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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUCSP Programa de Estudos PósGraduados em Comunicação e Semiótica Paola Prestes Penney POESIA AUDIOVISUAL: Narrativas poéticas no cinema documentário de Werner Herzog MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA SÃO PAULO 2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC‐SP  Programa de Estudos Pós‐Graduados em Comunicação e Semiótica 

 

 

    

  Paola Prestes Penney 

 

 

POESIA AUDIOVISUAL:  

Narrativas poéticas no cinema documentário de Werner Herzog 

 

 

 

 

 

 

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA 

 

 

 

 

 

 

 

SÃO PAULO 

 

2011

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Paola Prestes Penney 

 

 

 

POESIA AUDIOVISUAL: 

Narrativas poéticas no cinema documentário de Werner Herzog 

 

 

 

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA 

 

 

 

 

 

 

 

Dissertação  apresentada  à  Banca 

Examinadora  da  Pontifícia  Universidade 

Católica  de  São  Paulo,  como  exigência 

parcial para obtenção do título de Mestre 

em  Comunicação  e  Semiótica,  sob  a 

orientação  da  Prof.ª  Dr.ª  Lucia  Isaltina 

Clemente Leão. 

 

 

SÃO PAULO 

2011 

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Banca Examinadora: 

 

 

__________________________________ 

 

__________________________________ 

 

__________________________________ 

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AGRADECIMENTOS 

 

 

Ao  apoio  do meu  círculo  afetivo, Maria  Adelaide  Amaral, Meei‐huey Wang,  Silvana 

Lagnado,  Niki  Pozzo  di  Borgo,  Ana  Estela  de  Sousa  Pinto,  Daniela Mattos, Matias 

Lancetti, Cássia Adduci, Flávia Dietrich, Denise Pollini, Luciana Chen e Juliana Kase. 

 

Aos meus filhos Stephen, Alexia e Barbara pela colaboração e incentivo. 

 

A Mauro  Giorgetti,  pela  ajuda  na  pesquisa musical  dos  documentários  de Werner 

Herzog. 

 

A Rainer Standke, pela longa entrevista sobre Lições da escuridão. 

 

A  Eduardo  Escorel,  que  pensa  o  cinema  de maneira  crítica  e  rigorosa  sin  perder  la 

ternura.  

 

A Cida Bueno, da Secretaria do Programa de Estudos Pós‐Graduados em Comunicação 

e Semiótica da PUC.  

 

À CAPES, pela bolsa de estudos. 

 

Aos membros da banca, por  sua pontual e  valiosa  contribuição, Arlindo Machado  e 

Flávio Brito. 

 

À minha orientadora Lucia Isaltina Clemente Leão, pela orientação e postura generosa 

ao compartilhar seu conhecimento. 

 

Ao Ugo. 

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RESUMO 

 

Este estudo  investiga os processos de  construção de narrativas poéticas em  cinema 

documentário  e  seus  resultados.  Para  tanto,  será  analisada  a  questão  da  poesia 

audiovisual que é construída por meio de imagens, sons e palavras. Esta análise servirá 

como  base  para  se  estabelecer  a  questão  proposta  neste  estudo,  a  criação  de 

linguagens poéticas e o mapeamento de novas fronteiras de comunicação e percepção 

sensíveis no contexto da produção de cinema documentário. Três documentários do 

cineasta  alemão Werner  Herzog  são  estudados:  Fata Morgana,  de  1971,  Lições  da 

escuridão,  de  1992  e  Além  do  azul  selvagem,  de  2005,  que,  no  contexto  desta 

dissertação,  compõem  uma  trilogia  poética  do  diretor.  Com  base  nessas  obras  e 

material documental sobre o diretor, a pesquisa procura trazer um entendimento dos 

processos criativos de Herzog e as transformações desses processos, em cada etapa de 

realização  dos  filmes,  da  escolha  de  dispositivos  à  montagem,  analisando 

comparativamente de que maneira são articulados texto, imagem e som. Para tanto, o 

estudo  destas  três  obras  está  estruturado  em  dois momentos:  a  realização  (análise 

técnica), e o  resultado  (análise da  linguagem poética ou artística). A metodologia de 

análise adotada atende a critérios técnicos sensíveis. A fundamentação teórica engloba 

Gaston  Bachelard,  Arlindo Machado  e Gilles Deleuze,  com  o  objetivo  de  revelar  os 

processos  de  criação  de  linguagem  audiovisual  em  cinema  documentário  que 

transcende os limites do gênero. 

 

 

Palavras‐chave: documentário, poéticas, Werner Herzog, Lições da escuridão, Fata 

Morgana, Além do azul selvagem 

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 ABSTRACT   

This  study  investigates  the  processes  through  which  poetic  narratives  are 

constructed  in documentary cinema and their results.  In order to do so, the question 

of  the audiovisual poetry  that  is  formed  through  images,  sounds, and words will be 

analyzed. In its turn, this analysis will serve as the basis of the proposition of this study, 

the  creation  of  poetic  languages,  and  the mapping  of  new  discernible  frontiers  of 

communication  and  perception  in  the  context  of  the  production  of  documentary 

cinema. Three documentaries by the German filmmaker Werner Herzog are analyzed – 

Fata Morgana  (1971), Lessons of darkness  (1992), and The wild blue yonder  (2005) – 

which,  in  the context of  this dissertation, constitute a poetic  trilogy. Based on  these 

works and documental material on the director, this project aims to elucidate Herzog’s 

creative  processes  and  their  transformations  in  each  phase  of  realization  of  those 

films,  from  the  choices  in  conceptual  approach  to  the  editing,  by  comparatively 

analyzing the way text, image, and sound are worked together. To this end, the study 

of  these  three works  is  founded  in  two moments:  the  realization  (technical analysis) 

and the result  (analysis of the poetic or artistic  language). This methodology satisfies 

technical  criteria  as much  as  it  does  sensibility  criteria,  and  when  combined  with 

Gaston Bachelard’s, Arlindo Machado’s, and Gilles Deleuze’s  concepts of  image,  this 

study  reveals  the processes of audiovisual  language creation  in documentary cinema 

that transcend the limits of the genre. 

 

 

Key‐words: documentary, poetic, Werner Herzog, Lessons of darkness, Fata Morgana, 

The wild blue yonder 

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SUMÁRIO 

 

 

AGRADECIMENTOS..........................................................................................................04 

 

ABSTRACT ........................................................................................................................05 

 

RESUMO...........................................................................................................................06 

 

INTRODUÇÃO...................................................................................................................09 

 

CAPÍTULO 1 ‐ O DOCUMENTÁRIO COMO EXPERIÊNCIA POÉTICA...................................13   

1.1. A voz poética............................................................................................14   

1.2. O olhar da maginação ..............................................................................16 

1.3. Dispositivos criativos................................................................................18 

1.4. A reinvenção do documentário ...............................................................20 

 

CAPÍTULO 2 ‐ WERNER HERZOG, POETA AUDIOVISUAL .................................................25 

2.1. Um epicentro poético ..............................................................................26 

2.2. O êxtase da música e da palavra..............................................................29 

2.3. Paisagens mentais e seus personagens ...................................................39 

2.4. A articulação de sonhos ...........................................................................59     

CAPÍTULO 3 ‐ UMA TRILOGIA POÉTICA ...........................................................................68   

3.1.  Terra, céu e espaço ..................................................................................69 

3.2.  Fata Morgana: deserto e danação...........................................................78   

3.3.  Lições da escuridão: o Apocalipse em treze quadros ............................102 

3.4.  Além do azul selvagem: o círculo poético se fecha ...............................117         

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................135   

            

 

APÊNDICE.......................................................................................................................142 

Entrevista com Rainer Standke, montador de Lições da escuridão................143   

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ANEXOS..........................................................................................................................159 

1. Declaração de Minnesota ............................................................................160 

2. Ficha técnica dos filmes estudados .............................................................163 

3. Filmes de Werner Herzog ............................................................................165 

4. Documentários sobre Werner Herzog e seus filmes citados ......................180 

5. Filmes de outros diretores citados ..............................................................181 

6. Óperas dirigidas por Werner Herzog ...........................................................182   

7. Índice iconográfico.......................................................................................184   

        

FONTES BIBLIOGRÁFICAS...............................................................................................187 

1. Bibliografia ...................................................................................................188   

2. Artigos..........................................................................................................190 

3. Teses e dissertações ....................................................................................190                                

4. Webgrafia ....................................................................................................190   

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INTRODUÇÃO 

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  A escolha de um tema de pesquisa costuma ter diversos motivos e seu recorte 

uma miríade de  implicações que, ao contrário de nos dispersar, representa o desafio 

de dever nos direcionar, para que possamos  responder  à questão que  impulsiona  a 

pesquisa. No caso deste estudo, a escolha do cinema documentário como  tema está 

estreitamente  ligada  à minha  atividade de documentarista, que me obriga  a  refletir 

sobre esse gênero de fazer cinematográfico todos os dias.  

Em  primeiro  lugar,  no  que  tange  o  escopo  do  trabalho,  tendo  realizado 

documentários de  linguagem experimental, decidi que me debruçaria – pela primeira 

vez por escrito – sobre o documentário como produção audiovisual poética, ou filme‐

ensaio. Para tanto, queria que a pesquisa fosse composta tanto por elementos que me 

são familiares e de apelo sensível – o apreço pela poesia e pelo cinema documentário 

–, como elementos que representassem um desafio  intelectual – a apreensão de um 

processo criativo vinculado a uma cultura distante da minha. Ao unir emoção e razão, 

eu procurava atingir um dos objetivos almejados: gerar um  trabalho que oferecesse 

uma perspectiva original e uma reflexão aprofundada sobre a questão. 

Mas, a importância de se falar sobre o documentário poético não pode ter uma 

origem pessoal apenas. A produção do denominado filme‐ensaio tem crescido dentro 

da  produção  audiovisual mundial,  ampliando  a  comunicação  entre  várias  áreas  de 

criação  como  cinema,  literatura,  artes  visuais,  música  e  teatro.  Essa  crescente 

interdisciplinaridade  do  documentário  incrementa  sua  produção  em  termos 

quantitativos,  mas  também  sua  relevância  em  termos  criativos,  e  abrangência  no 

campo das artes e da comunicação. Se esses fenômenos mereceram o reconhecimento 

do  público  e  de  teóricos,  foram  de  fato,  até  agora,  pouco mapeados  e  estudados. 

Assim, o principal objetivo deste estudo é oferecer, por meio do recorte específico da 

linguagem poética encontrada nos documentários de Werner Herzog, uma análise e 

interpretação  da  transformação  dos  processos  criativos  do  documentário  e  a 

linguagem audiovisual poética que dela decorre.  

No primeiro capítulo, é abordada a questão da transformação da linguagem em 

cinema  documentário,  visando  fornecer  bases  históricas  e  conceituais  para  se 

vislumbrar  os  novos  contornos  do  panorama  na  produção  de  documentários  das 

últimas décadas até hoje. Contudo,  se nesse estágio de  reflexão ampliado não  cabe 

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mais a pergunta: “O documentário é realidade ou ficção?”, a pergunta que se surge no 

lugar é, “Então, o que é documentário?”.  

No  artigo O  Filme‐Ensaio, Arlindo Machado desvincula  a noção de ensaio do 

formato literário. Ao associar o ensaio ao formato cinematográfico, Machado afirma a 

possibilidade de se construir um pensamento não fundamentado na linguagem escrita 

ou verbal, mas por meio de enunciados audiovisuais: 

 

Se o documentário tem algo a dizer que não seja a simples celebração de valores,  ideologias e  sistemas de  representação  cristalizados pela história ao  longo dos  séculos,  esse  algo  a mais que  ele  tem  é  justamente o que ultrapassa  os  seus  limites  enquanto  documentário.  O  documentário começa a ganhar  interesse quando ele se mostra capaz de construir uma visão ampla, densa a  complexa de um objeto de  reflexão, quando ele  se transforma  em  ensaio,  em  reflexão  sobre  o  mundo,  em  experiência  e sistema de pensamento assumindo, portanto, aquilo que todo audiovisual é na sua essência: um discurso sensível sobre o mundo. Eu acredito que os melhores  documentários,  aqueles  que  têm  algum  tipo  de  contribuição  a dar  para  o  conhecimento  e  a  experiência  do  mundo,  já  não  são  mais documentários no sentido clássico do termo; eles são, na verdade, filmes‐ensaio (ou vídeos‐ensaios, ou ensaios em forma de programa de televisão e hipermídia). (MACHADO, 2003: 10, grifos do autor)  

 

E, no âmbito da questão que é colocada neste estudo, se o documentário pode 

ser um ensaio construído a partir de sons e  imagens, pode ele, pelo mesmo viés, ser 

poesia?  

No segundo capítulo, além do conceito proposto por Machado, essa questão é 

também investigada à luz de Gaston Bachelard, que define a criação poética como um 

processo não ensimesmado, mas, pelo contrário, aberto, vital e em comunicação com 

outras formas de pensamento e processos criativos. Nesse capítulo, Werner Herzog é 

apresentado como poeta audiovisual: na medida em que recorre a alicerces poéticos 

na  construção  de  seus  filmes,  ele  transcende  a  condição  de  cineasta  ao  criar  uma 

linguagem original que, apesar de autoral e, portanto, subjetiva, torna‐se universal ao 

engendrar  um  resultado  que  está  em  comunicação  com  obras  de  outros  autores, 

sejam  elas  literárias,  musicais  ou  pictóricas,  e,  não  menos  importante,  em 

comunicação com o público de cinema e televisão.  

A  estrutura  fílmica  constituída  por  imagem,  palavra  e  som  e  a  articulação 

desses  elementos  é  analisada  por meio  da  trilogia  poética  composta,  no  contexto 

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deste estudo, pelos filmes Fata Morgana (1971), Lições da escuridão (1992) e Além do 

azul selvagem (2005). Em diversos textos que abordam a obra de Herzog, esses filmes 

são denominados ora documentários, ora ensaios  fílmicos, ora  ficção  científica. Mas 

não é tanto a nomenclatura referente ao gênero como sua composição que, no caso, 

nos  interessa:  a  finalidade  da  análise  é  o  aprofundamento  da  reflexão  sobre  os 

elementos conceituais e formais que tornam um filme uma obra poética tão adequada 

ao  termo  quanto  sua  versão  tradicional,  o  poema  escrito  com  palavras,  ou  seja,  a 

busca por um genuíno espírito e fazer poéticos oriundos de sons e imagens.  

Se no segundo capítulo são comentados os elementos poéticos que aproximam 

os  três  filmes  e  fazem  deles  referências  na  realização  de  filmes‐ensaio,  no  terceiro 

capítulo,  cada um dos  filmes é abordado  individualmente em um processo analítico 

técnico. Eles são comentados  linearmente, ou plano‐sequência após plano‐sequência. 

As imagens e os elementos sonoros de cada filme são descritos, relacionados entre si, 

mas também dialogam com outras obras, de filmes à obras literárias, a fim de propiciar 

uma  interpretação  e  entendimento  sensível  do  processo  criativo  em  questão  e  seu 

resultado.  

O documentário que nasce dos processos estudados representa uma renovação 

no  fazer cinematográfico que caminha em direção à  interdisciplinaridade e, por esse 

motivo,  estabelece  novas  possibilidades  de  expansão  no  âmbito  da  criação  de 

linguagens audiovisuais. 

 

 

   

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CAPÍTULO 1. O DOCUMENTÁRIO COMO EXPERIÊNCIA POÉTICA 

 

 

 

 

 

                                                               Nunca a poesia é mais uma do que quando ela se diversifica. 

                                                                                                                (Gaston Bachelard, A poética do 

devaneio)

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1.1. A voz poética 

 

À  primeira  vista,  poesia  e  documentário  talvez  não  sejam  percebidos  como 

parceiros naturais para a composição de um binômio criativo, como acontece no caso 

da música e da dança. Essa aparente incompatibilidade tem origem na relação que, de 

um modo geral,  se estabeleceu entre  cinema documentário e  fato  real ao  longo do 

século  XX.  Contudo,  como  será  demonstrado  neste  estudo,  apesar  dessa  contumaz 

associação, o documentário possui uma  imanência poética que sobrevive a correntes 

estéticas, ideologias, e orientações pedagógicas e científicas. 

O  cerne  do  trabalho  apresentado  é,  portanto,  o  documentário  que  não  está 

confinado  à  linguagem  jornalística  ou  didática,  que  não  se  submete  ao  fato  ou  às 

fronteiras  pouco  confiáveis  daquilo  que  se  denominou  “realidade”. Mas,  se  por  um 

lado  a  relação  do  documentário  com  a  “realidade”  é  algo  que  se  questiona,  pois 

mediada pela  linguagem  audiovisual, por outro, essa discontinuidade  com  relação  a 

um compromisso com uma narrativa realista e factual não causa mais estranhamento. 

Isso  porque,  há  algum  tempo,  essa  noção  representa  apenas  a  primeira  etapa  em 

direção à questão  final deste estudo: a criação e consolidação de uma  linguagem de 

forma e fundo poéticos por meio do cinema documentário. 

Em uma pesquisa com este recorte, faz sentido lembrar que o filme usualmente 

designado como marco oficial do  início do cinema não é uma encenação  (ou  ficção), 

mas  o  registro  de  um  acontecimento  rotineiro  da  vida.  Ou  seja,  um  registro 

documental. A chegada do trem à estação de la Ciotat (L'arrivée d´un train en gare de 

La Ciotat), curta‐metragem de 1895 de autoria dos irmãos Auguste e Louis Lumière é, 

como  diz  o  título,  o  registro  da  chegada  de  um  trem  na  estação  de  uma  cidade 

francesa. No  filme,  além  do  trem,  o  espectador  vê  pessoas  saindo  do  trem,  indo  e 

vindo pela plataforma da estação do ponto de vista de uma câmera fixa. 

No início do cinema, o olhar descobre um novo território de exploração visual, 

intermediado por uma máquina, no qual, diferentemente da fotografia, o ser humano 

tem a sensação de poder encapsular segmentos  importantes de um tempo  linear por 

meio de imagens aparentemente em movimento. Nesse momento, não existe ainda a 

preocupação  de  se  separar  documentário  de  ficção.  Aliás,  sequer  existe  o  termo 

“documentário” para definir o gênero, supostamente cunhado algumas décadas mais 

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tarde por John Grierson. O interesse está no registro em si das imagens, que adquirem 

novas camadas de interesse ao serem registradas e mostradas repetidas vezes. O olhar 

do  cineasta  procura  a  graça  e  o  poder  de  uma  imagem  em  princípio  corriqueira, 

exercendo um tipo de controle sobre o tempo – ou a ilusão de controle –, conferindo, 

assim,  um  novo  sentido  às  coisas,  e,  consequentemente,  uma  nova  percepção  do 

mundo. 

Em 1929, portanto  trinta e quatro anos depois dos primeiros ensaios  fílmicos 

dos  irmãos Lumière, Dziga Vertov realiza O Homem com a câmera. O cinema  já havia 

incorporado outras funções além de registrar e entreter, e o filme denotava um olhar 

imbuído de um  ideal  social de  contornos  construtivistas. Vertov desconstrói o  fazer 

cinematográfico de fantasia (no sentido de alienação burguesa) mediante a exposição 

de  seus mecanismos. No  entanto,  ele  realiza  um  filme  que  não  consegue  conter  o 

deslumbramento diante daquilo que a câmera‐olho vê e registra. 

Nessa obra seminal de Vertov, há  liberdade de criação poética na captação de 

imagens e, sobretudo, na montagem. Apesar da intenção construtivista que impregna 

as artes no período, Vertov desconstrói o  fazer  cinematográfico no aspecto  técnico, 

mas não deixa de construir no  lugar um cinema de concepção visual poética: ele  se 

permite  imaginar situações para além da realidade, como o pequeno cineasta em pé 

sobre uma câmera gigantesca, objetos  inanimados movendo‐se sozinhos, e situações 

onde a imagem encenada e a imagem documental são articuladas com a finalidade de 

se  compor uma  realidade  imaginada pelo  autor  (sempre  com uma  função  social), e 

materializada na mesa de montagem. Quase um século depois de sua realização, o que 

permanece do  filme de Vertov não é  tanto o  ideário político que o motivou, mas a 

poesia de suas imagens. 

Ao citar as experiências  fílmicas de Dziga Vertov na então denominada União 

Soviética,  faz‐se necessário mencionar  seu  contraponto ocidental: a experimentação 

poética  de  artistas  e  cineastas  como  René  Clair,  Jean  Epstein,  Man  Ray,  Marcel 

Duchamp e Joris Ivens por volta do mesmo período. Como explica Bill Nichols, 

A experimentação poética no cinema origina‐se sobretudo do cruzamento do  cinema  com  diversas  vanguardas  modernistas  do  século  XX.  Essa dimensão poética desempenha papel fundamental no surgimento de uma voz do documentário. O potencial poético do cinema, no entanto, continua quase  totalmente ausente no “cinema de atrações”, em que a “exibição” 

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tem prioridade sobre a “fala poética”. [...] A vanguarda floresceu na Europa e na Rússia na década de 20. Sua ênfase em ver as  coisas de uma outra maneira,  pelos  olhos  do  artista  ou  cineasta,  teve  um  imenso  potencial libertador. Ela  livrou o cinema da reprodução daquilo que aparecia diante da  câmera,  para  prestar  uma  homenagem  à maneira  pela  qual  “aquilo” poderia  tornar‐se  a  matéria‐prima  não  só  do  cinema  narrativo,  mas também de um cinema poético. Esse espaço além do cinema convencional se tornou o campo de provas das vozes que falavam com os espectadores em linguagens diferentes da do longa‐metragem de ficção. (NICHOLS, 2005: 123‐126)  

 

  Todavia,  o  objetivo  aqui  não  é  traçar  a  história  do  cinema  documentário  no 

século XX – tarefa já executada com competência por vários historiadores e teóricos da 

área –, mas apontar a importância de seu papel dentro da produção cinematográfica, 

em geral, pelo viés de seu caráter  imaginativo, experimental e de suas possibilidades 

poéticas.  

Neste início de século XXI, o documentário conheceu, no Brasil e no mundo, um 

crescimento  significativo.  Porém,  não  cresceu  em  uma  única  direção,  muito  pelo 

contrário. A proliferação de documentários segue adiante, gerando uma multiplicação 

– ou ramificação – de conteúdos, assim como visíveis mudanças na forma do gênero. O 

documentário se afasta a passos  largos da noção de didatismo, verossimilhança e do 

papel  de  porta‐voz  de  ideologias,  desvencilhando‐se  da  associação  com  o  real  e do 

compromisso  com a verdade histórica. Afirma‐se, não mais  como uma etapa ou um 

exercício a ser cumprido antes de um cineasta “ascender” ao cinema de  ficção, mas 

como gênero  independente e autossuficiente, pois  flexível, de  realização mais ágil e 

barata  do  que  o  tradicional  cinema  de  ficção.  É,  portanto,  arena  ideal  para 

questionamentos estéticos e conceituais, para a experimentação de novas  linguagens 

e para o aprofundamento da relação entre realizador, espectador e o mundo.   

 

 

1.2.  O olhar da imaginação 

 

A noção de poesia como  invenção ou mentira não é novidade. Trezentos anos 

antes  de  Cristo,  Aristóteles  escrevia:  “Con  respecto  a  la  poesía  es  preferible  algo 

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imposible, pero creíble, que algo posible, pero no creíble.” (ARISTÓTELES, 2003: 120)1. 

E:  

 

Puesto que el poeta es  imitador,  lo mismo que el pintor o cualquier otro realizador de imágenes, es necessário que imite siempre de una de las tres maneras siguientes: o bien como son o eran las cosas, o bien como dicen o parecen que son, o bien como deben ser. (2003: 115). 2 

 

  Vinte e três séculos mais tarde, Fernando Pessoa escreveria os versos3, 

 

O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. 

 E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. 

 E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração. 

 

  Ele seria secundado por Roland Barthes: “É preciso que haja trapaça em algum 

lugar para que haja arte.”4, e  também por Abbas Kiarostami, que diria sobre o  fazer 

cinematográfico: 

 

Seja documentário ou  ficção, é  tudo uma grande mentira que  contamos. Nossa arte consiste em contá‐la de maneira que as pessoas acreditem. Que uma parte seja documentário e outra uma reconstituição, é nosso método de  trabalho,  e  ele não diz  respeito  ao público. O mais  importante  é que 

alinhamos uma série de mentiras para chegarmos a uma verdade maior. 5 

 

1 “A respeito da poesia, é preferível algo impossível, porém crível, que algo possível, porém não crível.” 

(Tradução nossa) 2 Posto  que  o  poeta  é  um  imitador,  como  o  pintor  ou  qualquer  outro  realizador  de  imagens,  é 

necessário que  imite sempre de uma das três maneiras seguintes: ou como são ou eram as coisas, ou como dizem ou parecem que são, ou como deveriam ser. (Tradução nossa) 3 Cf. PESSOA, Fernando. Autopsicografia in Obra Poética, p. 164. 4 BARTHES, Roland. Fragments de Voix. Archives Sonores  Ina. Série Les Grandes Heures. Depoimento 

para Jean‐Marie Benoist e Bernard‐ Henri Lévy, fevereiro de 1977. 5  Informação  verbal  a  partir  do  documentário  Abbas  Kiarostami,  verdades  e  mentiras,  Jean‐Pierre 

Limosin, 1994.  

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Visto  a  longevidade  da  questão  do  real  versus  fantasia  que  suscitam  os 

processos criativos, este estudo não pretende ter o alcance de tratar da natureza da 

poesia, cujos  limites  indefiníveis pairam há milênios sobre a realidade e a ficção, sem 

nunca  escolher  nem  uma  nem  outra:  Propõe  revelar  a  recente  aproximação  do 

documentário de uma intenção poética, abraçando‐a explicitamente em seu processo 

de realização. 

No  texto A  direção  do  olhar,  Eduardo  Escorel  propõe  outro  tipo  de  embate: 

uma dualidade entre o olhar  ficcional e o documental, sendo o olhar para dentro do 

cinema de ficção e o olhar para fora, do documentário. No entanto, Escorel admite a 

possibilidade de uma simbiose entre esses dois movimentos, exemplificada pelo filme 

Imagens do inconsciente (1983‐86), de Leon Hirszman: 

 

Embora,  em  sentido  estrito,  Imagens  do  inconsciente  seja  um documentário,  a  realidade observada  e  registrada,  como o próprio  título indica, é a materialização visual do mundo  interior. Ou  seja, o olhar para fora  do  documentarista  capta  o  olhar  para  dentro  dos  personagens  e procura recriar, em procedimento paralelo ao da ficção, a história de vida de três artistas psicóticos que misturam, em suas obras, sonho e realidade. De um  lado, Leon considera que o  filme é “científico, didático”, de outro afirma  que  é  narrado  “através  dos  próprios  quadros  que  eles  pintaram expressando  seus  mundos  interiores”.  Uma  visão  objetiva,  documental, sobre  processos  terapêuticos  em  que  a  expressão  da  subjetividade  tem papel  central. Num  só  filme,  observação  da  realidade  e  história  de  vida recriada. Um  filme híbrido. Documentário,  sem dúvida, mas  com marcas características da ficção. (ESCOREL, 2005: 103, grifos do autor) 

 

O olhar da imaginação não se confina aos limites da física ou da lógica. Permite‐

se procurar a tradução poética do ser humano no mundo e dentro de si próprio. Torna‐

se assim aquilo que todo audiovisual é na sua essência: um discurso sensível sobre o 

mundo. (MACHADO, 2003: 68) 

 

 

1.3. Dispositivos criativos 

 

Diferentemente do  filme de  ficção, o  filme documentário pode prescindir de 

um roteiro. Talvez, por esse motivo, o documentário tenha criado outros meios para se 

pautar, organizar e controlar o seu processo criativo, como dispositivos. Um dispositivo 

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é uma estratégia narrativa cujo objetivo é criar uma situação não controlada, a qual só 

pode acontecer por meio da aplicação desse dispositivo. Ele pode ser comparado às 

regras de um jogo ou ser a diretriz de um processo criativo audiovisual.  

Diferentes  dispositivos  têm  sido  utilizados  na  construção  de  narrativas 

experimentais  e  poéticas.  Em  As  cinco  obstruções  (2003)  de  Lars  von  Trier,  são 

impostas  regras  (ou  desafios)  ao  cineasta  Jorgen  Leth  que,  em  princípio,  visam  a 

dificultar  seu processo  criativo. Porém,  cada obstrução  faz  com que  Leth  se  supere, 

criando um novo filme. No caso, a obstrução não é apenas um dispositivo, pois, além 

de  ser  uma  estratégia  narrativa,  possui  a  função  dramática  de  um  terceiro 

personagem, ao lado de Von Trier e Leth. Ela é intermediária na relação entre os dois 

cineastas, expondo ao espectador suas tensões, irritação e admiração.  

Outro exemplo de estratégia narrativa construída por meio de um dispositivo é 

encontrada  no  documentário  Jogo  de  cena  (2007),  de  Eduardo  Coutinho:  cada 

depoimento  foi  colhido  segundo  regras  criadas  pelo  realizador  e  o  resultado  do 

trabalho  está nas  situações  geradas por  essa estratégia. Porém, da mesma maneira 

que um dispositivo pode ser aplicado para causar um determinado impacto, ele pode 

também ser utilizado com a finalidade oposta, amenizar impactos, como, por exemplo, 

aquele gerado por uma situação de filmagem.  

O Cinema Direto americano obedeceu a regras rígidas com essa finalidade. Por 

meio  delas,  pretendeu  chegar  o mais  perto  possível  do  registro  de  um momento 

“real”, permitindo que uma situação e seus personagens seguissem seu curso como se 

a equipe de filmagem não estivesse presente. A não  interferência dos realizadores, a 

câmera  invisível (ou quase), os planos  longos e de observação, a proibição do uso de 

trilha musical, narração ou voice‐over estão entre algumas  regras do Cinema Direto. 

Apesar  da  situação  de  um  documentário  do  Cinema  Direto  acontecer 

independentemente  de  um  dispositivo,  o  resultado  dessa  não  interferência  é  tão 

determinante sobre o resultado do trabalho quanto a  interferência do dispositivo de 

Coutinho  em  Jogo  de  Cena.  Pois,  se  a  ação  se  desenrolaria  independentemente  da 

presença da equipe de filmagem, ela se desenrolaria de outra maneira. 

Contudo, apesar de todo esse cuidado estratégico na captura de um momento 

“real”, não seria correto dizer que os documentários de Albert e David Maysles, Robert 

Drew, Frederick Wiseman, D. A. Pennebaker e Richard Leacock sejam desprovidos de 

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teor poético. Como no caso de Vertov, a  imanência poética do cinema documentário 

parece não poder ser brecada por teorias sobre a realidade, uma noção de verdade ou 

dispositivos. Faz‐se viva e presente não naquilo que é real ou encenado, mas naquilo 

que o documentário torna visível ao espectador, da articulação de  imagens e sons às 

emoções.   

 

 

1.4. A reinvenção do documentário 

 

O  compromisso  do  cinema  de  ficção  com  a  necessidade  de  êxito  comercial 

aliado  ao  pouco  caso  com  relação  ao  cinema  documentário  por  parte  de  redes  de 

televisão  e  distribuidores  de  filmes  talvez  tenha  dado  tempo  ao  documentário  de 

incubar  a  sua  espontânea  reinvenção.  Transformações  conceituais,  assim  como  o 

advento de novas mídias e meios, como o DVD e a internet, esfumaçaram a noção de 

filme  de  arte  e  filme  comercial.  O  cinema  de  ficção  busca,  há  anos, maneiras  de 

recuperar  seu  público  e  prestígio,  propondo  alternativas  por  vezes  artificiais,  que 

denotam  uma  maior  preocupação  com  sua  sobrevivência  imediata  do  que  com  a 

qualidade  da  linguagem  cinematográfica.  Filmes  interativos  e  fórmulas 

cinematográficas  moldadas  por  formatos  oriundos  da  internet  tendem  a  surtir 

interesse por um  tempo  limitado, ou até aparecer outra  ferramenta que represente, 

mais uma vez, a possibilidade de “modernização” do cinema.  

A busca pela  inovação da  linguagem  cinematográfica de  ficção  tem  raízes na 

necessidade de  resgate de um prestígio do passado. Cria‐se, assim, um  impasse: Por 

um  lado,  olha‐se  para  trás,  e,  por  outro,  projeta‐se  um  futuro  onde  é  negado  ao 

cinema de ficção o direito de permanecer fiel a abordagens tradicionais que ainda são 

capazes de narrar uma história de maneira eficaz. Essa dicotomia dificulta a criação de 

uma linguagem audiovisual coesa, direcionada e genuinamente inovadora.  

Na  sua busca por novas  linguagens, o  cinema de  ficção  tem  lançado mão de 

diversos  recursos,  como  sofisticados  efeitos  visuais  e  sonoros.  Por  outro  lado,  não 

deixou de lado a prática de recorrer ao documentário, inserindo material documental 

em meio às sequências encenadas. Esse fenômeno não é recente, assim como filmes 

de ficção inspirados em documentários, como são os casos de Socorro Nobre (1995) e 

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Central do Brasil (1998), de Walter Salles, e Edifício Martinelli (1975) e Sábado (1995) 

de Ugo Giorgetti. Ônibus  174  (2002)  de  José  Padilha  deu  origem  à  ficção  de Bruno 

Barreto, Última parada 174  (2008). Werner Herzog  ficcionalizou seu documentário O 

pequeno Dieter quer voar (1998), realizando O sobrevivente (2006).  

Essa tendência tem dado sinais de que está crescendo: nos últimos anos – ou 

desde a realização de filmes como Duas ou três coisas que sei dela (1967) de Jean‐Luc 

Godard –, afirma‐se no panorama da produção  cinematográfica mundial um gênero 

em que o grau de  imbricamento entre material documental e  ficcional é tão estreito 

que acena para um novo  tipo de  linguagem audiovisual. É o caso de Documentiroso 

(1980),  de Agnès Varda,  Caro Diário  (1993)  e Abril  (1998),  de Nanni Moretti,  Irmãs 

jamais (2010), de Marco Bellocchio, e Isto não é um filme (2011), de Jafar Panahi (com 

a colaboração de Mojtaba Mirtahmasb). 

Enquanto  isso,  o  documentário  que  não  segue  o  modelo  de  programa 

jornalístico ou didático permanece ignorado pela televisão, e o documentário que não 

apresenta  uma  narrativa  histórica  –  ou  biográfica  –  tem  dificuldade  de  encontrar 

espaço nas salas de cinema. No entanto, em vez de obrigar‐se a mudar para agradar, 

esses  documentários  simplesmente  migraram  para  as  galerias  de  arte,  museus  e 

instituições culturais. Esse êxodo não  lhes valeu um  reconhecimento de massa, nem 

financeiro. No entanto, agregou valor ao gênero, municiando o documentário poético 

para ensaiar sua entrada em festivais de cinema, fazendo, assim, o caminho de volta  

para aquele que se supõe ser seu ponto de origem: o cinema e a televisão.6 

Chris Marker, autor de obras como Sans soleil (1983) e La Jetée (1962) ampliou 

o horizonte da exploração de possibilidades poéticas do som e da imagem.  La Jetée é 

uma ficção científica feita a partir de uma montagem de fotografias. Werner Herzog se 

refere ao seu documentário Além do azul selvagem  (2005) como “fantasia em  ficção 

científica”.  Posto  que  ficção  científica  é  uma  narrativa  sobre  algo  que  ainda  não 

aconteceu, o  termo parece  conter um pleonasmo. Ou não,  se  aceitarmos não  ser  a 

comprovação dos dados científicos utilizados no filme, a maior preocupação do diretor 

6 No 16o Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade de 2011, o júri da mostra competitiva 

de  longas‐metragens  brasileiros  atribuiu  a Menção  Honrosa  ao  documentário  Aterro  do  Flamengo (2010), de Alessandra Bergamaschi. O documentário segue uma linha de trabalho que Bergamaschi vem desenvolvendo  há  anos,  no  âmbito  das  artes  visuais.  A  premiação  do  trabalho  aponta  para  uma ampliação do horizonte na produção de cinema documentário em meios de difusão e divulgação que não são marginais, tampouco exclusivamente inerentes às artes visuais.  

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ao  construir  sua  fábula. O  filme Além  do  azul  selvagem  será  abordado  no  decorrer 

deste estudo. Por hora, noto apenas que o filme de Marker pode fazer jus à definição 

de Herzog, uma fantasia em ficção científica, ou seja, uma dupla invenção, na medida 

em que o aspecto científico também está sujeito à intenção e intervenção poéticas do 

realizador. 

Mas não é só a arte e a poesia que estão à escuta da ciência. Inversamente, a 

ciência também pode estar à escuta da arte e da poesia, como aponta Patrick Wilcken 

no  livro  Claude  Lévi‐Strauss  –  O  poeta  no  laboratório  (2011).  Nele,  é  abordada  a 

vocação  artística  de  Lévi‐Strauss  na  juventude  e  o  olhar  lírico  que  essa  vocação 

imprimiu  em  seu  trabalho  como  etnólogo  ao  longo  da  vida,  notadamente  nas 

fotografias que fez de índios bororos e caduveus. Essa possibilidade poética na ciência 

corrobora a visão de Bachelard sobre a necessidade de porosidade e diversidade para 

a criação de uma poesia una: 

 

Comment  entrer  dans  la  poético‐sphère  de  notre  temps?  Une  ère d’imagination libre vient de s´ouvrir. De toute part, les images envahissent les airs, vont d´un monde à  l´autre, appellent et  l´oreille et  les yeux à des rêves  agrandis.  [...]  Les  âges  poétiques  s’unissent  dans  une  mémoire vivante. Le nouvel âge  réveille  l’ancien. L’ancien âge vient  revivre dans  le nouveau.  Jamais  la  poésie  n´est  aussi  une  que  lorsqu´elle  se  diversifie. (BACHELARD, 2009: 23) 7 

 

Construções narrativas experimentais de  intenção poética, como os  filmes de 

Marker e a  trilogia de Godfrey Reggio, Koyaanisqatsi,  vida  fora de equilíbrio  (1982), 

Powaqatsi,  vida  em  transformação  (1988)  e  Naqoyqatsi,  vida  como  guerra  (2002), 

aproximam  o  cinema  documentário  das  artes  visuais.  Se  pensarmos  nos  filmes  que 

Andy Warhol  realizou na década de  1960,  surge  a pergunta:  É possível  afirmar que 

Chris Marker é cineasta documentarista e Andy Warhol artista visual, ou vice‐versa? 

Não seriam ambos, as duas coisas?  

A pergunta pode ser feita com relação a trabalhos mais recentes, como no caso 

de Shirin Neshat e Bill Viola, cuja produção evoca o espírito experimental dos ensaios 

7 Como entrar na poético‐esfera de nosso tempo? Uma era de  imaginação  livre acaba de se abrir. De 

todas as partes, as  imagens  invadem os ares, vão de um mundo para outro, chamam os ouvidos e os olhos para  sonhos ampliados.  [...] As  idades poéticas  se unem dentro de uma memória viva. O novo tempo desperta o antigo. A  idade antiga vem reviver dentro da nova. Nunca a poesia é tão una como quando ela se diversifica. (Tradução nossa) 

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fílmicos de  Joris  Ivens e Maya Deren. A multiplicidade de perspectivas  se  afirma na 

segunda  metade  do  século  XX,  engendrando  novas  técnicas  e  conceitos  no  fazer 

artístico. Assistimos à proliferação de obras multimeios, que frequentemente recorrem 

a suportes audiovisuais: Essas ramificações e sobreposições técnicas e conceituais têm 

contribuído para fomentar a produção de documentários poéticos.  

Foram mencionados apenas alguns realizadores que pensam filmicamente por 

meio de imagens e cuja obra transcendeu o filme em si, expandindo as possibilidades 

nos  processos  criativos  em  cinema  documentário,  e,  consequentemente  seus 

resultados. Devido a essa expansão, tal como na ficção os limites entre cinema de arte 

e cinema comercial têm se diluído, não seria despropositado  imaginar que tendem a 

aumentar as áreas de interseção entre o documentário poético e o documentário mais 

estreitamente vinculado aos fatos.  

Duas últimas perguntas antes de se seguir adiante: no documentário No Além 

do  azul  selvagem  com Werner Herzog  (2006),  extra  do DVD  do  filme  Além  do  azul 

selvagem, o diretor afirma que  filmes pertencem às salas de cinema, e não a outros 

meios  de  veiculação  e  difusão,  como  o  computador  ou  o  i‐Phone.  Poderia  essa 

afirmação significar que o  local onde um filme é projetado pode servir de parâmetro 

para defini‐lo como cinema ou arte visual? O conceito que articula projeção e espaço é 

desenvolvida por Roberto Moreira Cruz: 

 

É cada vez mais frequente a presença de uma situação cinematográfica em espaços  distintos  ao  da  sala  de  cinema.  Nos  circuitos  demarcados  por museus, galerias, mostras de arte contemporêneas e centros dedicados à artemídia, o público encontra o que pode ser considerada uma  tendência nos  modos  de  exibir  obras  audiovisuais.  O  chamado  cubo  branco tradicional  se  transforma  em  caixa‐preta.  O  espaço  da  exposição transforma‐se em espaço da projeção. O cinema se  instala no museu e as imagens projetadas nestes ambientes sugerem modos originais de elaborar e compreender as narrativas propostas nestas circunstâncias. (2010: 6) 

 

Ao pensarmos na relação entre filme e espaço, torna‐se  inevitável ponderar a 

relação  entre  filme  e  realizador:  na medida  em  que,  diante  das  transformações  do 

gênero,  o  termo  “documentário”  (aparentado  à  palavra  “documento”)  tem  sido 

colocado  em questão, não  seria natural  colocar  em questão  também  a  intenção de 

quem realiza um documentário ou faz videoarte? Diante da dificuldade crescente de se 

definir  o  gênero  (documentário,  documentário  poético,  ensaio  fílmico,  filme‐ensaio, 

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fantasia em ficção científica, videoarte, etc.), uma única certeza aparece com relação à 

produção desses  filmes e os  reúne  sob uma mesma égide: a experiência poética na 

produção audiovisual. 

Nos  capítulos  seguintes, a  fim de  se desenvolver a questão do documentário 

como experiência poética, serão comentados  três documentários de Werner Herzog: 

Fata  Morgana  (1971),  Lições  da  escuridão  (1992)  e  Além  do  azul  selvagem.  No 

contexto deste estudo, esses filmes foram escolhidos para compor uma trilogia poética 

do diretor e serão estudados não apenas sob o aspecto  técnico, mas  também sob o 

sensível, não raro, indissociáveis.  

Esclareço  que  antes  de  escolher  os  documentários,  escolhi  o  diretor.  Em 

primeiro  lugar,  por  acompanhar  a  produção  cinematográfica  de Werner  Herzog  há 

anos.  E,  não  menos  importante,  por  sua  postura  independente  e  transgressora, 

notadamente quando se recusa a fazer qualquer distinção entre seus filmes de ficção e 

seus documentários: “Não faço documentários, não senhor!” 8. Pergunto, então, o que 

faz Werner Herzog? A seguir, demonstrarei que Werner Herzog faz poesia audiovisual. 

8 Informação verbal a partir do documentário No Além do azul selvagem com Werner Herzog, Michael 

Basden, 2006. 

 

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CAPÍTULO 2. WERNER HERZOG, POETA AUDIOVISUAL 

 

 

 

 

 

O cinema está muito mais próximo da poesia e da música que o teatro. 

       (Werner Herzog) 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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2.1. Um epicentro poético 

 

A  afirmação de Herzog na  epígrafe deste  capítulo,  feita durante o  seminário 

Werner Herzog Rogue Film School, em Londres, em março de 2011,  se  refere a uma 

relação antiga. Herzog publicou uma coletânea de dez poemas (Zehn Gedichte) no no 3 

da revista  literária Akzenten, em 1978. Os poemas estão transcritos  integralmente na 

dissertação de mestrado de  Lúcia Nagib, Werner Herzog: O  cinema  como  realidade, 

cinco  deles  com  tradução  da  autora  para  o  português9.  Não  cabe  aqui  avaliar  o 

realizador  na  competência  de  poeta  literário. O  escopo,  no  caso  deste  estudo,  é  a 

atuação de Herzog como poeta audiovisual. Contudo, essa pequena coletânea aponta 

para o epicentro da produção cinematográfica herzoguiana: a poesia.  

Fazendo filmes desde 1962, Herzog foi parte da geração que, amadrinhada pela 

teórica  de  cinema  Lotte  Eisner10,  deu  origem  ao  Novo  Cinema  Alemão  depois  do 

silêncio do pós‐guerra que calou a produção cinematográfica alemã por mais de uma 

década.  Mesmo  se  nunca  chegou  a  ser  considerado  um  cineasta  comercial  ou 

mainstream, Herzog transpôs, nos anos de 1960, a barreira que o manteve ao largo do 

reconhecimento público  ao  realizar O  enigma de Kaspar Hauser  (1974), Coração de 

cristal  (1976)  e  Nosferatu,  fantasma  da  noite  (1978).  É  importante  ressaltar  que  a 

crítica e o público alemães  sempre  foram mais  refratários ao  trabalho do diretor do 

que  seus  pares  estrangeiros,  fazendo  com  que  o  reconhecimento  por  seu  trabalho 

ocoresse em primeiro lugar fora da Alemanha. 

Aos  trinta e  seis anos, Herzog provavelmente não pretendia afirmar‐se  como 

poeta  literário ou abandonar o cinema pela poesia. Mas, ao expor‐se como poeta em 

uma  publicação  especializada,  deixa  claro  a  importância  que  confere  ao  exercício 

poético. Desde 2010, Herzog ministra seminários em sua escola itinerante de cinema, a 

Werner Herzog Rogue Film School. Durante o seminário de Londres, em março de 2011 

9 NAGIB, Lúcia. Werner Herzog: o cinema como realidade, p. 297‐311. 10  Lotte Eisner  foi  crítica de  cinema, historiadora, escritora e poeta. Nascida em Berlim,  fugiu para a 

França em 1933 com a ameaça nazista que começava se configurar na Alemanha. Conheceu Eisenstein e Meliès. Foi importante colaboradora de Henri Langlois e cofundadora da Cinémathèque Française, onde trabalhou como arquivista chefe de 1945 a 1975, quando se aposentou. Amiga do então jovem Werner Herzog, ela o incentivou a persistir na carreira cinematográfica quando este se abateu diante da falta de reconhecimento público. O  cineasta  fala  sobre essa amizade no  livro de  sua autoria, Caminhando no 

gelo (1974). 

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– do qual participei –, ao falar sobre a proximidade do cinema e da poesia, o diretor 

mencionou  como exemplos do  vínculo entre  cinema e poesia os diretores Bernardo 

Bertolucci e Pier Paolo Pasolini que, além da produção filmográfica, têm também uma 

produção literária, notadamente poética. 

  A  poesia  que  perpassa  os  filmes  de Herzog  não  está  contida  na  palavra. Os 

documentários  poéticos,  ou  ensaios  fílmicos  do  diretor,  encontram  ressonância  na 

obra Richard Wagner e no  conceito de Gesamtkunstwerk, ou obra de  arte  total, ou 

ainda, obra de arte  ideal ou universal. Wagner pretendeu unificar todas as formas de 

arte  por meio  do  teatro  e  consagrou  quase  três  décadas  de  sua  vida  à  criação  das 

quatro  óperas  que  compõem  a  tetralogia O Anel  dos Nibelungos11.  Em  obras  como 

Fata Morgana,  Lições da escuridão e Além do azul  selvagem, Herzog  reúne pintura, 

música,  literatura,  atuação  dramática  (do  narrador,  dos  personagens  humanos  e 

elementos da natureza), e coreografa os movimentos da câmera por meio de um filme.  

Contudo, não se trata de fazer um filme nos moldes de uma ópera, empreitada 

que  Herzog  considera  fadada  ao  fracasso,  como  explica  em  depoimento  para 

Emmanuel Burdeau (AUBRON; BURDEAU, 2008: 32), mas da aproximação de processos 

de criação distintos – ópera e cinema documentário –, regidos, no caso, por intenções 

parecidas. Tanto na obra de Wagner como na de Herzog, o cimento dessas complexas 

construções é a poesia, que  lhes confere uma unidade poética, e no bojo da qual se 

fundem diferentes formas de expressão artística.  

  A afirmação de que o cinema está mais próximo da poesia e da música do que o 

teatro alude à  intangibilidade da música e do filme que, a não ser pela película – que 

representa  o  filme  fisicamente,  e  não  o  essencial  dele,  a  projeção  de  imagens  que 

compõem uma história – é  luz,  fugacidade e  ilusão. Desde o  surgimento dos meios 

eletrônicos de produção audiovisual, analógicos e depois digitais, a  intangibilidade de 

um  filme  só  se  fez  aumentar.  No  ano  de  2011,  uma  grande  quantidade  de  filmes 

sequer  recorre  ao  suporte  da  película  de  celuloide:  são  inteiramente  gravados  em 

cartões digitais ou outros dispositivos  semelhantes, e, em  seguida, armazenados em 

computadores e discos duros externos. Podem ser transmitidos por projetores digitais, 

11 Tetralogia musical composta por Richard Wagner, entre 1848 e 1874. Integram a tetralogia as óperas: 

O ouro do Reno, A Valquíria, Sigfried e O crepúsculo dos deuses. 

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satélites ou fibras óticas. O filme torna‐se, assim, uma sequência numérica, um código, 

um arquivo virtual de imagens e sons digitalizados. 

  Enquanto no  teatro, há – como sempre houve – a materialidade da presença 

física dos atores e do espaço cênico, o filme, desencarnado, torna‐se parente próximo 

da poesia,  tão  fugaz e  imaterial quanto ela. No entanto, é preciso atentar para não 

confundir  o meio,  seja  ele  película,  eletrônico  analógico  ou  digital,  com  a  criação 

poética  propriamente  dita.  Assim  como  a  poesia  escrita  não  nasce  do  lápis  ou  do 

papel, mas do pensamento e sensibilidade humanas, a poesia audiovisual não é fruto 

da câmera ou de um disco duro. Por mais que o meio  incida  sobre a  forma  final do 

produto, o motor do exercício poético está na tentativa de capturar um sentimento ou 

uma emoção que talvez não dure mais que um átimo.  

