa parte, das precauções de ordem crí-tica tomadas pelo pesquisador. Por isso, a profundidade, a riqueza e o refinamento de uma análise dependem da qualidade da informação, da diversidade das fontes utilizadas e das corroborações e intersecções rea-lizadas. Para cumprir os requisitos propostos pelo objeto de estudo e no intuito de responder ao problema da pesquisa, o trabalho foi estruturado em quatro capítulos.

No primeiro capítulo o objetivo da análise implicou no apontamento geral de algumas experimentações e novidades trazidas pelo Modernismo no início do século XX, destacando o seu perfil internacionalista,

vinculado ao desenvolvimento histórico das vanguardas europeias, e a chegada paulatina e contraditória deste discurso ao Brasil, cujo mar-co oficial foi a Semana de Arte Moderna de 1922. Aqui também se pro-blematiza o interesse dos modernistas pela noção de brasilidade. O lema principal era a construção da nação e a organização da cultura, fazendo dos intelectuais executores de um “sentimento de missão”, expandindo os ideais modernistas pelo país, seja por uma via mais “antropofágica”, como queria Oswald de Andrade, ou mesmo por uma via oposta, considerada “regionalista”, como queria Gilberto Freyre. Para tanto, com o desígnio de observar a heterogeneidade narrativa do Modernismo, optou-se por realizar uma rápida explanação não apenas das tensões, mas também das possíveis confluências e semelhanças do fluxo de ideias mantido entre as cidades de São Paulo e Recife.

No segundo capítulo, discutiu-se o quadro teórico. Destacou-se a for-mação contraditória da nossa literatura e das interpretações sobre a so-ciedade brasileira, baseando-se na visão oferecida por Antonio Candido sobre essa problemática. Em suas análises, o autor desenvolveu um en-foque dialético, a chamada crítica integrativa, por meio do qual os ele-mentos formais das obras literárias se correlacionam “com a ambientação histórico-sociológica em que foram confeccionadas, sem que com isso se apresente a possibilidade de trânsito imediato de uma dimensão à outra, o que implicaria considerar uma correlação determinista entre contexto social e obra de arte” (teixeira, a., 2009, p. 32). Nos processos analisados, as tensões entre o “local” e o “cosmopolita” é parte constitutiva do método esboçado pelo autor, concebido não como um esquema abstrato de crítica literária, mas como um mecanismo que expressa a própria dinâmica da sociedade brasileira. Ao longo deste capítulo também foram problema-tizados os conceitos de “região” e “regionalismo”, “nação” e “nacionalis-mo”, vistos como construtos multifacetados e heterogêneos, onde se cons-troem identidades e vínculos de pertencimento, todos fundamentais para a compreensão da brasilidade.

No terceiro capítulo, analisou-se os Manifestos Pau-Brasil e Antropófago, escritos por Oswald de Andrade; e o Manifesto Regionalista,

escrito por Gilberto Freyre. Inicialmente, o objetivo da discussão apre-sentou-se de um apanhado geral das ideias de cada um desses Manifestos para depois se fixar numa análise mais específica acerca dos sentidos do “nacional” e do “regional”. Finalmente, tratou-se das possíveis interpe-netrações e distanciamentos entre o “nacionalismo” e o “regionalismo”, tomando como exemplo algumas reflexões atinentes ao pensamento de Oswald de Andrade e Gilberto Freyre.

No quarto e último capítulo tentou-se observar uma importante cor-relação entre Oswald de Andrade e Gilberto Freyre: o “mito fundacional”. Foram discutidos alguns conceitos em torno dos mitos, em especial aque-les que dizem respeito a processos de formação nacional, explorando as implicações dos mitos fundacionais no pensamento dos nossos autores. Discorreu-se, em primeiro lugar, sobre o “Matriarcado de Pindorama”, concepção através da qual Oswald de Andrade tentou fundamentar não apenas a “origem”, mas as possibilidades do florescimento de uma nova civilização, que congregasse o melhor do nosso primitivismo e o melhor aproveitamento da técnica moderna. Em seguida, procedeu-se à análise do “Mito das três raças”. Pode-se compreender este “mito” como uma nar-rativa antropológica e sociológica referente ao aspecto fundacional da na-ção, ou seja, ao conjunto de elementos ligados à ideia de “origem”, caracte-rizada pelo encontro de raças e culturas. Assim, as possíveis semelhanças também podem ser encontradas na existência desses mitos enquanto in-teresse comum, muito embora as proposições de cada um dos autores se-jam bastante distintas e até conflitantes.

Após discorrer sinteticamente sobre cada capítulo, ressalta-se, por fim, a necessidade de pensar a heterogeneidade de proposições e ques-tionamentos, procurando-se fazer uma abordagem mais ampla do pen-samento de Oswald de Andrade e de Gilberto Freyre que não altere subs-tancialmente a proposição inicial, ou seja, trabalhar com os Manifestos artísticos. Dito isso, passaremos agora para os capítulos da análise.

CAPÍTULO 1

O modernismo na década de 1920: ruptura e organização cultural

Ao se buscar registrar as mudanças e os deslocamentos que ocor-rem na história da arte, da literatura e do pensamento, incluindo o Modernismo no século XX, Malcolm Bradbury e James McFarlane (1989) defendem que é possível distinguir, numa escala de “sismologia cultural”, três diferentes ordens de magnitude7. Na primeira ordem se encontra os “tremores da moda”, cuja unidade básica de medida é a “década”, caracterizados por um ir e vir no ritmo das gerações que se sucedem, definhando após um curto período de atuação. Em seguida, na segunda ordem, temos os acontecimentos que pertencem a “deslo-camentos maiores”, cujos efeitos são mais “profundos” e “duradouros”, os quais são convencionalmente medidos em “séculos”. Por fim, na terceira ordem, são registradas “cataclísmicas sublevações da cultura”, fundamentais “convulsões do espírito humano criador” que parecem “demolir” nossas mais sólidas e firmes crenças e postulados, deixando

7 É importante ressaltar que embora estejamos trabalhando com o Modernismo no século XX, Malcolm Bradbury e James McFarlane (1989) alertam que na maioria dos países euro-peus a efervescência desse movimento já pode ser detectada em 1890. Não obstante, inde-pendente da periodização, o Modernismo foi em princípio a expressão de um fenômeno europeu, mas que adquiriu feições particulares em outras partes do mundo, reinventan-do-se, por exemplo, através das vanguardas latino-americanas, entre as quais se situa a brasileira. Consultar: bradbury, Malcolm; Mcfarlane, James. O nome e a natureza do Modernismo. In: bradbury, Malcolm; Mcfarlane, James (orgs.). Modernismo: guia ger-al 1890–1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

em ruínas grandes áreas do passado, questionando toda uma civiliza-ção ou cultura e estimulando uma frenética reconstrução. E é nesta úl-tima ordem que o Modernismo se inclui, relacionado com o contexto intelectual das artes de vanguarda8, alavancado pelo crescimento da modernização e pelo sentimento historicista de que vivemos em “tem-pos novos”, sendo a contemporaneidade sua “fonte de significação”. Observemos o trecho abaixo:

O modernismo aparentaria ser o ponto em que a idéia das artes radicais e inovadoras, o ideal experimental, técnico, estético que veio crescendo desde o romantismo, atinge uma crise formal — em que o mito, a estrutura e a organi-zação em sentido tradicional sofrem uma derrocada, e não por razões formais. A crise é uma crise de cultura; muitas vezes comporta uma visão infeliz da história — de modo que o escritor modernista não é simplesmente o artista li-bertado, mas o artista sob uma tensão específica, visivel-mente histórica (bradbury; mcfarlane, 1989, p. 19).

Para Compagnon (2014, p. 39–40) os primeiros modernos, sobretu-do aqueles ligados a cultura francesa — Baudelaire, Flaubert, Manet

8 A partir de 1825 o termo “vanguarda” passou a integrar o vocabulário da crítica de arte, tor-nando-se sinônimo de qualquer manifestação artística considerada “a frente de seu tempo”. Seu significado original é militar, designando a parte de um exército situada à frente do corpo principal das tropas. Também foi empregado por muito tempo pela política, referin-do-se, desde 1848, tanto à extrema esquerda quanto à extrema direita (boaventura, 1985; compagnon, 2014). Contudo, apesar da sua importância histórica, a vanguarda sofreu reveses. Para Huyssen (1996, p. 26), a perda de potência da vanguarda pode está relacionada mais fundamentalmente a uma mudança cultural mais ampla no Ocidente durante o século XX, com destaque especial para a ascensão da indústria cultural, tornando o empreendi-mento da vanguarda “obsoleto”. Recomenda-se consultar em primeiro lugar: boaventura, Maria Eugenia. A vanguarda Antropofágica. São Paulo: Ática, 1985. (Ensaios, 114). Em segundo lugar: compagnon, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. E em terceiro lugar: huyssen, Andreas. Memórias do modernismo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.

e Courbet, — não imaginavam que representassem uma “vanguarda” e não procuravam o “novo” num presente voltado para o futuro, mas para o presente, enquanto presente. Não acreditavam no dogma do progresso histórico, do desenvolvimento e da superação, sendo o seu “heroísmo” o “heroísmo do presente” e não do futuro, pois a utopia e o messianismo lhes eram desconhecidos. Ao se referir aos movimen-tos europeus de vanguarda, Peter Bürger argumenta que eles podem ser definidos como um ataque ao status da arte na sociedade burguesa, sendo negada “não uma forma anterior de manifestação da arte (um estilo), mas a instituição arte como instituição descolada da práxis vi-tal das pessoas” (bürger, 2008, p. 105). Isto porque, para os vanguar-distas, a caraterística dominante da arte na sociedade burguesa é o seu “descolamento da práxis vital”, reafirmada pelos partidários do esteti-cismo, que visavam a permanência da “arte instituição”, ou seja, toda produção artística voltada simplesmente para os fins, algo típico da lógica burguesa (bürger, 2008). Seria necessário “reorganizar” uma nova práxis de vida através da arte e da política, buscando destruir a “arte instituição” e tapar o “buraco” intransponível entre arte e vida. Ao mesmo tempo, os esforços de renovação modernista por meio das vanguardas históricas não trafegaram por um caminho unilinear, mas por inúmeras contradições próprias do fazer artístico e das relações entre arte e sociedade (huyssen, 1996).

Também não é possível dizer que exista unanimidade em rela-ção à definição ou ao momento exato no qual se deu o “surgimento” dessas mudanças, tornando-se um espaço para divergências, comuns ao ambiente de “ruptura” que a atmosfera modernista parecia ense-jar. Referindo-se mais à realidade inglesa, particularmente no período após a Primeira Guerra Mundial, Bradbury e McFarlane (1989, p. 19) conceituam as manifestações modernistas de “nossa arte”, “a única arte que responde à trama do nosso caos”. É a arte da “modernização”, de-corrente das “incertezas da civilização e da razão”, do mundo reinter-pretado por Marx, Freud e Darwin, como também do capitalismo e da contínua aceleração industrial, da vulnerabilidade existencial à falta

de sentido ou ao absurdo. Logo, também seria necessário entender que a literatura era um dos resultados da tecnologia moderna, que a arte era derivada da “desmontagem da realidade coletiva” e das noções conven-cionais de “causalidade”. Trata-se, portanto, de um movimento revolu-cionário que possui, em certo sentido, um traço “internacional”, ainda que não seja fácil transformá-lo num estilo ou “tradição universal”, que aproveitou um “momento de enorme readaptação intelectual e insatis-fação radical com o passado artístico — um movimento e valores prin-cipais que se difundiu de país para país e veio a se converter na linha mestra da tradição ocidental” (bradbury; mcfarlane, 1989, p. 21).

Em razão desses questionamentos, o Modernismo pode mostrar--se bastante diverso, dependendo de onde situemos seu “centro”, seja este uma capital ou uma cidade do interior, pois a sua qualidade mais acentuada é o “internacionalismo”. Ser “internacionalista”, no sentido aqui empregado, implica compreender que as experimentações do cha-mado “espírito moderno” não foram as mesmas em cada país do mun-do, mas variaram conforme a realidade de cada um. Fundamentando-se em tal raciocínio, Bradbury e McFarlane (1989, p. 27) alegam que em geral o período de maior intensidade das atividades modernistas ocorreu no primeiro quartel do século XX, delimitado no “antes e de-pois” da Primeira Guerra Mundial, com destaque especial para Nova York, Londres e Paris. Contudo, o perfil cronológico é outro quando aplicado, por exemplo, a Berlim, Viena, Copenhague, Praga ou São Petersburgo. Essa dimensão heterogênea do Modernismo foi percebi-da em inúmeros países, pois ele “foi uma extraordinária mescla de fu-turista e niilista, de revolucionário e conservador, de naturalista e sim-bolista, de romântico e clássico” (bradbury; mcfarlane, 1989, p. 35).

No caso do Brasil, Antonio Candido afirma que é necessário cha-mar de Modernismo, no sentido amplo, o movimento cultural brasi-leiro que vigorou no intervalo entre as duas guerras mundiais, “corres-pondente à fase em que a literatura, mantendo-se ainda muito larga no seu âmbito, coopera com os outros setores da vida intelectual no sen-tido da diferenciação das atribuições de um lado; da criação de novos

recursos expressivos e interpretativos, de outro” (candido, 2010a, p. 142). O Modernismo introduz uma nova etapa do nosso “sistema lite-rário”, marcada pela tensão dialética entre o localismo (que representa o dado local e a substância da expressão literária) e o cosmopolitis-mo (que representa a forma, ou seja, parte dos moldes herdados da tradição europeia), ambos fundamentais na integração progressiva de nossa experiência literária. Em uma citação um tanto “entusiasmada” sobre o papel estratégico do Movimento Modernista no Brasil, escreve Antonio Candido:

O Modernismo representa um esforço brusco e feliz de rea-justamento da cultura às condições sociais e ideológicas, que vinham, desde o fim da Monarquia, em lenta mudan-ça, acelerada pelas fissuras que a Primeira Guerra Mundial abriu também aqui na estrutura social, econômica e polí-tica. A força do Modernismo reside na largueza com que se propôs encarar a nova situação, facilitando o desenvol-vimento até então embrionário da sociologia, da história social, da etnografia, do folclore, da teoria educacional, da teoria política (candido, 2010a, p. 141).

Talvez isso fique mais nítido quando se percebe que foi nesse período que se iniciou uma reinterpretação de nossas supostas “deficiências” culturais e sociais para encará-las como superiores, numa importan-te tentativa de organização da cultura brasileira. O antigo diálogo que punha o Brasil numa posição de inferioridade em relação aos países europeus, especialmente Portugal, não tinha mais validade. A heran-ça colonial da Europa já não era mais reconhecida e nem adotada de modo acrítico, pois esta já não tinha autoridade suficiente para guiar normativamente o nosso progresso criativo, uma vez que a atualiza-ção da cultura deveria caminhar junto com o estudo mais apurado das nossas particularidades e exigia dos intelectuais o devido conhe-cimento do país (candido, 2010a). Porém, Antonio Candido (2010a) reconhece que tal processo contraditório na formação da literatura

modernista operou aos poucos, pois não foi de imediato que os inte-lectuais tomaram consciência do seu papel histórico, interessando-se, paulatinamente, pelos problemas das massas urbanas e rurais através de uma literatura que pretendia falar do Brasil e do seu povo. Ao se re-ferir ao momento em que o Modernismo adquiriu maior amadureci-mento crítico, comenta o autor:

A inteligência tomou finalmente consciência da presença das massas como elemento construtivo da sociedade; isto, não apenas pelo desenvolvimento de sugestões de ordem so-ciológica, folclórica, literária, mas sobretudo porque as no-vas condições da vida política e econômica pressupunham o advento das camadas populares. Pode-se dizer que houve um processo de convergência, segundo o qual a consciên-cia popular amadurecia ao mesmo tempo em que os inte-lectuais se iam tornando cientes dela. E este alargamento da inteligência em direção aos temas e problemas populares contribuiu poderosamente para criar condições de desen-volvimento das aspirações radicais, que tentariam orientar, dar forma, ou quando menos sentir a inquietação popular. O que se poderia, no melhor sentido, chamar de libertina-gem espiritual do Modernismo contribuiu para o fermento de negação da ordem estabelecida, sem o qual não se desen-volvem a rebeldia social e o consequente radicalismo políti-co (candido, 2010a, p. 142).

Percebe-se que o Modernismo, até pelo menos a década de 1930, quan-do se começa a desenvolver com maior ímpeto no Brasil uma litera-tura e uma arte mais interessada na crítica social, deu uma prioridade ao rompimento com as tradições anteriores, numa luta mais aguerrida contra o academismo. Vejamos a seguinte citação:

O modernismo deste primeiro momento se afirma sobretu-do por seu caráter polêmico com relação ao que ficou sendo

denominado o passadismo. Trata-se, antes de mais nada, de defender, em função do progresso material, a moderniza-ção, qualquer forma de modernização do nosso ambiente cultural. Ao mesmo tempo, o processo de modernização propugnado pelo primeiro grupo modernista era uma pro-posta de atualização. O ambiente culto na nação deveria acompanhar o processo de modernização sentido em ou-tras instâncias da vida nacional (moraes, e., 1978, p. 53).

Mário de Andrade (1974) também comenta que, no primeiro momen-to, as preocupações contra o passadismo se concentraram na superação de assuntos estéticos, o que não resulta, obviamente, na falta compro-misso com a sociedade. Deve-se ressaltar que tanto a literatura e a ma-neira pela qual foi escrita não está desvinculada do momento histórico em que nasceu. Por conseguinte, não podemos ignorar a relação entre a produção literária do contexto em que foi produzida, ainda que isso, por si só, não seja suficiente. Conforme argumenta E. Soares (2014, p. 85), é válido admitir que a literatura e a arte em geral são produzidas e se relacionam com o contexto social, mas ao mesmo tempo deve-se en-tender que elas não são a “realidade”, ainda que sejam reais. São, por as-sim dizer, socialmente construídas. No caso do Modernismo dos anos 1920, boa parte dos seus autores e das suas obras literárias se direciona-va na busca pela construção da nação e por uma acentuada preocupa-ção intelectual com a organização da cultura, tornando a literatura e a arte um lugar para a criação de sentimentos de especificidade cultural (miceli, 1979; mota, 2014; veloso & madeira, 1999).

1.1 O papel aglutinador da Semana de Arte Moderna de 1922

Entre vaias e aplausos nascia em 1922 — ano do centenário da Independência — a Semana de Arte Moderna que levantou, junto com o desenvolvimento artístico e literário, novas formas de abordar a construção da nação. Realizada em São Paulo, já na época o centro

econômico e núcleo da produção cafeeira, ela se apresentou, paulatina-mente, como uma força renovadora e propulsora de novas ideias9. Sua premissa básica residia na complexidade de superar tradições acadêmi-cas sacralizadas e direcionar os debates sobre a nacionalidade10. Parte da crítica acredita que o prenúncio deste episódio tem início em 1913 com a exibição das telas do pintor lituano Lasar Segall, outros, porém, preferem o ano 1917, durante a polêmica crítica do escritor Monteiro

9 Ainda hoje muito se questiona os motivos que levaram a Semana de Arte Moderna de 1922 ter ocorrido em São Paulo e não em outras cidades, como o Rio de Janeiro, por exemplo. Mário de Andrade (1974) argumenta que a cidade de São Paulo era espiritualmente muito mais “moderna”, fruto necessário da economia do café e do industrialismo. Já o Rio de Janeiro era muito mais “internacional” como norma de vida exterior, mantendo dentro da sua “malícia vibrátil” de cidade internacional uma espécie de “ruralismo” e de “exotis-mo folclórico”, além de uma “interpenetração” do rural com o urbano que lhe propiciava um perfil “tradicional” maior do que São Paulo. O autor acreditava que o mesmo aspecto de “exotismo folclórico” se repetia nas cidades do Recife, Belém e Salvador. Opinião se-melhante é defendida por Amaral (1998, p. 17) e Campos (2003, p. 21), que enfatizam o empreendedorismo e a mentalidade industrial de São Paulo, tornando estes os veículos propulsores dos acontecimentos de 1922. Todavia, outros autores, entre os quais Camargos (2007, p. 30), criticam o protagonismo de São Paulo e minimizam os saldos deixados pela Semana de Arte Moderna, uma vez que a lista de seus participantes teria se restringido ao velho clichê Rio-São Paulo, ignorando, naquele momento, o que de relevante ocorria nos demais Estados. Para mais informações recomenda-se consultar em primeiro lugar: andrade, Mário de. O movimento modernista. In: Aspectos da literatura brasileira. 5ª ed. São Paulo: Martins, p. 231–255, 1974. Em segundo lugar: amaral, Aracy. Artes Plásticas na Semana de 22. 5. ed. São Paulo: Editora 34, 1998. Em terceiro lugar: campos, Haroldo de. Uma poética da radicalidade. In: andrade, Oswald de. Pau Brasil. 2.ed. São Paulo: Editora Globo, 2003. (obras completas de Oswald de Andrade). E em quarto lugar: cama-rgos, Marcia. 13 a 18 de Fevereiro de 1922: a semana de 22: revolução estética?. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2007.

10 Quando nos referimos ao conjunto de críticas dos modernistas contra o academismo é necessário saber de antemão que houve momentos da história em que a arte engajada e críti-ca também se expressou de uma maneira formal, a exemplo da arte socialista no século XX, avaliada por Compagnon (2014, p. 42) como “a mais acadêmica” e “rotineira” de todas. Con-sequentemente, “Modernismo” e “academismo” são terminologias que ganharam o estatuto de “pares opostos” quando nos detemos mais detalhadamente na experiência brasileira, o que não quer dizer que outros países tenham assim se destacado.

Lobato em relação às telas da pintora Anita Malfatti. Horrorizado pela ausência da “naturalidade do belo” provocado pela deformação das pinturas “A boba” e “O Homem Amarelo”, ele publicou uma crítica inti-tulada “Paranoia ou mistificação?”. Na sua concepção, tais obras seriam comparáveis aos “desenhos que ornam as paredes dos manicômios”, “produtos de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses”, não passando, por isso, de “ramos da arte caricatural” (gonçalves, m., 2012, p. 107). Contudo, o repúdio do escritor obteve um efeito contrá-rio, pois, saíram em defesa da pintora, intelectuais e artistas que come-çavam a nutrir certa afinidade pelas artes de vanguarda.

Esses primeiros anos são caracterizados pelo processo de absor-ção das vanguardas artísticas, cujas matrizes voltam-se agora ao Brasil. Sem perder o contato com o Futurismo, Cubismo, Expressionismo, Surrealismo e Dadaísmo, era patente o interesse gradativo na tentativa de elaborar, dialeticamente, outras formas de interpretação do país atra-vés de um “desrecalque localista” de nossas particularidades. Belluzzo (1990, p. 18) defende a visão de que os movimentos vanguardistas dos países centrais e dos países periféricos estavam sujeitos ao mesmo pro-cesso histórico, mas eram estruturalmente diferentes, comportando-se como faces opostas de uma mesma moeda. Antonio Candido (2010a) explicita melhor essa situação contraditória ao reconhecer que as van-guardas agiam sobre nós, mas recebiam de nossa parte novas reinter-pretações e novos usos, existindo certa curiosidade mútua entre os dois polos. Portanto, “os nossos modernistas se informaram pois ra-pidamente da arte europeia de vanguarda, aprenderam a psicanálise e plasmaram um tipo ao mesmo tempo social e universal de expressão, reencontrando a influência europeia por um mergulho no detalhe bra-sileiro” (candido, 2010a, p. 128). Ainda de acordo com o Candido:

[O] Brasil se encontrava, depois da Primeira Guerra Mundial, muito mais ligado ao Ocidente europeu do que antes; não apenas pela participação mais intensa nos pro-blemas sociais e econômicos da hora, como pelo desnível

cultural menos acentuado. Além disso, alguns estímulos da vanguarda artística europeia agiam também sobre nós: a ve-locidade, a mecanização crescente da vida nos impressiona-vam em virtude do brusco surto industrial de 1914–1918, que rompeu nos maiores centros o ritmo tradicional (candido, 2010a, p. 128).

Na acepção de Teles (2012, p. 53), de um modo geral, todos esses movi-mentos de vanguarda estavam sob o signo da desorganização do univer-so artístico de sua época. Entretanto, eles não chegaram ao Brasil de ma-neira uniforme e nem tiveram igual impacto. Ao que parece o primeiro encontro com a arte moderna de vanguarda no Brasil ocorreu após a viagem de Oswald de Andrade ao continente europeu em 1912, trazendo consigo notícias do futurismo italiano. Em razão dessas estratégias de reeducação do olhar artístico através de novas técnicas, Jorge Schwartz (1983) acredita que as primeiras décadas do século XX se caracteriza-ram, do ponto de vista estético, como um verdadeiro laboratório cultu-ral, cujo trabalho de experimentação alterou por completo o panorama das artes até nossos dias.

Incluindo tais casos anteriores ao ano de 1922, Boaventura (2008, p. 14) diz que a Semana de Arte Moderna representou o engatinhar de uma nova mentalidade na vida cultural brasileira que já se encontrava latente desde a década de 1910. Ela foi realizada nos dias 13, 15 e 17 de fe-vereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, e contou com a pre-sença de importantes nomes da literatura e das artes brasileiras. Entre os participantes estavam Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graça Aranha, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Victor Brecheret, Di Cavalcanti, Sérgio Milliet, Heitor Villa-Lobos, e tantos outros escri-tores, artistas e intelectuais (camargos, 2002). Houve declamações de poesias, palestras, exposição de pinturas, esculturas, maquetes de arqui-tetura e concertos musicais. O evento reuniu pessoas da elite paulista, acostumadas com os padrões formais da arte clássica, e que por isso mesmo ficaram escandalizadas com o fervor “futurista” dos jovens ar-tistas pela ousadia em desrespeitar os cânones estéticos do academismo

vigente11 (camargos, 2007). Para Jorge Schwartz, com o passar do tem-po “a semana de 22 rompe com toda uma tradição criticando, reescre-vendo e, por conseguinte, reinventando-a” (schwartz, 1983, p. 216).

De todos os membros ilustres da Semana de Arte Moderna, talvez tenha sido Graça Aranha, escritor e diplomata, aquele que melhor “ofi-cializou” os ecos de rebeldia dos jovens modernistas. Coelho (2012, p. 47–48) nos adverte que a participação dele é tida como decisiva na orga-nização e na execução das atividades. Diplomata na Europa por mais de uma década, assistiu de camarote o surgimento das várias correntes das vanguardas que circularam pelas ruas de Paris, Berlim, Roma, Amsterdã e demais capitais europeias. Foi também um dos últimos discípulos da Escola do Recife, que reunia intelectuais da Faculdade de Direito do

11 A maior parte da elite paulistana não compreendeu aquela rebelião artística, confundida pela imprensa como “eco do futurismo italiano”, sinônimo de ideias esdrúxulas e extravagantes (velloso, 2010). Porém, não esqueçamos que, em sua maioria, os modernistas também eram membros da elite. Baseando-se, por exemplo, no elitismo da Semana de 1922, Marcia Camar-gos diz que as pessoas que viveram na época “confirmaram ter acompanhado com interesse a festa cultural mais retumbante do ano através dos jornais e das revistas. Mas ficaram de longe, pois “era coisa de grã-fino” (camargos, 2002, p. 28). Apesar disso, não devemos compreender os modernistas como membros de uma elite homogênea e totalmente “fechada”, uma vez que aqueles que se organizaram em 1922 “transgrediram” os limites do que era permitido transgre-dir, existindo uma atitude mais aberta às renovações que viriam se suceder nos anos seguintes. De início, as reuniões ocorriam nos salões luxuosos da Villa Kyrial, propriedade do senador José de Freitas Valle, agregando parte da intelectualidade paulistana e, futuramente, em Hi-gienópolis, onde se encontravam com pessoas influentes, entre elas Olívia Guedes Penteado e Paulo Prado (camargos, 2002). Mário de Andrade (1974) afirma que além do salão de Hi-gienópolis, existiam em São Paulo, nas terças à noite, reuniões no salão da Rua Lopes Chaves, que chegavam a somar até quinze artistas. Houve também o salão da Rua Duque de Caxias, que era o maior e o mais característico, com reuniões que ocorriam todas nas terças à tarde. Era o local onde se fazia um verdadeiro “culto” da tradição, “dentro do maior Modernismo”, provando-se da cozinha de cunho afrobrasileiro em almoços e jantares. O últimos dos salões a ser frequentado foi o da alameda Barão de Piracicaba, congregado em torno da pintora Tarsila do Amaral. Dos três salões que mencionamos, M. Andrade (1974, p. 240) diz que o da pintora era “o mais gostoso dos salões aristocráticos”, desfrutando-se de uma “significação” maior de independência e comodidade. Consultar: velloso, Monica Pimenta. História & Modernismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. (Coleção História &...Reflexões, 14). Ver também: ca-margos, Marcia. A semana de 22: entre vaias e aplausos. São Paulo: Boitempo, 2002.

Recife entre os anos de 1860 e 1880. Durante o período em que esteve fora do Brasil, Graça Aranha formulou uma série de teses filosóficas que foram sintetizadas em seu livro A estética da vida, publicado em 1921. No mesmo ano, ele retornou ao Rio de Janeiro, cidade em que era um dos personagens culturais de maior destaque, e logo se aproximou dos jovens que professavam de diferentes formas os ideários do Modernismo, parti-cipando de reuniões na casa de Ronald de Carvalho. Tudo indica, porém, que Graça Aranha foi incorporado ao grupo de modernistas em razão de um convite de Paulo Prado. Levava-se em consideração o prestígio que o diplomata desfrutava entre os públicos mais conservadores, o que ajuda-ria na viabilização da Semana de Arte Moderna diante das autoridades e de financistas paulistas.

Entretanto, o que até hoje permanece sem o devido esclarecimen-to foi a manutenção de uma relação estratégica de Graça Aranha com os modernistas de São Paulo. Se em 1922 ele chegou a ser considerado uma figura providencial, nos meses subsequentes a sua permanência nos grupos modernistas começou a tornar-se problemática. Coelho (2012, p. 51–55) acredita que, apesar do seu papel decisivo na organização da Semana, seu estilo e pensamento, em muito diversos do que pensavam os paulistas, fez com que, logo após o convívio no evento, todas as hon-ras e reconhecimentos atribuídos a sua pessoa se transformassem em um desmonte sistemático de sua importância. Os modernistas o transforma-ram numa espécie de “padrinho” e “apoiador” do movimento para, em outra frente, o “desqualificarem” como um “aproveitador” de uma “revo-lução” que inevitavelmente ocorreria mesmo sem a sua presença e apoio. Porém, outro fato curioso que o ligou ao Modernismo foi o seu discur-so proferido no dia 19 de janeiro de 1924 para a Academia Brasileira de Letras (ABL), criticando os seus membros e afirmando sem concessões que “a fundação da Academia foi um equívoco e foi um erro”12.

12 Suas palavras pareciam soar “modernistas” demais para aquele ambiente, denunciando o “apego acadêmico ao passadismo”. No mesmo ano, ele rompeu com a ABL. Não obstante, poucos anos depois a própria Academia comemoraria esta data, com a alegação de que o

Ainda que tenham ocorrido tais desencontros, Carlos Zilio (1982) in-terpreta a Semana de Arte Moderna sob o título de primeira manifesta-ção coletiva em prol de um “espírito artístico moderno” que reuniu artis-tas e intelectuais na criação de uma arte brasileira. Aos poucos a rebelião literária e artística de 1922 representou um marco, comparável, por sua repercussão, à chegada da missão francesa ao Rio de Janeiro no século XIX ou, no século XVIII, à obra do Aleijadinho13 (amaral, 1998). Muitos dos nossos intelectuais modernistas daquele momento tentavam desen-volver, através do sarcasmo e da ironia, uma nova forma de olhar com os olhos voltados para dentro do país e não para a Europa, contrariando o costume dos períodos anteriores. De acordo com Dante Moreira Leite, “se fosse necessário indicar uma atitude mais caracteristicamente mo-dernista, esta seria provavelmente de otimismo, de aceitação da pátria tal qual ela é, de ridicularização dos que pretendiam vê-la com olhos euro-peus” (leite, d., 1983, p. 287). Tivemos, assim, uma fase “especialmente rica de aventuras experimentais tanto no terreno poético como no da ficção” (bosi, 2013, p. 369).

Sabemos, contudo, que não existe unanimidade em relação aos seus saldos e ao seu “virtuosismo renovador”. Marcia Camargos supõe, por exemplo, que “se tivesse realmente pretendido representar tudo de novo que se fazia em termos artísticos no país, a Semana de 22 poderia ser

Modernismo desencadeado pela Semana de 1922 só chegou àquela instituição no dia do dis-curso de Graça Aranha (coelho, 2012). Ver: coelho, Frederico. A semana sem fim: cele-brações e memória da semana de arte moderna de 1922. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012. 168p. : il. (modernismo + 90; 2).

13 O ano de 1922 foi também caracterizado por importantes acontecimentos históricos. Foi um ano de reviravoltas que questionavam a ordem política vigente, com destaque para o levante do Forte de Copacabana e a fundação do Partido Comunista Brasileiro (fausto, b., 2012; schwarcz & starling, 2015). Todos esses episódios se inserem no quadro de intranquilidade da “República Velha” (1889–1930), conhecida como a “república dos fazendeiros”, “república do café com leite” ou “república das oligarquias”, marcada por fortes desigualdades sociais e econômicas. Recomenda-se consultar: fausto, Boris. História do Brasil. 14.ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012. Ver também: schwarcz, lilia moritz; starling, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

taxada de “retumbante fracasso”. Pois tanto em artes plásticas, quanto em literatura e música, teve uma abrangência que deixou a desejar” (camar-gos, 2007, p. 30). Já Antonio Candido endossa a tese de que esse mesmo acontecimento foi na verdade o “catalizador da nova literatura, coorde-nando, graças ao seu dinamismo e à ousadia de alguns protagonistas, as tendências mais vivas e capazes de renovação, na poesia, no ensaio, na música, nas artes plásticas” (candido, 2010a, p. 125). Similarmente, Frederico Coelho acredita que aqueles três dias de fevereiro são até hoje definidos como “o momento” da vida moderna brasileira no sécu-lo XX. Eles permanecem ativos como o motor da memória de um país moderno” (coelho, 2012, p. 22). Ou seja, marcam o início de um pro-cesso fulminante de desvinculação entre o velho e o novo, tornando o Modernismo parte oficial da cultura brasileira (coelho, 2012).

Contudo, foi um processo bastante demorado e, em princípio, pou-co conhecido. Mesmo que a Semana de Arte Moderna tivesse sido no-ticiada pelo jornal Correio Paulistano, em 29 de janeiro de 1922, e de-pois pelo jornal A Gazeta, em 22 de fevereiro do mesmo ano, a imprensa se mostrava dividida e a maior parte das informações acabou sendo di-vulgada, principalmente, por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graça Aranha e Menotti Del Picchia. Sobre o ocorrido, a historiadora e crítica de arte, Aracy Amaral, afirma que o “silêncio da imprensa sobre a exposição indica também indiferença total do meio ambiente intelectual em relação às obras expostas ou pelo objeto artístico em si” (amaral, 1998, p. 142). O tom agressivo com que muitos modernistas pronuncia-vam suas ideias, a exemplo do artigo “Glórias de praça pública”, de au-toria de Oswald de Andrade, publicado em 11 de fevereiro de 1922 para o Jornal do Commercio, nos ajuda a refletir um pouco daquele ambiente “eufórico”. Em um dos parágrafos, o autor adverte o seguinte: “queremos mal ao academismo porque ele é o sufocador de todas as aspirações jo-viais e de todas as iniciativas possantes. Para vencê-lo destruímos. Daí o nosso galhardo salto, de sarcasmo, de violência e de força. Somos bo-xeurs na arena” (andrade, o., 1922, p. 71). A perspectiva “antiacadêmi-ca” e “anti-retórica” propugnava a “palavra em liberdade”, o que envolvia

temas e situações prosaicas do dia-a-dia, valorizando-se o “grotesco” e o “ridículo”, sem grandes preocupações com a erudição (nogueira, 1997).

Não obstante, o primeiro espaço encontrado por muitos modernis-tas para anunciarem mais amplamente suas opiniões apareceu somente em maio de 1922, com a criação da revista Klaxon — Mensário de Arte Moderna, que perdurou até janeiro de 1923. Ela contava com uma linha editorial própria e interessava-se pela produção artística e suas propostas estéticas14. Continha ainda um conteúdo bastante diversificado, incluin-do publicações de poemas, ensaios, crônicas, artigos, piadas, críticas de arte e cinema, além de textos em língua estrangeira. A palavra Klaxon vem do inglês e significa “buzina elétrica” ou “buzina de automóvel”, sím-bolos da modernidade e do progresso da cidade de São Paulo. Seus cola-boradores alegavam que a Klaxon era “atual” e “internacional”. Sabia que “a vida existe” e que, por isso, visava o presente. Sabia que “a humanidade existe”, sendo “internacionalista”. Dizia saber que “a natureza existe”, mas entendia que a lente motora da obra de arte era “deformadora da reali-dade”. Ao mesmo tempo, afirmava saber que “o progresso existe”, sendo necessário caminhar sempre para frente, sem renegar o passado. Sabia que “o laboratório existe”, buscando, com isso, combater os preconceitos artísticos. Enfatizava-se, de modo análogo, que “a cinematografia existe”, tomada pelos “klaxistas” como a criação artística mais representativa da-quela época.

14 Entre os principais autores que colaboraram com a revista Klaxon estavam: Mário de An-drade, Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida, Tácito de Almeida, Rubens Borba de Moraes, Sérgio Milliet, Yan de Almeida Prado, Luís Aranha e Couto de Barros. No Rio de Janeiro ela contou com a colaboração de Sérgio Buarque de Holanda, seguido do Recife com a presença de Joaquim Inojosa. Participaram também alguns poetas estrangeiros, en-tre eles, L. Charles Baudouin, Roger Avermaete e Albert Ciana. Além da Klaxon outras re-vistas do Modernismo atuaram na década de 1920. Recebeu destaque A Revista (1925–1926) e a revista Verde de Cataguases (1927–1929), ambas de Minas Gerais. No Rio de Janeiro houve mais proeminência das revistas Estética (1924–1925) e Festa, cujo primeiro número circulou entre 1927 e 1928, e o segundo entre 1934 e 1935. Por sua vez, em São Paulo, a revista Terra Roxa e Outras Terras (1926) foi aquela que obteve maior expressão, apesar do curto período de apenas um ano de atividades.

Foi nas colunas da revista Klaxon que Mário de Andrade escreveu em 1922 um pequeno texto chamado “o homenzinho que não pensou”, onde procurava esclarecer alguns equívocos atribuídos ao “futurismo” dos seus membros. Para ele, a Klaxon “não se preocupará em ser novo, mas de ser actual [sic]. Essa é a grande novidade” (andrade, m., 1922, p. 10). Existe uma recusa de sua parte em aceitar a designação de “futurista”, preferin-do o termo “modernista”. Mesmo que fossem palavras sinônimas naquela época, a alcunha de “futurista” poderia deslizar, erroneamente, para uma suposta associação sua com os ideais políticos do futurismo italiano, ali-nhado ao fascismo. O autor é enfático ao afirmar que “se em outras coisas aceitamos o futurismo, não é para segui-lo, mas por compreender o espi-rito de modernidade universal” (andrade, m., 1922, p. 10).

Tendo-se em mente que os resultados da Semana de Arte Moderna não foram imediatos, mas muito restritos e delongados, Monica Pimenta Velloso admite que, do ponto de vista dos avanços, o ano de 1922 — ou o que havia antes dele — “é considerado um verdadeiro divisor de águas na história literária. O que aconteceu de moderno na sociedade brasi-leira nas primeiras décadas do século XX passa a ser considerado como uma espécie de premonição dos temas de 1922” (velloso, 2010, p. 22). Consequentemente, propunha-se pensar 1922 sem esquecer a confluên-cia de “ideias que já vinham sendo esboçadas na dinâmica social. Nessa perspectiva, mostrava-se o movimento modernista dos anos de 1920, como resultado de um pensar filosófico já inscrito na tradição cultural brasileira” (velloso, 2010, p. 25). Apesar de suas especificidades, a pre-sença modernizadora das vanguardas no Brasil também foi, gradualmen-te, uma realidade que se estendeu pela América Latina e vice-versa. Nas palavras de Lisbeth Rebollo Gonçalves:

Em toda a América Latina, os projetos de modernização es-tética buscaram a construção da consciência nacional e têm uma densidade ética diferente da européia. É como agente da sociedade que o artista assumiu uma atitude prometeica e, na arte, ao lado da procura de inovação da linguagem,

projetou-se um olhar sobre o lugar. A identidade transfor-mou-se num eixo fundamental no diálogo com as vanguar-das artísticas, sendo a chave mestra dos projetos estéticos que se desenvolviam, nos diversos países que consolidavam como nações independentes (gonçalves, l., 1990, p. 25).

Sobre isso, Renato Ortiz adverte que se o Modernismo, desencadeado pela Semana de Arte Moderna, é visto por muitos como um ponto de referência, “é porque este movimento cultural trouxe consigo uma cons-ciência histórica que até então se encontrava de maneira esparsa na so-ciedade” (ortiz, 2006, p. 40). Na avaliação de Mário de Andrade (1974), a maior conquista do Modernismo no Brasil, integrando os erros e equí-vocos15, foi a fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a es-tabilização de uma consciência criadora nacional, conjugados num todo orgânico de “consciência coletiva”. O autor reconhece ainda o seguinte:

Manifestado especialmente pela arte, mas manchando tam-bém com violência os costumes sociais e políticos, o mo-vimento modernista foi o prenunciador, o preparador e por muitas partes o criador de um estado de espírito na-cional. A transformação do mundo com o enfraquecimento

15 Em 1942, no aniversário dos vinte anos da Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade discursou na Conferência do Itamaraty, acusando a si mesmo e os modernistas de “ab-stencionismo” em relação aos problemas de sua época. A crítica dirigida ao Modernismo resultou da convicção de que “o movimento teria sido, ao longo dos seus vinte anos de existência, essencialmente apolítico e, nessa medida, inatual” (jardim, 2005, p. 99). Por isso mesmo, ele conclamava às novas gerações de intelectuais e artistas, marcharem com as multidões ao invés de se comportarem como simples espiões da vida, anunciando tais palavras: “façam ou se recusem a fazer arte, ciências, ofícios. Mas não fiquem apenas nisto, espiões da vida, camuflados em técnicos de vida, espiando a multidão passar. Marchem com as multidões” (andrade, m., 1974, p. 255). Aconselha-se a leitura integral do seguinte livro: jardim, Eduardo. Mário de Andrade: a morte do poeta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

gradativo dos grandes impérios, com a prática européia de novos ideais políticos, a rapidez dos transportes e mil e uma outras causas internacionais, bem como o desenvolvimento da consciência americana e brasileira, os progressos inter-nos da técnica e da educação, impunham a criação de um espírito novo e exigiam a reverificação e mesmo a remode-lação da Inteligência nacional. Isso foi o movimento mo-dernista, de que a Semana de Arte Moderna ficou sendo o brado coletivo principal (andrade, m., 1974, p. 231).

É plausível, porém, questionar a maneira pela qual essas ideias foram erguidas socialmente, sem menosprezar a sua importância. Se elas não obtiveram de imediato grande adesão, é necessário dizer que o tra-dicionalismo artístico e literário de parte da nossa elite intelectual e econômica, além do contexto histórico marcado por altos índices de analfabetismo e carência de instituições de ensino, também foram ve-tores que potencializaram essa situação. Zilio (1997, p. 38) admite a re-levância fundamental do Modernismo, mas não hesita em dizer que, na verdade, não existiu de imediato um programa modernista siste-mático de renovação. Sofreram-se inúmeras hesitações e dificuldades diante de um ambiente cultural retrógrado com o qual se estava rom-pendo, “mas que dele era também, enquanto reação, resultado. Esse, digamos, chão cultural vai pesar decisivamente para marcar o alcance das modificações introduzidas e estará entre as causas que determina-rão as diferenças regionais que o movimento terá” (zilio, 1997, p. 38).

Na década de 1960, o “marco” do Modernismo, isto é, a Semana de Arte Moderna de 1922, ainda não era o grande tema que despertava o interesse das novas gerações, muito mais preocupadas com os ru-mos nefastos que o Brasil tomava com a instauração da ditadura civil--militar. Naquela época, afirma Coelho (2012, p. 96–98), a Semana de 1922 era vista por muitos, principalmente pelos intelectuais do Centro Popular de Cultura (CPC), como uma iniciativa da “burguesia cafeei-ra” de São Paulo, inexistindo qualquer referência sua àquele movimen-to, apesar de ter sido na década de 1920 que uma “cultura popular

nacional” foi sugerida e reivindicada16. Entretanto, a despeito de não se ter comemorado publicamente a sua memória, foi nos anos 1960 que começou a se estabelecer a sua “aceitação coletiva”, tanto para a popu-lação quanto para os governos (coelho, 2012).

A grande comemoração viria somente em 1972, manipulada pelo nacionalismo ufanista dos militares, criando-se uma espécie de “con-senso público” ao redor da sua importância, tornando-a “parte funda-mental de uma visão oficial de Estado” (coelho, 2012, p. 110). Contudo, esse reconhecimento não ficou restrito à propaganda da ditadura. Ao tentar fugir dessa lógica, a Semana de 1922 manteve, especialmente en-tre os mais jovens, a sua fonte de insatisfação com a ordem (coelho, 2012). Com suas idas e vindas, ela passou a ser analisada também por sua iconoclastia e pela necessidade de se modificar a maneira de pen-sar das letras e artes brasileiras. Carlos Zilio (1997), embora faça algu-mas ressalvas, reconhece que os avanços do Modernismo foram incor-porados “à nossa cultura como proposta de atualização, o desrecalque das culturas negras e indígenas, a compreensão da relação de tensão com os centros internacionais e uma maior solidez nas condições de existência social da arte no Brasil” (zilio, 1997, p. 118).

1.2 Um espaço para novas interpretações da brasilidade

O próximo passo do Modernismo seria a busca, intuitiva ou etnográfi-ca, da brasilidade, isto é, uma construção social e simbólica que com-preende o sentimento e o conjunto de características que se imagina estarem vinculadas ao Brasil. Para Ridenti (2010, p. 9) tal conceito é

16 Apesar dessas dificuldades, algumas expressões do Modernismo despertaram o interesse de parte da intelectualidade brasileira naquele momento. Podemos destacar, por exemplo, a dis-cussão promovida pelos poetas Haroldo de Campos e Augusto de Campos em torno da obra e do legado de Oswald de Andrade. Tal diálogo com os escritos deste autor foi fundamental para a elaboração de determinadas manifestações “neoantropofágicas”, como o Concretismo e o Tropicalismo, a partir das quais houve um importante redirecionamento na busca por novas linguagens poéticas e artísticas.

fruto de certo imaginário da nacionalidade, próprio de um país de dimensões continentais, não se reduzindo a mero “nacionalismo” ou “patriotismo”, mas que pretende ser fundador de uma “verdadeira ci-vilização tropical”. Seria possível encontrar elementos de brasilidade ao menos desde o século XIX, porém foi a partir dos anos 1930 que ela se desenvolveu no pensamento social brasileiro, sendo utilizada nas políticas de Estado, nas artes e na vida cotidiana, assumindo for-mas distintas e variadas à direita, à esquerda, conservadoras e pro-gressistas. Entretanto, de acordo Eduardo Jardim de Moraes (1978) tudo indica que a pesquisa modernista da brasilidade possa ter ocor-rido a partir de 1924, quando gradualmente se apreende a necessidade do “deslocamento” geográfico no intuito de conhecer melhor o nosso “primitivismo”17 (moraes, e., 1978).

