pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo...necessários para a aplicação de uma sanção...

161
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Felipe Gonçalves Fernandes A TIPICIDADE E O REGIME DISCIPLINAR DE SERVIDORES PÚBLICOS MESTRADO EM DIREITO São Paulo 2016

Upload: others

Post on 19-Jan-2021

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Felipe Gonçalves Fernandes

A TIPICIDADE E O REGIME DISCIPLINAR

DE SERVIDORES PÚBLICOS

MESTRADO EM DIREITO

São Paulo

2016

Page 2: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Felipe Gonçalves Fernandes

A TIPICIDADE E O REGIME DISCIPLINAR

DE SERVIDORES PÚBLICOS

São Paulo

2016

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo como exigência parcial para a obtenção do

título de Mestre em Direito, sob a orientação do

Professor Doutor Ricardo Marcondes Martins.

Page 3: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Felipe Gonçalves Fernandes

A TIPICIDADE E O REGIME DISCIPLINAR

DE SERVIDORES PÚBLICOS

Aprovada em: ___ de _______________ de _____.

BANCA EXAMINADORA:

Page 4: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

À minha mãe, LILI, pelo carinho e

amor incondicional.

Ao meu pai, TARCÍSIO, pelo suporte e

preciosos conselhos.

À minha esposa, PRISCILA, pela

compreensão dispensada durante

todas as jornadas.

Page 5: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

AGRADECIMENTOS

Aos meus colegas e amigos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, pelo

apoio em meu desenvolvimento acadêmico.

Aos meus colegas e amigos da Associação dos Procuradores do Estado de São

Paulo, pelos ensinamentos que apenas a experiência nos traz.

Ao Professor Ricardo Marcondes Martins, pela atenção dispensada na orientação

deste trabalho e por transmitir a fé que possui no Direito Administrativo.

A Priscila, pelo amor e apoio de quem sempre acreditou em meus sonhos.

Aos meus colegas de mestrado, em quem tanto me apoiei para trilhar o caminho

de conclusão do curso de mestrado.

Page 6: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

RESUMO

O Estado Brasileiro vige sob a égide de uma Constituição democrática que consagra

diversos princípios, os quais se irradiam pelo Ordenamento Jurídico para avançar sobre

todas as áreas do Direito, inclusive sobre o direito administrativo, de maneira que também

toca o direito disciplinar, sub-ramo daquela matéria que será especialmente tratado nesta

pesquisa. Dentre os consagrados princípios, se encontra o princípio da segurança jurídica,

o qual, além de outras facetas, garante aos administrados um mínimo de previsibilidade

em relação às condutas estatais. Não obstante, foi aceito historicamente (hipótese

admitida por parcela significativa da doutrina até os presentes dias) que a tipificação

formal de condutas no direito disciplinar (subsistema que cuida do sancionamento de

servidores públicos) seria distinta daquela estabelecida para o direito penal, onde não só

se reconhece como se exige uma tipicidade fechada como garantia individual dos

cidadãos, de modo a se fazer imprescindível nesse sistema que a conduta descritiva do

delito seja posta de maneira clara e precisa no texto legal, de sorte que não são admitidos,

como regra, conceitos genéricos ou indeterminados na descrição do tipo. Diante isso,

analisamos na presente pesquisa os pressupostos para a aplicação das sanções

administrativas, com ênfase nas sanções disciplinares, contrapondo-as ao regime de

garantias dos servidores fixado pela Constituição da República de 1988 e os fundamentos

que o justificam. Referida análise se deu a partir de estudo histórico e dogmático das

teorias que influenciaram (e continuam a influenciar em determinada medida) a

interferência da Administração Pública sobre aqueles que estabelecem com ela vínculos

especiais de poder. Sendo assim, problematizamos o estabelecimento de tipos punitivos

abertos no direito disciplinar, justificados historicamente pelas chamadas relações

especiais de sujeição, à luz das garantias estabelecidas em nosso Estado Constitucional,

especialmente a segurança jurídica, a democracia e o direito fundamental a uma boa

administração. Essa análise incita a reflexão sobre a necessidade de objetivação dos tipos

disciplinares, se não por meio de alterações legislativas (tarefa a que não nos propomos),

pela ordenação do todo caótico representado pelas regras jurídicas por meio do

estabelecimento de diretrizes hermenêuticas que representarão limites ao hierarca e se

prestarão a contribuir para uma análise mais consentânea do tema com os valores da

Constituição Federal.