  Vale retomar a menção sobre a poesia como mentira ou  fingimento, segundo 

Fernando  Pessoa:  “O  poeta  é  um  fingidor./Finge  tão  completamente/Que  chega  a 

fingir que é dor/A dor que deveras sente”. Isto porque, ainda segundo Pessoa, quando 

o poeta escreve  sobre um  sentimento, ao  racionalizá‐lo por meio da ordenação das 

palavras,  já deixou de senti‐lo. Podemos, então, dizer que o sucesso do resultado do 

exercício poético pode  ser medido pela  capacidade de um poema a  respeito de um 

sentimento que não mais existe no poeta,  suscitar um  ressurgimento desse mesmo 

sentimento, dessa vez no leitor.  

  O mesmo princípio  lógico pode ser aplicado à realização de um documentário 

de poético. Os sentimentos que tomaram conta de Herzog no deserto do Saara ou no 

Kuwait passaram por um processo de ordenação poética por meio de imagens, sons e 

palavras, e encontraram sua forma de expressão final durante a montagem do filme. 

Em  seguida,  foram  compartilhados  com os espectadores.  Isto  faz de Werner Herzog 

um  fingidor  à maneira  de  Pessoa  e,  como  veremos,  não  somente  pelo  viés  de  um 

silogismo, um poeta audiovisual. 

Mas  o  logro  não  conta  apenas  com  o  poeta‐cineasta. O  espectador  também 

colabora  para  a  criação  de  um  estado  imaginado  e  imaginário.  Ao  refutar  a 

equiparação entre a situação fílmica e a onírica, Christian Metz afirma: 

 O sonhador não sabe que sonha, o espectador do  filme sabe que está no cinema:  é  esta  a  primeira  e  principal  diferença  entre  situação  fílmica  e situação onírica. Fala‐se por vezes de impressão de realidade em relação a 

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ambas, mas  a  verdadeira  ilusão é  característica do  sonho e  apenas dele. Para  o  cinema  é melhor  limitarmo‐nos  a  notar  a  existência  duma  certa impressão de realidade. (METZ, 1980: 105, grifo do autor) 

 

A  colocação  de  Metz  talvez  esteja  mais  fundamentada  sobre  preceitos 

psicanalíticos do que poéticos, e é rebatida por Arlindo Machado de uma perspectiva 

que responde aos propósitos deste estudo: 

 

Tudo  muito  sensato  de  bem  colocado, Mas  dizer  sumariamente  que  o espectador “sabe” que está diante de um  filme, que ele  jamais alucina as imagens a ponto de imaginá‐las dotadas de realidade, nada disso explica o desejo de ir e de estar no cinema. Se a regressão vivida pelo espectador na sala de projeção é  consentida e desejada,  se é ele próprio quem escolhe colocar o mundo entre parênteses para viver uma experiência  imaginária, isso  só  ocorre  porque  ele  busca  no  cinema  algo  mais  que  a  mera consciência do processo. Justamente porque o  indivíduo sabe de antemão que o que se passa na tela é objeto ausente e que, portanto, ele pode viver suas  emoções  sem  riscos  de  qualquer  espécie,  porque,  ainda,  tudo  não passa,  no  fim  das  contas,  de  um  “sonho”,  é  que  ele  pode  precisamente alucinar as imagens e vivê‐las com a intensidade de um acontecimento real. Isso  é precisamente o que o mobiliza  ao  cinema  e explica  a  sua  entrega resoluta ao artifício do filme. (MACHADO, 2002: 51)  

 

  A partir do eixo poético da obra de Werner Herzog, declinam‐se três áreas de 

construção  narrativa:  a música  e  a  palavra  (som),  os  personagens,  tanto  humanos 

quanto  elementos  da  paisagem  ou  a  própria  paisagem  (imagem),  e  a  montagem 

(articulação  som‐imagem).  Essas  três  aéreas  resultam  no  poema  audiovidual 

herzoguiano, ou Gesamtkunswerk audiovisual. Cada uma dessas áreas será abordada a 

seguir. 

 

 

2.2. O êxtase da música e da palavra 

 

Werner  Herzog  se  refere  em  vários  depoimentos  e  textos  ao  “êxtase  da 

verdade”.  Esse  conceito  diz  respeito  a  uma  verdade  que,  como  ele  diz,  é  inimiga 

daquilo  que  é meramente  factual.12  Ao  realizar  um  documentário  como  Lições  da 

escuridão, o objetivo é alcançar esse êxtase, elevando o espectador a um nível mais 

12 Palestra dada por Werner Herzog em Milão, depois da projeção de Lições da escuridão.  Traduzida e 

transcrita  no  jornal  da  Universidade  de  Boston,  Arion,  vol.  17.3,  na  edição  do  inverno  de  2010. Disponível em: <http://www.wernerherzog.com/personal.html#c128>. Acesso em: 10 jul. 2011. 

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alto de compreensão sensível sobre um determinado assunto. É o que Herzog chama 

de estado de sublimidade (Erhabenheit), e do qual nasce uma verdade extática, mais 

verdadeira do que a verdade dos fatos. 

O  primeiro  alicerce  para  a  construção  dessa  verdade  poética  é  a  construção 

narrativa que conjuga a música e a palavra. Esses dois elementos compõem o som do 

documentário. Estão presentes na obra documental de Herzog: o comentário narrativo 

dramático  (formado  por  textos  literários,  religiosos, mitológicos,  fábulas  e  letras  de 

músicas); depoimentos em diversas  línguas  (raramente  legendados,  são contados ao 

espectador pelo narrador); a música; os sons do ambiente e efeitos sonoros. 

Herzog diz ser um colecionador de sons13. Costuma  jogar fora os negativos do 

material bruto de  seus  filmes  seis meses depois de o  filme  ser  lançado em  salas de 

cinema, mas guarda o som. Além da  importância que atribui ao som, ele afirma que 

armazenar som é mais fácil e barato do que armazenar filme. Esse acervo é o que ele 

chama de  “uma  cornucópia de  sons”, e  inclui o  som ambiente que grava depois de 

terminada a filmagem de uma tomada. É o que ele chama de cut and freeze, ou, “corta 

e congela”. O som ambiente é gravado depois dessa ordem. Esses sons não constituem 

apenas um arquivo morto. Ao contrário, é por meio deles que Herzog diz trazer vida 

para seus filmes.  

Quanto  à música,  ela  tem  um  papel  fundamental  na  obra  do  diretor,  e,  em 

especial,  nos  três  documentários  deste  estudo.  Nunca  é  utilizada  para  ilustrar  ou 

“vestir” uma  imagem. Para muitos  realizadores, a música é um pano de  fundo, uma 

ferramenta para manipular a intensidade das emoções, ou apontar para o espectador 

o que ele deve sentir em determinado momento do filme. No caso de Herzog, a música 

exerce uma função narrativa, com status de personagem, e contribui dramaticamente, 

contracenando  de  igual  para  igual  com  outros  elementos  do  filme,  de  atores  a 

elementos da natureza.  

Podemos  citar  outros  exemplos,  como  Alfred  Hitchcock,  que  encontrou  em 

Bernard Herrmann um compositor que ajudava a construir o suspense de seus filmes 

musicalmente.  Ou  a  música  de  Nino  Rota  que  imprimiu  um  caráter  dramático  e 

identidade própria às  imagens de Federico Fellini. Quantas vezes não  reconhecemos 

13 Informação verbal a partir do seminário Werner Herzog’s Rogue Film School, Londres, março de 2011.

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um filme de Fellini pela música antes da  imagem? Steven Spielberg afirmou certa vez 

que quem  fizera a bicicleta voar em E.T., o extraterreste  (1982) não  fora ele, mas o 

compositor da  trilha musical do  filme,  John Williams. Outros diretores, como Martin 

Scorsese e Spike Lee, lançam mão de um repertório musical pré‐existente, o qual será 

incorporado ao roteiro do filme de um ponto de vista dramático.  

Foi mencionada  a  cornucópia  de  sons  de Werner  Herzog.  Diante  das  obras 

estudadas,  podemos  falar  também  em  uma  cornucópia  musical.  Se,  no  caso  de 

músicas pré‐existentes, Scorsese e Lee utilizam um repertório majoritariamente de jazz 

e  rock’n’roll,  Herzog  costuma  dar  preferência  a  um  repertório  erudito.  Mas  não 

descarta músicas populares pertencentes ao folclore de determinadas culturas, como, 

por exemplo, polifonias sardas no documentário O diamante branco (2004) e em Além 

do  azul  selvagem.  Ou,  então,  os  cantos  siberianos  tuva  que  ouvimos  em  Sinos  da 

profundeza – Fé e superstição na Rússia (2005).  

Herzog  também  conta  com  a  colaboração  de músicos  que  compõem  trilhas 

originais para seus filmes. Uma das parcerias mais longevas se deu com Florian Fricke, 

líder  do  grupo  de  rock  progressivo  alemão  Popol  Vuh,  nos  anos  de  1970  e  1980. 

Recentemente, encontrou no compositor Ernst Reijseger um interlocutor musical para 

suas  imagens:  Reijseger  compôs  a  trilha  original  dos  documentários  Além  do  azul 

selvagem, O  diamante  branco,  Caverna  dos  sonhos  perdidos  (2010),  e  de  filmes  de 

ficção também. A música se faz presente na filmografia do diretor de duas maneiras: 

como  trilha  e  como  tema  de  documentários.  Herzog  dirigiu  documentários  sobre 

música,  como  A  transformação  do mundo  em música  (1994), Morte  a  cinco  vozes 

(1995) e o registro documental de La Bohème, no Festival de Bayreuth (2009).  

Nos documentários  estudados, não há diálogos  entre personagens humanos. 

Isto quer dizer que não há diálogos em linguagem falada, o que não significa que não 

haja diálogos. Há um diálogo contínuo entre música e palavra. No caso de Além do azul 

selvagem, a montagem das imagens e do texto de se deu a partir da música, composta 

antes  da  realização  do  filme.  Em  Lições  da  escuridão  e  Fata Morgana  aconteceu  o 

oposto: antes foram filmadas as imagens, e depois foram elaborados o texto e a trilha 

musical.  Portanto,  existe  a  possibilidade  de  intercâmbio  entre  imagem  e  som  no 

contexto do processo criativo, mas não entre música e palavra, pois esse  intercâmbio 

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representaria a interrupção – ou impossibilidade – do principal diálogo do filme, que se 

dá entre música e palavra. 

Em Fata Morgana,  são utilizadas músicas eruditas e populares, como  trechos 

de composições da banda inglesa de rock progressivo Blind Faith, de Steve Winwood, e 

do grupo de música experimental The Third Ear. Contudo, é notável a presença musical 

de  Leonard  Cohen.  Herzog  escolheu  três  músicas  do  compositor  (não  por  acaso 

considerado  um  poeta  além  de  compositor),  que  se  tornaram  clássicos  da música 

popular da década de 1960: Hey,  that’s no way  to say good‐bye, Suzanne e So  long, 

Marianne. 

A  importância das músicas de Cohen no  contexto do  filme  reside no  fato de 

elas  terem  se  tornado  inseparáveis  das  imagens.  Por  esse motivo,  estão  entre  as 

sequências  de  maior  carga  dramática.  Assim  como  Stanley  Kubrick  associou  para 

sempre Assim  falou Zarathustra, de Richard Strauss, às  imagens que criou do espaço 

em 2001 ‐ Uma Odisseia no Espaço (1968), Herzog funde imagens e música de maneira 

que o espectador não conseguirá mais pensar nas imagens sem aquela que se tornou 

sua parceira mais natural, a música. Não se pode  ignorar o fato de que Herzog dirige 

óperas  desde  1986,  tendo  até mesmo  dirigido  Tannhäuser  no  Brasil  em  2001,  no 

Teatro Municipal  do Rio  de  Janeiro.  Portanto,  seu  vínculo  com  a música  é  estreito. 

Municiado  por  esse  conhecimento,  Herzog  aplica  recursos  dramáticos musicais  aos 

filmes que faz. 

De Sea of Joy, de Winwood, apenas a parte instrumental é utilizada. Os versos 

iniciais  da  composição  (“Sigo  sombras  no  céu  /Ou  serão  apenas  ilusões  dos meus 

olhos?”)  sugerem  um  estado  de  espírito  com  imagens  imaginadas  que  estão muito 

próximas das  imagens do documentário. Esse  fato  torna  impossível a antinomia que 

Herzog busca na montagem do filme. A combinação fácil,  ilustrativa, corre o risco de 

esvaziar o conteúdo da imagem. Herzog opta por dar voz a Leonard Cohen, que canta‐

fala de amor em plena desolação do deserto, criando uma alquimia antinômica entre 

imagem  e  som, melancolia  e  beleza.  São  as  imagens  sonoras  a  que  se  refere Gillo 

Pontecorvo, ao falar sobre a importância da música dentro de um filme, diferenciando 

imagens  visuais  e  imagens  sonoras14.  Imagens  sonoras  são  um  canal  ampliado  de 

14 Informação verbal a partir do depoimento de Gillo Pontecorvo, extra do DVD do filme A Batalha da 

Argélia, 1965.

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comunicação sensível com o espectador, que passa a perceber e absorver o que vê e 

ouve, não pelo viés intelectual, mas sensorial. 

Existe  uma  transição musical  de  Fata Morgana  para  Lições  da  escuridão:  as 

Lições de Tenébras de François Couperin, utilizadas na trilha musical de Fata Morgana 

inspirarão, duas décadas mais tarde, o título do documentário, Lições da escuridão, e 

darão o tom místico e fúnebre que perpassa o filme. No entanto, passando mais uma 

vez ao  largo de qualquer associação  ilustrativa e esquemática, a música de Couperin 

não fará parte da trilha musical de Lições da escuridão. 

A  trilha  musical  de  Lições  da  escuridão  representa  a  uma  rica  cornucópia 

musical. É formada por trechos das seguintes obras: Edvard Grieg e Peer Gynt, A Morte 

de  Aase;  Gustav Mahler,  Sinfonia  nº  2;  Arvo  Pärt,  Stabat Mater;  Sergei  Prokofieff, 

Sonata nº2, opus 56; Franz Schubert, Noturno, opus 148; Giuseppe Verdi, Requiem – 

Recordare; da tetralogia O Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner: O ouro do Reno, a 

Marcha Fúnebre de Siegfried, de O crepúsculo dos deuses, além do prelúdio de Parsifal. 

Vários  trechos  de  óperas,  sinfonias,  noturnos  e  sonatas  têm  como  denominador 

comum o tom fúnebre e místico, e o tema da dor ou da morte (Réquiem, de Verdi, a 

Marcha Fúnebre de Siegfried, de Wagner, A Morte de Aase, de Grieg, e Stabat Mater, 

de Pärt).  

A música  acentua  a  dimensão  apocalíptica  ao  filme.  Tal  efeito  foi  também 

logrado por Francis Ford Coppola em Apocalypse Now  (1979), na  sequência em que 

helicópteros  do  exército  americano  bombardeiam  um  pacato  vilarejo  vietnamita  ao 

som  de  Cavalgada  das  Valquírias,  que  integra  A  Valquíria,  que,  por  sua  vez,  é  a 

segunda  ópera  da  tetralogia O  Anel  dos Nibelungos. Há  também  a  coincidência  do 

ponto de vista da câmera: em ambos os filmes, a música de Wagner é articulada com 

planos aéreos, conferindo à narrativa a perspectiva de  ira divina que se abate sobre 

seres indefesos. 

A  dramaticidade  sonora  de  Lições  da  escuridão  também  é  construída  com  o 

som da água e do fogo. Esses sons são, na realidade, efeitos sonoros criados na pós‐

produção do documentário15. São violentos, fortes e dramáticos, pois oriundos do fogo 

e  da  água  antropomorfizados  no  contexto  da  narrativa.  A  água  não  escorre 

15 Ver depoimento de Rainer Standke, no Apêndice. 

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docilmente, mas jorra com força, como um lutador em posição de ataque que enfrenta 

o fogo, que revida com movimentos bruscos e traiçoeiros, emitindo sons profundos e 

inquietantes. 

O  fogo é um elemento onipresente em O Anel dos Nibelungos e  também no 

documentário de Herzog. A simbologia associada a ele pode ser compreendida à luz do 

conceito de Gaston Bachelard: 

 Le feu et la chaleur fournissent des moyens d´explication dans les domaines les  plus  variés  parce  qu´ils  sont  pour  nous  l´occasion  de  souvenirs impérissables, d´expériences personnelles  simples et décisives.  Le  feu est ainsi un phénomène privilégié qui peut tout expliquer. [...] Le feu est l’ultra‐vivant. Le feu est intime et il est universel. Il vit dans notre cœur. Il vit dans le  ciel.  Il monte  des  profondeurs  de  la  substance  et  s´offre  comme  un amour. Il redescend dans la matière et se cache, latent, contenu comme la haine et la vengeance. 16 (BACHELARD, 1985: 19) 

 

Para Bachelard, o  fogo é o  início do devaneio, pois é ao observar o  fogo que 

começamos  a  sonhar.  O  fogo  é  mutável,  pode  assumir  várias  formas:  pode  ser 

acolhedor  ou  brutal,  ser  a  vida  ou  a morte. O  fogo  simboliza  o  amor  romântico,  o 

sonho, a luta, a conquista, a purificação. No caso, o fogo e sua simbologia são citados 

no contexto da trilha sonora por sua associação com a obra de Richard Wagner. Mas 

aspectos  simbólicos  associados  ao  fogo  são  encontrados  em  outras  camadas  de 

interpretação de Lições da escuridão. 

Por  exemplo,  a  simbologia  do  fogo  está  presente  na  noção  de  ciclo  ou 

recomeço presente na obra de Herzog, e que encontramos na afirmação de Bachelard 

sobre o fogo que sobe das profundezes até o céu para tornar a descer. Há um paralelo 

entre Bachelard e a trilogia poética de documentários: o caminho que sobe até o céu, 

até o espaço, para depois descer ao  fundo do oceano. É a busca vertical de Herzog 

que, sem encontrar um fim, acaba por virar um círculo. 

Como foi citado, em Além do azul selvagem Herzog pediu a Ernst Reijseger para 

compor a música antes de ter as imagens. Reijseger trabalhou com o cantor senegalês 

16 O fogo e o calor fornecem meios de explicação nos domínios mais variados porque são, para nós, a ocasião de  lembranças  imperecíveis, de experiências pessoais simples e decisivas. O fogo é, assim, um fenômeno privilegiado capaz de explicar tudo. [...] O fogo é o ultravivo. O fogo é íntimo e universal. Vive em nosso coração. Vive no céu. Sobe das profundezas da substância e se oferece como um amor. Torna a descer à matéria e se oculta, latente, contido como o ódio e a vingança.(Trad. Paulo Neves, 1999). 

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Molla  Sylla,  a  cantora mexicana Dora  Juárez  e  o  grupo  de  cantores  da  Sardenha,  o 

Cuncordu e Tenore de Orosei. As músicas compostas por Reijseger são: Bad news from 

outer  space,  Kyrie,  Rosa,  Andromeda,  Liberame  Domine,  Last  breath,  Conversation, 

Song  of  the  desert,  Do  you  still…?,  Santus,  S´Andira.  Somam‐se  às  composições  de 

Reijseger obras de George Friedrich Händel, Dank sei Dir Herr, Arioso da Cantata con 

strumenti e Ombra mai fu, de Xerxes.  

Ao  comentar  a música  de  Além  do  azul  selvagem,  Herzog  diz  que  já  tinha 

música em mente no contexto do filme: “Eu queria gravar a música antes [de fazer o 

filme], porque que eu via algo como um grande oratório no espaço, um  réquiem no 

espaço.”17 . No documentário de Nicholas McClintock, Réquiem no espaço – Werner e 

Ernst fazem música (2005), é visível a participação de Herzog no processo de criação da 

trilha musical.  Ela  tem  início  desde  a  escolha  deliberada  do  diretor  por músicos  de 

culturas diferentes para  compor um  grupo musical que  só  se  reunirá em  função do 

filme.  A  intenção  é  trazer  para  a  música  elementos  culturais  que  se  misturam 

musicalmente,  conferindo  uma  qualidade  universal  no  som  que  será  criado.  Essa 

universalidade é necessária ao  filme, pois  torna possível a perspectiva extraterrestre 

que enfoca a humanidade como um todo no planeta, que é visto e comentado por um 

alienígena. 

Herzog, de certa  forma, dirige as gravações. Não dá  instruções musicais, pois 

estas estão a cargo de Reijseger, mas orienta os cantores sobre o espírito que procura 

para  a música  e  que  deverá  estar  presente  no  filme:  quer mostrar musicalmente  a 

sensação de flutuar e a tristeza daquele que paira a esmo no espaço à procura de uma 

estrela ou de um planeta para viver, pois não pode mais voltar para casa, tampouco 

pode  ficar  no  planeta  que  encontrou,  pois  o mesmo  foi  arrasado. O  alienígena  de 

Herzog possui um  sentimento de  Sehnsucht  característico do movimento  romântico 

alemão,  uma melancolia,  ou  banzo  interstelar.  Ainda  sem  um  filme  realizado  e  em 

meio a músicos, Herzog afirma representar o filme no estúdio de gravação. 

Quanto à palavra, ela aparece escrita – como no caso da epígrafe de Lições da 

escuridão  e  dos  títulos  dos  blocos  dos  três  documentários  – mas  é  essencialmente 

falada  (narração dramática) ou cantada, utilizada  tanto por seu significado como por 

17  Informação verbal obtida no documentário Réquiem no espaço – Werner e Reijseger fazem música, 

Nicholas McClintock, 2005. 

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sua  sonoridade.  Existe,  nessa  construção,  uma  busca  por  uma  imagem  poética 

segundo  a  concepção  de  Bachelard,  quando  ele  aborda  a  questão  da  psicologia  do 

maravilhamento: 

 

A  l´émerveillement s´ajoute en poésie  la  joie de parler.  Il  faut  la prendre, cette  joie, dans son absolue positivité. [...] L´image poétique éclaire d´une telle  lumière  la  conscience,  qu´il  est  bien  vain  de  lui  chercher  des antécédents inconscients. [...] La poésie est un des destins de la parole. En essayant d´affiner la prise de conscience du langage au niveau des poèmes, nous  gagnons  l´impression  que  nous  touchons  l´homme  de  la  parole nouvelle, d´une parole qui ne  se borne pas  à  exprimer des  idées ou des sensations,  mais  qui  tente  d´avoir  un  avenir.  On  dirait  que  l´image poétique,  dans  sa  nouveauté,  ouvre  un  avenir  du  langage.  (BACHELARD, 2009: 3) 18 

 

A  epígrafe  de  Lições  da  escuridão  atribuída  à  Blaise  Pascal  e  de  autoria  de 

Herzog,  estabelece  um  estado  acima  da mera  verdade  dos  fatos.  Fica  estabelecido, 

desde o início do filme, que a palavra não se submete necessariamente a uma verdade 

etimológica, nem as frases a uma articulação lógica. A verdade da palavra está contida 

em outras camadas de  significado que compreendem a cultura e as emoções, assim 

como seu som ou musicalidade.  

A música  permite  fundir  som  e  palavra  dramaticamente,  como  no  caso  da 

ópera. Herzog conta que, ao chegar ao estúdio para gravar com Ernst Reijseger, Mola 

Sylla  lhe  disse:  “Não  se  preocupe,  também  sou  poeta”19,  e  criou  palavras  para  a 

melodia  de  Reijseger  em wolof,  um  dos  idiomas  falados  na  África Ocidental.  Essas 

palavras não foram traduzidas, nem receberam legendas. Os outros cantores também 

cantaram em suas línguas de origem – o dialeto sardo e o espanhol. As três línguas e as 

vozes se sobrepõem na melodia composta por Reijseger, se harmonizam e se integram 

em  uma  sonoridade  una  e  única,  comprovando  a  visão  de Herzog  que  consiste  em 

buscar a  carga dramática no  timbre da voz e na  sonoridade da palavra, no  lugar de 

18 Em poesia, acrescenta‐se ao maravilhamento a alegria de falar. Essa alegria, cumpre apreendê‐la em 

sua absoluta positividade. [...] A imagem poética ilumina de tal maneira a consciência, que é vão buscar‐lhe antecendentes inconscientes. [...] A poesia é um dos destinos da palavra. Ao tentar afinar a tomada de consciência da  linguagem de poemas, adquirimos a  impressão que  tocamos o homem com a nova palavra,  com uma palavra que não  se  limita  a  expressar  idéias ou  sensações, mas que  tenta  ter um futuro. Parece que a  imagem poética, na sua novidade, descortina um futuro da  linguagem. (Tradução nossa). 19 Informação verbal a partir do documentário No Além do azul selvagem com Werner Herzog, Michael Basden, 2006. 

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ater‐se  ao  seu  significado etimológico. Além de  atribuir uma qualidade narrativa  ao 

som, Herzog descortina um estado de espírito por meio dele (palavra‐música), visando 

a  criar uma  tensão  e um  estado de  atenção quase hipnótica no  espectador.  Som  e 

palavra trabalham juntos, de maneira coordenada, coreografados pelo diretor.  

Ao  falar da poesia da palavra,  surge a questão do  romantismo alemão e  sua 

relação com a obra de Herzog. O diretor  rechaça a associação entre seu cinema e o 

movimento romântico, com algumas exceções, como Friedrich Hölderlin na literatura, 

que não fez parte do grupo de românticos formado, dentre outros, por Novalis e pelos 

irmãos  August  e  Friedrich  Schlegel  e  que,  de  certa maneira,  está mais  próximo  do 

classicismo  tardio ou pré‐romantismo de  Johann von Goethe e Friedrich Schiller. Na 

pintura,  uma  influência  reconhecida  pelo  diretor  é  Caspar  David  Friedrich,  que 

abordaremos mais adiante.  

Há  um  dado  na  biografia  de  Hölderlin  que  o  aproxima  dos  personagens  de 

Herzog: a loucura. Diagnosticado como hipocondríaco, foi em seguida decretado louco 

(diagnóstico  contestado  postumamente)  e  confinado  em  um  quarto  numa  torre  da 

cidade  alemã  de  Tübingen,  onde  viveu  por  mais  de  trinta  anos,  até  morrer.  A 

convivência entre o  saber e  a  loucura está presente na biografia pessoal de Herzog 

também: depois de uma carreira acadêmica,  seu avô paterno  tornou‐se arqueólogo. 

Anos mais  tarde, enlouqueceria. Essa  figura  teve um grande  impacto  sobre o  jovem 

Herzog,  que  só  conviveu  com  o  avô  quando  ele  já  se  encontrava  nesse  estado. 

(HERZOG, CRONIN, 2002: 38‐39)  

É  possível  que  Werner  Herzog,  de  fato,  não  tenha  particular  apreço  pelo 

romantismo,  e  que  não  sinta  afinidade  com  aspectos  do movimento  que  talvez  lhe 

pareçam denotar afetação. No entanto,  sua visão poética possui parentescos  com a 

visão  poética  de  românticos  como  Novalis.  Na  revista  virtual  francesa  de  crítica 

literária La Revue des Ressources (La RdR)20, Laurent Margantin afirma: 

 

La poésie romantique se caractérise par le fait qu’elle reconnaît à la base de toute  créativité  romantique  une  capacité  à mêler  des  éléments  les  plus divers, ou mieux:  le génie de  faire naître à partir de germes préexistants une nouvelle diversité qui sera perçue aussi bien comme une unité, puisque toute  grande  création  a  pour  visée  la  régulation  d’une  diversité  en  un 

20 La revue des sources. 15 jan. 2007. Disponível em:   

< http://www.larevuedesressources.org/spip.php?article684 >. Acesso em 7 set. 2011. 

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individu,  l’œuvre.  Celle‐ci  est  "hautement  romantique"  lorsque  son exécution équivaut à l’intégration d’un très grand nombre d’éléments. Mais toute poésie n’est‐elle pas en vérité romantique puisqu’elle opère à partir d’une diversité? On peut seulement dire que profondément romantique est la poésie qui se sait potentialisation, qui se définit comme telle, poésie de la poésie, parole qui déploie l’infini à partir du fini, parole qui se fonde elle‐même sur ce que Novalis appelle une "poétique de l’infini". (2007 : 1)21

 

  Margantin cita Novalis em carta a August Schlegel, 

 

Seul le poète peut célébrer les noces de l’esprit et de la nature, au travers de  ce qu’on pourrait appeler une  "infinitisation  réciproque":  l’infini de  la nature (encore inconnu) ouvrant la poésie à son propre infini (également à explorer),  et  inversement.  C’est  seulement  par  ce  jeu  réglé  entre  deux mondes  infinis  (celui  de  la  conscience  poétique  et  celui  de  la  nature) qu’apparaîtra, pour  s’étendre éternellement,  l’univers  romantique.  [...] La poésie  est  véritablement  le  réel  absolu.  Ceci  est  le  noyau  de  ma philosophie. Plus poétique, d’autant plus vrai. (2007: 1)22 

 

  Margantin  arremata:  “É  graças  à  poesia  que  podemos  fazer  a  experiência 

positiva do caos.”23 (MARGANTIN, 2007: 1, tradução nossa). 

Portanto,  a  relação  que  me  permito  fazer  entre  a  obra  de  Herzog  e  o 

romantismo  alemão  não  é  no  sentido  de  uma  incidência  direta  ou  intencional  de 

elementos desse movimento  sobre  seus  filmes, mas do  reconhecimento da herança 

cultural de um movimento cuja envergadura o torna incontornável, na medida em que, 

em determinado período,  impregnou  a  cultura,  a percepção da poesia  e da  criação 

artística alemãs, de um modo geral. O movimento romântico alemão – com suas raízes 

na estética e espírito místico gótico de elevação espiritual – pautou, no século XIX, as 

principais  formas  de  expressão  artística,  como  a  literatura,  a  pintura  e  a  música.  21 A poesia romântica se caracterisa pelo fato que ela reconhece na base de toda criatividade romântica 

uma  capacidade de misturar os elementos mais diversos, ou melhor: a genialidade de  fazer nascer a partir de germes pré‐existentes uma nova diversidade que será percebida também como uma unidade, na medida em que toda grande criação tem pour objetivo a regulamentarização da diversidade em um indivíduo,  a  obra.  Esta  é  “altamente  romântica”  quando  sua  execução  equivale  à  integração  de  um grande número de elementos. Mas não será, na verdade, toda poesia romântica à medida que se faz a partir de uma diversidade? Podemos dizer apenas que profundamente romântica é a poesia que se sabe potencialização, que se define como tal, poesia da poesia, palavra que escancara o  infinito a partir do finito,  palavra  que  se  funda  nela  mesma,  segundo  o  que  Novalis  chama  de  “poética  do  infinito”. (Tradução nossa) 22 A vasta esfera da poesia, do campo ilimitado de nossa imaginação, da imaterialidade (Geistgkeit) de 

suas imagens que podem avizinhar‐se em número e variedade sem perder seu brilho ou uma invadir a outra, como fariam os objetos e suas imagens materiais nos estreitos limites do espaço e do tempo. [...] A poesia é verdadeiramente o real absoluto. Este é o âmago de minha filosofia. Quanto mais poético, mais verdadeiro. (Tradução nossa) 23 No original: « C’est grâce à la poésie que nous pouvons faire l’expérience positive du chaos.»

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Atravessou as  fronteiras europeias e  seu  impacto  sobre o pensamento e as artes  se 

disseminou  não  só  geográfica  como  temporalmente.  Herzog  talvez  não  seja  um 

romântico  na  acepção  do  termo,  mas  a  afirmação  de  Novalis  “A  poesia  é 

verdadeiramente o real absoluto. [...] Quanto mais poético, mais verdadeiro” não nos 

convida a uma relação com o êxtase da verdade de que fala Herzog?  

 

 

2. 3. Paisagens mentais e seus personagens 

 

Werner Herzog afirma estar em constante busca de  imagens. Todavia, não de 

imagens quaisquer. Ele procura imagens adequadas: 

 As a race we have become aware of certain dangers that surround us. We comprehend, for example, that nuclear power is a real danger to mankind, that over‐crowding of the planet is the greatest of all. We have understood that the destruction of the environment is another enormous danger. But I truly  believe  that  the  lack  of  adequate  imagery  is  a  danger  of  the  same magnitude.  It  is  as  serious  a defect  as being without memory.  (HERZOG; CRONIN, 2002: 66)24 

 

  Mas,  o  que  são  imagens  adequadas? A  inquietação  contida  na  afirmação  de 

Herzog tem uma fonte estética, epistemológica e ética. Esta última encontra em Amos 

Vogel25, um parâmetro. Sobre ele, Herzog declarou: “Amos Vogel é a consciência moral 

do mundo  do  cinema.”26  Intelectual  da  área  de  cinema,  Vogel  nunca  fez  distinção 

entre o cinema de experimentação e o cinema de massa. Acreditava na formação de 

um  público  de  cinema  por meio  da  exibição  de  filmes  interessantes  e  instigantes. 

24  Como  espécie,  adquirimos  a  consciência  de  certos  perigos  a  nossa  volta.  Compreendemos,  por 

exemplo, que a energia nuclear representa um perigo real para a humanidade, que a superpopulação do planeta  é  o maior  perigo  de  todos.  Compreendemos  que  a  destruição  do meio‐ambiente  é  outro enorme perigo. Porém, eu realmente acredito que a falta de imagens adequadas representa um perigo de igual magnitude. É um defeito tão grave quanto não ter memória. (Tradução nossa) 25 Amos Vogel nasceu em 1921, em Viena. Fugiu com a família para os EUA em 1938. Cineasta, é autor 

do  livro de ensaios Film as a Subversive Art. Fundou o cineclube Cinema 16 de Nova York, onde exibia filmes de Roman Polanski, John Cassavetes, Nagisa Oshima, Jacques Rivette e Alain Resnais, e também obras  da  vanguarda  americana  como  Stan Brakhage, Maya Deren  e  Carmen D'Avino.  Em  1963,  com Richard Roud, criou o New York Film Festival, sendo seu curador até 1968. Em 1973, Vogel  fundou a Cinemateca  Annenberg  na Universidade  da  Pennsylvania,  onde  também  foi  professor  de  cinema  na Faculdade Annenberg de Comunicação.  26“Amos Vogel is the moral conscience of the world of cinema”. Disponível em: 

<http://www.nationalmediamuseum.org.uk/nmem/biff/11/vogel.asp>. Acesso em: 24 maio 2011.

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Pretendia, dessa maneira, criar uma comunidade onde as pessoas pudessem se reunir 

para  discutir  questões  políticas  e  tornar‐se  cidadãos  melhores.  Para  Vogel,  uma 

sociedade  fílmica  representa uma ajuda à  cidadania e democracia. Esta é, portanto, 

uma  primeira  indicação,  ou  uma  primeira  interpretação  do  que  sejam  imagens 

adequadas.  

O  adjetivo  “adequado”  vem  do  latim  adaequatus  (ad  +  aequus)  e  significa 

aquilo que  foi tornado  igual, ou, ainda, “igualar”, adaequare. Adequado é aquilo que 

dá  conta de  seu objeto, que é proporcional  a ele; que é  adaptado  ao  seu objetivo; 

apropriado;  justo;  conveniente;  satisfatório;  competente;  suficiente.  Portanto, 

adequado não é nada além daquilo que é, ou deve ser. Em se tratando de imagens, a 

definição  do  termo  chega  a  ser  difícil  de  ser  compreendida  em  tempos  em  que  a 

imagem parece ter incorporado o dever de chocar e surpreender, assim como ter de se 

superar constantemente nesses quesitos, como se condenada a um castigo eterno.  

Herzog  reverte  a  condenação  e  propõe  algo  talvez  até mais  difícil  do  que  o 

choque  gratuito,  ou  o  espetáculo  da  imagem  autista  que  deslumbra  sem  nunca 

espelhar a alma humana, e só resiste pelo tempo de uma explosão: propõe a imagem 

adequada. Mas adequada a quê?  Igual (adaequata) a quê? É a  imagem que dá conta 

do  imaginário  contido  em  cada pessoa; que dá  conta do  imaginário  coletivo  e  seus 

símbolos.  É  a  imagem  que  não  existe  apenas  por  si  só, mas  expressa  e  espelha  os 

anseios  sociais,  políticos,  espirituais  e  estéticos,  enfim,  humanos,  da maneira mais 

precisa possível. É a imagem que, se é efêmera em uma tela de cinema, é longeva na 

mente de quem a viu. 

A  catástrofe  prenunciada  por  Herzog  sobre  o  perigo  de  não  se  ter  imagens 

adequadas pode, a princípio, parecer conter certa dose de exagero. Porém, parte‐se, 

aqui, do conceito de  signo de Charles Peirce de que  tudo à nossa volta e dentro de 

nossas mentes, antes de ser palavra, é signo, ou imagem: 

 Um  signo, ou  representamen,  é  aquilo que,  sob  certo  aspecto ou modo, representa  algo  para  alguém.  Dirige‐se  a  alguém,  isto  é,  cria  na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino  interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os seus aspectos, mas com referência a um tipo de ideia que eu, por vezes, denominei fundamento do representamen. (1977: 46) 

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  Ou  ainda,  como menciona  Lucia  Leão  no  artigo  Reflexões  sobre  imagens  e 

imaginário nos processos de criação em mídias digitais27: 

 

No presente artigo, adotamos a noção de  imaginário cunhada por Gilbert Durand  “[...]  como  conjunto das  imagens e das  relações de  imagens que constituem  o  capital  do  homo  sapiens”  (2002:  17).  Para  compreender  a complexidade  de  sua  noção,  é  preciso  destacar  que,  para  Durand,  todo pensamento tem sua matriz nas imagens, imagens estas que indicam o tipo de  sistema  simbólico  que  permite  o  “ser  no  mundo”  do  pensamento. (2011: 3)  

  

  Entenderemos,  então,  que  as  imagens  são  referências  fundamentais  para  o 

próprio ato de existir no mundo. E, mais além, de estabelecer contato e se comunicar 

com os outros e com o mundo, e, assim, dar início ao ciclo que chamamos de vida.           

Por décadas, Herzog tem procurado  imagens adequadas e as tem encontrado. 

Seus filmes apresentam imagens poderosas, raras e fabulosas – no sentido de “fábula” 

– ou algo que não existe de fato. Essa qualidade onírica, sobrenatural das imagens de 

Herzog nunca é  fabricada com efeitos especiais. Ao tentar representar um estado de 

espírito gerado por um sentimento (no caso, o ciúme) no filme O Inferno (1964), Henri‐

Georges Clouzot extraviou‐se em testes de  imagens e efeitos visuais tão complicados 

que o filme nunca chegou a ser concluído. Em Lições da escuridão, o único efeito visual 

de que Herzog  lançou mão para fazer a sua representação do  inferno foram  imagens 

filmadas em  câmera  lenta. Seu montador, Rainer Standke, precisou  insistir para que 

Herzog lhe concedesse algumas fusões de imagem.28  

Portanto,  as  imagens  de  Herzog  são  a  representação mais  próxima  que  ele 

encontra no mundo  físico das  imagens que sua mente percebe. As  imagens  internas 

são  representações que  criamos  a partir daquilo que percebemos do mundo,  como 

explica Lucia Leão ao se referir ao conceito de imagem segundo Hans Belting:  

 

Outro  aspecto  fundamental da  teoria de Belting diz  respeito  ao  fato das imagens, a rigor, não existirem por si mesmas,  isto é, as  imagens não são independentes. Enfim, para ele, as  imagens não são aquilo que vemos na parede  ou  na  tela  do  computador.  Esta  pontuação  é  necessária  para entendermos  um  importante  aspecto  em  sua  conceituação  de  imagens exógenas e endógenas. Na abordagem defendida por Belting, as  imagens mentais (representações internas ou endógenas) e as imagens externas (ou 

27 Disponível em: <www.compos.org.br>. Acesso em 13 nov. 2011. 28 Ver depoimento de Rainer Standke no Apêndice.

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exógenas) são consideradas como dois lados de uma mesma moeda. (2011: 2) 

   

Herzog  se  refere  com  frequência  à  necessidade  de  despertarmos  paisagens 

adormecidas dentro de nós:  “Tento encontrar a paisagem  impensável.”29. Antes das 

filmagens, ele  instrui seu diretor de fotografia, pautando as filmagens por um acervo 

mental de imagens constituído por literatura, pintura, referências imagéticas culturais 

e geográficas, como as montanhas da Bavária, onde passou a infância e adolescência. 

A  memória  existe,  portanto,  para  além  do  papel  de  reservatório  estético.  Gilbert 

Durand  fala  sobre essa memória que articula momentos diferentes vinculados pelas 

imagens: 

 

Longe de estar do lado do tempo, a memória, como o imaginário, ergue‐se contra as faces do tempo e assegura ao ser, contra a dissolução do devir, a continuidade da consciência e a possibilidade de regressar, de regredir para além  das  necessidades  do  destino.  É  essa  saudade  enraizada  no  mais profundo  e no mais  longínquo do nosso  ser que motiva  todas  as nossas representações  e  aproveita  todas  as  férias  da  temporalidade  para  fazer crescer  em  nós,  com  a  ajuda  das  imagens  das  pequenas  experiências mortas,  a  própria  figura  da  nossa  esperança  essencial.  (DURAND,  2002: 403) 

 

Na obra de Herzog, a paisagem não releva somente de um plano  físico: é um 

estado mental que traduz sensações e emoções. Mais do que isto, um plano reflete o 

outro, não apenas superficialmente, mas cosmicamente, como descreve Bachelard na 

Poética do devaneio, ao falar sobre o devaneio cósmico: 

 

Dans une vie cosmique imaginée, imaginaire, les mondes différents souvent se touchent, se complètent. La rêverie de l´un appelle la rêverie de l´autre. Dans un ouvrage  antérieur  (L´air  et  les  songes), nous  avons  assemblé de nombreux documents qui prouvent la continuité onirique qui unit les rêves de la nage et les rêves de vol. Déjà, par le pur miroir du lac, le ciel devient une eau aérienne. Le ciel est alors pour  l´eau un appel à une communion dans  la verticalité de  l´être. L´eau qui reflète  le ciel est une profondeur du ciel. Ce double espace mobilise  toutes  les valeurs de  la rêverie cosmique. (BACHELARD, 2009: 177, grifo do autor)  

 

Esse  conceito  se  aplica  ao  caso  dos  filmes  estudados  em  dois momentos:  a 

29 Informação verbal a partir do seminário Werner Herzog’s Rogue Film School, Londres, março 2011. 

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noção de cosmos está presente em cada um dos três documentários filosoficamente, 

na  noção  de  imaginação  cósmica,  e  está  presente  fisicamente  em  Além  do  azul 

selvagem, nas imagens que Herzog encontrou nos arquivos da NASA. Herzog espelha o 

espaço  com  imagens do  fundo do mar,  filmadas  sob  a  crosta de  gelo da Antártida. 

Desse espelhamento nasce o que ele  chama de  “paisagem da  imaginação”, que ele 

explica da seguinte maneira:  

 

Sempre deixei muito claro que para o bem de uma verdade mais profunda do que aquilo que os olhos veem, para atingir um nível de verdade muito profundo nos filmes, você deve inventar, ter imaginação.30 

 

Há uma referência material fundamental na intermediação entre o reservatório 

de imagens de Herzog e as imagens que ele criará: a natureza. As imagens adequadas 

de Herzog nunca são encontradas em meios urbanos. Para o diretor, a urbanização do 

mundo significa o contrário de possibilidades imagéticas. A metrópole é a negação de 

qualquer  imagem adequada, ou de  imagens detentoras de um teor de pureza, como 

diz em depoimento a Wim Wenders no documentário Tokyo‐Ga (1985). Na natureza, 

Herzog não esbarra em limites: do fundo do mar ao espaço, das cavernas de Chauvet 

ao deserto do Saara, as imagens que decanta em sua mente sempre hão de encontrar 

seu  espelho  no mundo.  Por  outro  lado,  ficarão  sem  tradução mundana  assim  que 

Herzog chegar às portas de uma metrópole. 

Portanto, não há encenação, pois o diretor não  tem poder  sobre um  rio, um 

vulcão  ou  um  incêndio. Não  há manipulação  tampouco,  à medida  que Herzog  não 

filma maquetes em estúdios, como foi o caso de James Cameron em Titanic (1997). Em 

Fitzcarraldo  (1982),  um  navio  de  verdade  foi  alçado  até  o  topo  de  uma montanha. 

Herzog já declarou dirigir a paisagem. Ao fazer essa afirmação, refere‐se a uma direção 

que  releva de um  aspecto mental:  algo  é  encenado na mente do diretor  e  ele,  em 

seguida, torna essa encenação visível por meio das  imagens que encontra no mundo, 

abrindo um canal de comunicação e expressão entre imagens endógenas e exógenas. 

Na bibliografia do seminário de sua escola de cinema itinerante, Werner Herzog 

não  inclui nenhum manual de cinema. Ao abrir o seminário de Londres em março de 

30 Informação verbal a partir do seminário Werner Herzog’s Rogue Film School, Londres, março 2011. 

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2011,  o  diretor  afirmou,  não  sem  um  tom  de  desafio,  nunca  ter  lido  um  exemplar 

desse tipo de literatura. As Geórgicas, de Virgílio e um conto de Ernest Hemingway, A 

breve vida  feliz de Francis Macomber  são  leituras obrigatórias para os participantes. 

Não acredito ser  isso  fruto do acaso: as Geórgicas constituem uma obra poética que 

trata de  temas  rurais, com elementos da natureza como personagens  fundamentais. 

Tampouco escapa do embate entre ser humano e natureza (que oculta outro embate, 

entre  o  ser  humano  e  sua  própria  natureza)  o  personagem  Francis Macomber,  do 

conto de Hemingway.  

No cinema de Werner Herzog, a natureza é uma presença poderosa em si, mas 

é também uma entidade cujo  impacto sobre o ser humano expõe seus  limites e seus 

mais  profundos  dilemas.  Essa  confrontação  tem  a  função  dramática  de  levar  os 

personagens herzoguianos ao limite da sanidade, atingindo um estado de clarividência 

–  não muito  distante  do  já mencionado  êxtase  da  verdade  –  que,  fugaz  como  um 

poema, se transformará em loucura.  

O romantismo alemão foi mencionado com relação à poesia. Traços românticos 

podem  ser  encontrados  em  personagens  herzoguianos.  Muitos  deles  (como  o 

alienígena  de  Além  do  azul  selvagem)  parecem  acometidos  pelo  já  mencionado 

sentimento de Sehnsucht que tão bem descreve o espírito romântico. No caso, não se 

trata  de  um  romantismo  do  tipo  amoroso,  mas  de  um  romantismo  filosófico:  os 

personagens têm anseios e sonhos impossíveis que representam a única possibilidade 

de transpor limites materiais que simbolizam os limites do espírito humano.  

O  substantivo  feminino  Sehnsucht,  contém,  em  sua  definição,  os  principais 

elementos  que  descrevem  o  espírito  romântico  alemão.  Da  composição  do  verbo 

sehnen,  que  significa  “desejar  ardentemente”  e  “aspirar  a  algo”,  com  o  substantivo 

Sucht, que significa “paixão”, configura‐se o sentimento muito particular de nostalgia, 

de  espera  apaixonada,  de  sofrimento  atávico  e  tristeza  da  alma.  Também  traduz 

melancolia e a  lânguida expectativa pelo ser amado, ou o anseio por algo distante e 

inatingível, como é o caso do personagem do vampiro em Nosferatu, o  fantasma da 

noite. Sehnsucht engloba um paradoxo ao ser uma saudade do futuro, de algo perdido 

de antemão e, portanto, um pesar.  

Se, em alguns personagens, a Sehnsucht romântica se atém à sofreguidão, em 

outros  esse  sentimento  é  superado  pela  loucura,  não  necessariamente  triste, mas 

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melancólica,  como  é o  caso de  Timothy  Treadwell no documentário O homem urso 

(2005), e também dos personagens de Fata Morgana. Em Elogio da Loucura, Erasmo 

de Rotterdam descreve – não sem  ironia –, a  loucura como elemento  inerente ao ser 

humano: 

 

Creio  aqui  ouvir  os  filósofos  reclamarem:  Precisamente,  é  muita infelicidade  ser  mantido  assim  pela  Loucura  na  ilusão,  no  erro,  na ignorância.” Mas não, é ser homem nada mais! Não vejo por que chamam infelicidade  ter  nascido  assim,  ser  criado  e  formado  de  acordo  com  a condição comum. Não há infelicidade alguma em ser o que é, a menos que um homem se julgue digno de pena por não poder voar como os pássaros, andar de quatro patas  como o  resto dos  animais, ou não  ser dotado de chifres como o touro. Achar‐se‐ia infeliz um belíssimo cavalo, por não saber gramática, ou um  touro, por não  saber  fazer ginástica? Da mesma  forma que a  ignorância gramatical não poderia tornar o cavalo  infeliz, a Loucura não  faz  a  infelicidade  do  homem,  já  que  é  conforme  a  sua  natureza. (ERASMO, 1997: 36) 

 

  Menos  irônico, Michel Foucault oferece uma  leitura da  loucura matizada pelo 

contexto histórico: aponta para o fato que, a partir do século XVIII, a loucura deixa de 

ser vista necessariamente  como um  sintoma da maldade ou perversidade – ou uma 

doença –, para ser considerada um sinal de elevação espiritual que coloca o louco em 

contato com uma verdade mais profunda: 

 

Mas o louco tem seus bons momentos, ou melhor, ele é, em sua loucura, o próprio  momento  da  verdade;  insensato,  tem  mais  senso  comum  e desatina menos que os atinados. Do fundo de sua  loucura atinada,  isto é, do alto de sua sabedoria louca, sabe muito bem que sua alma foi atingida. E renovando,  em  sentido  contrário,  o  paradoxo  de  Epimênedes31,  diz  que está  louco até o âmago de  sua alma, e, dizendo  isso, enuncia a verdade. (FOUCAULT, 2010: 211) 

 

  Se  a  própria  definição  de  loucura  permite mais  de  uma  abordagem,  não  é 

possível  afirmar  que  os  personagens  de  Herzog  padecem  de  um  romantismo  na 

acepção associada ao  século XIX. Pós‐modernos – no  sentido do  termo que  inclui o 

porvir  –  foram  contaminados  por  uma  alienação,  na  qual  o  ser  humano,  tendo 

destruído  o mundo  à  sua  volta,  isolado,  perdeu  as  referências  do mundo  e  de  si 

31 Paradoxo de Epimênides (atribuído a Epimênides de Creta, VII a.C.). Epimênides declarava: "todos os 

cretenses  são mentirosos". Ora,  se  ele diz  a  verdade,  ele mente  (por  ser  também  cretense); mas  se mente,  a  proposição  "todos  os  cretenses  são mentirosos"  não  é  verdadeira  e,  nesse  caso,  ele  diz  a verdade; por conseguinte, todos os cretenses são efetivamente mentirosos e, nesse caso, Epimênides mente (e assim por diante, "ao infinito"). 