17 Como já foi comentada de forma breve na introdução deste livro, a formulação da questão da brasilidade está ligada à tradição do pensamento brasileiro, particularmente ao monismo filosófico de Graça Aranha, defensor da integração do eu no cosmos ou da parte no todo uni-versal, através de uma via sentimental e emotiva. Eduardo Jardim de Moraes (1978) defende que a partir de 1924 as preocupações na busca desta integração com o cosmos e com o todo firmaram-se na observação da realidade brasileira e de suas peculiaridades. O autor alega que “a questão da brasilidade deixou de ser de natureza puramente intelectual. Ela exige uma transformação efetiva da sociedade” (MORAES, E., 1978, p. 168). Por isso mesmo, o interesse no seu estudo constituiu “um tema obrigatório no debate modernista, mobilizando indistin-tamente todos os intelectuais” (VELLOSO, 1993, p. 108). Contudo, as reflexões em torno da brasilidade enfrentaram e ainda enfrentam sérios problemas, pois embora sua compreensão possa resultar em dados concretos, sua existência social é imaginária e na maior parte dos casos induz a falsa ideia da “unidade nacional”, excluindo a heterogeneidade, a desigualdade e as diferenças. Quase sempre seus estudiosos ignoraram ou tornaram “exótica” a presença dos grupos subalternos, entre os quais podemos situar os negros, as mulheres, os nordestinos e outros segmentos ainda marginalizados. Sobre isso, Marcelo Ridenti (2010) nos alerta que não foram apenas os grupos conservadores que tentaram forjar suas próprias imagens da bra-silidade, mas também a intelligentsia de esquerda, através do que ele chama de “brasilidade revolucionária”. Tratava-se de uma aposta nas possibilidades da revolução brasileira, nacio-nal-democrática ou socialista, que permitiria realizar as potencialidades da nação e do povo. Ela foi, portanto, uma vertente específica, identificada com ideias, partidos e movimentos artísticos, vindo a manifestar-se com mais clareza a partir do final dos anos 1950, ganhando esplendor na década seguinte, seguido de seu declínio. Recomenda-se consultar: VELLOSO,

Nesse mesmo ano, Oswald de Andrade publicou o seu Manifesto Pau-Brasil, reivindicando, por exemplo, a atualização das linguagens artísticas e uma ousada síntese entre a tradição pré-colonial com as tendências da arte moderna. Coelho (2012, p. 30–31) nos informa que foi também em 1924, no dia 5 de fevereiro, que o poeta suíço-francês, Blaise Cendrars, desembarcou no Rio de Janeiro, sendo recebido por Graça Aranha, Sérgio Buarque de Holanda e Ronald de Carvalho. Logo depois do carnaval, viajou a São Paulo onde se encontrou com seu anfi-trião, o cafeicultor, ensaísta e colecionador de arte, Paulo Prado. No mês seguinte, Blaise Cendrars partiu para Minas Gerais em companhia de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Godofredo Telles, René Thiollier e Olívia Guedes Penteado. Conheceram em Belo Horizonte os poetas Carlos Drummond de Andrade, Abgar Renault, Aníbal Machado e Pedro Nava, seguindo depois para as cidades his-tóricas mineiras, interessados no conhecimento da brasilidade através do “redescobrimento” da cultura barroca18. Frederico Coelho (2012) assinala que tal incursão foi importante em termos de um amadureci-mento do Modernismo no Brasil. Diz o autor:

O encontro de poetas, pintores e modernistas afrancesa-dos com a cultura colonial e popular e a descoberta da car-ga simbólica do Barroco brasileiro redefinem radicalmen-te os primeiros passos trôpegos e espalhafatosos que, dois anos antes, alguns deles tinham dado em uma Semana de Arte Moderna sem muita importância para o país até então (coelho, 2012, p. 31).

Monica Pimenta. A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo paulista. Estu-dos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n.11, p. 89–112. 1993. Ver também: RIDENTI, Marcelo. Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

18 Coelho (2012, p. 31) salienta que do grupo de modernistas que acompanharam Blaise Cendrars a Minas Gerais em 1924 apenas Mário de Andrade conhecia as cidades históricas, pois alguns anos antes ele visitou no município de Mariana o poeta Alphonsus de Guimaraens (1870–1921).

Outros deslocamentos ocorreram na década de 1920, inaugurando algo novo na sensibilidade modernista: “a disponibilidade do indivíduo para o deslocamento geográfico intrinsecamente conectado à atividade do co-nhecimento” (velloso, 2010, p. 91). Durante os seis meses que esteve no Brasil, a atuação do poeta Blaise Cendrars contribuiu na articulação cria-tiva do Brasil com as vanguardas, caracterizando-se, segundo Monica Pimenta Velloso, por um processo de mão dupla: de um lado existiam europeus que buscavam inspiração no nosso folclore, literatura e músi-ca popular e, de outro, brasileiros que se envolviam no trabalho de com-preensão de seus próprios costumes em contato com as referências euro-peias, resultando em rico “entrecruzamento cultural” (velloso, 2010). Um dos possíveis frutos desses diálogos com autores cosmopolitas foi a elaboração do Manifesto Pau-Brasil, no qual se reivindicava, entre outras coisas, a atualização das linguagens artísticas e uma ousada síntese entre a tradição pré-colonial com as tendências da arte moderna. O ano de 1928 foi igualmente relevante, pois foi nessa época que tivemos a publicação do Manifesto Antropófago, também de Oswald de Andrade, além do livro Retrato do Brasil19, de Paulo Prado, e Macunaíma, de Mário de Andrade.

Com Macunaíma, por exemplo, Mário de Andrade pôs em prática com mais intensidade a perspectiva da “desgeografização”. Ela implica-va em ultrapassar as fronteiras regionais para abarcar a totalidade de um território com o objetivo de descobrir uma “unidade subjacente relati-va à sua identidade” (velloso, 2010, p. 98). Era preciso dissolver as di-ferenças regionais para obter uma visão conjunta da realidade social e

19 Livro ainda hoje não muito conhecido, no qual Paulo Prado tentou interpretar o Brasil, formulando uma espécie de “epopeia” nacional traçada ao longo dos séculos. O argumento central é que somos o produto de uma civilização que gerou um “povo triste” e “melan-cólico”, fruto da relação assimétrica e desordenada entre a “cobiça por riquezas” e a “sa-tisfação sexual” (prado, 1981). Seriam essas as causas principais dos nossos “males”, do nosso “atraso” e dos nossos “vícios”, contrastando, portanto, com o que se acreditava ser o ethos europeu, vinculado ao trabalho e ao progresso gerados pela modernidade. Consultar: prado, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. 2ª Ed. São Paulo: obrasa; Brasília: INL, 1981.

da nacionalidade, fazendo do dado etnográfico o principal instrumen-to para entender o país em suas diferentes facetas. Dava-se prioridade ao aprofundamento de análises sobre o folclore, mitologias e linguagens populares, que foram transformados em matéria-prima na constituição da sua literatura (bernd, 1992; jardim, 2005; moraes, m., 2003; passos, 2009). O livro foi fruto das suas viagens pelo Brasil, de onde recolheu farto material etnográfico que daria vida ao seu excêntrico personagem. Leyla Perrone-Moisés (2007) acredita que Mário de Andrade via o Brasil em termos de uma “entidade nacional”, isto é, uma realidade em processo e movimento, e não algo naturalmente dado. O antigo herói romântico e idealizado é destronado pelo anti-herói saído do mato virgem, que com-porta, argumenta Peixoto (2000, p. 68), a visão de uma sociedade mesti-ça, pensada nos termos de uma “síntese” ou “fusão”.

O problema é que a ideia de “fusão” utilizada por Mário de Andrade gera, em contrapartida, “instabilidade” e “individualismo”, pois Macunaíma é tomado como um ser “desraciado”, ou seja, sem “raça”, já que não é, stricto sensu, nem europeu, nem africano e nem indígena, mas a mistura inacabada e contínua dos três20 (peixoto, 2000). Por isso, de-vemos ter em mente que já naquela época o interesse dos intelectuais pela

20 Ainda que Mário de Andrade não tenha “condenado” a importância do mestiço para a nossa formação, se seguirmos os apontamentos de Fernanda Peixoto (2000), devemos compreender que em Macunaíma a “mestiçagem” não gerou apenas “instabilidade” e “in-dividualismo”, mas também o “desequilíbrio”, que o torna “preguiçoso” e “esperto”, apro-ximando-o dos estereótipos atribuídos ao malandro. Nas primeiras linhas do livro, Mário de Andrade esclarece melhor a situação que estamos buscando compreender. Diz o autor: “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era prêto retinto e filho do mêdo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma. Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava: — Ai que preguiça!...e não dizia mais nada” (andrade, m., 1978, p. 9). Recomenda-se consultar: andrade, Mário de. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. 16. ed. São Paulo: Martins, 1978. Ver também: peixoto, Fernanda. Roger Bastide e o modernismo: diálogo interessantíssimo. In: Diálo-gos brasileiros: uma análise da obra de Roger Bastide. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.

cultura brasileira, incluindo a busca por ideais estéticos, se associava aos interesses políticos e se coadunava com o modo pelo qual a brasilidade estava sendo formulada (lafetá, 2000). Nas palavras de Carlos Zilio:

O modernismo vai ser uma expressão deste novo Brasil. O objetivo de artistas e intelectuais será o de colocar a cultu-ra brasileira coerente com a nova época, além de torná-la um instrumento de conhecimento efetivo de seu país. Esse projeto ambicioso se firmará no tempo como formador de uma nova consciência cultural brasileira (zilio, 1997, p. 38).

Do mesmo modo, as telas de Tarsila do Amaral, posteriores ao ano de 1922 — entre as quais podemos situar A negra (1923), Abaporu (1928) e a Antropofagia (1929), a segunda considerada a base para o movimento antropofágico de Oswald de Andrade — se lançaram no tempo em bus-ca de “redescobrir” diversos símbolos que comporiam a ideia da brasili-dade (schwartz, 1983). Vivenciava-se de forma gradual “a tentativa de posicionar a arte e a cultura brasileira no contexto da modernidade, mas sem sucumbir ao mero mimetismo das manifestações vanguardistas da Europa” (soares, p., 2010, p. 11). O mais importante nesse momento era o “olhar” para dentro do Brasil, enaltecendo os seus valores e suas rique-zas étnicas e naturais.

Alfredo Bosi nos diz que “o processo de atualização caminhou cedo dos núcleos urbanos principais, São Paulo e Rio, para a província. Aí ga-nhou aspectos novos que iriam compor um quadro mais matizado que é o conjunto da literatura moderna brasileira” (bosi, 2013, p. 368). Por meio da adesão de novos escritores e artistas em outros estados, a “pre-gação” modernista se fixava cada vez mais, ganhando, ao mesmo tempo, características próprias e particulares. Não se contentou apenas com as fronteiras citadinas, mas passou a circular como um “discurso coletivo” (coelho, 2012). Porém, a chegada de tal discurso não ocorreu sem con-tradições e sem resistências. Mesmo não tendo um impacto homogê-neo, na região Nordeste, por exemplo, o Modernismo foi visivelmente

contrabalançado por algumas reações de cunho regional. Ela é herdeira de uma tradição que ganhou maiores vultos com a Semana Regionalista do Nordeste, em 1926, no momento em que Gilberto Freyre teria apre-sentado o “programa” do seu futuro Manifesto Regionalista. Não que-remos dizer, obviamente, que a região Nordeste tenha se limitado ao Regionalismo ou que seus artistas se “fecharam” e não tematizaram pro-blemas que vão além dos aspectos locais. Também seria um equívoco pensar que a literatura que se produzia no Sudeste fosse, obrigatoriamen-te, “nacionalista” e “cosmopolita”. Portanto, a tensão que formava e cons-tituía esses dois polos não anulava ou esvaziava o diálogo, mas gerava novas proposições e questionamentos.

Do mesmo modo que Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Paulo Prado, Gilberto Freyre também ofereceu sua interpretação da brasilidade, inflamando críticas entre ele e alguns autores paulistas. Na sua perspectiva, comenta Chacon (1993b, p. 7), o Brasil não precisava do “dinamismo” de Graça Aranha e nem da “gritaria” dos rapazes do Sul; mas de se olhar, de se apalpar e de ir às suas fontes de vida, atingindo às profundidades de sua consciência. Chegou a repudiar, por exemplo, as concessões “futuristas” de Mário de Andrade e seus elogios sobre a in-dustrialização vertiginosa da Paulicéia Desvairada, acusando-o de não prever as contraditórias consequências deste processo. Da mesma ma-neira, também acusava Oswald de Andrade que, na sua visão, estaria se beneficiando de “estrangeirismos”, a ponto de declarar-se a si próprio um “antropófago”21 (chacon, 1993b). Oswald de Andrade, por outro lado,

21 Ao se referir a uma das frases de Oswald de Andrade que comparava São Paulo a uma “lo-comotiva” que puxava “os velhos e atrasados vagões da federação”, o sociólogo replicou: (...) “Como os catalães os paulistas tendem a se tornar orgulhosos, arrogantes, a exagerar o con-traste entre as suas brilhantes realizações técnicas e econômicas e as dos andaluzes brasilei-ros da Bahia, de Pernambuco e do Rio Grande do Sul, que seriam todos, segundo os críticos paulistas, uns exuberantes na conversa; e antes poetas e oradores do que homens de trabalho” (freyre, 2015, p. 114). É interessante notar, porém, que o próprio Gilberto Freyre também se utilizou de um recurso argumentativo semelhante ao prestar as maiores homenagens ao Nor-deste, dizendo não existir no Brasil região que o “exceda” em “riqueza de tradições ilustres” e em “nitidez de caráter” (freyre, 1996). Para maior aprofundamento recomenda-se a seguin-

com seu costumeiro gesto provocador, não deixava de ironizar as ideias de Gilberto Freyre. No livro Ponta de Lança22, em um artigo denomina-do “carta a uma torcida”, Oswald de Andrade criticou Gilberto Freyre e José Lins do Rego, referindo-se ao livro Casa-Grande & Senzala como um exemplo de “homeopatia gatafunhada” (andrade, O., 1991, p. 47). Porém, é indispensável saber que, para além dessas polêmicas, Oswald de Andrade, talvez até mesmo pelo impacto do livro de Gilberto Freyre, não negava o potencial brasileiro na construção de uma “civilização mes-tiça”, chegando a tecer comentários positivos a esta visão. Anos depois, num pequeno ensaio chamado “descoberta da África”, pertencente ao li-vro A utopia antropofágica, que reunia textos escritos entre as décadas de 1920 e 1950, Oswald de Andrade não poupou elogios aos estudos de Gilberto Freyre. Diz o autor:

Há quem afirme que Gilberto Freyre deveria ter começado seus estudos sociológicos pela África. Ou melhor, que a sua recente viagem através do Império Português Negro deveria ter precedido a fixação panorâmica de nossa formação. Não sou dos que pensam assim. É tal a honestidade, a convicção e a riqueza com que o mestre de Recife faz entrar pelas nossas retinas a água-forte de seus encontros com o Brasil, que seria difícil lhe ter escapado qualquer coisa da alta contribuição africana na composição de nossa originalidade (andrade, o., 2011, p. 323).

te leitura: freyre, Gilberto. Interpretação do Brasil: aspectos da formação social brasileira como processo de amalgamento de raças e culturas. 3. ed. São Paulo: Global editora, 2015. Ver também: freyre, Gilberto. Manifesto Regionalista. 7.ed. Recife: fundaj, ed. Massangana, 1996. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/cdrom/freyre/freyre.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2015.

22 Neste Livro, Oswald de Andrade reuniu conferências escritas por ele entre 1943 e 1944, in-cluindo também artigos publicados nos jornais, O Estado de São Paulo, Folha da Manhã e Diário de São Paulo (santiago, 1991). Para mais esclarecimentos, consultar: santiago, Silvia-no. Sobre Plataformas e Testamentos. In: andrade, Oswald de. Ponta de Lança. São Paulo: Globo, 1991. (obras completas de Oswald de Andrade).

De formas distintas e com ênfases diferentes, somam-se a isso certo em-penho intelectual compartilhado entre Oswald de Andrade e Gilberto Freyre no entendimento do “Brasil profundo”, isto é, rural e tradicional, e o “Brasil moderno”, ou seja, urbano e industrial. O patriarcado, as tra-dições pré-coloniais e os processos de absorção das culturas estrangeiras são alguns temas recorrentes. Até mesmo do ponto de vista da utilização do estilo ensaístico esses autores guardam certa semelhança, mas tam-bém distanciamentos significativos, tratando de assuntos e manuseando conceitos de uma maneira relativamente “flexível” ao que era exigido pe-los rígidos padrões acadêmicos. Antonio Candido esclarece, por exem-plo, que Gilberto Freyre se utilizava de uma linguagem “mais literária que científica na sua estrutura, embora não no léxico, e que é nele um instrumento de interpretação pela riqueza das imagens, a sugestão dos longos períodos em que dá vida e graça ao esqueleto da erudição e da análise” (candido, 2006, p. 284).

No que se refere propriamente aos estudos de Gilberto Freyre per-cebemos que eles além de apontarem para a necessidade de promover o desenvolvimento de uma cultura brasileira “autêntica” pelo “retorno” a seu passado, as suas tradições e riquezas regionais, parte também da apologia da “miscigenação”, ou seja, de que supostamente somos o resul-tado harmonioso, se comparado a outras partes do mundo, do intercur-so sexual e cultural entre portugueses, africanos e indígenas (araújo, r., 1994, 2009). Aos poucos ele começava a divergir dos estudos raciais de Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues, que por muito tem-po foram as principais autoridades no assunto. Culpava-se os negros, os índios, os trabalhadores e os ex-escravos pelo nosso atraso, acusados de terem costumes bárbaros e de impedirem o Brasil de chegar ao “esplen-dor” da Europa, estimulando a adoção de grandes programas de higieni-zação e saneamento, que pretendiam, sob um argumento de cunho eu-gênico, eliminar a “doença”, separar a “loucura” e a “pobreza” (queiroz, 1989; schwarcz, 1993; seyferth, 2002).

Contudo, Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke (2005) demonstra que nem sempre Gilberto Freyre adotou positivamente esta concepção e que

suas ideias mais notáveis acerca da “miscigenação” e mesmo do conheci-do método dos “antagonismos em equilíbrio” foram na verdade forjados na tradição britânica de Sociologia, Antropologia e História do século XIX e início do século XX, tendo no filósofo evolucionista inglês, Herbert Spencer, o seu expoente maior. A crença na integração universal e har-mônica entre as leis físicas e o comportamento humano, pregado pelos jovens intelectuais vitorianos, muitos dos quais Gilberto Freyre conhe-ceu pessoalmente, povoaram suas concepções de cultura e sociedade23.

Na década de 1920, por exemplo, ele ainda não tinha incorporado plenamente o “relativismo cultural” de Franz Boas. Antes disso, aderiu por alguns anos ao paradigma das teorias raciais do século XIX, cujo viés determinista defendia que a mistura racial era patológica. Entretanto, Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke admite que “o namoro” com o racis-mo científico, por parte do jovem Gilberto Freyre, não tinha nada de excepcional para aquele momento, pois naquela época “era norma ver o mundo em termos raciais e acreditar na existência de uma hierarquia na-tural das raças, mesmo entre os que não apelavam para a ciência da raça, quer por desinteresse, quer por não a levar a sério” (pallares-burke, 2005, p. 296). Se considerarmos que no final do século XIX e início do século XX a mistura racial era considerada patológica e que este discurso ganhava legitimidade “científica”, marcado pela naturalização da supe-rioridade civilizacional europeia, as interpretações de Gilberto Freyre, posteriores a sua “filiação” com o culturalismo de Franz Boas, trouxe-ram à tona a importância da “miscigenação”, que passava a ser concebida como algo “positivo” e não um “defeito” a ser extirpado.

Existem, porém, controvérsias quanto ao processo que o levou a se aproximar do pensamento de Franz Boas. Até onde se sabe foi o ale-mão Rüdiger Bilden, antigo amigo de Gilberto Freyre na Universidade

23 Lafcadio Hearn, Alfred Zimmern, Franklin.H Giddings, Carlyle, Walter Pater, Georg Gis-sing, Williams B. Yeats, Francis Simkins, apenas para citar alguns. Para mais informações recomenda-se a seguinte leitura: pallares-burke, Maria Lúcia Garcia. Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos. São Paulo: Editora da Unesp, 2005.

de Columbia e especialista em estudos de escravidão, que o teria reve-lado os trabalhos de Edgar Roquette-Pinto, antropólogo que andava na contramão da antropologia física da Europa, dos Estados Unidos e do Brasil, comportando-se como uma voz dissonante no coro nacional so-bre a “miscigenação”, ao observar que o problema do atraso brasileiro não era a “raça”, mas a “organização social”24. Não obstante, somente em 1931, durante a sua estadia na Universidade Stanford, é que Gilberto Freyre passaria a “adotar” o relativismo cultural de maneira definitiva e endossar a ideia de que a mistura racial deve ser vista como positividade (silva, 2009). A adesão ao culturalismo boasiano é descrito por Gilberto

24 Dos autores brasileiros, Edgar Roquette-Pinto parece ter sido aquele que antecipou, já no final dos anos 1920, a curiosidade de Gilberto Freyre pelo culturalismo de Franz Boas. A tão alardeada e repetida filiação ao famoso antropólogo culturalista deixa de entrever que Edgar Roquette-Pinto também teria contribuído para que Gilberto Freyre finalmente se tornasse um “discípulo” de Franz Boas. Do mesmo modo, não podemos ignorar a impor-tância de Rüdiger Bilden, autor pouquíssimas vezes citado por Gilberto Freyre, mas que teve um impacto decisivo na sua obra. Eram amigos desde os tempos da Universidade de Columbia e acabaram se reencontrando em agosto de 1926 no Rio de Janeiro, momento no qual Rüdiger Bilden teria direcionado o olhar de Gilberto Freyre aos trabalhos que vinha realizando sobre a história da escravidão nos Estados Unidos e no Brasil. Com ele, o soci-ólogo pernambucano apreendeu noções fundamentais que norteariam para sempre a sua obra. Por exemplo, antes de Gilberto Freyre, Rüdiger Bilden já chamava atenção sobre a “propensão” do português para a colonização dos trópicos; a experiência acumulada com a dominação moura, seguida por empreendimentos na costa africana; a necessidade das três bases da colonização (monocultura latifundiária, escravidão e miscigenação); a ascensão dos mestiços; além da “equalização” progressiva das “raças” e do encontro “harmonioso” de forças diversificadas (o equilíbrio de antagonismos). Rüdiger Bilden também supunha que no futuro o Brasil teria condições de aproximar-se cada vez mais do ideal da “democracia racial”, pois diferente de outras partes do mundo, o grau de sua composição racial o tornava mais integrador e pacífico. As coincidências entre as interpretações de Rüdiger Bilden e de Gilberto Freyre eram tamanhas que, em 1934, depois de anos sem conseguir concluir seu estudo sobre a escravidão, o pesquisador alemão não escondeu de seu amigo certo desapontamento ao ver que este expunha ideias que considerava mais suas do que dele. Isso, porém, não pôs fim a amizade de ambos. Rüdiger Bilden incentivava Gilberto Freyre a aprender a língua alemã e chegou a fazer uma tradução, com a colaboração de Dorothy Loos, do livro Sobrados e Mucambos, escrito por Gilberto Freyre e cuja primeira edição brasileira é de 1936 (pallares-burke, 2005).

Freyre no prefácio à primeira edição do seu famoso livro Casa-Grande & Senzala, publicado em 1933, no qual dizia ser Franz Boas o seu “mestre”, aquele que o ensinou a considerar fundamental a diferença entre “raça” e “cultura”; a discernir entre os efeitos de relações genéticas e os de influên-cias sociais, de herança cultural e de meio (freyre, 2006). Por outro lado, citou timidamente Rüdiger Bilden e Edgar Roquette-Pinto, que ficaram quase que num completo esquecimento.

Foi pela tentativa de redefinir de forma positiva a ideia da “miscigena-ção”, pelo aprimoramento de novos métodos de pesquisa e por seu estilo ensaístico peculiar, que os trabalhos de Gilberto Freyre o tornariam ao longo dos anos um autor bastante conhecido, principalmente pelas suas obras produzidas na década de 1930. Sugeriam-se, dessa forma, outras maneiras de “conhecer”, de “descobrir” e de se “entender” o Brasil. Na lite-ratura, por exemplo, a discussão entre o “universal” e o “regional” passava a ser adotada pelo governo Vargas e o intelectual, munido de um senti-mento de “missão”, tinha o papel de “traduzir” a “alma nacional” (beraba, 2008; veloso & madeira, 1999). Todavia, entender somente a importân-cia da “miscigenação” não exime o pesquisador de analisar os seus efei-tos sócio-históricos estruturantes da desigualdade racial no Brasil, muito mais complexos do que parecem ser. A simples apologia da “mestiçagem” não modificou os efeitos reais da discriminação e do preconceito racial no Brasil, assim como não conseguiu forjar uma imagem alternativa na re-presentação dos descendentes de africanos, dos descendentes de homens e mulheres que vieram para o Brasil escravizados, permanecendo e preva-lecendo a imagem do subalterno e sua incorporação positiva à formação da nação através do véu do exotismo (soares, e., 2011).

Logo, defender, sob um ponto de vista “positivo”, que somos uma “so-ciedade mestiça” foi um avanço importante na negação das supostas “pa-tologias” associadas a “mistura racial”; porém, por si só, ele não resolveu e nem muito menos encerrou os nossos problemas raciais, transforman-do-se, eficazmente, em um poderoso discurso de varredura das diferen-ças, de abrandamento ou mesmo de negação do racismo e da discrimina-ção no Brasil. Tal interpretação se materializou na ideia da “democracia

racial”25, concepção que não foi criada por Gilberto Freyre, já existindo de forma “diluída” na tradição do pensamento conservador brasileiro, mas que recebeu deste autor “refinamentos” e “reorientações”. Os estudos do chamado “Brasil mestiço” acabaram envolvendo um número razoável de intelectuais, tornando-se um dos elementos mais contraditórios e carac-terísticos da “brasilidade”, já que, como este, ela também é imaginária e simbólica, embora atue e exerça seu domínio na realidade social.

1.3 Duas realidades literárias: diálogos entre São Paulo e Recife

No início da década de 1920 o clima do primeiro pós-guerra determinou alterações fundamentais na maneira de se pensar o Brasil. As modifica-ções do quadro internacional e os impactos que sacudiram o cenário eu-ropeu refletiam-se também no país. Recorrendo às metáforas organicis-tas, nossos intelectuais acreditavam que o Brasil era o organismo sadio e jovem, enquanto a Europa era o ambiente decadente que deveria ceder lugar ao protagonismo da América triunfante (velloso, 1993). A deca-dência da civilização europeia é interpretada como o advento promis-sor de uma nova era, na qual a América deveria exercer o papel de líder mundial. Velloso (1993, p. 1) defende que a crise dos valores europeus fez cair por terra o mito liberal da era internacional que tornava obsoletos os nacionalismos. A cidade de São Paulo parece ter vivenciado mais inten-samente esse clima de turbulências. Acredita-se que o desenvolvimento paulista teria absorvido mais diretamente essas mudanças, colocando-o como lugar de vanguarda no conjunto nacional, onde se experimentava

25 Quando nos referimos a ideia de “democracia racial” embutida no pensamento de Gilberto Freyre não queremos negar que o autor tenha discorrido sobre a violência da colonização. Queremos antes alertar que, apesar disso, a sua narrativa sobre o Brasil é analisada nos mol-des de um “equilíbrio entre opostos” e não em termos de contradições estruturais mais pro-fundas, o que acaba por reverberar num certo “abrandamento” e “benevolência” nas relações entre senhores e escravos. Para saber mais sobre a desconstrução do “mito da democracia racial”, recomenda-se a seguinte leitura: fernandes, Florestan. O negro no mundo dos brancos. 2.ed.São Paulo: Editora Global, 2007. Ver também o capítulo 4 deste livro.

agudamente as maravilhas e as crises da modernidade (velloso, 1993). Nas palavras de Monica Pimenta Velloso:

Mais do que qualquer outra região, o estado paulista vive diretamente os impactos da imigração européia, com a ex-pansão do café dando surgimento ao proletariado e subpro-letariado urbano. Em meio a este clima de intensa agitação social, política e intelectual nasce o movimento modernista, procurando expressar, simbolicamente, o fluxo da vida mo-derna (velloso, 1993, p. 4).

Em São Paulo, a força da economia cafeeira concentrava a maior parte da mão de obra e dos investimentos necessários para a industrialização e para a urbanização. Seu desenvolvimento era perpassado por uma ca-feicultura de nítido corte empresarial e pela ideologia do progresso, que deveria ser sempre ascendente e em direção ao futuro (arruda, 2011; velloso, 1993). Evidencia-se também a influência de intelectuais que nu-triam grande curiosidade pela modernização das artes e da literatura no país. O crescimento industrial da cidade, por exemplo, ganhou o incen-tivo das frações mais progressistas das elites rurais. Através do mecenato boa parte das produções modernistas foi financiada, com proeminência para os mecenas, Paulo Prado e Olívia Guedes Penteado. Aos poucos São Paulo, centro urbano e cosmopolita, se tornava um ambiente muito pro-pício ao surgimento da Semana de Arte Moderna de 1922 (amaral, 1998; batista, 2012).

Na perspectiva de Sergio Miceli (1979), em seu livro Intelectuais e a Classe dirigente no Brasil (1920–1945), é possível identificar que no início de sua vigência o Modernismo recebeu ajuda do financiamento oferecido pelo mecenato, além da posição vantajosa dos artistas e intelectuais, para depois, especialmente na década de 1930, ganharem a proteção do apara-to estatal. Essa “dependência” em relação ao Estado acabou se tornando necessária para o fortalecimento das artes e da literatura no Brasil. Os mo-dernistas, conceitua o autor, compunham o círculo restrito dos chamados

“primos pobres” das oligarquias tradicionais26. Através do processo de bu-rocratização de nossas instituições e, consequentemente, de nossas letras, eles passaram a disputar o “mercado de postos” oferecidos pelo Estado, considerado o grande núcleo responsável pelo incentivo das atividades intelectuais (miceli, 1979, 1984, 2001; passiani, 2003; pécaut, 1990).

Ainda assim, é importante compreender que os intelectuais que se juntaram em 1922 não faziam parte de um grupo homogêneo. A maio-ria deles se organizava em torno de jornais e de revistas especializadas, cuja circulação divulgava e integrava as novas sensibilidades criadoras aos seus projetos e campos de interesse. Velloso (1993, p. 5) reconhece que os jornais da época enalteciam o progresso da cidade de São Paulo, compa-rando-a com as grandes capitais europeias. Nesse período, talvez as figu-ras de Oswald de Andrade e Mário de Andrade sejam as mais sugesti-vas e transgressoras. Mesmo com suas divergências, o autor do Manifesto Antropófago e o autor de Macunaíma, obras publicadas em 1928, guarda-vam em comum a preocupação com a atualização das artes e com os de-safios no entendimento da sociedade brasileira. Todavia, se as indagações são comuns, as respostas divergem. Enquanto Oswald de Andrade sugere que acertemos o nosso relógio; Mário de Andrade alerta para a “necessi-dade de pensarmos em uma temporalidade própria, o que significa dizer que o Brasil não reproduz o tempo, mas o cria de acordo com uma nova dimensão, que é a sua” (velloso, 1993, p. 21).

Por outro lado, muitos membros do Modernismo de 1922 discorda-vam dos posicionamentos acima. Alguns deles, reunidos no grupo “verde--amarelista”, movimento cultural capitaneado pela ultradireita, teorizavam soluções autoritárias para as artes e a política, além de serem defensores do “purismo paulista”, necessário para a preservação da herança bandeirante

26 Em razão da decadência política e econômica do Império português no Brasil e, posteriormen-te, com a crise da República Velha, os estratos menos abastados das elites rurais, definidas na terminologia de Sergio Miceli (1979) como os “primos pobres”, se viram obrigadas a optarem pelas profissões liberais e a se mudarem para o ambiente urbano, transformando-se em bacha-réis, literatos e funcionários públicos. Para mais informações recomenda-se a seguinte leitura: miceli, Sergio. Intelectuais e a Classe dirigente no Brasil (1920–1945). São Paulo: Difel, 1979.

(velloso, 1993). Entre seus participantes se destacavam Plínio Salgado, Cassiano Ricardo, Cândido Mota Filho e Menotti Del Picchia. Guardavam entre si um posicionamento de forte radicalismo conservador, seja em re-lação ao Brasil, seja em relação à cidade de São Paulo que, pensavam eles, seria a responsável pela proteção da “brasilidade” (chaui, 2000, velloso, 1993). Tais reflexões nos levam à formulação de Randal Johnson (1995), para a qual foi no final dos anos 1920 e começo dos anos 1930 que muitos intelectuais “tenderam a associar suas atividades com as do Estado, por eles encarado como “a representação mais elevada da Nação”, e ao qual atribuíam a preservação da ordem, a organização e a unidade nacional” (johnson, 1995, p. 171). O sociólogo elucida que “o papel desses intelec-tuais, acreditavam alguns, era inseparável dos objetivos mais amplos do Estado e, desse modo, muitos deles se uniram na adoção de soluções auto-ritárias e de desmobilização social” (johnson, 1995, p. 171).

A palavra de ordem do Modernismo nos anos 1920 e que se estende até os anos 1930 era a “criação da nação”, o que ajuda a explicar o tom de urgência assumido pelo debate intelectual, com vistas à descoberta de um veredicto seguro, capaz de encaminhar o processo da organização nacio-nal. Tomados pelo sentimento de orgulho e resignação, “os intelectuais brasileiros se auto-elegem executores de uma missão: encontrar a iden-tidade nacional, rompendo com um passado de dependência cultural” (velloso, 1993, p. 1). Para tanto, a questão da organização do país passava a figurar como tema obrigatório. Verificava-se uma reformulação total de valores, na qual a política e as artes adquiriam papel fundamental27 (sev-cenko, 2003; velloso, 1993; veloso & madeira, 1999).

27 Este “sentimento de missão” adotado pelos intelectuais brasileiros continuava a ser um fator significativo na construção de uma nova percepção do Brasil desde os primeiros anos da Primeira República ou da “República Velha”. Exigia-se, entre outras coisas, a atualização da sociedade, a modernização das estruturas da nação, a integração do Brasil na grande unidade internacional, além da elevação do nível cultural e material da população (sevcenko, 2003). Para maiores esclarecimentos recomenda-se consultar o seguinte livro: sevcenko, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

Apesar de incipiente na região Nordeste, nos anos 1920 a cidade do Recife também sofria os impactos da modernidade e da industrializa-ção, o que lhe levava a ocupar um espaço de destaque na antiga civiliza-ção açucareira em flagrante processo de decadência. Mesmo vivendo em um ambiente provinciano, mas acompanhando o ritmo das mudanças, o Recife se destacava pelos investimentos na área de infraestrutura, cujos resultados contribuíram para dar à cidade uma paisagem mais urbaniza-da e moderna. Esse desejo social de “ser moderno” e de ter uma cidade que refletisse tal imagem repercutia no imaginário da intelligentsia reci-fense, mergulhada no ideário da belle époque e das novas modas vindas do exterior (barros, 1972; rezende, 1997; teixeira, f., 1995). Em termos de crescimento econômico e industrial, o Recife era nos anos 1920 a ca-pital nordestina e Pernambuco continuava sendo a economia mais forte da região, estimulando, inclusive, uma vida intelectual ativa, já que boa parte dos jovens talentos dos vários Estados Nordestinos vinha concluir seus estudos na Faculdade de Direito do Recife (silva, 2009).

Fazia parte deste projeto de modernidade a construção de uma ave-nida a beira-mar, que deveria ser estendida para além dos alagados do bairro do Pina. F. Teixeira (1995, p. 97) nos alerta que esse conjunto de ações incluía a construção de um aterro, asfaltamento, calçamento e ar-borização, canalização das águas pluviais, postes de luz elétrica, telefones, abastecimento d’água e instalação de uma rede de esgotos. Estavam, por-tanto, se criando as bases para a expansão da exploração do solo urba-no, levando-se adiante uma campanha de convencimento da população sobre a validade da nova avenida, contra as acusações de insalubridade e dispêndio de recursos. No entendimento de Antonio Paulo Rezende, “nem todos se sentiram seduzidos pelas invenções modernas, pela reno-vação dos hábitos, por uma concepção de tempo que exigira mais pressa, pela ruptura com práticas de convivência social enraizadas” (rezende, 1997, p. 57). Porém, esse embate ressaltou a importância da remodelação da fisionomia da cidade, tanto em seu aspecto arquitetônico-urbanístico quanto na adequação dos comportamentos e sensibilidades que surgiam (teixeira, f., 1995).

No plano intelectual, a nova forma literária chegava inicialmente através dos contatos mais intensos com as vanguardas europeias, ain-da muito restritos ao eixo Rio–São Paulo. Todavia, sem esse diálogo de dominantes, talvez não fosse possível, àquela época, a existência de um processo de reivindicação artística e política com maior ênfase nas cul-turas regionais. É em tal contexto que o pensamento de Gilberto Freyre aos poucos se destacava. Apesar de terem existido fortes tensões entre ele e os modernistas de São Paulo, isso não o impediu de cogitar pos-sibilidades de trabalhar e até mesmo de se fixar nesta cidade. Pallares-Burke (2005, p. 156–161) nos mostra que ao retornar ao Brasil, em março de 1923, depois de concluir seus estudos na Universidade de Columbia, Gilberto Freyre hesitou em se estabelecer na sua cidade natal, o Recife. Preferiu antes tentar a carreira jornalística no Sul, com interesse especial por São Paulo, descrita por ele como uma cidade “feia, mas simpática” e “forte”, sentindo-se muito atraído pela intelectualidade local. Seus pla-nos, porém, não deram certos e ele se viu obrigado a retornar ao Recife, onde começou a escrever para o Diário de Pernambuco.

A figura de Gilberto Freyre se assemelhava ao do intelectual que produzia na periferia do Modernismo, defendendo, ao seu modo, ma-neiras de narrar a “nação” a partir de “articulações inter-regionais” mui-to específicas. Tais articulações deveriam preservar as tradições locais contra as ondas de “falso cosmopolitismo” e “estrangeirismos alieníge-nas” (freyre, 1996). No entanto, por mais paradoxal que seja a pos-tura “modernista” de Gilberto Freyre, sua argumentação não anula os efeitos da modernidade, tratando-a muito mais como uma chave de “mediação” que pode ser positiva contanto que se preservem as tradi-ções e os sentidos da “regionalidade”28, dado também o contexto tardio da entrada e absorção das artes modernas no Brasil (souza, r., 2009). Conforme diz Flávio Weinstein Teixeira:

28 Na visão apresentada pelo autor em seu Manifesto Regionalista, a “regionalidade” pode ser compreendida como o conjunto de características históricas que reconhecia a necessidade da união entre as regiões, ao invés do isolamento político e cultural (freyre, 1996). Tema desenvolvido no capítulo 3 deste livro.

A ambivalência entre o moderno/novo e o tradicional/arcai-co é algo inerente ao próprio fazer histórico. A história, o real historicamente vivido, é o espaço por excelência de manifes-tação da contradição, do conflito, da diversidade. A tensão moderno/tradicional, novo/arcaico, não é mais, portanto, que a inevitável expressão da pluralidade de trilhas com que se defronta o ser social (teixeira, f., 1995, p. 92).

Se analisarmos parte da bibliografia sobre o Modernismo no Brasil, per-ceberemos que a cidade de São Paulo aparece como o “centro” da pro-dução modernista nos anos 1920, enquanto que a região Nordeste, espe-cialmente a cidade do Recife, aparece como a “periferia”. Contudo, cada um desses polos não guarda entre si uma homogeneidade de narrativas, mas sim a pluralidade de opiniões divergentes e complementares. No caso da cidade de São Paulo, lugar conhecido pelo seu cosmopolitismo e pelo progresso industrial, tivemos tanto a atuação de intelectuais pro-gressistas como também de conservadores e nacionalistas xenófobos, defensores da existência de um Brasil cada vez mais rural, combinan-do-o com a preservação bandeirante das fronteiras paulistas contra a influência da modernidade europeia (velloso, 1993).

A respeito de tais relações entre “centro” e “periferia”, Valéria Torres da Costa e Silva (2009) critica o “paulistocentrismo” agudo que os es-tudos sobre arte e literatura adquiriram nos anos 1920. Para ela, tor-nou-se comum “falar de São Paulo” como termo genérico e equivalen-te a “Movimento Modernista” ou “progresso”, enquanto que “falar de Nordeste” seria o mesmo que falar de “Movimento Regionalista”, asso-ciado de maneira preconceituosa ao “atraso”. É como se os intelectuais do Sudeste — Mário de Andrade, Oswald de Andrade e tantos outros — representassem a verdadeira vanguarda artística e crítica, enquanto os intelectuais do Nordeste, particularmente Gilberto Freyre, encarnassem a figura da resignação acrítica e distante da realidade. Porém, é nosso objetivo apontar que mesmo sendo distintos, o “centro” e a “periferia” também dialogavam, comportavam semelhanças e muitas vezes defen-diam interesses comuns. Monteiro Lobato, por exemplo, escritor muito

conhecido pela literatura dedicada ao público infantil e por seus atritos com alguns modernistas em 1917, escreveu sobre o ambiente regional do interior de São Paulo a partir da figura do “caipira” — o Jeca Tatu — mes-mo sem se filiar, pelo menos diretamente, aos regionalistas do Nordeste29.

Adotando, ainda que sensivelmente, o ritmo das mudanças na esfera econômica e artística, o ambiente intelectual da cidade do Recife no iní-cio dos anos 1920 apontava para a necessidade de renovação e novidade, o que implicava sacudir o sono e a inércia da vida cultural provinciana. Boa parte dos jovens intelectuais se reunia em torno de jornais e revistas, que se tonaram, em grande medida, responsáveis pela arte da impressão e veículos de incentivo das atividades editoriais do momento30. O caso da Revista do Norte é fundamental neste aspecto. Ela circulou no Recife durante os anos 1920 e contou com a participação de nomes importantes das letras pernambucanas, dentre os quais, Joaquim Cardozo, José Maria Albuquerque e Melo, Luís Jardim, Souza Barros, além de certa proximida-de por parte de Gilberto Freyre (azevedo, 1984).

Na perspectiva de F. Teixeira (1995, p. 92), o clima de renovação pre-gado pelos participantes da revista convivia conjuntamente com o ideário tradicionalista, alimentado pelos regionalistas. Tal ambivalência pode ser encontrada na obra dos poetas Jorge de Lima, José Américo de Almeida e, muito especialmente, em Ascenso Ferreira, cujo estilo era marcado pelo ritmo dissoluto do verso livre, o uso coloquial da linguagem, a presença

29 Ao observar as relações entre Monteiro Lobato e parte significativa dos modernistas de São Paulo, E. Moraes (1978, p. 105) defende que a representação da brasilidade, identificada ao “paulistismo”, foi um dos motivos centrais de tais desencontros. Nota-se aí uma contradição dentro dos próprios princípios modernistas, pois, se por um lado, eles rejeitavam a posição regionalista de Monteiro Lobato em nome de um nacionalismo que era o caminho de acesso ao universal, por outro lado, percebe-se a existência de um “bairrismo paulista” que valoriza o regional em detrimento do nacional.

30 Barros (1972, p. 177) observa que os jornais mais credenciados de Pernambuco nos anos 1920 eram os seguintes: Diário de Pernambuco, A Província, Jornal do Recife, A Noite, A Rua, A No-tícia, Jornal Pequeno, Diário do Estado, O Intransigente, Jornal do Comércio, Diário da Manhã, Diário da Tarde e A Tribuna. Consultar: barros, Souza. A década 20 em Pernambuco: uma interpretação. Rio de Janeiro: Graf. Academica, 1972.

de dados do cotidiano, tudo isto, porém, envolto por uma temática local e regional31 (teixeira, f., 1995). Segundo Chacon (1993b, p. 12), a figura de Ascenso Ferreira representa o elo mais direto entre o Modernismo paulista e o Regionalismo nordestino, especialmente aquele que partia do Recife. Nesse sentido, ele parecia transgredir o universo de ambos os movimentos, chegando a declamar poesias nas sessões de abertura e en-cerramento do Congresso Regionalista em 1926 e, no ano seguinte, repetir a dose em salões modernistas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Apesar de certas discordâncias com Gilberto Freyre, que o via como o “único filiado” aos modernistas da Semana de Arte Moderna de 1922, ele man-teve ligações com o Movimento Regionalista idealizado pelo sociólogo, continuou próximo ao grupo da Revista do Norte e dos cafés da capital pernambucana.

A relação conflituosa e polêmica entre os intelectuais de Recife e de São Paulo não deve ser vista como resultado de polos puramente opos-tos e inconciliáveis, sendo possível observar também a aproximação e a defesa de interesses comuns. Podemos destacar, por exemplo, o escritor paulista Prudente de Moraes Neto, que adotou o pseudônimo de “Pedro Dantas” e colaborou com artigos para o jornal recifense A Província32, no

31 É importante salientar que estamos falando de Ascenso Ferreira em sua fase madura, pois nem sempre ele escreveu poesias modernistas ao longo da vida. Como se sucedeu com ou-tros poetas, Barros (1972, p. 170) comenta que inicialmente a criação de Ascenso Ferreira era parnasiana. Bastante autocrítico em relação ao seu passado literário, só depois é que ele se aproximaria da estética modernista, influenciado por Joaquim Cardozo e Benedito Monteiro. Joaquim Inojosa, jornalista associado aos modernistas de São Paulo, também o teria incen-tivado a adotar o Modernismo, mas a resposta de Ascenso Ferreira não se fazia em termos de uma influência “futurista”. O seu primeiro livro, Catimbó, publicado em 1927, demonstra a centralidade do verso livre e a ligação temática com as culturas regionais.

32 O jornal A Província foi dirigido por Gilberto Freyre durante dois anos, logo após o seu desli-gamento com o Diário de Pernambuco em 1927. Já na direção de A Província, Gilberto Freyre contou com a colaboração de José Lins do Rego, José Américo de Almeida, Sylvio Rabello, Ascenso Ferreira, Manuel Bandeira, Prudente de Moraes Neto, Ribeiro Couto, Júlio Bello, Jorge de Lima, Aníbal Fernandes, entre outros escritores e intelectuais. Ao lado de artigos sobre temas nordestinos, publicavam-se também novidades de outras partes do Brasil e do mundo, com destaque para matérias sobre arquitetura moderna, esportes, cinema e demais

qual Gilberto Freyre reunia um grupo de afinidades (chacon, 1993b). O poeta pernambucano, Manuel Bandeira, radicado desde a adoles-cência no Rio de Janeiro e membro do Movimento Modernista de São Paulo nos anos 1920, também dialogou com os intelectuais da capital pernambucana. Na análise de Silvana Moreli Vicente (2007), baseada na produção epistolar entre Manuel Bandeira e Gilberto Freyre, é possível constatar uma faceta análoga, porém distinta, na experiência artística e intelectual de ambos, pois o Recife perpassava suas obras e se inseria no processo contraditório de modernização do país. Em 1925, quando ain-da trabalhava para o Diário de Pernambuco, Gilberto Freyre pediu para Manuel Bandeira escrever o poema “Evocação do Recife”, no qual o po-eta rememorava seus tempos de infância e refletia sobre as mudanças implementadas pela época moderna33.

F. Teixeira (1995, p. 89) declara que a existência de tal desejo pelo novo é algo muito significativo. Por mais paradoxal que seja à primei-ra vista, é possível percebê-lo até mesmo no redivivo tradicionalismo dos regionalistas dos anos 1920. Mesmo que em clara oposição, Gilberto Freyre chegou a reconhecer as convergências, ou antes, as coincidên-cias entre a Semana de Arte Moderna de 1922 e a Semana Regionalista

assuntos de interesse comum (oliveira, l., 2011). No tempo em que esteve na direção deste jornal, Gilberto Freyre também manteve relações de proximidade política com Estácio Coim-bra (1872-1937), na época governador de Pernambuco, que em 1927 o convidou para ser seu assessor, permanecendo no cargo até 1930 (meneses, 1991; pinto, j., 2008). Recomenda-se consultar, em primeiro lugar: oliveira, Lucia Lippi. Gilberto Freyre e a valorização da pro-víncia. Soc. estado, Brasília, vol.26, n.1, Jan./Apr. 2011. Em segundo lugar: meneses, Diogo de Melo. Gilberto Freyre. 2.ed. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1991. E em terceiro lugar: pinto, João Alberto da Costa. Gilberto Freyre: Cultura e conflitos políticos em Pernambuco (1923–1945). Plurais (Anápolis), v. 01, p. 69-83, 2008.