Palavras-chave: Tipicidade. Direito Disciplinar. Servidores Públicos. Garantias.

Page 7: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

ABSTRACT

The Brazilian State is governed by a democratic Constitution that enshrines several

principles, which are spread through the Legal System and extend to all the branches of

the Law, including administrative law, and as a consequence reach disciplinary law, a

sub-division of the matter that will be specifically approached in this study. Among said

long-standing principles is the principle of legal security, which, among other aspects,

ensures citizens a minimum foreseeability when it comes to government conducts.

Nevertheless, over history one has accepted (including a significant portion of legal

scholars to date) that the formal legal definition of punishable conducts under the

disciplinary law (a sub-system that provides for the sanctioning of civil servants) were to

be distinct from that applied to criminal law, where one not only recognizes but also

requires a clearly delineated legal concept as a means to afford citizens an individual

guarantee, in order that the conduct defined as an offense in such system be necessarily

described by the law in a clear and accurate manner, in that no generic or vague concepts

be accepted. Accordingly, in this study one will analyze the requirements for enforcement

of administrative sanctions, with a special focus on disciplinary sanctions, as opposed to

the system of guarantees afforded to civil servants by the Brazilian Constitution of 1988

and the grounds underlying it. The analysis will be made from a historical and dogmatic

study of the theories that have influenced (and that still influence, to a certain extent) the

interference exercised by the Public Administration in those who engage in special

relationships of power with it. Therefore, one shall scrutinize the issues concerning the

definition of generic punishable conducts under the disciplinary law, historically justified

by the so-called special relationships of subjection, in light of the guarantees established

in our Constitutional State, particularly legal security, democracy and the fundamental

right to a proper administration. The analysis will look into the need for an objective

perception of punishable conducts, if not through legislative amendment (a task we are

not undertaking here), then through the organization of the chaotic whole of legal rules,

by setting out hermeneutical guidelines that will function as limits to public authorities

and will thus contribute to an analysis of the matter that is more compatible with the

values found in the Federal Constitution.

Keywords: Legal definition of punishable conduct. Disciplinary Law. Civil Servants.

Guarantees.

Page 8: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 10

1 O REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES PÚBLICOS .................................. 14

1.1 Intróito .............................................................................................................. 14

1.2 Os servidores públicos..................................................................................... 14

1.3 Importância e fundamentos do regime estatutário ...................................... 16

1.4 As garantias constitucionais dos servidores públicos ................................... 24

1.4.1 Os cargos públicos ................................................................................. 24

1.4.2 O ingresso na Administração Pública ................................................... 25

1.4.3 A estabilidade ........................................................................................ 34

1.4.4 A disponibilidade .................................................................................. 39

1.4.5 A irredutibilidade de vencimentos ........................................................ 42

1.4.6 O regime previdenciário ........................................................................ 45

1.4.7 Os direitos sociais garantidos aos servidores públicos .......................... 47

1.4.8 Cumulação de cargos e vencimentos ..................................................... 49

1.5 Conclusão ......................................................................................................... 51

2 AS RELAÇÕES ESPECIAIS DE SUJEIÇÃO ....................................................... 52

2.1 Linhas gerais .................................................................................................... 52

2.2 Escorço histórico.............................................................................................. 53

2.3 Conceituação e características ....................................................................... 58

2.3.1 Características fundamentais ................................................................. 63

2.4 Relações especiais de sujeição, direitos fundamentais e regime

constitucional dos servidores públicos ........................................................... 67