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próprio. Sua natureza – à qual, segundo Erasmo, a loucura é inerente – se desnuda na 

desolação do deserto que ele mesmo criou, seja ele  interno ou externo. O paradoxo 

citado  por  Foucault  descreve  o  estado  desses  personagens  herzoguianos:  não  são 

estados  alternados  de  loucura  e  lucidez,  mas  um  estado  só,  onde,  como  uma 

engrenagem  que  gira  ad  eternum,  a  lucidez  só  é  possível  por meio  da  loucura,  e  a 

loucura é, por sua vez, o resultado da lucidez.  

Já dissemos que, em Herzog, o humano existe e se revela por meio da inevitável 

experiência  de  estar  dentro  do mundo.  E  o mundo  que  contém  seu  imaginário  é  a 

natureza. Mas,  a  experiência  de  estar  no mundo  não  confere  necessariamente  aos 

personagens sabedoria ou a possibilidade de evolução ou transcendência em direção a 

algo  “melhor”.  A  natureza  de  Herzog  não  é  benevolente  e  acolhedora,  como  a 

renascentista mediterrânica que abraça o ser humano, permitindo‐lhe a plenitude na 

graça  e  na  sensualidade.  Mesmo  quando  tropical,  traz  em  seu  âmago  a 

monumentalidade ameaçadora das montanhas do norte da Europa: nela, o sol é  tão 

opressor quanto a neve, o calor tão tirânico quanto o frio.  

No documentário de Les Blank, Fardo de sonhos (1982), sobre as filmagens de 

Fitzcarraldo,  Herzog  diz  que  a  selva  amazônica  é  obscena.  E  completa:  “Não  há 

harmonia no universo. Precisamos nos acostumar à ideia que não há harmonia, não do 

jeito que a concebemos.” A cada recomeço, a cada nova chance de mudar sua própria 

história,  o  ser  humano  fracassa  ao  tentar  transpor  tanto muralhas  externas  como 

internas,  as  quais  acabam  por  se  fundir  em  um  só  obstáculo.  Não  há  iluminação 

transformadora  ou  a  possibilidade  de  redenção  para  os  personagens.  Aos  mais 

audaciosos, como Aguirre ou Fitzcarraldo, que ousam desafiar a natureza, cabe apenas 

a loucura, ponto mais distante que eles conseguem chegar, por meio de um sonho, da 

condenação congênita que é a condição humana. 

  Em Fata Morgana e Lições da escuridão, Herzog  inventa personagens que são 

revelados  ao espectador por meio do  comentário narrativo.  São  criaturas de outros 

planetas ou,  talvez,  seres humanos vindos de outra dimensão. Mas, não  importa de 

onde venham, eles  também  são  sugados para dentro do  rodamoinho da destruição: 

observam apenas, sem poder romper o círculo que gira eternamente sobre si mesmo 

sem sair do lugar, que é a história da humanidade. 

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Em Além do azul selvagem, os extraterrestres estão em quadro e têm um rosto, 

o do ator Brad Dourif que encarna o personagem do Alienígena. A semelhança entre 

algumas  tomadas de Dourif em Além do azul  selvagem e Klaus Kinski em Aguirre, a 

cólera de Deus (1972) são notáveis: as mesmas entradas em quadro laterais do ator, os 

planos fechados sobre o rosto, a atuação tensa, para a câmera. Da mesma forma que o 

Alienígena de Além do azul selvagem não está em casa na Terra, Aguirre é um corpo 

estranho da selva tropical. 

Ora o embate dos personagens é com a floresta, ora com o deserto. Ora com 

rios  de  petróleo,  ora  com  o  espaço.  A  constante  é  a  situação  de  tensão  entre  o 

personagem e o meio em que  se encontra.  Esta  tensão é  tão presente que o meio 

acaba  por  se  tornar  personagem:  ser  humano  ou  alienígena  se  digladiam  contra 

montanhas, geleiras ou desertos, com visível vantagem para o personagem‐paisagem. 

Essas são as grandes batalhas dos personagens de Herzog, e não enfrentamentos entre 

exércitos  e  generais  briosos.  Dessa  maneira,  a  imagem  do  filme  é  composta 

igualmente  de  personagens  humanos  e  da  paisagem  com  seus  elementos  naturais. 

Essa  é  a  noção  que  infere Herzog  quando  afirma:  “A  paisagem  não  deveria  ser  um 

pano de fundo [...] A paisagem tem direito a uma existência própria.”32 

Já  tínhamos estabelecido que Herzog  trabalha  com o  som  (palavra e música) 

em uma chave de personagem também. Portando, chegamos à equação seguinte: na 

composição dramática herzoguiana, não há a  tradicional composição de personagem 

humano no primeiro plano, paisagem no segundo plano, e trilha sonora que  ilustra a 

ação. Atribui‐se,  a  cada um dos elementos, palavra, música, personagem humano e 

paisagem,  uma  função  narrativa:  são  partes  de  uma  engrenagem  dramática 

equilibrada que o diretor constrói na mesa de montagem. Contracenam uns com os 

outros como personagens de igual importância. 

  Mas, de onde vêm as imagens que Herzog cria? Diante da indagação sobre por 

que  solicitara  a  leitura de Virgílio  para um  seminário  sobre  cinema, Werner Herzog 

abriu  o  livro  do  poeta  ao  acaso  e  leu‐nos  uma  passagem.  Era  o  relato  da  agonia  e 

morte de um animal. De  tão precisa, detalhada e carregada de emoção, a descrição 

adquiria qualidades audiovisuais na mente de quem  lia e, no caso, de quem ouvia o 

32 Informação verbal a partir do seminário Werner Herzog’s Rogue Film School, Londres, março 2011.

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relato.  O  passo  seguinte  seria,  naturalmente,  a  materialização  dessa  imagem 

imaginada em uma pintura ou filme. 

Algumas  importantes  referências  visuais  do  diretor  para  a  leitura  de  uma 

paisagem podem ser encontradas na pintura romântica alemã, notadamente nas obras 

de Caspar David Friedrich (1774 – 1840). Também há referências na obra do pintor e 

gravador  holandês  Hercules  Seghers  (c.  1589  –  c.  1638).  Outra  relação  possível 

encontra‐se na obra de William Turner (1775 – 1851). Como Friedrich, Turner explora 

o uso da luz na construção de paisagens de teor épico que transcendem o realismo, a 

fim  de  dar  conta  de  um  estado  espiritual  que  se  dá  diante  daquilo  que  vemos. Na 

pintura  romântica,  esse  espírito  de  contornos  místicos  é  chamado  de 

Stimmungslandschaft  (literalmente  Stimmung,  “humor”,  “espírito”,  “atmosfera”,  e 

Landschaft, “paisagem”), ou “paisagem da alma”. O Stimmungslandschaft, que traduz 

a intenção do artista de representar o que vê, tanto fora como dentro dele, é também 

visível nas imagens de Herzog. 

Herzog diz buscar “algo escondido, algo misterioso”. Esse olhar não se limita a 

ser curioso: tem uma postura de reverência e até pasmação mística diante da natureza 

que  deslinda  o  pathos  nórdico  que  Herzog  imprime  nas  imagens  que  filma.  Estão 

presentes,  tanto  na  pintura  romântica  alemã  de  Friedrich  como  nas  imagens  de 

Herzog, a noção do  sublime  como  zona  sombria da paisagem, os elementos góticos 

visíveis,  tanto  nas  catedrais  de  fumaça  dos  poços  de  petróleo  do  Kuwait  como  na 

câmera distante, quase fria; nas tomadas aéreas – celestes no sentido de divinas –; no 

romantismo magoado diante do  inevitável  fracasso do ser humano; no exílio, não se 

sabe se de um lugar no mundo, um país, ou se de nós mesmos. 

A  seguir,  proponho  uma  série  de  comparações  entre  fotogramas  dos  três 

documentários estudados e obras de Friedrich, Seghers e Turner, onde são visíveis, em 

primeiro  lugar, as  referências estéticas de Werner Herzog. Em seguida, dois  tipos de 

espelhamento: o espelhamento entre elementos da imagem, por exemplo, entre água 

e céu, e o espelhamento entre pinturas e fotogramas dos filmes. Esses espelhamentos 

estão  à  escuta  do  devaneio  descrito  por  Bachelard,  pois  se  referem  a  imagens 

imaginadas e recriadas no decorrer dos séculos, aproximando o tempo e o espaço, mas 

também aqueles que imaginam e sonham. 

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Paisagens 1 

 

 

           Figura 1 ‐ Paisagem montanhosa (H. Seghers, c.1633) 

 

 

 

 

            Figura 2 ‐ Lições da Escuridão, incêndio 1 (W. Herzog, 1992) 

 

   

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Paisagens 2 

 

   

             Figura 3 ‐ Cidade com quatro torres (H. Seghers, c.1631) 

   

 

 

   

  Figura 4 ‐ Fata Morgana, habitações no deserto (W. Herzog, 1971) 

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Paisagens 3 

 

               

Figura 5 ‐ Monge à beira‐mar (C. D. Friedrich, 1821) 

 

 

 

 

Figura 6 ‐ Além do azul selvagem, Antártico 1 (W. Herzog, 2005) 

 

 

 

 

 

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Figura 7 ‐ Tempestade de neve (W. Turner, 1842)

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Paisagens 4 

 

 

Figura 8 ‐ Figura Beira‐mar ao luar (C. D. Friedrich, 1818) 

   

 

 

 

Figura 9 ‐ Lições da Escuridão, poço de petróleo 1 (W. Herzog, 1992) 

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Paisagens 5 

 

 

Figura 10 ‐ A cruz na montanha (C. D. Friedrich, c. 1808) 

 

 

 

Figura 11 ‐ Lições da Escuridão, poço de petróleo 2 (W. Herzog, 1992) 

 

 

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Figura 12 ‐ O navio negreiro (W. Turner, 1840) 

 

 

 

 

 

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Paisagens 6 

 

 

Figura 13 ‐ Homem e mulher observando a lua (C. D. Friedrich, 1830‐35) 

    

  Figura 14 ‐ Além do azul selvagem, Antártico 2 (W. Herzog, 2005) 

 

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Existe uma característica nas  imagens dos documentários estudados: o ponto 

de vista celeste. Ela imprime uma mudança na narrativa que acontece na passagem de 

Fata  Morgana  para  Lições  da  Escuridão  e  Além  do  azul  selvagem.  Os  três 

documentários se desenrolam em um registro de ficção científica. Em Fata Morgana, a 

câmera é distante, mas nem sempre assume a perspectiva do olhar “fora do mundo” 

por  seu  posicionamento  físico.  Werner  Herzog  já  se  perguntava,  em  1969,  como 

alienígenas veriam o deserto do Saara. Mas, o olhar “fora do mundo” se dá pelo viés 

do  conteúdo  insólito  das  imagens  capturadas  pela  lente  da  câmera,  pelo  tempo 

dilatado das sequências, e não necessariamente pelo posicionamento da câmera: com 

exceção  de  algumas  tomadas  aéreas,  a maioria  das  sequências  foram  filmadas  em 

terra firme ou de cima de veículos em movimento.  

Em  Lições  da  Escuridão, Herzog  assume  a  perspectiva  aérea  como  ponto  de 

vista  dominante  de  seu  relato,  conferindo  ao  documentário  uma  dimensão  extra‐

humana.  O  cinegrafista  Paul  Berriff  sobrevoou  grandes  extensões  de  terra  e  água, 

registrando a paisagem desolada. Também foram filmadas imagens em terra firme, ora 

com a câmera na mão, ora em um tripé, ora em um veículo em movimento. Porém, 

são as tomadas aéreas que determinam o tom do documentário e seu ritmo.  

No  caso  de  Além  do  azul  selvagem,  as  imagens  que  constroem  a  dimensão 

fabulosa do documentário são as imagens de arquivo da NASA, filmadas em 1989 pelos 

astronautas do ônibus espacial Atlantis, em missão no espaço. A missão STS – 34  foi 

também chamada de missão Galileu por conta da sonda que seria enviada a Júpiter. E 

há também as imagens subaquáticas filmadas por Henry Kaiser33 no oceano antártico, 

anteriormente à realização do filme. A perspectiva é espacial e, em um caso de licença 

poética  imagética, a mesma perspectiva é atribuída às  imagens do  fundo do oceano. 

Herzog filmou os depoimentos de cientistas da NASA e o monólogo de Brad Dourif no 

papel do Alienígena, em terra firme. 

É  preciso  fazer  a  seguinte  ressalva:  em  Lições  da  escuridão,  as  tomadas  são 

aéreas, pois foram filmadas em pleno ar, de um helicóptero, ou seja, da perspectiva do 

céu  para  baixo.  Em  Além  do  azul  selvagem, muitas  tomadas  que  aceitamos  como 

33 Henry Kaiser é um guitarrista e compositor americano. Em 2001, passou dois meses na Antártida. As imagens subaquáticas que fez estão em dois filmes de W. Herzog, Além do azul selvagem e Encontros no fim do mundo (2007), do qual é produtor e para o qual compôs a trilha musical. Foi produtor musicalde O homem urso (W. Herzog, 2005). 

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aéreas, mostram o que acontece no  interior de um ônibus espacial. São consideradas 

aéreas, pois o espectador aceita o contrato proposto por Herzog de que, fora daquele 

quadro e daquele ônibus espacial, há de  fato o espaço. O mesmo  contrato é  válido 

para  as  tomadas  subaquáticas de Kaiser, que  flutua não no  ar, mas na  água, e que 

filma inversamente, ou seja, de baixo para cima, da água em direção à atmosfera. No 

filme, a noção de “em cima” e “embaixo” é derrubada pela noção de falta de gravidade 

das imagens feitas pelos astronautas e é incorporada por Herzog no filme. 

Tomadas  aéreas  costumam  ser minoritárias  em  filmes,  pois,  além  de  caras, 

apresentam dois tipos de limitação: em primeiro lugar, uma limitação de perspectiva, a 

perspectiva  de  pássaro,  estranha  à  percepção  humana  e,  em  segundo  lugar,  a 

imposição de um tipo de movimento específico, o movimento da aeronave dentro da 

qual se encontra a câmera.  Este movimento acaba se impondo sobre o movimento da 

câmera em si e ao movimento daquilo que a câmera  filma. O movimento da câmera 

está subordinado ao movimento da aeronave, e o que é filmado ficará em quadro pelo 

tempo que a velocidade da aeronave permitir.  

E, afinal, quais roteiros foram elaborados a partir de uma perspectiva celeste?  

Por exemplo: Stanley Kubrick não utilizou em 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968) a 

perspectiva aérea de maneira  tão efetiva quanto Herzog em Lições da escuridão. As 

imagens do filme de Kubrick são o produto da criação de técnicos de efeitos especiais, 

que elaboraram  suas paisagens  celestes  com os pés bem no  chão. O que ocorre no 

documentário de Herzog é um fenômeno inverso: o movimento do helicóptero do qual 

uma  grande  parte  das  tomadas  foram  filmadas  acaba  sendo  o  movimento 

fundamental, pois ajuda a criar a perspectiva extraterrestre, chegando a sugerir a falta 

de gravidade.  

O olhar da câmera celeste é a perspectiva subjetiva de uma criatura alienígena 

visitando um planeta estranho, ou talvez o próprio ser humano revisitando seu planeta 

destruído. Em alguns momentos, a sombra do helicóptero aparece. Não foi cortada na 

montagem: aparece  como mais um elemento estranho, meio‐máquina, meio‐animal 

no cenário devastado que o olhar sobrevoa. 

Friedrich  não  pintou  suas  paisagens  de  uma  perspectiva  aérea.  Mas 

encontramos em suas obras, assim como nos documentários de Herzog, um olhar que 

procura  alçar‐se  acima  das  coisas  do mundo.  O  olhar  de  Friedrich  e  o  de  Herzog 

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convergem em direção a essa busca por algo que existe na paisagem para além de sua 

materialidade. Segundo Herzog: 

 

O  que  é  estranho  é  que  quando  temos  uma  imagem  numa  tela, fisicamente, a  imagem não muda. É  sempre a mesma  imagem, a mesma projeção  de  luz.  Porém,  nossa  perspectiva  como  espectadores  muda. Enxergamos  de  maneiras  diferentes.  A  imagem  adquire  significados diferentes, cria algo como um todo que está além da música, além da pura projeção de luz.34 

 

É  a  busca  por  uma  verdade  ontológica  que,  dada  a  efemeridade  da  vida 

humana  –  ou  de  um  filme  –,  está  mais  adequadamente  contida  em  paisagens 

milenares que inspiram o imaginário de sucessivas gerações de seres humanos. Talvez 

o  que  impeça  Herzog  de  encontrar  imagens  adequadas  em  metrópoles,  seja  a 

transformação rápida e constante desses lugares que, à semelhança do ciclo de vida de 

seus  criadores,  são paisagens efêmeras, mutáveis e, portanto, às quais não  se pode 

confiar a guarda da memória da humanidade e seu repertório  imagético. Pois, afinal, 

não está o futuro da humanidade encerrado em sua memória? 

 

 

2.4. A articulação de sonhos 

 

Ao  citar  André  Bazin,  Jacques  Aumont  discute  o  quanto,  segundo  Bazin,  o 

perímetro de atuação da montagem de um filme dentro de seu processo de realização 

é restrito por princípios de não‐interferência no processo de representação do “real”. 

(AUMONT,  2010:  51‐56):  a  “montagem  proibida”,  a  transparência  e  a  recusa  da 

montagem sem raccord. A rigidez desses princípios não admite a realização de filmes 

como Fata Morgana ou Lições da escuridão, que rompem com narrativas tradicionais 

essencialmente  por  meio  da  montagem.  Portanto,  é  em  Gilles  Deleuze  que 

encontramos  as  bases  necessárias  para  ponderar  a montagem  dos  documentários 

estudados.  

Deleuze  determina  dois  tipos  de  descrição  cinematográfica:  orgânica  e 

cristalina. A noção de descrição orgânica abarca o  irreal, o sonho e o  imaginário, mas  34 Informação verbal a partir do documentário Réquiem no espaço – Werner e Reijseger fazem música, 

Nicholas McClintock, 2005. 

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por oposição às imagens ditas reais. Na descrição cristalina, “[...] l´actuel est coupé de 

ses enchaînements moteurs, ou le réel de ses connections légales, et le virtuel, de son 

côté, se dégage de ses actualisations, se met à valoir pour lui‐même. ” (DELEUZE, 2002: 

166).35 

Construções  narrativas  como  as  que  encontramos  nos  documentários 

estudados estão à escuta de Deleuze quando ele afirma:  

 

[...]  la narration cristalline  implique un écroulement des schèmes sensori‐moteurs.  Les  situations  sensori‐motrices  ont  fait  place  à  des  situations optiques et sonores pures auxquelles  les personnagens, devenus voyants, ne peuvent plus ou ne veulent plus réagir, tant il faut qu´ils arrivent à voir ce qu´il y a dans la situation. (DELEUZE, 2002: 167 – 168) 36 

 

A  noção  de  personagem‐testemunha  da  construção  critalina,  na  acepção  de 

Deleuze, remete aos narradores dos três documentários de Herzog. No caso, além de 

testemunhas,  são  personagens‐narradores  que  não  podem  fazer  nada  com  relação 

àquilo  que  acontece.  Por  outro  lado,  na  mesa  de  edição,  eles  são  elementos 

articuladores da narrativa e é nesta  condição que  são analisados. Os documentários 

estudados não têm um protagonista humano cuja biografia (ou fato de sua biografia) 

sirva de fio condutor da narrativa. O narrador assume essa posição e torna‐se o mestre 

de cerimônias, o fio condutor e articulador da história.  

Em primeiro lugar, o narrador é a voz do documentário. Em segundo lugar, ele 

não  relata apenas: a narração é diegética, pois dramática, e o narrador, mesmo não 

podendo  fazer  nada  com  relação  ao  que  vê,  está  implicado  na  história,  tem  uma 

relação com aquilo que aconteceu ou acontece.  

Werner Herzog  faz o que  se costuma chamar de cinema de autor.   Sua visão 

pessoal  está  inscrita  em  todas  as  etapas  de  seu  processo  criativo:  escreve  seus 

próprios argumentos, é o principal produtor de seus filmes, e tem a palavra final sobre 

a  montagem.  Nos  documentários,  Herzog  conta  com  um  aliado  para  seduzir  o 

espectador,  o  narrador.  Em  Fata  Morgana,  Herzog  narra,  mas  convida  outros 

35 “[...] o atual é cortado de seus encadeamentos motores, ou o real de suas conexões legais, e o virtual, 

por sua vez, se desvencilia de suas atualizações, passa a valer por si mesmo.” (Tradução nossa) 36  [...]  a  narração  cristalina  implica  em  um  desmoronamento  das  conexões  sensório‐motoras.  As 

situações sensório‐motoras deram  lugar a situações ópticas e sonoras puras às quais os personagens, tendo  se  tornado  aqueles  que  veem,  não  podem mais,  ou  não  querem mais  reagir,  pois  precisam conseguir ver o que há na situação. (Tradução nossa) 

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narradores com os quais tem um vínculo pessoal, como Lotte Eisner, e Amos Vogel na 

versão  inglesa  do  filme.  A  narração  nunca  é  desvinculada  emocionalmente  das 

imagens. Compassada, contribui dramaticamente para a trilha sonora como um todo.  

O texto da primeira parte de Fata Morgana se baseia em trechos do Popol Vuh, 

que  são  relatos maias mítico‐históricos,  transcritos  pela  primeira  vez  em  1701  pelo 

espanhol Francisco Ximénez. Popol Vuh significa “livro da comunidade”, ou “livro do 

conselho”,  e  descreve  o mito  da  criação,  o  dilúvio  e  a  ação  de  heróis  (ancestrais 

antropomórficos do povo maia), como os gêmeos Hunahpú e Xbalanqué. O Popol Vuh 

é  dividido  em  quatro  partes,  que  relatam  a  criação  de  seres  vivos  sobre  a  Terra,  a 

linhagem  das  principais  figuras mitológicas  presentes  no  relato,  a  criação  de  seres 

humanos, migrações, a primeira aurora e a migração e divisão de povos, com o relato 

do povo quiché, seu domínio e suas cidades.  

Herzog  cita  uma  passagem  que  fala  de  Cucumatz,  uma  entidade  divina  do 

período pós‐clássico maia. Cucumatz é a  serpente  coberta de penas, deus do Popol 

Vuh que  criou os  seres humanos,  junto  com o deus  Tepeu. Pouco mais de um  ano 

depois do  lançamento de Fata Morgana, Herzog  faria Aguirre, a  ira de Deus  (1972), 

filmado  em  regiões  próximas  aos  antigos  territórios  do  povo maia.  E  uma  década 

depois retornaria a essas mesmas paragens para filmar Fitzcarraldo (1982). 

Nas  partes  seguintes  do  filme,  Herzog  costura  o  Popol  Vuh  com  poemas, 

trechos de  fábulas  infantis europeias e um texto de sua autoria. Constrói, assim, sua 

própria  lenda  sobre  a  criação  do mundo. Assina  o  documentário  duas  vezes,  como 

diretor  e  roteirista,  e, mais  tarde,  em  Lições  da  escuridão,  três  vezes,  ao  assumir 

fisicamente  a  voz  de  seu  próprio  documentário.  Ao  tornar‐se  o  narrador,  cria  o 

personagem  Herzog,  com  características  distintas:  a  dicção  clara,  a  voz  suave, 

compassada  e  monocórdia.  O  sotaque  alemão  contribuiu  para  a  criação  desse 

personagem, presente em muitos de seus documentários. Ao narrar, não há alterações 

de  registro  significativas  em  sua  voz.  Todavia,  a  perplexidade  do  diretor‐narrador 

diante das imagens que vê está presente – e audível.  

Herzog não aparece fisicamente em quadro, pois é fundamental que a ideia do 

personagem extraterrestre seja preservada na imaginação do espectador. Em Além do 

azul selvagem, a voz do documentário se materializa no personagem do Alienígena. No 

entanto, ele não está maquiado ou vestido de nenhuma forma especial. Parece um ser 

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humano comum, mas diz coisas que só um alienígena poderia conceber. Ou, um louco. 

Da mesma maneira que Herzog não  lança mão de efeitos especiais de  imagem, não 

cria um alienígena por meio de figurinos ou máscaras: deixa ao espectador a liberdade 

de  imaginar o que vê na  tela como um ser vindo do espaço, ou questionar‐se sobre 

certas ambiguidades do personagem. 

Se em Além do azul selvagem o narrador conta algo que já aconteceu, em Fata 

Morgana  e  Lições  da  Escuridão,  a  narração  não  comenta  algo  que  o  personagem‐

narrador viu, mas algo que está vendo. O  tom é de um  relatório ou diário de bordo 

poético com contornos místicos37. Comenta e deduz o que aconteceu baseando‐se no 

que  está  vendo  e  em  informações  que  possui  e  compartilha  com  o  espectador. Ao 

construir  o  comentário  narrativo  nesse  falso  tempo  presente,  o  espectador  tem  a 

sensação de estar acompanhando o personagem‐narrador em  sua viagem e  fazendo 

descobertas no mesmo tempo que ele.  

O narrador funciona como um alter ego do diretor. Herzog não é um cineasta 

de estúdio. Tampouco é um cineasta que vai a uma locação, filma e volta para a mesa 

de montagem  com  o material  bruto,  como  quem  traz  despojos  de  guerra. Herzog‐

narrador  tampouco  é  um  explorador‐conquistador:  é  um  explorador‐cientista,  da 

linhagem  dos  exploradores  europeus  dos  séculos  passados  que  registravam  suas 

descobertas por meio de escritos, desenhos, pinturas, gravuras e fotografias.  

Há décadas Herzog deixa o conforto e previsibilidade da vida na Europa ou nos 

Estados Unidos para se embrenhar em florestas tropicais, águas profundas, desertos e 

na  tundra  siberiana.  Seu  olhar  é  compassivo  e  empático, mas  ele  não  se  deixa  ser 

absorvido pelo que o circunda. Permite o contágio, concede‐se ser tocado e comove‐

se, mas não é o Coronel Walter E. Kurz de Apocalypse Now: nunca perde de vista o fato 

que,  mais  cedo  ou  mais  tarde,  deverá  regressar  para  o  mundo  ao  qual  de  fato 

pertence. Talvez não por amor a esse mundo, mas porque, como Hermes, é seu valioso 

mensageiro. O  aspecto  heroico  está  sempre  presente  na  obra  de Herzog,  não  raro 

encarnado por personagens que perseguem quimeras. Esses personagens talvez sejam 

37 Werner Herzog não se apresenta publicamente como uma pessoa religiosa, mas a questão mística o 

acompanha desde a adolescência, quando cogitou, por um tempo, converter‐se ao catolicismo e entrar 

para um seminário.  

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o próprio Herzog, ou partes do realizador, mas, diferentemente deles, Herzog conhece 

o caminho de volta para territórios seguros. 

Em  Lições  da  escuridão,  a  narração  está  na  primeira  pessoa  do  plural, 

esfumaçando os limites do ponto de vista pessoal do diretor e o que seria o ponto de 

vista de um explorador vindo de outro lugar. Em Além do azul selvagem, o Alienígena 

conversa diretamente com o espectador, olhando para a câmera. Dá a impressão que 

se dirige a um grupo de  conhecidos, explicando a eles o que aconteceu. Não  revela 

detalhes demais. Para ele, o espectador já sabe do que está falando, pois está apenas 

retomando uma conversa. Provavelmente, a conversa que ficou  inacabada em Lições 

da escuridão. 

O  personagem‐narrador  é  o  fio  condutor  da  articulação  dos  três 

documentários. A articulação propriamente dita acontece na montagem. A montagem 

é  uma  etapa  fundamental  no  processo  de  realização  de  um  documentário:  é  neste 

momento que som e  imagem são construídos de maneira a se chegar ao roteiro final 

do filme. A montagem dos documentários estudados apresenta características que os 

aproximam e serão comentadas a seguir. 

Em primeiro lugar, é preciso estabelecer a diferença entre o material bruto dos 

dois primeiros filmes, Fata Morgana, montado por Beate Mainka‐Jellinghaus, e Lições 

da  escuridão,  montado  por  Rainer  Standke,  e  o  terceiro,  Além  do  azul  selvagem 

montado por Joe Bini. Nos dois primeiros casos, todo o material bruto foi gerado por 

Herzog. Além do azul selvagem é um  filme cujo projeto nasce a partir de  imagens  já 

existentes  ou  de  arquivo.  Como  foi  citado,  são  imagens  que  Herzog  encontra  na 

Califórnia, esquecidas nos arquivos da NASA, e  imagens que  lhe  são mostradas pelo 

músico e amigo Henry Kaiser. A esse material de arquivo soma‐se o material filmado 

por Herzog: depoimentos de cientistas e o monólogo dramático do Alienígena.  

Herzog  procura  privilegiar,  nos  três  filmes,  sequências  longas,  tanto  na 

captação como na montagem. O tempo é dilatado, mas não sobra, dando à montagem 

final  um  ritmo  de  respiração  tranquila  ou  de  sono  profundo,  o  que  pode  ser 

interpretado como uma referência subliminar aos sonhos a que se refere Herzog: “Não 

são apenas meus sonhos. Acredito que todos esses sonhos são seus também, e a única 

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diferença entre eu e você é que eu consigo articulá‐los. E é disto que se trata a poesia, 

ou a pintura, ou a literatura, ou o cinema. É simples assim.”38 

Mas  como  articular  sonhos?  Em  primeiro  lugar,  pelo  viés  do  tempo.  A 

montagem  privilegia  raccords  desconectados  –  notadamente  em  Fata Morgana  –  e 

espaços  ópticos  e  sonoros  que  podem  ser  compreendidos  a  partir  do  conceito  de 

Deleuze de imagem‐tempo: 

 

Il  y  a  aussi  les  espaces  vides,  amorphes,  qui  perdent  leurs  coordonnées euclidiennes,  à  la  manière  d´Ozu,  ou  d´Antonioni.  Il  y  a  les  espaces cristallisés, quand  les paysages deviennent hallucinatoires dans un milieu qui ne retient plus que des germes cristallins et des matières cristallisables. Or,  ce qui  caractérise  ces espaces,  c´est que  leurs  caractères ne peuvent pas  s´expliquer  de  façon  seulement  spatiale.  Ils  impliquent  des  relations non  localisables.  Ce  sont  des  présentations  directes  du  temps.  Nous n´avons  plus  une  image  indirecte  du  temps  qui  découle  du mouvement, mais  une  image‐temps  directe  dont  le  mouvement  découle.  (DELEUZE, 2002: 169) 39 

 

  Portanto, é reiterado na montagem o princípio de uma lógica estética e sensível 

do  processo  criativo,  que  estabelece  um  canal  de  comunicação  sensorial  com  o 

espectador tão importante ou mais do que o canal racional. 

A  articulação  de  som  e  imagem  é  de  fato  a  base  da  articulação  de  sonhos 

acontece  na mesa  de montagem.  Logo,  a  intenção  poética  e  criativa,  processo  de 

construção  desses  sonhos,  está  estreitamente  vinculada  ao  aspecto  prático  da 

montagem, e são aspectos indissociáveis. Perguntei a Rainer Standke como equaciona 

lógica  e  intuição  no  processo  de montagem  de  um  documentário  como  Lições  da 

escuridão,  se  a  intuição  e  a  sensibilidade  eram  fatores mais  importantes  do  que  a 

lógica. Standke respondeu: 

 

Sim, positivamente, são. É preciso manter vários fatores sob controle, mas é  necessário  ter  sensibilidade  com  relação  àquilo  que  estamos  fazendo. Quanto mais assisto a filmes e vídeos, mais me dou conta que eles devem ter  uma  verdade  emocional  dentro  deles,  pois  se  não  houver,  eles  não 

38 Informação verbal a partir do documentário Fardo de sonhos, Les Blank, 1982. 39 Há também espaços vazios, amorfos, que perdem suas coordenadas euclidianas, à maneira de Ozu, ou de Antonioni. Há os espaços cristalizados, quando as paisagens se tornam alucinatórias em um meio que retém apenas germes cristalinos e matérias cristalizáveis. Ora, o que caracteriza esses espaços é o fato de  seus  caráteres  não  poderem  ser  explicados  apenas  espacialmente.  Eles  implicam  relações  não localizáveis.  São  presenças  diretas  do  tempo. Não  temos mais  uma  imagem  indireta  do  tempo  que decorre do movimento, mas uma imagem‐tempo direta da qual o movimento decorre. (Tradução nossa) 

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fazem diferença alguma. É necessário que as coisas funcionem em termos emocionais. É preciso prender a atenção das pessoas. As pessoas precisam estar  com  seu  filme  em  algum  nível  emocional.  Se  não  estiverem,  não importa o quanto os fatos que você apresenta são brilhantes, pois elas não estão  conectadas  emocionalmente,  e  está  tudo  perdido.  E,  certamente, num  filme  que  como  este,  que  representa  um  desafio,  que  não  pega  o espectador pela mão e o conduz através da história, o espectador precisa estar interessado por vontade própria. O filme precisa funcionar num nível 

emocional, e para isto é necessário ter sensibilidade. 40      

 

Ao  articular  o  som  e  a  imagem  dos  documentários,  Herzog  não  procura 

associações  óbvias  ou  fáceis.  Isto  quer  dizer  que  uma  imagem  do  deserto  não  será 

articulada com uma música folclórica da região; da mesma maneira, uma  imagem do 

espaço não  será articulada  com uma música eletrônica,  futurista ou efeitos  sonoros 

que  lembrem  o  som  de  computadores  ou  foguetes.  Como  foi mencionado,  Herzog 

busca uma antinomia entre o som e a imagem, mas a finalidade dessa antinomia não é 

apartar: ao contrário, é criar uma oposição complementar que procura alcançar uma 

fusão  mais  integral,  profunda  e  ampla  entre  o  som  e  a  imagem  que  qualquer 

justaposição ilustrativa de uma com relação a outra jamais resultaria.  

Sobre esse procedimento, podemos relacionar o que diz Sergei Einsenstein em 

A unidade na imagem, ao citar Goethe e sua doutrina das cores: 

 “Color and sound do not admit of being directly compared together in any way, but both are referable to a universal formula.” (apud GOETHE) I believe  that  this “higher  formula” may  legimately be  interpreted as  that intellectual‐emotional  image which both sound and colour are capable of expressing  in  equal  measure,  uniquely  and  independently.  (EISENSTEIN, 

2011: 268) 41  

O texto fala de cor, e não de imagem. Esse detalhe chama a atenção para o fato 

de, nos três documentários, a cor ser o elemento determinante das imagens. São cores 

saturadas como o amarelo e o azul de Fata Morgana; o azul, que está presente tanto 

nas imagens como no título de Além do azul selvagem, e o negro da tenebrosa fumaça 

de Lições da escuridão, que resulta em uma não‐cor. No caso de cada uma das obras, 

as  imagens  são essencialmente  cor, e por vezes,  seu  inverso. Os documentários  são 

40 Ver depoimento de Rainer Standke no Apêndice.  41  “Cor e  som não  admitem nenhuma  comparação direta, mas estão  ambos  sujeitos  a uma  fórmula 

universal.” Acredito que essa “fórmula superior” possa ser legitimamente interpretada como a imagem intelectual‐emocional  que  som  e  cor  são  capazes  de  expressar  juntos  em  uma mesma medida,  de maneira única e independente. (Tradução nossa) 

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montados  como  sequências  de  quadros  –  ou  pinturas  –  sobre  um  tema,  e  a  cor 

determina o  lugar onde  se desenrola  a  ação, assim  como o  sentimento  associado  a 

esse  lugar,  da  sensação  física  (calor,  frio)  a  um  estado  de  espírito  (tristeza,  leveza, 

opressão).   

Nesse  ponto,  retornamos  a Deleuze  quando  ele  define  a montagem  de  tipo 

expressionista  alemã.  Da mesma maneira  que  não  podemos  atribuir  uma  intenção 

romântica  à  produção  de  Herzog,  seria  incorreto  afirmar  que  o  diretor  segue  essa 

escola  de montagem.  Contudo,  da mesma maneira  que  o  romantismo  é  parte  da 

formação cultural alemã, no cinema alemão,  referências do expressionismo  também 

dificilmente serão inócuas no caso de cineastas da geração de Herzog. Deleuze fala de 

uma montagem de contrastes de oposição entre  luz e sombra, e mais, faz referência 

ao romantismo: 

 

D´abord,  la  force  infinie de  la  lumière  s´oppose  les  ténèbres  comme une force  également  infinie  sans  laquelle  elle  ne  pourrait  se manifester.  Elle s’oppose aux ténèbres pour se manifester. [...] C´est une opposition infinie telle qu´elle apparaît déjà chez Goethe et chez les romantiques: la lumière ne  serait  rien,  du  moins  rien  de  manifeste,  sans  l´opaque  auquel  elle s´oppose et qui la rend visible. (2003: 73) 42 

 

O  contraste  de  que  fala Deleuze  pode  ser  visto  no  embate  entre  a  luz  e  as 

trevas de Lições da escuridão, no céu negro que se opõe ao sol que aparece ao final, 

seguido de uma nova sombra que prenuncia a possibilidade de uma nova guerra. Há 

também  um  jogo  de  claro‐escuro  entre  um  documentário  e  outro.  Se  em  Fata 

Morgana a  luz  invade todos os quadros do  filme, em Lições da escuridão acontece o 

contrário: é a luz que tenta, ao longo do filme, encontrar brechas para aparecer. 

Dos  três  documentários,  Lições  da  escuridão  é  o  que  melhor  representa  a 

montagem  expressionista  descrita  por Deleuze  quando  ele  cita  a  noção  de  sublime 

dinâmico, “[...] la vie non‐organique des choses culmine dans un feu, qui nous brûle et 

brûle  toute  la Nature,  agissant  comme  l´esprit du mal  ou  des  ténèbres.”  (DELEUZE, 

42 Em primeiro lugar, a força infinita da luz se opõe ás tenébras como uma força igualmente infinita sem 

a qual ela não poderia se manifestar.  [...] É uma oposição  infinita, como ela aparece em Goethe e no romantismo: a  luz não  seria nada, ou nada de manisfesto,  sem o opaco ao qual ela  se opõe e que a torna visível. (Tradução nossa) 

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2003: 80)43. O que era ainda miragem em Fata Morgana – ou a nascente do rio Estige 

no  deserto,  como  sugerem  as  tomadas  aéreas  ao  final  do  filme  –,  assume 

definitivamente a  forma de  tenébra na viagem  rio adentro em direção ao Hades de 

Lições da escuridão:  

 

[...]  une  obscure  vie  marécageuse  où  plongent  toutes  choses,  soit déchiquetées par  les ombres,  soit  enfouies dans  les brumes.  La  vie  non‐organique des choses, une vie terrible qui ignore la sagesse et les bornes de l´organisme, tel est le premier principe de l´expressionisme, valable pour la Nature  entière,  c´est‐à‐dire  pour  l´esprit  inconscient  perdu  dans  les ténèbres, lumière devenue opaque, lumen opacatum. (DELEUZE, 2003: 75, grifos do autor) 44 

 

A montagem é, portanto, o principal fator na articulação dos sonhos a que se 

refere Herzog. É um processo de construção cujo motor é a intuição e a sensibilidade. 

O  filme  vai  surgindo pouco  a pouco,  como uma estátua que nasce de um bloco de 

mármore. O caminho na busca do resultado tem diretrizes  formais e culturais e uma 

mesma  intenção  poética.  Apesar  de  cada  documentário  ter  sido montado  por  um 

profissional diferente, eles possuem uma coerência estética – mesmo se contrastada – 

que  torna  possível  associá‐los  dentro  de  um  processo  narrativo  contínuo.  Assim,  a 

montagem  torna‐se  o  fator  que  concatena  um  documentário  ao  outro,  e 

possivelmente  seu principal  fio  condutor,  acima do narrador,  articulando um  sonho 

que começa em Fata Morgana e termina em Além do azul selvagem. 

43  “[...]  a  vida não‐orgânica das  coisas  culmina no  fogo que nos queima  e queima  toda  a Natureza, 

agindo como o espírito do mal ou das tenébras.” (Tradução nossa) 44 [...] uma vida obscura e pantanosa onde mergulham todas as coisas, ou retalhadas pelas sombras, ou 

tragadas pelas brumas. A vida não‐orgânica das coisas, uma vida  terrível que  ignora a sabedoria e os limites do organismo, tal é o primeiro princípio do expressionismo, válido para toda a Natureza, isto é, para o espírito inconsciente perdido nas tenébras, luz que se tornou opaca, lumen opacatum. (Tradução nossa) 

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CAPÍTULO 3. UMA TRILOGIA POÉTICA EM CINEMA DOCUMENTÁRIO 

   

 

 

 

 Oh, santos gênios! Vós caminhais, lá por cima, em luz, sobre terra suave. Brilhantes deuses etéreos Tocam‐vos levemente, Qual os dedos da artista nas cordas santas 

 Sem destino, como a criança Adormecida, os anjos respiram; Castamente guardado Em discretos botões, O espírito floresce‐lhes, Eterno, E os santos olhos Veem em silenciosa E eterna claridade. 

 Nós, porém, fomos condenados a errar, Sem descanso, pela terra fora. Ao acaso, de uma Hora para a outra, Os homens sofredores Somem‐se e caem, Como a água atirada de Recife para recife, Ano após ano, na incerteza. 

  

(Friedrich Hölderlin, A canção de Hyperion) 

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3.1. Terra, céu, espaço 

 

Este capítulo apresenta um desafio: Werner Herzog  já expressou por diversas 

vezes  sua  aversão  por  análises  de  obras  cinematográficas  –  em  especial  às  suas  – 

chegando a utilizar o termo “vivissecção”, ou seja, a mutilação ou desfiguração de uma 

obra por uma análise científica. Essa desaprovação do diretor por teóricos de cinema, 

em geral, com algumas exceções, como Lotte Eisner e Amos Vogel, não  impediu que 

um grande número de estudiosos se debruçasse sobre seus filmes com o objetivo de 

analisá‐los, a partir dos mais variados prismas e recortes.  

Diante da afirmação do diretor e do reconhecimento que, de certa forma, ele 

tem  razão  ao  apontar  para  esse  perigo  inerente  a  processos  analíticos,  procuro 

apresentar uma análise que  leva em conta a  integridade dos objetos de estudo. Para 

tanto,  proponho  uma  abordagem  que  descobre, mas  não  saqueia. O  intuito,  neste 

caso,  é  tornar  possível  uma  interpretação  das  obras  que  ofereça  novos  ângulos  e 

camadas  de  compreensão  sensível,  escorada  pelo  fato  que  um  filme  existe,  vive, 

sobrevive não  apenas por  si, mas por meio da percepção que os espectadores  têm 

dele. Logo, o objetivo não é uma investigação que desconstrói sem reconstruir nada no 

lugar: a análise é uma ferramenta a serviço de um pensamento criativo e imaginativo, 

no caso não de Herzog, mas de seus espectadores – dentre os quais eu me incluo –, e 

de outros realizadores que acompanham a sua obra.  

Herzog possui em uma filmografia vasta, ainda em expansão. Ao se aproximar 

dos  setenta  anos,  não  diminuiu  o  ritmo  de  sua  produção  cinematográfica,  nem  dá 

sinais  de  pretender  fazê‐lo.  Entre  filmes  de  ficção  e  documentários  para  cinema  e 

televisão, o número se aproxima de sessenta. Dentre essas seis dezenas de produções, 

cerca  de  dois  terços  são  documentários.  E  dentre  esses  quase  quarenta 

documentários, vários se destacam por sua  linguagem poética, que  lhes vale o nome 

de “ensaios fílmicos” ou “documentários poéticos” em diferentes estudos.  

Desde  o  seu  primeiro  filme, Herzog  demonstrou  fazer  um  uso  particular  das 

imagens e dos sons: seu primeiro curta‐metragem, Herácles  (1962), é uma obra que 

não se conforma nem ao formato tradicional do documentário, nem à ficção. A escolha 

dos documentários Fata Morgana, Lições da escuridão e Além do azul selvagem como 

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objetos  de  estudo  não  é  fortuita.  São  obras  que  dão  prosseguimento  à  poética  do 

primeiro  curta‐metragem  do  diretor,  porém,  são  construções  mais  complexas  de 

média e  longa‐metragem,  sem um personagem humano no  centro de  sua narrativa. 

Não  contam  a  história  de  um  ser  humano  em  especial,  pois  narram  a  história  da 

humanidade. 

Na obra documental de Herzog, não há lugar para a pretendida objetividade do 

Cinema Direto ou do Cinema Verdade. A subjetividade é um dos componentes tanto 

de  seu processo criativo quanto da percepção de  seu  resultado pelo espectador. Ao 

afirmar  que  a  percepção  que  as  pessoas  têm  do mundo muda  de  acordo  com  sua 

cultura45, Herzog autoriza diversas  leituras dos  filmes que  faz.  Sobre  Fata Morgana, 

declara:  

 

The film is not there to tell you what to think. I did not structure it to push any  ideas  in your face. Maybe more than any other films I have made it  is one that needs to be completed by the audience, which means all feelings, thoughts and interpretations are welcome. (HERZOG; CRONIN, 2002:  46)46 

 

  No caso deste texto, ele está sendo redigido por uma brasileira que assistiu aos 

filmes que um diretor alemão (ou bávaro, como ele próprio prefere se definir) fez com 

imagens  do  continente  africano,  do Oriente Médio,  da Antártida  e  do  espaço.  Essa 

multiplicidade  cultural  e  ambiental  determina  de  antemão  uma  multiplicidade  do 

olhar. 

Em  um  caso  como  esse,  a  objetividade  se  torna  refém  de  um  binômio 

constituído  por  coisas  que  existem  por  si,  com  uma  imanência  própria,  mas  que 

também existem em nossas mentes, por meio de nossos  filtros biológicos, culturais, 

psicológicos e emocionais. Como em um desenho de M. C.  Escher, onde o  rigor do 

raciocínio  e  a  precisão  geométrica  resultam  na  representação  do  impossível,  o 

impossível torna‐se possível e existe na dimensão do imaginário. 

Ao  organizar  uma  trilogia  de  documentários  poéticos  com  a  finalidade  de 

estudá‐los, perguntei‐me quais os fatores que justificariam essa composição. Alguns já 

45 Declaração verbal a partir do seminário Werner Herzog’s Rogue Film School, Londres, março de 2011. 46 O filme não está aí para dizer o que você deve pensar. Eu não o estruturei para empurrar ideias na 

sua cara. Talvez mais do que qualquer outro filme que fiz, ele deva ser completado pelo público, o que significa que todos os sentimentos, pensamentos e interpretações são bem‐vindos. (Tradução nossa)

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foram  citados,  como  o  comentário  dramático‐narrativo  presente  nos  três  filmes;  a 

música e a paisagem como personagens; a perspectiva extraterrestre do narrador e a 

visão apocalíptica com relação ao destino da humanidade. Porém, há algo que justifica 

a aproximação de Fata Morgana, Lições da escuridão e Além do azul  selvagem para 

além da  comparação baseada em  similaridades  formais. Abordarei primeiramente o 

que articula os três documentários em uma trilogia original para, em seguida, retomar 

alguns aspectos formais e conceituais gerais que ainda não foram mencionados. 

A  realização  dos  três  documentários  ocorreu  com  importantes  espaços  de 

tempo  entre  um  e  outro.  Vinte  e  dois  anos  separam  Fata Morgana  de  Lições  da 

escurição,  e  treze  anos  separam  Lições  da  escuridão  e  Além  do  azul  selvagem.  A 

construção narrativa de viagem, ou road movie, está presente nos três, e evoca uma só 

viagem, que começa em 1968‐70, com Fata Morgana, e termina mais de trinta e cinco 

anos depois, em 2005, com Além do azul selvagem. Essa relação nasce do fato de não 

ser  esta  uma  viagem  qualquer:  ela  tem  um  roteiro  e  destino  específicos,  não 

necessariamente físicos. 

O percurso de Herzog ao  longo dos anos como realizador e, geograficamente, 

por  diversas  partes  do mundo,  possui  uma  coerência  estética  e  ideológica  que  lhe 

determina  um  mesmo  destino.  No  caso  dos  documentários  estudados,  existe  a 

passagem de um ponto para o seguinte, em uma linha ascendente: da terra vai‐se para 

o  céu, do  céu  segue‐se para o  espaço.  Essa  é  a busca  vertical presente na obra do 

diretor: é a montanha a ser escalada e suplantada em nome da sobrevivência. Porém, 

as altitudes herzoguianas têm seu espelho, que pode ser o fundo do oceano ou uma 

caverna.  

Se  falarmos em uma só viagem contínua nos  três documentários, poderemos 

também afirmar que houve um processo de criação contínuo ao  longo dos anos, no 

qual Fata Morgana fez parte do processo de criação de Lições da escuridão, e, por sua 

vez, Lições da escuridão  fez parte do processo de criação de Além do azul selvagem. 

Logo,  a  linguagem  poética  presente  nos  três  filmes  passou  por  transformações  da 

captação de  imagens à montagem. No entanto, apesar dessas  transformações,  cada 

filme é uma parte de um mesmo relato cosmogônico: uma narrativa sobre as origens 

do mundo, dos seres humanos e de seres sobrenaturais ou extraterrestes. 

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Há um fator determinante nesse processo criativo: o tempo. No caso de Lições 

da  escuridão,  os  poços  de  petróleo  do  Kuwait  não  queimariam  para  sempre,  e  os 

vestígios da guerra recente seriam apagados. Capturar o momento que não se repetirá 

é uma questão essencial na  realização de documentários. Em Fata Morgana, não há 

menção  de  um  prazo  estipulado,  seja  por  produtores,  seja  por  fatores  naturais, 

limitando  o  tempo  de  realização.  Sabe‐se  apenas  que  Herzog  e  sua  equipe 

enfrentaram dificuldades e viajaram durante meses por vários países (Quênia, Nigéria, 

Tanzânia, Costa do Marfim, Camarões). O  elemento do  acaso presente na narrativa 

revela a falta de urgência das filmagens.  