33 Vale ressaltar que além do poema “Evocação do Recife”, de 1925, Manuel Bandeira escreveu em 1937 “O guia de Ouro Preto”. Seguindo essa trilha, Gilberto Freyre redige em 1926 o poema “Bahia de todos os santos e de quase todos os pecados”, no qual tentou descrever, mesmo que na linha do exotismo, a cor local da Bahia e da cidade de Salvador. Anos depois, em 1934, ele escreveria o “Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife”, reafirmando a curio-sidade, em certa medida compartilhada por Manuel Bandeira, com a valorização da tradição e suas formas locais de sociabilidade e intimidade (oliveira, l., 2011).

de 1926. Na acepção de Manoel Correia de Andrade (2004), para con-trapor-se aos modernistas de São Paulo, Gilberto Freyre estruturou um contramovimento que buscava aceitar as modificações modernistas de forma moderada, ao mesmo tempo em que procurava fazer conviver as mais diversas manifestações, como os folguedos populares natalinos, os “saudosos” pastoris, nas apresentações carnavalescas revivendo as “la ursa” e os festejos juninos. O intuito era aprofundar de maneira equili-brada o estudo e a conservação das tradições ibéricas, africanas e indí-genas. Vamireh Chacon (1993b) acredita que na visão de Gilberto Freyre os movimentos de São Paulo e Recife ocupavam um lugar comum em relação à técnica experimental e na reação contra as convenções do clas-sicismo, do academismo e dos purismos brasileiros34. Flávio W. Teixeira chama atenção para um aparente paradoxo na posição de Freyre:

A despeito do seu conservantismo temático, foi o regiona-lismo, enquanto fruto desse universo cultural, com certeza aberto a algum tipo de renovação em sua produção. Gilberto

34 Todavia, ao analisar o contexto cultural dos anos 1920 em Pernambuco, Barros (1972, p. 150-151) alega, por exemplo, que Gilberto Freyre acreditava que a renovação literária do Recife não se fez através de São Paulo, mas através de ligações diretas com a Europa e a América do Norte, constituindo “um erro grosseiro” filiar-se o movimento recifense ao paulista-carioca. Isso, porém, não anula as afinidades e semelhanças entre a Semana de Arte Moderna de 1922 e a Semana Regionalista de 1926, já que estas não ocorreriam de maneira imediata e unifor-me, mas seriam antes “mediadas” por um conjunto de fatores, contradições e personagens que permeariam a porosidade de cada uma destas realidades. Em uma das suas viagens ao exterior, Gilberto Freyre teria entrado em contato com as vanguardas europeias ainda na dé-cada de 1920, particularmente com o Expressionismo alemão, encontrando-se com os artistas Vicente do Rego Monteiro e Joaquim do Rego Monteiro. Chegou a conhecer em Paris o ateliê de Tarsila do Amaral, o escultor Victor Brecheret e o poeta Oswald de Andrade (barros, 1972; silva, 2009). Entretanto, isto por si só não é suficiente para registrar sua “adesão” ao experimentalismo da arte moderna e nem muito menos sua defesa, ainda que denote certa “curiosidade” do autor no que diz respeito ao conhecimento de novas técnicas da arte de van-guarda. Tal curiosidade talvez se reverbere mais nitidamente no estilo singular de sua escrita, onde é possível observar grandes profusões de imagens e valorização da linguagem coloquial. Para mais esclarecimentos, consultar: silva, Valéria Torres da Costa e. A modernidade nos trópicos: Gilberto Freyre e os debates em torno do nacional. Recife: Carpe Diem, 2009.

Freyre, tido por muitos, mas sobretudo por ele mesmo, como o pai desse regionalismo, é exemplar no que tange ao van-guardismo renovador fundido a uma perspectiva conserva-dora e tradicionalista (teixeira, f., 1995, p. 89).

Entretanto, também em Recife, no ano de 1926, cidade onde Gilberto Freyre teria exposto o “programa” com os pronunciamentos que for-mariam o Manifesto Regionalista, em resposta aos modernistas de 1922, o discurso modernista não era uma voz que vibrava em unísso-na concordância. Basta, para isso, perceber seus atritos com Joaquim Inojosa, personagem da cena cultural recifense que mantinha fortes vínculos com importantes atores do Modernismo de 1922 e cumpria a tarefa central de divulgação do movimento no Nordeste brasileiro (azevedo, 1984; oliveira, g., 2012). Mais uma vez o papel da impren-sa se mostrou fundamental. Ela congregava a maior parte dos intelec-tuais da província, o que veio contribuir para a profissionalização dos trabalhos literários. Era através dela que as ideias eram “debatidas e difundidas. Era enquanto homens de imprensa que os intelectuais des-pontavam como tais, encontrando, deste modo, um meio de conven-cer da validade e justeza de suas representações, um meio de instituir a sua imagem do moderno” (teixeira, f., 1995, p. 94).

Foi nesse contexto de efervescência cultural do Recife que, em plena década de 1920, Joaquim Inojosa dissertava sobre a Semana de Arte Moderna de 1922 e a informava aos intelectuais pernam-bucanos. Através dele ficamos sabendo das primeiras repercussões do Modernismo no Pará e no Rio Grande do Norte, além dos ape-los para que a Paraíba aderisse ao movimento (azevedo, 1984). Por meio desses esforços tinha-se como objetivo documentar a história do Modernismo na região Nordeste e, ao mesmo tempo, aumentar o nú-mero de entusiastas e de revistas interessadas (inojosa, 1968). Surgia, assim, a organização de dois grupos em Recife: o grupo de Gilberto Freyre, que se reunia no Diário de Pernambuco, tendo o autor perma-necido no posto até o ano de 1927, no momento em passou a traba-lhar para o jornal A província, e o grupo de Joaquim Inojosa, reunido

no Jornal do Commercio (chacon, 1993b). Não obstante, as atividades de divulgação realizadas por Joaquim Inojosa foram temporariamente interrompidas entre anos 1927 e 1930, momento em que ele viaja para o Rio de Janeiro, afastando-se da capital pernambucana.

Neroaldo Pontes de Azevedo (1984) adverte que só tardiamente o Manifesto Regionalista ganhou a importância de documento histó-rico, já que Gilberto Freyre costumava reescrever e modificar os seus textos, dando-lhes outros sentidos e retirando o que não lhe convi-nha. Em alguns desses “atos de negligência”, ele teria tentado, em obras posteriores à década de 1940, trazer para si o mérito de ter aponta-do para a necessidade de renovação das artes nacionais, ainda antes de 1920. Alguns esforços no sentido de denunciar publicamente suas assertivas foram levados a cabo por Joaquim Inojosa, em cuja obra O Movimento Modernista em Pernambuco35, publicada em 1968, bus-cou mostrar que Gilberto Freyre sempre foi um crítico ferrenho do Modernismo e que só após a vitória deste movimento ele tentava se assenhorar do mérito (oliveira, g., 2012). G. Oliveira (2012, p. 79-80) alerta que, ressalvando-se a maneira altamente polêmica das pu-blicações de Joaquim Inojosa, particularmente quando se refere ao Regionalismo, o Manifesto Regionalista de 1926 teria sido publicado apenas em 1952, o que por si só não encerrou os debates entre os seus admiradores e adversários36.

35 Além dessa obra, Joaquim Inojosa foi autor do texto-manifesto A Arte Moderna. Silva (2009, p. 96) elucida que já nessa época ele defendia a ideia de que o “vírus” do modernismo se espalhou para o resto do país a partir de São Paulo, chegando ao Nordeste em 1924, ano de publicação do seu referido texto.

36 Silva (2009, p. 124) nos alerta que já está mais que provado que o texto publicado por Gilberto Freyre em 1952 com o título de Manifesto Regionalista de 1926, não existiu como tal. Nesse aspecto, a crítica de Joaquim Inojosa, que denunciou a inexistência do referido documento, seria verdadeira. Porém, Joaquim Inojosa teria negligenciado a presença de um Movimento Regionalista no Nordeste, já que os argumentos contidos no Manifesto Regionalista de 1952 podem ser encontrados em artigos publicados por Gilberto Freyre para o jornal Diário de Pernambuco entre o seu regresso ao Recife, em 1923, e a sua passa-gem pelo Rio de Janeiro, em 1926. O que falta nos artigos do autor encontra-se no Livro do

Criticou-se ainda que o ideário regionalista e o “tradicionalismo” de Gilberto Freyre se limitariam a Pernambuco, o que fez com que o termo “Regionalismo Nordestino” se difundisse só posteriormente. Todavia, por mais que as concepções freyrianas pudessem ser uma pregação hostil ao Modernismo de 1922, anos depois o Regionalismo se aproximaria, ainda que de maneira muito específica e em tom de “reconciliação”, da preocu-pação com a organização cultural brasileira, a partir da adoção de novos quadros, estilos e experimentações, reivindicados pelos modernistas pau-listas (oliveira, g., 2012). As propostas de Gilberto Freyre na defesa das regiões ganham, direta ou indiretamente, conotação maior na década de 1930, período que marcou o auge do “Romance Regionalista” e fomen-tou o surgimento de uma nova geração de escritores, entre os quais se destacam Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, José Américo de Almeida e também Érico Veríssimo, que era gaúcho e teve sua criação literária voltada para abordagens das culturais locais do Rio Grande do Sul.

Porém, é importante salientar que o Regionalismo reivindica-do por Gilberto Freyre não é idêntico àquele realizado pelo Romance Regionalista. Enquanto o primeiro se debruçava sobre a importância

Nordeste, organizado em 1925, em comemoração aos cem anos do Diário de Pernambuco. Portanto, só em “essência” o Manifesto Regionalista existia em 1926. Sobre isso, Neroaldo Pontes de Azevedo (1984) anuncia que, em 14 de dezembro de 1980, Gilberto Freyre pu-blicou um artigo denominado “A propósito de equívocos” para o Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), no qual dizia reconhecer que o Manifesto Regionalista teve por base suas leituras e pronunciamentos de 1926, destruídos em 1930, em razão de um incêndio e de saques à residência de seu pai. No intuito de contornar a situação, Gilberto Freyre teria buscado apenas “recuperar” o sentido integral de alguns de seus escritos, idealizado por ele no Congresso Regionalista na década de 1920. Dessa maneira, quando falamos de Manifes-to Regionalista de 1926 é necessário entender de antemão que sua primeira edição surgiu somente em 1952, lançado pela Editora Região. Nosso objetivo, entretanto, não é verificar, com base em outras documentações históricas, as discordâncias e adesões sobre a data pre-cisa de tal publicação, mas apenas analisar determinadas informações do texto de Gilberto Freyre, necessárias ao andamento desta pesquisa. Consultar: azevedo, Neroaldo Pontes de. Modernismo e regionalismo: os anos 20 em Pernambuco. João Pessoa: Secretaria de Educação e Cultura da Paraíba, 1984.

sociocultural do Regionalismo mais pela via do suposto “equilíbrio” con-servantista das tradições e da saudação do patriarcado, o segundo, por sua vez, ainda que guardasse entre si uma heterogeneidade de narrativas, se destacou mais pelo perfil contestatório e de denúncia, mesmo que, con-textualmente, compartilhasse um sentimento memorialista. Para Santos (2011, p. 401), muitos dos títulos que acabaram por receber o rótulo de “regionalistas” possuem uma perspectiva absolutamente diversa da suge-rida pelo Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre. Coincidem por terem o Nordeste como o ponto de partida das suas criações literárias, mas se opõem nas conclusões críticas quanto à situação social da região.

Nesse quadro de mudanças, a “geração de 1922”, até pelo menos a dé-cada de 1940, entra num certo ostracismo, pois o foco do momento pare-ce ter sido a literatura de cunho regionalista. Muito embora não se possa falar numa “realidade autônoma”, os romancistas nordestinos produziram obras que de alguma maneira impactaram ou chamaram a atenção para muitos problemas que dizem respeito à seca, ao cangaço, ao coronelismo e ao latifúndio, temas que mereciam uma atenção maior por parte dos in-telectuais e do Estado. Isso, é obvio, não invalidou a importância da gera-ção florescida em São Paulo, considerada, até certo ponto, a “sementeira” desta literatura em processo de ascensão37 (candido, 2014).

37 Carlos Zilio (1982) alega que de 1930 até 1945 o Modernismo sofreu algumas adaptações. Não bastava mais uma arte que fosse brasileira e moderna. Ela havia de ser também social, vinculada aos problemas do povo brasileiro e destinada a ele. Com isso, não teria existido uma “ruptura” por parte da “geração de 1930”, mas um enquadramento com o que se produ-zia em 1922, propiciando apenas uma politização crescente no interior do Modernismo. A “geração de 1930”, porém, cumpriu um papel importantíssimo, pois, como defende Antonio Candido, talvez se possa dizer que os romancistas desta fase, de certo modo, “inaugura-ram o romance brasileiro, porque tentaram resolver a grande contradição que caracteriza a nossa cultura, a saber, a oposição entre as estruturas civilizadas do litoral e as camadas humanas que povoam o interior — entendendo-se por litoral e interior menos as regiões geograficamente correspondentes do que os tipos de existência, os padrões de cultura co-mumente subentendidos em tais designações” (candido, 2011b, p. 41). Consultar: zilio, Carlos. Da Antropofagia à Tropicália. In: zilio, Carlos et al. O nacional e o Popular na Cultura Brasileira: Artes Plásticas e Literatura. São Paulo: Brasiliense, p. 12–56, 1982. Ver também: candido, Antonio. Brigada Ligeira. 4. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011b.

De todos os escritores regionalistas da década 1930, talvez o parai-bano José Lins do Rego seja aquele que bebeu mais fartamente na fonte das ideias de Gilberto Freyre38. Além de apresentar boa parte dos es-critores regionalistas ao editor José Olympio, foi também José Lins do Rego, conjuntamente com José Américo de Almeida, quem primeiro convidou Gilberto Freyre a fazer uma viagem de “redescoberta” pelo sertão nordestino, marcando o início de um interesse mais intenso de Gilberto Freyre pelo sertão (pallares-burke, 2005). Buscava-se, com isso, perceber a riqueza das tradições locais e a decadência dos traços da sociedade patriarcal presentes no interior (arruda, 2011). Mesmo trabalhando a partir de perspectivas distintas e com manifestações cul-turais particulares, a viagem de “redescoberta” de Gilberto Freyre em localidades do sertão nordestino nos faz lembrar a viagem dos moder-nistas de São Paulo às cidades históricas mineiras, cujo foco central era o conhecimento da cultura barroca e do passado colonial.

Percebemos, nesses termos, que a idealização do passado é o que deu força e vigor ao tradicionalismo renascido nos anos 1920 e 1930, proporcionando aos regionalistas uma causa para lutarem (teixeira, f., 1995). Esta tendência regionalista repercutiu no Nordeste, por vezes inclinado até ao separatismo, contra o centralismo econômico, político e, sobretudo, cultural (chacon, 1993b). Dada a ênfase na heterogenei-dade que perpassa o Modernismo entre a cidade de São Paulo e Recife, buscou-se identificar também certos aspectos em comum, partilha-dos pelos sentimentos de renovação e mudança. Procuramos mostrar que, a partir da realização da Semana de Arte Moderna de 1922, se

38 Valéria Torres da Costa e Silva (2009) declara que José Lins do Rego exerceu um importante apostolado das ideias regionalistas, estendendo a influência de Gilberto Freyre para muito além das fronteiras pernambucanas. Mais do que isso, a autora endossa a tese de que o escritor paraibano é apenas um dos que se declararam diretamente alimentados pelas ideias do soció-logo pernambucano. Ainda nos anos 1920, logo após a chegada de Gilberto Freyre do exterior, em 1923, Pallares-Burke (2005, p. 174–175) afirma que aos poucos se formava em torno do autor um verdadeiro “clã” de admiradores e seguidores, dispostos a defender seu “mestre” quando este por acaso fosse desvalorizado, invejado, criticado, incompreendido, atacado e perseguido.

estabeleceram, paulatinamente, reações de adesão e afastamento, “de-slocando-se” o centro da produção literária para outras regiões do país (arruda, 2011). Na formulação de Antonio Candido (2010a, 2014), viv-ia-se nesse momento uma nova etapa decisiva da “dialética do localis-mo e do cosmopolitismo”, instrumento vital das atividades intelectuais brasileiras desde o Movimento Romântico. Por meio das relações entre o “dado local” e o “dado universal”, notadamente europeu, a linguagem das vanguardas se difundiu entre nós, ao proclamar nossas particulari-dades e ao estimular ligações entre cultura e modernização.

CAPÍTULO 2

A dialética do local x cosmopolita: entre a região e a nação

Ao longo desta discussão teremos como objetivo observar, inicialmen-te, as contradições que formam a nossa literatura, com interesse pe-culiar pelo Movimento Modernista, utilizando, para isso, do método proposto por Antonio Candido a partir da problematização da “dialé-tica do localismo e do cosmopolitismo”. Sabendo que o autor procu-rou afastar-se das abordagens exclusivamente intertextuais e formalis-tas, as quais procuram expor o significado de uma obra a partir dos elementos internos ao próprio texto, poderíamos perguntar: de que maneira foram trabalhadas as tensões dialéticas que estruturam a li-teratura brasileira? Como esta dialética pode nos ajudar entender as dinâmicas que constituem esta literatura? Consideramos que o enfo-que do autor será de fundamental importância na compreensão dos Manifestos Pau-Brasil, Antropófago e Regionalista, que deverão ser analisados mais detalhadamente no próximo capítulo, pois sua cola-boração metodológica propõe-se a entender a literatura mediante a análise do processo de internalização (estetização) do social. Trata-se de uma “solução que enquadra os escritores na perspectiva históri-ca e sociológica, sem negligenciar a intenção propriamente crítica de julgar as obras e os autores de maneira individualizada” (jackson, l., 2009, p. 273).

Busca-se, com isso, apontar a necessidade de superar “o divórcio preconceituoso entre história e estética, forma e conteúdo, erudição e gosto, objetividade e apreciação. A superação possível só se consegue

por “um movimento amplo e constante entre o geral e o particular, a síntese e análise, a erudição e o gosto” (arrigucci jr, 1992, p. 190). Por meio da “integração de contradições”, a elaboração conceitual de Antonio Candido reafirma a necessidade de se pensar “um método crítico que fosse de fato estético e histórico a um só tempo, recusando sua redução a meras técnicas de descrição formalista e procurando ver o social em sua pertinência com relação ao estético” (arrigucci jr, 1992, p. 191). Uma de suas principais metas é a apreensão da realida-de social numa “crítica integrativa” do jogo dialético entre os aspectos internos e externos para almejar uma análise mais autêntica da tota-lidade (teixeira, a., 2009; pinto, f., 2015). Em seguida, também será nosso objetivo apresentar e problematizar os conceitos de “região” e “regionalismo”, “nação” e “nacionalismo” que, direta ou indiretamen-te, influenciaram a nossa “consciência literária”. Traremos para o deba-te outros autores e perspectivas, sabendo que cada um deles deve ser compreendido através de seus questionamentos e abordagens.

2.1 A formação a partir da contradição

No livro formação da literatura brasileira: momentos decisivos, antonio candido (2014) observa os percalços históricos que tornaram possí-vel a elaboração da literatura no brasil. segundo suas análises, o de-senvolvimento da literatura entre nós, deve ser compreendido como um fenômeno relacionado com as lutas políticas pela independência, apresentando-se, com efeito, no interior dos debates sobre a naciona-lidade. ao contrário de outros críticos, dentre os quais afrânio couti-nho (1960), para quem a literatura brasileira surgiu no momento da chegada das caravelas portuguesas, antonio candido trilha caminhos de investigação diferentes. para ele, a nossa literatura, como em outros países do novo mundo, já veio estruturalmente pronta, ganhando ape-nas novas adaptações temáticas e locais ao longo dos séculos de impo-sição cultural e política do colonizador, iniciando o processo dialético entre o dado local e o dado universal, que fazem parte da formação e

do amálgama constitutivo da própria sociedade brasileira (candido, 2010b, 2011a).

Concatenando com o que escrevemos acima, se seguirmos a argu-mentação de Candido (2011a, p. 198), em sua formação as nossas lite-raturas são essencialmente europeias, na medida em que continuam a pesquisa da “alma” e da sociedade, cuja definição se fez na tradição das metrópoles39. Em razão disso, ocorreu “no seio da cultura euro-peia uma espécie de experimentação cujo resultado foram as literatu-ras nacionais da América Latina no que tem de prolongamento e mo-vimento, cópia e invenção, automatismo e espontaneidade” (candido, 2011a, p. 199). Porém, o que houve não foi uma fusão prévia para for-mar uma literatura, mas modificações de uma literatura já existente, importada com a conquista e submetida aos impactos da colonização e ajustamento ao Novo Mundo. Basta lembrar, por exemplo, que “os

39 Não obstante, embora estejamos nos utilizando de algumas categorias propostas por Antonio Candido, é importante entender alguns paradoxos da sua construção teórica. De acordo com Alfredo Cesar Barbosa de Melo (2016), uma das principais incongruências do pensamento de Antonio Candido diz respeito ao “paradigma hegemônico da formação”, caracterizado pelo viés “eurocêntrico”, que presume uma afinidade derivativa diante da Europa, vista como mo-delo a ser emulado. A ideia de “formação” é hierárquica e normativa, pois estamos nos for-mando para ser algo que ainda não somos, localizando-nos num estágio anterior àquele que desejamos ou deveríamos estar. O estágio almejado é derivado de uma imaginação política eurocêntrica, já que constituir-se enquanto nação moderna significa estar no mesmo nível que as nações que tentamos emular (europeus e norte-americanos). Logo, a “formação” reivindi-cada por Antonio Candido pode ser compreendida como o resultado da dependência que o intelectual brasileiro teria em relação a outras literaturas e o desejo de “pertencer” e de se “inte-grar” à civilização ocidental, ao inventar sua própria genealogia e imaginar fazer parte de uma longa e prestigiosa tradição, cujos principais atores o ignoram solenemente. Por outro lado, ao mesmo tempo em que a literatura brasileira busca identificar-se à literatura europeia e esta a vê sob a ótica do exotismo e do pitoresco, existe uma forte admiração e interesse por parte dos escritores africanos de língua portuguesa em interagir com a nossa literatura. Somos, sob este ponto de vista, “ignorados por quem emulamos, e ignoramos aqueles que nos admiram e se imaginam coextensivos à sociedade brasileira” (melo, 2016, p. 48). Para mais informações, consultar: melo, Alfredo Cesar Barbosa de. Antropófagos devorados e seus desencontros: da “formação” à “inserção” da literatura brasileira. Literatura e Sociedade: Departamento de Te-oria Literária e Literatura Comparada da USP. Vol.1, n.22, pp. 42–54, Mar./Jun. 2016.

cronistas, historiadores, oradores e poetas dos primeiros séculos eram quase todos sacerdotes, juristas, funcionários, militares, senhores de terras — obviamente identificados aos valores sancionados da civiliza-ção metropolitana” (candido, 2011a, p. 200). Apesar da contribuição (secundária em literatura) das culturas dominadas do índio e do afri-cano, esta igualmente importada, Candido (2011a, p. 213) sustenta que a nacionalidade brasileira e suas diversas manifestações “espirituais” se configuraram mediante relações conflituosas, através das quais se deu a transferência impositiva da cultura colonizadora. Explicitando os percalços da formação da nossa literatura e o que se entende pela mesma, Antonio Candido diz o seguinte:

Para compreender em que sentido é tomada a palavra for-mação, e porque se qualificam de decisivos os momentos es-tudados, convém principiar distinguindo manifestações li-terárias, de literatura propriamente dita, considerada aqui um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase. Estes denominadores são, além das características internas (língua, temas, imagens), certos elementos de natureza so-cial e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Entre eles se distinguem: a existên-cia de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, for-mando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros. O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo de comuni-cação inter-humana, a literatura, que aparece sob este ângu-lo como sistema simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de contacto entre os homens, e de interpretação das dife-rentes esferas da realidade (candido, 2014, p. 25).

Nota-se que o tema da formação é intrínseco ao método do autor. Em Iniciação à literatura brasileira, Antonio Candido (2010b) elenca três divisões para a nossa literatura. A primeira foi nomeada de era das “manifestações literárias”, que começaram no século XVI e se estende-ram até o século XVIII, caracterizando-se por serem criações esparsas de autores que ainda não possuíam conexão orgânica com o público e nem consciência definida da nacionalidade40. A segunda ficou conhe-cida como era da “configuração do sistema literário”, compreendida entre meados do século XVIII até a segunda metade do século XIX. Os escritores dessa época, movidos pelas necessidades históricas do seu tempo, produziram obras com temáticas e níveis de articulação mais próximos da realidade brasileira. Por fim, a terceira ficou conhe-cida como a era do “sistema literário consolidado”, que começou na segunda metade do século XIX até nossos dias41. Esse período solidi-ficou a tradição da literatura brasileira na medida em que expandiu a

40 Entre os principais autores desta época estão, por exemplo, o padre José de Anchieta (1534–1597), o Frei José de Santa Rita Durão (1722–1784), além do padre Antonio Vieira (1608–1697) e o poeta Gregório de Matos Guerra (1636-1695), considerado um personagem central do nosso Barroco. Antonio Candido é, contudo, acusado pelo poeta e crítico literário, Haroldo de Cam-pos (1929–2003), de “sequestrar o Barroco” da formação da literatura brasileira, excluindo do “sistema literário” o nome de Gregório de Matos. Se para Antonio Candido ainda não existiam no Barroco condições históricas necessárias ao aparecimento de novos autores e obras que trou-xessem inovações e rupturas caracteristicamente nacionais, Haroldo de Campos, ao contrário, afirma que o Barroco, vivificado na poesia de Gregório de Matos, pode ser incluído como arte e literatura brasileiras (campos, 1989). Para mais informações sugere-se a consulta do seguinte livro: campos, Haroldo de. O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1989.

41 Ao tentar problematizar o conceito de “sistema literário” no contexto do Brasil contemporâneo, Silviano Santiago (2004) adverte que o analfabetismo ainda é o grande entrave ao florescimento de um público mais amplo de leitores. Entretidos com a mídia televisiva, muitos deles se limi-tam a assistir apenas entrevistas, perdendo-se a oportunidade da leitura integral do livro. Em razão dessas incongruências, ele acredita que o nosso “sistema literário” se “assemelha a um rio subterrâneo, que corre da fonte até a foz sem tocar nas margens que, no entanto, o conformam” (santiago, 2004, p. 64). Recomenda-se consultar: santiago, Silviano. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

atividade do escritor, colocando-o em contato com o mundo e abrindo caminho para apreensões mais críticas do país.

Similarmente, Candido (2014, p. 26) também defende que quan-do as atividades dos escritores de um dado período se integram num sistema de obras, presencia-se a formação de uma continuidade lite-rária, considerada uma espécie de “transmissão da tocha entre corre-dores”, que assegura no tempo o movimento conjunto, garantindo os lineamentos de um todo. Estamos falando na verdade de uma tradi-ção, ou seja, a transmissão de algo e o conjunto de elementos trans-mitidos, que formam padrões impostos ao pensamento ou ao com-portamento e sem os quais a literatura não existiria como fenômeno de civilização42. Entretanto, por seu aspecto contraditório, é frequente que em fases iniciais não encontremos a organização desta tradição, dada também a imaturidade do meio, que dificulta a formação dos grupos, a elaboração de uma linguagem própria e o interesse pelas obras. Obviamente, isto não impede que apareçam obras de valor, seja por força da inspiração individual, seja por influência de outras lite-raturas. Todavia, tais obras são antes “manifestações literárias” do que representativas de um “sistema literário”, já que os níveis de articula-ção entre o autor, a obra e o público ainda não atingiram o amadure-cimento necessário43.

42 Sobre a abrangência do conceito de literatura, Antonio Candido afirma que ela inclui “todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos de folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações” (candido, 2011c, p. 176). Ver: candido, Antonio. Vários escritos. 5.ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011c.

43 Com isso, reforça-se a perspectiva sistêmica do pensamento de Antonio Candido, já que as partes não são independentes, mas se integraram dialeticamente no todo ou em alguma tradição intelectual lentamente constituída e continuamente alterada. As obras figuram em primeiro plano, porém só se completam a partir de seus “denominadores comuns”, isto é, por meio da existência dos autores e do público (jackson, l., 2009). Para mais esclareci-mentos, consultar: jackson, Luiz Carlos. Antonio Candido: crítica e sociologia da literatu-ra. In: botelho, André; schwarcz, Lilia Moritz (orgs.). Um enigma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Antonio Candido (2014) se utiliza da metáfora do “arbusto” e do “galho” para elucidar este dilema formativo. Segundo ele, a literatu-ra brasileira se assemelha a um “arbusto de segunda ordem no jar-dim das musas”, que foi plantado e desenvolvido em um solo novo e tomou traços próprios. Porém, ao longo do movimento histórico e dialético, o “arbusto” deu origem a um “galho” distinto, adaptado às novas condições que o cerca, o tornando menos dependente da sua formação original. Candido (2010a, p. 118–119) alega que a princípio não nos destacamos espiritualmente da influência portuguesa, duran-te a lenta maturação da nossa “personalidade nacional”. Mas, à medi-da que fomos tomando consciência da nossa diversidade nos opuse-mos à metrópole, num esforço de autoafirmação, que coincidiu com a Independência política e o Romantismo. Aos poucos ia se tornando cada vez mais necessária a negação dos valores portugueses até que a autoconfiança do amadurecimento nos levasse a superar esta fase de rebeldia. Não obstante, pode-se também dizer que a nossa aversão es-tereotipada contra o português “recobria no fundo um fascínio e uma dependência. Todo o nosso século XIX, apesar da imitação francesa e inglesa, depende literariamente de Portugal, através de onde rece-bíamos não raro o exemplo e o tom da referida imitação” (candido, 2010a, p. 119). Observemos o trecho abaixo:

Podemos discernir na literatura brasileira um duplo movi-mento de formação. De um lado, a visão da nossa realidade que se oferecia e devia ser transformada em “temas”, diferen-tes dos que nutriam a literatura da metrópole. Do outro lado, a necessidade de usar de maneira por vezes diferente as “for-mas”, adaptando os gêneros às necessidades de expressão dos sentimentos e da realidade local (candido, 2010b, p. 14–15).

Por possuir este aspecto dialético é preciso considerar na constitui-ção da literatura brasileira tanto as obras feitas pela transposição pura e simples dos modelos ditos ocidentais, quanto as que diferiam deles

nos temas, na tonalidade e no instrumento expressivo. Tais tendên-cias exprimem, na perspectiva de Antonio Candido, o aparecimento de uma “literatura derivada que acabou por criar o seu timbre próprio, à medida que a colônia se transformava em Nação e esta desenvolvia cada vez mais a sua personalidade” (candido, 2010b, p. 15). O autor também acredita que, diferente do que sucede em outros países, a lite-ratura tem sido no Brasil, mais do que a filosofia e as ciências humanas, o fenômeno central da vida do espírito. Algo parecido ocorre também na América Latina, onde a literatura sempre foi algo profundamente empenhado na construção e na aquisição de uma consciência nacional (candido, 2011a). Depois dessa breve discussão, o próximo passo das nossas análises será investigar de maneira mais detalhada a “dialética do localismo e do cosmopolitismo”, tentando observar nela um instru-mento vital e dinâmico da nossa literatura.

2.2 O lugar do local e o do cosmopolita na literatura

Em 24 de março de 1873, Machado de Assis (1839-1908) publicava no periódico O Novo Mundo, impresso em Nova Iorque, um ensaio críti-co denominado Instinto de nacionalidade, no qual analisava os avan-ços e os limites da produção cultural brasileira, incluindo o romance, a poesia, o teatro e a língua, e as afinidades desta com a “cultura univer-sal”, importada das metrópoles europeias. Podemos interpretar tal ins-tinto como a busca por uma forma literária própria, pois funciona de modo a selecionar melhor o excesso de literaturas estrangeiras e a or-ganizar as relações entre o dado local e o dado universal (ou cosmopo-lita44), considerando as tensões dialéticas que os constituem. O escri-

44 Enfatizamos o termo “cosmopolita” para se referir ao modelo teórico de Antonio Candido, muito embora, do ponto de vista histórico, esta expressão seja muito mais antiga. Para Jorge Schwartz (1983), desde o século XVI, ser “cosmopolita” tinha o sentido de “cidadania univer-sal”, com maior ênfase em relação ao estrangeiro. A expressão apareceu pela primeira vez em 1560 e, só posteriormente, em 1598, foi cunhada pelo Dicionário de Oxford. Ela sugere uma verdadeira aceleração da cronologia e um encurtamento de distâncias, fruto do progresso

tor reconhecia que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região, mas não precisa estabelecer doutrinas absolutas que as empo-breçam. Aprecia-se a cor local, mas é primordial deixar a imaginação atuar naturalmente, garantindo o direito à universalidade e evitando ilusões semelhantes àquelas que fazem com que um poeta pense que é nacional somente porque insere nos seus versos muitos nomes de flo-res ou aves do país, o que significa apenas uma nacionalidade de vo-cabulário. Por isso, o que realmente interessa é o exercício da possibi-lidade dialética do descentramento, devendo-se exigir do escritor um “sentimento íntimo” que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço45 (as-sis, 2008). Vejamos a opinião de Antonio Candido sobre este assunto:

Na nossa cultura há uma ambiguidade fundamental: a de sermos um povo latino, de herança cultural europeia, mas etnicamente mestiço, situado no trópico, influenciado por culturas primitivas, ameríndias e africanas. Esta ambigui-dade deu sempre às afirmações particularistas um tom de constrangimento, que geralmente se resolvia pela idealiza-ção. Assim, o índio era europeizado nas virtudes e costumes

tecnológico e dos “descobrimentos”, dando lugar a uma nova estética que passa a justificar-se numa vontade de sens global, através de uma apreensão simultânea dos fatos ou sensações. No caso dos termos “geral” e “particular”, Melo (2016, p. 45) nos informa que eles já eram utiliza-dos por Silvio Romero (1851–1914), autor do livro História da literatura brasileira e defensor da tese de que todo e qualquer problema histórico e literário há de ter no Brasil duas faces principais: uma geral e outra particular. Antonio Candido apenas atualiza tal formulação ao ensejar uma possível “lei de evolução da nossa vida espiritual”, regida pela dialética do local e do universal. Para mais informações recomenda-se consultar: schwartz, Jorge. Vanguarda e Cosmopolitismo na década de 20: Oliveiro Girondo e Oswald de Andrade. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 1983. (Coleção Estudos).

45 Quem desejar conhecer melhor a fortuna crítica presente na literatura de Machado de Assis, aconselha-se ler: schwarz, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Ed. 34, 2000.

(processo tanto mais fácil quanto desde o século XVIII os nossos centros intelectuais não o conheciam mais direta-mente); a mestiçagem era ignorada; a paisagem, amaneira-da (candido, 2010a, p. 127).

Entre os nossos fatores locais, esta contradição também era resulta-do da ausência de iniciativa política implicada no estatuto colonial, do atraso ainda hoje sensível da instrução e da fraca divisão do trabalho intelectual. Contudo, a dificuldade de encontrar uma expressão pró-pria, isto é, de ajustar a tradição ao meio, trazia em si, ao lado da disci-plina, uma considerável liberdade; e da combinação de ambas formou--se a expressão ao mesmo tempo geral e particular, universal e local (candido, 2011a). Durante a vigência do Modernismo, algumas das consequências deste processo dialético podem ser percebidas pelo “ar-dor” de conhecer o país, aliado com a libertação do academismo, dos recalques históricos, do oficialismo literário e das tendências de edu-cação política e de reforma social, que coincidem com a radicalização posterior à crise de 1929, iniciando uma fase nova de inquietação so-cial e ideológica (candido, 2010a). Com o passar do tempo foi fican-do mais palpável considerar que a nossa literatura se modificou pelas condições do Novo Mundo, mas continuava sendo parte orgânica do conjunto das literaturas ocidentais, tornando-se cada vez mais ajustada a uma realidade social e cultural que aos poucos definia a sua particu-laridade (candido, 2010b).

A partir da reflexão acima, podemos entender melhor a perspecti-va crítica de Antonio Candido, segundo a qual nos formamos através da síntese dialética de tendências universalistas e particularistas, que se combinam de modo diverso (candido, 2014). Do ponto de vista pro-priamente literário, pode-se chamar dialético a este processo porque ele tem “consistido numa integração progressiva de experiência literá-ria e espiritual, por meio da tensão entre o dado local (que se apresen-ta como a substância da expressão) e os moldes herdados da tradição europeia (que se apresentam como a forma da expressão)” (candido,

2010a, p. 117). Ao aplicar seu modelo explicativo no estudo da literatura brasileira, Antonio Candido ressalta que existem dois momentos deci-sivos que mudaram os rumos e vitalizaram toda a nossa inteligência: o Romantismo, no século XIX (1836–1870), e o Modernismo, no século XX (1922–1945). Ambos representaram fases culminantes de particula-rismo literário na dialética do local e do cosmopolita; ambos se inspira-ram, não obstante, no exemplo europeu. Todavia, “enquanto o primeiro procura superar a influência portuguesa e afirma contra ela a peculiari-dade literária do Brasil, o segundo já desconhece Portugal pura e sim-plesmente: o diálogo perdera o mordente e não ia além da conversa de salão” (candido, 2010a, p. 119). Algumas ressalvas, no entanto, devem ser feitas aos dois movimentos, pois algumas vezes suas estratégias de captura do dado local acabaram deslizando para a linha do exotismo e do artificialismo, o que demonstra não apenas os limites, mas as dificul-dades na fixação de elementos “primitivos” a serem incorporados aos temas e ao imaginário dos autores. Segundo Antonio Candido:

Os românticos haviam “civilizado” a imagem do índio, in-jetando nele os padrões do cavalheirismo convencional. Os modernistas, ao contrário, procuraram nele e no negro o pri-mitivismo, que injetaram nos padrões da civilização domi-nante como renovação e quebra das convenções acadêmicas. Mas nesse jogo muitos acabaram num artificialismo equiva-lente ao dos românticos, sobretudo os que foram buscar na tradição indígena alimento para um patriotismo ornamental (candido, 2010b, p. 88).

No desenrolar de tais mudanças vivenciou-se o rompimento com a “literatura de permanência”, cujas produções conservaram, depois do período romântico, traços muito comuns. É considerada por Antonio Candido “uma literatura satisfeita, sem angústia formal, sem rebelião nem abismos. Sua única mágoa é não parecer de todo europeia; seu es-forço mais tenaz é conseguir pela cópia o equilíbrio e a harmonia, ou

seja, o academismo” (candido, 2010a, p. 120). Suas principais caracte-rísticas podem ser observadas na continuidade com a literatura de viés mais “acadêmico” e no reduzido espaço oferecido para o surgimento de outros tipos de literatura, fossem elas regionais ou de cunho paródico. Seguindo tal raciocínio, até as duas primeiras décadas do século XX, nossa intelligentsia “conserva e elabora os traços desenvolvidos depois do Romantismo, sem dar origem a desenvolvimentos novos; e, o que é mais interessante, parece acomodar-se com prazer nesta conserva-ção” (candido, 2010a, p. 120). Só posteriormente, com a vigência do Modernismo, é que veremos se acentuar de maneira paulatina as ten-tativas de “desmontagem” e de “dessacralização” das antigas engrena-gens, abrindo caminhos para a atualização artística e literária do Brasil (bernd, 1992).

Muitos dos esforços empreendidos no sentido da “dessacralização” das concepções sobre a literatura e as artes ganharam maior fôlego des-de a primeira fase do Modernismo, por ter sido esta uma etapa de “rup-tura” com o passado, além de grande “sementeira” das conquistas da geração de 1930, mais amadurecida em seus propósitos de inovação46. Conforme diz Antonio Candido, “o nosso Modernismo importa es-sencialmente em sua fase heroica, na libertação de uma série de recal-ques históricos, sociais, étnicos, que são trazidos triunfalmente à tona da consciência literária” (candido, 2010a, p. 126). Uma das principais conquistas desse movimento foi afirmar a centralidade do dado local pela valorização vanguardista do primitivo, absorvendo-o na cons-trução de uma nova literatura (candido, 2010a). Em linhas gerais, de acordo com o autor:

46 Embora a “dialética do localismo e do cosmopolitismo” tenha uma presença estruturante na literatura dos anos 1920, período que analisaremos a partir dos Manifestos de Oswald de Andrade e Gilberto Freyre, é necessário esclarecer que para Candido (2010a, p. 134) será somente no decênio de 1930 que vivenciaremos um momento de “equilíbrio” entre a pesquisa local e as aspirações cosmopolitas. Para um maior aprofundamento do assunto re-comenda-se a consulta do seguinte livro: candido, Antonio. Literatura e Sociedade. 11.ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010a.

Se fosse possível estabelecer uma lei de evolução da nossa vida espiritual, poderíamos talvez dizer que toda ela se rege pela dialética do localismo e do cosmopolitismo, manifestada pelos modos mais diversos. Ora a afirmação premeditada e por ve-zes violenta do nacionalismo literário, com veleidades de criar até uma língua diversa; ora o declarado conformismo, a imita-ção consciente dos padrões europeus (candido, 2010a, p. 117).

Esta dialética torna-se mais visível a partir dos anos 1920 e 1930, pois marcam o momento que “assistimos ao admirável esforço de construir uma literatura universalmente válida (pela sua participação nos pro-blemas gerais do momento, pela nossa crescente integração nestes pro-blemas) por meio de uma intransigente fidelidade ao local” (candido, 2010a, p. 133). Estamos falando do “desrecalque localista”, ou seja, a for-ma que encontramos para organizar localmente o processamento das culturas estrangeiras, particularmente europeias, e adequá-las às exi-gências do meio cultural e literário brasileiro, com vistas a obter uma cultura local universalmente válida, que considerasse as nossas parti-cularidades. O desrecalque mostra-se central para a nossa literatura, a ponto de autores tão díspares como Oswald de Andrade e Gilberto Freyre, partindo de lógicas distintas, tentarem organizar o dado local através de uma reinterpretação da cultura, situada em um contexto pe-riférico em relação aos centros estrangeiros. O primeiro, através dos Manifestos Pau-Brasil e Antropófago, tentou, de acordo com Candido (2010a, p. 130), exprimir a atitude de devoração em face dos valores eu-ropeus; já o segundo, argumenta Quintas (2007, p. 45–46), se esforçou no sentido de demonstrar que o “regionalismo” não deve ser compreen-dido em oposição a uma concepção universalista de mundo, evitando extremos inaceitáveis e estimulando a intersecção entre a parte e o todo.

Na verdade, a relevância atribuída ao local pode ser interpretada nos termos da consolidação de uma tradição literária que se desenvol-ve na apresentação de diversos aspectos da realidade brasileira. Isso propiciou contatos mais intensos com os movimentos vanguardistas

internacionais e fundamentou a superação de nossas “deficiências”, su-postas ou reais, — a miscigenação, a cultura negra e indígena — que passaram a ser reinterpretadas como exemplos de nossas “superiorida-des” (candido, 2010a). Sobre isso, Antonio Candido nos diz o seguinte:

Um certo número de escritores se aplica a mostrar como somos diferentes da Europa e como, por isso, devemos ver e exprimir diversamente as coisas. Em todos eles encontra-mos latente o sentimento de que a expressão livre, princi-palmente na poesia, é a grande possiblidade que tem para manifestar-se com autenticidade um país de contrastes, onde tudo se mistura e as formas regulares não correspon-dem à realidade (candido, 2010a, p. 129).

Consoante com o trecho acima, A. Teixeira (2009, p. 41–42) ressalta que a imposição de padrões estrangeiros foi, ao longo do processo de ama-durecimento da consciência local, amoldando-se ao material nacional-mente disponibilizado. No entanto, essa tensa e, contudo, dinâmica en-tre o recorte na cena nacional e o seu revestimento numa linguagem mais universalista permanecerá inseminando toda a história posterior da literatura brasileira47. Daí a pertinência de compreender o produto literário que dessa relação resulta através de uma crítica dialética que focalize as divergências e convergências do localismo e do cosmopoli-tismo, por meio das quais a literatura pôde interferir na constituição do

47 Um dos movimentos que tentaram trabalhar dialeticamente esta linguagem universal e pro-cessá-la às exigências da nossa atualização artística foi a Antropofagia ritual defendida por Oswald de Andrade. A dialética em relação ao elemento estrangeiro tornava-se um recurso necessário, pois eram as vanguardas europeias que “forneciam o modelo inicial para a eclosão do modernismo brasileiro, uma vez que as técnicas artísticas empregadas pelos modernistas foram, numa primeira etapa, aprendidas com os vanguardistas europeus” (rocha, 2011b, p. 650–651). Para mais informações recomenda-se a consulta do seguinte texto: rocha, João Cezar de Castro. Uma Teoria da Exportação? Ou: “Antropofagia como Visão do Mundo”. In: ruffinelli, Jorge; rocha, João Cezar de Castro (orgs.). Antropofagia hoje? Oswald de Andrade em Cena. São Paulo: É Realizações Editora, 2011b.

que Antonio Candido denomina de “consciência nacional”. A constru-ção de tal consciência motiva todo o andamento da literatura brasileira, alargada na medida em que sedimenta a relação dialética entre o local e o geral, mesmo a despeito de suas oscilações formais, numa linha contí-nua que dá sustentação a todo seu desenvolvimento.

Durante o Modernismo o processamento da “dialética do localis-mo e do cosmopolitismo” foi enfatizado pela influência europeia e por um mergulho no detalhe brasileiro. A problematização conceitual dessa dialética pode ser percebida no ensaio de Antonio Candido, Dialética da malandragem, no qual o autor se debruçou na compreensão do livro Memórias de um sargento de Milícias, escrito por Manuel Antonio de Almeida (1831–1861). Para Antonio Candido, há nesse livro um primei-ro estrato universalizador, onde fermentam arquétipos válidos para a imaginação de um amplo ciclo de cultura; e, por outro lado, um segun-do estrato universalizador de cunho mais restrito onde se encontram as representações da vida brasileira. Esse segundo estrato também seria constituído pela “dialética da ordem e da desordem”, cujo representante genuíno seria o malandro, personagem que transita por esses dois polos e é por eles atraído. Um dos argumentos centrais de Antonio Candido é que não é a representação dos dados concretos particulares que produz o senso da realidade, mas a sugestão de uma certa generalidade, tornan-do a dialética e suas tensões constitutivas um princípio válido de gene-ralização (candido, 1970).

Essa atitude pode ser definida como “o sentimento dos contrários, isto é: procura ver em cada tendência a componente oposta, de modo a apreender a realidade da maneira mais dinâmica, que é sempre dialé-tica” (candido, 2011a, p. 198). Percebe-se que a “dialética do localismo e do cosmopolitismo” não é um mero artifício da crítica literária de Antonio Candido, mas a forma na qual, segundo o autor, a própria so-ciedade brasileira foi historicamente estruturada. Nesse sentido, a opção pela dialética permitiu não apenas investigar as tensões entre literatu-ra e sociedade, mas possibilitou uma “alternativa ao conservadorismo comum aos que ignoram o conflito, tanto para defender a necessária

assimilação dos valores europeus, quanto para propor uma utópica fi-delidade às raízes de nossa história” (pedrosa, 1994, p. 164). Por con-seguinte, é a “dialética do localismo e do cosmopolitismo” que define a acumulação e o desenvolvimento da literatura no Brasil (arantes, 1992).

2.3 A região e a nação como categorias explicativas: do regionalismo ao nacionalismo

Depois de debatermos acima os percalços contraditórios da nossa for-mação literária, enfatizada através da “dialética do localismo e do cos-mopolitismo”, é imprescindível incluir a pertinência de alguns conceitos centrais, dentre os quais podemos elencar os debates sobre a “região” e o “regionalismo”, a “nação” e o “nacionalismo”. De alguma maneira essas categorias fizeram parte, direta ou indiretamente, da literatura brasilei-ra desde o final do século XIX até pelo menos as três primeiras décadas do século XX, período marcado pela busca das nossas particularidades sociais, culturais e linguísticas. Todas elas, portanto, estão presentes em períodos anteriores ao surgimento do Movimento Modernista, mas se-rão importantes na compreensão do objeto empírico deste livro, ou seja, os Manifestos Pau-Brasil (1924), Antropófago (1928) e Regionalista (1926), que deverão ser analisados no próximo capítulo.

Inicialmente, podemos afirmar que o conceito de região não é de fácil definição, pois possui ambiguidades e características complexas, fa-zendo parte de realidades multifacetadas e heterogêneas. Na acepção de Luiz Alexandre Gonçalves Cunha (2000), no contexto atual, marcado pelo processo de globalização e regionalização, reacende-se o debate so-bre as alternativas e possibilidades dos estudos regionais, ao ver a região enquanto uma “fração do espaço geográfico catalizadora de determina-das relações e convenções — como um ator social fundamental na trans-formação de comunidades regionais e locais” (cunha, 2000, p. 53).

Segundo P. Gomes (1995, p. 41–42), a palavra “região” deriva de regio-ne, termo utilizado pelo Império Romano para designar áreas, indepen-dentes ou não, que estavam subordinadas às regras gerais e hegemônicas

das magistraturas sediadas em Roma. A região também já foi interpreta-da como uma necessidade de um momento histórico em que, pela pri-meira vez, surge de forma ampla, a relação entre a centralização do po-der em um local e a extensão dele sobre uma área de grande diversidade social, cultural e espacial. Podem-se destacar ainda três domínios que permitem definir o que se entende por região. O primeiro deles é a pró-pria linguagem do senso comum, que inclui os princípios de localização e extensão, caracterizado pelo uso genérico do termo48. O segundo do-mínio tem um viés administrativo, pois nele a região é vista como uma unidade administrativa, sendo a divisão regional a base para definição e exercício do controle na administração dos Estados e de suas sub-unida-des. Por fim, o terceiro domínio diz respeito às ciências em geral, através das quais o emprego da noção de região associa-se a ideia de localização de determinados fenômenos, vista como área definida por uma regulari-dade de propriedades comuns.