Tempo  em  excesso  pode  representar  um  problema  tão  grande  quanto  sua 

escassez. O  tempo que parece  sobrar nas  filmagens de Fata Morgana  (variedade de 

personagens  e  locações)  é mais  enxuto  em  Lições  da  escuridão.  Essa  diferença  no 

processo de captação de imagens confere a cada filme características próprias: sendo 

o tempo um fator importante num processo experimental, Fata Morgana se conforma 

melhor  a  esse  tipo  de  fazer  na  etapa  das  filmagens,  onde  a  busca  por  algo  ainda 

indefinido abraça o acaso e o imprevisto como parte do processo criativo. Já em Lições 

da escuridão, a curva da experimentação atinge seu ápice no contexto controlado da 

mesa de montagem. 

Sabemos  que  os  três  documentários  têm  a  perspectiva  de  um  narrador 

extraterrestre. Porém, cada um desses narradores – que, no âmbito da trilogia, pode 

ser o mesmo – descobre e percorre um território diferente: Em Fata Morgana, depois 

da sequência inicial do filme mostrando o pouso de oito aviões, o território percorrido 

é terrestre: longos travellings pelo deserto, tomadas com a câmera fixa, o visitante de 

outro mundo se encontra na Terra, próximo aos seres que a habitam.  

Em  Lições  da  escuridão,  o  narrador‐viajante  paira  no  ar  e,  com  ele,  o 

espectador.  Talvez  tenha  retornado  para  ver  o  que  aconteceu  na  Terra  desde  sua 

última visita. Desce ao solo por alguns momentos, mas não há quase nenhum contato 

com seus habitantes,  fora dois personagens que contam o que aconteceu. Diante da 

confirmação  da  catástrofe  apocalíptica  que  se  abateu  sobre  o  planeta,  o  viajante 

extraterrestre não vê possibilidade de ficar na Terra. Flutua sem poder aterrissar e se 

instalar. Se a chegada ao planeta é colocada claramente no início do filme, a partida é 

mais nebulosa e permite ao espectador perguntar‐se se o extraterrestre resolveu ficar 

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ou não, o que significa que, neste caso, a viagem não acabou. Pelo menos não neste 

filme. 

Em Além do azul selvagem, o Alienígena relata sua história, sua vinda à Terra e 

a saga dos seres humanos à procura de um lugar para viver. Ele se encontra na Terra, 

mas o território percorrido em seu relato é o espaço. Portanto, nesta última etapa da 

viagem, o último território é o espaço, mas é também o  fundo do mar, mostrado ao 

espectador como uma região do universo. Esse espelhamento do fundo do mar com o 

universo sugere a  ideia de recomeço, de ciclo sem fim, presente na montagem  inicial 

aterrissagens de Fata Morgana. Dessa maneira, os  três documentários  formam uma 

trilogia que não é linear, com um começo, um meio e um fim, mas circular: Depois de 

subir aos céus, e  ir além do céu à procura de  imagens adequadas ou de um mundo 

habitável  (sendo  imagens  adequadas  um  mundo  habitável,  na  ótica  herzoguiana), 

retornamos ao ponto inicial da vida, o oceano.  

Tendo  estabelecido  o  percurso  de  uma  viagem  contínua  ao  longo  dos 

documentários  como  base  para  a  trilogia  proposta,  é  necessário,  antes  da  análise 

específica de cada documentário, retomar alguns os  fatores comparativos gerais que 

aproximam os documentários como, por exemplo, o título. Nos três casos, ele funciona 

como uma apresentação, quase um aviso, que chama a atenção do espectador para o 

tipo de  aventura que o espera, mas  também para o  tom dos documentários. Tanto 

Fata  Morgana  como  Lições  da  escuridão  e  Além  do  azul  selvagem  podem  ser 

chamados de títulos‐imagem. Há a referência a uma miragem, à escuridão e à cor azul, 

acrescida de um adjetivo que a descreve. Os títulos são um alerta para o espectador 

que  embarca  na  viagem  com  o  narrador  extraterrestre:  o  lugar  para  onde  vai  não 

necessariamente existe, pelo menos não numa dimensão conhecida, e o destino pode 

ser  a  escuridão  no  sentido  das  profundezas  do  inferno,  ou  a  cor  e  a  luz  que  cega 

quando entrar no paraíso. 

Os documentários são divididos em capítulos, como num  livro. Mas há outras 

correspondências possíveis para essa divisão. Os títulos dos capítulos fazem mais que 

simplesmente  apresentar:  comentam  aquilo  que  será  mostrado.  No  caso  de  Fata 

Morgana, há uma abertura e três partes que formam uma lenda ou fábula, com início, 

meio  e  fim.  Em  Lições  da  escuridão,  há  a  abertura,  além  de  treze  capítulos  que  se 

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acomodam no  formato de quadros operísticos. Além do azul selvagem é dividido em 

dez capítulos ao longo dos quais um Alienígena narra uma saga de seres humanos.  

Foi estabelecido, no  âmbito deste estudo,  a possibilidade de uma  trilogia de 

natureza  poética.  Este  posicionamento  exige  uma  reflexão  sobre  o  termo  e  suas 

implicações  conceituais  e  estéticas.  Fábula,  ópera  ou  saga  audiovisual?  Vários 

formatos podem conter os documentários. Um formato em particular abraça os três, o 

de poema épico. Foram mencionados capítulos, mas dado o teor poético das imagens, 

torna‐se possível designar os blocos dos documentários de estrofes, ou partes de um 

poema.  

O poema épico tem raízes na  Ilíada e Odisseia, de Homero. Outro  importante 

exemplo é  a Canção de Rolando  (anônimo), o mais  antigo  relato de  guerra  francês, 

datado  do  século  XI.  É  característica  do  poema  épico  a  presença  do  narrador.  Isto 

porque o  termo  “épico”  vem do  grego  antigo, onde  epos  significa  “palavra” e, num 

sentido mais amplo, “relato” ou “narração”. Épicos são narrados em versos. No caso 

do comentário narrativo de Herzog, não há rimas no  texto narrado, nem poemas do 

diretor  ou  de  outros  autores.  Contudo,  uma  construção  lírica  do  texto  o  torna 

comparável a um poema em prosa. No caso, talvez mais relevantes que rimas verbais 

sejam as rimas visuais, resultado de uma montagem que, como vimos, não obedece a 

uma sequência  lógica, mas a situações ópticas e sonoras, com uma estrutura poética 

própria. 

Épicos não contam apenas histórias de guerras e seus heróis. Abordam também 

o  aspecto político  e  religioso  dos  acontecimentos  em  seu  relato.  Têm  fundamentos 

históricos,  mas  não  são  fiéis  aos  fatos,  assim  como  acontece  no  caso  dos 

documentários. No entanto, ao abordarmos os documentários como poemas épicos, é 

necessário  defini‐los  como  poemas  épicos  modernos:  em  primeiro  lugar,  são 

audiovisuais.  Em  segundo  lugar,  não  há  heróis.  Em  seguida,  o  conhecimento  que 

Herzog transmite ao espectador não se refere a uma guerra específica: é a revelação 

de um Zeitgeist moderno, ou pós‐moderno.  

Originalmente, épicos eram apresentados  com acompanhamento musical. No 

caso  dos  documentários  estudados,  não  é  menos  épica  a  trilha  musical  utilizada. 

Poderíamos falar em suíte ou movimentos musicais? No caso de Lições da escuridão, 

dado o  teor dramático do  filme e a experiência de Herzog como diretor de ópera, o 

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mais adequado  fosse talvez pensar em atos de uma ópera. Não estaria o espectador 

diante  de  uma  ópera  documental  ou  uma  sinfonia  audiovisual?  Herzog  afirma  ter 

procurado fazer um “réquiem para um planeta impensável” (HERZOG; CRONIN, 2002: 

249) em Lições da escuridão, e uma sinfonia visual em Além do azul selvagem.  

A variedade de possibilidades de  leitura das obras estudadas denota o quanto 

estão distantes de formatos e linguagens tradicionais. A riqueza da análise não está em 

dar  respostas  definitivas, mas  na  revelação  das  possibilidades  engendradas  por  um 

processo criativo que lança mão de vários elementos e os conjuga segundo o principal 

fundamento desse processo, a poesia. 

O  objetivo  desse  processo  em  Herzog  assemelha‐se  àquele  das  tragédias 

clássicas  gregas,  que  é  revelar  ao  espectador,  por  um  viés  trágico,  a  ação  do  ser 

humano sobre seus semelhantes e sobre o mundo. Segundo Aristóteles, a tragédia é a 

imitação  de  ações  e  estados,  sendo  estes  últimos  pensamentos  e  opiniões  de 

personagens considerados dignos (que não é o caso dos personagens da comédia). Ele 

afirma: 

 

[...]  la tragedia es  imitación no de hombres sino de acción, vida, felicidad, pues la felicidad y la infelicidad están en la acción y el fin es uma acción, no una  cualidad.  Los  hombres  tienen  cualidades  por  sus  caracteres;  pero según sus acciones son felices o al contrario. (ARISTÓTELES, 2003: 47)47 

 

O uso da palavra “imitação” já foi abordado anteriormente. Se, por um lado, a 

natureza da palavra pode ocasionar questionamentos, por outro, não se pode refutar 

que  os  “estados”  descritos  por Aristóteles  estão  presentes  no  comentário  narrativo 

subjetivo dos filmes que enfoca as ações humanas. 

Se em Fata Morgana várias imagens são justificadas pelo impacto estético que 

causam,  contribuindo  por  esse  viés  para  a  narrativa  como  um  todo,  em  Lições  da 

escuridão,  praticamente  todas  as  imagens  estão  diretamente  vinculadas  a  algum 

conflito que ocorreu nos  locais  filmados. Em Além do azul  selvagem, as  imagens de 

arquivos  são  deliberadamente  utilizadas  para  construir  uma  situação  imaginada por 

47 A tragédia não é a imitação de homens, mas de ação, vida, felicidade e infelicidade, pois felicidade e 

infelicidade estão nas ações e o fim é uma ação, não uma qualidade. Os homens têm qualidades por seu caráter; porém, são felizes segundo suas ações, ou o contrário. (Tradução nossa)

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Herzog.  Dessa  maneira,  os  documentários  incorporam  características  de  fábulas 

bélicas ou pós‐bélicas.  

Para  melhor  compreender  a  relação  dos  documentários  com  a  fábula, 

recorremos mais  uma  vez  a  Aristóteles.  Para  ele,  a  tragédia  é  composta  por  seis 

elementos:  a  fábula,  que  é  o  princípio  e  a  alma  da  tragédia,  os  personagens,  a 

linguagem (no caso, exteriorização do discurso verbal), o pensamento, o espetáculo e a 

composição musical (ARISTÓTELES, 2003: 46). Encontramos cada um desses elementos 

da tragédia nos documentários.  

Lições  da  escuridão  conjuga  esses  elementos  com  trechos  da  obra  musical 

trágica  de  Richard Wagner,  O  Anel  dos  Nibelungos.  Também  a  obra  de  arte  total 

proposta por Wagner tem antecedentes na tragédia grega, cujas estruturas dramáticas 

tornam‐se  complexas  ao  aliar,  na  composição  de  um  só  acontecimento  dramático, 

diversos elementos como música, cenografia, texto, personagens, etc., como é o caso 

da já mencionada Gesamtkunstwerk wagneriana.  

A aproximação entre essas obras deve ser feita tendo em mente mais a poesia 

do  que  a  técnica.  Em Origem  do  drama  trágico  alemão, Walter  Benjamin  refuta  a 

influência de Aristóteles sobre o drama trágico alemão, alegando que, neste caso, não 

são  levados em  consideração elementos que  caracterizam  a  tragédia  grega  clássica, 

como,  por  exemplo,  a  unidade  de  tempo  e  espaço  (BENJAMIN,  2009:  60).  O 

comentário abarca a tragédia alemã de um modo amplo, incluindo‐a ao drama trágico 

burguês que surge na Alemanha no século XVIII. A relação com Aristóteles que é feita 

no  contexto deste estudo  refere‐se especificamente à obra de Richard Wagner, que 

tem  características  particulares,  e  é,  por  sua  vez,  articulada  com  a  obra  de Werner 

Herzog de um ponto de vista essencialmente poético. 

Aristóteles distingue fábulas simples e complexas. Uma fábula simples é aquela 

onde a ação  transcorre de acordo com o desenvolvimento dos acontecimentos, sem 

peripécia  nem  reconhecimento,  enquanto  uma  fábula  complexa  é  aquela  que  se 

desenvolve  com  reconhecimento  e peripécia. A peripécia pode  ser definida  como  a 

mudança de sorte ou de curso, e o reconhecimento como a mudança de um estado de 

ignorância  para  um  estado  de  conhecimento.  Ambos  os  elementos  da  fábula  têm 

como  função produzir piedade e  terror. O patético pode  ser um  terceiro gênero de 

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fábula de estrutura complexa. Ele é caracterizado pela ação destruidora e dolorosa que 

expõe cenicamente morte, feridas, etc.  

Se Fata Morgana está mais próximo da  fábula  simples, Lições da escuridão e 

Além do azul selvagem têm características de fábulas complexas. O Alienígena de Além 

do azul selvagem é um dos poucos personagens herzoguianos que aprendeu com seus 

erros. Ele  tenta compartilhar com os seres humanos o que sabe, mas não consegue. 

No  entanto,  é  Lições  da  escuridão  que  encontra  no  conceito  de  patético  sua mais 

adequada  tradução  trágica, ao mostrar a Terra  como uma grande  ferida que  sangra 

fumaça e petróleo, e onde apodrecem carcaças de animais e construções humanas.  

Há um último dado importante para a compreensão dos filmes: o momento ou 

contexto histórico em que foram feitos. Fata Morgana foi realizado entre 1968 e 1970, 

ou  seja,  em  plena  era  hippie  ou  flower  power,  um  dos mais  pontuais  períodos  de 

transformação  social  e  cultural  do  século  XX. Nesse  período,  experimentação  era  a 

palavra de ordem no campo das artes, no campo sexual ou com relação às drogas.  

É nesse contexto que Werner Herzog deixa o filme fluir por essas correntes de 

experimentação,  em  busca  de  um  conceito  de  beleza, mas  também  de  liberdade  e 

transformação  social.  Nesse  período,  havia  um  sentimento  de  esperança  social  e 

política  que  seria  aniquilado  vinte  anos  depois.  Havia  ideais  que  acenavam  com  a 

possibilidade de salvar o mundo e a humanidade da ganância e da caretice por meio 

do amor, da arte e de uma participação coletiva nas questões essenciais da vida.  

Lições da escuridão foi filmado em 1991 e tem como contexto um mundo muito 

diferente,  regido pelo  individualismo e por cowboys políticos como Ronald Reagan e 

George Bush. Na década de 1990, os cowboys venceram e Herzog contrapõe‐se a eles 

com um discurso de forma e fundo mais pungente e focado. A experimentação parece 

ter  sido  disciplinada,  possivelmente  porque  os  objetivos  do  realizador  sejam mais 

claros e urgentes: a crítica a um modo de vida pautado por um sistema político que, 

segundo Herzog, levará o planeta e os seres humanos à aniquilação.  

Ao  realizar  Além  do  azul  selvagem  treze  anos mais  tarde,  há  uma  volta  ao 

experimentalismo encontrado em Fata Morgana. A relação é reconhecida pelo diretor 

em  No  Além  do  azul  sevagem  com Werner  Herzog.  Depois  do  alerta  de  Lições  da 

escuridão,  nenhuma  providência  foi  tomada  para  resgatar  o  mundo  do  estado 

apocalíptico  em  que  se  encontrava.  A  humanidade  entrou  no  século  XXI, mas  não 

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mudou  seu  curso:  continua  trilhando  o  caminho  da  autodestruição.  Os  governos 

ocidentais tendem cada vez mais para  ideologias de direita, favorecendo modelos de 

desenvolvimento  que  priorizam  o  crescimento  econômico  em  detrimento  das 

questões sociais. O mundo continua em guerra na África, no Oriente Médio e Oriente 

Próximo, com a participação efetiva de governos europeus e do norte‐americano. 

Em 2005, o olhar humanista de Werner Herzog se volta de novo para o universo 

onírico de Fata Morgana. Em Além do azul  selvagem, os planos dos  seres humanos 

deram errado. À procura de um  lugar para viver,  retornam à Terra, que se encontra 

então  em  um  estado  pré‐histórico.  Serão  eles  capazes  de  recomeçar?  Conseguirão 

romper  o  ciclo  de  destruição  daquela  vez?  Talvez  seja  o  sonho  o  último  refúgio 

possível do ser humano, ou de qualquer forma de vida. 

 

 

3.2. Fata Morgana: deserto e danação 

 

Fata Morgana é um projeto de filme que nasce no final da década de 1960, a 

partir de um roteiro de ficção científica sobre alienígenas do sistema solar Andrômeda. 

Mas, ao chegar ao Norte da África, desconcertado pela visão do deserto, Herzog deixa 

de  lado  o  roteiro.  Com  sua  equipe,  empreende  viagens  pelo  continente  africano  e 

registra imagens, guiado não por um roteiro cinematográfico, mas por seus olhos48. O 

diretor passa a procurar uma qualidade visionária das imagens, filmando aquilo que o 

fascina.49 

Se, na década de 1930,  Salvador Dalí  criou um método específico, o método 

“Crítico‐Paranóico”50, para reproduzir imagens de seu subsconsciente por meio de um 

delírio autoinduzido – Herzog não precisou mais do que o calor e a aridez da paisagem 

do  Saara  para  entrar  em  um  estado  alterado  de  percepção  das  coisas.  Nesse 

48 Durante  as  filmagens  de  Fata Morgana, Werner Herzog  e  sua  equipe  chegaram  a  ser  presos  na 

República  de  Camarões,  ao  serem  confundidos  com mercenários.  Segundo  relatos  de  Herzog,  eles sofreram maus tratos, apanharam e ficaram doentes. 49 Informação obtida a partir da banda comentada do DVD do filme. 50   Criado por Salvador Dalí no  início da década de 1930, o método “Crítico‐Paranóico” é um método 

surrealista utilizado para ajudar um artista a entrar em  contato  com  seu  subconsciente por meio de pensamentos  irracionais  sistemáticos  e  um  estado  paranóico  autoinduzido.  Esse  estado  paranóico permite ao artista transcender tanto noções e conceitos preestabelicidos, como seu entendimento do mundo e da realidade, com a finalidade de ver o mundo de uma forma diferente, nova e única.  

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momento,  o  formato  final  do  documentário  está  longe  de  ser  definido.  Na  banda 

comentada  do  filme,  Herzog  não  fornece  explicações  lógicas  para  a  escolha  das 

imagens que  filmou. Em  seu discurso, a palavra  strange ou “estranho” é  recorrente. 

Pode parecer um termo vago e abrangente demais, mas, ao reiterá‐lo, Herzog o alça 

ao patamar de parâmetro: o diretor busca especificamente aquilo que é estranho. 

Mas, o que é estranho? Estranho para Werner Herzog? A noção de estranho, 

neste caso, está estreitamente vinculada à noção de  imagem adequada: é aquilo que 

nunca foi visto antes, pelo menos não da forma que está sendo visto pelo diretor. Sua 

perspectiva  é  europeia, mas  seu  olhar  não  é  o  de  um  turista. Não  há  clichês, mas 

imagens  fixas  e  em  movimento  (travellings,  ou  filmadas  de  cima  de  veículos  em 

movimento)  com  qualidade  pictórica.  Apesar  da  preocupação  estética,  Herzog  não 

propõe  ao  espectador  imagens  de  fácil  digestão  visual,  tampouco  o  convida  a 

participar ou “entrar” nas imagens, como no caso das imagens de publicidade.  

Roland Barthes definiu a  imagem como “tout ce dont  je  suis exclu” ou “tudo 

aquilo de que sou excluído”51, na medida em que a  imagem é aquilo que existiu um 

dia, o que exclui o tempo em que o observador olha para a imagem. Barthes diz que, 

por esse motivo, a observação de uma imagem comporta um elemento de crueldade, 

de  tristeza  e  até  de  dor.  Mesmo  se  referindo  à  fotografia  e  não  ao  cinema,  a 

melancolia e o distanciamento proposital das  imagens de Herzog – e o próprio título 

do documentário – corroboram as afirmações de Barthes.  

Mas, de que tipo de imagem estamos falando em Fata Morgana? O termo fata 

morgana significa miragem, mas não qualquer  tipo de miragem. O nome, de origem 

italiana, refere‐se a uma  irmã do Rei Artur com poderes de feiticeira, Morgan Le Fay. 

Portanto, a  ideia de sobrenatural é  introduzida desde o  início. As miragens (do  latim, 

mirare:  olhar  para,  fitar),  ao  contrário  das  alucinações,  são  fenômenos  ópticos 

explicados pela física e, portanto, podem ser filmados.  

Há dois  tipos de miragens,  as  chamadas  “inferiores” e  as  “superiores”.  Estas 

últimas  acontecem  com menos  frequência. Miragem  complexa,  do  tipo  superior,  o 

fenômeno  fata morgana  é  causado  por  fatores  físicos,  como  a  luz  que  passa  por 

diferentes camadas de ar de temperaturas diferentes, em situação de inversão térmica 

51 BARTHES, Roland. Fragments de Voix. Archives Sonores  Ina, Série Les Grandes Heures. Depoimento para Jean‐Marie Benoist e Bernard‐ Henri Lévy, fevereiro de 1977. 

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aguda.  Isto gera  imagens  invertidas, zonas de compressão e dilatação das  imagens, e 

miragens  em  estado  de mutação,  isto  é,  que mudam  rapidamente.  Assim,  desde  o 

início, o espectador  sabe que o que verá na  tela não  tem  compromisso o  real ou o 

factual.  

Herzog propõe uma viagem de  incertezas e  impressões que conduzirão a um 

determinado estado de espírito e às reações a um entorno. Ainda na banda comentada 

do  filme, Werner Herzog  afirma que  certas  imagens não  são  reais, mas produto do 

fenômeno  fata morgana,  como  o  caso  de  um  longínquo  ônibus  e  de  pessoas  que 

circulam à sua volta. Ele afirma que, após a filmagem da sequência, ele e sua equipe 

foram verificar o local e não havia vestígios da existência do ônibus ou das pessoas. É 

difícil acreditar que as  imagens que vemos no documentário  sejam produto de uma 

ilusão óptica. Porém, ao assistir o filme, o espectador compreende que deve aceitar o 

contrato proposto pelo diretor, e o fato de o ônibus existir ou não passa, a partir desse 

acordo, a não ter importância.    

As  imagens de Fata Morgana são paisagens africanas, filmadas no deserto. Há 

também  imagens de seres humanos que, por serem mais raras, pontuam os estágios 

de um crescente clima de estranhamento no documentário. No  lugar de aproximar o 

espectador, os personagens humanos o afastam, pois são estrangeiros, no sentido de 

estranhos,  ou  alienígenas. Alguns  não  parecem  estar  no  que  se  convém  chamar  de 

estado mental normal. São seres do deserto, não apenas do deserto do Saara, mas do 

deserto onírico, por vezes alucinógeno, das paisagens mentais de Herzog. 

Portanto, o deserto do filme não é deste mundo e conta a história de desertos 

que  não  têm  saída  e  que  são  a  revelação  da  nossa  impotência  perante  o  infinito. 

Labirintos e prisões oferecem o reconforto de  limites conhecidos aos quais podemos 

nos agarrar.  Jorge  Luis Borges descreve, em um pequeno  conto, o  labirinto  sem  fim 

que é o deserto e do qual só é possível encontrar uma saída dentro de nós mesmos:  

 

Contam  os  homens  dignos de  fé  (mas Alá  sabe mais)  que  nos  primeiros tempos houve um  rei das  ilhas da Babilônia que  reuniu seus arquitetos e magos e os mandou construir um  labirinto tão desconcertante e sutil, que os varões mais prudentes não se aventuravam a entrar, e os que entravam se perdiam. Essa obra era um escândalo, porque a confusão e a maravilha são  operações  próprias  de  Deus,  e  não  dos  homens.  Com  o  passar  do tempo,  veio  à  sua  corte  um  rei  dos  árabes,  e  o  rei  da  Babilônia  (para zombar  da  simplicidade  do  hóspede)  fez  com  que  ele  penetrasse  no 

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labirinto, onde perambulou ofendido e confuso até o cair da tarde. Então implorou por socorro divino e deu com a porta. Seus lábios não proferiram queixa  alguma, mas disse  ao  rei da Babilônia que ele na Arábia  também tinha um  labirinto que, se Deus  fosse servido,  lhe daria a conhecer algum dia. Depois voltou à Arábia, reuniu seus capitães e alcaides e devastou os reinos  da  Babilônia  com  tamanha  boa  sorte  que  arrasou  seus  castelos, dizimou  sua gente e aprisionou o próprio  rei. Amarrou‐o em cima de um camelo veloz e  levou‐o para o deserto. Cavalgaram  três dias, e disse‐lhe: “Ó, rei do tempo e substância e cifra do século!, na Babilônia desejaste que eu me  perdesse  num  labirinto  de  bronze  com muitas  escadas,  portas  e muros;  agora o  Poderoso  teve  por  bem que  eu  agora  te mostre  o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer,  nem  muros  para  impedir  a  passagem”.  Logo  depois, desamarrou‐o e o abandonou no meio do deserto, onde morreu de fome e de sede. A glória esteja com Aquele que não morre. (BORGES, 2008: 122) 

 

A  chegada  a  esse  deserto  se  dá  com  uma  sequência  de  aviões.  Apenas  o 

momento do pouso é mostrado. Não há  referência a país, aeroporto ou  companhia 

aérea. São oito aviões no total, ou oito pousos, num total de quatro minutos de filme. 

O que significa a repetição? Essa sequência já foi interpretada em outros estudos sob a 

ótica  do mito  do  eterno  retorno  de Mircea  Eliade.  Na  visão  de  Valérie  Carré,  que 

enfoca a obra de Werner Herzog do ponto de vista antropológico, essa iteração visual 

representa  a  chegada  de  várias  levas  de  estrangeiros  ao  continente  africano  que  o 

diretor  está  prestes  a  mostrar,  numa  primeira  referência  visual  às  conquistas 

colonialistas (CARRE, 2007: 14). Para Herzog, as aterrissagens seguidas eram um teste: 

“Eu  tinha a  sensação que  se o público ainda estivesse assistindo quando o  sexto ou 

sétimo  avião  pousasse,  eles  ficariam  até  o  final.”  (HERZOG,  CRONIN,  2002:  48, 

tradução nossa). No recorte deste estudo, na medida em que a ideia original era filmar 

um  roteiro de  ficção  científica, a  repetição é  interpretada  como a  chegada de  seres 

vindos do espaço. Tem início a primeira parte do filme. 

I. A  Criação  (Die  Schöpfung): Quando  pousa  o  último  avião,  é  introduzida  a 

trilha musical, o segundo movimento do Concerto nº 8, Opus nº 3 Bach – Vivaldi (BWV 

593), seguido do Kyrie da Grande Missa de Mozart. Começam os longos travellings de 

paisagens desertas que determinam o tempo dilatado do filme. As imagens mostram o 

que poderia ser de um planeta deserto, abandonado. Tem início a narração. O texto é 

o Popol Vuh, narrado em alemão por Lotte Eisner:  

 

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Contam como um dia a Terra caiu numa profunda quietude, num silêncio profundo  e  calmo,  e descansou. Havia  apenas  silêncio, quietude  e noite, docemente ninados, lá deitados, solitários e vazios. 

 

Os  travellings  se  encadeiam.  As  paisagens  desérticas  têm  a  textura  de  uma 

pintura impressionista, por vezes pontilhista. As cores são saturadas, como o amarelo 

do solo e o azul do céu. Se há figuras humanas (ou figuras  indefinidas) ao  longe, elas 

foram  absorvidas pelas  cores que  se manisfestam pelas ondas de  calor. As  imagens 

mostram marcas de pneus no solo. Articuladas com o Kyrie, estas marcas adquirem um 

sentido místico  que  altera  a  percepção  que  o  espectador  tem  delas:  passam  a  ser 

desenhos  com  uma  intenção,  lembrando  os  grafismos  que  aparecem  no  solo  e  são 

atribuídos a extraterrestres em notícias de jornal. A narração prossegue:  

 

E este é o primeiro testemunho, a primeira palavra. Não havia homem, ave, peixe,  caranguejo,  árvore, pedra,  caverna, desfiladeiro, mato ou  arbusto. Havia apenas os céus.  

O texto diz que a palavra precedeu a existência humana e as coisas no mundo. 

A  palavra  se  torna,  assim,  sagrada  e  nos  remete  ao  Evangelho  segundo  São  João, 

quando diz: 

 

No princípio existia o Verbo; o Verbo estava em Deus; e o Verbo era Deus. No princípio Ele estava em Deus. Por Ele é que  tudo começou a existir; e sem Ele nada veio à existência. Nele é que estava a Vida de tudo o que veio a existir. E a Vida era a Luz dos homens.52 

 

A dimensão mística e mitológica da narrativa é estabelecida desde o  início. É, 

todavia,  uma  abordagem  panteísta,  pois  Herzog  não  tenta  separar,  discriminar  ou 

atribuir valores diferentes às referencias religiosas presentes no filme. O que importa é 

criar espaço na narrativa para o sobrenatural e o divino. Assim, em nenhum momento 

é dito ao espectador que o texto narrado é o Popol Vuh, relato sobre a história mítica 

da criação do mundo e os seres que o habitam. Não há explicação a respeito da figura 

de Cucumatz, a quem Lotte Eisner se refere repetidas vezes. Tampouco há referência à 

própria Lotte Eisner, quem é, nem por que é a narradora do documentário. 

52 Evangelho segundo São João 1,1‐18. 

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As  imagens  tremulam sob as ondas de calor. Ao  longe, vemos algo se mover: 

Um  animal? Um  carro? Parece mover‐se  a esmo,  sem  rumo ou  sentido no meio da 

imensidão que o circunda. Num mundo como esse que o espectador tem diante dos 

olhos,  para  onde  pode  ir  o  ser  humano?  Está  condenado  a  girar  em  círculos,  não 

chegando nunca a lugar algum. Será a noção de chegar a algum lugar, seja fisicamente 

ou existencialmente, apenas ilusão? 

 

 

   

Figura 15 ‐ Fata Morgana, miragem 1 (W. Herzog, 1971) 

 

Há um corte para travellings de dunas. Mudança de trilha musical para Ghetto 

Raga,  do  grupo  experimental  da  década  de  1970,  The  Third  Ear.  Aos  poucos,  são 

introduzidos  elementos  reconhecíveis  aos  olhos  humanos,  como  árvores. O mundo 

começa  a  tomar  forma.  Surgem  as  primeiras  imagens  contendo  construções 

(refinarias?) que revelam a presença humana no lugar. A câmera está agora no tripé e 

as  imagens  são  fixas.  As  paisagens  do  deserto  são  quadros  cuja  fruição  Herzog 

compartilha com o espectador, por meio de planos demorados. O encadeamento de 

imagens  da montagem  faz  pensar  no  que  é  chamado  em  literatura  de  stream  of 

consciousness, ou fluxo do inconsciente.  

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É narrada a primeira tentativa dos deuses de criarem o ser humano. O relato é 

construído com imagens de carcaças de animais no deserto, em diferentes estágios de 

decomposição,  ao  som  do  órgão  barroco  da  terceira  Lição  de  Tenébras  de  François 

Couperin. A  articulação  entre  texto,  imagem  e  som  cria  a noção de  dois  tempos,  o 

passado e o presente. O passado está presente por meio do texto que explicita aquilo 

que os deuses pretendiam para o planeta e as criaturas que nele foram colocadas. O 

presente está nas imagens que expõem o que de fato aconteceu com os seres criados 

pelos deuses: foram destruídos. 

A música tem duas funções: em primeiro lugar, ao descartar o som ambiente e 

substituí‐lo  por  música,  Herzog  distancia  o  espectador  do  lugar  que  mostra.  O 

espectador não está “dentro” do deserto, não é parte daquele mundo: é convidado a 

refletir sobre o que vê, de longe. Além disso, a música erudita confere uma qualidade 

sacra  ou  oracular  às  imagens,  como  se  aquilo  que  aconteceu  estivesse  escrito,  ou 

previsto. É uma noção de predestinação – ou danação – que se estabelece.  

O texto narra como foram criados os animais sobre mais  imagens de carcaças 

de animais: os ossos brancos e a pele seca, queimada, da cor da areia. Na sequência, 

sempre  com uma  trilha musical  sacra,  imagens de destroços de  veículos. Animais  e 

destroços se fundem nas ondas de calor e na percepção do espectador. A música sacra 

é produto de uma  cultura que enaltece a  vida acima de  tudo. As  imagens mostram 

que, pelo menos no mundo que Herzog mostra, a vida não vale muito, não mais do 

que objetos inanimados.  

Surge a imagem de um menino segurando uma pequena raposa do deserto. Ela 

tem uma corda no pescoço e está à mercê do menino. O animal não parece feroz ou 

agressivo, mas  acuado. Nada  acontece,  o menino  não maltrata  o  animal  diante  da 

câmera, mas  a  sensação  de mal‐estar  gerada  pelo  desconforto  do  animal  revela  o 

poder que tem o menino sobre a pequena criatura, e, paralelamente, o poder do ser 

humano sobre outras criaturas: é mais fácil o homem mudar o mundo para pior do que 

mudar a si mesmo para melhor. O menino poderia matar o animal sem muito esforço, 

apertando um pouco os dedos, e o espectador percebe isso. Só não sabe se o menino 

o  fará  de  fato. A  tensão  paira  durante  a  tomada  e  se  prolonga  para  além  dela,  na 

mente do espectador.   

 

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Figura 16 ‐ Fata Morgana, menino com raposa do deserto 1 (W. Herzog, 1971) 

 

 

A  narração  do  Popol  Vuh  conta  como  começaram  os  primeiros 

desentendimentos entre os deuses e os seres criados por eles, quando estes últimos se 

recusaram a falar como seres humanos. As imagens mostram crianças norte‐africanas.  

A  trilha  musical  muda,  e  o  tom  do  documentário  também:  começa  o  rock  com 

elementos  folk  Sea  of  Joy  de  Steve Winwood.  Há  imagens  de  formações  rochosas, 

vegetação e cachoeiras. Neste ponto específico, a conjugação da música de uma banda 

de rock com as imagens da paisagem arenosa e castigada pelo sol sugere um paralelo 

com o filme Zabriskie Point (1970), de Michelangelo Antonioni. 

O paralelo não é apenas estético: Antonioni e Herzog filmaram praticamente na 

mesma  época,  cada  qual  em  um  deserto:  Herzog  no  Saara,  Antonioni  no  Vale  da 

Morte, na Califórnia. Ambos lançaram seus filmes com menos de um ano de intervalo, 

e lançaram mão de uma paisagem inóspita e a uma trilha‐personagem para realizar um 

manifesto cinematográfico contra a natureza gananciosa e predatória do ser humano. 

Nos  dois  filmes,  há  uma  busca  metafísica  –  consciente  ou  não  –,  por  parte  dos 

personagens;  a  narrativa  recorre  a  processos  criativos  experimentais  e,  por  este 

motivo, os filmes foram recebidos com perplexidade pela crítica.  

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Nas sequências das dunas de Fata Morgana, o deserto se torna antropomórfico 

e lembra as formas de um corpo feminino. É uma das raras concessões à sensualidade 

que  encontraremos  na  obra  de  Herzog.  Já  Antonioni  faz  do  deserto  o  cenário  da 

expressão sensual e sexual dos protagonistas do  filme. A aridez, o sol e a  imensidão 

fazem  emergir  o  que  há  de mais  primitivo  no  ser  humano.  Ao  final  do  encontro 

amoroso, os personagens estão cobertos de poeira e parecem seres pré‐históricos.  

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Figura 17 ‐ Fata Morgana, dunas (W. Herzog, 1971) 

 

 

 

 

Figura 18 ‐ Zabriskie Point (M. Antonioni, 1970) 

 

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A trilha sonora de Fata Morgana  introduz sons de grilos e  insetos. As  imagens 

são  de  pequenas  habitações  no  deserto.  Lotte  Eisner  narra  que,  em  sua  segunda 

tentativa, os deuses fizeram o homem de madeira e talharam a mulher no junco. Mas 

essa tentativa também não deu certo, e os deuses afogaram o homem e a mulher. Por 

esta razão, fizeram escurecer o mundo. Choveu por muitos dias e os animais choraram. 

Estes tentaram se proteger da chuva, mas não conseguiram. Assim, ocorreu a segunda 

destruição das criaturas que deveriam ter se tornado seres humanos. 

II. O  Paraíso  (Das  Paradies): O  Paraíso  que  é mostrado  é  diferente  daquele 

descrito na Bíblia: não é acolhedor ou reconfortante. No segundo bloco (ou capítulo), 

os personagens humanos ocupam um espaço maior na narrativa. O capítulo começa 

com uma sequência  filmada na entrada de uma caverna, com a câmera parada. Dois 

vultos  se  aproximam.  Ao  chegarem mais  perto  da  luz,  vemos  que  se  trata  de  dois 

homens negros: um deles é um jovem com um rádio ligado, que leva pela mão o outro, 

um  idoso  aparentemente  cego,  que  anda  com  a  ajuda  de  uma  bengala.  Do  rádio 

emana  um  tango  e  o  som  de  uma  voz  feminina  falando  em  francês. Há  um  plano 

fechado na jaqueta militar do homem velho: ele tem no peito uma medalha e deve ter 

pertencido  a  algum exército. Provavelmente,  lutou para defender uma nação que o 

colonizou,  possivelemente  a  França.  Ao  lado  da  medalha  está  alfinetado  em  sua 

jaqueta algo que parece ser um chaveiro e que ele ostenta como se também fosse uma 

condecoração.  

Plano  do  homem  velho,  da  cintura  para  cima.  O  personagem  fala  em  seu 

idioma olhando para a câmera. Não há  legendas. Herzog repetiria duas décadas mais 

tarde, em Lições da escuridão, a decisão de não  legendar o discurso de personagens 

falando árabe. O que  interessa não é o relato falado do personagem, mas aquilo que 

ele  comunica  por  meio  da  voz,  da  entonação,  da  expressão  facial,  da  linguagem 

corporal, dos gestos, do olhar, das roupas e do  lugar em que se encontra, e como o 

espectador percebe essas  informações. Não  se  trata de um depoimento  inserido no 

documentário,  que  poderia  existir  e  fazer  sentido  independentemente  das  demais 

imagens, mas de um relato não verbal, orgânico, inserido no todo formado pelo filme. 

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Há uma mudança de narrador. Além de Lotte Eisner, também participaram da 

narração os atores Eugen Des Montagnes e Wolfgang von Ungern‐Sternberg53 – nos 

créditos finais do filme, constam também os nomes de Wolfgang Bächler e Günther W. 

Welpert. Há um novo corte para um menino com a pequena raposa do deserto presa 

por uma corda. O texto narrado foi extraído de O Struwwelpeter, coletânea de poemas 

infantis de autoria do psiquiatra alemão Heinrich Hoffman, da metade do século XIX. O 

livro, de orientação moral, contém dez poemas ilustrados que relatam as aventuras de 

crianças  que  tiveram  seus  dedos  cortados,  pegaram  fogo  ou  morreram  de  fome 

porque  eram  distraídas,  não  queriam  tomar  sopa  ou  não  penteavam  os  cabelos. 

(HOFFMAN, 1995: 26) 

Herzog atribui ao Popol Vuh, aos seus próprios escritos e aos poemas  infantis 

igual valor dramático, costurando os textos na montagem e não identificando nenhum 

deles para o espectador. Os textos podem ser diferentes na sua origem, mas apontam 

para uma mesma direção, em um tom que não dispensa o humor: a danação daqueles 

que se extraviam do “bom” caminho e a redenção para aqueles que compreendem a 

necessidade de se permanecer nesse caminho.  

A história de Robert é o poema escolhido de O Struwwelpeter: ao desobedecer 

e sair de casa num dia de chuva, o menino é carregado pelo vento e desaparece no céu 

com seu guarda‐chuva vermelho: 

Agora Robert Voador É um ponto no horizonte Guarda‐chuva na mão Cabelos ao vento Ensopado e trêmulo Teso e triste como ninguém   

  No filme, o menino e a pequena raposa vão embora, açoitados pelo vento do 

deserto, enquanto a câmera fixa registra as duas silhuetas que se afastam. O menino 

lembra outro personagem de uma  fábula, que  também  vive num mundo  insólito: o 

Pequeno Príncipe, que vaga de planeta em planeta à procura de um amigo.  

53 Wolgang von Ungern‐Sternberg foi o protagonista do primeiro longa‐metragem de Werner Herzog, 

Sinais de vida (1968).    

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Figura 19 ‐ Fata Morgana, menino e raposa do deserto 2 (W. Herzog, 1971) 

 

 

 

 

Figura 20 ‐ O Pequeno Príncipe e a raposa (A. de Saint‐Exupéry) 

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  Tanto as  imagens como o  texto do documentário  têm elementos do universo 

fantástico  infantil.  Isto  inscreve  a  história  narrada  num  tempo  primitivo  –  ou  na 

infância da humanidade –, que, apesar disso, não é necessariamente bom ou feliz.  

Assim como a raposa de Antoine de Saint‐Exupéry ensina o Pequeno Príncipe a 

criar  laços ao pedir para ser domada, ou cativada – segundo a tradução que  leva em 

conta a etimologia da palavra, aparentada a “cativeiro” –, a raposa de Herzog segue o 

menino amarrada a uma  corda. As duas duplas  são próximas e distantes ao mesmo 

tempo.  Procuram  criar  um  vínculo  afetivo  que  não  é  espontâneo  e  vem  com  a 

contrapartida da dependência e da melancolia.  

Um dia, a raposa se despede do Pequeno Príncipe: “Adeus, disse a raposa. Eis o 

meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para 

os olhos.” (SAINT‐EXUPERY, 2004: 74). A raposa de Fata Morgana não tem a liberdade 

de se despedir, de sentir saudade, nem tem o dom da palavra. Mas, tão etérea quanto 

a  raposa da  fábula de  Saint‐Exupéry,  sua  imagem  com o menino no deserto é uma 

miragem, não sabemos se de uma amizade ou da tristeza. 

Têm  início  sequências  do  deserto  filmadas  de  cima  de  um  veículo  em 

movimento. A narração descreve um Paraíso  insólito  sobre  imagens de  carcaças de 

animais. As  sequências do deserto, quase  sem  cortes, desfilam  sobre  a música  folk. 

Depois de um hiato de silêncio (sem narração, sem música) de vinte e dois segundos, 

tem  início uma das  sequências mais  emblemáticas do  filme:  a paisagem  filmada de 

cima de um veículo em movimento conjugada com a trilha musical Hey, that’s no way 

to  say  good‐bye,  de  Leonard  Cohen.  É  importante  notar  que  a mudança  de  trilha 

musical (fim de uma música, silêncio e início de outra música) não determina um corte 

de imagem. A longa sequência do deserto que desfila sob os olhos do espectador não é 

interrompida para “combinar” com o tempo da música: 

 

I loved you in the morning Our kisses deep and warm Your head upon the pillow Like a sleepy golden storm. Yes many loved before us I know that we are not new In cities and in forests They smile like me and you. But now it's come to distances And both of us must try 

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Your eyes are soft with sorrow Hey, that's no way to say goodbye.54  

 

Imagens  de  homens  trabalhando  no  deserto  e  planos  fechados  de  rostos 

empoeirados. Os  homens  quebram  pedras  com  um  pedaço  de  pau.  Parecem  seres 

saídos de um tempo pré‐histórico. Os gestos abruptos, os rostos secos, talhados pelo 

sol  e pela  areia,  áridos  como  a  topografia do  lugar,  contrastam brutalmente  com  a 

melodia e a voz de Leonard Cohen que fala de amor. A antinomia entre a música, e as 

imagens provoca um tipo de emoção, como uma saudade de algo desconhecido. 

A narração recomeça sobre a música de Cohen. Há frases no texto que relevam 

de um absurdo poético e que poderiam fazer pensar em uma tradução errada. A falta 

de sentido do texto indica que o documentário se afasta mais e mais de um percurso 

conhecido ou sensato. A danação é inevitável e se faz presente por meio da perda de 

sentido do comentário narrativo e das imagens: 

 

Os  portões  do  Paraíso  estão  abertos  para  todos.  Lá,  são  inspecionados trabalhos  que  ninguém  quer  fazer.  Lá,  cavam‐se  buracos  sem  que  se tropece no homem. Lá, esfarela‐se o  limo, e os ricos escolhem quem  fará essa  tarefa.  Lá,  os  homens  têm  uma  sombra  apesar  do  sol  escaldante. Depois, animais raros são vistos lá. 

 

Há um corte para a imagem de um personagem que segura um lagarto, sempre 

sobre a trilha musical de Leonard Cohen. Na banda comentada do filme, Herzog explica 

que  ele  e  sua  equipe  encontraram  por  acaso  essa  figura,  um  alemão  que  estuda 

lagartos. Diferentemente do personagem africano que abre o bloco, seu discurso, em 

alemão,  mereceu  legendas.  Mesmo  acessível  ao  espectador,  não  parece  ter  mais 

relevância  no  contexto  da  narrativa  do  filme  do  que  o  discurso  do  velho  africano 

medalhado. Mas esses personagens possuem algo em comum: a estranheza pela sua 

composição,  que  se  revela  na maneira  de  falar,  nas  roupas,  acessórios  (medalhas, 

óculos de aviador), gestos, expressão facial e corporal. Além disso, a presença tanto de 

um como de outro no deserto não tem uma explicação. 

54 Eu te amava pela manhã/nossos beijos profundos e cálidos/seus cabelos sobre o  travesseiro/como 

uma  tempestade  dourada  e  sonolenta/sim,  muitos  amaram  antes  de  nós,/Sei  que  não  somos novidade,/Na  cidade  e  na  floresta/Sorriram  como  eu  e  você,/Mas  agora  nos  distanciamos/E  ambos precisamos tentar/Seus olhos doces de tristeza/Ei, isso não é jeito de se dizer adeus. (Tradução nossa) 

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Há  uma  relação  também  entre  o  alemão  com  o  lagarto  e  o menino  com  a 

raposa  do  deserto:  os  animais  que  eles  exibem  estão  em  situação  de  desconforto, 

subjugados e estressados pela ação de um ser humano completamente  indiferente à 

sua condição. Os animais são  tratados como brinquedos ou objetos curiosos. Ambos 

parecem orgulhosos, em particular o alemão, que exibe para a câmera o prazer que 

sente em manipular um animal que, para um europeu, aparenta periculosidade. Fica 

assim registrada sua suposta bravura num longo plano‐sequência.  

O  espectador  vê  agora  imagens de  carcaças de  automóveis  abandonados no 

deserto. Esses carros certamente não foram fabricados no Norte da África. As imagens 

são uma referência à passagem do europeu pelo continente africano e o resultado de 

sua ação colonizadora. O tema da colonização como ação nefasta e do deslocamento 

cultural estão presentes na obra de Herzog,  tanto no documentário  como na  ficção 

(Aguirre – a  cólera de Deus, Fitzcarraldo, Cobra Verde, de 1987). Herzog desenvolve 

esses temas de uma perspectiva crítica, associando‐os à loucura: Na medida em que a 

ação  colonizadora  está  destinada  ao  fracasso,  aqueles  que  a  conduzem  estão 

condenados à  loucura, pois não podem mais voltar para casa, tampouco podem ficar 

no território conquistado impunemente.  

Em  Fata Morgana,  a  loucura  vai  tomando  conta  da  narrativa  por meio  dos 

personagens  humanos,  das  paisagens  gradualmente mais mentais  do  que  reais,  do 

comentário  narrativo  e  da  montagem.  No  caso  das  imagens  de  carcaças  de 

automóveis, surgem dois paralelos: em primeiro lugar, entre os deuses que criaram o 

mundo  e  os  seres  vivos  –  os  quais  não  escapam  da  danação  e  da  destruição  –  e  a 

colonização  europeia:  o  europeu  colonizador  que  se  apresenta  como  ser  superior 

culturalmente  (dimensão  divina  do  colonizador),  e  que  tentar  subjugar  e moldar  as 

populações colonizadas, assim como os deuses moldaram os primeiros seres humanos. 

Ao  final  da  colonização,  sobram  apenas  destroços.  Em  segundo  lugar,  a montagem 

paralela entre as carcaças de automóveis e de animais  remetem à morte que  iguala 

objetos inanimados e seres vivos em um cenário onde todos são perdedores. 

Herzog  encontra  outro  alemão  no  deserto.  Em  pé,  com  um menino  norte‐

africano do  lado, ele  lê uma  carta para a  câmera. Há quinze anos ele está  longe da 

casa, vivendo no deserto. A carta, de um amigo ou parente, pergunta sobre o calor e 

quando ele vai voltar para casa: “Eu vou voltar!”, diz ele. Que miragens terão  levado 

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esse  homem  a  deixar  a  Europa  para  viver  no  deserto? O  que  buscava? Uma  nova 

chance? Fugia de algo? Depois de uma pausa, olhando para a câmera, o menino pede 

de  maneira  mecânica:  “Um  dinar!”.  Ele  repete  três  vezes  o  pedido,  sem  emoção 

aparente, sem alteração da expressão facial, como se fosse um boneco de ventríloquo. 

Essa  impressão é  reforçada pela proximidade com o alemão, mais alto e  fisicamente 

diferente  do menino,  tanto  nas  vestes  como  nas  feições  europeias.  A  dupla  é  tão 

insólita quanto o menino com a raposa do deserto. Onde o menino gastará o seu dinar 

num lugar tão desolado? 

O personagem existe de fato e, segundo Herzog, a carta que lê é uma carta que 

recebeu  de  sua mãe,  há  quinze  anos  (HERZOG;  CRONIN,  2002:  53).  No  entanto,  a 

situação do depoimento é encenada. Se as paisagens são  filmadas sem  interferência 

do diretor, os personagens humanos  são dirigidos de maneira  a  servir  ao propósito 

dramático do  filme, que encontrará o  fio de  sua narrativa na mesa de montagem. É 

provável que Herzog tenha pedido aos personagens para encenarem a si próprios, sob 

sua orientação ou  imaginação. A partir deste momento, o documentário se distancia 

definitivamente de uma construção narrativa tradicional e cria uma lógica interna. 