Antes de ser utilizado pela geografia e por outras ciências humanas, o conceito de região já era empregado pela geologia, que a via como um espaço natural delimitado, aspecto posteriormente problematizado, re-modelado e desenvolvido pelas diferentes correntes da geografia. Além desta característica, inspirada em parte pelos estudos geológicos, a re-gião passou a ser uma terminologia comum entre os pesquisadores que tentavam entender os fenômenos sociais e humanos no espaço geográ-fico, desde os seus elementos culturais até a sua base econômica e políti-ca, com suas desigualdades e contradições. Enfatizava-se também que o discurso regional era o veículo encontrado por uma elite local qualquer,

48 Ser utilizada pelo “senso comum” não anula o debate sobre o que venha a ser “região”. Luiz Alexandre Gonçalves Cunha (2000) defende que, embora a “região” seja objeto de estudos científicos, as noções pertencentes ao “senso comum” acerca deste conceito não devem ser totalmente descartadas a priori. Nas palavras do autor: “em princípio, elas podem, de acor-do com a configuração sócio-espacial que está sendo considerada pelo pesquisador ou pla-nejador, conterem percepções altamente pertinentes aos fenômenos efetivos na construção daquela configuração” (cunha, 2000, p. 51). Consultar: cunha, Luiz Alexandre Gonçalves. Sobre o conceito de região. Revista de História Regional 5(2): p. 39–56. Inverno. 2000.

visando a própria preservação e o controle territorial (castro, i., 1994; gomes, p., 1995).

No Brasil, o impacto da colonização e as diferentes influências mi-gratórias foram fatores importantes na construção das culturas regio-nais e na diferenciação das regiões entre si. Cada região tem suas carac-terísticas particulares e suas diferenças culturais, sociais e linguísticas, fazendo com que o conceito de região continue ligado com as realidades vividas, ou seja, um espaço de prática sobre o que se é e o que se quer ser (carreiro, 2014). Mesmo com a globalização e as tentativas de ho-mogeneizar o espaço, a diversidade espacial das regiões parece não ter sido suprimida e talvez nem tenha diminuído, sendo mais provável a existência de novas regiões ou até a renovação de algumas já antigas (gomes, p., 1995).

Cabe observarmos, entretanto, que o conceito de “região”, muito embora seja utilizado como termo correlato de “regionalismo”, não é idêntico a este. Diferente do conceito de “região”, o “regionalismo” se re-fere a padrões atinentes a um grupo cultural que pode estar inserido em um dado espaço ou dele transcender, encravando-se dentro do proces-so civilizatório mais amplo, isto é, dentro da civilização onde os blocos culturais se encaixam (quintas, 2007). Do ponto de vista literário, que nos interessa mais de perto, Candido (2010a, p. 121) afirma que o regio-nalismo foi desde o início do nosso romance uma das principais vias de autodefinição da consciência local, muito embora o considere um gêne-ro “pretencioso”, criando, a pretexto de “amor a terra”, um sentimento subalterno e fácil de condescendência em relação ao próprio país.

Ao analisar numa perspectiva dialética os aspectos regionais e na-cionais da literatura brasileira, Antonio Candido defende que am-bos tentaram fixar a consciência local, mas de maneiras diferentes na apreensão do universalismo (candido, 2010b). O que os diferencia, no entanto, além do maior ou menor diálogo com as tendências europeias, é a tonalidade de determinadas características que variam entre o pito-resco e a representação da realidade local de uma forma mais fidedig-na. No Nordeste do país, região que muito se destacou pela literatura

de viés regionalista, as influências do Movimento Modernista foram, segundo Candido (2010b, p. 97), contrabalançadas por um forte movi-mento tradicionalista, cujo programa foi fundamental na “explosão” do regionalismo, fazendo dele instrumento não apenas de reinterpretação histórico-social, mas de bússola na escolha dos temas poéticos e narra-tivos49. Os primeiros ecos deste regionalismo literário já podem ser ob-servados no século XIX nas obras de Franklin Távora e José de Alencar, até ganhar maiores contornos e novas temáticas no século XX com José Américo de Almeida, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado, Gilberto Freyre e também alguns autores mais distantes do perímetro nordestino, a exemplo de Érico Veríssimo e João Guimarães Rosa (candido, 2011a).

O regionalismo se apega aos laços tradicionais da região, numa forte reação à sua descaracterização pelo imperialismo cultural, que tendia a impor padrões estéticos e comportamento desenraizados. Aparentemente, “o tradicionalismo dos regionalistas não seria mais que uma resistência no plano cultural à ininterrupta crise e decadência eco-nômica e política da região” (teixeira, f., 1995, p. 93). Todavia, confor-me adverte Flávio Weinstein Teixeira, a faceta mais interessante do re-gionalismo reside nesta busca — tardia, para alguns — por legitimar um movimento de claras intenções tradicionalistas enquanto um viés do modernismo. No caso específico do Movimento Regionalista liderado

49 Embora parte da literatura regionalista tenha se desenvolvido entre alguns autores nordestinos, isso não quer dizer que ela inexista em outras regiões do Brasil, ou que só haja escritores regio-nalistas no Nordeste, ou que para ser “regionalista” o escritor deva se limitar apenas a descrever a região em que nasceu. Basta, para isso, lembrarmos a presença dos escritores Bernardo Gui-marães, Visconde de Taunay e Euclides da Cunha, tendo o primeiro nascido em Minas Gerais e os dois últimos no Rio de Janeiro. No caso de Euclides da Cunha, em particular, Antonio Candido (2010a) considera que, entre os regionalistas, foi o autor de Os Sertões o único que não comportou uma visão “pitoresca” e “exótica” no entendimento dos problemas regionais, cabendo ao Movimento Modernista tentar “redescobrir” esta visão. Porém, por volta de 1940 assistiremos a um certo “repúdio do local”, reputado apenas ao pitoresco e ao extraliterário; e a um crescente “anseio generalizador, procurando fazer da expressão literária um problema de inteligência formal e de pesquisa interior” (candido, 2010a, p. 133).

por Gilberto Freyre em Recife, este aparente dilema não é de todo incom-preensível, tendo em vista que, se a aceitação do adjetivo “Modernista” só se fez nos anos 1950, quando o Manifesto Regionalista ganha sua redação final, foi talvez porque o acirrado debate dos anos 1920 já havia esmoreci-do, e muitas de suas razões já não se mostravam importantes (teixeira, f., 1995). Por uma questão de “renovação”, se até mesmo os regionalistas “sentiram-se impelidos a incorporar um quê de modernismo a sua pro-posta cultural é porque não ter o toque da modernidade seria quase que optar velo vácuo. Era imperioso ser ou pelo menos aparentar-se moder-no” (teixeira, f., 1995, p. 93).

De acordo com Candido (2011a, p. 244–245), o regionalismo surgiu assinalando as peculiaridades locais e mostrando cada uma delas como outras tantas maneiras de ser brasileiro. Por estarem organicamente vin-culados à terra e pressuporem a descrição de um certo isolamento cul-tural, tais peculiaridades pareciam representar melhor o país do que os costumes e a linguagem das cidades, marcadas pela constante influência estrangeira. Buscava-se com isso descrever os lugares remotos do inte-rior e destacar as culturas locais, com seus particularismos e o modo de vida da sua população. Todavia, essa tendência incorreu em alguns ví-cios, com destaque maior para o “pitoresco superficial e as conclusões bem-pensantes sobre a pureza rural oposta ao artificialismo da cidade” (candido, 2010b, p. 56). Muitos dos seus escritores se baseavam no in-teresse elitista pelo homem do campo, visto à maneira de um objeto pi-toresco e caricatural, podendo levá-los a uma vulgaridade folclórica ao mesmo tempo tola e degradante (candido, 2010b). Entretanto, tal li-mitação determinou também, paradoxalmente, um dos maiores sopros de radicalismo da nossa história, pois ao se deter no entendimento das peculiaridades locais, acabou se tornando um instrumento de pesquisa humana e social (candido, 2010a).

A análise dialética postulada por Antonio Candido permite entender que o gosto pela expressão local e pelo sentimento do exótico pode ser visto como um elemento “impulsionador do surgimento de uma tendên-cia — regionalismo — que se manifesta em vários momentos da história

do sistema literário nacional, agregando ao seu conceito noções como “localismo”, “pitoresco” e “bairrismo” (araújo, h., 2008, p. 119). Também nos ajuda a considerar que a supervalorização dos aspectos regionais se reverberava na forma de compensar o atraso material e a debilidade das instituições, num período em que a concepção de pátria se vinculava à de natureza. A partir de então, o termo “regionalismo” seria analisado como um fenômeno cuja abrangência vinculava toda a ficção à descrição das regiões e dos costumes rurais desde o período romântico. Por outro lado, durante o Movimento Modernista, os esforços da criação literária se concentrarão na tomada da “consciência da crise”, do “subdesenvolvi-mento” e “do sentimento de urgência” em determinadas localidades do Brasil (candido, 2011a).

O regionalismo, portanto, se vincula a uma visão de mundo que em grande medida busca retratar o subdesenvolvimento e, em casos espe-cíficos, pode ser relacionado a “literaturas nacionais atrofiadas”, mes-mo que discorra sobre elementos da nacionalidade (candido, 2011a). Trata-se, de uma maneira mais explícita, “de movimentos de reação a uma ordem unificadora dominante, vitoriosa e irreversível, contrária à existência dos programas localistas” (araújo, h., 2008, p. 129). José Hildebrando Dacanal (1978) afirma que o conceito de regionalismo é um dos mais típicos subprodutos da estrutura mental secundária e coloniza-da “dos letrados latino-americanos em geral e principalmente dos brasi-leiros, aparecendo como exemplo característico do elemento traumático que define a cultura dependente, específica das sociedades que se forma-ram no continente a partir do final do séc. XVIII” (dacanal, 1978, p. 50).

Segundo Dacanal (1978, p. 53–54), o regionalismo — mas não as obras regionalistas — é o produto da “consciência infeliz” das classes dirigentes brasileiras, que enfrentavam um difícil dilema. De um lado, colonizada pelos centros capitalistas europeus, elas buscavam identificar-se com o colonizador. De outro, ao encarar a nação, elas eram obrigadas a justifi-car sua dominação sobre os demais grupos, o que as levava a se apresen-tarem como portadoras da nacionalidade e da sua autonomia, forjadas pelos grupos de letrados a seu serviço. Em tal conjuntura, a zona agrária

ainda era, mesmo ao final do I Império, a base essencial do poder po-lítico e econômico brasileiro, oferecendo à literatura regional elemen-tos para a criação de temas e personagens. É neste contexto contra-ditório que começam a circular os termos “regional”, “regionalismo”, “regionalista”, na base dos quais está a “consciência infeliz” das classes dirigentes brasileiras ao se verem retratadas em obras que, lamenta-velmente, não eram consideradas “universais”, iniciando a longa e tor-tuosa discussão sobre a possibilidade do “regional” poder ser ou não “universal”. Outros autores, no entanto, possuem uma percepção mais otimista sobre o regionalismo. Na acepção de Chiappini (1995, p. 153), setores da crítica literária brasileira consideravam o regionalismo uma categoria ultrapassada, mesmo que ele estivesse presente nas pesqui-sas atuais, ganhando uma amplitude maior na intersecção dos estudos literários e artísticos, históricos e etnográficos. Nas palavras da autora:

O regionalismo é um fenômeno universal como tendência literária, ora mais ora menos atuante, tanto como movi-mento – ou seja, como manifestação de grupos de escritores que programaticamente defendem sobretudo uma literatu-ra que tenha por ambiente, tema e tipos uma certa região rural, em oposição aos costumes, valores e gosto dos citadi-nos, sobretudo das grandes capitais — quanto na forma de obras que concretizam, mais ou menos livremente, tal pro-grama, mesmo que independentemente da adesão explícita de seus autores (chiappini, 1995, p. 153–154).

Do mesmo modo, a obra regionalista pode ser definida como qualquer livro que, intencionalmente ou não, traduza peculiaridades locais e as vincule a uma determinada área do país, podendo-se falar tanto de uma ficção regionalista rural quanto de uma ficção regionalista urbana (chiappini, 1995; pellegrini, 2008). Na verdade, “toda obra literária seria regionalista, enquanto, com maiores ou menores mediações, de modo mais ou menos explícito ou mais ou menos mascarado, expressa seu momento e lugar” (chiappini, 1995, p. 155). Além disso, Chiappini

(1995, p. 156) defende que estudar o regionalismo também nos leva a constatar o seu aspecto moderno e universal, já que ele surgiu como reação ao Iluminismo e à centralização do Estado-Nação, e hoje ainda estaria se “reatualizando” como reação à globalização. Através disso podemos entender que a chamada “aldeia global” não suplantou defi-nitivamente a “aldeia” e tudo o que dela fale e por ela se interesse, visto que a dialética “nos faz considerar que a questão regional e a defesa das particularidades locais hoje se repõem com força, quanto mais não seja como reação aos riscos de homogeneidade cultural, à destruição da natureza e às dificuldades de vida e trabalho no “paraíso neoliberal” (chiappini, 1995, p. 156). Logo, não é por expressar certos aspectos da região, algo muitas vezes relacionado ao “arcaísmo”, que faz com que o regionalismo não possa ser um fenômeno de cunho universal e mo-derno, pois como toda tendência literária ele não é estático, mas atra-vessa e é atravessado pela história (chiappini, 1995).

Mas de que maneira poderíamos refletir a ideia de nação — e seu possível viés regional — uma vez que esta se tornou um dos principais substratos da consciência literária? Seguindo a periodização proposta por Eric J. Hobsbawm (2013), em seus estudos sobre o Estado-Nação, Chaui (2000, p. 16) afirma que já se pode notar o aparecimento da “nação” no vocabulário político de 1830, a partir do qual podemos dis-tinguir três etapas de desenvolvimento. A primeira vai de 1830 a 1880, momento no qual se falava em “princípio de nacionalidade”, discurso que provinha da economia liberal. A segunda vai de 1880 a 1918, ca-racterizada pela noção da “ideia nacional”, utilizada por intelectuais pequeno-burgueses, em especial alemães e italianos. Por fim, a tercei-ra vai de 1918 aos anos de 1950–1960, quando se começou a falar em “questão nacional”, que emanava principalmente o discurso dos parti-dos políticos e do Estado. Por esses motivos, Hobsbawm (2013, p. 18) considera que a nação não é uma entidade social originária ou imutá-vel, mas “pertence exclusivamente a um período particular e historica-mente recente. Ela é uma entidade social apenas quando relacionada a uma certa forma de Estado territorial moderno, o “Estado-nação”;

e não faz sentido discutir nação e nacionalidade fora desta relação” (hobsbawm, 2013, p. 18).

Para Max Weber uma nação é “uma comunidade de sentimento que se manifestaria adequadamente num Estado próprio; daí, uma nação é uma comunidade que normalmente tende a produzir um Estado pró-prio” (weber, 1946, p. 207). Consideremos a seguinte citação:

Se o conceito de “nação” pode, de alguma forma, ser defi-nido sem ambigüidades, certamente não pode ser apresen-tado em têrmos[sic] de qualidades empíricas comuns aos que contam como membros da nação. Num certo sentido, o conceito indubitavelmente significa, acima de tudo, que podemos arrancar de certos grupos de homens um senti-mento específico de solidariedade frente a outros grupos. Assim, o conceito pertence à esfera dos valôres [sic]. Não obstante, não há acôrdo[sic] sobre como êsses[sic] grupos devem ser delimitados ou sôbre [sic] que ação concertada deve resultar dessa solidariedade (weber, 1946, p. 202).

O autor, contudo, busca compreender que a nação não é a mesma coisa que uma comunidade étnica que fala a mesma língua, — embora esta seja a sua base positiva e seu elemento cultural mais destacado — argu-mentando que a solidariedade baseada na língua é relativa e, por conse-guinte, sua validade conceitual pode variar segundo as formações sociais a que é aplicada. É o caso, por exemplo, da solidariedade “nacional” e “ét-nica” ou entre homens que falam a mesma língua, pois dependendo das circunstâncias elas podem ser rejeitadas ou aceitas, já que sozinhas não fazem por si só uma “nação” (weber, 1946). Em conformidade com isso, Max Weber afirma que “a significância de “nação” está habitualmente ligada à superioridade, ou pelo menos à insubstituibilidade, dos valôres [sic] culturais que devem ser preservados e desenvolvidos exclusivamen-te através do cultivo da peculiaridade do grupo” (weber, 1946, p. 206).

Na definição já clássica de Benedict Anderson, “dentro de um espí-rito antropológico, a nação pode ser definida como uma comunidade

política imaginada — e imaginada como sendo intrinsecamente limita-da e, ao mesmo tempo, soberana” (anderson, 2008, p. 32). Ela envol-ve, de acordo com Anderson (2008, p. 32–34), o delineamento de quatro critérios centrais. O primeiro critério refere-se ao fato de que a nação é imaginada porque a maioria dos seus membros jamais se conheceu ou ouviu falar da maioria dos seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles. O segundo critério pro-cura demonstrar que uma nação é limitada porque mesmo a maior delas possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para as quais existem outras nações. O terceiro critério afirma que a nação é soberana porque nasceu numa era de grandes transformações modernas, como o Iluminismo e a Revolução Francesa, as quais estavam destruindo a legitimidade do reino dinástico e da ordem divina50. O quarto e último critério diz que a nação é imaginada como uma comunidade porque, “independentemente da de-sigualdade e da exploração efetivas que possam existir dentro dela, a na-ção sempre é concebida como uma profunda camaradagem horizontal” (anderson, 2008, p. 34).

Benedict Anderson também adverte que a ideia de nação, imaginada em sua acepção moderna, não foi apenas um fenômeno ligado ao surgi-mento do Estado-Nação, mas ao estabelecimento das línguas nacionais, em oposição à antiga hegemonia do latim, e ao crescimento paulatino da produção de jornais e livros impressos, criando uma espécie de sen-timento de pertença e de “antiguidade essencial” entre os membros de uma mesma comunidade. A este fenômeno o autor denominou de “ca-pitalismo editorial”, cuja ação sobre a diversidade da linguagem humana

50 Contudo, Benedict Anderson (2008) não está sugerindo que as comunidades imaginadas das nações teriam surgido simplesmente a partir das comunidades religiosas e dos reinos dinásticos, substituindo-as. Ao contrário dessa visão estreita, busca-se apontar é que ao longo do declínio das comunidades, línguas e linhagens sagradas ocorreu paralelamente uma transformação nos modos de apreender o mundo que possibilitou “pensar” a nação. Para a obtenção de informações mais sistemáticas, consultar: anderson, Benedict. Co-munidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

“criou a possibilidade de uma nova forma de comunidade imaginada, a qual, em sua morfologia básica, montou o cenário para a nação mo-derna”51 (anderson, 2008, p. 72). Portanto, o aparecimento da nação trouxe também a criação de padrões de alfabetização universais, gene-ralizou uma única língua vernacular como o meio dominante de co-municação, criou uma cultura homogênea e manteve instituições cul-turais e sistemas de ensino nacional (hall, 2006).

Entretanto, mesmo que as nações sejam imaginadas, imaginá-las também é um grande desafio. Lilia Moritz Schwarcz pontua que “não se imagina no vazio e com base em nada. Os símbolos são diferentes quando se afirmam no interior de uma lógica comunitária afetiva de sentidos e quando fazem da língua e da história dados “naturais e es-senciais”; pouco passível de dúvida e de questionamento” (schwarcz, 2008, p. 16). O uso do “nós”, por exemplo, presente nos hinos nacionais ou nos jogos de futebol faz com que o sentimento de pertença se sobre-ponha à ideia de individualidade e apague o que existe de “eles”/ “elas” e de diferentes em qualquer sociedade (schwarcz, 2008). Conforme admite Stuart Hall, “no mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma das principais fontes de identidade

51 Sobre este traço moderno do conceito de nação, Hobsbawm (2013, 2015) alega que os dois últimos séculos da história humana do planeta Terra são incompreensíveis sem o entendi-mento do termo “nação” e do vocabulário que dele deriva, cujo sentido não é mais velho que o século XVIII. Muito embora os movimentos nacionalistas reivindiquem um traço de antiguidade subjetiva e eterna, baseado numa visão essencialista, do ponto de vista his-tórico e objetivo, a caraterística básica da nação é a sua modernidade. Algo semelhante ocorre com boa parte das tradições, muitas das quais parecem ou são consideradas antigas, quando na realidade são bastante recentes, quando não são inventadas. O sentimento de “eternidade” e de “perenidade” da nação muitas vezes é interpretado como fazendo parte do chamado “mito fundacional”, consistindo numa operação simbólica de retorno ao pas-sado, tendo quase sempre o objetivo de “ressuscitar” toda a “grandeza” da nação, com suas “glórias” e seus “heróis”. Este aspecto fundacional dos mitos nacionais será debatido mais especificamente no capítulo 4 deste livro. Por enquanto, recomenda-se a seguinte leitura: hobsbawm, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. 6ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2013. Ver também: hobsbawm, Eric J. A invenção das tradições. 10ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015.

cultural” (hall, 2006, p. 47). O sentimento de “pertencimento”, os pro-cessos de “reconhecimento” e as dinâmicas de cada sociedade tornam--se primordiais na construção de identidades. Ademais, “as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são forma-das e transformadas no interior da representação” (hall, 2006, p. 48). Por não ser algo de natureza biológica, e sim um discurso construído, a nação ou a cultura nacional não são compostas apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações que influenciam e organizam nossas ações e a concepção que temos de nós mesmos (hall, 2006).

Ao exemplificar esse problema, Hall (2006, p. 49) argumenta que se o que significa ser inglês diz respeito ao modo como a “inglesida-de” veio a ser representada, ou seja, como um conjunto de significados construídos pela cultura inglesa, do mesmo modo também podemos pensar que o “ser brasileiro” poderia ser representado por um conjunto de significados, sob o rótulo de “brasilidade”52. Com isso, a nação não é apenas “uma entidade política mas algo que produz sentidos — um sis-tema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma nação; elas participam da idéia da nação tal como repre-sentada em sua cultura nacional” (hall, 2006, p. 59). Por conseguinte, a nação mais do que um conglomerado de pessoas é “uma comunidade simbólica e é isso que garante o seu poder de gerar um senso de identi-dade e fidelidade” (hall, 2006, p. 59). Este senso, no entanto, não é ho-mogêneo, mas híbrido e heterogêneo, ainda que tenha sido, na maioria das nações, “unificado” por um longo processo de conquista violenta e pela supressão forçada da diferença cultural.

De acordo com Hall (2006, p. 59–60), cada conquista subjugou po-vos conquistados e suas culturas, costumes, línguas e tradições, e ten-tou impor uma hegemonia cultural mais unificada, o que ainda assim

52 Para informações mais específicas sobre as implicações da ideia de brasilidade, iniciada no capítulo 1, ver o capítulo 3 deste livro, onde serão analisados os Manifestos Pau-Brasil, Antro-pófago e Regionalista.

permite pensarmos a existência real de diferentes classes sociais e dife-rentes grupos étnicos e de gênero53. A tentativa intransigente de apagar as diferenças e de estabelecer, falsa e equivocadamente, um sentimen-to ou uma cultura única que representasse toda uma nação, foi uma das principais aspirações dos movimentos nacionalistas, caracteriza-dos, em grande medida, pelo seu viés totalitário e ditatorial. Adentra-se, com isso, ao terreno do nacionalismo, visto por Benedict Anderson (2008) como um produto cultural específico que possui, desde o século XVIII aos dias de hoje, uma profunda legitimidade emocional, consti-tuindo-se, do mesmo modo que a nação, do “cruzamento” complexo de diferentes forças históricas. Faz parte da “magia do nacionalismo” con-verter o acaso em destino, reafirmando um suposto passado imemorial que deve seguir em direção a um futuro ilimitado. Paradoxalmente, foi na modernidade, racionalista e secularizada, que tivemos o amanhecer da era do nacionalismo, ligado “aos grandes sistemas culturais que o precederam e a partir dos quais ele surgiu, inclusive para combatê-los” (anderson, 2008, p. 39).

Entretanto, Benedict Anderson não acredita que o surgimento do nacionalismo tenha ocorrido por um desgaste das antigas comunida-des religiosas e dos reinos dinásticos, mas que “valeria a pena tratar tal

53 Stuart Hall nos chama atenção para o fato de que deveríamos pensar a nação como um dispositivo discursivo que representa a diferença, sendo “unificada” apenas através do exer-cício de diferentes formas de poder cultural. As identidades nacionais que surgem, por exemplo, com a imigração não são e nunca serão unificadas no velho sentido, “porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias "casas" (e não a uma "casa" particular). As pessoas per-tencentes a essas culturas híbridas têm sido obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural "perdida" ou de absolutismo étnico” (hall, 2006, p. 89). Percebemos, com isso, que as identidades são fabricadas por meio da marca-ção da diferença, que pode ocorrer tanto por meio de sistemas simbólicos de representação quanto por meio de formas de exclusão social (woodward, 2011). Para mais informações recomenda-se consultar: hall, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade.11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. Ver também: woodward, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: silva, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e dife-rença: A perspectiva dos estudos culturais. 10. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2011.

conceito do mesmo modo que se trata o “parentesco” e a “religião”, em vez de colocá-lo ao lado do “liberalismo” ou do “fascismo” (anderson, 2008, p. 32). Diferente de Eric. J Hobsbawm (2013), que associa o nacio-nalismo ao surgimento das ideologias políticas e do Estado-Nação, ou do pensamento liberal, que estuda este fenômeno pela cartilha dos di-reitos e deveres constitucionais, Benedict Anderson (2008) se propõe a avaliar o nacionalismo por meio da língua e pela não arbitrariedade do signo como criadores do sentimento político e cultural de comunhão54. Para ele, não é possível entender a assunção deste fenômeno sem ob-servar a contribuição do “capitalismo editorial”, ou seja, o desenvolvi-mento arraigado das indústrias de impressão e o abandono do latim pelas línguas vernáculas em cada nação. A partir do desdobramento de tais eventos, o autor acredita que o fim da “era do nacionalismo”, que por tanto tempo foi profetizado, ainda não chegou ao fim.

As inter-relações das características do nacionalismo elencadas aci-ma nos ajudam a entender que as culturas nacionais, ao produzirem sentidos sobre “a nação”, “sentidos com os quais podemos nos identi-ficar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estó-rias contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas” (hall, 2006, p. 51). Tais sentidos reforçam, ou pelo menos enfatizam, a tensão das culturas nacionais com certos elementos globais e locais na transformação das identidades. Sobre isso, Hall (2006, p. 77) nos convida a compreender que ao invés do global “substituir” o local, seria mais acurado pensar numa nova articulação entre o “global” e o “local”. Naturalmente, este “local” não deve ser confundido com velhas identidades “enraizadas” em localidades delimitadas, mas postas em movimento pela globali-zação. Entretanto, para o autor, parece impossível que a globalização vá simplesmente destruir as identidades nacionais ou locais. É mais

54 Entretanto, Anderson (2008, p. 31) destaca que, ao contrário do marxismo, do liberalismo e de tantos outros “ismos”, o nacionalismo sofre de uma pobreza e de uma incoerência filo-sófica, pois nunca gerou grandes pensadores próprios: nenhum Hobbes, Toquecville, Marx ou Weber.

provável que ela vá produzir, simultaneamente, novas identificações “globais” e novas identificações “locais” (hall, 2006).

Com esta discussão, reafirma-se a importância de pensar a cons-trução dos sentidos do “nacional” e do “regional” nas suas contradições e prováveis semelhanças. Tornou-se necessário encará-los como polos inter-relacionados e distintos, averiguados com o uso e manuseamen-to de conceitos referentes aos debates sobre a “nação” e a “região”, o “local” e o “global”, que perpassam, como na “dialética do localismo e cosmopolitismo”, a literatura e o Modernismo brasileiro de uma forma ampla e diversificada. Devemos também ter em mente que, ao olhar-mos para a construção das identidades contemporâneas, pode-se ima-ginar que elas não se formam apenas no plano local, regional ou nacio-nal, mas adquirem uma dimensão transnacional, o que resulta numa espécie de novo cosmopolitismo (soares, e. 2011). Esta dimensão mo-derna e contemporânea dos conceitos aqui trabalhados permite que observemos o viés histórico e, portanto, mutável e socialmente cons-truído da literatura brasileira e dos sentimentos de que ela se satisfez, na integração dialética dos dados locais, regionais ou nacionais, através da tensão com suas referências cosmopolitas.

CAPÍTULO 3

Oswald de Andrade e Gilberto Freyre:o que nos une é o “outro”

Para o desenvolvimento deste capítulo, tomaremos como objeto empí-rico de análise o Manifesto Pau-Brasil (1924) e o Manifesto Antropófago (1928), escritos por Oswald de Andrade; além do Manifesto Regionalista (1926), escrito por Gilberto Freyre. Levaremos em consideração as ex-planações desses autores sobre a construção dos sentidos do “nacional” e do “regional”, situando-os no interior dos debates sobre a brasilidade. Nosso problema de pesquisa visa estudar como foi produzida a cons-trução desses sentidos, considerando também que o objeto de estudo a ser investigado aponta para as possíveis confluências, interpenetrações e divergências entre ambos. Que elementos, portanto, tais Manifestos podem oferecer para se pensar os sentidos do “nacional” e do “regio-nal” na construção da brasilidade? Em que medida suas propostas se interpenetram no que tange aos processos de construção desses senti-dos? Que semelhanças e contradições esses sentidos guardam entre si? Quais são as características que constituem a “nação” e a “região” nes-ses Manifestos? Como o “nacional” e o “regional” dialogam?

Tentaremos demonstrar que Oswald de Andrade estava mais li-gado ao cosmopolitismo desenvolvido em São Paulo com a Semana de Arte Moderna de 1922. É importante dizer que algumas informa-ções do Manifesto Pau-Brasil poderão ser reencontradas no Manifesto Antropófago, uma vez que a ideologia exportadora será substituída pela de uma “importação” seletiva, própria ao rito antropófago. Nesses termos, o antropófago, também denominado de “bárbaro natural

tecnizado”, age no intuito de “resolver dialeticamente (no sentido he-geliano do termo) a relação entre o nacional autóctone e o estrangeiro” (nascimento, 2011, p. 338). Essa transformação ocorre através da devo-ração dos valores estrangeiros para criar algo genuinamente brasileiro (nascimento, 2011).

Afirma-se a necessidade de compreender conjuntamente os Manifestos, devendo-se exercer uma prática interligada que torne pos-sível apreender seus significados. Considera-se que o Manifesto Pau-Brasil foi revisto e atualizado pelo Manifesto Antropófago, enfatizando uma sugestão para se pensar a cultura brasileira sem sacralizar supos-tas “raízes”, tentando se afastar ao máximo de uma perspectiva bairrista e provinciana (almino, 2011). Simultaneamente, essa cultura não deve ser inserida de forma secundária ou subordinada numa civilização uni-versal centrada na Europa. Ao contrário, ela deve está aberta ao “outro”, mas preparada para “devorá-lo” naquilo que existe de bom e positivo, eliminando, de forma seletiva, o que não agrega e não contribui para o seu enriquecimento.

Por outro lado, Gilberto Freyre defendia no seu Manifesto Regionalista que as interpretações sobre a “nação” e a “região” guar-davam forte relação com a ideia da “miscigenação” e do amalgamento de culturas, revelada na constituição “harmônica” entre as três “raças” formadoras do Brasil (freyre, 2015). Este autor também encontrou no Regionalismo, isto é, na ênfase dada às culturas locais e regionais, uma maneira de caracterizar a nação, buscando, de certa maneira, moder-nizar-se conservando as tradições e as estruturas de poder. Através da proeminência dos aspectos regionais da brasilidade, localizados espe-cialmente no Nordeste açucareiro, Gilberto Freyre tentava projetar o acesso desses valores ao fluxo nacional e cosmopolita. Como desejare-mos demonstrar, sua oposição ao Modernismo55, inclusive àquele rei-

55 Para evitar possíveis equívocos na leitura deste capítulo, esclarecemos de antemão que os termos “Modernismo”, “Regionalismo” e “Nacionalismo” com letra inicial maiúscula ou le-tra inicial minúscula foram nomenclaturas utilizadas por boa parte dos autores consultados,

vindicado por Oswald de Andrade, se deveu muito mais a uma tentati-va de escapar ao suposto “irracionalismo” que este movimento parecia estar associado. Todavia, desde que fosse preservado o “equilíbrio” das tradições, Gilberto Freyre apostava na capacidade de assimilação das influências externas, declarando-se, a seu modo, um modernista.

3.1 Ser ou não ser Pau-Brasil?

Em 18 de março de 1924 era lançado no jornal Correio da Manhã o Manifesto Pau-Brasil, publicado por Oswald de Andrade. Diferente de outros Manifestos “primitivistas” que pregavam o nacionalismo ufanis-ta, como o Nhengaçu Verde-Amarelo (1929), a ideia básica da proposta oswaldiana era a defesa de uma poesia livre e brasileira, possibilitando falar da realidade nacional numa linguagem com frases curtas, frag-mentadas e marcadas de senso crítico dirigido ao próprio país. Para tanto, era preciso “reinventar” a linguagem artística sem perder o elo com o sentido “destruidor”, diluidor e também “construtivo” das van-guardas europeias (campos, 2003).

A literatura brasileira, ainda bastante inundada pela linguagem be-letrista, herdeira das tradições parnasianas e simbolistas, começa a so-frer, paulatinamente, mudanças radicais. Por exemplo, tanto o verso como a prosa passam a ser absorvidos pelo caráter inusitado, impac-tante, característicos do modernismo internacional e que deveriam ser, não por um processo simplesmente mimético, incorporados à literatu-ra e às artes nacionais56 (soares, p., 2010). Logo nas primeiras linhas do

sejam eles estudiosos de Oswald de Andrade ou de Gilberto Freyre. Entendemos que cada uma delas não constitui um padrão único de análise ou uma norma aceita sem restrições, mas expressões que variam de pesquisador para pesquisador, não implicando, obrigatoriamente, relações de superioridade ou inferioridade de qualidade temática e literária. O mesmo ocorre com as palavras “verde-amarelismo” ou “verdamarelismo”, e tantas outras que por ventura possam aparecer com grafias diferentes.

56 Não queremos dizer com isso que a “mimeses” se reduza a “imitação”, pois, sendo um con-ceito polissêmico, o seu estudo também envolve a “reelaboração” da realidade (auerbach,

Manifesto Pau-Brasil, as palavras de Oswald de Andrade deixam trans-parecer esta atmosfera. Segundo ele:

A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.

O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nos]so. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança (andrade, o., 2012a, p. 465).

De acordo com Benedito Nunes, pode-se interpretar os trechos cita-dos acima de ângulos diversos, levando-se em consideração dois focos principais. O primeiro diz respeito ao seu primitivismo psicológico, valorizando os estados brutos da alma coletiva, que são “fatos cultu-rais”. O segundo foco de interpretação refere-se à simplificação e à de-puração formal que captariam a originalidade nativa subjacente, sem exceção a todos os fatos de natureza pictórica, folclórica, étnica e eco-nômica. As características pictóricas são achadas nos “casebres de aça-frão”, assim como os elementos folclóricos encontram-se no “carnaval”, denotando, ao mesmo tempo, uma “formação étnica rica” e grande far-tura econômica proporcionada pela presença das riquezas vegetais e minerais, além da culinária abundante. Dessa forma, a perspectiva de-finida pelo Manifesto é a maneira de sentir e conceber a realidade, de-purando e simplificando os fatos da cultura brasileira sobre os quais incide (nunes, 2011a).

Também existe no Manifesto Pau-Brasil um conjunto de críticas ao idealismo da camada ilustrada nacional, responsável pela manutenção do nosso “lado doutor”, isto é, do estilo importado de vida intelectual e da cultura literária e artística (nunes, 2011a). Tal estilo, marcadamente

2004). Recomenda-se a leitura do seguinte livro: auerbach, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.

imitativo, se desafogou “na erudição e na eloquência, na mentalidade bacharelesca, comum ao nosso jurista e ao nosso gramático, o primeiro imaginando o império das leis sobre a sociedade e o segundo, o da gra-mática sobre a linguagem” (nunes, 2011a, p. 16). Entretanto, o bachare-lismo, o gabinetismo e o academismo serviriam de matéria-prima para a elaboração crítica de Oswald de Andrade. Sua preocupação esteve atenta ao arcabouço intelectual da sociedade brasileira, no intuito de de-compô-lo e retornar “através dele ou contra ele, no amálgama primitivo por esse arcabouço recalcado, a originalidade nativa, e para fazer desta o ingrediente de uma arte nacional exportável” (nunes, 2011a, p. 16). O autor esclarece esses apontamentos nos trechos abaixo, quando afirma:

Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil.

O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e do-minando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anôni-mas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho (andrade, o., 2012a, p. 465).

A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.

Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.

A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, crítica, donas de casa tratando de cozinha. A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.

Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo: o teatro de base e a luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser

decidida em guerra de sociólogos, de homens de lei, gordos e dourados como Corpus Juris.

Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Ágil e ilógico. Ágil o roman-ce, nascido da invenção. Ágil a poesia. A poesia Pau-Brasil, ágil e cândida. Como uma criança (andrade, o., 2012a, p. 466).

A busca de uma linguagem nova não foi, no caso brasileiro, uma ino-vação “exclusivamente” modernista57. Já podemos encontrá-la no perío-do “pré-moderno”, concentrando-se principalmente na literatura desen-volvida por Lima Barreto (1881–1922), escritor que denunciava o gesto hierárquico e normativo da gramática, contrapondo-se à concepção de uma língua “bem-comportada” com regras e normas (leite, m., 1999). Por esses motivos, a literatura de Lima Barreto foi duramente criticada à sua época sob o pretexto de ser uma escrita marcada pela ausência de apuro literário, desleixada, diminuída por portar uma sintaxe frouxa e não frequentar as normas da alta literatura, preferindo aproximar-se das massas de fruidores (resende, 2003). Guardando certa semelhança em prol de uma linguagem mais livre e solta, Oswald de Andrade susten-tava que era preciso dar cultura à massa, pois a melhor poesia atinge o povo pela “exegese” num jogo de palavras carregado de significados58

57 Algumas experimentações no campo da linguagem poética, consideradas até certo ponto ino-vadoras para a época, podem ser observadas ainda no século XIX na obra do poeta maranhen-se Joaquim de Souza Andrade (1832–1902), conhecido por Sousândrade. Ele já utilizava, por exemplo, técnicas de colagem, polifonia e hibridismos de referências linguísticas, procedimen-tos não comuns naquele momento. Embora se destacasse pela “originalidade”, foi um autor pouco lido e considerado pelo crítico Antonio Candido (2014) um “poeta menor” no processo de construção do cânone literário brasileiro. Na década de 1960 a obra poética de Sousândrade despertará a curiosidade dos poetas concretistas Augusto de Campos e Haroldo de Campos, iniciando um interesse maior por sua criação poética. Para maiores esclarecimentos recomen-da-se consultar: campos, Augusto de; campos, Haroldo de. ReVisão de Sousândrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. Ver também: candido, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos 1750–1880. 15ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014.

58 Em uma de suas poesias mais conhecidas, denominada “pronominais”, Oswald de Andrade expressou de uma maneira sintética a sua proposta de renovação da língua, aproximando o

(campos, 2003). Para tanto, o autor do Manifesto Pau-Brasil é incisivo ao escrever o seguinte:

Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das ideias. A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos (andrade, o., 2012a, p. 466).

Todavia, o que os modernistas da envergadura de Oswald de Andrade procuravam era a sintonia entre a renovação e reinvenção linguística — “a contribuição milionária de todos os erros” — com a adoção do que haveria de “moderno” no exterior, ou seja, a paulatina atualização poética e artística do Brasil em relação ao que se produzia na Europa. Conforme ele diz: “não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros. Uma única luta — a luta pelo caminho. Dividamos: poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação” (andrade, o., 2012a, p. 467). Em suas palavras:

Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadro de carneiros que não fosse lã mesmo, não presta-va. A interpretação no dicionário oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho...Veio a pirogravu-ra. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas do ca-belo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho virado — o artista fotográfico (andrade, o., 2012a, p. 467).

português escrito do português falado. Assim diz o poeta: “Dê-me um cigarro/ Diz a gramáti-ca/Do professor e do aluno/E do mulato sabido/Mas o bom negro e o bom branco/Da Nação Brasileira/Dizem todos os dias/ Deixa disso camarada/Me dá um cigarro” (andrade, o., 2003, p. 167). Recomenda-se consultar o seguinte livro: andrade, Oswald de. Pau Brasil. 2.ed. São Paulo: Editora Globo, 2003. (Obras Completas de Oswald de Andrade).

Na visão do crítico Haroldo de Campos, “se quisermos caracterizar de um modo significativo a poesia de Oswald de Andrade no panorama de nosso modernismo, diremos que esta poesia responde a uma poética da radicalidade” (campos, 2003, p. 19). Ser radical, nestes termos, é trans-formar a consciência e a linguagem na sua raiz, isto é, alterar a realidade na qual a poesia estava imersa, ainda bastante tributária dos “mitos do bem dizer” (brito, 1974). Os “poemas-comprimidos” deste “dândi in-tuitivo” também estabelecem, ainda na década de 1920, um quadro de dilemas de sua poesia crítica, cuja “sintaxe nasce não do ordenamen-to lógico do discurso, mas da montagem de peças que parecem soltas” (campos, 2003, p. 35). Se olharmos por este ângulo, Oswald de Andrade não propôs meramente uma “reforma”, mas uma “revolução copernica-na” da linguagem poética, questionando a retórica na base, abandonan-do os conglomerados semânticos e a palavrosidade, reduzindo a poesia ao essencial (campos, 2003).

Haroldo de Campos argumenta que com a radicalidade da poesia oswaldiana estamos diante de um programa paulatino de “dessacraliza-ção da poesia”, através do despojamento da “aura” de objeto único que circundava a concepção poética tradicional (campos, 2003). Em con-sequência da “democratização estética nas cinco partes do mundo” de que fala Oswald de Andrade no Manifesto Pau-Brasil, o caráter “mági-co”59, “contemplativo”, “único” ou “aurático” da poesia entrou em proces-so de falência. Com o aparecimento de novas técnicas a arte se tornava

59 Walter Benjamin defendia que “a forma mais primitiva de inserção da obra de arte no contexto da tradição se exprimia no culto. As mais antigas obras de arte, como sabemos, surgiram a serviço de um ritual, inicialmente mágico, e depois religioso. O que é de importância decisiva é que esse modo aurático da obra de arte nunca se destaca completamente de sua função ritual” (benjamin, 1985, p. 171). Porém, com o avanço da “reprodutibilidade técnica” a obra de arte “se emancipa, pela primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do ritual. A obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de arte criada para ser reproduzida” (benjamin, 1985, p. 171). Para mais esclarecimentos recomenda-se consultar: ben-jamin, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora brasiliense, 1985.

cada vez mais reprodutível, atrofiando a sua “aura”. Mas, afinal, o que é a “aura”? Consideremos a definição de Walter Benjamin:

É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho. Graças a essa definição, é fá-cil identificar os fatores sociais específicos que condicionam o declínio atual da aura. Ele deriva de duas circunstâncias, es-treitamente ligadas à crescente difusão e intensidade dos mo-vimentos de massas. Fazer as coisas “ficarem mais próximas” é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fa-tos através da sua reprodutibilidade (benjamin, 1985, p. 170).

Ao invés da antiga unidade entre a forma e o conteúdo da poesia, que conservava o culto ao objeto único, a poesia de Oswald de Andrade se satisfaz das técnicas modernas da montagem e da objetivação, que-brando a expectativa do leitor, forçando-o a participar do processo cria-tivo. É uma poesia por contato direto, sem explicações, sem poetiza-ções (campos, 2003). A partir desta “reprodutibilidade técnica” e do manuseamento de novos meios de expressão, estamos diante de uma poesia de cunho alegórico, que se move através de uma realidade frag-mentada60. A “alegoria”, enquanto ruína e morte, se caracteriza pela

60 Em razão de apresentar este aspecto fragmentário, “as alegorias são, no reino dos pensamentos, o que as ruínas são no reino das coisas” (benjamin, 1984, p. 28). O oposto da “alegoria” é o “símbolo”, que aponta para o indissociável entre forma e conteúdo, assumindo a antiga função aurática da obra de arte, identificado por Walter Benjamin como uma fraude, no sentido de se mostrar hostil à vida (soares, p., 2010). Para mais informações, ver: benjamin, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. Consultar também: soares, Paulo Marcondes Ferreira. Um olhar sobre Oswald de Andrade e Walter Benjamin. In: A arte brasi-leira. Recife: Editora Massangana, 2010. (Coleção estudos da cultura. Série intersecções; v.6).

“inorganicidade não-aurática” da obra artística, capaz de revelar a con-trapelo o outro historicamente reprimido. Se o sentido da “aura” é o da aparição única da imagem longínqua, que aponta para a sacralização ab-soluta do outro; a imagem alegórica, em contrapartida, é o outro apreen-dido como fragmento (soares, p., 2010).

A estilística da poesia e dos poemas de Oswald de Andrade é enri-quecida pela presença e o uso das colagens e da paródia, misturadas ao humor sarcástico e irônico. Maria Eugenia Boaventura alega que a radi-calidade oswaldiana não pode ser compreendida sem a sua imersão nas convenções da vanguarda literária, o que inclui a adoção das técnicas de montagem e a incorporação da inventividade e da criatividade. A autora observa que desde os anos 1920 a experimentação passa a ser um proce-dimento fundamental da arte moderna. Com efeito, a prática da “cola-gem-citação punha-se a serviço da modernidade, auxiliando no rema-nejamento da técnica da escritura, na atualização e crítica da literatura anterior, na apreensão da realidade moderna e na reação ao individualis-mo” (boaventura, 1985, p. 131). Oswald de Andrade parecia estar cons-ciente desse desafio, ao propor a importância da síntese, do equilíbrio, do acabamento, da invenção e da surpresa, apontando, com isso, para uma nova perspectiva e uma nova escala, sob as quais pudesse a poesia Pau-Brasil se desenvolver livremente (andrade, o., 2012a).

O lema “ser ou não ser pau-brasil”, elaborado por Oswald de Andrade, reconhecia que existia no Brasil uma cultura de base dupla e presente, sintetizada na imagem da “floresta” e da “escola”. A floresta seria a tradi-ção “distante”, observada no passado pré-colonial, momento dos grandes “descobrimentos” e das conquistas. Já a escola seria a tradição “próxima”, podendo ser identificada na consonância com o vanguardismo da moder-nidade (helena, 1986). O primitivismo que abarca o processo de “reen-contro” entre essas tradições pode ser visto nos aspectos do cotidiano, através de um mergulho no dado local — seja ele “nacional” ou “regional” — em contato com o dado cosmopolita, desde que não se perca de vista a importância criativa do presente, recusando toda fórmula para a con-temporânea expressão do mundo, já que o fundamental é “ver com olhos

livres” (andrade, o., 2012a). Por isso mesmo, Oswald de Andrade afirma que “a Poesia Pau Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passari-nhos cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro compon-do uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o presente” (andrade, o., 2012a, p. 469). Ainda segundo o autor:

Temos a base dupla e presente — a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de “dorme nenê que o bicho vem pegá” e de equações.

Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas, nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau-Brasil.

[...] O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional. Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época

[...] O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica (andrade, o., 2012a, p. 470).

A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna.

Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem remi-niscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesqui-sa etimológica. Sem ontologia.

Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozi-nha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil (andrade, o., 2012a, p. 471).

Pode-se observar a problematização dessa dualidade entre tradição e modernidade pela articulação sustentada no intermédio de três temas

fundamentais: “a valorização dos estados brutos da cultura coletiva; a de-composição irônico-paródica dos suportes intelectuais da cultura brasilei-ra; a conciliação da “floresta e da escola”, ou seja, imbricar a cultura nati-va com uma outra atitude, intelectualizada” (helena, 1986, p. 72). Existia uma necessidade substancial em se falar “no Brasil” e não apenas “do Brasil”, expandindo para o mundo e integrando esse pensamento na cons-trução da identidade nacional. Sua meta era aliar as potencialidades do “arcaico”, do “moderníssimo” e do “moderno de província” (sterzi, 2011). O ideal do Manifesto Pau-Brasil é conciliar a cultura nativa e a cultura in-telectual renovada, a floresta com a escola “num composto híbrido que ratificaria a miscigenação étnica do povo brasileiro, e que ajustasse, num balanço espontâneo da própria história, “o melhor da nossa tradição líri-ca” com “o melhor da nossa demonstração moderna” (nunes, 2011a, p. 18).

3.2 A crítica antropofágica da cultura brasileira

A proposta de fazer do Brasil um país “exportador de cultura” não foi capaz de superar uma séria problemática que se impunha: a origem de tal cultura, sua natureza mais profunda e os mecanismos que a haviam acionado, carregando ainda o estigma de ser uma cultura “à parte” (fi-nazzi-agrò, 2003). A saída encontrada por Oswald de Andrade será fi-nalmente elaborada com a publicação do Manifesto Antropófago. Sua pri-meira “dentição” saiu na Revista de Antropofagia61, em maio de 1928, ano 374 da deglutição do Bispo Sardinha. Entre os principais colaboradores de Oswald de Andrade estavam sua esposa, a pintora Tarsila do Amaral, e os escritores Raul Bopp, Antônio de Alcântara Machado e Jaime Adour da Câmara.