Os personagens humanos descobertos no deserto são tão aleatórios quanto as 

paisagens.  Os  encontros  que  acontecem  no  filme  lembram  aqueles  do  Pequeno 

Príncipe. Porém, há no personagem de Saint‐Exupéry um dado redentor: a busca pela 

amizade. Por esse motivo, talvez outros personagens de fábula estejam mais próximos 

do  universo  herzoguiano,  pois  transitam  num  mundo  onde  a  lógica  se  perdeu 

completamente, ou passou a obedecer a um raciocínio desconhecido, que não deixa 

lugar para a bondade, como os personagens de Alice no país das maravilhas, de Lewis 

Carroll. O comentário narrativo “No Paraíso, pombas assadas voam diretamente para 

dentro  da  boca.  Lá,  você  se  diverte  sem  ser  forçado.  Lá,  divertimento  significa 

obrigação” poderia ter saído da boca do Chapeleiro Maluco.  

Segue  uma montagem  de  personagens  humanos:  um  brinca  ao  lado  de  um 

esqueleto  de  animal,  outro  continua  a  falar  do  lagarto  que  tem  nas  mãos.  O 

espectador  jamais saberá se está diante de um personagem com alguma sustentação 

científica  que  justificaria  sua  presença  no  deserto,  ou  perante  um  louco.  Há  uma 

dimensão  lúdica  e,  ao  mesmo  tempo,  perversa  nos  personagens,  como  nos 

personagens de Hoffman ou Carroll, e o elemento bizarro – não o afeto – é o elo entre 

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seres  humanos,  animais  e  o  lugar  em  que  se  encontram.  A  raposa  do  deserto  e  o 

lagarto  têm  um  lugar  na  narrativa  pela  sua  estranheza,  da mesma maneira  que  os 

personagens  humanos. O  Coelho  Branco  de  Lewis  Carrol  não  é menos  estranho,  e, 

como o animal do filme, também vive com a corda do pescoço, ou acorrentado a um 

relógio – o tempo.  

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Figura 21 ‐ O Coelho Branco (John Tenniel, 1865) 

    

 

 

Figura 22 ‐ Fata Morgana, menino e raposa do deserto 3 (W. Herzog, 1971) 

 

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A  câmera  fixa  enquadra  uma mulher  europeia55,  provavelmente  alemã,  com 

cinco meninos africanos – um deles com uma metralhadora de brinquedo. Eles estão 

em pé, dentro de um  lençol de água muito  raso, de  frente para a câmera,  como  se 

fossem posar para uma fotografia. Sua voz é dublada e ela diz: “A guerra‐relâmpago é 

insanidade”. Ela  faz os meninos  repetirem a  frase em alemão, um por vez,  como  se 

ensinasse  uma  lição.  Em  seguida,  há  um  corte  para  a  imagem  de  três  meninos 

africanos de shorts, em pé diante da câmera. Com o rosto sério, eles fazem uma pose 

com os braços levantados e os punhos fechados. Estão eles encenando uma luta? Eles 

estão imóveis, como numa pintura. A narração prossegue: 

   

No Paraíso, até os gentios movem montanhas. Lá, guerras  foram evitadas por  mães.  Lá,  você  espera  garças  pela  esquerda.  No  Paraíso,  ruínas significam felicidade. Lá, você encontra portões sem fronteiras. No Paraíso, carcaças de aviões foram distribuídas pelo deserto antecipadamente. Lá, a paisagem é como Deus comandou que fosse. 

 

Um  travelling cria uma antinomia entre a narração e as  imagens: vagões sem 

locomotiva, containers, cercas de arame farpado semidestruídas e outros vestígios de 

civilização  no  deserto.  Esses  objetos  e  construções  não  têm  nenhuma  serventia 

aparente.  Sua  disposição  não  revela  se  estão  em  uso,  se  serão  usados,  ou  viraram 

sucata. É esta a vontade de Deus ou do ser humano? Sobre  imagens de construções 

(estruturas  metálicas,  casinhas  humildes,  filmadas  em  travellings  de  cima  de  um 

veículo em movimento), tem início a segunda música de Leonard Cohen, Suzanne:  

 

Suzanne takes you down to her place near the river You can hear the boats go by You can spend the night beside her And you know that she's half crazy But that's why you want to be there And she feeds you tea and oranges That come all the way from China And just when you mean to tell her That you have no love to give her Then she gets you on her wavelength And she lets the river answer That you've always been her lover And you want to travel with her And you want to travel blind And you know that she will trust you 

55 Trata‐se de uma enfermeira. 

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For you've touched her perfect body With your mind 56 

 

As  imagens  que  desfilam  têm  o  efeito  de  um  filme  que  passa  na  frente  dos 

olhos do espectador. Esta constatação pode parecer prosaica, mas não se pensarmos 

que,  normalmente,  todos  os  esforços  que  cercam  a  produção  de  imagens 

cinematográficas  são  no  sentido  contrário,  o  de  camuflar  o  filme  como  tal  e  os 

mecanismos  inerentes  à  filmagem.  Procura‐se  criar  a  sensação  de  espaço  e  tempo 

“reais”. Ao fazer a câmera acompanhar o que seriam o olhar e movimentos humanos, 

espera‐se que o espectador se esqueça que está diante de um filme.  

No caso de Fata Morgana, a câmera assume o movimento de um filme que se 

desenrola. Há  um  único  corte,  para  uma  panorâmica  de  uma  enorme  estrutura  de 

metal vermelho em pleno deserto. Esse corte é uma ruptura, uma quebra no ritmo da 

longa  sequência.  A  montagem  sempre  busca  o  fator  inorgânico,  o  inesperado,  a 

contraposição entre a alucinação e o despertar, para chegar a uma nova alucinação. Ao 

final da música, a narração  retorna com mais um comentário sobre as  imagens: “No 

paraíso, você diz  ’olá’ sem ver ninguém. Lá, você briga com estranhos para evitar ter 

amigos. No Paraíso, o homem nasce morto.” E, assim,  começa a  terceira música de 

Leonard Cohen, So long, Marianne.  

Neste ponto há um corte para tomadas aéreas de vastas extensões de terra e 

areia,  crateras,  rios,  seguidas  de  uma  panorâmica  do  deserto.  Em  seguida,  há  uma 

imagem onde vemos em último plano, um ônibus e pessoas. Eles parecem estar sobre 

um  espelho  d’água  e  seus  contornos  são  incertos,  por  causa  das  ondas  de  calor. A 

câmera é fixa e observa até o momento que o ônibus parte. Na banda comentada do 

filme, Herzog  afirma que essa  sequência é uma miragem do  tipo  fata morgana. Ele 

conta que a equipe  foi até o  lugar onde tinham estado o ônibus e as pessoas, e não 

encontram nenhum vestígio deles. Herzog conclui que era uma miragem. Acreditar – 

ou não – é parte do contrato que se estabelece entre o diretor e o espectador.  

56 Suzanne  te  leva para  sua  casa perto do  rio/Onde você ouve os barcos passar/Você pode passar a noite ao seu  lado/E você sabe que ela meio  louca/E por  isso você quer estar  lá/E ela te oferece chá e laranjas/Que vieram lá da China/E quando você quer dizer a ela/Que você não tem amor nenhum para lhe dar/Ela entra na  sua onda/E deixa o  rio  responder/Que você  sempre  foi o  seu amor/E você quer viajar  com ela/Viajar para qualquer  lugar/E você  sabe que ela  confiará em você/Pois você  tocou  seu corpo perfeito/Com sua mente. (Tradução nossa) 

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Herzog não fecha o bloco com a imagem do ônibus que se afasta, como talvez 

fosse  a  opção  tradicional  de montagem.  Escolhe  terminar  o  bloco  com mais  uma 

imagem, desta vez mais curta, de algo que parece ser um veículo em movimento ao 

longe – ou uma miragem –, envolta em ondas de calor. Imagens curtas e fora do lugar, 

segundo  parâmetros  tradicionais  de  montagem,  contribuem  para  a  dimensão  de 

fantasia  ou  alucinação  daquilo  que  o  espectador  vê. Não  estaria  o  espectador,  por 

meio do processo criativo de Herzog, também imaginando ver coisas que não existem? 

E  não  é  tudo  que  vemos  numa  tela  de  um  cinema  ilusão,  ou  apenas  uma  luz 

tremeluzente? 

III.  A  Idade  de Ouro  (Das  Goldene  Zeithalter):  Nesse  bloco,  a montagem  é 

radicalmente  fora  dos  padrões  tradicionais  narrativos.  As  sequências  se  sucedem  e 

cabe ao espectador decidir como as  interpretará, que sentido atribuirá a elas. Dessa 

maneira,  Herzog  repassa  ao  espectador  a  responsabilidade  pelas  suas  próprias 

emoções. Esta é, provavelmente, a maior ruptura conceitual do filme, na medida em 

que,  no  cinema  tradicional,  o  diretor  costuma  assumir  o  comando  das  emoções  do 

espectador, direcionando o que sente e suas reações. 

O bloco começa com a  imagem fixa de dois personagens tocando uma música 

em um  lugar que não é  identificado no  filme. As  imagens  foram  filmadas na  ilha de 

Lanzarote,  na  Espanha57. Um  dos  personagens  é  uma  senhora  com  os  cabelos  com 

laquê tingidos de ruivo, sentada a um piano de armário. O outro é um homem de cerca 

de  trinta  anos que  toca uma pequena bateria.  Eles estão em uma pequena  sala ou 

cubículo, cuja decoração se resume a dois falsos violões na parede e duas guirlandas 

que  se  cruzam  no  teto.  O  homem  usa  óculos  de  aviador  ou  de  esquiador, 

aparentemente os mesmos que usa o alemão com o lagarto e um dos meninos negros 

em sequências anteriores. Na banda comentada, Herzog conta que a mulher era dona 

de um bordel e o homem, um proxeneta.  

Os  personagens  terminam  de  tocar  e  ficam  imóveis. A  câmera  é  fixa. A  narração  é 

retomada,  desta  vez  na  voz  de Manfred  Eigendorf. Herzog  diz  ser  ele  um  amigo  e 

poeta.58 O casal retoma seu pequeno recital. A qualidade do som é ruim, e a qualidade 

das imagens não é muito melhor. O todo faz lembrar um vídeo caseiro gravado em um 

57 Informação verbal a partir do seminário Werner Herzog’s Rogue Film School, Londres, março de 2011. 58 Informação verbal a partir da banda comentada do DVD do filme. 

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final de  festa, ou em um  restaurante que ninguém  frequenta. Ainda com a  trilha da 

música espanhola, retornam as  imagens do deserto,  filmadas com a câmera na mão. 

Ao final da música, um dos raros cortes que sincronizam som e  imagem. Em seguida, 

imagem de menino negro numa beira de praia, posando para a  câmera. Ele aponta 

para a areia com os dois dedos  indicadores. A narração é de Eigendorf: “Na  Idade de 

Ouro, vestígios do Paraíso ainda podem ser detectados. Aqui, por exemplo, uma nave 

um dia pousou”. Estaria o menino ilustrando o que é dito na narração com seu gesto, 

apontando para vestígios de uma nave celeste? Para cada pergunta que o filme coloca, 

cabem respostas diferentes, ou praticamente uma resposta por espectador.  

Vemos  agora  um  plano  aberto  de  uma  procissão  de  africanos  passando  em 

frente  a  uma  igreja. A  trilha  sonora  é  um  canto  foclórico  africano  que  pertence  ao 

acervo  sonoro  de  Herzog,  gravado  em  outra  ocasião.  Ainda  sobre  a  narração,  é 

mostrada  uma  montagem  de  tomadas  de  mulheres  e  homens  europeus  se 

comportando  como  se  fossem  loucos, em meio a uma paisagem  rochosa. Na banda 

comentada  do  filme, Herzog  explica  que  encontrou  turistas  alemães  e  pediu  a  eles 

para se comportarem dessa maneira diante da câmera.  

É necessário notar que a loucura é encenada. Em Fata Morgana, Herzog não foi 

a um hospital  filmar pessoas com condições mentais especiais, como  foi o caso, por 

exemplo, de Frederick Wiseman em Titicut Follies (1967), ou o caso de Albert e David 

Maysles em Grey Gardens (1975). Tampouco contratou atores com alguma deficiência 

mental,  como  fez  com  Bruno  S.  em  Stroszek  (1976)  e O  enigma  de  Karpar Hauser. 

Neste  caso,  Herzog  escolhe  seus  personagens  e  os  dirige.  Mesmo  se  não  o  são, 

tornam‐se  loucos  no  contexto  da  narrativa.  Na  maior  parte  das  sequências,  os 

personagens apenas parecem estranhos ou loucos pelo viés da composição da imagem 

e  dos  elementos  cenográficos,  como  é  o  caso  do  proxeneta  e  da  dona  do  bordel. 

Quanto  aos  turistas  alemães,  eles  são  incitados  a  se  comportar  de  maneira 

explicitamente insana. 

A montagem  é  seca,  brutal  na  apresentação  de  de  personagens  estranhos: 

Voltam os personagens da  ilha de Lanzarote, que tocam agora outra música, sempre 

na mesma posição. A  imagem é fixa e a música segue até o final, sem cortes. Há um 

corte  para  uma  sequência  externa,  onde  estão  três  novos  personagens.  Na  banda 

comentada, Herzog diz tratar‐se de seu técnico de som, de um habitante do lugar e de 

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um ator, que é também seu melhor amigo. Visivelmente orientados por Herzog, o ator 

lê um texto sem sentido em alemão, enquanto o técnico de som lida com uma câmera 

filmadora portátil; o personagem norte‐africano toca um pequeno violão e gargalha. A 

loucura parece ter tomado conta de todos e a narrativa é desconstruída a cada nova 

sequência. O personagem termina sua leitura e ergue um vaso com uma planta. 

Um dos últimos personagens desse desfile de  figuras bizarras está à beira de 

um  tanque  de  tartarugas,  vestido  com  roupa  de mergulho.  Segura  uma  tartaruga 

marinha  e  demonstra  como  é  o  animal.  A  explicação  ecoa  com  a  do  personagem 

alemão com o lagarto. Ele coloca a tartaruga de volta no tanque e mergulha atrás dela.  

Na  banda  comentada,  Herzog  diz  tratar‐se  de  um  suíço‐alemão,  dono  de  um 

restaurante.  

Mais uma vez aparece a dupla de músicos que, nesse ponto, se tornaram um 

leitmotiv  audiovisual  da  loucura.  E  há mais  um  corte  para  uma  vista  aérea,  com  a 

música espanhola ao fundo. A topografia que a câmera sobrevoa pode ser de mar, rios 

ou  areia.  As  tomadas  aéreas  adquirirão  uma  importância  crescente  nos  filmes 

seguintes da trilogia. A música chega ao fim, e a narração retoma:  

 

Não há nada como a paz da Idade de Ouro. A guerra foi proclamada morta pela Paz. Nada é maior que a Areia. Nada é maior que a Paz. A Terra está encantada com a Paz. 

 

A música  Sea  of  Joy  volta  quando  das  tomadas  aéreas. Há  um  corte  para  a 

imagem de um veículo em movimento ao longe, no deserto. Uma derradeira miragem? 

A pergunta deixou de  ter  relevância. A  câmera para de  seguir o  veículo, que  sai de 

quadro. Entram os créditos finais.  

Há um  comentário de Herzog na banda  comentada do  filme que  explica  em 

parte sua opção pelo caminho do absurdo: 

 

Às vezes, é um modo de se fazer as coisas num filme que lhe conferem um certo poder, pela insistência de persistir nesse modo. A insistência dá força e poder à imagem. Isto é algo que Hollywood não compreende. A busca por imagens é algo que não abandonei. 59 

 

59 Informação verbal a partir da banda comentada do DVD do filme. 

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  Ao dizer isto, Werner Herzog compartilha com o espectador o processo 

experimental de Fata Morgana, visível na construção poética do filme, e seu resultado. 

Ao espectador que acompanha Herzog em  sua busca nem  sempre  fácil por  imagens 

adequadas, cabe o privilégio de conhecer a viagem iniciada em Fata Morgana que terá 

continuidade em Lições da escuridão. 

 

 

3.3. Lições da escuridão: o Apocalipse em treze quadros 

 

Lições da escuridão  foi exibido pela primeira vez no canal Discovery Channel, 

como  parte  de  uma  série  de  documentários  chamada  Discovery  Journal. 

Diferentemente  de  Fata  Morgana,  o  projeto  de  documentário  tinha  uma  pauta 

definida: a Guerra do Golfo (agosto 1990 / fevereiro 1991).  

Em 1991,  logo após o  final da guerra, Herzog envia o cinegrafista Paul Berriff 

para o Kuwait para filmar poços de petróleo que queimavam há sete meses, ou seja, 

desde  fevereiro  daquele  mesmo  ano.  Tropas  iraquianas  acuadas  por  ofensivas  do 

exército  do  Kuwait,  fortemente  escorado  pelo  exército  americano  de  George  Bush 

(pai), tinham ateado fogo nos poços de petróleo de seus inimigos antes de baterem em 

retirada. Quando Herzog  chega  ao  Kuwait  (alguns  dias  depois  de  Berriff),  empresas 

petrolíferas  americanas  e  inglesas  tinham mandado  seus  especialistas  in  loco  para 

conter e apagar os incêndios. A batalha travada contra as labaredas com a qual Herzog 

se depara é uma  guerra dentro de outra  guerra, onde o  confronto não  se dá entre 

exércitos formados por homens e armas, mas entre o ser humano e natureza.  

Herzog  traz  esta  guerra  para  o  centro  do  palco  e  faz  do  fogo  e  da  água  os 

protagonistas da narrativa. É difícil dizer se esse era o produto que o canal Discovery 

esperava:  Herzog  regressa  do  Kuwait  com  um  documentário  fora  dos  padrões 

narrativos  televisivos  (e  padrões  narrativos  audiovisuais,  em  geral),  desdenhando  o 

formato jornalístico e descartando qualquer informação precisa: no lugar, ele cria uma 

obra poética, constituída por rimas visuais e contornos de um filme de ficção científica.  

  Lições da escuridão suscita reações e críticas violentas a Herzog por ocasião da 

projeção do  filme no Festival de Cinema de Berlim, de 1992. Em uma Alemanha que 

ainda não se apaziguou completamente com relação à sua história recente, Herzog é 

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vaiado e acusado de estetizar o horror da guerra (vale lembrar que, de um modo geral, 

a obra de Herzog nunca foi aclamada ou bem recebida em seu próprio país). Sete anos 

depois,  o  diretor  escreveria  a  Declaração  de  Minnesota,  manifesto  que  rejeita  o 

Cinema Verdade, assim como toda e qualquer verdade vinculada apenas aos fatos.60 A 

Declaração tem doze itens, vários dos quais são mais poéticos do que objetivos, como, 

por exemplo:  “A  lua está  sem brilho. A Mãe Natureza não está  chamando, não  fala 

com você, embora uma geleira, eventualmente solte ar. E você não ouve a Música da 

Vida.” 

Se,  em  Fata  Morgana,  o  caráter  experimental  da  realização  é  visível  nas 

costuras do  filme, em Lições da escuridão Herzog se embrenha mais profundamente 

na  trilha que abriu em 1971,  sem mudar de  curso. Porém, desta  vez,  tem objetivos 

mais definidos e, como transparece no produto final, maior controle sobre o material 

que foi filmado.  

O título do documentário pode, à primeira vista, aludir a uma obra didática. Já 

foi  mencionada  a  possível  relação  entre  os  blocos  do  documentário  e  quadros 

operísticos  ou movimentos  sinfônicos. O  espectador  compreenderá,  no  decurso  do 

filme, que Herzog pode estar aludindo às Revelações bíblicas, que estão divididas em 

capítulos, e às quais também é atribuído o nome de Profecias do Apocalipse. Lektionen 

in  Finsternis  é  o  título  original  em  alemão  –  Lições  da  escuridão,  em  português. O 

substantivo  Finsternis  pode  também  ser  traduzido  como  “tenébra”  ou  “eclipse”. 

Lembramos aqui a relação entre Fata Morgana e Lições da escuridão, que se  faz por 

meio  do  título,  sendo  a  trilha musical  de  Fata Morgana  inspiração  para  o  título  de 

Lições da escuridão.  

François Couperin compõe, no século XVIII, as Leçons de Ténèbres, ou Lições de 

Trevas, para liturgias da Semana Santa, mais especificamente para o Ofício de Trevas. 

O  Ofício  de  Trevas  era  celebrado  nos mosteiros  e  catedrais  na  penumbra,  com  a 

iluminação proveniente apenas de um grande candelabro de 15 velas. A cada versículo 

cantado, uma vela era apagada, de modo que, ao final do ofício, o local estava na total 

escuridão.  As  Lamentações  de  Jeremias  descrevem  os  sofrimentos  dos  hebreus 

exilados com a queda de Jerusalém ante os babilônios. Trata‐se, portanto, de um ritual 

60 Ver a Declaração de Minnesota, no Anexo. 

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sobre o mistério do sofrimento e da morte – temas próximos àqueles abordados por 

Herzog –  representados de maneira dramática,  tanto na música como na encenação 

do ritual. Vinte anos depois de Fata Morgana, as trevas ainda ameaçam a humanidade 

e o diretor dá o nome das composições de Couperin ao seu documentário, Lições da 

escuridão. 

Desde seu primeiro contato com o  filme, o espectador sabe que uma história 

feliz ou solar não o espera. O lugar a ser visitado é sombrio, e o estado de espírito que 

ali  impera, também. O título é um convite para uma visita ao submundo de Hades. O 

que o  espectador não  faz  ideia,  ao  começar  a  assistir o  filme, é do  grau de  licença 

poética que Herzog irá se permitir para abordar uma guerra já fartamente mediatizada 

nos  telejornais.  Será  a Guerra  do Golfo  apenas  uma  desculpa  para Herzog  abordar 

certas  questões,  expressar  de maneira  autoral  sua  visão  sobre  os  seres  humanos  e 

suas ações sobre o planeta?  

O tom apocalíptico do documentário é determinado, desde o início, pela trilha 

musical O ouro do Reno, de Richard Wagner. Há uma epígrafe atribuída ao matemático 

francês Blaise Pascal: “O colapso do universo estelar ocorrerá – como a criação – em 

grandioso esplendor”.  

Nunca  será  dito,  em  nenhum momento  do  filme,  que  a  citação  que  abre  o 

documentário não é de autoria de Blaise Pascal, mas do próprio Herzog. Ao não assinar 

sua epígrafe, o diretor estabelece, desde o  início, que seu compromisso não é com a 

verdade, ou pelo menos não como verdade absoluta, mas uma verdade deontológica, 

segundo o conceito de Maffesoli:  

 

Quando  já  não  se  tem  quaisquer  garantias,  ideológicas,  religiosas, institucionais,  políticas,  talvez  seja  preciso  saber  apostar  na  sabedoria relativista. Esta “sabe”, por um saber incorporado que nada é absoluto, que não há verdade geral, mas que todas as verdades parciais podem entrar em relação umas com as outras. É isto, o bom uso do relativismo, quando não há  uma  finalidade  assegurada,  quando  o  objetivo  distante  esmaeceu‐se, podemos conceder às situações presentes, às oportunidades pontuais, um valor específico. (MAFFESOLI, 1998: 9) 

 

Herzog  se  deparou  com  imagens  impressionantes  no  Kuwait  e  procura 

reproduzir  no  espectador  esse  impacto.  Imagens  sempre  foram  manipuladas  ou 

construídas ao longo da história, por motivos diversos – políticos, religiosos, morais ou 

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estéticos. Da Mona Lisa, que até hoje não sabemos com certeza de quem se  tratava 

(uma mulher ou um jovem rapaz?), da perspectiva renascentista ao trompe l’oeil, e, no 

século XX, a arte op; da fotografia, onde personagens que se tornaram personae non 

gratae  –  como  Trotsky,  na  União  Soviética  –  são  apagados,  ao  filme  e,  mais 

recentemente ao vídeo, a imagem que permanece não é necessariamente aquela que 

detém a verdade histórica, mas aquela que melhor interpreta e traduz imageticamente 

uma  sociedade em um  tempo e  lugar determinados. No  caso,  se Herzog não utiliza 

efeitos especiais, nem por  isso suas  imagens deixam de ser construídas de maneira a 

gerar um certo estado emocional. 

Vemos imagens de poços de petróleo, paisagens esfumaçadas que desfilam em 

um tempo dilatado e o comentário narrativo que descreve a Terra como se fosse um 

planeta  desconhecido.  Imagens  de  silhuetas  humanas,  trabalhadores  de  empresas 

petrolíferas. O narrador‐explorador  se  refere a eles  como  “criaturas”,  tirando‐lhes a 

humanidade  e  estabelecendo  o  clima  do  filme  como  sendo  uma  obra  de  ficção 

científica, ou algo “fora do mundo”: “A primeira criatura que encontramos tentou nos 

comunicar algo.” 

Esta afirmação  revela que existem dois mundos que não  se  conhecem e não 

estão em comunicação. O narrador‐explorador menciona a tentativa de comunicação, 

mas deixa em suspenso se a comunicação foi estabelecida ou não. Que mundos serão 

esses? Não há definição geográfica de fronteiras. O comentário narrativo pode estar se 

referindo  a  diferenças  geográficas,  mas  também  diferenças  culturais,  políticas  ou 

religiosas.  Afinal,  não  são  as  guerras  o  resultado  de  diferenças  que  ultrapassam  a 

topografia ou o mapa geopolítico de uma determinada região?  

Não  há  letreiros  ou  intertítulos  contendo  qualquer  indicação  com  nomes  de 

cidades,  pessoas  ou  datas,  apenas  o  nome  de  cada  bloco  do  filme.  Fica  a  cargo  da 

imaginação  do  espectador  estabelecer  quais  são  aqueles  lugares  e  quem  são  os 

personagens. Em nenhum momento é dito que o documentário foi filmado no Kuwait. 

Fala‐se  em  soldados, mas  não  é  explicitado  de  que  exército  se  trata,  nem  de  qual 

guerra, quando ela ocorreu e quem venceu e  foi vencido. Está assim aberta a porta 

para  uma  fábula  que,  como  toda  fábula,  carrega  em  si  uma  essência  simbólica  da 

realidade.  

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I. Uma Capital  (Eine Hauptstadt): O primeiro bloco mostra  imagens de uma 

cidade. A chegada a essa cidade se dá pelo céu. De imediato, o espectador é exposto a 

sons e imagens estranhos, sem explicação. Eis a única indicação: “Um planeta do nosso 

sistema solar.” 

Som de uma voz humana, falando uma língua desconhecida, provavelmente um 

imã dizendo uma oração (a última antes do Apocalipse?) em sua mesquita. A voz ecoa 

pela  cidade.  Assim  é  introduzido  o  primeiro  elemento  de  natureza  mística  no 

documentário, uma oração em língua estrangeira. No primeiro plano da cidade, ergue‐

se  uma  construção  que  parece  ser  o  minarete.  A  luz  crepuscular  contribui  para 

construir o quadro fúnebre que se prenuncia. As  imagens, filmadas em câmera  lenta, 

dão a  impressão de um  tempo suspenso. Fora a câmera  lenta, não há outros efeitos 

especiais no documentário: tudo aquilo que parece estranho, estrangeiro, alienígena é 

o que foi registrado pela lente da câmera.  

A estranheza das imagens se dá na confluência de vários elementos: a luz (ou a 

falta  dela),  a  câmera  lenta,  a  perspectiva  aérea,  a  arquitetura  local,  a  língua  que  é 

falada, os destroços de guerra, as roupas das pessoas e a natureza desfigurada. Neste 

primeiro  capítulo  (estrofe,  ato  ou  movimento),  o  narrador  fala  da  batalha  e  da 

destruição  que  se  aproximam.  Os  moradores  da  cidade  são  inocentes,  mas  o 

espectador  não,  pois,  como  cúmplice  do  narrador  onisciente,  é  testemunha  dos 

últimos  momentos  de  paz  antes  do  caos:  “Ninguém  suspeita  da  inevitável 

condenação.” 

A trilha musical tem início: A morte de Aase, em Peer Gynt, de Edvard Grieg. É 

comovente  a  tranquilidade da  cidade que desfila  sob os olhos do  espectador.  Tudo 

aquilo que seus olhos veem em breve não existirá mais, e não há nada que ele possa 

fazer. A trilha é uma marcha  fúnebre antecipada, que anuncia o  fim da cidade e dos 

seres que a habitam. Não estaria o  imã pedindo proteção divina contra a catástrofe 

que se aproxima?  

II. A Guerra (Der Krieg): Capítulo curto, com pouco mais de quarenta segundos. 

Sobre  imagens  de  arquivo  da  CNN,  o  narrador  conta  que  a  guerra  durou  apenas 

algumas horas. As  imagens da CNN são tão  insólitas quanto as  imagens filmadas pelo 

cinegrafista de Herzog. São cenas de um ataque noturno, filmadas com infravermelho. 

A  chuva de bombas  sobre a  cidade nas  imagens granuladas e esverdeadas parecem 

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imagens de alguma guerra interplanetária. Som de uma sirene sobre a trilha, como um 

alerta ou um toque de recolher. A sirene é rouca e sinistra, como o grito de um animal 

em  perigo.  Herzog  não  possuía  um  registro  próprio  da  guerra, mas  encontrou  nas 

imagens de arquivo um material no mesmo diapasão das imagens que filmou. Herzog‐

narrador anuncia: “Depois da guerra, estava tudo diferente.” 

 

 

 

Figura 23 ‐ Lições da escuridão, imagem de arquivo (W. Herzog, 1992) 

 

III. Depois  da Batalha  (Nach  der  Schlacht):  Este  capítulo  abre  com  pássaros 

negros  voando no  céu. Corta para  a  terra,  aparecem os primeiros destroços, que o 

espectador ainda não sabe se são pedaços de máquinas ou esqueletos. Estas imagens 

compõem rimas visuais com as  imagens de destroços de Fata Morgana.   A trilha é o 

prelúdio de Parsifal, de Richard Wagner. Sequências  filmadas de cima de um veículo 

também  lembram  Fata  Morgana.  Cenário  de  desolação  e  destruição,  destroços, 

ruínas. A batalha terminou, deixando apenas vestígios do que foi uma cidade povoada. 

O  olhar  do  espectador  paira  no  ar,  a  câmera  lenta  passa  a  sensação  de  falta  de 

gravidade. Aparecem os primeiros indícios da exploração de petróleo na região: dutos 

inoperantes,  containers  gigantescos  que  desmoronaram  como  se  fossem  feitos  de 

papel. Tornaram‐se inúteis, sucata. A tranquilidade desse passeio aéreo contrasta com 

a violência que ocorreu no  lugar recentemente. A terra ocre e seca tem a textura de 

pele queimada,  com  feridas e  cicatrizes: dela emergem o que  restou de edificações 

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humanas. Não  há  vestígios  de  vegetação  ou  de  vida  animal:  “A  grama  nunca mais 

cresceria de novo aqui.” 

IV.  Achados  das  câmaras  de  tortura  (Fundstücke  aus  Folterkammern):  A 

câmera está na mão. A trilha é uma sonata de Prokofieff para dois violinos. Ouvem‐se 

passos da pessoa que  anda  vagarosamente e descobre  instrumentos de  tortura. Há 

vestígios de sangue sobre esses instrumentos. Que lugar é esse? Onde fica essa câmara 

de  tortura?  Em  um  quartel?  Em  um  hospital? As  respostas  nunca  serão  fornecidas. 

Sem  respostas,  o  horror  das  imagens  não  poderá  ser  aplacado  por  meio  da 

racionalização.  

Instrumentos estranhos desfilam  sob  a  lente da  câmera – ou  sob o olhar do 

espectador‐explorador. O tempo longo da sequência que custa a passar permite que o 

espectador  se pergunte de que maneiras aqueles  instrumentos  foram usados, quem 

padeceu  por  meio  deles.  Uma  cadeira  de  metal  fecha  a  exposição  macabra.  Há 

material elétrico perto da cadeira. Esses objetos pertencem a um mundo desconhecido 

onde valores civilizados também são desconhecidos. 

Há  um  corte  para  uma mulher muçulmana,  vestida  de  negro,  com  a  cabeça 

coberta por um véu, mas o rosto à mostra. Sentada em uma cadeira, ela conta como 

assistiu ao assassinato dos  filhos por soldados  inimigos, e como perdeu a  fala depois 

disso. Ela consegue apenas balbuciar palavras. A expressão de seus olhos e o tom de 

sua voz, que soa como a de um pequeno animal  ferido, comunicam ao espectador a 

dor pela qual passou e obviamente  ainda persiste. Ao  final de  seu depoimento, ela 

suspira profundamente. Não por acaso, trilha musical é o Stabat Mater de Arvo Pärt. O 

Stabat Mater, que pode ser traduzido como “A mãe em pé”, é originalmente um hino 

católico do século XIII associado a Nossa Senhora das Dores. O texto original evoca o 

sofrimento de Maria ao assistir à crucificação de Jesus. 

Esta  é  uma  das  duas  aparições  de  personagens  humanos  com  diálogos  que 

Herzog  irá  conceder  à  narrativa  do  documentário.  Em  nenhum  dos  dois  casos  há 

legendas para as falas das mulheres. Herzog as deixa falar e narra para o espectador a 

essência  do  que  ela  dizem,  à  sua maneira.  Como  em  Fata Morgana,  os  elementos 

narrativos  dos  personagens  não  estão  em  seu  discurso, mas  em  suas  vestes,  olhar, 

expressão corporal, gestos e na entonação de sua voz. 

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V.  Parque  Nacional  de  Satã  (Satans  Nationalpark):  Sobre  a  vista  aérea,  a 

narração conta que a  terra seca que desfila sob os olhos espectador  foi um dia uma 

floresta, e que o que parece ser água é, na realidade, petróleo. Há grandes  lagos de 

petróleo negro. O narrador diz que as águas são enganadoras, pois, como no devaneio 

cósmico de que fala Bachelard, refletem o céu. Porém, neste caso, existe uma noção 

de logro, de traição ou armadilha, e não de complementaridade benévola: “O petróleo 

está tentando se fazer passar por água. 

Caminhões trafegam por estradas de terra em meio à poeira. Do helicóptero de 

onde são filmadas as sequências, avista‐se o primeiro poço de petróleo em chamas ao 

fundo  da  paisagem.  Neste momento,  há  a  primeira  inserção  de  textos  bíblicos  na 

narração, do Livro das Revelações61 do Novo Testamento: “E se fizeram relâmpagos, e 

vozes, e trovões, e foi feito um grande tremor de terra, tal tremor e tão grande, qual 

nunca foi feito depois que estiveram homens sobre a terra. (16:18)”. Essa descrição se 

refere  a  um  terremoto  físico  descrito  em  versículos  anteriores, mas  também  a  um 

terremoto  simbólico,  a  queda  da  Babilônia.  O  terremoto  físico  deixa  a  cidade  em 

ruínas e o simbólico desmantela a noção de civilização.  

“E a grande cidade se dividiu em três partes, e as cidades das Gentes caíram; e 

a grande Babilônia veio em memória diante de Deus, para lhe dar o copo do vinho da 

indignação  de  sua  ira.  (16:19)”.  A  destruição  da  Babilônia  representa  a  queda  de 

poderes políticos e poderes religiosos apóstatas. “E toda ilha fugiu; e os montes não se 

acharam. (16:20)”. As convulsões da terra descritas aqui são o resultado do terremoto 

do  versículo  18. O  céu  está  coberto  por  nuvens  escuras.  A  trilha musical,  o  Stabat 

Mater,  intensifica o clima apocalíptico que cresce à medida que o explorador celeste 

se aproxima dos poços de petróleo em chamas.  

VI.  Infância  (Kindheit):  Este  capítulo  começa  com  a  imagem  de  uma  nuvem 

negra varrendo a  terra e qualquer  forma de vida que haja  sobre ela,  como  se  fosse 

uma  praga,  uma  punição  divina  que  se  abate  sobre  o  planeta,  indiferente  ao 

sofrimento das criaturas que o habitam. Em seguida, há um corte para uma jovem mãe 

61Existem  muitas  interpretações  das  Revelações.  Minhas  pesquisas  delinearam  quatros  principais 

escolas: a preterista, que faz uma leitura da ótica do apóstolo João, a histórica, cuja ótica é a história da humanidade, a  idealista que alerta para uma sucessão de impérios sem Deus até a volta de Cristo, e a futurista, cuja ótica é profética. As duas últimas são as que dão conta da interpretação das Revelações escolhidas por Werner Herzog no contexto deste estudo. 

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muçulmana. É a segunda e última concessão a um depoimento. Ela conta que até suas 

lágrimas  eram  negras.  A  narração  não  explicita  que  a  causa  era  a  fumaça  dos 

incêndios.  Dessa  maneira,  as  lágrimas  negras  adquirem  uma  conotação  de  horror 

metafísico, como um castigo dos céus. A mãe prossegue seu relato: com um menino 

no colo, ela conta que o filho teve a cabeça pisoteada por um soldado, e viu o pai ser 

assassinado por soldados inimigos. O filho nunca mais falou depois desse trauma. Suas 

últimas  palavras  foram:  “Mamãe,  eu  nunca  quero  aprender  a  falar”.  O menino  se 

encolhe  no  colo  da mãe. Não  há  trilha musical. A  criança  tem  o  olhar  sério  de  um 

adulto.   

VII. E uma fumaça levantou como a fumaça de uma fornalha (Es stieg ein  

Rauch  auf,  wie  ein  Rauch  vom  Ofen):  Vista  aérea.  A  velocidade  das  imagens  se 

intensifica.  A  trilha musical  é  a Marcha  fúnebre  de  Siegfried,  de  O  crepúsculo  dos 

deuses, quarta e última ópera da  tetralogia O anel dos Nibelungos, de Wagner. Esta 

obra  de Wagner  é  também  chamada  de  poema  épico  e  foi  inspirada  na mitologia 

nórdica.  Foi mencionado o uso dessa obra por  Francis  Ford Coppola em Apocalypse 

Now. Há outra referência no cinema com relação à ópera de Wagner: Luchino Visconti 

que, como Herzog, dirigiu óperas além de filmes. Visconti deu o título La caduta degli 

dei  (1969), ou O crepúsculo dos deuses, ao  filme sobre uma  rica  família aristocrática 

alemã  que  lida  com  os  primeiros  e  inegáveis  sinais  de  sua  decadência  durante  a 

ascensão do nazismo. A história é uma alusão ao embate e difícil transição entre forças 

do passado e do presente, simbolicamente representadas nas óperas de Wagner pelo 

embate entre deuses e homens. 

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Figura 24 ‐ Lições da Escuridão, incêndio 2 (W. Herzog, 1992) 

 

 

Figura 25 ‐ O Anel dos Nibelungos (R. Wagner / Ópera de Colônia, 2010) 

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Como os  três  filmes da  trilogia, O Anel dos Nibelungos é uma viagem onírica, 

inspirada na Edda Poética62. A ópera é a história da  luta pelo poder entre homens e 

deuses,  entremeada  por  uma  história  de  amor  incandescente,  fadada  a  levar  seus 

protagonistas à tragédia e à morte que prenuncia o crepúsculo dos deuses. A relação 

com Lições da escuridão se estebalece por meio da  luz crepuscular, dos personagens 

sobrenaturais (ou extraterrestres, no caso do filme) e do fogo – que imprimem o tom 

de  poema  épico  trágico  às  duas  obras. Há  outra  relação  entre  a  trilha musical  e  o 

documentário.  

Foi citado que, ao compor o ciclo de O Anel dos Nibelungos, Wagner não queria 

apenas compor uma ópera: ele almejava criar uma obra que  fosse uma obra de arte 

total, onde teatro, poesia, música e pintura comporiam um todo. Richard Wagner dá 

conta de uma visão interdisciplinar da criação, que será abraçada também por Herzog 

quando  ele  pulveriza  as  barreiras  entre  música,  cinema  documentário  e  ficção  e 

comentário  narrativo,  transcriando  a  linguagem  operística  em  linguagem 

cinematográfica. 

Em  um  crescendo  de  catástrofe  iminente,  Herzog‐narrador  introduz  as 

Revelações: “E o quinto anjo  tocou a  trombeta, e vi uma estrela que do céu caiu na 

terra; e foi‐lhe dada a chave do poço do abismo. (9:1)”. A estrela que cai representa a 

queda de um  líder. A chave que é dada a esse  líder apóstata abre a porta para uma 

terra desolada.  

“E abriu o poço do abismo, e subiu fumo do poço como o fumo de uma grande 

fornalha: e com a fumaça do poço, escureceu‐se o sol e o ar. (9:2)”. O sol de que fala a 

Revelação  se  refere  à  verdade  e  à  luz  de  Cristo.  Logo,  a  escuridão  é  o  oposto  da 

verdade e representa ensinamentos falsos e errôneos. 

“E naqueles dias os homens buscarão  a morte e não  a  acharão; e desejarão 

morrer, e a morte  fugirá deles.  (9:6).” Esta Revelação é uma alusão à vida que  só é 

mantida para que a dor continue, para que tudo o que é sagrado seja profanado, para 

62 Também conhecida como Codex Regius, a Edda Poética é originalmente um conjunto de lendas orais 

islandesas que passaram a ser escritas entre os séculos X e XIII em versos, por autores diferentes. São relatos  sobre  a mitologia  nórdica,  onde  os  personagens  são  deuses  e  heróis,  dentre  eles mulheres guerreiras. Os poemas são trágicos e serviram de inspiração para August Strindberg, Richard Wagner e Ezra Pound. 

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que  tudo  o  que  é  caro  aos  homens  seja  ameaçado,  e  o  descanso  seja  sempre 

brutalmente interrompido, tornando assim a morte um bem‐vindo alívio. 

Chegamos  ao  coração  da  tormenta:  a  fumaça  apocalíptica  cobre  o  céu.  Este 

capítulo e o próximo são os mais  longos do documentário. Entram em cena os poços 

de  petróleo,  protagonistas  do  documentário.  Se  não  fosse  por  eles,  Herzog  e  sua 

equipe sequer teriam ido até o Kuwait filmar. Além disso, a nova batalha que se trava 

nesse  lugar  sem  nome  gira  em  torno  da  extinção  desse  personagem  dramático,  o 

inimigo post‐bellum que surge após a debandada do exército iraquiano. Herzog expõe 

a arena desolada onde é travada a batalha entre o fogo e os seres humanos, entre o 

fogo e a água. 

VIII. Uma Peregrinação (Eine Wallfahrt): O capítulo começa com a  introdução 

de três novos personagens: os técnicos que trabalham na extinção do fogo, o fogo e a 

água.  Os  técnicos  são  mostrados  como  cosmonautas  ou  seres  de  outro  planeta, 

vestidos  com  roupas  especiais,  capacetes  e máscaras.  Vieram  de muito  longe  para 

aplacar a ira do fogo, expondo‐se ao perigo das chamas, correndo o risco de perderem 

suas vidas neste sítio infernal.  

Elementos  simbólicos da obra de Wagner,  como o  fogo e a água, encontram 

resonância nas  imagens do documentário: o fogo é presença constante na tetralogia, 

sendo encarnado pelo deus Loge, que consome vários personagens, tanto física como 

espiritualmente,  inclusive  Brunnhilde,  par  romântico  de  Siegfried.  Na  ópera  O 

crepúsculo  dos  deuses,  o  fogo  interage  com  a  água,  que  por  sua  vez  prenuncia um 

recomeço,  símbolo  da  criação  e  serenidade,  representada  pelo  rio  Reno.  Como 

acontece no documentário de Herzog, a água apaga o incêndio no último ato.  

Herzog dirigiu várias óperas de Wagner, como Parsifal, Tannhäuser, O holandês 

voador e Lohengrin, mas não dirigiu nenhuma das obras da  tetralogia de O Anel dos 

Nibelungos. Apesar desse fato, em certos momentos, a construção dramática de Lições 

da  escuridão  parece  calcada  na  construção  de  certos  momentos  da  tetralogia 

wagneriana. 

A partir deste momento, é explorada a antropomorfização do fogo e da água, 

como dois oponentes em uma batalha de vida ou de morte: o fogo é um personagem 

furioso, ultrajado, que ameaça os seres humanos. Fruto de uma terra violentada – por 

seres  humanos  –,  o  fogo  não  se  submete  à  vontade  do  homem  como  o  resto  da 

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natureza. A água é o único oponente à altura do fogo. Ela é uma aliada dos técnicos‐

cosmonautas, que enfrenta o adversário e também esfria seus corpos superaquecidos.  

Ouve‐se vozes humanas, mas o que dizem é ininteligível. Não há trilha musical: 

a trilha sonora é o rugido do fogo e da água. A água escorre, misturada ao petróleo. A 

terra  é  negra.  Outros  aliados  dos  seres  humanos  aparecem:  tratores  e  gruas  são 

mostrados  como  animais  que  comem  fogo  em  uma  tentativa  de  enfrentá‐lo.  Os 

homens  têm  agora bananas de dinamite nas mãos.    Tentarão  conter  a explosão do 

fogo com uma explosão ainda maior. O fogo começa, aos poucos, a ser subjugado. Os 

sons diminuem.   

IX. O caminho dos sáurios (Saurier unterwegs): A trilha musical é o Réquiem de 

Verdi.  Requiem,  acusativo  de  requies,  em  latim,  significa  “repouso”.  A  missa  de 

réquiem  é  também  conhecida  como  a missa  dos mortos,  celebrada  para  que  suas 

almas repousem em paz. O réquiem musical é uma composição que segue a estrutura 

de uma missa, e é tocado em cerimônias fúnebres. Assim, ao final do documentário, a 

trilha musical anuncia a morte de seu principal personagem, o fogo. Como foi pontado, 

nas obras musicais escolhidas para o documentário, tanto de Wagner como de Verdi, 

existe uma relação com o mundo metafísico por um viés místico. Panteísta desde Fata 

Morgana, Herzog não faz diferença entre o viés católico de Verdi ou o mitológico de 

Wagner.  

Tratores, como insetos gigantes (ou seres pré‐históricos) passeiam pela fumaça 

tranquilamente.  Um  helicóptero  surge  da  fumaça,  como  um  dinossauro  alado.  As 

partes  dos  tratores  são  mostradas  como  garras  gigantes,  patas,  braços  e  pernas. 

Alguns  seres  humanos  observam  calmamente  esses  “animais”  devidamente 

domesticados  que  trabalham  para  eles.  Não  há  texto  narrativo.  As  imagens  são 

acompanhadas pela música. Neste ponto do documentário, ou deste ato ou quadro, 

talvez  não  seja mais  o  caso  de  chorar  a morte  da  cidade  e  das  pessoas  que  nela 

habitavam, mas a morte do principal personagem desse épico, o fogo. 

X.  Protuberâncias  (Protuberanzen):  O  petróleo  é  de  origem  fóssil.  O  fóssil 

líquido  se  esparrama  pela  terra  em  1991,  visão  que  alude  ao  fato  que,  de  certa 

maneira, essa matéria negra que emerge de  lugares profundos representa uma volta 

dos sáurios à superfície da terra. Este pequeno capítulo é uma montagem de imagens 

de substâncias líquidas borbulhando, fervendo, sem música. Os lagos lisos e tranquilos 

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de petróleo do capítulo V. Parque Nacional de Satã, deram  lugar a um novo  tipo de 

solo,  enrugado, machucado,  inóspito,  onde  é  impossível  pisar. Ora  esburacado,  ora 

pontiagudo,  escorregadio,  pegajoso  e  traiçoeiro,  o  novo  solo  que  surge  depois  dos 

incêndios tem sua própria topografia e constituição, e, por muito tempo, sobre ele não 

serão bem‐vindos seres humanos. 

XI. A extinção dos poços (Das Versiegen der Quellen): Vista aérea da região. O 

céu  está  coberto  pela  fumaça  escura  dos  poços,  quase  extintos. O  petróleo  volta  a 

jorrar.  Neste  momento,  resta  fechar  os  poços.  A  trilha musical  é  um  noturno  de 

Schubert. O espírito lúgubre de Wagner deixou o campo de batalha e o documentário. 

Os  técnicos aparecem de novo, desta vez, humanizados: Herzog mostra  seus  rostos, 

sujos e sorridentes: eles são os vencedores da batalha contra o fogo.  

O sol aparece pela primeira vez. Em certas tomadas, a câmera é lenta. Schubert 

é substituído pelo som do petróleo que jorra. Os técnicos conversam, satisfeitos, rindo, 

como se contassem piadas um para o outro. Não são mais cosmonautas ou seres de 

outro planeta: são seres humanos. Não há narração. As  imagens perdem a qualidade 

sobrenatural ou estranha que havia anteriormente. Os homens  trabalham  com  suas 

máquinas, fechando um a um os poços, agora inteiramente domados. Por um instante, 

o espectador quase poderia estar diante de um documentario institucional de alguma 

empresa petrolífera.   

XII. A vida sem fogo (Leben ohne Feuer): Não há trilha musical, apenas os sons 

do  lugar. Na  realidade,  são efeitos  sonoros. As  imagens mostram dois  técnicos. Um 

deles  acende  uma  tocha  e  atira  num  poço  de  petróleo  que  jorra,  e  este  volta  a 

queimar. Outros  técnicos  fazem  a mesma  coisa. Há  tomadas  em  primeiro  plano  de 

técnicos  fumando e  rindo perto dos poços de petróleo que ardem. Na  realidade, há 

uma  razão  para  os  técnicos  reacenderem  os  poços:  o  petróleo  que  jorra  de  alguns 

poços apagados  se alastra,  formando um  lago que ameaça  chegar até os poços que 

ainda  queimam.  O  contato  entre  os  dois  elementos  precisa  ser  evitado  a  fim  de 

prevenir uma grande queimada. 

No entanto, no comentário narrativo, Herzog aproveita a situação e cria uma 

situação  dramática:  o  narrador  pergunta  se  alguns  desses  homens  não  teriam 

enlouquecido, se não precisam ter um incêndio para extinguir para ficarem satisfeitos, 

se  a  vida não  se  tornou  insuportável  sem o  fogo.  Seria  realmente  loucura?  Simples 

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divertimento?  Compulsão?  Ou  haverá  alguma  explicação  lógica  ou  técnica  para  tal 

ato? O narrador não oferce respostas a essas perguntas. Diante das  imagens, prefere 

vaticinar  que  se  trata  de  um  caso  de  loucura.  Apesar  da  interpretação  de  que  os 

técnicos  enlouqueceram  não  parecer  muito  provável,  ela  contribui  para  a 

dramaticidade trágica do documentário. A  loucura está presente nos personagens de 

Lições da escuridão como em Fata Morgana, mas, neste caso, ela não é encenada a 

mando do diretor, mas construída por meio da montagem.  

Há  outro  caso  de  bombeiros  incendiários  na  história  do  cinema.  No  filme 

Fahrenheit  451  (1966),  de  François  Truffaut  (baseado  no  livro  homônimo  de  Ray 

Bradbury),  os  bombeiros  não  apagam  incêndios.  Pelo  contrário,  ateiam  fogo.  Como 

Lições  da  escuridão,  o  filme  de  Truffaut  é  uma  ficção  científica  cujo  escopo  não  é 

científico ou  tecnológico, mas  social e  filosófico. No caso, uma  sociedade vive  sob o 

jugo de um sistema que proíbe a  leitura, destruindo  livros, prendendo e brutalizando 

quem os possui.  Também no  filme de  Truffaut, o  fogo  tem um papel  simbólico. Os 

livros  simbolizam  o  conhecimento,  as  emoções,  a  vida,  a  liberdade,  a memória  e, 

portanto,  a  possibilidade  de  sobrevivência  da  humanidade.  Eles  são  queimados,  e 

aqueles  que  não  acatam  a  lei  são  punidos  à maneira  dos  autos‐de‐fé  da  Inquisição 

ibérica. O  fogo  atua  como  elemento  purificador  às  avessas,  a  serviço  de  uma  força 

opressora e deletéria,  como  revelam as palavras do  capitão do  corpo de bombeiros 

incendiários: 

 

Romances  não  são  a  vida. O  que Montag  esperava  tirar  de  todas  essas páginas? Felicidade? Que pobre  idiota você  foi. Essa bobagem é capaz de levar um homem à loucura. Você pensou que aprenderia a caminhar sobre as  águas,  não  pensou? Montag  precisa  a  aprender  a  pensar  um  pouco. Pense  como  todos  esses  escritos,  todas  essas  receitas  de  felicidade discordam entre si. Deixe queimar essa pilha de contradições! Somos nós que trabalhamos hoje para a felicidade do Homem. Olhe, não é adorável? As páginas  como pequenas pétalas de  flores, ou borboletas,  luminosas e negras... Quem pode explicar a  fascinação do  fogo, o que nos atrai a ele, sejamos jovens ou velhos? 63 

 

O bombeiro Montag (vivido no filme por Oskar Werner) um dia  lê um  livro no 

lugar de queimá‐lo. A partir desse momento, seu espírito é “corrompido” pela  leitura 

que  o  faz  sentir  e  pensar. Começa  a  surrupiar  livros  durante missões. Dentre  esses 

63 Diálogo a partir do filme Fahrenheit 451, François Truffaut, 1966. 

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livros,  o  único  livro  enfocado  pela  câmera  durante  o  furto  é,  coincidentemente,  a 

autobiografia  de  Kaspar  Hauser,  um  dos  principais  personagens  do  panteão 

herzoguiano, e que, enquanto estava recluso, não sabia discenir sonhos da realidade. 

Do ponto de vista de sua mulher e colegas, Montag enlouquece. Porém, do ponto de 

vista oposto,  se  considerarmos  as  regras da  sociedade mostrada no  filme  absurdas, 

isto significa que Montag recobra a sanidade. Essa dualidade de perspectivas pode ser 

utilizada  na  interpretação  das  imagens  dos  técnicos  incendiários  de  Lições  da 

escuridão: quando nada à nossa volta  faz sentido, entregar‐se à  loucura talvez seja a 

derradeira prova de sanidade. 

Ao som da Sinfonia nº 3 de Mahler são mostradas as últimas imagens do fogo: 

tratores  que,  como  grandes  animais,  terminam  sua  tarefa  transportando  areia.  A 

movimentação por vezes  faz pensar nas silhuetas em movimento em Fata Morgana. 

Veículos mostrados como bichos estranhos em planos distantes, que parecem não ter 

destino certo: movimentam‐se em função do instante em que os vemos. 

XIII.  Estou  tão  cansado  de  suspirar.  Senhor,  deixai  cair  a  noite.  (Ich  bin  so 

müde  vom  seufzen.  Herr,  lass  es  Abend  werden.):  Curto  epílogo,  a  trilha musical 

continua. As imagens escurecem, a noite cai. Alguns poços ainda queimam, ao longe. A 

câmera  se  distancia  e  vai  deixando  para  trás  o  lugar  e  os  personagens:  Herzog,  o 

diretor‐explorador, vai embora, levando consigo o espectador, seu copiloto. É o fim de 

uma missão,  ou  o  último  ato  de  uma  trágica ópera  documental  de  sua  autoria. No 

entando, como acontece na tetralogia de Wagner, a ópera termina, mas não o ciclo. 

Ao deixar para  trás o Kuwait  e os poços de petróleo, o  explorador não  revela para 

onde vai e o que acontecerá agora. O fogo foi apagado, mas o destino da humanidade 

continua incerto nesse cenário onde tudo precisa ser reconstruído. E, assim, a viagem 

segue adiante. 

 

 

3.4. Além do azul selvagem: o círculo poético se fecha 

 

O manifesto de 1999, ou Declaração de Minnesota, contém a indicação de que 

Lições da escuridão não era a etapa final da viagem. O item que fecha o manifesto diz: 

 

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A vida nos oceanos deve ser um inferno. Um vasto e impiedoso inferno de perigo  permanente  e  iminente. Um  tal  inferno  que,  durante  a  evolução, algumas espécies –  incluindo o homem –, rastejaram, fugiram para alguns pequenos  continentes  de  terra  firme,  onde  as  Lições  da  Escuridão continuam. 

 

 

Como os dois primeiros filmes, Além do azul selvagem é dividido em blocos ou 

capítulos.  As  primeiras  imagens  são  do  fundo  do  oceano  antártico.  O  som  é  uma 

sobreposição  da  respiração  humana  por  meio  de  um  tanque  de  oxigênio  para 

mergulho, sinais sonoros de cabine de nave espacial e vozes de astronautas. O letreiro 

inicial anuncia: Uma fantasia de ficção científica. Essa apresentação não situa o filme 

nem  como  ficção,  nem  como  documentário.  Já  foi  mencionado  como  essa 

nomenclatura  confere  duas  camadas  de  fantasia  ao  filme  que  estamos  prestes  a 

assistir: uma camada é aquilo que é imaginado a respeito do futuro da humanidade. A 

outra, a abordagem poética daquilo que se imagina. 

O  título do  filme aparece  sobre a  imagem de moinhos de vento,  referência a 

Sinais  de  vida  (1968),  primeiro  longa‐metragem  de  Herzog.  Se  tivesse  de  definir  a 

imagem dos moinhos de vento sucintamente, diria que ela é o Rosebud  imagético de 

Herzog. Ainda jovem, ele acompanhou o avô arqueólogo em expedições à Grécia, onde 

um dia se deparou com moinhos de vento como os que reproduz em Sinais de vida: 

centenas deles  (ou o que pareceu uma  infinidade para o  jovem Herzog)  girando na 

paisagem grega. Conta Herzog que, diante da magnitude do que via, precisou sentar‐se 

para recompor‐se, pois pensou que tinha perdido a razão.  

A  imagem dos moinhos de vento  cataliza a essência da busca herzoguiana: a 

imagem adequada, pois pura, original no sentido de “origem” ou “gênese”; o elemento 

insólito que está em direta relação com a loucura; o espelhamento da imagem que se 

tem diante dos olhos com imagens mentais; o estado de êxtase ou sublimidade diante 

daquilo que vemos que nos leva à descoberta de uma verdade mais profunda, interna; 

os moinhos como símbolo das quimeras  (ou sonhos) de Dom Quixote; o movimento 

circular do moinho simbolizando o eterno recomeço, os ciclos que o ser humano não 

consegue romper. Os círculos estão em Fata Morgana, nos veículos que giram a esmo 

no deserto; na montagem do  filme, que volta a  imagens que  já  foram usadas várias 

vezes em um leitmotiv sem lógica aparente. Estão em Além do azul selvagem, quando 

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o ônibus espacial orbita em torno da Terra em vão, e, no seu  interior, os astronautas 

que pairam no ar, girando sobre si mesmos. 

O  segredo  da  poética  herzoguiana  está  contido  nessa  sequência  de  seu 

primeiro  longa‐metragem,  que  dura  pouco mais  de  três minutos.  É  a  poética  que 

encontramos em todos os filmes que fez depois de Sinais de vida. Assim como Herzog, 

o protagonista do filme, Stroszek (um soldado alemão na Grécia) descobre a paisagem 

com os moinhos de  vento. O personagem  se  entrega  à  loucura  e  termina  trancado 

numa fortaleza (como Hölderlin em sua torre), atirando fogos de artifício. Herzog não 

sucumbe  à  loucura.  Lida  com  a  experiência  de  outra  maneira,  tornando‐se  um 

articulador de sonhos. 

O personagem do Alienígena é  introduzido desde o  início. Neste filme, não há 

segredo ou ambiguidade com relação à  identidade do narrador. Ele olha diretamente 

para a câmera, dirigindo‐se ao espectador terrestre e diz: “Esta é minha história, agora 

é minha história. Eu venho das distantes fronteiras de Andrômeda.” 

  É preciso  lembrar que, ao  ir  filmar Fata Morgana, Herzog tinha a  intenção de 

realizar  um  filme  de  ficção  científica  sobre  Andrômeda,  o  que  não  aconteceu. 

Portanto, desde o início de Além do azul selvagem fica estabelecido o vínculo com Fata 

Morgana prenunciando um ciclo que se fecha. É um roteiro, tanto de cinema como de 

viagem, que chega ao fim de sua narrativa ou jornada. O Alienígena declara: “Eu venho 

de outra galáxia, uma galáxia azul. Muito, muito além do seu mundo. Eu venho do  

além do azul selvagem”.  

A trilha musical começa com um trecho de O Messias, oratório de Händel, Dank 

sei Dir, Herr. A letra da música é um preâmbulo da história que o Alienígena se prepara 

para contar:  

 

Obrigado Senhor, Obrigado Senhor, O Deus, Tu guiaste teu povo  Contigo E agora Tua é a terra.  Antes mesmo desses inimigos nos ameaçarem, Tua mão nos protegeu; Com Tua graça nos salvaste  Obrigado Senhor, Obrigado Senhor, O Deus, 

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Tu guiaste teu povo  Contigo E agora Tua é a terra.  Obrigado Senhor, Obrigado Senhor, O Deus, Tu guiaste teu povo  Contigo, Com Tua graça nos salvaste 

 

  E  tem  início o primeiro bloco, ou  capítulo do  filme, ainda  sobre a música de 

Händel. 

I. Réquiem para um planeta moribundo  (Requiem  for a dying planet): Sobre 

imagens  do  fundo  do  mar,  o  Alienígena  conta  que  sua  estrela  estava  morrendo, 

ameaçada por um tipo de era glacial. Ele e seu povo tinham de fugir e assim o fizeram 

a  bordo  de  suas  naves  espaciais. Muitos  se  perderam  pelo  universo.  Aparecem  as 

primeiras  imagens de astronautas  sendo  removidos da água. Podem  ser  imagens de 

treinamentos ou o registro da volta à Terra de uma missão espacial. Não há indicações 

para que a factualidade das imagens não interfira com a fábula que conta o Alienígena. 

II. Os primeiros Alienígenas (The Alien Founding Fathers): O bloco começa com 

um  travelling  de  uma  cidade  vazia,  filmado  de  um  carro  em  movimento.  No 

documentário  No  Além  do  azul  selvagem  com  Brad  Dourif,  o  ator  conta  que  ele, 

Herzog e uma pequena equipe de filmagem encontraram essa locação não muito longe 

de Los Angeles, e lá filmaram sem pedir autorizações. As filmagens, que não duraram 

mais que poucos dias, tiveram um caráter improvisado ou  informal com um ator sem 

figurino  ou maquiagem,  sem  iluminação  especial.  Esse  lado  “documental”  de  uma 

história  de  ficção  gera  uma  antinomia  que  contribui  para  a  narrativa  pouco 

convencional do filme.  

O dia é cinzento. Ao  longe, o Alienígena está em pé, perto de uma construção 

abandonada. A arquitetura, com colunas e frontão, é uma  imitação precária do estilo 

greco‐romano e pode ter abrigado um shopping center ou um banco. A presença de 

um  personagem  que  aceitamos  ser  um  extraterrestre  permite  outras  leituras  da 

construção:  seria  o  quartel  general  dos  alienígenas  na  Terra?  A  casa  do  último 

remanescente  dos  alienígenas  que  agora  nos  conta  sua  história?  Isto  explicaria  a 

arquitetura que  tenta  reproduzir um estilo “terrestre”, mas não consegue. Explicaria 

também a desolação do lugar. 

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O  Alienígena  está  agora  em  primeiro  plano,  com  a  construção  em  segundo 

plano. Conta como foi a chega dele e de outros alienígenas à Terra, diz que foram bem 

recebidos. Corta para  imagens de arquivo em preto e branco dos primeiros voos de 

avião. Não  há  indicação  de  que  imagens  são, mas,  segundo minhas  pesquisas,  são 

imagens dos  irmãos Wright. Herzog enfatiza as aterrisagens. Vemos o piloto  sair do 

avião (aparentemente Orville Wright), e ser recebido efusivamente por uma multidão 

eufórica. É carregado e aclamado como um semideus.  

Esse material e sua montagem constitui uma rima narrativa e visual com Fata 

Morgana: imagens de aviões aterissando logo no início do filme, sinalizando a chegada 

de  seres  celestes.  Herzog  faz  o  paralelo  entre  o  primeiro  homem  que  voou  (se 

aceitarmos, no âmbito do  filme, que esse título cabe a Orville Wright e não a Santos 

Dumont)  e,  portanto,  aterrissou  na  Terra,  e  o  primeiro  extraterrestre  a  chegar  ao 

planeta. 

O Alienígena  fala das vicissitudes da vida na Terra: o desespero causado pela 

saudade. Um dos alienígenas tentou cometer suicídio, mas não morreu. Encontramos 

nos  alienígenas  um  estado  de  espírito  que  remete  ao  romantismo  de  outros 

personagens  já citados de Herzog. Corta para  imagens de arquivo, provavelmente da 

mesma época dos primeiros voos dos  irmãos Wright  (preto e branco, cinema mudo, 

portanto, material filmado antes dos anos de 1930). Desta vez, um homem se joga na 

frente de um caminhão. Não morre: levanta‐se e acende um cigarro com amigos. Não 

há  indicação  de  quem  seja.  É  possível  que  tenha  sido  um  dos  primeiros  dublês  da 

história do cinema. 

O  Alienígena  conta  que  seus  antepassados  foram  grandes  cientistas,  mas, 

depois  da  longa  viagem  que  empreenderam,  os  que  chegaram  à  Terra  não  eram 

grande coisa (“They sucked!”). Ele chegou com a terceira leva. Tinham grandes planos, 

queriam causar boa  impressão, e assim decidiram construir uma grande capital, para 

rivalizar com Washington D.C. Ele mostra a construção e seu entorno e diz que o lugar 

era maravilhoso,  que  havia  linhas  de  trem.  A  construção  era  o  principal  shopping 

center. Construíram um  tribunal e até o Memorial Andrômeda. Mas nada deu certo. 

Ninguém foi à cidade dos alienígenas. Ninguém quis viver na cidade, fazer compras lá 

tampouco. 

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Um trem passa. O Alienígena parece irritado. Ele se aproxima da câmera e fala 

diretamente  para  ela,  num  primeiríssimo  plano.  Confidencia  ao  espectador  que 

alienígenas  têm  recursos  tecnológicos  que  poderiam  destruir  Nova  York  em  dois 

minutos. O  problema,  diz  ele,  é  que  os  alienígenas  são  idiotas. Mostra  a  paisagem 

deserta,  estéril  e  diz:  “Detesto  dizer  isso,  mas  nós,  alienígenas,  somos  todos  uns 

idiotas. Somos fracassados. Isto me deixa muito triste.” 

  Começa a trilha musical Corona, de Toru Takemitsu. O Alienígena conta que um 

dentre  eles  teve  êxito:  graças  ao  seu  conhecimento  sobre  o  céu  e  naves  voadoras, 

tornou‐se  Presidente  do  Comitê  de  Planejamento  Estratégico  do  Pentágono.  Corta 

para  imagem de arquivo em preto e branco de um homem não  identificado, sentado 

num banco de  jardim que afirma que a aviação recebeu pouco reconhecimento pela 

sua  atuação  na  Primeira  Guerra  Mundial,  mas  ficou  claro  que,  com  o  tempo  e 

equipamentos  apropriados,  a  aviação  há  de  se  tornar  um  instrumento  de  guerra 

importante. 

Pela sua maneira de falar, postura e roupas (um terno sóbrio e bem cortado), o 

personagem  deve  ter  ocupado  um  cargo  importante  em  determinado momento  da 

história americana, provavelmente antes da Segunda Guerra Mundial. Para Herzog, a 

identidade do personagem é tão  irrelevante quanto a de personagens sem dimensão 

histórica,  como  as  duas mulheres  de  Lições  da  escuridão.  No  caso,  o  personagem 

interessa à narrativa porque, em primeiro  lugar, é parte de um material que compõe 

uma rima visual com os demais materiais de arquivo em preto e branco. Além disso, a 

postura  física do personagem, sua maneira de  falar  (composta, contida e calma, que 

denota bom  senso) e o  conteúdo de  seu depoimento  (postura belicosa e  agressiva) 

possuem a estranheza necessária para criar a sensação de deslocamento narrativo. 

Há um corte para  imagens de arquivo sobre uma cantata de Händel. Trata‐se 

do registro do voo aparentemente experimental de uma máquina voadora que lembra 

um disco voador pela forma circular e achatada. Voltam as  imagens de entulho e  lixo 

ao ar livre. 

III. O mistério do OVNI Roswell  reexaminado  (The Roswell UFO mystery  re‐

examined):  O  Alienígena  está  em meio  ao  entulho.  Há móveis  velhos,  a  carcassa 

enferrujada de um ônibus, eletrodomésticos e o que  restou de casas pré‐fabricadas. 

Elas estão cortadas ao meio e é possível ver o  interior da habitação, como se fossem 

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grandes  casas de bonecas. O Alienígena achava que estava  se dando bem na Terra, 

pois  tinha  conseguido  um  trabalho  na  CIA.  Mas,  encontrou  pessoas  interessadas 

apenas em suas carreiras. Tentou dizer a eles que  sabia de coisas, mas ninguém  lhe 

deu  ouvidos.  Ficou  furioso  com  tanto  descaso,  e,  por  esse motivo,  resolveu  contar 

tudo a nós, espectadores.  

Diz  que  participou  do  resgate  em  Roswell.  Fala  como  se  não  cogitasse  o 

espectador não ter familiaridade com o assunto. Em nenhum momento explica a que 

se refere. O que ficou conhecido nos Estados Unidos como o “incidente Roswell”64 foi 

o resgate de destroços não identificados perto da cidade de Roswell, no Novo México, 

em  junho  de  1947,  supostamente  atribuído  à  queda  de  uma  nave  espacial  e  seus 

ocupantes. No contexto político da Guerra Fria, o  incidente  inflamou o debate sobre 

extraterrestes e teorias conspiratórias por anos. Fotos de supostos alienígenas mortos 

estamparam  revistas  pelo  mundo.  Apesar  de  as  Forças  Armadas  americanas 

desmentirem  histórias  sobre  naves  espaciais,  Roswell  tornou‐se  referência  nas 

elucubrações sobre objetos voadores não identificados.  

Até  recentemente, o “incidente Roswell” ainda causava dúvidas e discussões. 

Em  1989,  um  agente  funerário  americano  ofereceu  à  imprensa  o  relato  detalhado 

sobre as autópsias que teriam sido feitas nos alienígenas. Na década de 1990, a Força 

Aérea americana conduziu duas  investigações: a primeira, em 1995, concluiu que os 

destroços  encontrados  em  Roswell  eram  de  um  balão  espacial  cujo  objetivo  era 

monitorar as ondas de  som emitidas por  testes nucleares  soviéticos. A  segunda, em 

1997, concluiu que os alienígenas mortos eram o resultado de alterações psicológicas 

das pessoas que alegavam  tê‐los visto, na maior parte militares que  tinham passado 

por situações de estresse, como acidentes de trabalho. 

É possível compreender por que o  incidente chamou a atenção de Herzog. Há 

nele a dimensão da miragem, ou seja, daquilo que vemos, mas não temos certeza se 

existe. Há a imagem que vemos pela primeira vez, no caso uma nave espacial e seres 

alienígenas.  Há  a  dimensão  da  loucura,  que  se  transforma  na  verdade  de  um 

personagem,  e  há  a  poesia  de  acreditar  em miragens,  sonhos  e  seus  personagens, 

como moinhos de vento e naves espaciais. 

64 Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Roswell_UFO_incident>. Acesso em: 11 nov. 2011. 

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Segundo  o  Alienígena  (a  esta  altura,  o  contrato  não  pode  ser  desfeito:  o 

espectador não tem mais como contestar a veracidade da história que lhe é contada), 

os  destroços  da  nave  encontrada  em  Roswell  foram  escondidos,  pois  “eles”  não 

sabiam o que fazer com eles, os destroços. A quem se refere o pronome? O Alienígena 

não esclarece se  fala de cientistas, das Forças Armadas ou da CIA  (onde  trabalhava). 

“Eles” mentiram. Disseram  que  não  passava  de  invenção  da mídia.  Cinquenta  anos 

mais tarde, ajudados por novas tecnologias, “eles” decidiram reexaminar o caso. E foi 

este o grande erro.  Imagens de um comboio de carros e caminhões: o Alienígena diz 

que desde o início aquele comboio foi um sinal de mau agouro. 

As imagens do comboio correm sobre a música de Ernst Reijseger, com as vozes 

dos cantores sardos e de Mola Sylla. Uma carga não  identificada (imagens de arquivo 

da NASA) é levada para um depósito e um grande portão de metal se fecha. Foi tudo 

feito em  surdina,  sem  televisão,  sem  imprensa,  sem  fotos. Segundo o Alienígena, as 

imagens  que  vemos  são  o  único  registro  existente  da  operação.  O  que  aconteceu 

dentro daquele  lugar teve consequências gravíssimas e nós sequer temos consciência 

disso:  “Tudo estava hermeticamente  selado. Até o  caminhão  tinha um  invólucro de 

plástico. Algo perigoso poderia estar lá”. 

O  que  “eles”  não  sabiam,  é  que  aqueles  destroços  vinham  do  planeta  do 

Alienígena. Era uma sonda enviada antes da chegada dos alienígenas para investigar o 

planeta. Havia uma forma de vida desconhecida na Terra. O que “eles” não sabiam é 

que,  enquanto  examinavam  os  destroços,  algo  invisível  se  desprendia  deles,  algo 

tóxico que impregnava a pele humana. E “eles” levariam isto para fora daquele recinto, 

espalhando pelo mundo. Quando isso aconteceu, houve pânico, pois de nada serviram 

as quarentenas. Então, mandaram um grupo de astronautas em uma missão  com o 

objetivo  de  procurar  um  novo  lugar  para  os  seres  humanos  viver,  ou  seja,  uma 

alternativa para a Terra. 

IV. A missão para as Fronteiras Externas (The mission to the Outer Fringes): O 

bloco abre com imagens de arquivo da NASA, filmadas do ônibus espacial Atlantis, em 

missão no espaço. A missão STS – 34 aconteceu em 1989, quando o ônibus espacial e 

seus cinco tripulantes (o comandante Donald E. Williams, o piloto Michael J. McCulley 

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e os especialistas Franklin R. Chang‐Diaz, Shannon W. Lucid e Ellen S. Baker) passaram 

cinco dias em órbita.  

O Alienígena relata que a missão dos astronautas iria até as fronteiras externas 

do nosso sistema solar. (O Alienígena se refere ao “nosso sistema solar”, o que é uma 

perspectiva humana. Este pequeno equívoco da narrativa revela a verdadeira voz do 

Alienígena, o humano Werner Herzog). Os astronautas não imaginavam o quão terrível 

seria  a  jornada. Era uma  viagem  sem  volta. As  imagens que  vemos dos  astronautas 

dentro da nave espacial são os registros de viagem enviados a Terra.  

O  Alinígena  relata  que  ficaram  trancados  na  nave  por  anos:  imagens  de 

astronautas  flutuando no  interior da nave, sem gravidade. São  imagens do dia a dia: 

eles leem, arrumam suas coisas, se alimentam. A câmera flutua também, gira sobre si 

mesma. É impossível dizer que lado é para cima ou para baixo. A montagem intercala 

imagens da Terra  vista do espaço. Os  astronautas olham pela escotilha. É  relevante 

lembrar que essas imagens foram feitas pelos próprios astronautas. 

  Os astronautas orbitaram em  volta da Terra por muito  tempo. A missão não 

estava dando em nada. Precisavam ir mais longe. A epidemia causada pelos micróbios 

dos alienígenas tinha sido controlada. Mesmo assim, o pessoal de Terra encorajou os 

astronautas  a  prosseguirem  sua  busca  por  um  lugar  seguro,  como  precaução. Mas, 

eles não tinham ideia de quanto o universo era hostil.  

O  Alienígena  diz  que  poderia  ter  avisado.  Afinal,  ele  sabe  tudo  sobre  esse 

assunto.  Conta  que  os  astronautas  mandaram  uma  sonda  explorar  as  fronteiras 

externas  do  sistema  solar.  Chamaram  a  sonda  Galileu.  Os  astronautas  esperaram 

semanas, meses. Um dia, receberam imagens enviadas pela sonda. Os lugares visitados 

por  Galileu  jamais  acolheriam  seres  humanos.  As  imagens  mostram  explosões,  a 

superfície de planetas inabitáveis, incandescentes, que lembram o solo de lava e fogo 

em Lições da escuridão. O Alienígena conta que, para os matemáticos, a  solução do 

problema estava na mudança de trajetória. 

São  inseridos  os  primeiros  depoimentos  do  documentário:  matemáticos  e 

cientistas.  Herzog  costura  as  explicações  dos  matemáticos  com  a  narrativa  do 

Alienígena de maneira que um discurso sustenta o outro. Nesse momento, é notável o 

fato  que  a  fábula  que  o  Alienígena  conta,  por  mais  absurda  e  fantasiosa,  é 

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provavelmente  mais  acessível  e  intelegível  à  média  dos  espectadores  do  que  as 

explicações “reais” dos cientistas sobre astrofísica.  

Enquanto isso, a viagem no espaço se prolonga. Os astronautas estão cada vez 

mais distantes da Terra: não há mais nascer do sol, não há nada para se ver  lá  fora, 

exceto pontos de  luz. Eles começam a se conformar com uma vida diferente. A partir 

da música de Reijseger, vemos imagens dos astronautas envolvidos com suas tarefas e 

rotinas cotidianas. O espectador  sabe que,  talvez, não haja volta possível. Assim, do 

ponto  de  vista  do  espectador,  a  rotina  e  execução  de  tarefas  perde  o  sentido.  O 

absurdo  da  situação  gera  um  sentimento  de  claustrofobia  e  aflição  em  quem  pode 

apenas assistir, sem poder fazer nada. 

V. A morte de um sonho (The death of a dream): O Alienígena conta que ele e 

seus companheiros vieram dos confins da Galáxia de Andrômeda. Explica o quanto é 

longe, e, por  isso, sempre soube que a missão dos astronautas  fracassaria. Diz que o 

primeiro pecado dos seres humanos foi criar porcos, pois foi quando deixaram de ser 

nômades para  se  tornarem  sedentários. O  sedentarismo  leva  a  assentamentos que, 

por sua vez, engendram vilarejos, que engendram cidades e todos os problemas que 

levarão à destruição da humanidade. Criar cachorros não é um pecado, porque cães 

nos  seguem  para  onde  formos.  Porcos  são  o  pecado. Nesta  parte  do monólogo  do 

Alienígena, podemos quase ouvir a voz de Herzog expondo sua aversão por cidades e 

os males da civilização. É um dos poucos momentos em que ele não esconde o aspecto 

pessoal do monólogo. Herzog sabe disso e, ao final da diatribe a respeito de porcos, o 

Alienígena diz: “Fugi do assunto”. Dos três filmes estudados, Além do azul selvagem é 

o que faz mais concessões ao humor, mesmo se sutis e dentro de um contexto que não 

é cômico, mas trágico.  

A  nave  está  agora  mergulhada  na  escuridão  do  espaço.  Os  astronautas 

procuram meios  de manter  seu  equilíbrio mental.  Com  o  fundo  do  violoncelo  de 

Reijseger,  ouvimos  vozes  de  astronautas  falando  pelo  rádio.  As  imagens  filmadas 

dentro  da  nave  espacial  vão  se  tornando  inquietantes.  Os  astronautas  fazem 

extamente o que faziam nas imagens anteriores, mas a narração criou uma tensão que 

é acentuada pela trilha musical. O fato de a câmera flutuar e não sabermos onde fica o 

chão contribui para construir a sensação de desconforto e para a impressão de falta de 

estabilidade psicológica dos astronautas. A energia da nave estava acabando e o caos 

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começou  a  tomar  conta da  situação. O Alienígena  comenta que os  astronautas não 

tinham noção do quão longe tinham ido. 

VI.  A  matemática  do  transporte  caótico  (The  mathematics  of  chaotic 

transport):  Algo  precisava  ser  feito  para  aumentar  drásticamente  a  velocidade  da 

viagem. Um matemático pária talvez tivesse a solução. O matemático está em quadro. 

Ele  conta  que,  quando  descobre  algo,  guarda  o  segredo  por  um  tempo,  pois  quer 

aproveitar a  sensação de  ser a única pessoa no mundo a  ter conhecimento de algo. 

Conta como descobriu uma teoria sobre túneis no sistema solar e que serviriam para o 

transporte de seres humanos. Sua exposição é didática, ele usa slides do  tipo power 

point para  ilustrar o que diz. Herzog não se preocupa em matizar a mudança de tom 

entre  o  monólogo  dramático  e  emocional  do  Alienígena  e  o  depoimento  do 

matemático, que é didático e impessoal. Eles falam da mesma coisa, mas de um ponto 

de vista diferente e por meio de  imagens distintas. Não há unidade de estilo,  como 

encontramos em Fata Morgana e Lições da escuridão. As costuras da montagem são 

propositalmente  visíveis,  não  porque  a montagem  não  seja  boa.  Pelo  contrário,  ela 

consegue  dar  conta  de  expor  uma  história  linearmente  com  um  material  fílmico 

gerado  por  fontes  variadas  em  suportes  diferentes  e,  portanto,  aparentemente 

incongruente.  A  montagem  consegue  manter  o  curso  da  narrativa  auxiliada  por 

raccords entre um material e outro. 

Os  astronautas  são  orientados  a  seguir  até  o  planeta  do Alienígena,  que  diz 

ficar muito bravo por não ter sido avisado da decisão: “Logo eles estariam à porta do 

além do azul selvagem.” Imagens de um planeta azul. Os astronautas se preparam para 

aterrissar. Uma escotilha se abre. O Alienígena acredita que o que torna seu planeta 

tão bonito é o fato de ele estar congelado. Só de pensar, fica com saudades de casa. Os 

astronautas  descem,  cortam  o  gelo  e,  segundo  o  Alienígena,  penetram  em  uma 

atmosfera de hélio líquido. As imagens são na realidade o fundo do oceano antártico. 

Para o Alienígena, é quase intolerável assistir de longe aos seres humanos explorando 

seu planeta. Ele diz ouvir o som do além do azul selvagem: “Esse é o meu lar”. Na trilha 

sonora do  filme, ouvimos o som de  respiração por meio de  tanques de oxigênio e o 

que parece ser o som de grilos em um jardim. 

VII. Mistérios do Azul Selvagem  (Mysteries of  the Blue Yonder):  Imagens de 

um mergulhador no mar da Antártida, que nada sob uma crosta de gelo. O som ainda é 

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a  respiração  ritmada  por  um  tanque  de  oxigênio.  Vemos  ao  longe  silhuetas  que 

flutuam na água. As  imagens sob a água dialogam esteticamente com as  imagens do 

espaço.  A montagem  faz  com  que  o  espelhamento  cósmico  de  que  fala  Bachelard 

encontre uma representação nessas imagens.  

O  Alienígena  acrescenta  que,  fora  o  gelo,  outra  coisa  deixa  o  planeta  dele 

bonito: a vida selvagem. Os animais costumam tentar fazer contato, mas agora estão 

tristes,  pois  ficaram  sozinhos.  Medusas  e  outros  animais  aquáticos  passam  pela 

câmera.  Pela  sua  forma,  alguns  poderiam  ser  confundidos  com  pequenas  naves 

espaciais ou discos voadores. O Alienígena constata que os astronautas não tratam as 

criaturas de seu planeta com respeito. De fato, um mergulhador brinca com um animal 

aquático como se fosse uma bola de tênis ou um brinquedo. 

O mar  parece  ter  um  céu  de  nuvens  que  lembram  a  fumaça  de  Lições  da 

escuridão:  na  realidade,  é  a  crosta  de  gelo  vista  por  baixo,  ou  da  perspectiva  do 

mergulhador. Os astronautas‐mergulhadores brincam com animais sem delicadeza. A 

trilha musical é a voz de Mola Sylla, que emite um som que poderia ser a respiração de 

um animal em estado de agonia. A ação dos mergulhadores  sobre a  fauna aquática 

tem  um  paralelo  na  situação  dos  animais  de  Fata Morgana:  também  são  animais 

estranhos que são oprimidos, incomodados e acuados por seres humanos.   

Depois de um dia de explorações, os seres humanos começaram a vislumbrar a 

possibilidade de  fundar uma  colônia no planeta gelado. Como  seria essa  colônia? O 

matemático explica que o caos não é algo negativo, pois, segundo sua teoria, geraria a 

energia necessária para o transporte por meio de túneis no espaço. 

VIII. Utopia da colônia ideal (Utopia of the ideal colony): O matemático explica 

que a noção de viajar no espaço  implica colonizar o espaço. Ele tenta  imaginar como 

isto se daria: chega à conclusão que o meio ideal seria algo como um shopping center 

no espaço, onde haveria de  tudo, de  lojas  a  academias e bares. Ele prevê que este 

seria  o mais  perfeito  paradigma  de  colonização  do  espaço.  Esta  afirmação  deixa  o 

Alienígena perplexo, que rebate com humor: “Shopping center? Eu poderia ter dito a 

eles! Nós tínhamos um plano parecido e vocês viram que não funcionou. Onde estão 

os consumidores, se me permite perguntar? Onde estão? Fico tão triste de pensar em 

toda aquela mercadoria jogada lá, sem ter sido vendida”. 

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  Em pé, em frente ao shopping center abandonado, o Alienígena diz que o que o 

deixa mais triste é o fato de seu planeta ter começado a morrer há centenas de anos e, 

agora seres humanos o consideram como um substituto em potencial para a Terra. Já 

começaram a mapear as áreas que seriam apropriadas. A trilha musical é o violoncelo 

de  Reijseger  com  a  voz  de  Dora  Juarez  sobre  imagens  do  fundo  do mar.  Homens 

nadam  sob  a  crosta  de  gelo.  O  Alienígena  relata,  em  um  tom  indignado,  que,  no 

segundo  dia,  exploraram  lugares  adequados  para  instalar  canos  de  esgoto,  cabos 

elétricos e um sistema de fornecimento de oxigênio. 

Em seguida, os astronautas chegam ao grande vale do planeta. Os alienígenas 

costumavam  chamar  esse  lugar  de  Catedral  Azul.  Surgem  imagens  de  formações 

rochosas  ou  arrecifes  submarinos  iluminados  pela  luz  difusa,  filtrada  pela  crosta  de 

gelo. Mais uma vez, as  formações de gelo sob a água evocam a  fumaça de Lições da 

escuridão. O  impacto das  imagens dos dois  filmes  vem da própria natureza, não de 

efeitos especiais. Se em Lições da escuridão as cores eram o ocre, o cinza em várias 

tonalidades, e o negro, a palheta de Além do azul selvagem é essencialmente azul com 

alguns amarelos. No entanto, não é o amarelo puro, saturado e denso da palheta de 

Fata Morgana,  mas  um  amarelo  cuja  transparência  recebe  a  luz  que  o  atravessa 

tornando‐o dourado. Não há nitidez em muitas imagens, o que borra o realismo nelas 

contido, conferindo‐lhes no lugar uma qualidade onírica e “fora do tempo”. 

Em Fata Morgana não há claro‐escuro, pois a luz do sol é onipresente, a ponto 

de ser opressora. Nos dois filmes seguintes, o claro‐escuro se faz presente, mas não é 

um contraste como encontramos na pintura de Caravaggio, ou seja, o contraste entre 

uma  luz  exógena  à  imagem  que  incide  sobre  certas  partes  de  uma  cena  deixando 

outras no escuro. No caso, o contraste se dá entre uma luz endógena, que alude a um 

estado de  introspecção ao despontar nas trevas, como o sol ou a  lua das pinturas de 

Caspar Friedrich, ou a chama das velas de Georges de La Tour. Esse pequeno ponto de 

luz exerce uma força de atração centrífuga, tanto sobre personagens que fazem parte 

da imagem, como sobre o olhar do espectador.  

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Figura 26 ‐ São José carpinteiro (G. de La Tour, 1642) 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Figura 27 ‐ Além do azul selvagem, espaço (W. Herzog, 2005) 

 

Figura 28 ‐ Além do azul selvagem, buraco no gelo (W. Herzog, 2005) 

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Há um corte para uma breve imagem do matemático de olhos fechados, talvez 

registrada  enquanto  esperava  pelo  início  das  filmagens.  Ele  espirra  e  a  imagem  é 

imediatamente cortada. O uso dessa imagem denota a intenção de reiterar a presença 

do humor dentro de uma narrativa  trágica. Permite  também pensar que, depois de 

suas declarações sobre um shopping center como base ideal para presença humana no 

espaço, Herzog castiga imageticamente o matemático por emitir essa opinião, que vai 

contra todo o ideário herzoguiano a respeito de colonização, consumo e urbanização. 

 IX. O túnel do tempo  (The tunnel of time):  Imagens de um buraco no gelo e 

mergulhadores  passando  por  ele.  O  Alienígena  relata  que  esse  era  um  portal  do 

tempo, e que os astronautas sabiam que poderiam passar por ele. Porém, ao fazê‐lo, 

se dissolveriam em partículas, e, consequentemente, tornariam‐se pura  luz. As vozes 

dos  cantores  sardos  acompanham  as  acrobacias  subaquáticas  dos  mergulhadores. 

Toda a ação gira em  torno do buraco no gelo, que é  também um buraco de  luz. As 

bolhas de oxigênio têm uma função estética e narrativa: por um  lado, dão textura às 

imagens e ajudam a difundir a luminosidade. No contexto da narração, representam os 

astronautas  virando  partículas  ao  passarem  pelo  buraco  no  gelo  ou,  segundo  o 

Alienígena, pelo portal do tempo.  

Depois  dessas  sequências  filmadas  por  Henry  Kaiser,  há  um  corte  para  as 

imagens de aquivo da NASA: astronautas emergem de dentro de um tanque de água, 

num  raccord que dá continuidade à narrativa. Por um  lado, os astronautas entraram 

no portal do tempo (no planeta do Alienígena) e, agora, saem pelo outro lado (de volta 

a Terra), tendo viajado pelo tempo na condição de partículas e luz. 

O Alienígena relata que demoraram a reassumir a  forma humana. Sob a água 

do tanque da NASA, é visível uma nave espacial. Os astronautas pensavam que apenas 

quinze anos  tinham  se passado. Mas  sua existência de volta à Terra não passava de 

ilusão. Na realidade, tinham viajado tão rapidamente no túnel do tempo que a jornada 

tinha  acontecido  em  uma  dimensão  paralela. Na  realidade,  oitocentos  e  vinte  anos 

tinham se passado na Terra. As imagens mostram primeiros planos dos astronautas de 

volta à Terra, olhando para a câmera, como se fossem tirar um retrato.  

Começaram,  então,  a  olhar  para  seu  planeta  sob  outra  luz,  enxergando 

diferentes  possibilidades.  Corta  para  o  depoimento  de  um  astronauta:  ele  diz  que 

espera que um dia a humanidade possa viver em outros planetas ou asteroides. Nesse 

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caso, a Terra poderia ser protegida, como um grande parque nacional preservado pela 

humanidade.  A  Terra  seria  uma  área  protegida  para  onde  os  seres  humanos  iriam 

passar férias. 

X. A  verdadeira  história  da  volta  (The  true  story  of  their  return): O  último 

bloco abre com  imagens aéreas de uma montanha com um altiplano em seu topo. O 

Alienígena  relata que, quando os astronautas voltaram oitocentos e vinte anos mais 

tarde,  não  havia mais  pessoas  na  Terra.  O  planeta  os  esperava  como  um  grande 

parque nacional. O altiplano  serviu de  terreno de pouso, pois não havia mais pistas, 

cidades, pontes, represas, bancos, dinheiro, tempo ou sopro. A Terra tinha voltado a 

sua beleza original. Era pré‐histórica de novo. Imagens aéreas de grandes extensões de 

vegetação envolta em bruma.  

Em  Fata  Morgana  e  Lições  da  escuridão,  etapas  anteriores  da  viagem,  a 

perspectiva de salvação ou recomeço era distante e até  impossível. Em Além do azul 

selvagem, as tomadas aéreas finais não mostram o horror da guerra, a destruição e a 

desolação.  Oferecem  ao  espectador  a  visão  da  Terra  em  seu  esplendor,  com 

cachoeiras, árvores  frondosas, a bruma que as envolve delicadamente como um véu 

matinal. A luz de Fata Morgana faz pensar num eterno meio‐dia, com o sol inamovível 

no centro do céu. Em Lições da escuridão, a  luz é crepuscular e se harmoniza com a 

trilha  de  Wagner  em  O  Crepúsculo  dos  deuses.  Em  Além  do  azul  selvagem, 

caminhamos  (ou  voamos)  em  direção  a  uma  escuridão mais  profunda  do  que  a  da 

noite, a escuridão mais absoluta que há: o universo.  

Ao final do percurso, chegamos ao fim de tudo: do sistema solar, do universo, 

da luz e da razão. Mas, apesar de termos encontrarmos uma alternativa para a vida na 

Terra, optamos por regressar, talvez compelidos por algo maior do que a razão. Dessa 

vez, ao voltarmos, não nos deparamos com o planeta  ferido de Lições da escuridão. 

Durante nossa ausência, a Terra teve tempo de se regenerar, não sabemos se sozinha 

ou se auxiliada por deuses ou forças divinas. Se pensarmos nas palavras do oratório de 

Händel no início do filme, podemos concluir que Deus abençoou a Terra mais uma vez 

e guiou o ser humano de volta a ela.  

Mas,  talvez,  para  fechar  o  círculo  formado  pela  trilogia  de  documentários 

poéticos,  caibam melhor  as  palavras  que  fecham  Fata Morgana,  primeiro  filme  da 

trilogia, e que, em uma iteração herzoguiana, repetimos agora:  

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 Não há nada como a paz da Idade de Ouro. A guerra foi proclamada morta pela Paz. Nada é maior que a Areia. Nada é maior que a Paz. A Terra está encantada com a Paz. 

  

  Se  em  Fata Morgana  essas  palavras  são  pronunciadas  em meio  a  situações 

inconclusas,  absurdas,  e  acompanham miragens  que  lhes  conferem  o  tom  de  uma 

prece, em Além do azul selvagem, diante das  imagens de uma natureza exuberante, 

elas soam como uma graça concedida. 

Assim  se  encerra  o  círculo  poético  iniciado  em  Fata Morgana.  A  história  da 

humanidade  foi  contada  com  imagens  da  terra,  do  mar,  do  céu  e  do  espaço. 

Compreendemos que todas essas coisas fazem parte de um todo, e que o ser humano 

não é mais poderoso ou  importante do que o meio que o  acolhe. Cabe  a ele  ter  a 

sabedoria para simplesmente saber viver em seu meio. As vozes dos cantores sardos 

acompanham a última parte da viagem sobre a Terra, que tem agora mais uma chance 

de renascer. E ao ser humano é dada uma nova oportunidade de viver no seu planeta 

de origem. 

 

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CONSIDERAÇÕES FINAIS 

 

 

 

 

 

Die Gedanken sind frei.65 

(Bruno S.) 

65 Os pensamentos são livres. (Tradução nossa) 

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Ao longo deste trabalho, foi reiterado que os documentários de Werner Herzog 

representam uma viagem. Foi exposto como o diretor expressa sua busca poética por 

meio de textos, sons e  imagens capturadas nos mais diversos  lugares da Terra, até o 

espaço.  Foi  dito  que Herzog  é  generoso  ao  convidar  o  espectador  a  acompanhá‐lo 

nessa  jornada que não  se  confina  ao mundo  físico,  colocando‐o diante de questões 

que dizem  respeito à  sua própria  condição de  ser humano, dentro do meio em que 

vive, em uma dimensão existencial, espiritual, sensorial e poética. 

Já  tinha  viajado  com  Herzog  na  condição  de  espectadora  de  seus  filmes.  O 

trabalho  que  empreendi  com  esta  pesquisa me  permitiu  uma  segunda  viagem  de 

caráter mais  pessoal, mais  profunda  e  reveladora.  Percebi  desde  o  início  que  não 

poderia me ater ao perímetro do cinema. Contudo, como os astronautas de Além do 

azul selvagem, não  imaginava que a viagem que faria por meio das minhas pesquisas 

me levaria tão longe.  

Para compreender Werner Herzog e sua obra, tive de mergulhar até onde  foi 

possível naquilo que o motiva, comove, indigna, aguça sua curiosidade, seu intelecto e 

seus sentidos. Se tivesse de descrever o que digo com uma imagem, diria que desci aos 

porões  de  um  grande  navio  para  ver  a  casa  de máquinas.  Enquanto  no  deque  as 

pessoas se regozijam com a paisagem, o vento e o sol, no porão, as engrenagens dos 

motores giram sem descanso, como os moinhos de vento de Sinais de vida e Além do 

azul selvagem, gerando a energia que torna a viagem possível. 

Por várias vezes, receei estar me distanciando do escopo do trabalho ao parar 

de escrever para mergulhar na ópera de Wagner até chegar à Edda Poética; ao  ler a 

poesia de Hölderlin e as cartas de Novalis a Schlegel discutindo a verdadeira essência 

da  poesia;  ao  pesquisar  os  tipos  de  aviões  que  havia  no  início  do  século  XX;  ao 

vasculhar arquivos virtuais sobre objetos voadores não  identificados; ao passar horas 

ouvindo músicas de grupos experimentais da década de 1970, mas  também Händel, 

Vivaldi, Couperin  e  alguns  compositores de que nunca  tinha ouvido  falar;  ao  tentar 

descobrir qual o idioma nativo do Senegal; ao reler um livro que tinha lido pela última 

vez  quando  tinha  seis  anos;  ao  estudar  trechos  da  Bíblia;  ao  analisar  a  pintura 

romântica pelo olhar de um cineasta; ao me perguntar por dias o que de fato era uma 

miragem. 

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Compreendi que esse era um  caminho para  se  chegar à essência da obra de 

Herzog, pois a poesia é feita de tudo o que há no mundo, conjugado com tudo que há 

dentro  de  nós.  Precisava,  em  um  primeiro  estágio,  me  afastar  de  um  recorte 

específico,  pois  isso  era  o  que  Herzog  abominava:  uma  camisa  de  força  para  o 

pensamento.  Precisava  expandir‐me  para  ter  para  onde  voltar:  a  poesia. Mas  não 

podia  chegar  a  ela  de  mãos  vazias.  Tinha  de  ampliar  meu  repertório,  refinar‐me 

intelectualmente  e,  oxalá,  espiritualmente.  Precisava  permitir  o  contágio  das  coisas 

que um dia contagiaram Herzog para completar o círculo da minha viagem particular. 

E,  como  Herzog,  queria  que  o  resultado  dessa  jornada  –  não  somente  um  texto 

acadêmico,  mas  aquilo  que  descobri  e  aprendi  –  pudesse,  por  sua  vez,  ser 

compartilhado. 

Acredito que este deva ser o principal objetivo de um estudo. O conhecimento 

que  não  é  compartilhado  está  fadado  a  se  perder  e  desaparecer  nas  costuras  da 

história. Não  importa  tanto o  teor de nossas  iluminações como nossa capacidade de 

transmiti‐las. Aqueles que se dedicam à pesquisa e ao conhecimento (seja criação ou 

preservação)  devem  ter  em  si  a  essência  das  pessoas‐livro  que  François  Truffaut 

mostra no filme Fahrenheit 451.  

A  certa altura, o personagem Montag  se  rebela  contra o  sistema que destrói 

toda  forma de  literatura, e diz: “Por trás de cada um desses  livros, há um homem. É 

isto  que  me  interessa”.  A  frase  sintetiza  os  motivos  pelos  quais  o  conhecimento 

reunido  em  um  texto  é  essencial.  O  livro  não  é  um  fim  em  si, mas  um meio  de 

comunicação entre seres humanos para além do  tempo e do espaço. É um canal de 

conhecimento  virtual  que  se  desdobra  numa  abrangente  rede  de  comunicação 

intelectual  e  sensível. Ao  final  da história,  o  fugitivo Montag  encontra  pessoas‐livro 

num bosque. Cada uma memorizou um livro, tornando‐se o livro: enquanto aguardam 

o dia em que ler for de novo permitido, repetem – como em uma iteração herzoguiana 

– o texto continuamente e o ensinam a outras pessoas, preservando e compartilhando 

seu saber. 

  Desde  o  início,  eu  quis  que  a  pesquisa  e,  sobretudo  a  redação,  fosse  um 

processo  criativo.  Estudar  com  a  finalidade de  gerar um  relatório  analítico  sobre os 

filmes de Herzog representava uma  falta de compreensão da poética do diretor e da 

poesia, de um modo geral. Portanto,  impus‐me o desafio de encontrar um  caminho 

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reflexivo  analítico  que,  de  certa  forma,  seguiria  o  processo  criativo  de  Herzog:  a 

articulação de vários elementos harmonizados num  todo que contém um significado 

novo e próprio. Era minha  intenção, por meio deste  trabalho,  retribuir um pouco  a 

Werner Herzog pelo dom que ele  faz de si próprio em sua obra. Meu olhar sobre os 

filmes  releva, espero, mais da  interpretação de um músico diante de uma partitura 

que do âmbito médico, ou  seja, da vivissecção de algo vivo e pulsante como  são os 

filmes de Herzog. 