Escrito em estilo bem humorado e crítico, atento ao papel aglutina-dor da cultura nacional, o Manifesto Antropófago exalta a importância da

61 A Revista de Antropofagia contou com duas “dentições”. A primeira circulou entre maio de 1928 e fevereiro de 1929, obtendo 10 números publicados. Já a segunda entrou em circulação entre março de 1929 até agosto do mesmo ano, com uma marca 15 números publicados.

ingestão e digestão cultural e seletiva como práticas necessárias à supera-ção de todos os recalques históricos. De acordo com Oswald de Andrade, “a Antropofagia foi na primeira década do modernismo o ápice ideoló-gico, o primeiro contato com nossa realidade política porque dividiu e orientou no sentido do futuro” (andrade, o., 1991, p. 111). Ao procurar responder à questão básica sobre “o que somos” ou “o que nos une”, “a metáfora antropófaga indica que o que nos une é o outro, é o fato de ele existir, de termos interesse por ele e sobretudo de querermos devorá-lo” (almino, 2011, p. 55). Com efeito, na Antropofagia existe uma proposta de abertura para o mundo. Essa proposição fica explícita nos primeiros trechos do Manifesto, vejamos:

Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os indi-vidualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupy, or not tupy that is the question.

Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do an-tropófago (andrade, o., 2012b, p. 497).

O que atrapalhava a verdade era a roupa, o impermeável en-tre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará (andrade, o., 2012b, p. 498)62.

62 Oswald de Andrade provavelmente se referia ao sentido libertário e ingênuo da nudez. Isso o levava a denunciar a roupa ou a vestimenta como o produto civilizacional de uma sociedade repressora e patriarcal, através da qual são erigidos comportamentos e normas que inviabili-zavam o livre contato com a verdade (aguiar, 2011). Os antropófagos associavam o homem livre ao homem nu. O homem do futuro, sem deus, sem propriedade e sem matrimônio. A roupa, portanto, impedia o acesso à verdade, ao natural e mesmo ao Ser. Nesses termos, a revolta antropofágica era voltada contra o homem vestido, contra a civilização “coberta” pelo colonizador e suas respectivas normas de conduta (nodari, 2011). Para mais informações

[...] Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, subur-bano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil63.

Uma consciência participante, uma rítmica religiosa (an-drade, o., 2012b, p. 498).

[...] Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na di-reção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.

[...] Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direi-to sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará (andrade, o., 2012b, p. 499).

O Manifesto surge do “anseio de readquirir e impor a qualquer custo uma identidade antagônica à européia; deste desejo de livrar-se para sempre do peso de séculos de sujeição cultural” (finzazzi-agrò, 2003, p. 620). Desse modo, a Antropofagia toma cada vez mais consciência de seu papel estético e social, originário de um país colonizado e com pretensão de definir-se em relação à cultura colonizadora. Questiona a estrutura política, econômica e cultural implantada pelo colonizador; a sociedade patriarcal com seus repressivos padrões de conduta; a imitação não di-gerida das influências da metrópole colonizadora e o indianismo em sua feição ufanista e romântica (helena, 1986). Mesmo com a expulsão da dinastia, alcançada com a independência política do Brasil, tornava-se

recomenda-se consultar: aguilar, Gonzalo. O Abaporu, de Tarsila do Amaral: Saberes do Pé. In: ruffinelli, Jorge; rocha, João Cezar de Castro (orgs.). Antropofagia hoje? Oswald de Andrade em Cena. São Paulo: É Realizações Editora, 2011. Ver também: nodari, Alexandre. A Única Lei do Mundo. In: ruffinelli, Jorge; rocha, João Cezar de Castro (orgs.). Antropo-fagia hoje? Oswald de Andrade em Cena. São Paulo: É Realizações Editora, 2011.

63 Alusão à extensão continental do Brasil e aos seus particularismos linguísticos, numa possível tentativa de reafirmar uma identidade distinta das tradicionais narrativas europeias.

necessário expulsar também o “espírito bragantino” e as ordenações, fa-tores centrais do nosso subdesenvolvimento cultural.

Os antropófagos brasileiros compartilhavam do sentimento de que em política o grito do Ipiranga “inaugurou a deformação da realidade de que ainda não nos libertamos e nos faz viver como num sonho de que só nos acordará alguma catástrofe benfeitora. Em literatura, nenhu-ma outra influência poderia ser mais deletéria para o espírito nacional” (prado, 2003, p. 90). Dessa maneira, o posicionamento de Oswald de Andrade se firmará contra as “elites vegetais” e as “elites gramaticais”, isto é, tanto em relação ao nosso passado rural, cujas elites “vegetavam” presas a terra num completo imobilismo crítico, quanto ao “purismo” acadêmico dos intelectuais (rouanet, m., 2011). Para tanto, um dos fo-cos prediletos da crítica oswaldiana está no repúdio à caracterização idealizada do indígena, promovida pelo Romantismo no século XIX. Em contraponto ao indianismo “enlatado”, escreve Oswald de Andrade:

[...] Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo (andrade, o., 2012b, p. 501).

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval64. O ín-dio vestido de Senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses (andrade, o., 2012b, p. 501).

[...] Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas cara-velas (andrade, o., 2012b, p. 502).

[...] Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade (andrade, o., 2012b, p. 504).

64 Também mencionado no Manifesto Pau-Brasil, o carnaval foi um dos elementos da cultura brasileira que Oswald de Andrade utilizou para posicionar-se contra o humanismo europeu (bucci, 2011). Por conseguinte, se nunca fomos catequizados, ao invés dos rígidos e engessa-dos padrões de conduta das metrópoles, exportaríamos para o mundo o nosso grande festim. Ver: bucci, Eugênio. A Antropofagia Patriarcal da Televisão. In: ruffinelli, Jorge; rocha, João Cezar de Castro (orgs.). Antropofagia hoje? Oswald de Andrade em Cena. São Paulo: É Realizações Editora, 2011.

Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilha-do de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz (andrade, o., 2012b, p. 504).

O “índio” oswaldiano não era o “bom selvagem” de Rousseau, idealizado por José de Alencar ou Gonçalves Dias, mas um devorador de valores que lhes são alheios, despindo-se das características que o submetiam aos pa-drões simbólicos da metrópole européia. Trata-se de um “indianismo às avessas, inspirado no selvagem brasileiro de Montaigne (Des Cannibales), de um “mau selvagem”, portanto, a exercer sua crítica (devoração) de-sabusada contra as imposturas do civilizado” (campos, 2003, p. 72). Simultaneamente, também é possível interpretar nas palavras de Oswald de Andrade a expressão utópica da volta ao passado, acrescido, porém, das conquistas proporcionadas pela modernização, através da ciência, da técnica e do progresso material (almino, 2011; pinto, m., 2011).

Em A crise da filosofia messiânica, Oswald de Andrade lembra que o homem moderno está imerso na síntese dialética entre a “natureza” e a “civilização”, tornando-o, portanto, um “homem natural tecnizado”, isto é, aquele que reúne em si certo primitivismo natural e o domínio da tec-nologia exigido pela modernidade (andrade, o., 2011). No Manifesto Antropófago esta abertura para o mundo moderno pode ser percebida com maior clareza quando Oswald de Andrade reivindica “a fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquina-ria. E os transfusores de sangue” (andrade, o., 2012b, p. 502).

O grupo reunido em torno da Antropofagia passa também a assumir o “ideário de uma assimilação/deglutição da voga modernista europeia, mas, com um claro propósito anticolonial enredado em tal procedimen-to” (soares, p., 2010, p. 11–12). Esse mecanismo transforma-se, ao mesmo tempo, em uma chave analítica de grande utilidade para compreender o Modernismo na América Latina, pois a Antropofagia é a “expressão poé-tica da superação da contradição dos países dependentes: uma vez que o artista vive a tensão entre o envolvimento e o distanciamento, a adesão e a negação crítica, a inocência e a ironia, a deglutição e a incorporação”

(soares, p., 2010, p. 14). Além disso, ao considerarmos a perspectiva de que os países latinos americanos compartilham uma situação perifé-rica em relação aos países colonizadores, pode-se compreender que a Antropofagia é a ponta de lança na definição de uma síntese anticolo-nial. Ela não funciona apenas como uma representação artística e cultu-ral, mas também como crítica social, política e econômica. Na percepção de Mariza Veloso e Angélica Madeira:

A antropofagia foi a metáfora que melhor exprimiu o gesto devorador, ao mesmo tempo primitivo e moderno, e per-mitiu formular novas sínteses, soluções jocosas para alguns dos paradoxos e dilemas da cultura brasileira, advindos da nossa situação colonizada e periférica (veloso & madeira, 1999, p. 106).

Seu lema reivindica, portanto, a deglutição do que vem de fora, sua mis-tura com as tradições brasileiras visando atingir um produto considera-do “nacional”, sem complexos de “inferioridade” com o que se produzia na Europa. Será com a Antropofagia que se passará a aceitar a cópia “re-generadora” e a “viver sem sentimento de culpa do pecado original de ter copiado” (bernd, 1992, p. 85). Para concretização de tal objetivo se-ria necessário a devoração ritual dos valores europeus, sob a qual, daria início, metaforicamente, à transformação radical do tabu em totem, com a substituição do Patriarcado, tradicional e opressor, pelo Matriarcado. As últimas linhas do Manifesto Antropófago transparecem bem essa posi-ção, quando Oswald de Andrade se posiciona “contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud — a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama” (andrade, o., 2012b, p. 506).

A tese central de Oswald de Andrade é a de que ao longo do pro-cesso histórico o mundo existiu através de duas formações sociais: o Matriarcado e o Patriarcado. A primeira se caracterizaria pela presença de uma “cultura antropofágica”, isto é, “a idade de ouro” das primeiras

experiências humanas, baseadas numa sociedade erigida sem a presen-ça das classes sociais, sem o Estado, sem a escravidão e sem o domínio do direito paterno. A segunda, por sua vez, seria a “cultura messiânica”, forjada na modernidade ocidental, constituindo-se pela manutenção das estruturas de poder, incluindo a presença do Estado, das classes sociais e da predominância do direito paterno sobre o direito materno. Na vi-são de Oswald de Andrade, a “cultura messiânica”, ao entrar em crise, será dialeticamente substituída por um retorno à sua formação inicial, ou seja, o Matriarcado, acrescida das conquistas tecnológicas (moraes, e., 1978; soares, p., 2010).

Todavia, como ocorreu a mudança do Matriarcado para o Patriarcado? A resposta de Oswald de Andrade é que “a ruptura histó-rica com o mundo matriarcal produziu-se quando o homem deixou de devorar o homem para fazê-lo seu escravo” (andrade, o., 2011, p. 81). Considera-se, deste modo, a atenção de Oswald de Andrade “em de-fender um novo tipo de sociedade para a humanidade. O Matriarcado, como propõe, devia, em contraposição à sociedade capitalista, basear--se na propriedade comum do solo, no direito materno e no Estado sem classe” (boaventura, 1985, p. 133). Era essa nova realidade que permiti-ria a entrada do Brasil no contexto da modernidade, exaltando-se os ín-dios devoradores de europeus com um intuito definido para descrever a originalidade da cultura brasileira (finazzi-agrò, 2003). A proposta era saber da existência de uma modernidade que se caracterizaria por “saber ingerir e digerir criativamente o que vem de fora. Mais do que isso, o que Oswald argumenta é que os brasileiros se dedicaram a essa prática desde o começo de sua história. E de uma maneira alegre e intuitiva” (oliven, 2011, p. 260). Porém, na acepção oswaldiana:

Só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia car-nal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se

torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo — a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chama-dos povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos (andrade, o., 2012b, p. 505).

Nesses processos contínuos de ingestão e digestão cultural, como afirma Finazzi-Agrò (2003, p. 621), o Brasil não estaria apenas atualizando-se em termos artísticos, mas principalmente reconhecendo e redescobrin-do a si mesmo por intermediação do olhar do “outro”, segundo o qual a cultura indígena se colocaria numa espécie de “futuro do passado” em re-lação à arte e à ideologia europeias. É possível observar essa reflexão com maior nitidez quando Oswald de Andrade faz as seguintes afirmações:

Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência co-dificação da Magia. Antropofagia. A transformação perma-nente do Tabu em totem (andrade, o., 2012b, p. 500).

[...] Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrea-lista. A idade de ouro.

Catiti Catiti

Imara Notiá

Notiá Imara

Ipejú65

A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabía-mos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais (andrade, o., 2012b, p. 501).

65 Na tradução de José Vieira Couto de Magalhães (1837–1898) essas palavras indicam o seguin-te: “Lua nova, ó lua nova, assoprai em fulano lembranças de mim; eis-me aqui, estou em vossa presença; fazei com que eu tão-somente ocupe seu coração” (magalhães, 2013, p. 162). Para mais informações recomenda-se consultar: magalhães, José Vieira Couto de. O selvagem. Salvador: Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro — CDPB, 2013.

[...] Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um siste-ma social-planetário (andrade, o., 2012b, p. 503).

[...] Somos concretistas. As ideias tomam conta, reagem, quei-mam gente nas praças públicas. Suprimamos as ideias e as ou-tras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas (andrade, o., 2012b, p. 505).

Percebe-se a inversão dos valores europeus e seu “abrasileiramento” an-terior — antes da Europa —, proporcionados pela prática antropofágica e sua assimilação crítica. Semelhante ao Manifesto Pau-Brasil, mas com níveis distintos de problematização da realidade brasileira, existe a preo-cupação de trabalhar com os elementos primitivos como fonte de inspi-ração para a reconstrução da vida espiritual e criadora (boaventura, 1985). Essas reflexões contidas no Manifesto Antropófago permitiram que Oswald de Andrade e seus contemporâneos interviessem imaginativa-mente em quaisquer situações modernas iniciais, despindo-as de sua cor idealista e revelando-as como esforços coloniais brutos (greene, 2011).

3.3 O elogio das regiões

Em contraposição a determinadas assertivas do Modernismo, cujo mar-co oficial foi a Semana de Arte Moderna de 1922, reunia-se na cidade do Recife um grupo de intelectuais e escritores que defendiam a conserva-ção dos valores regionais contra as ondas de “mau cosmopolitismo”. Tal grupo fomentará a realização do I Congresso Brasileiro de Regionalismo, movimento no qual Gilberto Freyre teria apresentado, em fevereiro de 1926, o programa que comporia o seu Manifesto Regionalista (oliven, 2006). O “pano de fundo” das suas ideias é a modernização capitalista que dá seus primeiros passos no decênio de 1920, com a “ampliação dos aglomerados urbanos, a expansão das relações mercantis, a urbanização e a decadência já em estado avançado da grande produção canavieira do Nordeste” (santos, 2011, p. 401).

A proposta central do Manifesto Regionalista foi apontar a impor-tância da reabilitação dos valores regionais e tradicionais do Nordeste, o que acabou ganhando a adesão de homens públicos e de ciência inte-ressados pelos problemas da região, além de estrangeiros, especialmente norte-americanos, franceses e alemães. Gilberto Freyre (1996) supunha que as reivindicações regionalistas comungavam de um sentimento co-mum: “à regionalidade”. Ela poderia ser entendida não apenas como o pertencimento geográfico a determinado lugar, mas, sobretudo, ao con-junto de características históricas e de vínculos que reconhecia a ne-cessidade da união entre as regiões, ao invés do isolamento político e cultural. Os principais componentes da regionalidade estariam presen-tes na cozinha, na arquitetura, na linguagem, na casa, no engenho, na “mestiçagem”, permeados pela paisagem em um trópico marcado pela sua especificidade cultural (seyferth, 2000). Para tanto, o sentido de regionalidade deveria estar acima do de “pernambucanidade do de pa-raibanidade ou do de alagoanidade de cada um; e esse sentido por assim dizer eterno em sua forma — o modo regional e não apenas provincial de ser alguém de sua terra” (freyre, 1996, p. 1).

Gilberto Freyre afirma que toda terça-feira um grupo “apolítico” de “Regionalistas” se reunia na casa do professor Odilon Nestor (1875–1968), em volta de uma mesa com sequilhos e doces tradicionais da região, onde se discutia, em voz mais de conversa que de discurso, os problemas do Nordeste. Porém, mais do que isso, “os animadores desta nova espécie de regionalismo desejam ver se desenvolverem no País ou-tros regionalismos que se juntem ao do Nordeste, dando ao movimento o sentido organicamente brasileiro e, até, americano” (freyre, 1996, p. 1–2). Gilberto Freyre dizia ser injusta qualquer proposição “separatista” ou “bairrista”, ou que suas prerrogativas fossem confundidas com “an-ti-internacionalismo”, “anti-universalismo” ou “anti-nacionalismo”. Ao contrário das adjetivações anteriores, ele alega posicionar-se a favor de um “unionismo” nacional — mas que partisse de articulações inter-re-gionais — que superasse o estadualismo, desenvolvido, segundo ele, lamentavelmente pela República. Em suas palavras:

Nosso movimento não pretende senão inspirar uma nova or-ganização do Brasil. Dar-se, antes de tudo, atenção ao corpo do Brasil, vítima, desde que é nação, das estrangeirices que lhe têm sido impostas, sem nenhum respeito pelas peculiaridades e desigualdades da sua configuração física e social (freyre, 1996, p. 2).

No que diz respeito a essa organização política, Gilberto Freyre asse-gura que a região vem sendo esquecida pelos legisladores e estadistas, preocupados com os Estados ao invés de se preocuparem com as “ar-ticulações inter-regionais”, pois, em sua perspectiva, é de regiões que o Brasil, sociologicamente, é feito, desde seus primeiros dias. Na sua acepção, “o conjunto de regiões é que forma verdadeiramente o Brasil. Somos um conjunto de regiões antes de sermos uma coleção arbitrá-ria de “Estados” (freyre, 1996, p. 2). O conceito de “região”, segundo a ótica freyriana, funciona com uma espécie de síntese dialética entre a “nação” e os “estados”. Ela seria, portanto, o “produto” mais acabado da nossa identidade. Nesses termos, é regionalmente que o Brasil deve ser administrado, sem oferecer riscos ao “sentido de sua unidade”. Todavia, podemos observar um paradoxo nas afirmações do autor, já que seus argumentos demonstram uma forte preocupação com os assuntos po-líticos da “região”, embora caracterize o grupo de regionalistas de que faz parte como “apolítico”. Portanto:

É paradoxal a tentativa de destacar o movimento regionalis-ta de Freyre como “um grupo apolítico”, na medida em que, após a apresentação dos principais envolvidos, o autor passa a desferir críticas justamente ao “estadualismo republicano” e a dar um encaminhamento cada vez mais programático ao mo-vimento. Isto o insere diretamente nos debates de então sobre República e Federação, sobre a nação e a região, questões tão em voga na discussão nacionalista e liberal do contexto (...). A política está presente no texto na forma de um projeto de in-tegração nacional que supere a fragmentação dos estados e se

consolide a partir dos diversos regionalismos. Esses são loca-lizados, portanto, não na divisão cartográfica e administrativa do país, mas nos múltiplos sistemas e conjuntos culturais que se distribuem no território nacional (santos, 2011, p. 403).

O protagonismo da região Nordeste é uma característica constante de todo o Manifesto Regionalista, não existindo região no Brasil que o ex-ceda em “riqueza de tradições ilustres e em nitidez de caráter” (freyre, 1996, p. 3). Isso ocorre porque vários dos seus valores regionais torna-ram-se nacionais mais pela “sedução moral” e pela “fascinação estética” do que por imposição de um padrão a ser seguido. O Nordeste contri-bui para o benefício do Brasil inteiro, e uma de suas principais tradi-ções é o açúcar, que está à base de uma doçaria rica como nenhuma. Em razão disso, o Nordeste tem o direito de considerar-se uma região que já grandemente contribuiu para dar a cultura ou à civilização brasi-leira autenticidade e originalidade (freyre, 1996). No entanto, nos úl-timos decênios “o Nordeste vem perdendo essa tradição para tornar-se apenas uma terra de relíquias: o paraíso brasileiro de antiquários e de arqueólogos” (freyre, 1996, p. 3). O motivo principal dessas instabili-dades estaria no “furor neófilo” dos dirigentes políticos, que, para pas-sar por adiantados e “progressistas”, optaram por imitar cega e desbra-gadamente a novidade estrangeira (freyre, 1996).

Gilberto Freyre também menciona a importância da preserva-ção social e ambiental dos mucambos, considerados um valor regio-nal, brasileiro e, principalmente, um valor dos trópicos, caracterizado pela “harmonização estética”. O problema do mucambo, todavia, não está na forma rústica como é construído, mas na sua localização em áreas hostis a saúde, próximos aos mangues, pântanos e alagados. A mesma preservação deve se processar com as velhas ruas estreitas do Nordeste. Elas seriam superiores as largas em pitoresco e higiene, além de transmitir o gênio dos mouros com suas “preciosas” ruas estreitas. Do mesmo modo, Gilberto Freyre se posiciona contrário à mudança dos nomes das ruas e lugares velhos para nomes novos, que apenas

servem de homenagem a “poderosos” e a “datas políticas insignifican-tes”66 (freyre, 1996). Seu argumento vai no sentido de reafirmar o se-guinte: se não é possível manter o passado intacto, o que resta é cultivar certas práticas, adaptadas aos novos tempos (santos, 2011).

Porém, o pecado maior contra a “civilização” e o “progresso”, o “bom senso” e o “bom gosto” e até os “bons costumes”, estaria na subs-tituição, na descaraterização e no abandono da arte dos quitutes e do-ces de tabuleiro pelos doces dos confeiteiros franceses e italianos. Daí aparece o legado da negra de tabuleiro para a conservação dos sabo-res da cozinha regional. Os doces feitos por elas são considerados uma arte e uma ciência regionais, muito encontrados em esquinas de ruas e próximos às igrejas (freyre, 1996). Contudo, aparentemente apenas a importação “recente” dos costumes modernistas parece preocupar Gilberto Freyre, não existindo da sua parte críticas negativas, ou pelo menos acentuadas, aos “modismos” do passado colonial, vistos como sinônimo de “autenticidade”. Consideremos o seguinte comentário:

O paradoxal é que a importação de comportamentos e práticas transladadas pela colonização abarcava a “inovação” escravista e outras sociabilidades europeias, lembremos o cristianismo, e é isto que alimenta a “pureza e autenticidade” da nação brasi-leira. A estas importações o texto não se refere. No Manifesto somente a importação cultural recente assume uma condição negativa àquela operada em um passado distante, diga-se colo-nial, e confunde-se, porém, com a autenticidade. O modernis-mo e a República, no entanto, são vestimentas estranhas à har-monia tropical. A contradição, contudo, ganha ares adocicados

66 Devemos entender, porém, que o conjunto das críticas de Gilberto Freyre ao novo modelo ur-bano que o Recife vinha adotando não significava uma negação absoluta das novidades arquite-tônicas, mas a defesa de uma adesão mais seletiva à modernidade. A preocupação do sociólogo pernambucano se voltava contra a “imitação” cega de “estrangeirismos” e a consequente “desca-racterização” do velho Recife e de suas peculiaridades locais. Se a modernidade era já era uma realidade concreta, tornava-se necessário, ao menos, incorporar ao espírito de renovação o zelo pelas tradições arquitetônicas, adaptadas ao meio tropical (oliveira, l., 2011).

e aos poucos vai sendo diluída pela redação do Manifesto, no inigualável estilo de Freyre (santos, 2011, p. 404).

Destacam-se, ainda, no seu estudo sobre a alimentação regional do Brasil, três regiões culinárias: a Baiana, a Nordestina e a Mineira. Conforme diz Gilberto Freyre, “a culinária baiana é decerto a mais poderosamente imperial das três, embora não seja a mais importan-te do ponto de vista sociologicamente brasileiro” (freyre, 1996, p. 5). Restam ainda outras tradições culinárias menos importantes, identifi-cadas cada uma por sua região típica: a região do extremo Norte, com a predominância da influência indígena; a região Gaúcha, com o tra-dicional churrasco e o sertão, com a presença da carne de sol, da fari-nha, da umbuzada, do requeijão, da canjica, da pamonha e da rapa-dura. Finalmente, temos a região das “florestas do centro do Brasil”, marcada pela utilização culinária do peixe de rio (freyre, 1996). No entanto, segundo Gilberto Freyre, todos os pratos tradicionais e regio-nais, incluindo até água de coco verde passaram a ser considerados ver-gonhosos frente ao avanço das comidas enlatadas e de conserva, neste “decadente Nordeste de usineiros e de novos-ricos”. O argumento cen-tral do autor é o de que “uma cozinha em crise significa uma civilização inteira em perigo: o perigo de descaracterizar-se” (freyre, 1996, p. 8). Caberia, porém, às mulheres a tarefa “salvacionista” de cultivar e man-ter a riqueza de tantas tradições da nossa arte culinária.

Na tentativa de sanar esses problemas o Congresso Regionalista fez os seguintes votos: Em primeiro lugar, propôs estabelecer no Recife um café ou restaurante a que não falte a cor local; em segundo lugar, su-geriu que os colégios de meninas estabelecessem cursos de cozinha; e em terceiro lugar, informou que todos quantos possuíssem em casa cadernos antigos de receitas cooperem para a reunião desse material. Contudo, percebe-se que na proteção da “regionalidade” existe uma “exacerbação da comida como componente representativo do “bom re-gionalismo”, evidenciada na forma panfletária de defesa de uma culi-nária ameaçada pela modernização” (seyferth, 2000, p. 181). Também

é notável a ênfase na criação de um ambiente onde só se vendesse re-médios da flora regional ou brasileira, além de uma loja de brinquedos e objetos da arte regional e popular. O argumento central de Gilberto Freyre, ao reafirmar a necessidade da preservação dos valores regionais, é o de que no Nordeste, “quem se aproxima do povo desce as raízes e as fontes de vida, de cultura e de arte regionais. Quem se chega ao povo está entre mestres e se torna aprendiz. É um contato que não deve ser perdido em nenhuma atividade de cultura regional” (freyre, 1996, p. 10). De acordo com Robson dos Santos:

A ambiguidade, a contradição e o paradoxo definem o Manifesto regionalista, mas não esgotam sua interpretação como intervenção cultural explícita de um grupo intelec-tual no contexto dos anos [19]20, bem como dos debates estéticos e políticos que o caracterizam. O projeto cultural do regionalismo de Freyre não se reduz a uma luta pela pre-servação de tradições culturais, mas irrompe também como disputa no cenário intelectual pela tomada e ocupação de posições sociais e simbólicas (santos, 2011, p. 406–407).

O motivo que leva Gilberto Freyre a pensar dessa maneira encontra jus-tificativa em sua própria concepção de Nordeste, região para ele carac-terizada pela “combinação”, pela “fusão” e pela “mistura”67. O Nordeste processa essas “combinações”, só que de maneira “equilibrada”, diferente de outras partes do Brasil, em que a herança cultural indígena, africana, portuguesa, espanhola, francesa, alemã, inglesa, holandesa, italiana e ju-daica convive com uma maior instabilidade de traços e formas (freyre,

67 Para obter informações mais sistemáticas sobre a definição da região Nordeste na obra de Gilberto Freyre, recomenda-se a leitura integral do livro: freyre, Gilberto: Nordeste: as-pectos da influência da Cana sobre a Vida e a Paisagem do Nordeste do Brasil. 7.ed. São Paulo: Global, 2004a. Sugere-se também a leitura do capítulo VIII: “raça, classe e região” do seguinte livro: freyre, Gilberto: Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 15ª ed. São Paulo: Global, 2004b.

1996). Outra característica da região Nordeste estaria na relação sim-biótica entre as árvores, as plantas e os animais, vistos como “membros da família” ou “gente de casa”. O autor conclui o Manifesto Regionalista com a assertiva de que infelizmente “a consciência regional e o sentido tradicional do Brasil vem desaparecendo sob uma onda de mau cosmo-politismo e de falso modernismo. É todo o conjunto da cultura regional que precisa ser defendido e desenvolvido” (freyre, 1996, p. 11).

3.4 Sentidos do “nacional” e do “regional”

Respeitando-se as peculiaridades de cada um dos três Manifestos descri-tos e analisados acima, teremos como objetivo central compreender em que medida seus pressupostos permitem explorar elementos que dizem respeito aos sentidos do “nacional” e do “regional”. Certamente, Oswald de Andrade e Gilberto Freyre foram autores com trajetórias distintas, o que repercutiu de forma significativa na maneira pela qual observaram a vida social e os desafios da modernidade, incluindo-se, por isso, como homens de seu tempo. Envoltos pela atmosfera de “renovação” dos anos 1920, eles levantaram alguns questionamentos semelhantes por vias di-ferentes, muitas vezes até opostas. Todavia, é preciso considerar que a própria iniciativa de lançarem Manifestos denota a necessidade em co-mum de estabelecer e divulgar, cada qual, suas ideias (mascaro, 2004).

3.4.1 O ufanismo crítico de Oswald de Andrade

Vimos que no Manifesto Pau-Brasil, Oswald de Andrade se refere ao sentido do “nacional” contrapondo a visão da “história oficial” brasileira com uma segunda visão, pautada na reconstrução paródica e bem hu-morada do colonizado, buscando ironizar e criticar a versão oficializada (sacralizada). Existe uma tentativa constante de juntar a “floresta” e a “escola”, isto é, o encontro da tradição pré-colonial com o mundo con-temporâneo e, nesse reencontro com o passado, uni-lo com as conquis-tas do presente. A sua intenção não é abandonar cada um desses polos

antagônicos, mas mantê-los vivos em busca da integração, existindo a necessidade de “conciliar o melhor do nosso lirismo e o melhor da nos-sa demonstração moderna” (moraes, e., 1978, p. 86). Nesse sentido, ele se propõe a “sintetizar uma concepção da cultura brasileira: uma cul-tura de tradição européia, mas que possui originalidade nativa outrora marginalizada” (helena, 1986, p. 73). Trata-se, portanto, de libertar essa originalidade — a brasilidade — a partir do equilíbrio entre um passado colonizado com uma modernidade efervescente.

Outro aspecto que vale a pena ser ressaltado é a atitude combati-va do Manifesto Pau-Brasil. Quando foi lançado em 1924, o texto de Oswald de Andrade recebeu uma forte reação por parte de intelectuais e escritores. Seus críticos reivindicavam um “nacionalismo ufanista” e diminuíam o Manifesto Pau-Brasil como sendo o eco de um “naciona-lismo afrancesado” (helena, 1986). A maior parte desses intelectuais se concentrava no grupo “Verde-amarelo” e, posteriormente, no “Grupo da Anta”, os quais defendiam uma posição essencialmente ufanista para a literatura e as artes. Eles encontravam na idealização do índio o sím-bolo de nobreza ancestral, que teria dado ao colonizador a primeira transfusão de sangue e deixado como herança seu substrato biológico (nunes, 2011a). Entre os seus principais representantes estavam os escri-tores Plínio Salgado, Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo e Cândido Mota Filho. Na década de 1930 a radicalização do “nacionalismo ufanis-ta” irá engrossar as fileiras do Integralismo, movimento ultradireitista alinhado ao fascismo italiano. Afastando-se dessa perspectiva, muitos modernistas, especialmente Oswald de Andrade e Mário de Andrade, queriam construir uma cultura nacional, mas sabiam que sem a cultu-ra universal a brasileira se torna provinciana ou desliza no exotismo. Entendiam, pior ainda, que a ideologia nacional-chauvinista deságua no fascismo (rouanet, s., 1993).

Em muitas partes do Manifesto Pau-Brasil a presença dos elementos que caracterizam os sentidos da nacionalidade se move pictoricamente numa reconstrução histórica do passado e na atualização crítica do pre-sente, tentando captar, em diálogo com a arte de vanguarda, os traços

psicológicos da nossa cultura. Eles podem ser encontrados na alusão a “formação étnica rica”, a “riqueza vegetal”, ao “minério”, a “cozinha”, além da menção ao “carnaval do Rio”, ao “passado bandeirante e comer-cial”, ao “bacharelismo”, ao “gabinetismo”, e na fixação de dados do co-tidiano. Entretanto, a operação mental que Oswald de Andrade propõe realizar com a exportação da poesia Pau-Brasil não deve ser confundida com a simples submissão aos modelos estrangeiros ou a adoção de um “nacionalismo xenófobo”. Ao contrário, a leitura oswaldiana da “nação” se esforçaria para colocar em prática “o que pode ser designado de “ufa-nismo crítico”: a coexistência de elementos burgueses e pré-burgueses na organização social brasileira, vista tradicionalmente como sintoma de atraso, ganharia uma reinterpretação otimista de atraso, até eufórica” (schwarz, 1987, p. 13).

Também é necessário dizer que ao falar sobre o país, as primeiras linhas do Manifesto Pau-Brasil transparecem a influência da pintora Tarsila do Amaral, particularmente quando Oswald de Andrade afirma: “a poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos” (andrade, o., 2012a, p. 465). Isso acontece porque na redescoberta dos “fatos” simples, Tarsila do Amaral “consegue a renovação da sua linguagem artística absorven-do as inspirações do modernismo francês, devorando-as antropofagi-camente, numa inovação com perspectivas que ultrapassam as nacio-nais” (schøllhammer, 2011, p. 276). Uma das inovações encontradas nos quadros da pintora está a conjugação simultânea da atração cubista pelas paisagens urbanas modernas e a procura de uma renovada icono-grafia nacional com preferência pelos ambientes rurais. Trata-se, por-tanto, de uma síntese temática e estilística que consegue, por um lado, “conciliar as diferenças entre as duas vertentes, funcionalizando racio-nalmente a composição das paisagens do interior e, por outro lado, inse-rindo elementos da natureza brasileira – uma palmeira, um cacto — nos motivos urbanos” (schøllhammer, 2011, p. 276–277).

Por conseguinte, com o movimento Pau-Brasil “preparamo-nos para adotar uma nova perspectiva do mundo da cultura. Ela deve romper

com as soluções importadas através da valorização dos elementos nacio-nais” (moraes, e., 1978, p. 84). Nas palavras de Paulo Prado: “já tardava essa tentativa de renovar os modos de expressão e fontes inspiradoras do sentimento poético brasileiro, há mais de um século soterrado sob o peso livresco das ideias de importação” (prado, 2003, p. 89). Tais avanços se desenvolvem no interior das mudanças que progressivamente ganharam força após 1922, com a realização da Semana de Arte Moderna e a insti-tucionalização paulatina do Modernismo. Conforme lembra Oswald de Andrade, “o trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional. Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época” (andrade, o., 2012a, p. 470).

Não obstante, a palavra “regional” não é utilizada aqui no sentido mais convencional, indicando sempre a existência de um determina-do lugar no espaço, mas sim no sentido do “mergulho” no dado local numa tentativa de demonstrar sua universalidade (candido, 2010a). A expressão “Ser regional e puro em sua época” foi a fórmula que Oswald de Andrade encontrou para quebrar a aura exótica da cultura nativa. Seu objetivo era que a poesia consequente a esse programa deixasse de ser a matéria-prima do exotismo, uma “especiaria estética destinada a tempe-rar o gosto do europeu num mundo já dividido em províncias, em regiões que se intercomunicam. Produto elaborado de fabricação doméstica, ela entraria, sem concorrência, no mercado mundial, pelas vias econômicas da exportação” (nunes, 2011a, p. 19). Conforme diz Haroldo de Campos:

Quando se lê no Manifesto Pau Brasil a expressão: “ser regio-nal e puro em sua época”, não se deve imaginar que estamos diante de uma proclamação regionalista, e sim da “volta ao sentido puro”, a qual deveria ser processada na tensão “dialé-tica do regional com o universal, na inflexão do “ser regional” com o “ser contemporâneo”. Ou: “Apenas brasileiros de nossa época”. Muito ao contrário do regionalismo ingênuo em que tantos se embaraçam, Oswald lucidamente soube inscrever seu pensamento na perspectiva carregada de vidência históri-ca (campos, 2003, p. 49).

Da mesma forma, deve-se considerar que os sentidos do “nacional” não se separam dos debates sobre a presença ou a exclusão da questão racial e étnica. Ainda que timidamente, os intelectuais dos anos 1920 tiveram que enfrentar o desafio de construir uma identidade nacional onde os grupos marginalizados pudessem ser descritos, mesmo com o risco de caírem na linha do exotismo e dos estereótipos. A meta era encontrar um tipo étnico específico capaz de representar a nacionalidade (velloso, 1993). No século XIX, por exemplo, vigorou o indianismo romântico de José de Alencar e Gonçalves Dias, mas, por outro lado, seguindo a mesma ten-dência das escolas literárias anteriores, o componente negro não aparecia com a mesma ênfase que o índio ou o branco. Roger Bastide nos alerta que “a poesia deveria expulsar o negro de seu seio, como imagem deplo-ravelmente desagradável” (bastide, 1997, p. 19).

Segundo H. Gomes (2011, p. 405), existe no Manifesto Pau-Brasil a ges-tação, de certa forma abortada, de um tratamento cultural potencialmen-te mais amplo e rentável da problemática racial brasileira. Já o Manifesto Antropófago, se comparado ao seu antecessor, “não contém referências nem remete à presença afro-brasileira, quer em termos populacionais, quer culturais” (gomes, h., 2011, p. 405). É importante salientar que “para proposta estético-filosófica da antropofagia, com o devoramento e diges-tão da história do Brasil e sua herança civilizatória, o repertório simbóli-co apoiava-se num referencial indígena, não africano” (gomes, h., 2011, p. 406). Além disso, o temor de encarar a questão negra, escamoteado no disfarce da indiferença, “revela-se com recorrência na expressão literária do Brasil da época colonial aos dias de hoje, passando naturalmente pelo modernismo e manifestando-se em eloquentes silêncios, meias-palavras ou discursos permeados por sugestivas ausências” (gomes, h., 2011, p. 407). Dessa maneira, o que de fato emerge no movimento modernista e, de certa maneira, no horizonte antropofágico, é a utopia do Brasil, não uma percepção consistente do Brasil (gomes, h., 2011).

Contudo, embora tenham enfoques distintos, o movimento antro-pofágico dá continuidade à perspectiva Pau-Brasil, com sua “crença na existência de uma realidade nacional subjacente que é preciso atingir, e

se inscreve, na medida em que o Pau-Brasil pode ser considerado como o denominador comum das diversas subcorrentes da brasilidade no pano-rama geral do segundo momento modernista”68 (moraes, e., 1978, p. 141). A expressão “tupy or not tupy”, inscrita nas primeiras linhas do Manifesto Antropófago, resume, segundo Finazzi-Agrò (2003, p. 621), a intenção poética e, ao mesmo tempo crítica, de fomentar algo novo e autêntico. Por um via intuitiva presenciamos o “dilema nacional” da nossa cultura, provinciana e periférica, mas também a capacidade da assimilação teórica e prática do universalismo, com vistas ao desenvolvimento e a atualização artística ajustada com a modernidade. Conforme defende o autor:

Na verdade, uma opção discriminante é logo assinalada por Oswald de Andrade; está aliás inscrita na abertura do “Manifesto Antropófago” e que acabou virando a frase em que todo o texto se resume: “Tupy or not tupy”. Opção radi-cal, que expressa, finalmente, a impossibilidade de se pensar e de se dizer a relação entre cultura dominante e dominada, senão do interior da segunda, ainda que ela possa estar estig-matizada, maculada e adulterada pela contínua prevaricação e sobrepujança da primeira (contaminada ou bastarda é, de fato, a citação paródica do To be or not be) (finazzi-agrò, 2003, p. 621–622).

De acordo com Nunes (2011b, p. 383), nossos antropófagos utilizaram a literatura como instrumento de rebelião individual, à maneira dos sur-realistas, e foram críticos da sociedade, da cultura e da história brasileira. Na definição de Maria Eugenia Boaventura, a Antropofagia repensou o balanço crítico dos saldos deixados pela rebeldia literária em 1922, parti-cularmente pela sua dimensão estilística, pela escritura desarticuladora e

68 O “segundo momento modernista” é a terminologia utilizada por Eduardo Jardim de Moraes (1978) para designar o conjunto gradual de mudanças ocorrido a partir de 1924, cujo foco era a pesquisa da brasilidade, e não apenas a luta contra o passadismo linguístico e artístico, empreendida pela Semana de Arte Moderna de 1922.

corrosiva, características muito comuns na Vanguarda histórica e absor-vidas pelos antropófagos brasileiros (boaventura, 1985). Para ela:

A antropofagia explora, até as últimas conseqüências, a or-dem ditada no “Manifesto”: “A alegria é a prova dos nove”. Este discurso da Vanguarda brasileira representa igualmente uma saída diante da rigidez da literatura oficial, um desdém por tudo, uma libertação. É o recurso usado como arma para minar a realidade e como alternativa para discussão mais acurada de certos problemas (boaventura, 1985, p. 27).

Se tomarmos como exemplo o modelo de análise literária da “dialéti-ca do localismo e do cosmopolitismo”, defendida pelo crítico Antonio Candido (2010a), a Antropofagia pode, em suas diversas faces interpre-tativas, ser compreendida como uma tentativa radical de realinhar e in-verter o fluxo e a maneira como o Brasil e as metrópoles europeias in-teragiam. Oswald de Andrade “critica o cosmopolitismo eurocêntrico que predominava na cultura de elite brasileira no século XIX e início do século XX, e que, na poesia, se exprimia através do parnasianismo” (al-mino, 2011, p. 57). Agora não é mais a metrópole que deve conferir sua visão de mundo à colônia, mas é a própria colônia que deverá deglutir o que de positivo existe na cultura do “outro” — metropolitana, cosmo-polita —, misturando-a em seus sulcos gástricos, para incrementá-la a um produto novo, renovado, sem ser uma mera cópia da primeira (fi-nazzi-agrò, 2003). Por esse motivo, o antropófago “surge na periferia para alimentar-se do colonizador e, dessa forma, dar sua contribuição local à diversidade das culturas. A antropofagia pressupõe, assim, um sistema mundial de contribuições nacionais singulares” (almino, 2011, p. 58). Sobre esta atitude de “devoração crítica” de Oswald de Andrade, já presente antecipadamente em 1924 no Manifesto Pau Brasil, Haroldo de Campos afirma que ela permitiu o seguinte:

Assimilar sob espécie brasileira a experiência estrangei-ra e reinventá-la em termos nossos, com qualidades locais

e ineludíveis que davam ao produto resultante um caráter autônomo e lhe conferiam, em princípio, a possibilidade de passar a funcionar por sua vez, num confronto internacional, como produto de exportação (campos, 2003, p. 48).

A Antropofagia oswaldiana adverte que dependemos relacionalmente do “outro”, pois somente pelo contato e pela assimilação crítica do mes-mo é possível se desviar do essencialismo de uma identidade nacional estática, fechada e exclusivista. Afinal, “o que somos é alimentado pelo que não somos. Por isso nossa identidade é sempre negativa. Aberta, nômade, inacabada, provisória” (rouanet, s., 2011, p. 52). Mais do que isso, a Antropofagia consiste em “negar todas as particularidades, em preservá-las e em integrá-las, dialeticamente, num universalismo con-creto que conserva e transcende as diferenças” (rouanet, s., 2011, p. 52–53). Passa-se a compreender que a “nação” ou, especialmente, a “cul-tura brasileira”, não é insular e voltada unicamente para suas supostas “raízes”, para o solo nacional, nem, por outro lado, “se insere, de for-ma secundária ou subordinada, numa civilização universal centrada na Europa. Está não apenas aberta ao outro, mas preparada para devorá--lo” (almino, 2011, p. 55). Pelo viés antropofágico, pensar no conceito de “nação” só faz sentido a partir de um “nós”, cujas fronteiras são na-cionais e multiétnicas (almino, 2011). Dessa maneira, foi sob a égide de Oswald de Andrade, segundo afirma Schwartz (1983, p. 48), que talvez tenham sido produzidos os postulados mais originais da vanguarda la-tino-americana. Na concepção de Jorge Schwartz:

Do ponto de vista da concepção de uma poesia de vanguarda, é Oswald de Andrade, sem sombra de dúvida, quem realiza a experiência mais avançada. Sua poesia “Pau Brasil”, segundo a batizou o próprio Oswald, determina-se a não mais imitar os modelos europeus. Segundo ele, a essa altura, as técnicas realizadas de reprodução mais que criar um efeito de “espe-lho”, aproximavam-se ao de uma “miragem” tropical. Assim é que Oswald decide incorporar o estrangeiro ao seu texto para

realizar uma obra de exportação. Daí a metáfora de devorar em forma antropofágica a cultura alheia e daí o conotativo tí-tulo “Pau Brasil”, matéria-prima de exportação durante a épo-ca da colônia (schwartz, 1983, p. 50–51).

Diferente, por exemplo, de Mário de Andrade, que se identificava como “um tupi tangendo um alaúde”, numa imagem que congregava a mistu-ra de culturas e a conjugação entre o primitivo e o civilizado, Oswald de Andrade, ao contrário, tenta representar a radicalidade da sua proposta antropofágica na apresentação de “bons dentes e de um grande estôma-go. Somos capazes de devorar o outro e, com isso, de regenerar nosso próprio tecido, produzindo o novo” (almino, 2011, p. 56). A metáfora antropófaga pretende, com isso, resolver o “dilema nacional/cosmopo-lita, já que o antropófago digere o estrangeiro, assimilando-o, assim, no seu corpo e eliminando a distância e a diferença que inicialmente os se-parava” (almino, 2011, p. 58–59). Portanto, o termo “Antropofagia” pode designar “tanto a devoração do civilizado pelo primitivo quanto o con-trário. Nessa perspectiva, a antropofagia supõe um princípio de não ex-clusão, definindo-se como um processo e um modo de relação orientados para uma síntese, qualquer que seja o ponto de partida” (vilar, 2011, p. 159). Conforme diz Eduardo Subirats:

O movimento antropófago foi visto como uma ramificação regional do futurismo e surrealismo europeus, uma tradu-ção tropical das vanguardas francesa e italiana, embora as visões de Oswald de Andrade e de Tarsila do Amaral sejam exatamente o oposto do culto futurista da máquina e do in-dustrialismo, e da metafísica surrealistas. De forma para-doxal e irônica, o que os surrealistas europeus buscavam numa ruptura heroica com os valores racionais do capita-lismo moderno e da tradição artística, Oswald de Andrade não tinha dificuldade de encontrar em um passado destruí-do e esquecido das civilizações brasileiras. A idade de ouro que a vanguarda europeia prometeu como futuro possível

foi lembrada como um passado cultural existente. A antro-pofagia brasileira abriu caminho na direção contrária da-quela da vanguarda europeia: em direção à reconstrução da memória histórica, a restauração de uma relação não hostil entre cultura e natureza, o prazer da nudez e a rejeição de uma opressão social muito formal (subirats, 2011, p. 265).

É através da junção do passado e do futuro, do primitivo e do civilizado, ou mesmo da subversão dos termos da “barbárie” e da “civilização”, que a “vara de condão” da Antropofagia torna o Brasil contemporâneo dele mesmo. A “revolução caraíba” que o Manifesto Antropófago se presta rea-lizar é o processo através do qual a utopia antropofágica pudesse se atuali-zar e se restabelecer. Sua ênfase está no passado anterior ao contato com o europeu, mas sem esquecer-se das conquistas da assimilação técnica e da ciência contemporâneas e de tudo o mais que o estômago nacional puder devorar e digerir. Este passado é descrito por Oswald de Andrade através do “Matriarcado de Pindorama”, ou “país das palmeiras”, expressão uti-lizada para se denominar o Brasil em língua nheengatu (almino, 2011).

O Matriarcado representava a nossa “idade de ouro”, o momento no qual existiriam as sociedades sem classes, em que havia uma proprieda-de comum do solo e em que predominava o direito materno (andrade, o., 2011). É a “descoberta” do Brasil que vai acabar com essa situação, pois “antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade” (andrade, o., 2012b, p. 504). Por meio deste artifício intuitivo, Oswald de Andrade tentou mudar o “marco” da compreensão da cultura brasileira para o momento em que o primeiro bispo português, o Bispo Sardinha, foi devorado pelos índios caetés69. Para o autor do Manifesto

69 Oswald de Andrade acrescentou dois anos ao tempo decorrido entre a morte do Bispo Sar-dinha e o ano de publicação do Manifesto Antropófago. Tudo indica que o poeta paulista não chegou a conhecer detalhadamente as cartas do “descobrimento”, onde já se noticia a Antropofagia contra europeus aportados em terras brasileiras. Embora pese as diferentes ver-sões, é a devoração do Bispo Sardinha que para Oswald de Andrade inaugura “a nova era” (schwartz, 2011). Para mais informações aconselha-se a seguinte leitura: schwartz, Jorge.

Antropófago, é no momento da deglutição do bispo Sardinha que come-çou a história do Brasil e sua cultura de devoração. Ele difere da maioria dos historiadores, que reivindicam a data de nascimento da história do Brasil com a chegada da expedição portuguesa liderada por Pedro Álvares Cabral em 1500 (costa, 2011). Também é incluído o dia 11 de outubro de 1492 como o último dia da América livre, já que após essa data Cristóvão Colombo chegaria ao continente americano, dando início à dominação europeia. Por isso mesmo torna-se necessário “descabralizar” o Brasil e “descolombizar” a América, apontando-se como caminho a operação prática e mental da Antropofagia. Ela seria, em outros termos, a mate-rialização da inversão, da resistência e da violência criativa e intuitiva do colonizado em relação ao colonizador (schwartz, 2011).

3.4.2 Gilberto Freyre e o Nordeste: o nacional é 3.4.2 Gilberto Freyre e o Nordeste: o nacional é RegionalistaRegionalista

É possível observar que a maneira com a qual Oswald de Andrade intui-tivamente pensou os sentidos do “nacional” e do “regional” guarda certa distância, mas também complementariedade, com certas interpretações levantadas por Gilberto Freyre. Muitas vezes estes autores adotam conclu-sões parecidas através de caminhos de análise distintos. Se no estudo dos Manifestos do poeta paulista tais sentidos podem ser apreendidos através da atualização “nacional” e “cosmopolita” da arte e da cultura brasileiras, numa possível renovação do nosso espírito primitivo e moderno, por ou-tro lado, o pensamento do sociólogo pernambucano sugere que o “na-cional” passa necessariamente pelo “regional” (oliven, 2006). É através de um itinerário cultural pelas tradições nordestinas que Gilberto Freyre deseja destacar a necessidade de que sejam “preservadas as práticas mais autênticas que definem a região e conformam a própria nação brasilei-ra. Isso é feito a partir de um esforço de compreensão do universal por

De Símios e Antropófagos: Os Macacos de Lugones, Vallejo e Kafka. In: ruffinelli, Jorge; rocha, João Cezar de Castro (orgs.). Antropofagia hoje? Oswald de Andrade em Cena. São Paulo: É Realizações Editora, 2011.

meio da apreensão de um particular extremamente delimitado e, além disso, socialmente vinculado” (santos, 2011, p. 406). Do mesmo modo que Oswald de Andrade, Gilberto Freyre persegue uma fórmula em que o “local” possa ser a expressão do “universal” (thomaz, 2015). Ambos têm em comum a preocupação com a cultura brasileira, pelo seu “pri-mitivismo”, pelos seus “enxertos” e sua forte capacidade de “assimilação” da alteridade.

O Manifesto Regionalista, por exemplo, tenta indicar que as temá-ticas regionalistas são importantes para compreender a dinâmica da construção e reconstrução da “identidade regional”, tomada também como expressão da “nacionalidade”, por meio do jogo simbólico evi-denciado nas referências ao movimento modernista de São Paulo reali-zado em 1922 (seyferth, 2000). Considerando a definição de Benedict Anderson (2007) de que a “nação” é uma “comunidade política ima-ginada” que possibilita o sentimento de pertencimento e comunhão, ou mesmo a definição de Max Weber (1946), para quem a “nação” é uma comunidade de sentimento que se manifesta adequadamente num Estado próprio, a “região”, por sua vez, segundo afirma Quintas (2007, p. 45), constitui o conjunto de vetores físicos e culturais delimitados pelo espaço. Decerto, o conceito de “região” não se limita apenas a fixação de uma realidade geográfica natural, mas comporta diversos significados.

A definição do Nordeste presente no Manifesto Regionalista é con-cretizada a partir de um “olhar pernambucano, apesar do englobamento da região geográfica que vai do Maranhão à Bahia. A representação da identidade está articulada à noção de cultura regional, cujos elemen-tos são buscados na tradição em contraposição à modernidade” (sey-ferth, 2000, p. 180). É a centralidade de Pernambuco e a configuração do Nordeste agrário dos antigos engenhos que fundamenta o conceito freyriano de região e os sentidos da regionalidade. E, mais do que isso, é a força simbólica na compreensão do Nordeste que, num certo plano, “transformou a região numa realidade política e culturalmente circuns-crita, apesar da qualidade fragmentada do seu regionalismo” (seyfer-th, 2000, p. 185). Para Ruben George Oliven, o Manifesto Regionalista

desenvolve basicamente dois temas interligados: “a defesa da região en-quanto unidade de organização nacional e a conservação dos valores regionais e tradicionais do Brasil, em geral, e do Nordeste, em particu-lar” (oliven, 2006, p. 44). De fato, essa proposta de reorganização do país visando consolidar a sociedade brasileira é formulada através de um modelo político-administrativo calcado na “região” enquanto ele-mento constitutivo da “nação” (oliven, 2006). Em razão desses fatores, chegamos a seguinte interpretação:

É na região rural do Nordeste dos antigos engenhos que a nação foi gestada e cultivada. Logo, nada mais natural que fornecesse as referências àquilo que de mais autêntico defi-ne a cultura nacional. O Manifesto alimenta-se do passado, extraindo dele as armas utilizadas no combate da sua con-temporaneidade. Aqui, é o passado nordestino-pernambu-cano que será concebido como portador das características mais profundas da nação. Esse passado, porém, não confi-gura uma simples abstração de um tempo remoto, mas se refere ao contexto colonial e à cultura canavieira (santos, 2011, p. 402).

As primeiras tentativas de Gilberto Freyre em dissertar sobre a re-gião Nordeste já podem ser encontradas nos seus artigos escritos para o Diário de Pernambuco, quando, ainda adolescente, vivia nos Estados Unidos, realizando seus estudos em Baylor e em Columbia. Tais artigos teriam sido reunidos pelo seu primo e amigo, José Antônio Gonsalves de Mello, em um livro intitulado Tempo de aprendiz. Gilberto Freyre teria acompanhado no exterior o que ocorria em sua província, tanto em relação aos fatos políticos e econômicos como, sobretudo, aos pro-blemas sociais e culturais (andrade, m.c., 2004). Ao voltar ao Recife, dedicou sua vida pública aos estudos, às pesquisas e ao jornalismo, se defrontando com um duplo desafio: o primeiro seria expandir, na re-gião, ainda que sob uma ótica conservadora e tradicionalista, a liberdade experimental da criação artística, defendida em São Paulo pela Semana

de Arte Moderna70. O segundo consistia em elaborar, por meio de um Congresso Regionalista, estudos que deveriam preservar os sentidos da “regionalidade”, através de uma atuação cultural e política que conectas-se numa “síntese dialética” os estados e a união. Lançavam-se as bases para a construção de uma possível integração da nação no fluxo cosmo-polita de uma civilização que, anos depois, Gilberto Freyre denominaria de “luso-tropical”.

Em seu livro Interpretação do Brasil, publicado em 1947, Gilberto Freyre reconhecia que o “Regionalismo” e o “Universalismo” se enri-quecem mutuamente. Para ele, mais importante do que discutir o “re-gional” versus “universal” é observar os casos concretos em que estes dois elementos se combinam e os padrões que devem ser aplicados a cada um (freyre, 2015). Através de tal artifício sociológico e antropo-lógico, Gilberto Freyre buscou atingir uma “confraternização” com o exótico e ao mesmo tempo a perpetuação do tradicional, recuperando traços do nosso Franciscanismo, Naturalismo e Lirismo. No artigo de-nominado “O português no Brasil: aventura de dissolução e rotina de conservação. Confraternização com o exótico e ao mesmo tempo per-petuação do tradicional”, Gilberto Freyre não recusava a possibilidade de que o “Regionalismo” e o “Universalismo” pudessem se combinar. Ele anunciava que tal combinação “se apresentava cada vez mais, como a solução dos problemas de ajustamento dos homens entre si e de todos aos recursos regionais da natureza: recursos vegetais, animais, minerais” (freyre, 2000, p. 5).

Ao falar da região Nordeste, Gilberto Freyre tentava descrever e ex-plicar a formação da sociedade patriarcal brasileira e da civilização do açúcar (lody, 2000). O comércio do açúcar dependia inteiramente do

70 Acreditamos que a visão de Gilberto Freyre é conservadora principalmente naquilo que diz respeito aos seus esforços para “conservar” os valores regionais e tradicionais do Nordeste ante ao avanço da “irracionalidade” moderna e o iminente “perigo” da “descaracterização cultural”. Para mais referências sobre o debate entre o “nacional” e o “regional”, ver: oliven, Ruben George. O nacional e o regional na construção da identidade brasileira. In: A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil-nação. 2. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2006.

braço escravo e da administração aristocrática do senhor de engenho. Entretanto, a maneira com que narra o Nordeste constrói-se no interior de uma lógica patriarcal, senhorial e escravocrata, a partir dos seus tra-ços e de suas supostas virtudes. No livro Nordeste, por exemplo, Gilberto Freyre afirma que na região açucareira, “mais do que nas Minas ou em São Paulo, o escravo se especializou na figura do negro fiel, capaz de dar a vida pelo seu branco. Na figura da mãe-preta. Da mucama quase pessoa de casa. Do malungo quase membro da família” (freyre, 2004a, p. 131). Além disso, na acepção de Freyre (2004a, p. 121), foi a partir do complexo açucareiro e patriarcal do Nordeste que devemos a criação do “homem do povo”: o cabra de engenho, o mulato, o caboclo, o capanga, o malungo, o moleque da bagaceira, o branco pobre, o pajem, o “amare-lo” livre, a mãe-preta, a mucama, a ama de leite tapuia ou negra, a cabra--mulher, o negro velho e o curandeiro. Em suas palavras:

Foi a monocultura da cana que criou condições de vida, de habitação e de alimentação particularmente favoráveis, pela relativa uniformidade ou quase semelhança dos processos e dos valores utilizados em cada uma daquelas esferas de população — na alta e na baixa — para a formação dos dois tipos de homem regional: o aristocrata e o homem do povo (freyre, 2004a, p. 122).

O Nordeste, portanto, seria uma região cultural e sexualmente “misci-genada” desde a sua formação, comportando um conjunto de tradições que deveriam ser preservadas e defendidas (freyre, 1968). Ainda que Gilberto Freyre descreva a violência do colonizador, sua descrição é permeada por uma narrativa um tanto “idealizada” e caracterizada por um suposto “equilíbrio” entre a cultura portuguesa, africana e indíge-na. Apesar disso, mesmo não abandonando o protagonismo de cer-tas áreas do Nordeste em suas reflexões, Gilberto Freyre não deixa de apontar para as consequências nefastas, particularmente ecológicas e humanas, do ciclo do açúcar. Tais reflexões se voltam para os efeitos da deterioração das matas, da poluição dos rios, da agressão à fauna e

a flora, e do estabelecimento de uma sociedade monocultora e escra-vocrata avessa à preservação da natureza. Esta denúncia, entretanto, é acompanhada pela nostalgia no abandono do passado “telúrico” e “pa-triarcal” dos antigos engenhos em relação ao moderno “imperialismo” das usinas, degradadoras não apenas dos traços da antiga civilização do açúcar, mas também do meio ambiente (freyre, 2004a; souza, r., 2009). Sua explicação para a diversidade ambiental do Nordeste, em certa medida estendida para outras regiões do Brasil, foi resultado dos seguintes componentes:

A doçura maior do português com relação à gente de cor; o hibridismo em que se abrandou tão cedo a colonização do Brasil, mesmo onde ela foi mais aristocrática pela sua origem e pela distância social imposta pela técnica de pro-dução a senhores e escravos, a brancos e homens de cor (freyre, 2004a, p. 136).

Igualmente, em seu livro Açúcar, Freyre (2007, p. 25) afirma que foi o Nordeste, através do prestígio quatro vezes secular da sua sub-região açucareira, não só no conjunto regional, como no país inteiro, que se apresentou como a área brasileira por excelência do açúcar, do bolo aris-tocrático, do doce fino e da sobremesa fidalga. Contraditoriamente, con-sumia-se também o bolo de rua e a rapadura. Nesses termos, existiria no Brasil uma “geografia do doce” em que a excelência da arte de sobre-mesa encontraria, regional e sociologicamente, o seu primado na região Nordeste. A doçaria seria, portanto, a única arte que verdadeiramente nos “honra”. Isso porque “numa velha receita de doce ou de bolo há uma vida, uma constância, uma capacidade de vir vencendo o tempo sem vir transigindo com as modas nem capitulando, senão em pormenores, ante as inovações, que faltam às receitas de outros gêneros” (freyre, 2007, p. 32). Obviamente, a doçaria não cumpriria apenas uma tarefa gastronô-mica, mas expressaria, assim como a música, a arquitetura e o futebol, a “diminuição” das divisões entre as classes, as raças e as culturas, cada vez mais em processo “harmônico” de interpenetração (freyre, 2007).

Sendo a doçaria um valor “regional”, “nacional” ou mesmo “trans-regional”, o gosto pelo sabor açucarado, por sua vez, é explicado, em grande medida, pelo contato com os árabes, durante os oito séculos de ocupação da Península Ibérica e pela abundância da cana de açúcar no Nordeste brasileiro. Consequentemente, haveria os portugueses se habi-tuado a consumir doces açucaradíssimos, se distinguindo dos europeus do Norte. Para Gilberto Freyre o açúcar “adoçou” tantos aspectos da vida brasileira que não se pode separar dele a civilização nacional. Foi nas ter-ras do Brasil que essas tradições ganharam sabores novos, misturando-se com as frutas dos índios e com os quitutes dos negros, tornando-se uma expressão verdadeiramente brasileira. Em outras palavras: “não há arte mais autenticamente brasileira que a do doce e a do bolo dos engenhos do Nordeste e do extremo Norte” (freyre, 2007, p. 66). Não obstante, tudo isso foi condicionado pela realidade tremenda da escravidão. Na acepção do autor:

Sem a escravidão não se explica o desenvolvimento, no Brasil, de uma arte de doce, de uma técnica de confeitaria, de uma estética de mesa, de sobremesa e de tabuleiro tão cheias de complicações e até de sutilezas e exigindo tanto vagar, tanto lazer, tanta demora, tanto trabalho no preparo e no enfeite dos doces, dos bolos, dos pratos, das toalhas e das mesas. Só o grande lazer das sinhás ricas e o traba-lho fácil das negras e das molecas explicam as exigências de certas receitas das antigas famílias das casas-grandes e dos sobrados; receitas quase impossíveis para os dias de hoje (freyre, 2007, p. 70).

Referindo-se, por exemplo, ao período da colheita da cana, fase da pro-dução que exigia maior esforço físico da mão de obra escrava, o autor afirma, com igual teor saudosista e senhorial, o seguinte: “era o tempo de negro gordo e de boi gordo. De negro são e de boi gordo. De negro são e de boi sadio. Os quais também se regalavam no tempo de verão com os cajus de que no litoral se espaçava o chão nas terras de engenhos

favorecidos com cajueiros” (freyre, 2004a, p. 126). Deve-se destacar ain-da que, no seu esquema teórico, o mestiço brasileiro, especialmente o da zona canavieira nordestina, teria uma estabilidade de traços semelhante à do polinésio, podendo-se, no futuro, falar-se em uma “raça” ou “quase--raça brasileira” de homem moreno do Nordeste, caso a estabilidade dos seus elementos tradicionais não sofram a influência perturbadora e vio-lenta de uma imigração massiva estrangeira (freyre, 2004a). De acordo com Gilberto Freyre:

Dentro da civilização do açúcar — que por algum tempo constituiu quase toda a civilização brasileira — o pernam-bucano foi a especialização mais intensa das qualidades e dos defeitos dessa organização monocultura, monossexual, e principalmente aristocrática e escravocrática. Organização cheia de contrastes. Inimiga do indígena. Opressora do negro — embora menos que a mineira ou a paraense. Opressora do menino e da mulher — embora ostentando uma galanteria, um cavalheirismo, uma devoção pelo “belo sexo” que nenhu-ma outra civilização brasileira ostentou com tanto brilho no passado (freyre, 2004a, p. 194).

Ainda segundo o autor, mesmo as regiões do extremo sul ou do extremo norte do Brasil que foram, nos séculos coloniais, exceções ostensivas ao sistema patriarcal dominante nas demais áreas da América Portuguesa, marcaram ainda a paisagem com sinais de domínio ou formas de arquite-tura patriarcais, “alusitanando ou abrasileirando definitivamente espaços por algum tempo indecisos entre as duas coroas ibéricas — a de Espanha e a de Portugal — o sistema patriarcal já desenvolvido nas áreas mais an-tigas de colonização agrária e pastoril do país” (freyre, 2004b, p. 61). Destaca-se ainda que a região Sul foi, para Freyre (2004b, p. 62), orienta-da e protegida pelo Estado, composta por uma população mestiça, indí-gena ou de origem castelhana, impregnada pelo paternalismo dos padres da companhia e por soldados aventureiros, não tardando a estender-se o privatismo patriarcal e o familismo tutelar, dominante nas áreas mais

antigas da América Portuguesa. Mais uma vez foi o “protagonismo” da fa-mília patriarcal ou tutelar, e não a igreja ou o Estado, o principal elemento sociológico de “unidade” brasileira (freyre, 2004b).

De fato, através da breve discussão acima, tivemos como objetivo compreender que a construção dos sentidos do “nacional” e do “regional”, trabalhados por Oswald de Andrade e Gilberto Freyre, constituem um es-forço conceitual muito amplo, o que abarca, obviamente, diversas dimen-sões da vida social. Para ambos, estas noções poderiam ser problematiza-das pela assimilação entre o “dado local” e o “dado cosmopolita”. Todavia, enquanto Oswald de Andrade assume tal ideário pela via do contato com as vanguardas, num gesto de atualização através da “inversão”, da “nega-ção” e da “desconstrução” paródica das imitações não digeridas, munido pelo encadeamento das assimilações antropofágicas, Gilberto Freyre, por outro lado, reivindica um conjunto de “articulações inter-regionais”, por meio das quais a “regionalidade” pudesse ser o motor representativo da “nação”. Como vimos, isso só seria possível caso fosse conservado o su-posto “equilíbrio” das tradições originárias, pois Gilberto Freyre acredita-va na capacidade de “absorção” da alteridade, dentro de um “universalis-mo” que teria seu foco irradiador o conjunto das regiões. W

3.5 Interpenetrações entre o “nacionalismo” e o “regionalismo”

Através dos debates intelectuais e do conjunto de mudanças idealizado pelos grupos modernistas, podemos destacar duas grandes tendências na literatura brasileira do começo do século XX: o “nacionalismo” e o “regio-nalismo”. Neste tópico, debateremos em primeiro lugar algumas questões que dizem respeito ao nacionalismo, aproveitando-nos de algumas ideias presentes no pensamento de Oswald de Andrade que inclui, direta ou in-diretamente, a defesa de um cosmopolitismo de viés antropofágico, isto é, aquele que grosso modo se alimenta da deglutição das culturas estran-geiras. Em segundo lugar, faremos uma rápida análise do regionalismo de Gilberto Freyre, característica bastante pertinente em seus estudos e que não anula suas preocupações com uma dimensão nacionalista e universal.

Cada uma dessas tendências, com suas especificidades e diversida-de de sentidos, tornou-se parte importante das reflexões modernistas, uma vez que o maior desafio da nossa intelligentsia era a organização e a construção da “unidade nacional” (velloso, 1993; veloso & madei-ra, 1999). Oficialmente, desde os acontecimentos de 1922 e a adoção, em seguida, de diferentes posições na compreensão social e política da brasilidade, transparecida, por exemplo, na elaboração de Manifestos Artísticos, vivenciou-se a busca pela composição de uma cultura “ge-nuinamente brasileira”, seja ela “antropofágica” ou um “híbrido luso-co-lonial”. Ambas, declara Santos (2011, p. 407), se mobilizaram a partir de uma interpretação da “autenticidade” e da “inautenticidade” nacional e exprimiram a procura de uma “explicação” autóctone para as práticas sociais e culturais que conformaram e constituem o Brasil.

Conforme diz Leyla Perrone-Moisés (2016), em grande medida, o nacionalismo se desenvolveu através do apego de um grupo a seu terri-tório e a seus valores. No caso do Brasil e de outros países da América Latina, este processo se acentua no século XIX, que o acolhe como uma forma de pensamento oportuna e ligada ao clima da independência política, e que na literatura repercutiu no interior dos principais qua-dros do Romantismo. Todavia, diferente do nacionalismo europeu, na América Latina, de um modo geral, e no Brasil, em particular, tal pro-cesso de constituição do “nacional” se desenvolveu de maneira distinta, pois diferente do Velho Continente, não se tratava de dar forma a ele-mentos preexistentes, mas de inventar essa forma, destacando-se das antigas metrópoles (perrone-moisés, 2016). Entretanto, a tentativa de definir a nossa “originalidade” em relação à Europa também constituiu um dos principais paradoxos do nacionalismo brasileiro e latino, já que a construção de nossas particularidades não se separava da influência histórica e cultural das metrópoles.71 (perrone-moisés, 2007).

71 Para mais informações sugere-se a leitura do seguinte livro: perrone-moisés, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo: paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

A leitura oferecida por Leyla Perrone-Moisés (2007, 2016) nos cha-ma atenção apenas pelos novos olhares sobre a construção paradoxal do nacionalismo brasileiro e latino-americano, com referências à Europa. Mesmo não negando a importância de suas análises, concordamos, primeiramente, com a perspectiva de Benedict Anderson (2008), para quem teria existido um protagonismo maior dos países latino-ameri-canos no que tange ao ideal de nação, o que implicaria também uma postura de reação e de alternativa ao nacionalismo europeu. Esta con-tradição é identificada por Antonio Candido (2010a) através do balanço dialético que constitui a dinâmica da história nacional, seja em seus as-pectos políticos seja em seus aspectos literários. Considerando que ain-da no século XIX vivenciamos um conjunto de tentativas de expressar a nacionalidade, cujo foco era a instauração de uma identidade, a ideo-logia nacionalista que deveria caracterizá-la foi inspirada em matrizes de dentro e de fora do Brasil, naquilo que Candido (2010a, p. 117) defi-ne como a tensão entre o dado local, isto é, a “substância” brasileira da expressão literária, e o dado cosmopolita, entendido como a “forma” ou parte dos moldes herdados das tradições europeias. São estas experiên-cias e (des)encontros entre o “nacional” e o “estrangeiro” que fazem da contradição o dado formador de nossa reflexão crítica desde os tempos da independência (schwarz, 1987).

Eric J. Hobsbawm (2013) observa que na modernidade, logo após a Primeira Guerra Mundial, entre os anos de 1918 e 1950, o nacionalismo alcançou seu ápice e levantou questões que dizem respeito ao Estado-Nação e à unidade política, incluindo a nova divisão internacional do trabalho fomentada pela globalização. Isto nos leva a pensar as transfor-mações com as quais o nacionalismo se relaciona, estimulando, junta-mente com o Estado, o surgimento do sentimento de “nação”. No come-ço do século XX as consequências do nacionalismo também se fizeram presentes em diferentes momentos da literatura brasileira72. Segundo

72 Destacam-se na literatura brasileira da primeira década do século XX o nacionalismo ufa-nista do Conde de Afonso Celso (1860–1938), autor do livro Porque me ufano de meu país

Monica Pimenta Velloso, as questões em torno da nação e do naciona-lismo aqueceram o debate intelectual modernista, “criando cisões, con-fusões e alianças. Se, de certa forma, a idéia do Brasil como conjunto cultural que se impõe pela sua originalidade é unânime, a constatação do fato não dilui as divergências” (velloso, 1993, p. 8). É neste con-texto de perturbação com os rumos da cultura que os Manifestos de Oswald de Andrade e Gilberto Freyre se destacam. A preocupação com a valorização das tradições culturais e folclóricas é plenamente encam-pada pelos modernistas. Recuperá-las, como afirma Monica Pimenta Velloso, “significa construir a identidade brasileira, sem a qual seria impossível ao país afirmar sua autonomia no panorama internacional” (velloso, 1993, p. 6).

Começando o nosso debate por Oswald de Andrade, pode-se dizer que o seu pensamento possui “uma constante justaposição de forças em oposição. Essas incluem o nacionalismo característico da moder-nização brasileira por um lado, e a radicalidade da vanguarda artística internacional, por outro” (jackson, k., 2011, p. 429). As forças reunidas em torno da Antropofagia oswaldiana abrangem as centrípetas — o na-cionalismo de periferia — e as centrífugas, isto é, a lição do desafio van-guardista e as múltiplas fontes do povo brasileiro (jackson, k., 2011). Entre as ironias de Oswald de Andrade, a principal talvez seja a figura de um “selvagem filosófico”, que institivamente “apresenta soluções aos impasses da civilização ocidental. Outra seria a localização da cultura brasileira na floresta, no auge da modernização urbana de vanguarda” (jackson, k., 2011, p. 433).

(1900) e a militância do poeta Olavo Bilac (1865-1918), idealizador da união entre as ativida-des militares e intelectuais, com o claro objetivo de manutenção da ordem, num ato cívico e patriótico. Além disso, em 1915, na conferência denominada “A unidade da pátria”, o escritor e jornalista, Afonso Arinos (1868–1916), pregava a necessidade de uma campanha destinada a criar a “nação”, pois teríamos até então apenas um “vasto território”. Durante a década de 1920 os modernistas do verdamarelismo tentaram dar uma continuidade radical a esta linha de pensamento, apropriada, posteriormente, pela ideologia nacionalista do Estado Novo (1937–1945) e pela ditadura civil-militar (1964–1985), marcadas pelo culto intransigente e autoritário ao hino nacional e a bandeira do Brasil (velloso, 1993).

Mesmo com o risco de tornar-se um nacionalista atípico, ao ver na Antropofagia a solução redentora para o Brasil, o poeta paulista desta-cou que sem o contato com as vanguardas e, através delas, sem a assi-milação crítica das técnicas modernas, a cultura brasileira poderia se transformar numa “triste xenofobia”, bem ao modo do nacionalismo ufanista dos verde-amarelos73 (rouanet, s., 1993). Nesse sentido, não devemos nos esquecer da influência do marxismo e das ideias anar-quistas embutidas nas reflexões de Oswald de Andrade, especialmente no que tange ao aspecto internacionalista da modernidade em detri-mento do isolamento das províncias, das regiões e das nações. Como afirmam Marx e Engels (1986), a estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se a cada dia mais impossíveis, pois o capitalismo avança em ritmo e velocidade mundiais, tornando a “interdependência” das na-ções e das economias uma nova realidade74

73 Entre os intelectuais deste grupo, especialmente, Plínio Salgado, Menotti del Picchia, Cas-siano Ricardo e Cândido Mota Filho, a busca pela expressão do nacional deveria ocorrer pela recorrência a uma suposta “essência” da nacionalidade, o que fez com que entre eles as vanguardas deixassem a preocupação dominante com a arte e assumissem uma direção mais abertamente política (lima, 2011). Segundo eles, a nossa identidade se apoiaria numa mítica oposição entre o tupi e o tapuia: “todas as formas do jacobinismo na América são tapuias. O nacionalismo sadio, de grande finalidade histórica, de predestinação humana, esse é forço-samente tupi” (picchia, et al., 2012, p. 508). Para mais informações, ver: lima, Luiz Costa. A Vanguarda Antropófaga. In: ruffinelli, Jorge; rocha, João Cezar de Castro (orgs.). An-tropofagia hoje? Oswald de Andrade em Cena. São Paulo: É Realizações Editora, 2011. Con-sultar também: picchia, Menotti del et al. Manifesto Nhengaçu Verde-Amarelo. In: teles, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia & modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.

74 Contudo, a aproximação de Oswald de Andrade e do grupo antropofágico com as ideias de esquerda não ocorreram de imediato, mas paulatinamente. Baseando-se em informações dos anos 1920, E. Moraes (1978, p. 158) afirma que ainda no segundo texto do primeiro número da Revista de Antropofagia pode-se notar, por exemplo, a recusa do jesuitismo, das formas sistemáticas de apreensão do real, e a adoção antropofágica não apenas das teses políticas do marxismo, mas também do fascismo, desde que caminhem na direção da libertação do homem. A atitude da revista com relação ao marxismo é sempre a da recusa da sua institucio-nalização, associada a uma forma de disciplinização. Com o passar das edições, porém, ficam cada vez mais presentes referências a textos clássicos da literatura marxista. Apesar disso,

Tanto o Manifesto Pau-Brasil quanto o Manifesto Antropófago vêm propor a “defesa” e a “ilustração” da cultura brasileira, cultura feita de enxertos e que se constitui pela relação com tantas outras (rouanet, m., 2011). Sobre este aspecto em particular, a Antropofagia talvez seja a ideia mais sofisticada de Oswald de Andrade, pois permite que se desenvol-va um modelo teórico de apropriação universal da alteridade. Mais do que isso, a sua teoria exige uma releitura antropológica da Antropofagia, uma vez que o próprio movimento do olhar antropológico, “ultrapassa fronteiras nacionais, oferecendo um modelo fecundo para refletir sobre a transmissão de valores em situações culturais assimétricas” (rocha, 2011a, p. 13). Adotando tal linha de raciocínio, Sérgio Paulo Rouanet (2011) identifica, fundamentalmente, duas formas pelas quais a propos-ta oswaldiana foi interpretada ao longo das últimas décadas no Brasil, reatualizadas, por um lado, pelo nacionalismo ufanista e xenófobo de província — a Antropofagia caeté — e, por outro lado, pela absorção dos valores externos e cosmopolitas — a Antropofagia tupinambá. Em suas palavras, permeadas de raro humor sarcástico, o autor se posiciona da seguinte maneira:

Contra a antropofagia caeté, pela antropofagia tupinambá. Os caetés nunca saíram de Pindorama. Os tupinambás via-jaram muito. Por isso a antropofagia dos caetés é provincia-na. A antropofagia dos tupinambás é cosmopolita. Os caetés se gabam de terem comido um bispo português. Coisa de nada. Foi uma pequena fome, uma anêmica fome anticleri-cal, que gerou um canibalismo chauvinista, incapaz de alte-rar os rumos da história mundial. Antropofagia periférica. Os tupinambás têm uma grande fome, que não recua diante da própria cultura tupinambá. Antropofagia autofágica da

nada garante que o movimento antropofágico tenha adotado o marxismo como orientação doutrinária, muito embora as orientações políticas direitistas fossem cada vez mais afastadas, voltando-se mais para o aproveitamento das teses esquerdistas do comunismo, ao menos em sua versão utopista, do que para o fascismo.

grande taba do mundo. Ecumênica. Os caetés são filhos da sua tribo. Comem e absorvem, comem e expelem, mas só absorvem o que for útil para a tribo, só expelem o que não for bom para a tribo. Os tupinambás, não. Sabem ser nati-vos, mas também sabem ser exilados, e enquanto exilados veem tudo de fora, julgam tudo de fora, e decidem absorver ou expelir segundo critérios diferentes dos critérios tribais. Os caetés querem ter raízes. Os tupinambás querem ter asas (rouanet, s., 2011, p. 49).

Ao contrário do nacionalismo xenófobo verde-amarelista, sempre fecha-do em seus limites geográficos e simbólicos, a Antropofagia tenta oferecer um quadro de possibilidades de ação e criação num universo de perma-nente devoração75. Isto não significa “abdicar do nacional em detrimento do universal, do local em detrimento do global, pois, se o universalismo pode ser visto como uma invenção eurocêntrica, a universalidade não tem centro” (almino, 2011, p. 62). Tal projeto intuitivo, embora muito ou-sado, deve também reunir o “descentramento”, o “nomadismo”, o “sincre-tismo” e a “exterioridade” de proposições e resultados. Figueiredo (2011, p. 389) supõe que a sugestão de Oswald de Andrade procurava resolver os impasses anteriores que haviam marcado a reflexão sobre a cultura no Brasil. A Antropofagia tornou-se a chave para superar tanto o “idealismo ufanista romântico” quanto o “pessimismo determinista” que direcionou

75 Entretanto, a opção verde-amarelista pelo elemento indígena é compartilhada por Oswald de Andrade, muito embora existam nuanças entre os dois. Os verde-amarelos, reunidos em torno da figura de Plínio Salgado, acreditavam que o índio foi destruído pelo colonizador, mas se mantém vivo na alma brasileira como símbolo de ancestralidade e de pacifismo. Já Oswald de Andrade e a Antropofagia supunham que o índio devorou violentamente o por-tuguês e absorveu os elementos úteis presentes na civilização invasora. Existe, porém, uma afinidade bastante nítida entre os verde-amarelos e Oswald de Andrade que não pode ser descartada. Para ambos a brasilidade não precisava ser “pictórica” ou “descritiva”, mas deve emergir do contato com as camadas mais profundas da realidade da nação. Além disso, a maneira de percebê-la não ocorre reflexivamente por meio da via analítica, mas pelo con-tato sentido com o subsolo da nação, isto é, através do aprofundamento sentimental pelo Brasil (moraes, e., 1978).

os intelectuais do final do século, influenciados pelo cientificismo et-nocêntrico europeu (figueiredo, 2011). Sobre estes paradoxos do na-cionalismo brasileiro, consideremos o trecho abaixo:

A fórmula encontrada pelo modernista, combinando sen-timento nacionalista e cosmopolitismo, elegendo o híbrido em detrimento das categorias puras e excludentes, nasce da necessidade de criar novos parâmetros de pensamento que permitissem ultrapassar as dicotomias que vinham balizan-do o pensamento sobre a cultura no país e que atualizava sempre o mesmo esquema: ou a defesa de um nacionalismo essencialista e fechado ou a apologia de um universalismo modernizador que significava completa submissão a mode-los culturais europeus (figueiredo, 2011, p. 389).

Mesmo buscando trilhar caminhos alternativos ao ufanismo patrio-teiro dos verde-amarelos, Oswald de Andrade parecia estar consciente de que entre nós o dilema nacional/cosmopolita era provinciano. A defesa do nosso cosmopolitismo parecia central, mas a necessidade da afirmação nacional e independentista, ou de aspiração cosmopolita, já denotaria, entre nós, uma condição periférica e marginal (almino, 2011). Aos seus olhos, o desafio do Brasil estava em triturar o legado da cultura europeia imposta como modelo civilizatório e profundamente entranhada em nossos ritos e mitos eruditos (barbieri, 2011).

Com a metáfora da poesia Pau-Brasil na defesa de uma arte de exportação as propostas primitivistas se destoam da onda ufanista do nacionalismo que começava a assolar o meio cultural brasileiro (boaventura, 1985). Posteriormente, na fase antropofágica, Oswald de Andrade buscava “superar” os limites da identidade nacional. Considerada nesses termos, a Antropofagia torna-se um procedimen-to universal de contínua produção e assimilação crítica da alteridade, dentro de um processo permanente de mudança e incorporação. Ao contrário da simples ideia de uma identidade nacional estável e fixa, o procedimento antropofágico leva consigo a devoração constante de

dados, o que implica também a existência de uma realidade assimé-trica e conflituosa, permeada por lutas favoráveis ou desfavoráveis nos diversos aspectos das assimilações (rocha, 2011b; rincón, 2011).

A partir de agora daremos início a uma breve análise do regio-nalismo, incluindo a perspectiva de Gilberto Freyre sobre o assunto, acentuando não apenas esta dimensão conceitual do seu pensamento, mas também o nacionalismo, muitas vezes implícito, presente em al-gumas de suas abordagens. Será na busca por problematizar a constru-ção da “nação” através da reunião de dados oriundos de cada “região” que o regionalismo irá ascender paulatinamente como categoria lite-rária e política, quase sempre em declarada oposição ao Movimento Modernista, também em crescimento. Ao invés de ser uma simples subcorrente menor dentro das discussões modernistas, o regionalis-mo aparece como uma “mediação necessária para se atingir a nacio-nalidade, assegurando o ingresso do país na modernidade. No quadro internacional, a parte Brasil deve ser apreendida como uma totalida-de indivisa, coesa e unitária” (velloso, 1993, p. 10). Por isso mesmo, Quintas (2007, p. 45) nos informa que o conceito de “regionalismo” diz respeito aos padrões atinentes a um grupo cultural que pode estar in-serido em um dado espaço ou dele transcender, importando para ou-tros lugares os pressupostos valorativos que o balizam e, deste modo, se inscrevendo dentro do processo civilizatório. Admitindo a perti-nência de outras definições para este problema, reflitamos, todavia, a seguinte afirmação:

O regionalismo não pode ser compreendido em oposição ao universalismo. Esse aspecto é de natureza primordial para um bom discernimento do postulado. Um depende do outro para que se assentem em estacas duradouras. Do con-trário, prevaleceriam extremos inaceitáveis. Da pequena al-deia de Tolstoi se desenhará o mundo, assertiva de caráter indiscutível. A linha de intersecção que cabe entre a parte e o todo estabelecerá a primazia da unidade (quintas, 2007, p. 45–46).

Porém, foi nas relações com o Movimento Modernista que as ideias Regionalistas puderam gradualmente se desenvolver, ao trazerem ou-tras perspectivas de pensar os problemas regionais dentro de um con-junto de narrativas diversas. O desafio que se impunha estava no fato de que para se estudar um país tão extenso e diversificado como o Brasil era necessário pensá-lo regionalmente, mesmo para entendê-lo nacionalmente (chacon, 2000). Em 1926 a suposta leitura do que viria a ser o Manifesto Regionalista76de Gilberto Freyre representou, direta ou indiretamente, a adesão a esta perspectiva e um protesto contra a homogeneização, uma crítica ao estilo citadino de vida e a cultura ur-bana ocidentalizada, ainda que para isso tivesse que adotar uma pos-tura tradicionalista e conservadora, que o aproximava, em parte, dos nacionalistas e regionalistas do grupo verde-amarelo (velloso, 1993). De acordo com Elide Rugai Bastos:

O pensamento de Gilberto Freyre se constitui em um com-ponente essencial do bloco de poder que se forma e desen-volve a partir de 1930. Em especial, legitima cientificamente o vasto segmento agrário e tradicionalista, sem deixar de indicar a necessidade de transformação do mesmo, mos-trando que precisava equacionar-se no âmbito de um blo-co de poder que começava a se esboçar, comprometendo a agricultura com a indústria, o campo com a cidade, o

76 Se por hipótese os pronunciamentos de Gilberto Freyre em 1926 laçariam as bases do Mani-festo Regionalista, não podemos ignorar o contexto histórico da década de 1920, marcado pela crise da República Velha. De alguma maneira, a reação do autor contra os “efeitos negativos” da modernidade, que alterava a paisagem tropical e a herança patriarcal do Nordeste, foi também uma reação pela preservação do poder político e econômico das oligarquias rurais em processo de declínio e perda de prestígio. Mesmo que a perda de poder econômico e de prestígio político não expliquem por si só o desenvolvimento de perspectivas localistas, Elide Rugai Bastos (2006) alega que “nunca, antes da década de 1930, os setores dominantes agrários tiveram tão grande ideólogo. E, nunca, uma interpretação sobre os mesmos tão gran-de sucesso” (bastos, e., 2006, p. 48). Para maiores esclarecimentos recomenda-se consultar: bastos, Elide Rugai. As criaturas de Prometeu: Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira. São Paulo: Global, 2006.

patriarca com o burguês, o camponês com o operário (bas-tos, e., 2006, p. 197–198).

No caso específico dos verde-amarelos, rememorava-se o período co-lonial como o momento áureo de nossa civilização devido à “integra-ção pacífica” entre o elemento colonizado e o elemento colonizador, resultando numa concepção da cultura brasileira como uma esfera isenta de conflitos, onde reina a “integração” e a “harmonia” (vello-so, 1993). Grosso modo, apesar das flagrantes semelhanças, talvez a principal diferença entre as interpretações dos verde-amarelos e as de Gilberto Freyre esteja na hierarquização das características do com-ponente integrador e daqueles submetidos ao seu domínio. Enquanto os primeiros elegeram a “plasticidade” do bandeirante como veículo necessário ao florescimento da “civilização mameluca”, através da sua “integração pacífica” com os índios do tronco Tupi em oposição ao Tapuia, Gilberto Freyre, por outro lado, apostou na “plasticidade” e na “vocação” do português para a vida nos trópicos, por meio da lar-ga “miscigenação” com os negros e, em certa medida, com os índios (freyre, 2006). Deve-se ressaltar ainda que, diferente dos verde-ama-relos, o autor do Manifesto Regionalista não se declarava “anti-interna-cionalista”, posicionando-se apenas contrário ao suposto “irraciona-lismo” que as proposições modernistas pareciam enaltecer com suas ondas de “mau cosmopolitismo” (freyre, 1996).

Encontramos em Gilberto Freyre uma defesa concreta das regiões, o que não significa, obviamente, a ausência de preocupações com os problemas que dizem respeito ao nacionalismo (chacon, 2000; mota, 2014). Se em Oswald de Andrade (2012a, 2012b) os principais dilemas da cultura brasileira poderiam ser resolvidos a partir do diálogo entre o dado nacional e o dado universal, como antropofagicamente propu-nha, em Gilberto Freyre esses desafios adquirem outra cor. Embora procurasse uma fórmula em que o “local” pudesse ser a expressão do “universal”, pela ótica freyriana uma região “pode ser politicamente menos do que uma nação. Mas vitalmente e culturalmente é mais do

que uma nação; é mais fundamental do que uma nação; é mais funda-mental que a nação como condição de vida e como meio de expressão ou de criação humana” (freyre, 2015, p. 102). Além disso, a faceta na-cionalista de Gilberto Freyre se encontra tanto na teoria da “miscigena-ção” racial do Brasil quanto na atribuição da língua portuguesa enquan-to elemento que garante a “unidade” nacional. Esta situação demonstra as confluências entre o “nacionalismo” e o “regionalismo” freyriano, ra-tificado por Giralda Seyferth da seguinte maneira:

O regionalismo defendido por Gilberto Freyre é, princi-palmente, um regionalismo pautado na tradição que não interfere com a identidade nacional — implícito na forma como seus elementos constitutivos são construídos através da culinária, da arte, da paisagem, dos tipos humanos, etc. Ao contrário da diversidade cultural produzida pelos imi-grantes, o regionalismo é algo positivo porque não altera o princípio do nacionalismo — aqueles elementos que junta-mente com a miscigenação, plasmaram a unidade do País (seyferth, 2000, p. 183).

Porém, conforme diz Cláudia Castelo (1998), para além do regionalismo, as primeiras referências concretas ao nacionalismo na obra de Gilberto Freyre ganham maior visibilidade com a elaboração da doutrina lu-so-tropicalista, cujos fundamentos já podem ser encontrados no livro Casa-grande & Senzala, publicado em 1933. De certa forma, o “luso-tro-picalismo” não indica somente a postura nacionalista do sociólogo per-nambucano, mas, paradoxalmente, o seu “cosmopolitismo” — de viés co-lonialista — pois os trópicos exercem o forte poder de assimilação das diferentes culturas, ultrapassando as fronteiras imaginárias de cada na-ção77. Será apenas em 1951, com a visita de Gilberto Freyre a Portugal e

77 Na definição de Castelo (1998, p. 39), o luso-tropicalismo de Gilberto Freyre acentua a ten-dência da generalização de que o “sucesso” da “mestiçagem” brasileira pudesse ser aplicado a todos os espaços colonizados por Portugal. Os fatores culturais portugueses, em contato

às colônias portuguesas no continente africano, que o luso-tropicalismo amadurece como a doutrina oficial do colonialismo português. Suas ten-tativas de construir, através de bases sociológicas, o imaginário positivo de uma grande civilização tropical e mestiça, tendo por base a suposta “plasticidade” do colonizador português, podem ser consultadas em dois livros publicados no final de 1953: Aventura e rotina e Um brasileiro em terras portuguesas. Neste último, surge pela primeira vez o termo “luso--tropicalismo”, concepção que será desenvolvida de maneira mais acaba-da em livros posteriores: Integração portuguesa nos trópicos, publicado em 1958 e, muito especialmente, em O luso e o trópico, publicado em 1961 (castelo, 1998).

Acusado de circunscrever seus estudos regionais apenas às restritas áreas de Recife e Olinda, ou mesmo de limitar a compreensão do Brasil ao perímetro açucareiro da zona da mata pernambucana, Gilberto Freyre tece algumas ressalvas, numa tentativa de reafirmar a validez de sua tese. Em resposta, o autor passa a fazer diversas referências às regiões e sub--regiões brasileiras que teria visitado no intuito de coletar informações sobre as culturas locais. Ele reconhece, entretanto, que ainda falta muito a conhecer e ver, não se sentindo ainda autorizado a atribuir às suas su-gestões pretensões transregionais, alcançando o tão almejado aspecto de generalidade que para seus críticos estaria ausente em suas proposições. Na introdução à 2ª edição do livro Sobrados e Mucambos, por exemplo, Gilberto Freyre descreve as viagens feitas por terra e pelas águas do lito-ral brasileiro com o fim de procurar levantar semelhanças e diferenças daquilo que considerava ser as áreas mais características do Brasil.

com qualquer região, povo ou cultura das terras quentes, dariam origem ao mesmo proces-so simbiótico de criação de sociedades luso-tropicais. Todavia, desde cedo o embasamento científico do luso-tropicalismo foi questionado tanto por ativistas dos movimentos africa-nos de libertação quanto por historiadores, antropólogos e outros investigadores sociais, que passaram a analisar tal concepção como resultado de um estudo ideológico e não científico (castelo, 1998). Para uma leitura mais abrangente recomenda-se consultar o seguinte livro: castelo, Cláudia. O Modo Português de Estar no Mundo: O Luso-Tropicalismo e a Ideolo-gia Colonial Portuguesa (1933–1961). Porto, Edições Afrontamento, 1998.

Fazendo menções indiretas à sua equipe de pesquisa, Freyre (2004b, p. 69) diz que às viagens pelo Brasil percorreu Angra dos Reis, Campos, Vassouras, assim como outros pontos de interesse sociológico, e não apenas paisagístico, do litoral e do interior do Rio de Janeiro. Outros pontos mencionados abarcam o litoral e o interior agrário de São Paulo, que para o autor deveriam ganhar maior atenção dos paulistas. Também entram na lista de viagens alguns trechos do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Sergipe, Bahia, Pará, Piauí, Ceará, Minas Gerais e Maranhão. Cada uma destas áreas guardariam traços de semelhança ou contraste com os da área agrária ou açucareira do Nordeste. De todas estas áreas que foram citadas, Gilberto Freyre diz que o Maranhão seria a mais desconhecida, tanto quanto o Mato Grosso, Goiás e o Amazonas, este último, anuncia em seu relato, conhecido apenas do alto de um avião. Tais viagens atestam as tentativas em reafirmar não apenas as diferenças, mas também as semelhanças entre as regiões. Sobre isso, Gilberto Freyre afirma o seguinte:

Que existem no Brasil consideráveis diferenças de região para região e até de sub-região para sub-região ou de pro-víncia para província, nenhum estudioso de ciência social familiarizado com a situação do nosso país é capaz de ne-gar. Somos, há anos, dos que vêm procurando pôr em des-taque não só tais diferenças como a conveniência de as con-servarmos, em vez de nos submetermos a qualquer espécie de nacionalismo antirregional que tenda a esmagá-las ou anulá-las. Mas o estudo das diferenças não nos deve fazer esquecer o das semelhanças. Nem o critério de espaço fí-sico nos deve fazer abandonar, em estudos sociais, o do es-paço social, dentro do qual podem estender-se complexos sociais, ou de cultura, de configuração própria e até capri-chosa (freyre, 2004b, p. 73).

Todo o seu trabalho de coleta, no entanto, é sempre no sentido da afir-mação e não da negação da importância regional do Nordeste açucareiro

e patriarcal, o qual teria emprestado seus traços culturais, materiais ou imateriais, ao restante do Brasil. O extremo-sul ou extremo-norte, por exemplo, por serem regiões de infiltração mais recente, são considera-das manchas de exceção, talvez transitórias, quando comparadas com o Nordeste ou o Centro do Brasil, regiões de colonização mais antiga. De acordo com tal argumentação, a principal diferença entre o Sul e o Norte reside nas variações do sistema patriarcal. Na região Sul o sistema patriarcal teria sido mais importante em termos de quantidade do que em termos de qualidade, ao contrário do Norte, região em que a quali-dade se sobrepôs a quantidade (freyre, 2004b). O seu esquema teóri-co, portanto, é impregnado por um “regionalismo” favorável ao conjun-to de “articulações inter-regionais” que “unam” todo o Brasil, mas que identifica todas as regiões situadas além do Nordeste patriarcal como simples apêndices ou “exceções ostensivas” do mesmo, projetando suas características, físicas e culturais, ao conjunto das outras regiões. Em suas palavras:

O que houve de região para região, de área para área, de subárea para subárea, dentro do complexo patriarcal no Brasil, repita-se que foi diferença antes de intensidade que de qualidade de característicos comuns aos vários tipos de sociedades baseadas sobre a monocultura latifundiária e patriarcal (freyre, 2004b, p. 77).

Ainda assim, conforme argumenta Manoel Correia de Andrade (2004), Gilberto Freyre não descreveu a região Nordeste de maneira uniforme, ao chamar a atenção para uma aglutinação de regiões e sub-regiões que se estendiam desde o Maranhão até a Bahia. Esta região foi povoada desde os primeiros séculos de colonização e estrutura, por meio de cul-turas diversas, “uma sociedade com características próprias, mas tendo por base três categorias que se entrecruzavam: o latifúndio como for-ma de propriedade, a monocultura como forma de exploração econô-mica e a escravidão como instituição de classe social” (andrade, m.c;

2004, p. 16). Nesse sentido, ao analisar as particularidades da sociedade patriarcal, salientava a importância do aspecto cultural dominante em várias regiões, além da diversificação da exploração da terra e a criação das identidades locais. Mas, ao diversificar os vários nordestes, Gilberto Freyre voltou-se, sobretudo, para aquele da cana-de-açúcar, que melhor conhecia, de onde se originara e onde disporia de uma maior docu-mentação e de informações. Subjetivamente, dava maior importância ao Nordeste canavieiro do que ao “outro” Nordeste, semiárido algodoeiro e pastoril (andrade, m. c., 2004).