  Pautada por essa  intenção, procurei nos documentários  relações oriundas do 

universo herzoguiano em si, mas  também me permiti, na qualidade de espectadora‐

pesquisadora criativa, outras tantas, exógenas a esse universo. Para não ficar fora do 

compasso dos meus objetos de estudo, permiti‐me alguns devaneios e um pouco de 

loucura. Queria que,  ao percurso de Herzog em  seus  filmes,  se  somasse o meu  em 

minha  pesquisa,  agregando  uma  nova  abordagem  sensível  à  interpretação  e 

assimilação das obras.  

  Uma  das  primeiras  questões  que  se  colocou  foi  o  uso  da  palavra 

“documentário”  com  relação  aos  filmes  escolhidos.  Em  diferentes  estudos  Fata 

Morgana  é  chamado  de  ensaio  fílmico  (ou  filme‐ensaio),  realismo  poético  e  outros 

termos que remetem ao caráter experimental da obra. O próprio Herzog se  refere a 

Além do azul  selvagem como uma  fantasia em  ficção‐científica,  rechaçando o  termo 

“documentário”. Chego ao  final do  trabalho  como uma  filha pródiga que  volta para 

casa: apesar de Herzog afirmar que “documentários são filmes de ficção disfarçados” 

(HERZOG;  CRONIN,  2002:  239),  por mais  que  o  termo  tenha  um  parentesco  com  a 

palavra “documento”, acredito que esteja comprovado – não apenas no âmbito desta 

pesquisa – que essa relação é hoje mais  fonética do que etimológica. Na medida em 

que até agora não se chegou a um consenso a respeito do termo  ideal para designar 

filmes  como  os  que  compõem  a  trilogia  deste  estudo,  reivindico  o  direito  de  esses 

filmes receberem a denominação “documentário”. 

  A  falta  de  um  termo  apropriado  nasce  da  dificuldade  em  se  definir  o  que  é 

documentário. No prefácio de Espelho Partido, de  Silvio Da‐Rin,  João Moreira  Salles 

diz: 

 

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O fundamental é perceber que, bem mais do que conteúdos ou estratégias narrativas, o que faz um filme ser documentário é a maneira como olhamos para ele; em princípio tudo pode ou não ser documentário, dependendo do ponto de vista do espectador. (DA‐RIN, 2004:  10) 

 

  Algumas páginas adiante, Da‐Rin completa:  

 

De  fato,  estamos diante de um  “regime” de  fácil  constatação  empírica  – qualquer espectador que entre  inadvertidamente em uma sala de cinema, em poucos minutos saberá responder se aquilo a que está assistindo é ou não  um  documentário.  Se  suas  “fronteira  incertas”  desafiam  o estabelecimento  de  uma  definição  extensiva,  capaz  de  esgotar  todas  as ocorrências, isto não nos impede de reconhecer a existência concreta deste “grande regime cinematográfico” – que preferimos chamar de um domínio, entendido como âmbito de uma arte. (2004: 18, grifos do autor) 

 

O  domínio  a  que  se  refere  Da‐Rin  abraça  tanto  o  documentário  jornalístico 

como o documentário poético. Negar o nome “documentário” aos documentários de 

contornos experimentais ou poéticos é afirmar que o documentário tem o direito de 

experimentar e criar, porém, somente até até certo ponto. Na medida em que, além 

desse  indefinível  ponto,  o  documentário  não  se  torna  aquilo  que  entendemos  por 

cinema de ficção, cai numa zona cinzenta, ainda pouco mapeada. O que quero dizer é 

que, em vista da crescente porosidade entre linguagens e abertura para o conceito de 

interdisciplinaridade nos processos criativos audiovisuais, talvez não seja  interessante 

para quem pesquisa cinema documentário – e muito menos para quem faz – criar uma 

área  (ou  domínio)  específica  para  o  documentário  poético,  com  perímetro  e 

nomenclatura próprios. 

Acredito  que  essa  divisão  aja  de  fato  como  uma  forma  de  segregação  que 

fragiliza  um  fazer  já  tradicionalmente  frágil  por  sua  falta  de  penetração  junto  ao 

público.  É  uma  digressão  daquilo  que  está  em  questão,  o  reconhecimento  do 

documentário como possibilidade de um fazer criativo, imaginativo e poético legítimo, 

e  merecedor  de  divulgação  nos  meios  de  comunicação.  Que  documentário  com 

abordagem  jornalística daria conta de comentar a guerra como  faz Herzog em Lições 

da  escuridão?  Que  fato  fidedigno  (ou  conjunto  de  fatos)  daria  conta  das  grandes 

questões que o diretor coloca a respeito da humanidade, de sua origem às indagações 

sobre seu destino, na trilogia apresentada? Será possível dizer que o teor político de As 

brumas  da  guerra  (2003),  de  Errol Morris  é  superior  àquele  contido  nos  filmes  de 

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Herzog? O monólogo do Alienígena de Além do azul selvagem  recebe de Herzog um 

tratamento  menos  crítico  do  que  o  depoimento  de  Robert  McNamara  recebe  de 

Morris? 

  Portanto, o que este estudo aponta, não é a necessidade de se aprofundar a 

discussão sobre o que incluir sob a égide do nome e conceito de documentário, mas o 

quão vasta – e por esse motivo, inquietante – é a zona cinzenta do documentário que 

foge  do  fazer  tradicional,  dentro  do  domínio  mencionado  por  Da‐Rin.  Os  três 

documentários estudados  são pequenas  ilhas a  receber atenção nesse horizonte. Ao 

final da viagem que possibilitaram, demonstram pela sua riqueza que esta foi apenas 

uma etapa.  

Foi abordada a poética de um diretor, sob um recorte. Outras poéticas, outros 

processos  criativos  hão  de merecer  nossa  atenção  em  estudos  futuros.  Contudo,  a 

finalidade de toda reflexão deve ter uma dimensão macrocosmológica: não se trata de 

compreender  apenas  um  processo,  uma  forma  de  pensar  e  perceber  o mundo  em 

particular, mas apreender sensivelmente a essência do ser humano em sua lida com a 

vida pelo viés de sua criatividade, inventividade, inteligência e sensibilidade. É também 

um meio de avaliarmos nossas próprias necessidades e desejos, e medirmos o alcance 

de nosso instinto de sobrevivência como espécie no meio em que vivemos. 

Ao final da pesquisa, fica flagrante que ao fazer filmes poéticos, a  intenção do 

cineasta  não  se  resume  a  encontrar  novas  linguagens  pelo  exercício  que  isto 

representa. Almeja chamar a atenção para algo, atiçando os sentidos do espectador e 

despertando  sua  sensibilidade  para  outras  formas  de  perceber  o  mundo.  Esse 

maravilhamento  não  se  encerra  em  si mesmo.  No  caso  de  Herzog,  ao  capturar  e 

mostrar  imagens  adequadas,  no  sentido  de  puras  e  originais,  ele  oferece  ao 

espectador um novo olhar sobre mundo, pois torna visível um mundo com imanência 

própria, que pode existir por si sem ser subjugado pela ação do ser humano. E quando 

o é, se revolta da forma magnífica. Ao revelar um mundo sublime e majestoso, livre do 

referencial humano – e portanto  caótico –  faz  a pergunta:  como é possível destruir 

algo tão belo? 

Para  Herzog,  mesmo  quando  violenta,  beleza  do  mundo  é  sua  melhor 

autodefesa.  Outras  obras  e  outras  pesquisas  revelarão  diferentes  maneiras  de  se 

perceber e representar o mundo e contar sua história. Estamos apenas começando a 

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jornada  em  direção  ao  mapeamento  de  um  território  poético  em  cinema 

documentário. Toda pesquisa deve obrigatoriamente passar pela condição humana do 

pesquisador antes de seu  intelecto. Se para Montag há um homem por  trás de cada 

livro,  pode‐se  propor  que  por  trás  de  cada  documentário  poético  ou  filme‐ensaio 

também exista.  

Orientados por guias‐criadores, seguimos adiante encontrando um pouco deles 

e muito de nós mesmos em cada uma de suas obras. Se, à luz do conceito de obra de 

arte total nos permitimos pensar numa humanidade total, isto é, não segmentada por 

fatores como etnia ou orientação religiosa, política ou sexual, iremos além daquilo que 

nos aparta e nos ameaça como espécie, chegando à linguagem que nos une como um 

todo: a poesia, sob todas suas formas. E é esta a grande  lição que tiramos do cinema 

documentário do poeta audiovisual Werner Herzog. 

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APÊNDICE 

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1. Entrevista com Rainer Standke, montador de Lições da escuridão 

 

  Em 19 de setembro de 2011, entrei em contato com Rainer Standke1, montador 

do  documentário  Lições  da  escuridão.  Ele  falou  sobre  o  processo  da montagem  do 

filme em detalhe. Transcrevo a seguir o depoimento realizado via skype (São Paulo/Los 

Angeles) que  traz ao presente estudo a perspectiva  interna desse processo, e  revela 

uma  ressonância  sensível entre o processo de  trabalho,  seu  resultado e aspectos do 

estudo sobre o documentário: 

 

  Paola Prestes: Eu gostaria de perguntar  sobre o processo de edição do  filme 

documentário Lições da escuridão. 

  Rainer Standke: Foi em 1991, 1992. Os poços de petróleo estavam prestes a ser 

apagados.  Acho  que montamos  em  novembro.  Foi  rápido,  não  demoramos muito. 

Passamos quatro ou cinco semanas em Viena, onde Werner morava na época. O que 

nós tínhamos era uma grande pilha de filme, em super‐16 mm., negativo. Eu tinha uma 

grande pilha de copiões, cerca de dezesseis horas, o que, pelos padrões atuais, não é 

muito. Mas, em termos de filme, é bastante. 

  Uma grande parte tinha sido filmada em câmera lenta por Paul Berriff. Ele tinha 

chegado ao Kuwait antes do Werner. Por algum motivo, Werner não pode  ir para  lá 

imediatamente.  Acho  que  ele  deu  a  instrução  ao  Paul  Berriff  para  filmar  imagens 

incríveis, que o mundo ainda não tinha visto, e filmar tudo em câmera  lenta, e filmar 

material de documentário. Eu  tinha a  impressão de que o Paul Berriff e  sua equipe 

tinham vontade de  fazer algumas entrevistas e  filmar um material de documentário 

mais tradicional e convencional, mas eles tinham sido instruídos para não fazerem isso, 

ouvi dizer, obviamente pelo Werner. Só encontrei o Paul Berriff na estreia do filme, e 

mesmo assim, rapidamente.  

  Isto  foi  na  época  em  que  se  trabalhava  com  película.  Naquele  tempo, 

estávamos acostumados a receber uma pilha de filmes: era aquilo e pronto. Não havia 

1 O montador alemão Rainer  Standke  trabalhou  com Werner Herzog em nove projetos, dentre eles, 

Wodaabe, pastores do sol, 1989; Ecos de um império sombrio, 1990; Lições da Escuridão, 1992; Sinos da profundeza – Fé e supertição na Rússia, 1993; A transformação do mundo em música, 1994; Morte para cinco  vozes,  1995; O  pequeno Dieter  precisa  voar,  1997.  Ele  vive  desde  1996  em  Los Angeles,  onde recentemente começou a criar softwares usados na pós‐produção de filmes. 

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o  conceito  de  sair  para  filmar  material  adicional  ou  coisa  do  gênero.  Mas  eles 

acabaram voltando… Eu tinha esquecido isso. Werner viajou uma segunda vez para lá, 

acho que ele levou um cinegrafista alemão com ele. Foram os créditos ao final do filme 

que  me  lembraram  disso.  Há  um  segundo  cinegrafista,  o  nome  dele  é  Rainer 

Klausmann. E acredito que eles filmaram as entrevistas das duas mulheres em pé.  

  Em todo caso, quando você se depara com uma grande pilha de material e você 

não tem  ideia do que fazer com ele – e este era mais ou menos o caso, pois nós não 

sabíamos como íamos montar –, o que você faz é separar os pedaços bons, você alinha 

as partes boas, as de que você gosta, que te dizem algo. Você as separa e as assiste de 

novo, e vê o que funciona e que não funciona. E você vai burilando, até ter uma ideia 

daquilo que você irá fazer com esse material. 

  PP: Quando você diz “as partes boas”, isto pode variar… Que partes são boas? 

Se  você  olhar  para  o material  com  olhos  de  jornalista,  você  vai  achar  certas  coisas 

boas. Se você olhar com olhos de artista, as partes boas serão algo muito diferente. 

  RS: Como montador de documentário, é vital que você tenha uma boa noção 

de  todo material  que  você  tem,  antes  de  começar  a  lapidar.  Porque,  se  você  não 

souber  realmente o que  tem, não  tem como saber que  rumo as coisas vão  tomar, a 

não ser que você assista a todo o material bruto. 

  Isto  é  algo  que  alguns  documentaristas  hesitam  em  fazer.  Também  porque 

custa caro. Ouvi um montador de documentários americano contar numa entrevista 

que ele assiste aos copiões do material bruto durante seis semanas. Ele faz anotações 

e não faz um único corte antes de ter feito tudo  isso. Seis semanas é mais tempo do 

que o tempo total que tínhamos para montar Lições da escuridão!  

  O  que  estou  tentando  dizer  é  que  nós  assistimos  ao material  –  e  assistimos 

tudo. Algumas partes em fast‐forward, em uma mesa de montagem plana Steenbeck, 

que,  em  alemão,  se  diz  Schneidertisch,  e  que  quer  dizer  “mesa  de  corte”. Olhamos 

tudo, algumas partes aceleramos, o que não chega a surpreender, porque as partes em 

câmera  lenta não  ficam  tão  rápidas quando você  roda o  filme mais  rapidamente do 

que o tempo real.      

  Depois de olhar  todo o material,  ficou claro que não era um material de  tipo 

jornalístico. Não poderíamos ter feito um documentário convencional com o material. 

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Não havia depoimentos, ninguém  relatando os  fatos nus e  crus  sobre o que estava 

acontecendo. Não havia ninguém contextualizando nada.  

  PP: Você trabalhou com Werner ao seu lado? Você tinha um assistente? 

  RS:  Eu  não  tinha  um  assistente.  Quando  você  filma  em  película,  é  preciso 

sincronizar o som e a imagem. Em documentário, isso representa um desafio, mas eles 

não  tinham gravado nenhum  som. Tem uma  sequência, depois da metade do  filme, 

onde  alguns  caras  estão  se  preparando  par  detonar  algo.  Sincronizei  aquilo  antes, 

depois numerei o  filme. Você coloca números no  filme e  isso  te ajuda a organizar o 

material e, na hora que quiser,  reconstituir coisas que você  tinha cortado ou  jogado 

fora.     

  Não tinha um assistente. Trabalhamos de maneira disciplinada das nove às seis, 

em Viena, só parando uma hora para o almoço. Eu fiz algumas coisas sozinho, mas a 

maior parte do tempo Werner estava presente. Era o relacionamento de praxe entre 

um montador e um diretor: Assisitir ao material, reagir a ele, compartilhar as reações e 

ter ideias sobre o que fazer com ele.  

  PP: Sobre a música: esse documentário sempre me  intrigou até eu começar a 

assisti‐lo novamente por causa da dissertação de mestrado que estava  fazendo. Eu o 

redescobri por meio de Richard Wagner. Tive de ouvir Wagner,  aprender  sobre  sua 

música. Percebi que a estrutura do documentário era muito próxima da estrutura de 

uma  ópera.  Comecei  a  olhar  para  o  documentário  como  uma  ópera.  Todo mundo 

menciona ficção científica a respeito de Lições da escuridão, e claro que parece ficção 

científica com todas aquelas tomadas aéreas… mas, para mim, a descoberta foi a ópera 

e  a música  como parte do  filme. Praticamente,  todas  as músicas do  filme  falam de 

morte. 

  RS: Isto é inteiramente possível! Não tinha me dado conta, mas faz sentido.  

  PP: Por exemplo, de Peer Gynt, tem A morte de Aase, tem o Réquiem de Verdi… 

Quase  todos os  trechos musicais estão  relacionados  com a morte ou a dor,  como o 

Stabat Mater de Arvo Pärt. Redescobri o documentário por meio da música.   

  RS: Interessante. 

  PP: Reparei que em muitos dos documentários que você montou com Werner 

Herzog,  a música  é  central.  E  é  central  no  trabalho  dele,  como  diretor  de  ópera, 

suponho que ele goste muito de música. A música é um tema, como em Morte a cinco 

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vozes2. Em Lições da escuridão, a música não é um tema em si, mas é uma parte muito 

importante na composição do documentário. Mas vou direto ao assunto: gostaria de 

saber se a música veio antes, depois ou durante a montagem.  

  RS:  Não  foi  escolhida  antes.  O  processo  a  que me  referi  foi  no  sentido  de 

identificar,  encontrar  o  filme  no  material  que  eu  tinha.  Num  material  tão 

desestruturado como era no caso esse, isso é um desafio. Vou me estender um pouco, 

mas vou chegar à sua pergunta: você encontra as partes boas, as partes que “falam” 

para você, certo? Você as alinha e então você encontra a história mecânica que você 

quer contar. 

  Por exemplo: na metade do  filme, quando eles colocam aquela peça sobre os 

poços,  tem um  cara que  começa a martelar esse  lacre que  foi  colocado na boca do 

poço, em câmera  lenta. Esse corte conta uma história mecânica: primeiramente, eles 

fazem  isso para preparar outra  ação,  correto? Depois,  eles  tiram o  lacre  e  colocam 

outra coisa no lugar e ficam felizes... É uma pequena história em si. É uma questão de 

escolha, se você gosta de contar uma história desse  jeito. Em uma dimensão maior... 

no documentário, há pessoas que estão perdidas e você mostra que elas têm algo para 

se  agarrar.  É  um  pequeno  procedimento  para  contar  uma  história  muito  tangível 

dentro do filme como um todo. Na maior parte do filme, você não sabe direito o que 

está acontecendo, você é claramente confundido pela narração sobre o que ele trata. 

O filme deixa o espectador se perguntar o que está acontecendo por um bom tempo.  

  Você  assiste  ao material  e  tenta  encontrar  as  partes  boas. Quando  você  as 

alinha, você  junta pequenos  trechos que  têm a ver um com o outro. Próximo passo: 

você  começa  a  brincar  com  a  ordem  das  coisas.  Você  tem  grupos  de  coisas  que 

combinam  e  se  pergunta:  “Como  vou  estruturar  a  ordem  delas?  Qual  a maior,  a 

melhor  dentre  elas?  Isto  deveria  estar  perto  do  final  do  filme.  Qual  delas  faz  a 

narrativa avançar?”. Tem um momento no filme, quando chegamos pela primeira vez 

aos poços de petróleo queimando, que começa com uma  longa aproximação de um 

poço em chamas, e é quando ouvimos… o Crepúsculo dos deuses? Não tenho certeza, 

o trecho de Wagner… Esse é um bom exemplo de como fazer a transição para um novo 

2 Tod für fünf Stimmen (direção Werner Herzog, montagem Rainer Standke). Documentário sobre a vida 

do compositor italiano renascentista Carlo Gesualdo, 1995. 

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momento no filme, para um novo grupo de tomadas e sua pequena subparte dentro 

do  filme  final. O  que  chamou minha  atenção,  quando  assisti  de  novo,  é  como  são 

pictóricas  essas  tomadas.  Poderiam  todas  ser  sido  pintadas  por  antigos  mestres 

holandeses! 

  PP: Sim, e pintores românticos alemães também. Algumas pinturas de [Caspar] 

Friedrich correspondem a fotogramas muito parecidos do filme.  

RS:  Sim,  sim. Quando  você  chega  ao ponto em que o  filme  começa  a  tomar 

forma, faz sentido começar a pensar na música. Porque nesse ponto, nesse filme em 

particular, era evidente que precisávamos de um  áudio, uma  trilha. Tínhamos esses 

fragmentos  de  narração  que  Werner  ia  fazendo  enquanto  trabalhávamos,  mas 

sabíamos que havia  longos  trechos do  filme em que não havia nada mais a se dizer. 

Esse filme teria sido aniquilado por uma narração contínua! Se tivesse sido narrado do 

começo ao fim, teria ficado horrível! 

  Começamos,  então,  a  trabalhar  a música.  Tenho muito  familiaridade  com  o 

jazz, sou um grande fã de jazz, mas sou ignorante em se tratando de ópera. Werner, na 

época,  tinha  começado  a dirigir óperas. Tinha dirigido  algumas. Dirigiu muitas mais, 

desde então. Não são todas as músicas que funcionam num filme. É difícil dizer o que 

faz uma música funcionar com imagens em movimento. Fizemos alguns poucos testes 

com jazz. Jazz costuma ter uma vida própria muito forte. Tende a impor sua estrutura à 

imagem. E, num filme como o que acabamos fazendo, isso não é bom. Se a música for 

um fundo musical, for por trás de uma cena dramática, ou narração ou entrevistas, ela 

não pode ser dinâmica demais, tanto no sentido do dinamismo do áudio em si, alto e 

baixo,  como no  sentido da história que  a própria música está  contando. Você pode 

entender  isso melhor ao ouvir a  trilha musical de um  filme padrão de Hollywood: se 

você prestar atenção só na trilha, verá que ela é incrivelmente insossa.  

  Para mim, um jeito de identificar uma música boa é se ela mantém o impulso, a 

pressão, continua a crescer. No mundo do  jazz, Dave Brubeck é um bom exemplo de 

alguém  que  começa  num  ponto  e  vai  constantemente  crescendo.  Ele  chega  num 

tempo x, chega ao clímax, e então a música acaba.   

  Procuramos  música  assim  durante  toda  a  montagem.  Enquanto  ainda 

estávamos  em  Viena,  trabalhando  no  filme,  experimentamos  várias  coisas. 

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Compramos  CDs,  eu  tinha músicas  comigo…  O  trecho  de Wagner,  acho  que  é  do 

Crepúsculo dos deuses…  

  PP: É. 

  RS: …Eu tinha essa gravação numa fita‐cassete com a big band de Stan Kenton. 

Disse a Werner: “Sei que esse não é o tipo de música que você gosta, mas acho que a 

música em si pode funcionar”. Então, ouvimos e foi bastante convincente. A versão da 

big band é muito parecida dramaticamente falando com a gravação que usamos. Achei 

engraçado  como  chegamos num determinado ponto e  identificamos esse  trecho de 

música  em  particular.  Depois  disso,  foi  uma  série  de  experimentos:  era  tocar  uma 

música com a imagem e ver o que acontecia. Às vezes, dá certo, às vezes, não dá. 

  PP: Então, você acredita que um filme é inventado durante a montagem, ou as 

imagens e os sons trazem em si as  indicações de como eles deveriam ser montados? 

  RS: É uma mistura das duas coisas. No caso, era mais… o filme foi encontrado e 

construído  na  sala de montagem, portanto, durante o processo de montagem. Não 

tínhamos nada, for a uma pilha de material bruto, e nenhuma ideia do que fazer com 

ele. Minha abordagem  foi começar com o material que era espetacular e construir a 

partir daí. Contruir o aspecto espetacular e dramático das imagens para chegar àquilo 

que  descrevi  sobre Dave  Brubeck:  chegar  no  clímax,  e,  depois  desse  ponto,  chegar 

numa coda3 no  filme. Às vezes,  tem um pouco de coda. Ou o  final do  filme. Lembro 

bem  de  que  sabíamos  que  não  queríamos mostrar  nada  queimando  por  um  bom 

tempo de filme. Depois desse momento, a maior parte das coisas começam a queimar 

e fumegar.   

  PP:  E  o  fogo  e  a  água  tornam‐se  personagens  importantes.  Em  O  Anel  dos 

Nibelungos, de Wagner, o fogo e a água são símbolos muito fortes que personificam a 

luta  entre  vida  e  a morte.  Encontrei  um  eco  disto  no  filme.  Os  personagens mais 

importantes  são elementos da natureza, e dentre eles, o  fogo e a água  são os mais 

importantes. Os seres humanos são como insetos…  

  RS: Sim, Sim. 

  PP: …que se tornam gradualmente mais humanos à medida que a batalha vai 

terminando. Quando o fogo é subjugado pela água, os homens tornam‐se humanos de 

3 Coda (termo italiano que, em português, quer dizer cauda): é a seção com que se termina uma música.

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novo. Daí, as tomadas são mais fechadas, podemos ver faces humanas, dando risada… 

até que um deles faz algo louco, que é acender um poço de petróleo de novo! É esta a 

impressão que a montagem passa: que enlouqueceram e  fizeram uma  coisa dessas. 

Não  sei  se o material  foi mesmo  filmado nessa ordem. A montagem  foi  feita com o 

intuito  de  fazer  os  homens  parecerem  loucos  ao  acender  os  poços  de  petróleo  de 

novo? 

  RS:  (ri)  Sim…  Foi  uma  escolha. Obviamente, Werner  teve  essa  ideia  quando 

fazia o voice‐over, de retratar esses caras como se estivessem enlouquecendo. 

  PP: Coisa que ele costuma fazer em seus filmes… Todo mundo enlouquece num 

determinado momento! 

  RS: (ri) Sim, assim como na vida! Acontece que o documentarista não se atém à 

ordem em que as coisas foram filmadas. Porque isso não tem importância. Não existe 

uma maneira mecânica de você controlar o material que você escolhe. Mas, no caso 

do  Werner,  em  especial,  o  material  bruto  não  veio  com  uma  papelada  cheia  de 

anotações. O que tinha era uma pilha de copiões revelados, e só. A gente tinha de se 

virar com o material bruto  filmado. Ele nem tinha colocado etiquetas em muitos dos 

rolos de  filme para ordená‐los. Era como um grande  jogo de adivinhação.   Cortamos 

esses pequenos segmentos. Os poços sendo acesos de novo era um deles, e mexemos, 

testamos a ordem das coisas. Sabíamos que tínhamos de chegar a um filme de cerca 

de uma hora. Era preciso encontrar o melhor  lugar para cada segmento. É assim que 

você chega a um filme. 

  PP: Mas em que momento você sentiu que tinha uma história? 

  RS:  Boa  pergunta!  (ri).  É  o momento  quando  você  sente  que  você  tem  um 

pedaço  que  funciona.  Você  tem  três,  quatro,  cinco  desses  módulos  que  você 

estruturou, e você acha que cada um desses módulos funciona sozinho, e você tem um 

conjunto  de  três,  quatro  ou  cinco  módulos  de  material  que  funcionam  em  uma 

determinada ordem. Mas, talvez, o jeito que você os utilizou não funciona. Eles talvez 

estejam no  lugar errado do  filme. Ou,  talvez,  funciona de um modo geral, mas você 

não tem  lugar para um trecho especialmente  incrível, ou uma cena  incrível, digamos. 

Daí,  você  vai  experimentando.  E  você  começa  a  ter  a  sensação  que  algo  está 

funcionando, muito gradativamente. Você tem que dar uma passada geral de olhos de 

vez em quando, a cada dois ou três dias, para ter  ideia do que está dando certo e do 

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que não está.  É esse o desafio da montagem. Porque  você  já  viu o material  inteiro 

cinco mil vezes e você precisa  conseguir  reagir a ele  com o  frescor da primeira vez. 

Para mim,  o  único  jeito  é  assistir  a  tudo  de  novo.  Não  dê  fast‐forward,  não  fique 

pulando  de  lá  para  cá. Olhe  para o material  e  brinque  com  o  que  você  tem,  e  seu 

instinto dirá a você o que dá certo e o que não dá.  

  PP: Queria perguntar a você sobre isso, sobre lógica versus intuição. Parece‐me, 

portanto, que a intuição ou a sensibilidade é até mais importante do que a lógica. Ela é 

fundamental na realização de um documentário?  

  RS:  Sim,  positivamente.  É  preciso manter  vários  fatores  sob  controle, mas  é 

necessário  ter  sensibilidade  com  relação  àquilo  que  estamos  fazendo. Quanto mais 

assisto  a  filmes  e  vídeos, mais me  dou  conta  que  eles  precisam  ter  uma  verdade 

emocional  dentro  deles,  pois,  se  não  tiverem,  não  fazem  diferença  nenhuma.  É 

necessário  que  as  coisas  funcionem  em  termos  emocionais.  É  preciso  prender  a 

atenção  das  pessoas.  As  pessoas  precisam  acompanhar  seu  filme  em  algum  nível 

emocional. Caso contrário, não importa o quanto os fatos que você está apresentando 

serem  brilhantes,  pois  elas  não  estarão  conectadas  emocionalmente,  e  estará  tudo 

perdido. E,  certamente, num  filme que,  como este, que  representa um desafio, que 

não pega o espectador pela mão e o conduz através da história, o espectador precisa 

estar  interessado  por  vontade  própria.  O  filme  precisa  funcionar  em  um  nível 

emocional, e, para isto, é necessário ter sensibilidade.  

  PP:  Se  a  realização  de  um  documentário  sempre  representa  correr  alguns 

riscos, Lições da escuridão corre muitos riscos. Entendo que o filme foi encomendado, 

que pediram a Werner Herzog para fazer o filme para um canal de TV. Ele tinha de  ir 

ao Kuwait fazer um filme sobre a guerra. Ele volta com um filme onde sequer o nome 

do país é mencionado! O nível de risco que  isto representa… não há datas, nenhuma 

referência de que guerra é aquela... Você estava preocupado com relação ao público? 

Como o filme seria recebido?  

  RS: Não. Werner Herzog é muito seguro. Ela vai e filma, certo? Ele filma muito 

deliberadamente, e não filma muitas tomadas de cobertura. Durante o tempo em que 

trabalhei com ele – faz tempo que não falo com ele –, ele filmava aquilo que filmava, e, 

frequentemente, aquilo que você vê na tela é aquilo que ele filmou. Ele não filmou de 

um ângulo diferente, ou um primeiro plano, ou algo do gênero. Ele é corajoso: chegou 

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para  editar  sem  saber  como  ia montar  o material. Mas  ele  acabou  encontrando  o 

caminho  do  filme.  Depois  de  trabalhar  com  ele  algumas  vezes,  notei  que  tem  um 

momento durante a montagem em que ele começa a mostrar o filme, ou partes dele, 

para pessoas que vão visitá‐lo na sala de montagem. Ele testa coisas com as pessoas, 

como  um  trecho  da  narração,  para  ver  se  as  pessoas  reagem,  ou  não,  àquele 

determinado trecho da narração. Foi interessante testemunhar aquilo: o início, quando 

ele não  sabia o que  ia  fazer, e depois,  à medida que progredíamos, quando  ele  foi 

tendo mais certeza sobre as coisas, o que não chega a ser surpreendente...  

  Mas, deixe‐me voltar à sua pergunta. Lembro que havia um canal alemão de TV 

a cabo, o Première, que era parte do império do Leo Kirch4. Foi o primeiro canal de TV 

a  cabo  da Alemanha.  Eles  estavam  tentando  ser  um  tipo  de HBO.  Então,  Lições  da 

escuridão  foi  uma  das  poucas  coisas  que  eles  encomendaram  e  produziram.  Eles 

tinham outros parceiros, acho que tinha um produtor da BBC e o Canal+ francês.  

  PP: Sim, e o Canal+ espanhol também.5 

  RS: O diretor de programação, que era nosso contato, veio a Viena pelo menos 

uma  vez,  talvez  duas.  Era  um  alemão  da  Première,  de  Hamburgo.  Ele  viu  o  que 

estávamos  fazendo desde o  início. Ele  tinha muito  respeito pelo Werner, e nunca se 

manifestou no sentido de nos mandar fazer algo totalmente diferente. Acredito que a 

Discovery comprou o filme pronto muito mais tarde. Quando eles adquiriram o filme, 

ele era um fait accompli. Li em algum lugar que eles apresentaram o filme de maneira 

meio equivocada... como um programa político. Erraram feio. (ri) 

  PP: Não  sei  como o  filme  foi  recebido pelo público de  televisão. Talvez  você 

saiba. Li que o filme foi muito mal recebido no Festival de Berlim (1992). O público não 

gostou nem um pouco. Depois disso, Werner escreveu seu manifesto contra o Cinema 

4No final do anos de 1990, Leo Kirch chefiou a segunda maior empresa de comunicações da Alemanha. 

Com o apoio financeiro de politico e investidores como Rupert Murdoch, Silvio Berlusconi e um príncipe saudita,  Kirch  criou  um  império  que  incluía  canais  de  TV,  direitos  de  filmes  e  uma  participação  das corridas de Fómula 1. Uma manobra malsucedida levou o grupo de Kirch à falência em 2002. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2011/07/15/business/media/leo‐kirch‐is‐dead‐at‐84‐headed‐media‐empire‐that‐went‐bankrupt.html>. Acesso em: 14 set. 2011. 5Lições  da  escuridão  é uma  coprodução  entre  a Werner Herzog  Filmproduktion, os Canal+  francês  e 

espanhol,  e  o  Première.  Estreou  na  televisão  no  canal  Discovery,  como  parte  de  uma  série  de documentários chamados Discovery Journal.

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Verdade6.  O  filme  é  agora  considerado  uma  obra  de  arte.  Talvez  as  pessoas 

precisassem de tempo para começar a entender o filme?  

  RS:  Sim,  possivelmente.  O  público  alemão  gosta  de  polemizar.  No  que  diz 

respeito a Herzog, ele é amado ou odiado. Não  importa o  filme, haverá  sempre um 

grupo de pessoas que ama o  filme de paixão…  Isto vale para  todos os  filmes que eu 

conheço, e sempre  foi verdade para  todos os  filmes dele. Eu estava em Berlim, mas 

confesso que não me lembro direito. Estava estressado porque tínhamos montado em 

cima da hora e a cópia do filme estava atrasada. Houve problemas com o laboratório. 

Portanto, eu ainda estava bastante estressado por causa disso.  

  Nem  todas as pessoas entendem  todos os  filmes, certo? Não me  surpreende 

que  houve  gente  pensando  que  era  algo  que  não  podia  ser  feito,  ou  que  fosse 

impróprio… Mas o Werner não é do tipo de se deixar impressionar com coisas assim. 

  PP:  Você  usou  o  termo  “impróprio”.  Estou  pensando  em  documentários 

poéticos, ensaios fílmicos... Como você se sente a respeito desses termos?  

  RS:  Quando  funcionam,  são  lindos.  Quando  não  funcionam,  são  o  caos.  Há 

exemplos  de  coisas  que  deram  certo,  por  exemplo...  Você  se  lembra  de 

Koyaanisqatsi7?  

  PP: Sim. 

  RS: Assisti há muito  tempo, e não  vi mais desde então. Mas me  lembro que 

fiquei impressionado. Não se tratava de documentar nada. Não era um documentário, 

eu acho. As  lembranças vão voltando à medida que conversamos. A questão que  se 

coloca  sobre aquilo que é próprio ou  impróprio é: na qualidade de documentarista, 

será  que  você  não  deveria mostrar  a  “verdade”,  entre  aspas? Desde  o  começo  dos 

anos  de  1990,  é mais  amplamente  aceito  que  documentários  não  sejam  objetivos. 

Documentários  não  podem  ser  realmente  objetivos.  As  pessoas  hoje  em  dia…  com 

todo  esse  lixo  dos  reality  shows  que  as  pessoas  engolem,  elas  esperam...  elas  são 

cúmplices  dos  diretores  e  produtores  de  reality  shows.  As  pessoas  sabem  que  não 

estão  vendo  a  “realidade”.  Elas  sabem  que  as  coisas  podem  ser  manipuladas, 

comprimidas.  Assim,  acho  que  a  discussão  na  época  acontecia  em  um  nível mais 

fundamental, e, hoje, essa questão não tem mais tanta importância.  

6 Declaração de Minnesota, 1999. Ver Anexo. 7 Koyaanisqatsi, vida fora de equilíbrio, Godfrey Reggio, 1982.

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  PP: Há um primeiro nível, que é quando o documentarista  resolve  romper o 

contrato com a verdade e diz: “Eu não tenho de ser fidedigno ou fiel aos fatos”, que é 

o que Herzog chama de “a verdade dos contadores”. O segundo nível acontece quando 

o documentarista chega a algo diferente, que pode ser chamado de poesia audiovisual 

ou  arte.  No  caso  do  documentário,  isso  ainda  nem  tem  um  nome,  porque  não  é 

exatamente ficção, como a entendemos, e não é mais documentário. Eu me pergunto 

sobre  esse  segundo  nível.  Acho  que  é  aquilo  que  Herzog  chama  de  “êxtase  da 

verdade”. Ele mencionou isso durante a montagem de Lições da escuridão?  

  RS: Não. O processo todo não foi uma coisa cerebral demais. Foi mais intuitivo, 

acho que tanto para mim quanto para o Werner. Nenhum de nós dois é um erudito. 

Não somos cineastas porque fizemos uma escola de cinema. Não somos versados em 

teorias  sobre cinema e coisas do  tipo. Quando  falamos  sobre  filmes, pelo menos eu 

não  soo  –  e  nunca  soei  –  como  um  intelectual,  creio.  Em  uma  uma  situação  de 

montagem, você normalmente está lidando com restrições: Este é o material que você 

tem, e este é o tempo que você tem.  

  A invasão do Kuwait aconteceu na primavera, entre fevereiro e abril. Os poços 

de  petróleo  estavam  sendo  apagados  entre  o  verão  e  o  outono.  Eles  [os  técnicos] 

tinham acelerado a extinção do  fogo. Eles vinham progredindo mais rapidamente do 

que  tinham  imaginado,  e  a  ideia  era  lançar  o  filme  no  primeiro  aniversário  da 

libertação do Kuwait, que também coincidia com o Festival de Berlim. Portanto, havia 

restrições bem palpáveis. E não  ter um  filme pronto era  algo que não passava pela 

cabeça de ninguém. Isso ajuda tremendamente na hora de se livrar de certos receios, 

porque,  quando  você  olha  para  algo  o  suficiente,  você  sabe  o  que  não  está  dando 

certo,  não  sabe?  Você  tem  de  confiar  no  seu  instinto.  Estou  tentando  descrever  o 

processo de construção de um filme como esse, e esse filme em particular, claro: você

tem esses blocos de encaixe que você vai combinando até chegar ao ponto em que 

sente que funciona, ou, pelo menos, funciona da melhor maneira possível. E, aí, você 

segue em frente. 

  Werner e eu concordamos que há um tempo determinado que a gente passa 

na montagem e que é produtivo. Eu especificaria  isto um pouco mais: há um  tempo 

determinado que você passa até chegar… quando o filme é 90% daquilo que ele pode 

ser.  O  tempo  que  você  gasta  além  desse  ponto  torna‐se  infinitamente  menos 

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produtivo. Você corre o  risco de piorar o  filme. Você  fica  fazendo aquelas melhorias 

minúsculas que, no final, não fazem tanta diferença. Elas não alteram aquilo que há de 

fundamental no filme.   

  PP: Quando você recebe um material bruto, como as dezesseis horas de Lições 

da escuridão, você acredita que há um filme apenas contido nesse material bruto? Ou 

você poderia ter feito outro filme com esse mesmo material bruto?  

  RS:  Penso  que,  nesse  caso  em  particular,  havia  só  um  filme.  Havia muitos 

segmentos  de  três  minutos,  mas  este  não  era  o  foco,  certo?  O  que  virou  um 

documentário de cinquenta e quatro minutos, um documentário de uma hora para a 

TV, era um só. Acredito que é isso e ponto final. É o que fizemos com aquele material 

bruto. Não  acredito  que  pudéssemos  ter  ido  em  nenhuma  outra  direção  por muito 

tempo sem darmos em um beco sem saída. 

  PP: Normalmente, Werner Herzog  não  usa  efeitos  especiais  em  seus  filmes. 

Notei a câmera lenta em Lições da escuridão e me perguntei se esse efeito tinho sido 

usado durante as  filmagens ou depois. Você acabou de me dizer que  foi durante as 

filmagens.  

  RS: Sim, sim. 

  PP: Isso não é um pouco perigoso para o montador? Se Werner pediu isso, quer 

dizer que ele já tinha algo em mente...  

  RS: Sim. Você  tem de olhar para o que ele  tinha  feito antes,  já em 1991. Ele 

tinha feito vários documentários que eram meio poéticos, não muito convencionais, e 

ele tinha  feito vários  longas‐metragens que continham elementos estranhos. A  longa 

sequência  de  Cobra  Verde8,  por  exemplo  é  um  desses  momentos  que  não  são 

convencionais.  Podemos  chamá‐los  de  poéticos.  Dão  certo  no  caso  de  alguns 

realizadores, e não dão certo com outros. Técnicamente falando, quando aplicamos o 

efeito de câmera  lenta depois da  filmagem, não chegamos a um  resultado  redondo. 

Por  isso, se você quer que algo fique bonito no resultado final, é preciso filmar numa 

velocidade menor  do  que  a  do  tempo  real.  Acredito  que  ele  tinha  isso  em mente 

quando falou com o Paul Berriff, antes de ele partir para o Kuwait. Você está lembrada 

que o diretor de fotografia foi para lá antes de Werner.  

8 Cobra Verde, Werner  Herzog, 1987. 

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  PP: Normalmente, tomadas aéreas são usadas como complemento. Em Lições 

da  escuridão,  há  uma  quantidade  enorme  desse  tipo  de  tomada.  Sinto  que  essas 

tomadas são uma das coisas que fazem o filme dar tão certo. Decolamos e pairamos 

sobre esse planeta estranho. Você escolheu deliberadamente as tomadas aéreas? Ou 

essas eram praticamente o único tipo de tomada que você tinha para trabalhar?  

  RS: Muito do material… sabe, as tomadas aéreas? Só tinha  isso. Foi a escolha 

certa, filmar só aquelas imagens de cima, pois é o que faz com que o filme se sustente 

em  longo  prazo.  Todos  aqueles  longos  voos,  se  fossem  substituídos  por  tomadas 

estáticas, tomadas terrestres, seriam extremamente enfadonhas. Assim, acho que foi 

uma boa escolha. E, falando sobre efeitos especiais, quando você corta um filme, você 

não  tem  fusões,  onde  uma  tomada  faz  a  transição  para outra  no  espaço  de  alguns 

segundos. Não tem isso em película, não dá para simular. Tive de convencer Werner a 

usar fusões desde o início. Você se lembra daqueles voos sobre o deserto vazio?   

  PP: Sim. 

  RS:  Chegamos  ao  que  parece  ser  bunkers  de  aviões.  Aquela  sequência  tem 

fusões. Precisei de um pouco de lábia para conseguir a permissão para usar as fusões 

no final do filme. Acho que deram muito certo.  

  PP: Há um certo espírito em vários filmes do Werner. Eles passam a mensagem 

de que a humanidade está condenada. Ele utiliza partes da Bíblia, relatos mitológicos, 

costurados com músicas e imagens, e o resultado é uma visão desencorajadora sobre a 

humanidade.  É  como  uma  lupa:  Ele  vai  para  o  Kuwait  filmar  uma  guerra  e  o  que 

aparece  no  filme  é  a  história  de  todas  as  guerras.  Não  é  uma  série  de  guerras 

diferentes. Talvez, no final das contas, estamos sempre lutando na mesma guerra, que 

nos levará a um só lugar, a destruição. É uma interpretação apocalíptica.   

  RS:  Eu  não  tinha  uma  diretriz  quando  começamos  a  montar.  Quando 

escolhemos  os  títulos  de  cada  bloco, Werner  estava  trabalhando  na  narração. Nós, 

certamente,  vetamos  coisas  pelo  mesmo  processo  que  vetamos  outras:  Isso  está 

funcionando emocionalmente, nas nossas entranhas? Como repercute em nós?   

  Acho que você tem razão, que Werner tem tendência a chegar a declarações do 

tipo  “O  mundo  está  acabando”,  ou  que  ele  tem  uma  afinidade  com,  digamos,  o 

apocalipse.  Mas  ele,  certamente,  não  me  passou  instruções  para  fazer  um  filme 

apocalíptico que ele só viria a assistir depois de pronto. (ri) 

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  Tem outra coisa que eu gostaria de te contar sobre o áudio. Tínhamos o filme 

montado, isto é, tínhamos as imagens montadas no que seria a sequência final e o som 

sincronizado, mas  ainda  não  tínhamos  gravado  o  voice‐over.  Tínhamos  o  texto  do 

voice‐over que o Werner lia para quem estivesse conosco assistindo o filme. Eu tive de 

voltar  a Munique, onde  eu  vivia, e onde  ficava  a produtora do Werner, nem  sei  se 

ainda é  sediada  lá... Começamos a  trabalhar na  trilha  sonora e…  tinha muito pouco 

áudio  utilizável  do  Kuwait.  Você  nunca  ouve  um  helicóptero  no  filme,  e  isto  é 

deliberado. Se a gente  tivesse  colocado o barulho do helicóptero,  teríamos acabado 

com  um  filme  que  zumbia  sem  parar.  Teria  sido  horrível.  Há  pouquíssimo  áudio 

original. Tinha um som sibilino, acredito que esse não seja um efeito. Aquela  locação 

deve  ter  sido  muito  barulhenta.  Não  dava  para  dizer  o  que  era  líquido  jorrando, 

mangueiras silvando ou máquinas, e por aí afora. Um editor de som  inglês chamado 

Max Hoskins,  que morava  em Munique  na  época,  trabalhou  no  filme  por  dez  dias. 

Tudo  passou  por  ele.  Ele  colecionava  sons.  Ele  usou  um  ou  dois  sons  da  gravação 

original. Portanto, o som do filme não é extamente real.  

  PP:  Interessante, não  tinha pensado nisso. Voltando para a música: Há vários 

compositores  como  Schubert, Wagner,  Prokofieff, Mahler, Grieg,  Arvo  Pärt... Quem 

sugeriu a música? Como você testou a música que iria utilizar?    

  RS: Eu conheço relativamente pouco sobre música clássica. Eu propus a ideia de 

usar o Crepúsculo dos deuses, porque eu tinha uma gravação em fita em uma versão 

de uma big band.  

  PP: Certo. 

  RS: Eu trouxe a fita para ouvirmos quando estava cortando o filme. Depois que 

isso deu certo, sabíamos que haveria outros trechos de Wagner que poderíamos tentar 

usar. Usamos um CD com versões instrumentais, sem voz, de greatest hits de Wagner, 

com os  trechos de ópera mais conhecidos. É um processo de erro e acerto. Você  se 

lembra daquele procedimento que mencionei há pouco sobre a substituição dos lacres 

das bocas dos poços de petróleo? 

  PP: Sim. 

  RS: Tem um pedaço de música clássica que usamos antes, num filme diferente, 

acho que em Wodaabe – pastores do sol… Mas não posso levar o crédito pela escolha 

de nenhuma outra música, não que eu me lembre. Werner conhecia e admirava Pärt. 

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Não me  lembro  de  onde  vieram  as  outras músicas.  Tínhamos  trabalhado  com  um 

cineasta em Viena e ele prestou uma consultoria musical para nós. Ela  já  tinha  feito 

isso em filmes anteriores. Ele achou o Schubert, creio, e talvez tenha sugerido outras 

músicas. O nome dele é Michael Kreihsl. 

  PP: Você se recorda em que ponto da montagem encontrou esse fio conductor 

musical, digamos... o trecho de Wagner? Você se recorda do quanto já tinha cortado?  

  RS: Não me recordo porque é um alvo em movimento. Você reconsidera esses 

segmentos o tempo todo, certo? Isto está muito  longo,  isto aqui está ficando chato... 

Aí,  você  condensa  mais  um  pouco.  É  provável  que,  quando  fizemos  um  primeiro 

esboço de montagem, o filme estivesse longo demais. Talvez uma hora e meia ou duas. 

Normalmente,  quando  tem  um  canal  de  televisão  envolvido,  a  gente  trabalha  com 

uma duração determinada. Por isso, lapidamos mais um pouco.   

  PP:  Há  dois  depoimentos  no  filme,  com  as  duas  mulheres.  Eles  não  têm 

legendas, portanto, precisamos confiar em Werner, como no caso da falsa epígrafe de 

Blaise Pascal. Ele quase nunca usa  legendas. É ele que conta ao espectador o que os 

personagem estão dizendo. Essas entrevistas são uma quebra estética e narrativa. Tem 

as paisagens, a música, e, de repente, dois depoimentos curtos. Não estou dizendo que 

eles não “casam” com o resto do filme, mas talvez, você poderia ter montado o filme 

sem  eles.  Havia  a  opção  “Vamos  ser  radicais,  não  queremos  nenhum  ser  humano 

falando neste filme”. Você pode comentar sua escolha?  

  RS: Todas essas coisas formais nunca funcionam. Quando você está montando 

um documentário e você determina “Não vamos usar música ou  legendas, ou títulos 

para os blocos, ou coisas do  tipo, você  sempre acaba violando as  regras ou dogmas 

que  você  se  impôs. Porque  você  vai  chegar  à  conclusão que  você precisa de  certas 

coisas... Costumo pensar que, se você optar por uma abordagem ortodoxa, vai acabar 

num lugar bem desconfortável. Essas coisas nunca funcionam de fato.  

  Quando assisti ao filme de novo, recentemente, me perguntei se espectadores 

árabes entenderiam o que elas dizem. A  jovem mãe, especificamente, deve  ter  sido 

coerente no que diz. Não tenho tanta certeza com relação à outra mulher. Não tenho 

certeza se o que ela estava  falando  faz algum sentido para quem  fala árabe. Porém, 

elas  certamente  tiveram  um  papel.  Em  retrospecto,  elas  nos  envolvem  porque  são 

humanas, mesmo se há um distanciamento. Vários governos na época reagiram com 

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indignação  diante  dos  atos  de  tortura  que  os  iraquianos  praticaram  no  Kuwait.  Foi 

assim  que  as  “peças  de museu”  entraram  na montagem.  Creio  que  tanto  o museu 

como as mulheres  foram  filmados na  segunda viagem. Ele  [Herzog]  se ausentou por 

uma semana e, aliás, o cinegrafista que filmou esse material era de Munique.   

  PP: São os únicos elementos que  localizam o  filme. Elas usam roupas de uma 

certa cultura ou país. Assim, somos trazidos de volta à Terra por alguns minutos. Mas 

não por muito tempo. É como um  lembrete da humanidade, sem estragar o aspecto 

fantástico, de fábula, do filme. Elas nos lembram disso pelo simples fato de estarem lá, 

pois não compreendemos o que falam. Estamos nas mãos de Werner, que narra o que 

elas dizem.  