O agreste e, muito especialmente, o sertão, não aparecem nas aná-lises regionalistas de Gilberto Freyre com a mesma ênfase que a Zona da Mata. Em Nordeste, a sua descrição do interior, cuja paisagem era marcada pelo “ranger de raiva terrível das areias secas do sertão”, em contraste com a “doçura das terras de massapê”, começou a ser refuta-da e contestada. Para Sylvio Rabello (1969), o cultivo da cana não ficou restrito apenas às terras de massapê e parece uma generalização afirmar que na secura das caatingas exista somente “areia rangendo debaixo dos pés”, ou “paisagens duras doendo nos olhos”, ou “bois e cavalos angu-losos”. Ao contrário dessa visão, existiria no sertão, mesmo que em in-tensidade muito menor, pequenas manchas verdes e terras de massapê, igualmente férteis e humosas, perdidas na vastidão das caatingas. Josué de Castro (2007) também compartilha dessa crítica. Segundo ele, não é só deste tipo de solo de decomposição do arenito que é formada toda a capa agrológica da região. Ainda que sejam manchas limitadas, em cer-tos pontos, principalmente “nas depressões e nos baixios, surgem man-chas bem mais férteis de solos argilosos, mais ou menos vermelhos, ou mesmo de barro escuro, formando os tabuleiros aluvionais e as várzeas de tabuleiros” (castro, j., 2007, p. 160).

No entanto, a produção da cana prestava-se a finalidades diferentes. Enquanto na Zona da Mata predominou a monocultura do açúcar, ba-seada no grande latifúndio, nos grandes engenhos e na mão de obra es-crava, nos sertões a produção teria se voltado mais para o consumo do-méstico da rapadura, fundamentado na pequena propriedade familiar,

na utilização de pequenas engenhocas de madeira e, de forma mais lar-ga, no trabalho livre e na policultura (rabello, 1969). Embora Gilberto Freyre reconhecesse em tais áreas a importância econômica, lúdica e nutritiva na produção da rapadura, seu estudo não apresenta a mesma atenção com que descreve a sociedade açucareira da Zona da Mata, par-ticularmente aquela mais restrita ao litoral pernambucano. Ainda que o regionalismo freyriano não fuja de uma lógica “essencialista” na carac-terização da “regionalidade”, segundo Duarte (2004, p. 136), dois aspec-tos devem ser considerados. Em primeiro lugar, Gilberto Freyre dese-java privilegiar o Nordeste e a força criativa dos seus “antagonismos em equilíbrio”, em detrimento de outras áreas reputadas como berço da na-cionalidade. Em segundo lugar, ele teria descartado a acusação de redu-zir o Brasil ao “regionalismo”, já que teria caracterizado o Nordeste prin-cipalmente pelo seu “cosmopolitismo” e seu “universalismo cultural”78.

A sua unidade de análise mais importante, todavia, sempre foi o Nordeste pernambucano e açucareiro, criador, mais do que qualquer outra região, de valores políticos, estéticos e intelectuais (freyre, 2004b). Segundo as observações de Manoel Correia de Andrade (2004), Gilberto Freyre observou o Nordeste a partir de Pernambuco, como se “entendesse que o ponto central do mesmo fosse a cidade de Recife, e que daí partiram, em várias direções, as características regionais que iam se diluindo à proporção que se caminhava deste centro — Recife e região açucareira — nas mais diversas direções” (andrade, m.c., 2004, p. 13–14). Até mesmo o passado bandeirante, aparentemente despren-dido de formas e de costumes patriarcais, foi portador e disseminador

78 Na acepção de Valéria Torres da Costa e Silva (2009), Gilberto Freyre não se fechou apenas na perspectiva “regionalista”. A autora enfatiza que em livros como Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos, por exemplo, Gilberto Freyre ofereceu novos quadros para pensar-mos o Brasil e não apenas uma região isolada. Acreditamos, apesar disso, que o autor não abandonou o diálogo com os aspectos regionais da “fundação” e da “formação” brasileira, perseguindo, com seu estilo peculiar, uma fórmula em que a defesa das “articulações inter--regionais”, presente no Manifesto Regionalista, pudesse ser um motor potencialmente viável para as representações da nação.

desses valores regionais pela vasta área do território brasileiro (freyre, 2004b). Para Freyre (2004b, p. 67), foi à sombra das casas-grandes e dos sobrados patriarcais que as conquistas de ordem material e imate-rial puderam ganhar a solidez necessária. Mais uma vez Gilberto Freyre persegue a ideia de que a “região” narra a “nação” e a ela se integra por meio de “articulações inter-regionais” e “transregionais”, seja ao nível da administração política das regiões seja ao nível dos intercâmbios entre as culturas regionais.

Desse modo, tanto o “nacionalismo” quanto o “regionalismo” lite-rário, vistos como elementos da história intelectual brasileira, não se separaram dos paradoxos que giraram em torno das noções de “auten-ticidade” ou “imitação”, criação original ou cópia, importado ou nati-vo, enfim, polos que fixaram visões de mundo e posições estéticas an-tagônicas (santos, 2011). Tentamos observar, através das reflexões de Oswald de Andrade e de Gilberto Freyre, que as contradições entre o “autóctone” e o “estrangeiro”, o “nacional” e o “regional” se inserem no amplo conjunto de contradições que permeia a formação cultural brasi-leira. Não obstante, estas descontinuidades foram vistas a partir de suas determinadas convergências e distanciamentos, dado também o modo heterogêneo com que a literatura brasileira problematizou nossas ex-periências, na maior parte das vezes através de um nativismo de cunho mais conservador, outras vezes por meio de contatos mais abertos com outras formas de cultura.

CAPÍTULO 4

O “mito fundacional” como interesse comum

Dando continuidade às nossas análises sobre Oswald de Andrade e Gilberto Freyre, destacaremos agora mais um aspecto de correlação en-tre eles: o mito fundacional. Mesmo que divirjam na maneira de narrar nossos “mitos de origem”, nos parece que o interesse elementar com a “fundação” constituiu um esforço comum. Isto porque, até determinado ponto, ambos apresentaram uma explicação “fundacional” para a socie-dade e para a cultura, cuja idealização se satisfez de símbolos no intuito de representar elementos da “brasilidade”. Não obstante, sendo ela uma construção simbólica que pretende dar significados sobre o Brasil e o seu povo, suas interpretações quase sempre padecem do perigo da “natura-lização” da realidade social. Nesse contexto, a função do mito assumiu uma dimensão importantíssima, já que por meio dele buscou-se garantir o suposto “sentido da unidade” elaborando-se histórias e esclarecimen-tos sobre o passado, sobre o presente e direções para o futuro.

Tanto Oswald de Andrade quanto Gilberto Freyre fizeram usos só-cio-históricos, antropológicos e trabalharam com a noção de “funda-ção”. A partir de determinado momento, seja no tempo ou no espaço, te-ria sido palpável a existência de outra realidade, que ajudaria a explicar o presente e orientaria na direção do futuro. Em Oswald de Andrade essa noção poderia ser encontrada nos traços da cultura nativa e na idealiza-ção do “Matriarcado de Pindorama”, acrescidos das conquistas técnicas e dos novos aparatos materiais oferecidos pela modernidade. Ele ten-tou encontrar uma forma de compreender a dinâmica entre o moderno

e o pré-moderno, utilizando-se de uma perspectiva que propiciasse o convívio de referências ao mesmo tempo míticas e técnicas (pinto, m., 2011). Em Gilberto Freyre, por outro lado, ela é apresentada por meio do encontro das “três raças e culturas” que, “misturando-se” entre si, teriam dado origem ao Brasil e suas especificidades, além da concepção ba-seada no estabelecimento de uma civilização “luso-tropical” e mestiça, marcas “perenes” da nossa identidade (silva, 2009). Deveremos notar também que a escolha dos elementos subalternos que constituem a cul-tura brasileira, isto é, os povos que viveram sob o domínio colonial, os diferencia de maneira mais direta. Enquanto o primeiro deu maior vi-sibilidade ao aporte indígena para a sua narrativa, o segundo, por outro lado, elegeu com mais acuidade o papel civilizacional do negro.

4.1 A função social dos mitos

Conforme argumenta Hall (2006, p. 50), as culturas nacionais são com-postas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações, entre as quais, temos a ideia do “mito fundacional”. Ele pode ser entendido como um exemplo de narrativa acerca da “cultura nacional”, que possui aspectos “transistóricos” e “anacrônicos” localiza-dos fora da história (hall, 2003, 2006). Stuart Hall o define da seguinte maneira: “uma estória que localiza a origem da nação, do povo e de seu caráter nacional num passado tão distante que eles se perdem nas bru-mas do tempo, não do tempo “real”, mas de um tempo “mítico” (hall, 2006, p. 54–55). A propósito destas implicações, o autor afirma que algu-mas vezes as culturas nacionais são tentadas “a se voltar para o passado, a recuar defensivamente para aquele “tempo perdido”, quando a nação era “grande”; são tentadas a restaurar as identidades passadas. Este cons-titui o elemento regressivo, anacrônico, da estória da cultura nacional” (hall, 2006, p. 56). Tal dilema é a “face de Janus” do “nacionalismo”, que consiste em olhar para trás, para as glórias do passado e, ao mesmo tempo, preparar-se para um novo estágio de construção e desenvolvi-mento (hall, 2006). Marilena Chaui (2000) elucida bem esse impasse

ao diferenciar os termos “fundação” e “formação”. Se o primeiro termo denota algo atemporal e imaginário, adentrando o terreno narrativo do mito, o segundo, ao contrário, pressupõe movimento e transformação79. Nas suas palavras:

Um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar no-vos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valo-res e ideias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo. (...) Quando os historiadores falam em formação, referem-se não só às determinações econômicas, sociais e políticas que produ-zem um acontecimento histórico, mas também pensam em transformação e, portanto, na continuidade ou na descon-tinuidade dos acontecimentos, percebidos como processos temporais. Numa palavra, o registro da formação é a histó-ria propriamente dita, aí incluídas suas representações, se-jam aquelas que conhecem o processo histórico, sejam as que o ocultam (isto é, as ideologias). Diferentemente da for-mação, a fundação se refere a um momento passado imagi-nário, tido como instante originário que se mantém vivo e presente no curso do tempo, isto é, a fundação visa a algo tido como perene (quase eterno) que traveja e sustenta o curso temporal e lhe dá sentido. A fundação pretende si-tuar-se além do tempo, fora da história, num presente que não cessa nunca sob a multiplicidade de formas ou aspectos que pode tomar. Não só isso. A marca peculiar da fundação é a maneira como ela põe a transcendência e a imanência do movimento fundador: a fundação aparece como emanando da sociedade (no nosso caso, da nação) e, simultaneamente, como engendrando essa própria sociedade (ou a nação) da

79 Não queremos afirmar com isto que Oswald de Andrade e Gilberto Freyre não tenham traba-lhado com ideias que dizem respeito à formação do Brasil. Aceitar esta negativa corresponderia a limitar a vasta obra destes autores a simples reducionismos. Daremos, porém, nesta análise, uma prioridade maior a dimensão “fundacional” embutida no pensamento de cada um.

qual ela emana. É por isso que estamos nos referindo à fun-dação como mito (chaui, 2000, p. 9–10).

Mas seriam os mitos apenas construções fantasiosas que negam a rea-lidade? Segundo Claude Lévi-Strauss (1978), diferentemente do que o racionalismo científico dos séculos XVII e XVIII nos fez acreditar, os mitos não são, ou pelo menos não se reduzem, a elaborações fantasiosas produzidas por mentes primitivas e desprovidas de razão, mas, ao con-trário, são mecanismos explicativos de uma dada realidade, que tam-bém possui uma dinâmica própria. Eles reaparecem em diferentes cul-turas, o que demonstra certa generalidade e ordenamento de funções simbólicas. Porém, quase sempre as narrativas de viés mitológico são tomadas como sinônimo de arbitrariedade e absurdo, ignorando-se o fato de que os mitos também se relacionam com a cultura e com a his-tória das sociedades humanas, seja através de registros escritos ou de determinadas tradições orais que se perpetuam por diferentes gerações. Em outras palavras: aos mitos cumpre a tarefa de serem eficientes, já que seu estudo não requer, obrigatoriamente, nenhum teste de verificação. Dessa maneira, cada mito é um valor que não tem a verdade como um fator determinante (barthes, 1987). Apesar disso, eles oferecem expli-cações e dão significados a determinados eventos sociais que legitimam uma dada realidade.

Mesmo que em termos metodológicos os mitos se diferenciem do conhecimento científico, Lévi-Strauss acredita que o pensamento mito-lógico não é o radical oposto do pensamento objetivo, mas compartilha com este de uma lógica binária de oposições, responsável pela criação de uma grande cadeia de significados (lévi-strauss, 1978). Também é possível dizer, segundo a definição de Bosi (1992, p. 180), que o mito é uma instância mediadora, uma cabeça bifronte. Em uma de suas fa-ces o mito olha para a História, refletindo as contradições reais, mas de modo a convertê-las e a resolvê-las. Na outra face o mito contem-pla a invenção, trazendo signos produzidos conforme uma semântica analógica, sendo um processo figural, uma expressão romanesca, uma

imagem poética. Bosi (1992, p. 176) também defende que, sendo próprio da imaginação histórica criar mitos, eles ajudariam a compreender não somente o universo remoto para o qual foram inventados, mas antes o tempo que os forjou. No caso específico deste trabalho, o tempo histó-rico que nos situamos foi o Brasil das primeiras décadas do século XX, período em que muitos intelectuais, movidos por certo “sentimento de missão”, tentaram descobrir novos “sentidos” para o Brasil.

Para Roland Barthes (1987) o mito é uma fala, uma linguagem rou-bada, um sistema semiológico de comunicação ou uma mensagem sus-cetível de ser julgada por um discurso80. Sendo julgado por um discurso, o mito não se define pelo objeto da sua mensagem, mas pela maneira como a profere, possuindo apenas limites formais e não substanciais, ou seja, pode-se raciocinar sobre o mito independentemente do seu con-teúdo ou de sua matéria. Todavia, Barthes (1987, p. 132) afirma que todo discurso possui uma história, cabendo a ela e só a ela transformar o real e comandar a vida e a morte da linguagem mítica. Logo, “a mitologia só pode ter um fundamento histórico, visto que o mito é uma fala escolhi-da pela história: não poderia de modo algum surgir da “natureza” das coisas” (barthes, 1987, p. 132).

Considerando que o mito é uma fala, necessitamos saber, porém, que ele não é uma fala qualquer, mas uma “fala despolitizada”. Por isso, ainda que tenha um fundamento histórico, a função do mito, alega Roland Barthes (1987), é transformar uma intenção histórica em na-tureza, ou mesmo uma contingência em eternidade, processos típicos

80 O mito é uma linguagem roubada porque sua função é transformar um sentido em uma for-ma. Isto é, o mito é sempre um roubo de linguagem. Nada pode se proteger do mito, pois ele consegue se desenvolver a partir de qualquer sentido, deformando-o a seu bel-prazer, não importa qual. Até mesmo a linguagem matemática e a linguagem poética não resistem ao mito, já que a língua lhe propõe um sentido aberto, podendo o mito, sem grandes dificuldades, insi-nuar-se a crescer dentro do sentido. Porém, a melhor arma contra o mito é talvez mitificá-lo a ele próprio, é produzir um mito artificial, até que este mito reconstruído se transforme numa verdadeira mitologia (barthes, 1987). Para mais esclarecimentos aconselha-se a leitura do se-guinte livro: barthes, Roland. Mitologias. São Paulo: Editora bertrand brasil — DIFEL, 1987.

da ideologia burguesa. Diferente de Lévi-Strauss (1978), que enfatizava mais o aspecto antropológico e ordenador do mito, no interior de es-truturas binárias que organizariam de maneira universal a mente hu-mana, Barthes (1987, p. 163), por outro lado, denuncia que o mito é o instrumento mais apropriado para a inversão ideológica a todos os níveis da comunicação social. O que o mundo fornece ao mito é um real histórico, definido pela maneira como os homens o produziram ou utilizaram; e o que o mito restitui é uma imagem natural deste real. Portanto, o mito é constituído pela eliminação da qualidade histórica das coisas, já que nele as coisas perdem a lembrança da sua produção. Estes questionamentos são assim descritos:

O mundo penetra na linguagem como uma relação dialética de atividades, de atos humanos: sai do mito como um qua-dro harmonioso de essências. Uma prestidigitação inverteu o real, esvaziou-o da história e encheu-o de natureza, retirou às coisas o seu sentido humano, de modo a fazê-la significar uma insignificância humana. A função do mito é evacuar o real: literalmente, o mito é um escoamento incessante, uma hemorragia, ou, se se prefere, uma evaporação; em suma, uma ausência sensível (barthes, 1987, p. 163).

Em conformidade com esta crítica, pode-se dizer que o mito inver-te, mas não nega as coisas. Ao passar da história à natureza, o mito faz uma economia, abolindo a complexidade dos atos humanos, con-ferindo-lhes a simplicidade das essências e suprimindo toda e qual-quer dialética. Dessa maneira, o mito limita qualquer elevação para além do visível imediato, organiza um mundo sem contradições e sem profundeza, onde as coisas parecem significar sozinhas, por elas pró-prias (barthes, 1987). Por isso, a nossa relação com o mito não é uma relação de verdade, mas de utilização, ou melhor, de “despolitização”. Sua função é falar das coisas, purificando-as, inocentando-as, funda-mentando-as em natureza e em eternidade, dando-lhes uma clareza de constatação e não de explicação.

Todavia, se o mito é uma “fala despolitizada”, existe pelo menos outra fala que se opõe ao mito: a fala que permanece política. Para não ser míti-ca e, portanto, ser politizada, a fala deve transformar o real e não conser-vá-lo. Na fala do homem proletário, por exemplo, o mito torna-se impos-sível, pois sua linguagem, propriamente revolucionária, define-se como o ato destinado a revelar a carga política do mundo. E nessa revelação sua linguagem faz o mundo ao visar transformá-lo. Barthes (1987, p. 166–168) nos alerta que é por produzir uma fala plenamente, ou seja, inicialmente e finalmente política, e não uma fala inicialmente política e finalmente natural, que o mito é excluído da revolução. Isso explica porque o mito que existe na esquerda é inessencial e artificial, pois sua preocupação não reside na conservação da realidade, mas no movimento. É um mito po-bre, com alcance temporal limitado, já que não sabe inventar-se, pois fal-ta-lhe o poder da “efabulação” e do “mascaramento”.

Por outro lado, o conservadorismo é o lugar por excelência do mito. Nele o mito é essencial, isto é, “bem alimentado”, “lustroso”, “expansivo” e “falador”, levando-o a apoderar-se de tudo: justiças, morais, estéticas, diplomacias, artes domésticas, literatura, espetáculos, expandindo-se na exata medida da omissão do nome burguês. É através do mito que a ideo-logia burguesa investe os seus interesses essenciais: o universalismo, a recusa de explicação, e uma hierarquia inalterável do mundo (barthes, 1987). O mito postula aqui a imobilidade da natureza, pretendendo con-servar o ser sem o parecer, uma vez que é a própria negatividade do pa-recer burguês, infinita como toda a negatividade que “solicita infinita-mente o mito. O oprimido não é coisa nenhuma, possui apenas uma fala, a de sua emancipação, o opressor é tudo, a sua fala é rica, multiforme, maleável, dispõe de todos os graus possíveis de dignidade: tem a posse exclusiva da metalinguagem” (barthes, 1987, p. 169).

4.2 O Matriarcado de Pindorama

Se considerarmos, em primeiro lugar, as reflexões de Oswald de Andrade, perceberemos que o foco da sua explicação fundacional foi a

existência do Matriarcado. Todavia, o complexo entendimento da so-ciedade matriarcal também exige uma determinada noção do concei-to de Antropofagia. Sobre ela, o autor destaca que “trata-se de um rito que, encontrado também nas outras partes do globo, dá a ideia de ex-primir um modo de pensar, uma visão do mundo, que caracterizou certa fase primitiva de toda a humanidade”81 (andrade, o., 2011, p. 138). E, mais do que isso, o que Oswald de Andrade reivindica é a con-cretude de uma operação metafísica que se liga ao ato antropofágico, efetuando a transformação do tabu em totem. Do valor oposto ao valor favorável. Nesses termos, se a vida é “devoração pura”, cabe ao homem totemizar o tabu. Destaca-se também no esquema de análise oswaldia-no a crença na existência de dois hemisférios culturais que “dividiram a história em Matriarcado e Patriarcado. Aquele primeiro teria produzi-do uma cultura antropofágica, este, uma cultura messiânica” (andra-de, o., 2011, p. 139).

A ruptura histórica da sociedade matriarcal para a sociedade pa-triarcal ocorreu através da substituição radical dos valores antropofági-cos para os valores messiânicos, sendo o escravismo seu substrato prin-cipal. Oswald de Andrade privilegiou o fato de que a Antropofagia ritual promove a “transformação permanente do tabu em totem”, de acordo

81 Oswald de Andrade observou que a Antropofagia ritual já era assinalada por Homero entre os gregos. Na obra A Odisseia, por exemplo, alguns personagens descritos pelo poeta grego apresentavam comportamentos antropofágicos, como as sereias e o ciclope Polifemo. Ao vis-lumbrar a relação da cultura indígena brasileira com a cultura dionisíaca, Oswald de Andrade se aproximaria da filosofia de Friedrich Nietzsche (1844-1900) e da arte grega, especialmente do teatro de Eurípedes, autor da peça As bacantes, que narra a devoração ritual do persona-gem Penteu. Seríamos, portanto, além de idólatras, devoradores dos nossos ídolos, movidos pelo interesse da devoração permanente, repetindo o gesto de Cronos – o tempo – devorando seus próprios filhos (costa, 2011; schnapp, 2011). Para obter informações mais sistemáticas recomenda-se ler: costa, Lara Valentina Pozzobon da. Na boca do estômago: conversa com José Celso Martinez Corrêa. In: ruffinelli, Jorge; rocha, João Cezar de Castro (orgs.). Antropofagia hoje? Oswald de Andrade em Cena. São Paulo: É Realizações Editora, 2011. Consultar também: schnapp, Jeffrey. Morder a Mão Que Alimenta: (Sobre o Manifesto An-tropófago). In: ruffinelli, Jorge; rocha, João Cezar de Castro (orgs.). Antropofagia hoje? Oswald de Andrade em Cena. São Paulo: É Realizações Editora, 2011.

com a visão defendida por Freud no livro Totem e Tabu. Destaca-se que após o assassinato e a devoração do pai totêmico pelos filhos rebelados, teríamos, em contrapartida, o surgimento da cultura, da religião e das diversas formas de organização social e política82. A morte do pai é o ato principal para o surgimento da civilização, pois se antes este tinha o poder permanente da indistinção simbólica, isto é, a autoridade na-tural para o intercurso sexual com todos os membros da comunidade sem nenhuma interdição, a sua morte, ao contrário, marcará de manei-ra traumática o surgimento das regras e dos tabus. A figura patriarcal do pai, embora estivesse fisicamente morta, é ressuscitada de forma anímica pelo grupo social, cujas práticas espirituais se destinavam a cultuá-lo como figura central na comunhão da vida religiosa (nunes, 2011b; petronio, 2011; vilar, 2011). Enquanto o Patriarcado sobrevive por meio da fixação deste direito paterno, da existência das classes e do Estado, o Matriarcado, por sua vez, possuía uma lógica absolutamente inversa. Oswald de Andrade explicita tal questionamento a partir da seguinte afirmação:

No mundo do homem primitivo que foi o Matriarcado, a so-ciedade não se dividia ainda em classes. O Matriarcado as-sentava sobre uma tríplice base: o filho de direito materno, a propriedade comum do solo, o Estado sem classes, ou seja, a ausência de Estado. Quando se instaurou o Estado de clas-ses, como consequência da revolução patriarcal, uma classe se apoderara do poder e dirigia as outras. Passava então a ser le-gal o direito que defendia os interesses dessa classe, criando-se uma oposição entre esse Direito, o Direito Positivo e o Direito

82 Nesta organização social e política da vida religiosa na sociedade patriarcal uma classe se sobrepôs a todas as outras. Foi a classe sacerdotal. Sobre isso, Oswald de Andrade diz que: “a um mundo sem compromissos com Deus sucedeu um mundo dependente de um Ser Supre-mo, distribuidor de recompensas e punições. Sem a ideia de uma vida futura, seria difícil ao homem suportar a sua condição de escravo. Daí a importância do Messianismo na história do Patriarcado” (andrade, o., 2011, p. 143). Ver: andrade, Oswald de. A utopia antropofá-gica. 4.ed. São Paulo: Globo, 2011. (Obras completas de Oswald de Andrade).

Natural. Sendo aquele um direito legislado, exigia obediência. Estabeleceu-se então a organização coercitiva que é o Estado, personificação do legal (andrade, o., 2011, p. 142).

Para Nunes (2011a, p. 42), foi por intermediação das leituras de Friedrich Engels (1820–1895) que Oswald de Andrade entrou em contato com o pensamento de Johann Jakob Bachofen (1815–1887), autor que se dedica-va ao estudo do Matriarcado, da mitologia e das religiões. A concepção de Matriarcado elaborada por Bachofen postulava a existência mítica e jurídica de uma era presidida pela figura da mulher, o que correspon-dia ao funcionamento concreto de uma ginecocracia atuante no Mundo Antigo. A organização matriarcal nada mais era do que a forma mais ar-caica de comunidade e comunhão existente na face da Terra, o primeiro comunismo político (petronio, 2011). Porém, Oswald de Andrade per-cebeu que a compreensão das sociedades matriarcais e de sua cultura antropofágica não era tão simples de ser estudada e descrita. Ele enten-dia que no Matriarcado a Antropofagia se impunha como a única lei do mundo, devendo, por isso, estar inscrita, ao menos potencialmente, em toda a história humana. O problema, contudo, é que tal lei não atua ex-plicitamente no tempo cronológico da propriedade que rege o que, inge-nuamente, costumamos chamar de história. A Antropofagia, ao contrá-rio, atua em um tempo não datado, transparecendo-se apenas na forma de vestígios e rastros que subvertem a própria temporalidade da história. Oswald de Andrade parecia estar consciente desse problema e propôs como método de investigação, a “errática”, a ciência do vestígio errático. Daí a importância apontada no Manifesto Antropófago para os roteiros, os sinais e os itinerários do espaço do porvir83 (nodari, 2011).

83 A temporalidade que Oswald de Andrade busca é a de um “mundo não datado”, o que não quer dizer sem história, mas sim de uma história sem data. De fato, se o tempo cronológico é o tempo do “irrecuperável”, o tempo da Antropofagia e do Matriarcado, por sua vez, “é um tempo (em) que não (se) pode se perder, porque é um tempo (em) que não se pode ter. Por mais “morto” que o tempo seja, é possível fazer contato com ele. Erraticamente, seguir os vestígios do passado é criar um roteiro para o presente” (nodari, 2011, p. 479).

No entendimento de Ivo Barbieri (2011), em meio a tantas dificul-dades, a forma mais segura que Oswald de Andrade encontrou para estruturar toda a literatura antropófaga ao seu alcance se deu a partir da utilização e reescrição de “documentos, crônicas, relatos de viagem, considerações filosóficas produzidas por viajantes que se esforçaram na tentativa de codificar o conhecimento do Novo Mundo, adequando-o a paradigmas vigentes no meio donde procediam à época de sua elabora-ção” (barbieri, 2011, p. 381). Do mesmo modo, o “local” escolhido por Oswald de Andrade para representar o nosso primitivismo foi o vasto interior a-histórico do país, habitado por indígenas, onde ainda vigora o canibalismo, prática convertida pelo autor em arma contra o invasor. O saber indígena demonstrou ser fundamental, especialmente no que tem de instintivo e mágico, produzido pela terra e formado pelas mais anti-gas crenças e lendas da tribo; pela sua profunda ligação com a natureza, desafiando e corrigindo o pensamento do europeu (jackson, k., 2011).

O Matriarcado, portanto, sobrevive através de uma lógica antropofá-gica de pura devoração. Todavia, a construção imaginária da Antropofagia foi uma invenção e obsessão europeia. Não é por acaso que os primeiros conquistadores e missionários “substituíam os relatos de suas próprias atrocidades na América por contos da ferocidade canibal de seus selva-gens” (subirats, 2011, p. 264). Para Nascimento (2011, p. 335), a fábula antropofágica, independentemente de corresponder à realidade de mui-tos dos povos indígenas, tornou-se um relato poderoso ligado ao próprio processo de colonização. O maior desafio dos nossos antropófagos, po-rém, seria a alteração radical desta concepção eurocêntrica, ainda persis-tente no mundo moderno, pondo em prática o gesto aparentemente ab-surdo de reunir o que resta do tupi extinto nas crônicas, com o objetivo de atingir uma “identidade canibal” (madureira, 2011).

Se a Antropofagia foi uma construção externa, no Brasil o conjunto de símbolos sobre a presença de índios canibais que praticavam rituais antropofágicos é tão antigo quanto o próprio impacto da colonização. Conforme diz M. Rouanet (2011, p. 173), já nas primeiras décadas do sé-culo XVI, os canibais se tornaram sinônimos de brasileiros. Quando os

outros somos nós mesmos, e os padrões culturais internalizados haviam sido fornecidos pelo europeu, a postura adotada com mais frequência foi a tentativa de se enquadrar, a todo custo, nos contornos de tais pa-drões (rouanet, m., 2011). Durante esse período existia, por um lado, a descrição pormenorizada dos hábitos culturais indígenas que marcavam sua diferença em relação ao europeu e, por outro lado, estava em curso o processo de “romantização” da vida indígena, acentuando valores como a honestidade, a honra e a coragem, características típicas dos heróis ro-mânticos, empreendidas pelo olhar “civilizador” do europeu. Em relação a esse aspecto da vida primitiva, tudo indica que foram os estudos de Michel de Montaigne (1533–1592) aqueles que mais chamaram a atenção de Oswald de Andrade. O filósofo francês argumentava não ver nada de bárbaro ou selvagem no que diziam dos nossos indígenas; uma vez que “cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é na-tural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e costumes do país em que convive-mos” (montaigne, 2000, p. 195).

Montaigne supunha que a moral dos nossos ameríndios se resu-mia em dois pontos: a valentia na guerra e a afeição pelas mulheres. No combate utilizavam arcos, flechas e espadas de madeira, pontiagu-das e semelhantes às lanças utilizadas na Europa. Seus combates sempre terminavam em efusão de sangue e mortes, pois ignoravam a fuga e o medo. Como troféu trazia cada qual “a cabeça do inimigo trucidado, a qual penduram à entrada de suas residências. Quanto aos prisioneiros, guardam-nos durante algum tempo, tratando-os bem e fornecendo-lhes tudo que precisam até o dia em que resolvem acabar com eles” (mon-taigne, 2000, p. 198). Raúl Antelo (2011) e Carmen Nocentelli-Truet (2011) consideram que para Montaigne o canibalismo seria a forma mais acabada de civilização, associando-o à comunhão. Montaigne livra tal prática das implicações ideológicas da igreja reformada, transformando uma metáfora de absoluta oposição em reconciliação e sublimação por meio da qual outras identidades poderiam ser criadas. Ele, no entanto, acusava os europeus de praticarem atos de crueldade mais graves do que

os índios que procurava descrever, utilizando-se, para isso, de uma óti-ca “relativista” no entendimento da cosmovisão nativa. O trecho abaixo explica bem o que o autor parece estar sugerindo:

Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de cruel-dade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos. Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto; e é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pre-texto de devoção e fé, como não somente o lemos mas vi-mos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos; e isso em verdade é bem mais grave do que assar e comer um homem previamente executado (montaigne, 2000, p. 199).

A identidade antropofágica que Oswald de Andrade propôs como a característica civilizacional do Brasil dialoga, direta ou indiretamen-te, com esta perspectiva defendida por Montaigne. Ao negar o suposto “barbarismo” e “selvageria” dos indígenas, Montaigne caminha no sen-tido de descrever e explicar a cultura, a organização política e o siste-ma econômico de autossuficiência, argumentando a repulsa dos índios ao excedente de produção, levando-lhes a se satisfazerem apenas com as suas necessidades naturais para a sobrevivência84. Porém, enquan-to este idealizava o estado de “pureza” dos nativos pela naturalidade e pela perfeição de suas instituições, Oswald de Andrade, por outro lado, percebeu que o indígena ao contrário de ser um “bom selvagem”, alheio

84 Após a morte dos mais velhos, “seus bens passam para seus herdeiros naturais; as heranças não são divididas, conservando todos os participantes a posse do todo, sem outro título que o que lhes dá a natureza ao criá-los” (montaigne, 2000, p. 200). Da mesma maneira, se são atacados e saem vitoriosos, o benefício de sua vitória “consiste unicamente na glória que auferem dela e na vantagem de se terem mostrado superiores em valentia e coragem, pois não saberiam que fazer dos bens dos vencidos” (montaigne, 2000, p. 200). Para mais esclarecimentos, consultar: montaigne, Michel de. Ensaios. São Paulo: Editora Nova Cul-tural Ltda., 2000.

ao resto do mundo, era na verdade um “mau selvagem”, já que sabia utilizar o inimigo a seu favor, devorando-o. Na concepção oswaldiana este instinto de devoração seria a chave para a atualização cultural bra-sileira, pois ela condensa a síntese dialética entre a magia primitiva e a razão moderna, satisfazendo-se, para isso, de todas as potencialidades dos avanços técnicos.

Oswald de Andrade (2011, 2012a, 2012b) redefiniu a utopia an-tropofágica através da convergência entre a tecnologia e a natureza, o arcaico e o moderno, o cosmopolita e o regional, os quais só ad-quirem pleno significado através do Matriarcado de Pindorama. Por meio da organização matriarcal seria possível construir um sistema igualitário de produção e um aproveitamento técnico e científico ade-quado (subirats, 2011). Ele entendia que o primitivo participava do Matriarcado, o que implicava uma disposição para a vida coletiva, tal como descreveu nossos índios guaranis o antropólogo Pierre Clastres (1934–1977) no livro A sociedade contra o Estado. Este autor averiguou que as sociedades “sem Estado” eram na verdade sociedades “contra o Estado”, ou seja, contra a centralização do poder e do monopólio da violência legítima por indivíduos ou grupos. O argumento principal levantado por Pierre Clastres é a negação de que o poder do Estado seja o elemento decisório para a existência da sociedade, pois, caso contrário, as sociedades sem Estado não existiriam85. Talvez esteja aí a dificuldade da reflexão clássica sobre o poder, tendo em vista que para ela é impossível pensar o apolítico sem o político, o controle social

85 Nessas sociedades, Pierre Clastres assinalou, por exemplo, que o poder atribuído ao líder político se resumia mais ao planejamento das atividades econômicas e cerimoniais. O líder, contudo, não possuía qualquer poder decisório; ele nunca estava seguro de que as suas “ordens” seriam executadas: essa é uma fragilidade permanente ao exercício da sua função: “o poder do chefe depende da boa vontade do grupo” (clastres, 1990, p. 28). Em certa medida a crítica de Pierre Clastres inverte a visão dominante da Antropologia e da Etno-logia de sua época; que ainda enxergavam as sociedades não ocidentais e europeias como “primitivas” e menos sofisticadas. Para mais esclarecimentos sugere-se a leitura integral do seguinte livro: clastres, Pierre. A sociedade contra o Estado. 5 ed. Brasil: Editora Francisco Alves, 1990.

imediato sem a mediação, em uma palavra: “a sociedade sem o poder” (clastres, 1990).

Outro desafio, entretanto, preocupava Oswald de Andrade. Ele ob-servou que no contexto do mundo moderno a cultura messiânica (pa-triarcal) e a cultura antropofágica (matriarcal) estariam distribuídas em determinadas partes do globo, e não em algum lugar isolado. A primeira compreenderia os países ao Norte do Trópico de Câncer, que inclui os Estados Unidos, o continente europeu, o Egito, a Judeia e o Japão. A segunda, por outro lado, se localizaria ao Sul do Trópico de Capricórnio, abarcando o Brasil, a China, a Índia e a África (andra-de, o., 2011). Pelo estudo da geografia e da história, O. Andrade (2011, p. 77) acreditava que nas civilizações de cultura messiânica o que pre-dominava era o elemento individual enquanto que naquelas de cul-tura antropofágica era o elemento coletivo que preponderava. Dessa forma, verificava-se na história períodos de individualismo e períodos de coletivismo, para os quais teria a utopia oswaldiana o objetivo de “unificar”, através dos avanços técnicos, um padrão geral de vida civi-lizada, cabendo ao antropófago ser o sujeito desse processo. Oswald de Andrade destaca que:

A era da máquina tecnizou de tal maneira o homem em toda a terra que ele pode alcançar enfim, uma unificação de des-tino e igualar-se num padrão geral de vida civilizada. (...) A eletricidade, o petróleo, a onipresença trazida pela comu-nicação compensam pouco a pouco as deficiências da faixa equatorial e da faixa antártica. É preciso porém que se desta-que das mãos aferradas da burguesia o monopólio dos meios de produção. Então o homem poderá ser o mesmo em todo o globo, e pretender portanto os mesmos direitos em qualquer latitude. As veleidades racistas alimentadas pelo predomínio histórico tende a se explicar e desaparecer. O mesmo se dá em relação às classes. Estamos pois à entrada de um ciclo que traz, de um modo novo, todas as características coletivistas (andrade, o., 2011, p. 83).

É a partir desse novo ciclo coletivista descrito acima que o autor pre-tende lançar-se contra o essencialismo do Velho Continente, fazen-do, segundo Figueiredo (2011, p. 393), a revisão e a desconstrução da representação ocidental do mundo não europeu, afirmando o direito de narrarmos e construirmos nossas próprias imagens. Por isso mes-mo o Matriarcado e o ritual antropofágico correspondem, cada qual, a uma visão de mundo não excludente, implicando sempre no reconhe-cimento dos valores do “outro”86. Contudo, o risco maior da prática e da teoria antropofágica encontra-se no ciclo de violência que institui. Entre a predação do inimigo na guerra e a sua execução ritual, proces-sa-se a multiplicação dos efeitos da predação e a socialização do homi-cídio, ambos compartilhados pelos membros do grupo (antonello, 2011; bastos, f., 2011; fausto, c., 2011). De fato, “real ou não, o que importa é a alta carga simbólica do “ato” de devorar o outro, sobretudo porque se incorre naquilo que a metafísica da identidade tem de pior, a saber, a assimilação ou supressão da alteridade, em proveito da au-toafirmação identitária” (nascimento, 2011, p. 352). Vista por esse ân-gulo a Antropofagia se assemelha com a história dos colonialismos e neocolonialismos que se desenvolveram, sob as mais diversas formas, ao longo da história do Ocidente87 (nascimento, 2011).

86 Sobre isso, Belluzzo (1990, p. 24) afirma que na invenção do Movimento Antropofágico foram elaboradas não apenas condições para a ritualização das contradições dos países dependentes, mas também a gestação de um pensamento mítico e integrador de imagens primordiais da terra, da mãe e da natureza, aderentes umas às outras. Entre nós, como nos países de tradições pré-hispânicas da América Latina, a arte das vanguardas joga com o mito enquanto linguagem, fazendo com que este apareça em diferentes versões ao longo do continente. Para mais informações recomenda-se consultar: belluzzo, Ana Maria de Moraes. Os surtos modernistas. In: belluzo, Ana Maria de Moraes. Modernidade: van-guardas artísticas na América Latina. São Paulo: Memorial: UNESP, 1990.

87 Para Alfredo Cesar Barbosa de Melo (2016), existe uma contradição significativa presente na ideia da Antropofagia, pois nos imaginamos ser devoradores de culturas alheias, mas não sabemos lidar com a mesma naturalidade quando a nossa própria cultura é devorada e ressignificada por outros – que não são os outros da nossa preferência. É o caso, por exemplo, de alguns escritores africanos de língua portuguesa que nutrem forte interesse

Além disso, a maneira com a qual Oswald de Andrade interpretou o Matriarcado foi e continua sendo alvo de críticas e controvérsias. Segundo E. Oliveira (2011, p. 419), não seria estranho que ao realizar uma crítica à sociedade patriarcal burguesa e a todo seu sistema de ra-cionalidade, Oswald de Andrade tenha escolhido privilegiar o espaço do feminino. Destaca-se, todavia, que sua ênfase no Matriarcado ter-mina por produzir a ideia do irracional, instintual, feminino e selva-gem, ao mesmo tempo que a constrição peculiar do Outro. A escolha de um primitivo Matriarcado de Pindorama como o lugar privilegiado da sua narrativa representa sua identificação com o mundo patriarcal civilizado. Pindorama, na ótica de E. Oliveira (2011, p. 420), não é mais do que o reflexo da masculinidade de Oswald de Andrade. Ele, nes-se sentido, “falocentriza” o Matriarcado ao circunscrevê-lo na própria lógica do masculino (oliveira, e., 2011). Tal questionamento abre es-paço para novas perguntas sobre os paradoxos da visão oswaldiana, nos convidando a compreender em que medida suas ideias “descon-troem” ou “reafirmam” as estruturas do pensamento ocidental que em princípio parece combater. Isso nos leva a pensar na desconstrução do universo oswaldiano naquilo que ele tem de mais “radical”, indagando a base de suas interpretações sobre o Matriarcado e a Antropofagia e buscando expor as incongruências, nem sempre manifestas, que se es-condem por trás da ousada proposta do poeta paulista.

pela literatura brasileira, sem, contudo, receber o mesmo entusiasmo por parte dos es-critores brasileiros, muitos deles mais preocupados em “absorver” a cultura e a literatura ocidental e europeia. Do mesmo modo, ao enaltecer o modo como determinados escritores e artistas se apropriam, deformam ou subvertem modelos estrangeiros, sobretudo europeus ou ligados ao cânone ocidental, acaba-se não exercendo qualquer efeito na real assimetria que existe entre as culturas periféricas e centrais. Isto significa que, dentro do paradigma da nossa formação cultural, o mundo aparece como um conjunto de influxos culturais que vêm dos centros prestigiosos e chegam ao Brasil, onde são devidamente digeridos, apropriados e retrabalhados, dando ao letrado brasileiro uma sensação de participação no mundo contemporâneo e na tradição ocidental que nem sempre tem respaldo na realidade, pois não se sabe ao certo como a cultura brasileira se torna “fluxo internacional”, e quais as implicações teóricas desta cultura no mundo.

4.3 O “mito das três raças”

A problemática da fundação e do mito não perpassou apenas a obra de Oswald de Andrade, mas também os principais escritos de Gilberto Freyre, através do que se convencionou chamar de “mito das três raças”. Este mito, porém, faz parte de uma das principais ambiguidades na for-mação da identidade nacional, sendo inclusive anterior ao pensamento deste autor, que lhe deu continuidade e aprimoramento, tornando mais complexos os seus principais postulados. Trata-se, na verdade, de uma narrativa que pode ser identificada pelo menos desde a segunda metade do século XIX, durante um concurso realizado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), destinado a premiar o melhor plano para a escrita da história do Brasil. O prêmio foi outorgado ao bávaro Karl Friedrich Philipp von Martius (1794–1868), que escreveu o texto “Como se deve escrever a história do Brasil”, no qual defendia uma in-terpretação do Brasil resultante da constituição de três raças: o indígena, o africano e o europeu (soares, e., 2011). Além disso, a ideia de traba-lhar com o “encontro harmonioso entre diferentes” também pode ser encontrada em outras obras deste período, particularmente em autores do nosso Romantismo, a exemplo do indianismo alencariano, que des-crevia por um viés idealizador e ufanista as relações entre europeus e índios, o que acabava por legitimar o domínio dos primeiros em relação aos segundos88.

No caso específico das inovações trazidas pelo pensamento de Gilberto Freyre, Quintas (2007, p. 41) afirma que ele propiciou novos olhares para o social e trouxe discussões verdadeiramente “madruga-doras”, antecipando os estudos de vida íntima na Antropologia, numa época em que a abordagem positivista exortava os “dogmas” da meto-dologia científica. O ponto de “origem” da sociedade brasileira passa a

88 Para mais informações recomenda-se consultar: pinto, Filipe Barreiros Barbosa Alves. Um projeto de identidade e (in)diferença: análise do indianismo alencariano. 150f. Dissertação (Mestrado) — Curso de Sociologia, Programa de Pós-graduação em Sociologia, Universida-de Federal de Pernambuco, 2015.

ser estudado a partir do encontro e da mistura “harmoniosa” — opos-tos em equilíbrio — de diferentes povos, com destaque para o pa-pel civilizacional do português, do negro e do índio89 (ortiz, 2006). Consequentemente, a atenção de Gilberto Freyre “esteve sempre volta-da a perceber formas de integração harmônica entre diferentes, sejam essas diferenças entre culturas, grupos, gêneros ou classes” (souza, j., 2000, p. 71). Tal “equilíbrio”, no entanto, serviu de apanágio para a in-terpretação do Brasil como um caldo harmônico e tolerante, ainda que contraditório em seus meandros e “zonas de confraternização”, no de-senvolvimento daquilo que o sociólogo pernambucano considerava ser a primeira grande “civilização moderna nos trópicos” (freyre, 2004b, 2006). Analisemos o trecho abaixo:

Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América a que se constituiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça: dentro de um ambiente de quase reci-procidade cultural que resultou no máximo de aproveita-mento dos valores e experiências dos povos atrasados pelo adiantado; no máximo de contemporização da cultura ad-ventícia com a nativa, da do conquistador com a do con-quistado (freyre, 2006, p. 160).

Para Gilberto Freyre a fundação do Brasil se confunde com a própria trajetória da família patriarcal e de suas relações domésticas e privadas,

89 Apenas para exemplificar o debate sobre o “mito fundacional” no pensamento de Gilberto Freyre, utilizaremos neste tópico algumas de suas ideias contidas no livro Casa-Grande & Senzala (1933). Entendemos que com este livro o autor mergulhou de forma mais intensa na realidade nacional, mas não se desligou totalmente dos argumentos presentes no Manifesto Regionalista (1926) — por exemplo, a “confraternização” entre a herança cultural portuguesa, indígena e africana — existindo muito mais uma continuidade do que uma ruptura abrupta de perspectiva. Todavia, esclarecemos de antemão que o Manifesto Regionalista continua sen-do o texto central de Gilberto Freyre para a nossa pesquisa, pois, como reconhece o mesmo, antes de ser uma “nação” é de “regiões” que o Brasil é “sociologicamente” feito desde os seus primeiros dias (freyre, 1996).

no interior de um sistema que inclui, por um lado, a casa-grande e, por outro, a senzala, polos antagônicos e complementares dos primeiros séculos da colonização90. Além do suposto “cimento da unidade”, pro-piciado pelo catolicismo, Gilberto Freyre acreditava ser a “mestiçagem” o fator determinante na “confraternização” entre grupos distintos, faci-litada pela predisposição do português, do negro e do índio para a vida nos trópicos. Do seu ponto de vista “a miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de outro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa--grande e a senzala” (freyre, 2006, p. 33). O protagonismo, porém, é atribuído ao português, pois em razão da sua “plasticidade”, posta em prática pela colonização de outras partes do mundo, ele teria se “adap-tado” mais do que qualquer outro colonizador ao clima e fortalecido suas condições de estabilidade política, econômica e cultural (mota, 2000). De acordo com Gilberto Freyre:

Quando em 1532 se organizou econômica e civilmente a so-ciedade brasileira, já foi depois de um século inteiro de con-tato dos portugueses com os trópicos; de demonstrada na ín-dia e na África sua aptidão para a vida tropical. Mudado em São Vicente e em Pernambuco o rumo da colonização por-tuguesa do fácil, mercantil, para o agrícola; organizada a so-ciedade colonial sobre base mais sólida e em condições mais estáveis que na Índia ou nas feitorias africanas, no Brasil é que se realizaria a prova definitiva daquela aptidão. A base, a agricultura; as condições, a estabilidade patriarcal da família,

90 Sobre a centralidade da família patriarcal, consideremos a seguinte afirmação de Gilberto Freyre: “A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador no Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social que se desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América. Sobre ela o rei de Portugal quase reina sem governar” (freyre, 2006, p. 81). Para mais esclarecimentos sugere-se a seguinte leitura: freyre, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 51. ed. São Paulo: Global, 2006.

a regularidade do trabalho por meio da escravidão, a união do português com a mulher índia, incorporada assim à cultu-ra econômica e social do invasor (freyre, 2006, p. 65).

Considerando a descrição acima, Freyre (2006, p. 65–66) afirma que o Brasil começou a ser gestado através do estabelecimento de uma socie-dade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração eco-nômica e híbrida na composição. Todavia, a existência desse empreen-dimento se deveu a predisposição do português para a colonização dos trópicos, pelo seu passado cultural e étnico de povo indefinido entre a Europa e a África. Ele já era profundamente mestiçado antes mesmo de estender seu domínio ao Brasil, dado seu contato com o oriente e a assimilação da técnica e dos costumes africanos, judeus, celtas e mou-ros, sob os quais seriam acrescidos novos hábitos à vida sexual, à arqui-tetura, à alimentação e à religião (thomaz, 2000). Acostumado ao ar da África, quente e oleoso, o colonizador português “amoleceria” nas instituições e nas formas de cultura as “durezas” germânicas; corrom-peria a rigidez moral e doutrinária da igreja medieval, do feudalismo, do cristianismo, da arquitetura gótica, da disciplina canônica, além do direito visigótico, do latim e do próprio “caráter do povo”. Vejamos o que diz o autor:

Vários antecedentes dentro desse de ordem geral — biconti-nentalidade, ou antes, dualismo de cultura e de raça — im-põem-se à nossa atenção em particular: um dos quais a pre-sença, entre os elementos que se juntaram para formar a nação portuguesa, dos de origem ou estoque semita, gente de uma mobilidade, de uma plasticidade, de uma adaptabi-lidade tanto social como física que facilmente se surpreen-dem no português navegador e cosmopolita do século XV. Hereditariamente predisposto à vida nos trópicos por um lon-go habitat tropical, o elemento semita, móvel e adaptável como nenhum outro, terá dado ao colonizador português do Brasil algumas das suas principais condições físicas e psíquicas de

êxito e de resistência. Entre outras, o realismo econômico que desde cedo corrigiu os excessos de espírito militar e religioso na formação brasileira (freyre, 2006, p. 69–70).

Três fatores, porém, possibilitaram a eficácia da colonização portugue-sa no Brasil: a “mobilidade”; a “miscibilidade” e a “aclimatabilidade”. O primeiro fator diz respeito a singular capacidade de deslocamento do português para a colonização em várias partes do mundo, compensan-do sua escassez numérica e “misturando-se”, sem grandes dificuldades, com populações muito diversas e distantes umas das outras, seja na Ásia, na África, na América ou em numerosas ilhas e arquipélagos. O segundo fator refere-se ao domínio de espaços enormes pelos portu-gueses, através da “miscigenação” com as populações nativas e de uma “necessidade genésica” que era “violentamente instintiva” tanto da par-te do indivíduo quanto da parte da política colonial de Lisboa. Ao falar da “miscibilidade” Gilberto Freyre acreditava que nenhum povo colo-nizador, dos modernos, excedeu ou sequer se igualou nesse ponto aos portugueses. Aliás, a “miscibilidade”, mais do que a “mobilidade”, foi o processo pelo qual os portugueses buscaram compensar a deficiência de massa ou volume humano para a colonização de áreas muito vastas. O terceiro e último fator alude à aptidão dos portugueses para se acli-matarem em regiões tropicais. O clima português, com suas condições físicas de solo e de temperatura, se assemelharia mais ao clima africa-no — e regiões quentes da América — do que ao europeu, predispondo Portugal para a conquista dos trópicos (freyre, 2006).

É possível, contudo, observar também algumas incongruências nos argumentos de Gilberto Freyre. Suas reflexões sobre a “origem” da so-ciedade brasileira, interpretada por nós como o “mito fundador” da nação, direciona-se no sentido de legitimar “o modo português de es-tar no mundo”, termo cunhado no meio intelectual da década de 1950, mas que, conforme diz Castelo (1998, p. 13), rapidamente se operacio-naliza e se reproduz no discurso do Estado Novo Português, naqui-lo que anos depois Gilberto Freyre denominou de “luso-tropicalismo”.

Pressupõe-se que o povo português teria uma maneira particular e es-pecífica de se relacionar com os outros povos, culturas e espaços fí-sicos, maneira que o distinguiria e o individualizaria no conjunto da humanidade. O português estaria qualificado com adjetivos que impli-cam uma valoração positiva: “tolerante”, “humana”, “plástica”, “cosmo-polita”, “fraterna” e “cristã”. Estamos, portanto, diante de um discurso que “acentua a “imunidade” dos portugueses ao racismo, a sua predis-posição para o convívio com outros povos e culturas e a sua “vocação universalista” (castelo, 1998, p. 14).

Mas o nosso “mito fundador” só faria sentido a partir do contato do português com os estoques indígenas e africanos, através de um in-tercurso sexual e cultural que compensaria o atraso econômico e polí-tico dos primeiros séculos da colonização, tornando a “miscigenação” o dado central da análise de Gilberto Freyre. É a “união” do português com a mulher índia e, muito especialmente, com a mulher negra, que explicaria para o autor a suposta “singularidade” e a “harmonia” racial do Brasil. Por essa razão, ainda que cruéis e implacáveis, foram me-nos as relações conflituosas do que o ajustamento entre o “sadismo” do branco e o “masoquismo” da índia e da negra que teria predomina-do tanto nas relações sexuais quanto nas relações sociais do português com as mulheres submetidas ao seu domínio. Na sua acepção, “o furor femeeiro do português se terá exercido sobre vítimas nem sempre con-fraternizantes no gozo; ainda que se saiba de casos de pura confrater-nização do sadismo do conquistador branco com o masoquismo da mulher indígena ou da negra” (freyre, 2006, p. 113).

A contribuição técnica e cultural dos indígenas, por exemplo, te-ria sido mínima se comparada ao aporte português e negro91. Gilberto

91 Ainda que a maior parte dos estudiosos da obra de Gilberto Freyre reconheça que o conceito de “cultura” se discerne do conceito de “raça”, quando o autor se refere aos indígenas brasi-leiros percebemos , por exemplo, certas oscilações entre a antiga noção de “evolucionismo” e a nascente noção de “culturalismo”, adquirida, segundo ele, com Franz Boas. De alguma maneira, embora Gilberto Freyre tivesse buscado superar o antigo paradigma, a maneira com que ele se comportou diante de tais situações foi resultado das influências ainda reminiscen-

Freyre adverte que diferente de outras partes da América não se encon-trou no Brasil nenhum povo “articulado em império ou em sistema já vigoroso de cultura moral e material – com palácios, sacrifícios huma-nos aos deuses, monumentos, pontes, obras de irrigação e de explora-ção de minas — mas, ao contrário, com uma das populações mais ras-teiras do continente” (freyre, 2006, p. 158). No raciocínio do autor, o indígena foi quase um mero auxiliar da floresta, não havendo da parte dele capacidade técnica ou política de reação que “excitasse” no branco a política do extermínio seguida pelos espanhóis no México e no Peru (freyre, 2006). Entre os indígenas, teria sido a mulher índia, e não o homem, que desempenhou a atividade civilizacional mais importante, pois foi a primeira a se “miscigenar” com o branco e produzir os primei-ros mamelucos. Tal situação é descrita na citação abaixo:

O ambiente em que começou a vida brasileira foi de quase intoxicação sexual. O europeu saltava em terra escorregan-do em índia nua; os próprios padres da Companhia preci-savam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne. Muitos clérigos, dos outros, deixaram-se contaminar pela devassidão. As mulheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses. Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de espelho (freyre, 2006, p. 161).

tes do pensamento evolucionista, especialmente do filósofo inglês Herbert Spencer, estimu-lando no sociólogo pernambucano o gosto pelos pormenores do cotidiano e o ecologismo. Entre alguns autores que, numa lista muito mais ampla, também o teriam inspirado, desta-cam-se: Alfred Zimmern, Carlyle, George Gissing, Walter Pater, Franklin H. Giddings, Lafca-dio Hearn, Walter B. Yeats, Rüdiger Bilden e o antropólogo brasileiro Edgar Roquette-Pinto (chacon, 1993a; pallares-burke, 2005). Mesmo que em sua “fase madura” Gilberto Freyre tentasse descartar a “superioridade racial” de um grupo em relação ao outro, o mesmo acaba se valendo, em muitos casos, da “superioridade cultural” na sua maneira de argumentar. Ao homogeneizar os traços da cultura indígena, Gilberto Freyre incorreu no mesmo erro que ele tinha atribuído ao médico e antropólogo, Nina Rodrigues (1862–1906), em relação aos ne-gros: não trabalhar com as diferenças (silva, 2009). Ver: chacon, Vamireh. Gilberto Freyre: uma biografia intelectual. Recife/São Paulo: Editora Massangana/Editora Nacional, 1993a.

Também foi com a índia que o invasor branco teria aprendido um novo regime alimentar, novos métodos para o tratamento de doenças e de hi-giene corporal. Por outro lado, no que diz respeito ao cuidado com a terra, Gilberto Freyre acreditava que os indígenas, do mesmo modo que os portugueses, provaram serem péssimos agricultores, desmatando flo-restas inteiras com a prática desabusada da coivara, isto é, a derrubada das matas e a queima da terra visando a sua fertilização. Porém, a visão do autor sobre a herança indígena na “fundação” do Brasil foi refuta-da anos depois, ganhando destaque os estudos antropológicos de Darcy Ribeiro (1922–1997), que discordava do lugar menor atribuído ao indí-gena. Embora Darcy Ribeiro apoiasse a tese de que o povo brasileiro se formou a partir da “confluência”, do “entrechoque” e do “caldeamento” do invasor português com índios silvícolas e negros africanos, ele negou que o indígena fosse um mero coletor de frutos e raízes92. Em sua pers-pectiva, os indígenas brasileiros já possuíam uma cultura técnica e mate-rial que em certos casos superava o aporte português e negro. Foi através do indígena, por exemplo, que tivemos a instituição social do “cunha-dismo”, referindo-se ao velho hábito indígena de incorporar estranhos à sua comunidade, estabelecendo laços que o aparentavam com todos os membros do grupo (ribeiro, 2006).

Contudo, para complementar a tríade do “mito fundacional”, os aportes culturais portugueses e indígenas só fazem sentido quando entram em contato com a mediação da presença africana. Sobre isso, Gilberto Freyre afirma que foram transportadas da África para o Brasil nações quase inteiras de negros escravizados, desenraizando-se do seu

92 Darcy Ribeiro afirma que o entrechoque dos contingentes índios, negros e brancos foi, to-davia, altamente conflitivo. Segundo ele, “vivemos praticamente em estado de guerra laten-te que, por vezes, e com freqüência, se torna cruento, sangrento” (ribeiro, 2006, p. 153). Além disso, a “unidade étnica” gestada nesse processo não significou nenhuma uniformida-de, mesmo porque atuaram sobre ela três forças diversificadoras. Em vista disso, por trás da uniformidade cultural brasileira esconde-se uma profunda distância social, gerada pelo tipo de estratificação que o processo de formação nacional produziu (ribeiro, 2006). Para mais informações, ver: ribeiro, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

meio social e de família, soltando-os entre gente estranha e muitas ve-zes hostil (freyre, 2006). O nosso “mito fundador”, portanto, se inicia com o “grande trauma da escravidão”, instituição que, juntamente com a família e a religião, nos teria dado a “forma” e a “substância” necessária para o ordenamento da vida social. Não obstante, mesmo ao descrever a violência e os abusos praticados contra indígenas e negros, Gilberto Freyre incorre em outro argumento: reafirma um suposto “sentimento de tolerância” do colonizador português, destacando a “harmonia” e a “predisposição” dele e daqueles submetidos ao seu domínio para a vida tropical (castelo, 1998).

Na ótica de Gilberto Freyre isso só foi possível pelo tipo de cristia-nismo que dominou a formação social do Brasil, tornando-se o ponto de encontro entre as culturas do senhor e do negro, e não uma barreira dura ou intransponível. Mas foi a “miscigenação” a principal responsá-vel pela “confraternização” entre a casa-grande e a senzala, entre o se-nhor e o escravo, aproximando o Brasil, mais do que qualquer outro país do mundo, do ideal da convivência harmoniosa e “racialmente demo-crática”93. Na acepção de Gilberto Freyre:

A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de outro modo se teria conservado enor-me entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande

93 O ideal da “democracia racial”, através da “miscigenação”, refinado pelo pensamento de Gil-berto Freyre, foi criticado por diversos autores. Alfredo Bosi (1992) nos adverte que ao invés de relações “racialmente democráticas” o Brasil se formou através de relações “falocráticas”, já que o encontro entre “iguais” se limitava ao contato físico. Os estudos de Florestan Fernandes (2007) também ressaltam que a miscigenação “contribuiu para aumentar a massa da popula-ção escrava e para diferenciar os estratos dependentes intermediários do que para fomentar a igualdade racial” (fernandes, 2007, p. 44). Portanto, “não poderá haver integração nacional, em bases de um regime democrático, se os diferentes estoques raciais não contarem com oportunidades equivalentes de participação das estruturas nacionais de poder” (fernandes, 2007, p. 51). Para uma crítica do mito da democracia racial e uma análise do dilema racial bra-sileiro, consultar: fernandes, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 5. ed. São Paulo: Globo, 2008. Ver também: bosi, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

e a senzala. O que a monocultura latifundiária e escravocra-ta realizou no sentido de aristocratização, extremando a so-ciedade brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da miscigenação (freyre, 2006, p. 33).

Os escravos negros dos “estoques mais adiantados”, por exemplo, esta-riam em condições de “concorrer melhor que os índios à formação eco-nômica e social do Brasil. Às vezes melhor que os portugueses” (freyre, 2006, p. 370). Eles estariam “predispostos”, do ponto de vista biológico e psíquico, ao contato com as regiões quentes, tornando-se, em certo sen-tido, “verdadeiros donos da terra”, pois “dominaram” a cozinha e con-servaram em grande parte a sua dieta. Por isso mesmo, Freyre (2006, p. 438) afirma que se verificou entre nós uma profunda confraternização de valores e sentimentos; alguns deles de tendência “coletivista” vindos das senzalas, e outros de disposição mais “individualista” e “privatista” vindo das casas-grandes. No entanto, embora “harmoniosa”, o autor res-salta que a situação não era idílica, uma vez que a subordinação da gente de cor, baseando-se na diferença de raça, era também uma subordina-ção de classe (freyre, 2004b). Diante deste paradoxo, consideremos a seguinte afirmação:

Na narrativa dessa fundação da erótica interracial, há uma desestabilização e, ao mesmo tempo, uma hierarquização das polaridades entre brancos e negros. Essa erótica possui várias tonalidades narrativas. Freyre sublinha, diversas ve-zes, o caráter sádico e cruel das relações sociais no Brasil. Degradação terrível inerente ao próprio sistema escravista onde seres humanos são transformados em objetos. Nesse contexto, dá-se a crueldade e o sadismo no estupro da es-crava negra pelo amo, nos crimes e vinganças da sinhá so-bre a mucama, no abuso do homem branco sobre a mulher branca e, finalmente, na tirania dos adultos sobre a criança.

Por outro lado, celebra, nesse quadro de degradação, a aco-modação cultural entre casa-grande e senzala, entre sobra-dos e mucambos (jaguaribe, 2000, p. 23–24).

Apesar de ser supostamente “muito menos áspera” que em velhos paí-ses europeus ou asiáticos, “a ascensão social não se fazia tão facilmen-te, nem era possível que se fizesse, num Império escravocrático e agrário como o Brasil” (freyre, 2004b, p. 29). Para Freyre (2004b, p. 30) caberia ao mulato, em especial aquele valorizado pela cultura material ou técni-ca, “amolecer” esses antagonismos, pois ele constituiria o elemento so-cialmente mais plástico e, em certo sentido, o mais dinâmico da nossa “formação”. O mulato seria a nossa “meta-raça”, ou seja, o produto novo, renovado e mais original da “mestiçagem” brasileira, pois nasceu da con-fluência de suas matrizes originárias: portuguesas, indígenas e africanas (silva, 2009). Mesmo que ao fazer a “apologia do mulato” Gilberto Freyre reconhecesse, como adverte Fry (2000, p. 257), as desvantagens que eles e os negros enfrentavam nas suas tentativas de ascensão, impelindo-os a distanciarem-se, cultural e esteticamente, dos seus parentes e amigos me-nos afortunados, o autor acreditava que a “mestiçagem”, da qual o mulato seria o produto mais genuíno, agia no sentido de facilitar os processos de ascensão social e econômica.

O principal fator para questionarmos esta narrativa encontra-se na própria observação da realidade que o autor aponta, já que se observar-mos a dimensão “formacional” deste mito “fundacional”, isto é, as contra-dições históricas em movimento, e não somente a “fundação”, percebe-remos a defesa real de uma sociedade mais “harmoniosa”, algo próximo de uma “democracia racial”. Ou seja, a principal especificidade mítica da nossa “formação” implica na ideia de que somos um país “racialmente de-mocrático”. Porém, não se problematiza o suficiente a realidade violenta e desumana da escravidão, assim como a ordem social injusta e excludente que se perpetua após a abolição legal da escravatura, permanecendo os grupos recém “libertos” sob o poder e a tutela de seus antigos senhores. Consequentemente, em relação à “fundação”, que é o principal objeto da

nossa análise, Gilberto Freyre enfatizou o encontro das “três raças”, en-quanto que a nossa “formação” continua sendo interpretada como a de-corrência de pares “opostos em equilíbrio”, que resulta na conturbada no-ção de “democracia racial”.

Convive-se com a concepção arraigada de que não fomos apenas “fundados” pelo encontro de “três raças”, mas continuamos a “formar” um país supostamente mais “tolerante”, “integrador” e “democrático” se com-parado a outros países do mundo. Para E. Bastos (2006, p. 47), Gilberto Freyre pensou tais questões como simbolizando uma suposta “coesão so-cial” que, de certo modo, é a fabulação sobre um período onde os conflitos ganham uma conotação épica. Nesse sentido, o autor dialogou com a uto-pia de uma “idade de ouro”, através da qual a acomodação ocupava o lu-gar da luta e o dominado dominava aquele que se propunha como domi-nante. Isso também explica o porquê da história em Gilberto Freyre não ser “datada”, interessando-se mais pelos acontecimentos relatados num “transtempo” e definindo como o espaço de sua análise a casa-grande.

Não podemos deixar de notar também que a ênfase dada ao ambiente da vida privada muitas vezes encara o espaço público como uma simples extensão do familismo e dos interesses privados94. Ainda que Gilberto Freyre tente demonstrar que a integração política no Brasil partiu da ca-sa-grande e do sobrado, seu pensamento, entretanto, submete para segun-

94 No livro Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda (1995) levanta uma interessante discus-são que perpassa o conceito de “patrimonialismo”, ou seja, uma forma de dominação baseada na sobreposição do privado em relação ao público, cuja lógica privatista teria sido enraizada no Brasil desde o início da colonização portuguesa e ainda hoje seria reforçada nas relações sociais e nos hábitos cotidianos. Segundo Jessé Souza (2015), entre os intérpretes do Brasil, a tese do “patrimonialismo” já se faz presente de maneira difusa no pensamento de Gilber-to Freyre, tendo Sérgio Buarque de Holanda apenas elevado esta ideia a categoria de status conceitual. Contudo, apesar da aparente concretude do “patrimonialismo” na denúncia das nossas contradições, a sua legitimidade é, por outro lado, bastante seletiva. Ela particulariza todos os problemas estruturais do Brasil apenas ao âmbito do Estado, que é demonizado sem reservas, enquanto prega as virtudes do Mercado, dominado e controlado pela elite do di-nheiro. Para mais informações, ver: souza, Jessé. A Tolice da Inteligência Brasileira: como o País se deixa manipular pela elite. São Paulo: Casa da Palavra, 2015.

do plano o espaço da rua, isto é, o ambiente político, o lugar do indivíduo--cidadão e da sujeição às leis (damatta, 1986, 1997, 2004). As principais condições que propiciaram esta realidade ligam-se aos efeitos deletérios do passado escravocrata, já que a institucionalização da escravidão trou-xe também consigo, alega Marilena Chaui (2000), uma cultura senhorial calcada na hierarquia, na exclusão e no privilégio, retardando cada vez mais o aparecimento das esferas da igualdade, da cidadania e dos direitos.

Em síntese, vimos que a ideia originária do encontro das “três raças”, elaborada por Gilberto Freyre de maneira mais complexa, passou a ques-tionada e discutida. Por se tratar justamente de um “mito fundacional”, como descreveu conceitualmente Stuart Hall (2006), as narrativas sobre a origem mítica de uma dada realidade social quase sempre guardam um aspecto de “eternidade”, de “perenidade”, fixando-se através de um “pas-sado imaginário” ou de um “instante absoluto”. Sobre isso, concordamos com Roland Barthes (1987) no que diz respeito a dimensão ideológica dos mitos, pois sendo avessos ao processo histórico, os mitos acabam natu-ralizando a vida social e impedindo mudanças efetivas de mentalidade e ação. Ainda que Gilberto Freyre possua uma obra extensa, multifacetada e complexa, o que dificilmente nos permite fazer uma leitura linear do seu pensamento, os aspectos centrais da sua argumentação se desenvol-vem no sentido de legitimar a conservação das estruturas de poder e de traçar supostas “positividades” em um processo de colonização por si só violento e contraditório.

Do mesmo modo, tentamos demonstrar que o imaginário exótico da Europa sobre os povos indígenas da América, em certa medida objetos da crítica intuitiva de Oswald de Andrade, não se desvinculam da óti-ca fundacional. Mesmo se contrapondo à visão dominante de sua épo-ca, que ainda via os indígenas pelo prisma da selvageria, ele tentou criar uma narrativa para o Brasil se utilizando de relatos tradicionais sobre a presença de sociedades matriarcais da antiguidade europeia e americana, reinventando-as de maneira própria. Entendemos, porém, que ao fazer uso da “errática”, ou seja, a ciência do vestígio, Oswald de Andrade não ignorava a história, preocupando-se mais com a temporalidade de um

mundo não datado ou de uma história sem data e sem cronologia. Nesse sentido, se o tempo “cronológico” é irrecuperável, o tempo antropofágico e matriarcal da “errática” não pode jamais se perder, pois não o possuí-mos (nodari, 2011).

No entanto, o aspecto “fundacional” do autor parece está mais ligado ao esforço em narrar o instante ideal da existência do Matriarcado e sua cultura antropofágica de devoração permanente. Foi na ruptura com o mundo matriarcal empreendida pelo Patriarcado, com sua cultura mes-siânica e opressora, que as contradições e descontinuidades “formadoras” da história humana apareceram de maneira mais concreta e, em conse-quência, alteraram radicalmente a estabilidade das civilizações matriar-cais. Caberia ao nosso espírito primitivo — a mentalidade pré-lógica — absorver, antropofagicamente, as culturas técnicas da modernidade, por meio das quais pudéssemos atualizar o nosso próprio tecido, num ges-to-síntese em que os ideais do Matriarcado se tornassem uma realidade concreta, e não uma mera mitologia antiga.

Se concordarmos com os argumentos de Roland Barthes (1987) descritos neste capítulo, talvez o aspecto “fundacional” e mitológico de Oswald de Andrade seja inessencial, pois o seu interesse é, aparentemen-te, a busca de vestígios do passado no intuito de reinventar, através da técnica, um sentido para o presente, pressupondo, por isso, movimento e transformação. No caso específico do encontro das “três raças” trabalha-do por Gilberto Freyre, acreditamos que este passado também tem uma relevância analítica importante, pois busca “reconstruir” significados e memórias, mas parece se fixar mais nas estruturas, buscando reagir aos processos de “descaracterização” das matrizes que o originaram.

Embora esta dicotomia possa ser verificada no pensamento de am-bos os autores, não podemos, contudo, tratá-la de modo absoluto. Nem sempre Oswald de Andrade pode ser lido simplesmente como o autor de uma obra “transgressora”. Além de ironizar e satirizar, como diz Bosi (2013, p. 383), a classe que ele mesmo fazia parte, isto é, a aristocracia ca-feeira aburguesada, Oswald de Andrade “optou”, como outros autores de sua época, pela representação do índio (antropófago) como o principal

elemento subalterno da nossa formação, em detrimento do negro, re-cém-saído de séculos de escravidão (gomes, h., 2011). Vimos também que E. Oliveira (2011, p. 420) levantou algumas dúvidas sobre Oswald de Andrade ser um “desconstrutor” ou um “reafirmador” das estrutu-ras do pensamento ocidental, que em princípio parece combater, ten-do em vista uma suposta “falocentrização” do matriarcado, circunscri-to por uma lógica masculina. Gilberto Freyre, por sua vez, não deu a devida importância ao processo de estruturação excludente e violenta das nossas desigualdades, mesmo que tenha “escolhido” entre os subal-ternos o estudo do elemento negro95. Andando na esteira da tradição conservadora do nosso pensamento social e político, o autor de Casa-Grande & Senzala por vezes naturaliza o conflito, deixando certas la-cunas e ausências na maneira como descreveu nossas relações raciais e o sistema hierárquico gestado com o passado escravocrata.

Esta rápida comparação não esgota e nem anula as afinidades entre os autores. Ambos acreditavam no potencial da “miscigenação” brasi-leira, formadora de uma nova civilização tropical, e escreveram sobre os subalternos, mas a partir da posição social e econômica dos vence-dores. Tal como fez a historiografia romântica, a utilização dos mitos envolve a criação de uma operação de “retorno” ao passado, visando quase sempre “ressuscitar” toda sua “grandeza”, suas “glórias” e seus “heróis”. No Brasil, como em outras sociedades de colonização antiga ou recente, os grandes mitos fundadores não foram criados pelos gru-pos subalternos, mas sim pelos grupos dominantes, isto é, os vencedo-res do processo civilizador, aqueles que narram suas próprias histórias aos vencidos (sarmento, 1999).

95 Cabe ressalvarmos, no entanto, que o interesse pelo estudo da presença negra no Brasil é muito anterior ao pensamento de Gilberto Freyre. Como boa parte dos escritores românticos e modernistas escolheram o índio para compor de maneira exótica e pitoresca a “brasilidade”, um número significativo de intérpretes e estudiosos da sociedade brasileira se detiveram no estudo do negro, especialmente a partir do período “pós-abolição”, momento no qual ainda procurava-se legitimar, através de um discurso cientificista, a desigualdade e a culpabilização do negros libertos e recém-libertos pelo atraso nacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após discorrer acerca dos objetivos deste trabalho, torna-se necessário tecer as considerações finais, retomando-se determinados pontos e apre-sentando sinteticamente os principais resultados. Não se pretende, po-rém, expor conclusões fechadas que simplifiquem ou acreditem abarcar a totalidade do presente tema e suas tortuosas controvérsias e contradi-ções. Antes disso, busca-se inserir questionamentos que sirvam de base para futuros estudos. Iniciamos a pesquisa com uma rápida descrição do Modernismo europeu e brasileiro, tentando observar o seu contexto histórico contraditório, heterogêneo e a preocupação intelectual e po-lítica na compreensão, entre nós, de um dos principais discursos deste movimento: o “sentimento de brasilidade”. Aos poucos, a problemática da renovação estética começava a ceder lugar a uma preocupação que se dirigia no sentido de, em primeiro lugar, elaborar uma literatura de cunho nacional, e num segundo momento, de ampliação e radicalização do primeiro, ao se buscar estabelecer um projeto de cultura nacional em sentido amplo. Fazia-se necessário que a literatura e as artes plásticas de-vessem estar marcadas pelo “espírito de brasilidade”, pois a qualidade da obra de arte não residiria mais “no seu caráter de renovação formal. Ela deve antes refletir o país em que foi criada” (moraes, e., 1978, p. 108).

Em seguida, investigamos o espraiamento paulatino do discur-so modernista brasileiro do seu centro hegemônico, notadamente São Paulo, para outras áreas do país, com interesse especial pela cidade do Recife. O principal aporte teórico utilizado foi o conceito da “dialética

do localismo e do cosmopolitismo”, desenvolvido pela crítica literária de Antonio Candido. Tentamos observar, como sugere o autor, que a li-teratura brasileira cumpriu uma tarefa indispensável na construção da consciência nacional. Como em outros países do Novo Mundo, possuí-mos uma literatura que já veio estruturalmente pronta da metrópole co-lonizadora, mas que ao longo de séculos de imposição cultural e política acabou ganhando novas adaptações, características das tensões dialé-ticas entre o dado local e o dado cosmopolita. Com o Modernismo se presenciou aos poucos um novo momento destas tensões, caracterizan-do a centralidade do dado local pela valorização vanguardista do pri-mitivo. As noções de “nação”, “região”, “nacionalismo”, “regionalismo” e a problematização da ideia do “mito fundacional” também constituiu um esforço em comum. Tomando como ponto central da discussão o nosso problema de pesquisa, isto é, as diferentes maneiras com que foi produzida a construção entre os sentidos do “nacional” e do “regional” da brasilidade nos Manifestos Pau-Brasil e Antropófago, de Oswald de Andrade; e do Manifesto Regionalista, de Gilberto Freyre; esboçaremos agora as últimas apreciações.

Recapitulemos, em primeiro lugar, alguns apontamentos sobre os Manifestos de Oswald de Andrade. Vimos, de acordo com E.Moraes (1978, p. 80–82), que o primeiro passo dado no sentido de introduzir os debates sobre a brasilidade na literatura modernista foi posto em práti-ca pelo Manifesto Pau-Brasil. Uma vez “atualizados” ou “modernizados”, elementos característicos da Semana de Arte Moderna de 1922, a reali-dade a ser alcançada é de sermos “regionais”, no sentido de nacionais, e “puros” em nossa época. Tal estado de pureza só poderia ser alcança-do pelo mergulho no nosso “primitivismo” ou na nossa “matéria-pri-ma”, operando uma tentativa de (re)organização da cultura, através da importação de dados simbólicos e do desrecalque local dos mesmos. Para tanto, o contato com as vanguardas europeias foi um dispositivo recorrente encontrado por muitos modernistas, muito embora se deva entender que o solo cultural de cada um destes polos constitui-se pela diversidade de proposições e experimentações. Deste modo, o simples

fato de ter havido uma comunicação entre os ambientes culturais eu-ropeu e brasileiro não nos autoriza a analisar o caso brasileiro nos sa-tisfazendo dos mesmos dados com que se observa o caso das vanguar-das europeias. Contudo, esse esforço de construção nacional se inscreve num empenho mais amplo de construção mundial, exigindo o exercício prévio de um processo de desconstrução da cultura brasileira nos seus aspectos mistificadores da realidade.

Enfatizou-se que a partir de 1924, ano da publicação do Manifesto Pau-Brasil, o ideário modernista se concentrou, aos poucos, na tentati-va de conciliar propósitos internacionalistas e nacionalistas. O objetivo não era combater o passado em nome da atualização, mas de introduzir a concepção de que só seremos “modernos” se formos “nacionais”, ou seja, “só seremos participantes do universo cultural se nele nos integrar-mos com nosso coeficiente de nacionalidade” (moraes, e., 1978, p. 83). Paulatinamente, abria-se a constatação de que, de um lado, vivíamos o fenômeno da modernização (a escola) e, de outro lado, de que estáva-mos presos na lógica do “primitivismo” (a floresta). A saída encontra-da por Oswald de Andrade foi manter vivos esses polos antagônicos na tentativa de integrá-los no solo da nação. Nesse sentido, deve-se consi-derar a história do Brasil, revendo-a criticamente e integrando seu am-plo projeto de elaboração de cultura, através do menosprezo pelo “lado doutor”, entendido como aquele que escondia o verdadeiro passado bra-sileiro. Todavia, como afirma E. Moraes (1978, p. 88–89), o Manifesto Pau-Brasil foi um marco a partir do qual foram se definindo diversas posições dentro do Modernismo. Logo, o grupo modernista não ces-sava de tomar posição pró ou contra o referido Manifesto, instauran-do-se uma acirrada polêmica pela definição do nacionalismo literário. Aceitava-se “os ideais nacionalistas defendidos por Oswald de Andrade, entretanto, com relação à maneira de definir substancialmente as teses nacionalistas houve uma diferenciação enorme de grupo para grupo ou mesmo de autor para autor” (moraes, e., 1978, p. 88–89).

Se até o ano de 1922 o primitivismo nativo foi o único achado do Movimento Modernista, como diria O. Andrade (1991, p. 111), nos anos

subsequentes, porém, existiram tentativas de analisar com mais acuida-de esse primitivismo. Elas ocorreram pela exploração do dado etnográ-fico ou por uma via mais intuitiva e preocupada com a inventividade. O Manifesto Pau-Brasil se fixou mais nesta segunda categoria de análise, in-dicando a necessidade de “uma poesia de exportação contra a velha poe-sia de importação que amarrava a nossa língua” (andrade, o., 1991, p. 111). O objetivo agora não era apenas combater qualquer forma de passa-dismo linguístico e artístico, mas se debruçar na pesquisa da brasilidade e dos processos de modernização a que ela estaria sendo inserida. Porém, não é o passado genérico da brasilidade que é negado, mas o seu lado dou-tor, ou seja, aquele que, em função da transplantação cultural, escondia o verdadeiro passado brasileiro. Isso, no entanto, só seria cabível por meio da “recuperação” dos traços bárbaros da civilização brasileira, devendo o nosso material cultural ser descoberto aqui mesmo (moraes, e., 1978).

Procuramos demonstrar que o aprofundamento dos estudos sobre a cultura brasileira esteve estruturalmente imerso nas tensões entre o dado cosmopolita/universal e o dado local/particular, destacando a imposição cultural e histórica do invasor europeu. Por isso, os processos que torna-ram possível pensar a nossa formação literária se efetivaram dentro de uma lógica contraditória, já que a literatura surge como um artefato da colonização, resultado, portanto, do domínio metropolitano. Na tentativa de oferecer uma resposta a esta situação assimétrica, Oswald de Andrade elaborou o Manifesto Antropófago. Seu lema não se resumia mais a pen-sar a exportação da nossa cultura, mas a sua importação, através da ab-sorção e reinvenção crítica de outras culturas, especialmente europeias. Não se tratava de copiar o “outro”, o que demonstraria nossa incapacida-de de invenção, mas ingeri-lo e digeri-lo criativamente. Em consequên-cia, o instinto antropofágico destrói, por um lado, elementos de cultura importados, mas assegura a sua manutenção em nossa realidade por in-termédio da transformação de certos elementos estrangeiros. Entretanto, do ponto de vista conceitual, como afirma Nascimento (2011, p. 333–334), não houve e provavelmente não haverá uma única e inequívoca definição de Antropofagia.

Conforme diz E. Moraes (1978, p. 156), entre nós a Antropofagia não foi importada nem inventada, mas “descoberta”, uma vez que ela já exis-tia na própria tradição cultural da nação. Deste modo, a vertente antro-pofágica estaria imersa em um conflito que opõe o índio ao reinol, pre-tendendo, na formação da cultura nacional, expressar a transformação do tabu em totem96. Oswald de Andrade parecia muito otimista quanto à capacidade de assimilação do estômago nacional. Tratava-se de pensar a Antropofagia em seu aspecto ritual, ou seja, a apropriação daquilo que nos falta e que temos a oportunidade de adquirir durante a devoração crí-tica do “outro” (almino, 2011; rouanet, m., 2011). A alteridade era vista pelo autor como um valor positivo, interessando-se pelo que há de “ne-gatividade, de ruptura com o contínuo da história, de descentramento, no projeto utópico inspirado pela América como lugar da alteridade que abala certezas, sugerindo alternativas, provocando a imaginação alheia” (figueiredo, 2011, p. 391).

Seguindo com a reflexão acima, também foi nosso objetivo apontar que o dilema entre os sentidos do “nacional” e do “regional” assume no pensamento de Oswald de Andrade diferentes níveis, de acordo com a maior ou menor absorção da cultura do “outro”, vista como “cosmopoli-ta”. Sabendo que em seu modelo explicativo as assimilações são recípro-cas e assimétricas, pois existe uma desigualdade real de poder, Oswald de Andrade encontrou na idealização do “Matriarcado de Pindorama” uma maneira de assegurar as conquistas técnicas da modernidade, impreg-nando-as ao nosso espírito primitivo. A própria ideia da Antropofagia exige que a apreciemos como uma síntese de vários momentos revolucio-nários anteriores, sendo o Matriarcado a representação desta realidade, marcada, na acepção oswaldiana, pela utilização dos valores industriais

96 Muito embora a proposta antropofágica de Oswald de Andrade fizesse enfrentamento aos posicionamentos mais conservadores e ufanistas, por outro lado, ele acabou optando pelo ca-minho mais convencional para a representação da brasilidade. A exemplo de outros autores, ele escolheu a figura do índio (tratado agora como um “mau selvagem”) para compor a sua crítica radical da sociedade brasileira, deixando menos visível outros elementos marginaliza-dos, como é o caso dos negros.

e primitivos (moraes, e., 1978). Segundo Figueiredo (2011, p. 397), a uto-pia oswaldiana poderia gerar caminhos alternativos ao processo desen-freado de modernização europeia e norte-americana, cujas consequên-cias podem ser decisivas em relação ao futuro da humanidade. Todavia, diferente do que pensou Oswald de Andrade, o papel da tecnologia no mundo contemporâneo e a generalização da técnica não diminuiu a ne-cessidade do lucro, não levou a reforma do capitalismo e o tempo livre só aumentou em forma de desemprego.

Após discorrermos rapidamente sobre os Manifestos oswaldianos, faz-se necessário apresentar também as últimas considerações acerca do Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre. Ao longo das nossas análises buscamos problematizar a ideia de que o “regionalismo” ou a “região”, mais do que a expressão de um espaço geográfico, é também uma cons-trução social e política. Segundo a linha de argumentação do autor, o Nordeste não seria apenas a região mais “tradicional” do Brasil, mas te-ria a prerrogativa de comportar uma brasilidade mais “genuína”, estando supostamente marcada pelo símbolo do “equilíbrio” e da “mistura”. Por isso, seria imperioso conservar suas tradições contra certas “irraciona-lidades” modernas que, a pretexto de fomentar a modernização, estaria destruindo ou minando as feições tradicionais da região, seja em seu tra-çado urbanístico e material seja em seus aspectos culinários e simbólicos.

Em sua defesa da região e das articulações inter-regionais, através das quais seria possível atingir a nação, Gilberto Freyre advoga o Nordeste como o lugar mais tradicional e guardião da brasilidade. É sobretudo no Nordeste que se encontra o ponto de equilíbrio que figura a “unidade” a partir da “diversidade”, caracterizando-o, portanto, como a região mais apropriada para encontrar os elementos constitutivos da nação (seyfer-th, 2000). Nessa linha de raciocínio, o “regional” aparece enquanto ele-mento constitutivo do “nacional”, pois “é o conjunto de regiões e não uma coleção arbitrária de estados que formaria de fato o Brasil. Como desde o seu início o país teria sido composto por regiões naturais a que se sobrepuseram regiões sociais, é preciso administrá-lo regionalmente” (oliven, 2006, p. 45).

Gilberto Freyre afirmava, entretanto, que sua defesa da região Nordeste não devia ser confundida com “bairrismo” ou “separatismo”. Reproduzindo mais uma vez as suas palavras, ele defendia que “a maior injustiça que se poderia fazer a um regionalismo como o nosso seria confundi-lo com separatismo ou com bairrismo. Com anti-internacio-nalismo, anti-universalismo ou anti-nacionalismo” (freyre, 1996, p. 2). Contudo, o elogio das regiões e do Nordeste em especial, não ocorreu sem as contradições que estruturam a nossa formação social, caracteri-zada muitas vezes por uma preocupação mais acentuada com as expres-sões regionais da cultura e outras vezes com interesse maior por seus aspectos nacionais. Mesmo frisando que o movimento a que fazia parte era “modernista” a seu modo, Gilberto Freyre se contrapôs aos moder-nistas reunidos em São Paulo durante e após a Semana de Arte Moderna de 1922. O seu Manifesto Regionalista pode ser interpretado, inclusive, como uma reação aos grupos paulistas. Seu modo de pensar é, de certa maneira, o inverso desses modernistas, “já que não está alicerçado numa atualização cultural através de valores modernos vindos do exterior, mas ao contrário na crítica aos malefícios do progresso e da importação de costumes e valores estrangeiros” (oliven, 2006, p. 46).

Concordamos com a perspectiva de Giralda Seyferth (2000), para quem Gilberto Freyre tratou da construção cultural de uma “regiona-lidade” que pudesse representar a nação. Ao fazer um discurso sobre a região, sua intenção também era narrar a nação, não apenas como “enti-dade política mas, sobretudo, cultural e social, qualificando o Nordeste como região mais legitimamente brasileira, apesar da fluidez dos seus limites geográficos e simbólicos” (seyferth, 2000, p. 180). Em certo sen-tido, Gilberto Freyre tentou construir “a particularidade do Nordeste pela proporcionalidade das partes constitutivas da cultura nacional. Isto é, as influências portuguesa, negra e indígena estão em qualquer lugar, mas no Nordeste elas se apresentam equilibradas” (seyferth, 2000, p. 181). Nessa perspectiva, “guardadas as proporções o que Freyre está in-formando é que o único modo de ser nacional num país de dimensões como o Brasil é ser primeiro regional” (oliven, 2006, p. 46).

É importante tornar a ressaltar que o Nordeste que Gilberto Freyre descreve no Manifesto Regionalista não é aquele que se desenvolveu no auge da colonização portuguesa, mas aquele cujo poder econômico ha-via entrado em decadência desde a “segunda metade do século XIX, com o enfraquecimento da produção canavieira e com a concentração estatal e produtiva no Sudeste/Sul do país. O engenho de açúcar tor-nava-se cada vez mais obsoleto, como forma de produção, diante das usinas industrializadas” (santos, 2011, p. 401). Na acepção de Ruben George Oliven (2006), a proclamação da República no Brasil deu início ao processo de descentralização política e administrativa que, pelo me-nos aparentemente, “contrariava a tendência dominante naquela épo-ca em países da América Latina e de outros continentes nos quais es-tavam sendo forjadas identidades nacionais e alianças inter-regionais” (oliven, 2006, p. 39). Com isso, pode-se explicar que o fortalecimento do regionalismo no Brasil nesse período se deveu em grande medida ao desenvolvimento embrionário e desigual das relações de produção capitalistas e da constante importância da agricultura de exportação. Na República Velha, a descentralização assegurava a unidade nacional. Nesse sentido, aos poucos se acentuava a tendência de pensar a organi-zação da sociedade e do Estado, discutindo a questão da nacionalidade e da região (oliven, 2006).

Tendo em mente tais fatores históricos, Gilberto Freyre se posicio-nou favorável ao que denominou de “unionismo nacional”, ou seja, a união da nação e dos Estados através das periferias regionais97. Por meio deste artifício seria possível, na ótica freyriana, acessar não apenas o na-cional, mas também o universal. As regiões deveriam ser os verdadeiros elos de ligação, pois para o autor é de regiões que o Brasil teria sociologi-camente se desenvolvido desde os seus primeiros dias. Evocava-se, des-te modo, para a ideia de uma suposta “regionalidade”, identificando-a

97 É necessário ressaltar que o interesse pelo estudo das regiões não ficou restrito aos trabalhos de Gilberto Freyre. Nas décadas de 1920 e 1930 vários outros intelectuais também enfren-tavam a dificuldade de pensá-las e defendê-las, em especial quando se trata de um país de dimensões continentais como o Brasil.

como o conjunto de características históricas que tornava possível pen-sar a união e o convívio entre as regiões98. Ainda que corra risco de cair em uma lógica essencialista na defesa das regiões, Gilberto Freyre não negava que o regional e o universal pudessem caminhar juntos, desde que houvesse uma “confraternização” com o exótico e a perpetuação do tradicional. Este aparente paradoxo, contudo, poderia levar a integração do Brasil no fluxo cosmopolita de uma civilização que em obras pos-teriores ao Manifesto Regionalista seria denominada de “luso-tropical”, numa fase em que o autor passaria a legitimar, baseado em estudos de Tropicologia, o imperialismo português nas colônias africanas.

Se em Oswald de Andrade, por exemplo, a relação entre o localismo e o cosmopolitismo se constrói mais nitidamente por uma via antropo-fágica, operando um desrecalque local/ regional (no sentido de mergu-lho no primitivo) das vanguardas europeias, Gilberto Freyre, por outro lado, pensa o regional como uma chave de intermediação para se che-gar ao nacional e assegurar o ingresso do país na modernidade. Pode-se afirmar que existe no pensamento do sociólogo pernambucano a bus-ca, implícita ou explícita, por atingir o equilíbrio entre o tradicional e o moderno, aceitando as novidades industriais de forma moderada. Para Thomaz99 (2015, p. 21), é possível conjecturar uma certa dimensão “an-tropofágica” no pensamento de Gilberto Freyre, em especial quando este descreve a “sedução” que a cultura brasileira exerceria sobre os es-trangeiros, que seriam rapidamente “devorados” por nossa capacidade de assimilação. Assimilação não apenas do índio e do negro, mas tam-bém do europeu e do oriental. A descoberta de tal padrão levaria a so-

98 No caso específico de Gilberto Freyre é possível tratar o conceito de “regionalidade” quase como um equivalente semântico ao conceito de “brasilidade”. Embora ao longo do Manifesto Regionalista o autor tenha discorrido sobre o primeiro, sua linha de raciocínio não anula os efeitos do segundo. Como dissemos antes, ao narrar o regional, ele acreditava estar lidando com a dimensão mais genuína do “espírito” nacional, elogiando a “vitalidade” das regiões – em especial do Nordeste – e seus respectivos padrões de sociabilidade.

99 Omar Ribeiro Thomaz se refere ao livro Interpretação do Brasil, publicado por Gilberto Freyre em 1947, portanto, alguns anos antes da primeira edição do Manifesto Regionalista, em 1952.

ciedade brasileira a incorporar elementos exógenos que acabariam por se adaptar aos valores culturais luso-brasileiros.

Outro fator que poderia acentuar esta correlação entre os autores aqui trabalhados estaria relacionado ao sentido polissêmico que o ver-bo “comer” assume entre nós. Enquanto em Oswald de Andrade o ato de “comer” tem o poder de ligar-se ao rito antropofágico de deglutição carnal e simbólica do “outro”, em Gilberto Freyre este fenômeno esta-ria denotando a “centralidade” da vivência sexual. Ambas as formas de argumentação dependem deste “outro” que, entretanto, se liga ao processo cruento de violência gerada e implantada ao longo da coloni-zação do Brasil. Para o primeiro seria o índio antropófago aquele que, rebelando-se contra o colonizador o “absorve”, enquanto que para o segundo era o colonizador o verdadeiro elemento que agia no sentido “integrar” o “outro” — índios e sobretudo os negros — a si através da “miscigenação”.

Por fim, vale ressaltar mais uma vez que mesmo trabalhando com lógicas distintas tanto Oswald de Andrade quanto Gilberto Freyre dis-correram acerca do “mito fundacional”. Observamos, de acordo com Stuart Hall (2006), que os mitos fundacionais se voltam para um pas-sado atemporal, mas também tentam justificar o presente ou apontar caminhos para o futuro. Como dissemos, foi através do “Matriarcado de Pindorama” que Oswald de Andrade identificou o sentido ritual e mítico — o que não quer dizer inexistente — da Antropofagia, bus-cando unir o suposto sentido “libertário” e “igualitário” deste passado com as conquistas técnicas e materiais da modernidade. Caberia ao antropófago — o bárbaro natural tecnizado — expressão máxima des-ta civilização idealizada pelo autor, aparecer na periferia do sistema para se alimentar simbolicamente do colonizador, reelaborando sua cultura e seus padrões mentais num gesto antropofágico de devoração universal. Para tanto, era necessário “totemizar o tabu”, isto é, trans-formar o valor oposto em valor favorável. Contudo, as consequências deste discurso também geram controvérsias já que, de alguma manei-ra, ele reacende o debate sobre a “apropriação cultural” e o ciclo de

violência ligado muitas vezes à supressão da identidade do “outro” em proveito próprio, ou seja, da cultura que se está absorvendo.

Já Gilberto Freyre desenvolveu e aprimorou uma narrativa focada nos primeiros anos da colonização do Brasil, conhecida em críticas posteriores como o “Mito das três raças”. A consistência “fundacional” da sua análise esteve concentrada no mitológico “encontro harmonio-so” — opostos em equilíbrio — entre o português, o africano e o in-dígena, numa “miscigenação” que, na perspectiva do autor, compen-sou o nosso atraso econômico e político, criando as chamadas “zonas de confraternização”, que definiria a nossa singularidade em relação ao resto do mundo. Entretanto, mesmo ao discorrer a violência des-te processo, denunciando de certo modo o “trauma da escravidão”, a descrição do autor pressupõe e reforça uma suposta “tolerância” e “be-nevolência” do colonizador português, através do ideal da convivência “harmoniosa” e “racialmente democrática”, tornando sua narrativa um arcabouço ideológico de justificação do domínio das classes dirigen-tes. Seja no primeiro caso ou no segundo, estamos diante da existência de histórias contadas pelos vencedores, isto é, aqueles que legitimam a ossatura da “brasilidade”, ainda que não compactuem dos mesmos pontos de vista e em grande medida divirjam entre si.

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Oswald de Andrade e Gilberto Freyre: Sentidos do “nacional” e do “regional” na construção da brasilidade

Rômulo Santos de Almeida

Danielly Chagas

15,5 x 22,0 cmAharoni, Minion Pro

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