  RS: No  que  diz  respeito  ao  ritmo  do  filme,  elas  têm  a  função muito  útil  de 

impulsionar  e  aumentar  a  pressão  do  filme.  Elas  aparecem  relativamente  cedo. 

Pintamos  o  quadro  de  uma  paisagem  devastada,  e  aí  encontramos  essas  duas 

mulheres,  mas,  por  outro  lado,  as  encontramos  antes  de  penetrar  no  fogo  e  na 

fumaça. Elas certamente ajudaram a orquestrar o grande arco dramático do filme. 

  PP: Eu o agradeço muito pelo seu tempo e por compartilhar tudo isso comigo.  

  RS: Se você tiver qualquer outra pergunta, não se acanhe. Podemos conversar 

mais. 

  PP: Obrigada. 

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ANEXOS 

 

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1. A Declaração de Minnesota 

 

A Declaração de Minnesota  (também conhecida como Carta de Minnesota) é 

um manisfesto que mais se aproxima de uma explicação sobre a teoria herzoguiana do 

“êxtase da verdade”. Ao ser apresentado no Festival de Cinema de Berlim de 1992, o 

documentário Lições da escuridão foi vaiado e o diretor hostilizado9. Eis a descrição do 

acontecimento feita pelo próprio Herzog: 

  Ao estrear no Festival de Cinema de Berlim, o  filme se deparou com uma orgia de ódio. Em meio aos gritos irados do público, eu conseguia entender apenas  “estetização  do  horror”.  E,  quando me  vi  sendo  ameaçado,  e  as pessoas  cuspiram  em mim quando  subi no palco, dei  apenas uma única, banal  resposta:  “Seus  cretinos,”  disse,  “isto  é  o  que  Dante  fez  em  seu 

Inferno, o que Goya fez, e Hieronimus Bosch também.” 10 

 

O acontecimento motivou Werner Herzog a escrever seu manifesto, o qual ele 

apresentou no Walker Art Center em 30 de abril de 1999, em Mineápolis, Minnesota 

(EUA).  Na  ocasião,  o  Walker  Art  Center  promovia  uma  retrospectiva  da  obra  de 

Werner Herzog. 

Herzog  escreveu  o manifesto  em  inglês  e  nunca  o  traduziu  por  achar  que  o 

texto  funciona  melhor  nesta  língua.  A  seguir,  o  manifesto  no  original  em  inglês, 

seguida de uma sugestão minha de versão para o português. 

 

Minnesota Declaration11 

Truth and fact in documentary cinema – Lessons of darkness. 

 

1. By dint of declaration  the so‐called Cinema Verité  is devoid of verité.  It  reaches a 

merely superficial truth, the truth of accountants.  

2. One well‐known representative of Cinema Verité declared publicly that truth can be 

easily  found  by  taking  a  camera  and  trying  to  be  honest.  He  resembles  the  night 

watchman  at  the  Supreme  Court who  resents  the  amount  of written  law  and  legal 

9 Em outros países, notadamente nos EUA, o filme foi bem recebido. 10 Palestra dada por Werner Herzog em Milão, depois da projeção de Lições da Escuridão. Traduzida e 

transcrita  no  jornal  da  Universidade  de  Boston,  Arion,  vol.  17.3,  na  edição  do  inverno  de  2010. Disponível em: <http://www.wernerherzog.com/personal.html#c128>. Acesso em 15 set. 2011. 11 Disponível em: <http://www.wernerherzog.com/personal.html#c93>. Acesso em 15 set. 2011.

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procedures.  "For me,"  he  says,  "there  should  be  only  one  single  law:  the  bad  guys 

should go to  jail." Unfortunately, he  is part right,  for most of the many, much of the 

time.  

3. Cinema Verité confounds fact and truth, and thus plows only stones. And yet, facts 

sometimes have  a  strange  and bizarre power  that makes  their  inherent  truth  seem 

unbelievable.  

4. Fact creates norms, and truth illumination.  

5.  There  are  deeper  strata  of  truth  in  cinema,  and  there  is  such  a  thing  as  poetic, 

ecstatic truth. It is mysterious and elusive, and can be reached only through fabrication 

and imagination and stylization.  

6. Filmmakers of Cinema Verité resemble tourists who take pictures amid ancient ruins 

of facts.  

7. Tourism is sin, and travel on foot virtue.  

8. Each year at springtime scores of people on snowmobiles crash through the melting 

ice on the lakes of Minnesota and drown. Pressure is mounting on the new governor to 

pass  a  protective  law.  He,  the  former  wrestler  and  bodyguard,  has  the  only  sage 

answer to this: "You can´t legislate stupidity."  

9. The gauntlet is hereby thrown down.  

10. The moon  is dull. Mother Nature doesn´t  call, doesn´t  speak  to  you, although  a 

glacier eventually farts. And don´t you listen to the Song of Life.  

11. We ought to be grateful that the Universe out there knows no smile.  

12.  Life  in  the  oceans must  be  sheer  hell.  A  vast, merciless  hell  of  permanent  and 

immediate danger. So much of a hell  that during evolution  some  species  ‐  including 

man  ‐  crawled,  fled onto  some  small  continents of  solid  land, where  the  Lessons of 

Darkness continue. 

 

 

Verdade e fato no cinema de documentário – Lições da escuridão 

 

1. De  tanto  reiterá‐la, o  chamado Cinema Verdade é destituído de verdade. Alcança 

uma verdade meramente superficial, a verdade dos contadores. 

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2.  Um  conhecido  representante  do  Cinema  Verdade  declarou  publicamente  que  a 

verdade pode  facilmente ser encontrada ao empunharmos uma câmera e  tentarmos 

ser  honestos.  Ele  parece  o  vigia  noturno  da  Corte  Suprema  que  se  indigna  com  a 

quantidade  de  leis  escritas  e  procedimentos  legais  e  diz:  "Para mim,  deveria  existir 

apenas uma lei: os bandidos deveriam ir para a cadeia". 

Infelizmente, ele está parcialmente certo, na maior parte dos casos, na maior parte do 

tempo. 

3. O Cinema Verdade confunde fato e verdade, e, portanto, ara apenas pedras. Mesmo 

assim, os fatos às vezes têm um estranho e bizarro poder que faz com que sua verdade 

inerente pareça algo inacreditável. 

4. O fato gera normas, e a verdade, iluminação. 

5. Há camadas mais profundas de verdade no cinema, e existe uma verdade poética, 

extática.  É  algo  misterioso  e  elusivo,  que  só  pode  ser  alcançado  por  meio  da 

fabricação, da imaginação e da estilização. 

6. Os cineastas do Cinema Verdade parecem turistas que tiram fotografias de antigas 

ruínas de fatos.  

7. O turismo é um pecado, viajar a pé, uma virtude. 

8.  Todos  os  anos,  na  primavera,  muitas  pessoas  morrem  afogadas  ao  pilotar 

motocicletas de neve no gelo que começa a derreter nos lagos do Minnesota. Cresce a 

pressão sobre o novo governador para que ele crie uma lei que proteja essas pessoas. 

Ex‐lutador e guarda‐costas, ele dá a única resposta sensata para o problema: "Não se 

pode fazer uma lei contra a burrice".  

9. Assim, o desafio está lançado. 

10. A  lua está  sem brilho. A Mãe Natureza não está  chamando, não  fala  com  você, 

embora uma geleira, eventualmente solte ar. E você não ouve a Música da Vida. 

11. Deveríamos ser gratos pelo fato do Universo, lá fora, não conhecer o sorriso. 

12. A vida nos oceanos deve ser um  inferno. Um vasto e  impiedoso  inferno de perigo 

permanente e  iminente. Um tal  inferno que, durante a evolução, algumas espécies – 

incluindo o homem –, rastejaram, fugiram para alguns pequenos continentes de terra 

firme, onde as Lições da Escuridão continuam. 

 

 

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2. Ficha técnica dos documentários estudados 

 

Fata Morgana 

Ano: 1971 

Escrito e dirigido por Werner Herzog 

Filmado entre 1968 / 1970 

Cor 

Suporte: 35 mm. 

Duração: 75 min.  

Locações: Saara argelino, Costa do Marfim, Tanzânia, Nigéria, Obervolta, Mali, Quênia, 

Lanzarote (Ilhas Canárias) 

Com: Wolgang von Ungern‐Sternberg, James William Gledhill, Eugen des Montagnes 

Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein 

Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus 

Som: Hans von Mallinckrodt, Werner Herzog 

Narração: Lotte Eisner, Werner Herzog, Manfred Eigendorf, Wolgang Bächler 

            Música: Leonard Cohen (So  long Marianne, Suzanne, Hey, that’s no way to say good‐

bye), Steve Winwood  (Sea of  Joy), Third Ear Band  (Ghetto Raga, do álbum Alchemy), 

François Couperin  (Leçons des  ténèbres), Wolgang Amadeus Mozart  (Kyrie, Missa da 

Coroação), BWV 593 Johann Sebastian Bach – Antonio Vivaldi (Opus 3, Concerto nº 8, 

2º movimento) 

Produtor: Walter Saxer 

Produção: Werner Herzog Filmproduktion, Munique 

 

Lições da escuridão / Lektionen in Finsternis  

Ano: 1992 

Escrito e dirigido por Werner Herzog 

Cor 

Suporte: S 16 mm. 

Duração: 55 min.  

Locações: Kuwait 

Fotografia: Paul Berriff, Rainer Klausmann. Tomadas aéreas: Jerry Grayson 

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Montagem: Rainer Standke 

Narração: Werner Herzog 

Música:  Edvard Grieg  (A Morte  de Aase,  Peer Gynt), Gustav Mahler  (Sinfonia  nº  2), 

Arvo  Pärt  (Stabat Mater),  Sergei  Prokofieff  (Sonata  nº2,  opus  56),  Franz  Schubert 

(Noturno, opus 148), Giuseppe Verdi  (Recordare, Requiem) Richard Wagner  (Parsifal, 

ato 1, e da tetralogia O Anel dos Nibelungos: O ouro do Reno, ato 1, O Crepúsculo dos 

Deuses, a Marcha Fúnebre de Siegfried) 

Produtor executivo: Paul Berriff 

Diretor de produção: Lucki Stipetic 

Produção: Werner Herzog Filmproduktion, Munique, Canal + França, Canal + Espanha, 

Première (Alemanha) 

 

Além do azul selvagem / The wild blue yonder 

Ano: 2005 

Escrito e dirigido por Werner Herzog 

Cor 

Suporte: HD vídeo. 

Duração: 81 min.  

Locações: Ártico, Texas, NASA, espaço 

Com: Brad Dourif, astronautas do ônibus espacial STS – 34 

Fotografia: Tanja Koop, Henry Kaiser, os astronautas do ônibus espacial STS‐34, Klaus 

Scheurich 

Montagem: Joe Bini 

Som: Joe Crabb 

Música: Ernst Reijseger (Bad news from outer space, Kyrie, Rosa, Andromeda, Liberame 

Domine, Last breath, Conversation, Song of the desert, Do you stil…?, Santus, S´Andira 

(vozes: Mola Sylla, grupo de cantores da Sardenha, Cuncordu de Orosei e Dora Juarez), 

Toru Takemitsu, Tokyo realization, Corona (com Jim O´Rourke), George Frideric Händel 

(Dank sei Dir, Herr, de O Messias, Arioso da Cantata con strumenti e Ombra mai fu, de 

Xerxes) 

Diretor de produção: Irma Strehle 

Produtores executivos: Lucki Stipetic, Christiane Le Goff 

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Produtor: Andre Singer 

Produção: Werner Herzog Filmproduktion, Munique, West Park Pictures, Tetra Media ‐ 

coprodução para BBC e France 2 

 

 

3. Filmes de Werner Herzog 

 

Filmes escritos, produzidos e dirigidos por Werner Herzog.  

Empresa produtora: Werner Herzog  Filmproduktion de Munique,  chefiada por  Lucki 

Stipetic,  irmão  de Werner  Herzog  (no  caso  de  haver  outra  empresa  produtora  ou 

coprodução, o nome será citado). 

Os filmes foram elencados cronologicamente, sem separação por gênero. 

 

Héracles / Herakles: Documentário, PB, 12 min., 16 mm., 1962 

 

A defesa sem precedente da fortaleza Deutschkreuz / Die beispiellose Verteidigung der 

Festung Deutschkreuz: Ficção, PB, 15 min., 16 mm., 1966 

Com: Peter H. Bumm, Georg Eska, Karl‐Heinz Steffel, Wolgang von Ungern‐Sternberg  

Fotografia: Jaime Pacheco 

Montagem: Werner Herzog  

 

Brincando na areia / Spiel im Sand: Documentário, PB, 14 min., 1964 

Fotografia: Jaime Pacheco 

Montagem: Werner Herzog 

(filme retirado de circulação por Werner Herzog) 

 

Últimas palavras / Letze Worte: Ficção, PB, 13 min., 35 mm., 1967 

Fotografia: Thomas Mauch 

Montagem: Beate Mainka 

Som: Herbert Prasch 

 

Sinais de vida / Lebenszeichen: Ficção, PB, 87 min., 35 mm., 1968 

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Com: Peter Brogle, Wolgang Reichmann, Athina Zacharopoulou, Wolgang von Ungern‐

Sternberg 

Fotografia: Thomas Mauch 

Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus 

Som: Herbert Prasch 

Música: Stavros Xarchakos 

Diretor de produção: Nicos Triandafyllidis 

 

Os  médicos  voadores  da  África  oriental  /  Die  fliegende  Ärtze  von  Ostafrika: 

Documentário, cor, 45 min., 35 mm., 1969 

Fotografia: Thomas Mauch 

Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus 

Narração: Wilfried Klaus 

Produtora executiva: Eleonore Semler  

 

Precauções  contra  fanáticos  / Maßnahmen gegen  Fanatiker:  Ficção,  cor, 12 min.  35 

mm., 1969 

Com: Petar Radenkovic, Mario Adorf, Hans Tiedmann, Herbert Hisel, Peter Schamoni 

Fotografia: Dieter Lohmann, Jörg Schmitt‐Reitwein 

Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus 

 

Os  anões  também  começaram  pequenos  /  Auch  Zwerge  haben  klein  angefangen: 

Ficção, PB, 96 min., 1970 

Com:  Helmut  Döring,  Gerd  Gickel,  Paul  Glauer,  Erna  Gschwendtner,  Gisela  Herwig, 

Hertel Minkner, Gertraud Piccini, Alfredo Piccini, Marianne Saar, Brigitte Saar 

Fotografia: Thomas Mauch 

Assistente de fotografia: Jörg Schmitt‐Reitwein 

Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus 

Som: Herbert Prasch 

Música:  Florian  Fricke,  canções  populares  de  Costa  do Marfim  e  das  Ilhas  Canárias 

(cantora: Felisa Arrocha Martin) 

Diretor de produção: Francisco Ariza 

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Futuro obstruído / Behinderte Zukunft: Documentário, cor, 43 min., 16 mm., Munique, 

1971 

Fotografia: Jörg Schmitt‐Reitwein 

Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus 

 

País  do  silêncio  e  da  escuridão  /  Land  des  Schweigens  und  der  Dunkelheit: 

Documentário, cor, 85 min., 16 mm., Munique, 1971 

Com: Fini Straubinger 

Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein 

Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus 

Música: Johann Sebastian Bach, Antonio Vivaldi 

 

Aguirre,  a  ira  de  Deus  /  Aguirre,  der  Zorn  Gottes:  Ficção,  cor,  93  min.,  35  mm., 

Munique, 1972 

Com: Klaus Kinski, Ruy Guerra, Helena Rojo, Del Negro, Peter Berling, Cecilia Rivera, 

índios da cooperativa Lauramarca 

Fotografia: Thomas Mauch 

Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus 

Som: Herbert Prasch 

Música: Florian Fricke (Popol Vuh) 

Diretores de produção: Lucki Stipetic, Walter Saxer 

Coprodução: Hessischer Rundfunk, Frankfurt 

 

O enigma de Kasper Hauser / Jeder für sich und Gott gegen alle: Ficção, cor, 109 min., 

35 mm., Munique, 1974 

Com: Bruno S., Walter Ladengast, Brigitte Mira, Alfred Edel, Clemens Scheitz, Florian 

Fricke, Hans Musäus, Willy Semmelrogge, Henry van Lyck 

Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein 

Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus 

Com: Heimo H. Heyder 

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Música:  Popol  Vuh, Wolgang  Amadeus Mozart  (A  flauta mágica),  Johann  Pachelbel 

(Kanon), Orlando di Lasso (Requiem), Tommaso Albinoni (Adagio) 

Diretor de produção: Walter Saxer 

 

Stroszek: Ficção, cor, 108 min., 35 mm. Munique, 1976 

Com:  Bruno  S.,  Eva Mattes,  Burkhard  Driest,  Prinz  von  Homburg,  Clemens  Scheitz 

Fotografia: Thomas Mauch 

Fotografia adicional: Ed Lachman 

Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus 

Som: Heimo H. Heyder 

Música: Chet Atkins (On my way down to Phoenix, The  last thing on my mind, By the 

time I get to Phoenix), Sonny Terry (Old lost John), Ludwig von Beethoven (Arioso, op. 

81 Mondscheinsonate), canção folclórica (Sabine war ein Frauenzimmer) 

Diretor de produção: Walter Saxer 

Coprodução: ZDF 

 

How much wood would  a woodchuck  chuck:  Documentário,  cor,  45 min.,  16 mm., 

Munique, 1976 

Fotografia: Thomas Mauch 

Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus 

Som: Walter Saxer 

Diretor de produção: Walter Saxer 

 

Ninguém quer brincar comigo / Mit mir will keiner spielen: Documentário/ficção, cor, 

14 min., 16 mm., Munique, 1976 

Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein 

 

Coração de cristal / Herz aus Glas: Ficção, cor, 97 min., 35 mm., Munique, 1976 

Com: Josef Bierbichler, Stefan Güttler, Clemens Scheitz, Volker Prechtel, Sonja Skiba 

Roteiro adaptado: Herbert Achternbusch 

Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein 

Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus 

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Som: Heimo H. Heyder 

Música: Popol Vuh, Studio der frühen Musik 

Diretor de produção: Walter Saxer 

 

La Soufrière: Documentário, cor, 31 min., 16 mm., Munique, 1977 

Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein, Ed Lachmann 

Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus 

Som: Werner Herzog 

Música:  Sergei  Rachmaninoff  (Concerto  no  2  para  piano  e  orquestra),  Felix 

Mendelssohn  (Canção  sem  palavras,  no  1),  Johannes  Brahms  (Wiengenlied  meiner 

Schmerzen), Richard Wagner (O Anel dos Nibelungos, Crepúsculo dos deuses) 

Diretor de produção: Walter Saxer 

 

Nosferatu – Fantasma da noite / Nosferatu – Phantom der Nacht: Ficção, cor, 103 min., 

35 mm., Munique 1978 

Com: Klaus Kinski, Isabelle Adjani, Bruno Ganz, Roland Topor, Jacques Dufilho, Walter 

Ladengast 

Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein 

Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus 

Som: Harald Maury 

Música: Popol Vuh, Vokal Ansambl Gordela (Zinskaro), Charles Gounod (Sanctus, Missa 

Solene), Richard Wagner (O Anel dos Nibelungos: O Ouro do Reno) 

Diretor de produção: Walter Saxer 

Coprodução: Gaumont, Paris 

 

Woyzeck: Ficção, cor, 81 min., 35 mm., Munique 1979 

Com:  Klaus  Kinski,  Eva Mattes, Wolgang  Reichmann, Volker  Prechtel,  Irm Hermann, 

Josef Bierbirchler, Willy Semmelrogge 

Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein 

Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus 

Som: Harald Maury 

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Música:  Fidelquartett  Telc  (Polcas),  Rudolf  Obruca  (Söpvamsly  Pochod),  Benedetto 

Marcello  (Concerto para oboé em  fá menor), Antonio Vivaldi  (Concerto para violão e 

orquestra em ré maior) 

Diretor de produção: Walter Saxer 

 

O  furioso homem de Deus  / God’s angry man: Documentário,  cor, 44 min., 16 mm., 

Munique, 1980 

Com Eugene Scott 

Fotografia: Thomas Mauch 

Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus 

Diretor de produção: Richard Cybulski 

 

O sermão de Huie / Huie’s sermon: Documentário, cor, 43 min., 16 mm., Munique 1980 

Com: Huie L. Rogers 

Fotografia: Thomas Mauch 

Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus 

Diretor de produção: Richard Cybulski 

 

Fitzcarraldo: Ficção, cor, 157 min., 35 mm., 1982 

Com:  Klaus  Kinski,  Claudia  Cardinale,  José  Lewgoy,  Miguel  Ángel  Fuentes,  Grande 

Otelo, Paul Hittscher, Peter Berling, Huerequeque Enrique Bohorquez, David   Pérez 

Espinosa, Milton Nascimento 

Fotografia: Thomas Mauch 

Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus 

Som: Juarez Dagoberto 

Música: Popol Vuh, Richard Strauss (Morte e Transfiguração), Giuseppe Verdi(Ernani), 

Ruggero Leoncavallo  (I Pagliacci, Ridi Pagliaccio com Enrico Caruso), Vincenzo Bellini, 

(A  te o  cara, amor  talora,  I Puritani), Giacomo Puccini  (O Mimi,  tu più non  torni,  La 

Bohème, com Enrico Caruso), Giacomo Meyerbeer (O Paradiso, L’Africana, com Enrico 

Caruso), Giuseppe Verdi   (quarteto), música tradicional do Burundi 

Diretor de produção: Walter Saxer 

Coprodução: Project Filmproduktionen im Filmverlag der Autoren, Munique; ZDF 

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Gasherbrum  –  A  montanha  luminosa  /  Gasherbrum  –  Der  leuchtende  Berg: 

Documentário, cor, 45 min., 16 mm., 1984 

Com: Reinhold Messner, Hans Kammerlander 

Fotografia: Rainer Klausmann, Jorge Vignati, Reinhold Messner 

Montagem: Maximiliane Mainka 

Som: Christine Ebenberger 

Música: Popol Vuh 

Produtor: Lucki Stipetic 

 

A  balada  do  pequeno  soldado  /  Die  Ballade  vom  kleinen  Soldaten  ‐  Der 

untergrundkampf der Miskito‐Indianer  in Nicaragua: Documentário,  cor, 45 min., 16 

mm., 1984 

Fotografia: Jorge Vignati, Michael Edols 

Montagem: Maximiliane Mainka 

Som: Christine Ebenberger 

Música: canções populares 

Diretor de produção e assistente de direção: Denis Reichle 

Produtor: Lucki Stipetic 

 

O país onde sonham as formigas verdes / Wo die grünen Ameisen träumen: Ficção, cor, 

100 min., 35 mm., 1984 

Com: Bruce Spence, Wandjuk Marika, Roy Marika, Ray Barrett, Norman Keye 

Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein 

Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus 

Som: Claus Langer 

Música: Gabriel  Fauré  (Requiem), Richard Wagner  (Wesendonk‐Lieder),  Ernest  Bloch 

(Voice in the Wilderness), Klaus‐Jochen Wiese (Temporary Galaxies)  

Produtor: Lucki Stipetic 

 

Retrato Werner Herzog / Werner Herzog  ‐ Filmemacher: Documentário, cor, 29 min., 

1986 

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Com: Werner Herzog 

Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein 

Montagem: Maximiliane Mainka 

Som: Christine Ebenberger 

Coprodução: TransTel GmdH, Colônia 

 

Cobra Verde: Ficção, cor, 110 min., 35 mm., 1987 

Com: Klaus Kinski, Rei Ampaw, José Lewgoy, Peter Berling, Salvatore Basile 

Fotografia: Victor Ruzicka 

Montagem: Maximiliane Mainka 

Som: Heymo H. Heyder 

Música: Popol Vuh 

Diretores de produção: Walter Saxer, Salvatore Basile 

Produtor: Lucki Stipetic 

 

Os Franceses vistos por... / The French as seen by...: Documentário, 12 min., 1988 

 

Wodaabe, pastores do  sol  / Wodaabe, herdsmen  of  the  sun: Documentário,  cor,  52 

min., 16 mm, 1989 

Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein 

Montagem: Rainer Standke 

Som: Walter Saxer 

Música:  Wolgang  Amadeus  Mozart  (Don  Giovanni),  Charles  Gounod  (Ave  Maria), 

Giuseppe Verdi (Requiem), George Frideric Händel (Julius Caesar, Xerxes) 

Diretor de produção: Walter Saxer 

 

Ecos de um império sombrio / Echos aus einem düsteren Reich: Documentário, cor, 93 

min., 16 mm., 1990 

Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein 

Montagem: Rainer Standke 

Música: Michael Kreihsl 

Diretor de produção: Walter Saxer 

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Jag Mandir: Documentário, cor, 85 min., 16 mm., 1991 

Fotografia: Rainer Klausmann, Wolfgang Dickmann, Anton Peschke 

Montagem: Michou Hutter 

Som: Rainer Wiehr 

Diretor de produção: Wolfgang Rest 

 

Film Lesson 1 – 4: Documentários (4), 1991 

 

Grito de pedra / Schrei aus Stein: Ficção, cor, 105 min., 35 mm., 1991 

Com: Donald Sutherland, Vittorio Mezzogiorno, Mathilda May, Stefan Glowacz 

Roteiro original: Hans Ulrich Klenner, Walter Saxer, Robert Geoffrion 

Fotografia: Rainer Klausmann 

Montagem: Suzanne Baron 

Som: Christopher Price 

Música: Richard Wagner (Tristão e Isolda), Ingram Marshal (Fog tropes), Sara Hopkins 

(Songs  of  the wind),  Alan  Lamb  (Journeys  on  the winds  of  time,  I), Heinrich  Schütz 

(sacral choir music) 

Diretor de produção: Erna Erlacher 

Produtor executivo: Walter Saxer 

Produtores: Walter Saxer, Henri Lange, Richard Sadler 

 

Sinos  da  profundeza  –  Fé  e  supertição  na  Rússia  /  Bells  from  the  deep  –  Faith  and 

superstition in Russia: Documentário, cor, 60 min., S16 mm., 1993 

Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein 

Assistente de direção: Rudolph Herzog 

Montagem: Rainer Standke 

Som: Vyacheslav Belozerov 

Música:  Coral  do  mosteiro  de  Zagorsk,  Coral  da  Academia  Espiritual  de  São 

Petersburgo, cantores Tuva 

Produtor: Lucki Stipetic 

 

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A  transformação  do  mundo  em  música  /  Die  Verwandlung  der  Welt  in  Musik: 

Documentário, 92 min., S 16 mm., 1994 

Com: Wolfgang Wagner,  Sven  Friedrich,  Yohji  Yamamoto,  Placido  Domingo,  Dieter 

Dorn, Heiner Müller, Waltraud Maier, Siegfried Jerusalem 

Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein 

Montagem: Rainer Standke 

Som: Ekkehart Baumung 

Música: Richard Wagner (Tristão e Isolda, O Holandês voador, Parsifal, Lohengrin) 

Produtor: Lucki Stipetic 

 

Morte a cinco vozes  / Tod  für  fünf Stimmen: Documentário, cor, 60 min., S 16 mm., 

1995 

Com:  Pasquale  d’Onofrio,  Salvatore Catorano, Angelo Carrabs, Milva, Angelo Michel 

Torriello, Vicenzo Giusto, Alan Curtis, Gerald Place, Príncipe de Avalos  

Fotografia: Peter Zeitlinger 

Montagem: Rainer Standke 

Som: Ekkehart Baumung 

Música: Carlo Gesualdo  (madrigais, com  Il Complesso Barroco e Gesualdo Consort of 

London) 

Diretor de produção e produtor: Lucki Stipetic 

Co‐produção: ZDF 

 

O pequeno Dieter precisa voar / Little Dieter needs to fly: Documentário, cor, 80 min. e 

52 min., S 16 mm., 1997 

Fotografia: Peter Zeitlinger, Les Blank 

Montagem: Rainer Standke, Glenn Scantlebury, Joe Bini 

Som: Ekkehart Baumung 

Música: Bela Bartok  (Buciumcana), Carlos Gardel  (tangos: Volver  e  Juventud), Glenn 

Miller  (In  the mood),  Kongar‐ol Ondar  (Echoes  of  Tuva),  Richard Wagner  (Morte  do 

amor,  Tristão  e  Isolda),  Anton Dvorak  (Aus  der Neuen Welt,  Sinfonia  nº  9), música 

popular  (Uzlyau,  Oay  Lahy  É,  Madagascar),  Hiran’ny  Tanovan’ny,  Ntao  Lo),  Johan 

Sebastian Bach (Jesus alegria dos homens, Coral da Cantata nº 147) 

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Produtor: Lucki Stipetic 

Prodtudor associado: Café Productions, para ZDF 

Co‐produção: ZDF, ZDF Enterprises, BBC 

 

Deus  e  os  carregadores  de  fardos  / Gott  und  die Beladenen: Documentário,  cor,  43 

min., vídeo, 1999 

Fotografia: Jorge Vignati 

Montagem: Joe Bini 

Som: Francisco Adrianzen 

Música:  Charles  Gounod  (Missa  de  Santa  Cecília,  Sanctus),  Orlando  di  Lasso 

(Lamentações de Jeremias, Missa pro defunctus) 

Produtor executivo: Lucki Stipetic 

Produtores: Joachim Puls, Martin Choroba 

 

Cristo e demônios na Nova Espanha / Christ and demons in New Spain: Documentário, 

cor, 35 min., vídeo, 1999 

Fotografia: Jorge Vignati, Ed Lachman 

Montagem: Joe Bini 

Som: Francisco Adrianzen 

Produtor executivo: Lucki Stipetic 

Diretor de produção México: Luz‐Maria Rojas 

Diretor de produção Guatemala: Alfonso Rios Montt 

Produtores: Martin Choroba, Joachim Puls 

 

Asas da esperança  / Wings of hope: Documentário,: Documentário,  cor, 70 min., 49 

min., e  42 min. (Julianes Sturz in den Dschungel), S 16 mm., 1999 

Com: Juliane: Köpcke 

Fotografia: Peter Zeitlinger 

Montagem: Joe Bini 

Som: Josch Rosen 

Música:  Richard Wagner  (O  ouro  do  Reno,  Parsifal),  Igor  Stravinsky  (A  sagração  da 

primavera) 

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Produtor executivo: Peter Firstbrook 

Diretor de produção: Ulrich Bergfelder 

Produtor: Lucki Stipetic 

 

Meu melhor inimigo / Mein liebster Feind: Documentário, cor, 95 min., S 16 mm., 1999 

Com: Klaus Kinski, Eva Mattes, Claudia Cardinale, Beat Presser, Guillermo Rios, Andres 

Vicente, Justo Gonzalez, Benino Moreno Placido, Barão e Baronesa v. d. Recke, José  

Koechlin von Stein, Bill Pence 

Fotografia: Peter Zeitlinger 

Montagem: Joe Bini 

Som: Eric Spitzer 

Música: Popol Vuh 

Produtor: Lucki Stipetic 

 

Invencível / Invincible: Ficção, cor, 120 min., 35 mm., 2000 

Com: Youko Ahola, Tim Roth, Anna Gourari, Udo Kier, Max Raabe Palast Orchestra 

Fotografia: Peter Zeitlinger 

Montagem: Joe Bini 

Som: Simon Willis 

Música: Hans Zimmer 

Produtor executivo: Lucki Stipetic, James Mitchell 

Produtores: Werner Herzog, Christine Ruppert, Garry Bart 

 

Peregrinação / Pilgrimage: Documentário, cor, 18 min., 35 mm., 2001 

Fotografia: Jorge Pacheco, Jörg Schmidt‐Reitwein, Erik Söllner 

Montagem: Joe Bini 

Som: Neil Pemberton 

Música: Sir John Tavener (Mahamatra) 

Produtor executivo: Rodney Wilson 

Diretor de produção: Luz‐Maria Rojas 

Produtor: Lucki Stipetic 

 

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Dez mil anos mais  / Ten  thousand years older: Documentário, cor, 10 min., 35 mm., 

2001 

Fotografia: Vicente Rios 

Montagem: Joe Bini 

Som: Walter Saxer 

Música: Paul Englishby 

Diretor de produção: Walter Saxer 

Produtor: Lucki Stipetic 

Coprodução: Central Independent Television 

 

A roda do tempo / Wheel of time: Documentário, cor, 80 min., 35 mm., 2003 

Com:  Sua  Santidade  o  140  Dalail  Lama,  Ven.  Geshe  Tenzin  Dhargye,  monges  do 

mosteiro  de  Namgyal  Negi,  Chungdak  D.  Koren,  Dr. Manfred  Klell, Madhurita  Negi 

Anand, Lama Lhundup Woeser, Takna Jigme Sangpo, Matthie Ricard, Thupten Tsering 

Mukhimsar 

Fotografia: Peter Zeitlinger, Werner Herzog 

Montagem: Joe Bini 

Som: Eric Spitzer 

Música:  Florian  Fricke  /  Popol  Vuh  (Silence  of  the  night),  Lhamo  Dolma  (Tibetan 

song),Prem Rana Autari (Himal), Sur Sudha‐Autari (Raja Mati) 

Produtor executivo: Andre Singer 

Diretor de produção: Irma Strehle 

Produtor: Lucki Stipetic 

 

O diamante branco / The white diamond: Documentário, cor, 87 min., HD vídeo e 35 

mm., 2004 

Com:  Graham  Dorrington,  Mark  Anthony  Yhap,  Anthony  Melville,  Red  Man,  The 

Rooster, Jason Gibson, Jan‐Peter Meewes, Michael Wilk 

Fotografia: Henning Brümmer, Klaus Scheurich 

Montagem: Joe Bini 

Som: Eric Spitzer 

Música: Ernst Reijseger 

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Produtores executivos: Rudolph Herzog, Klaus Scheurich 

Diretor de produção: Hennes Grossmann 

Produtores: Annette Scheurich, Lucki Stipetic, Werner Herzog 

Empresa produtora: Marco Polo Film AG. 

 

O homem urso / Grizzly man: Documentário, cor, 103 min., S 16 mm., HD vídeo, 2005 

Com: Timothy Treadwell, Amie Huguenard, Jewel Palovak 

Fotografia: Peter Zeitlinger 

Montagem: Joe Bini 

Música: Richard Thompson 

Produtores executivos: Erik Nelson, Billy Campbell, Tom Ortenberg, Kevin Beggs, Phil 

Fairclough, Andrea Meditch 

Co‐produtor executivo: Jewel Palovak 

Produtor: Erik Nelson 

 

O sobrevivente / Rescue dawn: Ficção, cor, 126 min., 35 mm., 2006 

Com Christian Bale, Steve Zahn, Jeremy Davies, Marshall Bell, Pat Healy 

Fotografia: Peter Zeitlinger 

Montagem: Joe Bini 

Música: Frances‐Marie Uitti 

Produtor executivo: Jimmy de Brabant, Gerald Green 

Produtor: Elton Brand, Steve Marlton, Harry Knapp 

Empresas produtoras: Gibraltar Entertainment and Production 

 

Encontros no fim do mundo / Encounters at the end of the world: cor, 99 min. HD‐CAM, 

2007 

Com: David Ainley, Samuel S. Bowser, Regina Eisert 

Fotografia: Peter Zeitlinger 

Montagem: Joe Bini 

Som: Werner Herzog 

Música: Henry Kaiser, David Lindley 

Produtor: Henry Kaiser 

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La Bohème, cor, 2009 

Fotografia: Richard Blanshard 

Produtor executivo: Lucki Stipetic, Fiona Morris 

Produtor: Andre Singer 

 

Vício  frenético  / The bad  lieutenant: Port of Call New Orleans: Ficção, cor, 122 min., 

2009 

Com: Nicolas Cage, Eva Mendes, Val Kilmer, Jennifer Coolidge, Brad Dourif 

Roteiro: William Finkelstein 

Fotografia: Peter Zeitlinger 

Montagem: Joe Bini 

Música: Mark Isham 

Produtor: John Thompson, Melanie Brown, Alessandro Camon, Boaz Davidson, Danny 

Dimbort, Avi Lerner, Elliot Lewis Rosenblatt. 

Coprodução: Millennium Films, Saturn Films 

 

My son, my son, what have ye done: Ficção, cor, 91 min., 2009 

Com: Michael Shannon, Willem Dafoe, Chloë Sevigny, Udo Kier, Brad Dourif 

Fotografia: Peter Zeitlinger 

Montagem: Joe Bini, Omar Daher 

Música: Ernst Reijseger 

Produtor: David Lynch 

 

A  caverna  dos  sonhos  perdidos  /  Cave  of  forgotten  dreams: Documentário,  cor,  90 

min., 2010 

Com: Werner Herzog, Dominique  Baffier,  Jean  Clottes,  Jean‐Michel Geneste,  Carole 

Fritz, Gilles Tosello, Michel Philippe 

Fotografia: Peter Zeitlinger 

Montagem: Joe Bini, Maya Hawke 

Música: Ernst Reijseger 

Produtor: Erik Nelson, Adrienne Ciuffo, Dave Harding, Julian Hobbs, David McKillop 

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Coprodução: Creative Differences, More4, Arte France, Ministère de la Culture et de la 

Communication, History Films 

 

Dentro do abismo / Into the Abyss: Documentário, cor, 105 min., 2011 

Fotografia: Peter Zeitlinger 

Montagem: Joe Bini  

Música: Mark Degli Antoni 

Produtor executivo: Lucki Stipetic, Erik Nelson 

Produtor: Andre Singer, Dave Harding, Amy Briamonte, Henry Schleiff, Sara Kozak 

Coprodução: Investigation Discovery, Creative Differences  

 

 

4. Documentários sobre Werner Herzog e seus filmes citados 

 

Fardo dos sonhos / Burden od dreams, cor, 95 min. 1982 

Direção: Les Blank 

Fotografia: Les Blank 

Montagem: Maureen Gosling 

Produção: Les Blank, Kathy Kline e David R. Loxton 

 Réquiem no espaço – Werner e Ernst fazem música / Requiem in space – Werner and 

Ernst make music, cor, 27 min., 2005 

Direção: Nicholas McClintock 

Edição: Robin Pender e Patrick Nugent 

Música: Ernst Reijseger  

Produtor: Andre Singer, Nicholas Singer 

Produção: Werner Herzog Filmproduktion, West Park Pictures e Tetra Media 

 

No Além do azul selvagem com Werner Herzog / The Wild blue yonder with Werner 

Herzog, cor, 26 min., 2006 

Direção e produção: Michael Basden, Norman Hill, Peter Langs, Carl Tostevin, 

Christopher Viers 

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Fotografia: Eric Gersh 

Montagem: Mark Savage 

 

De cortes de cabelo a Herzog – No Além do azul selvagem com Brad Dourif / Haircuts 

to Herzog – The Wild blue yonder with Brad Dourif, cor, 19 min., 2006 

Direção  e  produção:  Michael  Basden,  Norman  Hill,  Peter  Langs,  Carl  Tostevin, 

Christopher Viers 

Fotografia: Eric Gersh 

Montagem: Mark Savage 

 

 

5. Filmes de outros diretores citados 

 

 A chegada do  trem à estação de  la Ciotat / L’arrivée d´un  train en gare à La Ciotat,   

Auguste e Louis Lumière, 1895 

As brumas da Guerra / The fog of war, Errol Morris, 2003 

As cinco obstruções / The five obstructions, Lars von Trier, 2003 

Abril / Aprile, Nanni Moretti, 1998 

Apocalypse Now, Francis Ford Coppola, 1979 

Caro diário / Caro diario, Nanni Moretti, 1993 

Central do Brasil, Waler Salles, 1998 

Documentiroso / Documenteur, Agnès Varda, 1980 

2001: uma odisseia no espaço / 2001: a space odyssey, Stanley Kubrick, 1968 

Duas  ou  três  coisas  que  sei  dela  / Deux  ou  trois  choses  que  je  sais  d´elle,  Jean‐Luc 

Godard, 1967 

Edifício Martinelli, Ugo Giorgetti, 1975 

E.T., o extraterrestre / E.T., the extra‐terrestrial, Steven Spielberg, 1982 

Fahrenheit 451, François Truffaut, 1966 

Grey Gardens, Albert Maysles, David Maysles, Muffie Meyer, Ellen Hovde, 1975 

Irmãs jamais / Sorelle Mai, Marco Bellocchio, 2010 

Isto não é um  filme / This  is not a  film,  Jafar Panahi  (com a colaboração de Mojtaba 

Mirtahmasb), 2011 

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Jogo de Cena, Eduardo Coutinho, 2007 

Koyaanisqatsi, vida fora de equilíbrio / Koyaanisqatsi, life out of balance, Godfrey 

Reggio, 1982 

Naqoyqatsi, vida como guerra / Naqoyqatsi, life as war, Godfrey Reggio, 2002 

O crepúsculo dos deuses / La caduta degli dei, Luchino Visconti, 1969 

O homem com a câmera / Chelokev s kinoapparatom, Dziga Vertov, 1929 

Ônibus 174, José Padilha, 2002 

Powaqatsi, vida em transfomação / Powaqatsi, life in transformation, Godfrey Reggio, 

1988 

Sábado, Ugo Giorgetti, 1995 

Sem sol / Sans soleil, Chris Marker, 1983 

Socorro Nobre, Walter Salles, 1995 

Titanic, James Cameron, 1997 

Titicut Follies – Frederick Wiseman, 1967 

Tokyo‐Ga, Wim Wenders, 1985 

Última parada 174 ‐ Bruno Barreto, 2008 

Zabriskie Point, Michelangelo Antonioni, 1970 

 

 

6. Óperas dirigidas por Werner Herzog 

 

1986: Doutor Fausto, de Ferruccio Busoni, Teatro Comunale Bologna,  regente Zoltan 

Pesko 

1987: Lohengrin, de Richard Wagner, Festival Bayreuth, regente Peter Schneider 

1989:  Joana D’Arc,  de Giuseppe  Verdi,  Teatro  Comunale  Bologna,  regente  Riccardo 

Chailly 

1991: A flauta mágica, de Wolgand Amadeus Mozart, Teatro Bellini, Catania, regente 

Spiros Argiris 

1992:  La  donna  del  lago,  de  Gioacchino  Rossini,  Teatro  La  Scala,  Milão,  regente 

Riccardo Muti 

1993: O Holandês  voador,  de  Richard Wagner, Opéra  Bastille,  Paris,  regente  Chung 

Myung‐whun 

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1994: O Guarany, de Antonio Carlos Gomes, Oper Bonn, regente John Neschling 

1994: Norma, de Vincenzo Bellini, Arena di Verona, regente Gustav Kuhn 

1996:  O  Guarany,  de  Antonio  Carlos  Gomes,  The Washington  Opera,  regente  John 

Neschling 

1997: Chushingura, de Shigeaki Saegusa, Tóquio 

1997: Tannhäuser, de Richard Wagner, Teatro de la Maestranza, Sevilha, regente Klaus 

Weise 

1997:  Tannhäuser,  de  Richard  Wagner,  Opéra  Royal  de  Wallomie,  Liège,  regente 

Friedrich Pleyer 

1998: Tannhäuser, de Richard Wagner, Teatro di San Carlo, Nápoles,  regente Gustav 

Kuhn 

1998:  Tannhäuser,  de  Richard  Wagner,Teatro  Massimo,  Palermo,  regente  John 

Neschling 

1999: Tannhäuser, de Richard Wagner,Teatro Real, Madri, regente Cristof Perick 

1999: A flauta mágica, de Wolgand Amadeus Mozart, Teatro Bellini, Catania, regente 

Zoltan Pesko 

1999: Fidelio, de Ludwig van Beethoven, Teatro La Scala, Milão, regente Riccardo Muti 

2000: Tannhäuser, de Richard Wagner, Baltimore Opera Company,  regente Christian 

Badea 

2001: Joana D’Arc, de Giuseppe Verdi, Teatro Carlo Felice, Gênova, regente Nello Santi 

2001: Tannhäuser, de Richard Wagner, Teatro Municipal, Rio de Janeiro, regente Karl 

Martin 

2001: Tannhäuser, de Richard Wagner, Houston Grand Opera, Houston, regente John 

Fiore 

2001:  A  flauta  mágica,  de  Wolgang  Amadeus  Mozart,  Baltimore  Opera  Company, 

regente Will Crutchfield 

2002: O Holandês  voador, de Richard Wagner, Domstufen  Festspiele  Erfurt,  regente 

Norbert Gugerbauer 

2008: Parsifal, de Richard Wagner, Palau de les Arts, Valencia, regente Lorin Maazel 

 

 

 

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7. Índice iconográfico 

 

Imagens Paisagens mentais e seus personagens 

 

Paisagens mentais 1........................................................................................................49 

Figura 1 ‐ Paisagem montanhosa (H. Seghers). Disponível em: <http://www.chrisdenengelsman.nl/Reprocitaat/Seghers/Mountainous%20Landscape.jpg>. Acesso em: 9 out. 2011. Figura 2 ‐ Lições da Escuridão, incêndio 1 (W. Herzog, 1992). Disponível em: <http://www.wernerherzog.com/photos.html>. Acesso em: 9 out. 2011.  

Paisagens mentais 2........................................................................................................50 

Figura 3 ‐ Cidade com quatro torres (H. Seghers). Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/99/Seghers_mesto_s_ctyrmi_vezemi.jpg>. Acesso em: 9 out. 2011. Figura 4 ‐ Fata Morgana, habitações no deserto (W. Herzog) Disponível em:   <http://2.bp.blogspot.com/_zGreRPcsAtg/TAJF4kQfyuI/AAAAAAAABns/qddMmVDuG8Y/s1600/Fata+Morgana2.jpg>. Acesso em: 9 out. 2011. 

 

Paisagens mentais 3........................................................................................................51 

Figura 5 ‐ Monge à beira‐mar (C. D. Friedrich). Disponível em: <http://www.terminartors.com/files/artworks/1/4/5/14528/Friedrich_Caspar_David‐Monk_by_the_Sea.jpg>. Acesso em: 9 out. 2011. Figura 6 ‐ Além do azul selvagem, Antártico 1 (W. Herzog). Disponível em: <http://www.wernerherzog.com/photos.html>. Acesso em: 9 out. 2011. Figura 7 ‐ Tempestade de neve (W. Turner .....................................................................52 Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/File:William_Turner_‐_Snowstorm.JPG>.  Acesso em: 13 nov. 2011.  

Paisagens mentais 4........................................................................................................53 

Figura 8 ‐ Beira‐mar ao luar (C. D. Friedrich). Disponível em: <http://aupcomplit.files.wordpress.com/2011/03/caspar‐david‐friedrich‐bord‐de‐mer‐au‐clair‐de‐lune‐louvre_.jpg>. Acesso em: 9 out. 2011. Figura 9 ‐ Lições da Escuridão, poço de petróleo 1 (W. Herzog). Disponível em: <http://eroonkang.com/16x16/?cat=4403>. Acesso em: 9 out. 2011.  

Paisagens mentais 5........................................................................................................54 

Figura 10 ‐ A cruz na montanha (C. D. Friedrich). Disponível em: 

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<http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5c/Caspar_David_Friedrich_‐_The_Cross_in_the_Mountains_‐_WGA08246.jpg>. Acesso em: 9 out. 2011.   Figura 11 ‐ Lições da Escuridão, poço de petróleo 2 (W. Herzog). Disponível em: <http://filmsufi.blogspot.com/2010/05/lessons‐of‐darkness‐werner‐herzog‐1992.html>. Acesso em: 9 out. 2011. Figura 12 ‐ O navio negreiro (W. Turner) ........................................................................55 Disponível em: <http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/turner/> . Acesso em: 10 nov. 2011.  

 

Paisagens mentais 6........................................................................................................56 

Figura 13 ‐ Homem e mulher observando a lua (C. D. Friedrich).  Disponível em: <http://preferenser.files.wordpress.com/2010/07/caspar_david_friedrich_man‐woman‐moon.jpg>. Acesso em: 9 out. 2011.   Figura 14 ‐ Além do azul selvagem, Antártico 2 (W. Herzog, 2005). Disponível em: <http://www.wernerherzog.com/photos.html> . Acesso em: 10 nov. 2011. 

 

Imagens Fata Morgana: deserto e danação 

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Figura 22 ‐ Fata Morgana, menino com raposa do deserto 3 (W. Herzog) Disponível em:  <http://jordanhoffman.com/2009/10/>. Acesso em: 7 nov. 2011.  

Imagens Lições da Escuridão: o Apocalipse em treze quadros  

Figura 23 ‐ Lições da Escuridão, imagem de arquivo (W. Herzog .................................107 Disponível em: < http://filmsufi.blogspot.com/2010/05/lessons‐of‐darkness‐werner‐herzog‐1992.html>. Acesso em: 12 out. 2011. Figura 24 ‐ Lições da Escuridão, incêndio 2 (W. Herzog ................................................111 Disponível em: <http://abraxas365dokumentarci.blogspot.com/2009/11/lessons‐of‐darkness‐1992.html>. Acesso em: 12 out. 2011. Figura 25 ‐ O Anel dos Nibelungos (R. Wagner). Disponível em: <http://payingpatronperspective.blogspot.com/2010/06/preview‐wagners‐der‐ring‐des‐nibelungen.html>. Acesso em: 12 out. 2011. 

 

Imagens Além do azul selvagem: o círculo poético se fecha 

Figura 26 ‐ São José carpinteiro (G. de La Tour .............................................................130 Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:La_Tour.jpg>  Acesso em: 12 out. 2011. Figura 27 ‐ Além do azul selvagem, espaço (W. Herzog................................................131 Disponível em: <http://getfilm.co.uk/film.php?id=8410>  Acesso em: 12 out. 2011. Figura 28 ‐ Além do azul selvagem, buraco no gelo (W. Herzog) Disponível em: <http://www.theaspectratio.net/fantasiafinaledition.htm>  Acesso em: 12 out. 2011.

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FONTES BIBLIOGRÁFICAS 

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3. Teses e dissertações 

 

CRUZ,  Roberto  M.  S.  Imagens  projetadas:  Projeções  audiovisuais  e  narrativas  no 

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NAGIB, Lúcia. Werner Herzog: O cinema como realidade. 1988. Dissertação (Mestrado 

em Artes – Departamento de Cinema, Rádio e Televisão) – Escola de Comunicações e 

Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo. 

 

 

4. Webgrafia 

 

www.wernerherzog.com 

www.imdb.com  

www.revelationbibleprophecy.org