3 O REGIME DISCIPLINAR DE SERVIDORES PÚBLICOS .............................. 77

3.1 Intróito .............................................................................................................. 77

3.2 Linhas gerais .................................................................................................... 79

3.3 Regime das infrações e sanções disciplinares................................................ 82

3.3.1 O fato típico ........................................................................................... 85

3.3.2 A antijuridicidade .................................................................................. 89

3.3.3 A culpabilidade ...................................................................................... 93

Page 9: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

3.3.3.1 A imputabilidade ................................................................... 95

3.3.3.2 Inevitável desconhecimento da ilicitude ............................... 97

3.3.3.3 Inexigibilidade de conduta diversa: coação moral irresistível,

obediência hierárquica e causas supralegais ....................... 100

3.3.4. A punibilidade ..................................................................................... 103

3.3.4.1 Condições objetivas de punibilidade ................................... 104

3.3.4.1.1 Elaboração de parecer pelo órgão jurídico ......... 104

3.3.4.1.2 Processo disciplinar ............................................ 104

3.3.4.2 Causas extintivas da punibilidade ....................................... 111

3.3.5 As esferas penal, cível e disciplinar .................................................... 113

3.3.5.1 A responsabilidade penal e o direito disciplinar ................. 114

3.3.5.2 A responsabilidade civil e o direito disciplinar ................... 116

4 A TIPICIDADE E O DIREITO DISCIPLINAR ................................................. 119

4.1 Ponto nodal .................................................................................................... 119

4.2 Propostas para uma conformação contemporânea .................................... 121

4.3 O Estado constitucional .............................................................................. 122

4.4 Os princípios jurídicos .................................................................................. 125

4.5 Fundamentos para a modificação da hermenêutica consagrada em relação

à tipicidade no direito disciplinar ................................................................ 127

4.5.1 Fundamento ontológico ....................................................................... 129

4.5.2 Fundamento histórico .......................................................................... 133

4.5.3 Fundamento pragmático ...................................................................... 135

4.5.4 Fundamento dogmático ....................................................................... 137

4.6 Diretrizes de objetivação............................................................................... 142

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 149

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 155

Page 10: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

10

INTRODUÇÃO

O tema sobre o qual nos debruçaremos na presente pesquisa é a formatação da tipicidade

no regime disciplinar de servidores públicos. Reconhecemos que a tarefa não é das mais

simples, seja porque o assunto é considerado pacificado por grande parte da doutrina

tradicional, de modo que apresentaremos uma doutrina ainda minoritária, seja porque o seu

cerne não é dos mais rentáveis do ponto de vista mercadológico. Soma-se a isso o fato de a

questão que envolve as garantias dos servidores públicos já não encontrar tanta empatia no

corpo social, fruto das campanhas neoliberais de enfraquecimento do funcionalismo estatal,

resultado de abordagens midiáticas promovidas em paralelo à chamada Reforma de Estado1

desenvolvida nos anos 1990, que, a pretexto de “enxugamento da máquina pública”, desferiu

fortes golpes às prerrogativas daqueles que têm o dever de zelar pelo interesse dos cidadãos.

Justifica-se a sua abordagem pela importância que representam os servidores públicos

(e suas garantias, por consequência) para o desenvolvimento do Estado Democrático de Direito.

Dentre outros fundamentos, essa justificativa se baseia no próprio texto constitucional, que

reservou tópico específico a referida categoria (Seção II do Capítulo VII do Texto Maior),

elemento essencial na construção de uma sociedade mais justa, honesta e igualitária, visto que,

como agentes permanentes da máquina estatal, são eles os responsáveis por zelar, de maneira

isenta e incontingente, pela proteção e persecução do interesse público. Nesse sentido, por

presentarem o ente estatal, exprimem sua vontade, de forma que estarão sujeitos a uma série de

regramentos específicos (dentre eles o regime disciplinar), os quais, caso não possuam

mandamentos claros e objetivos, poderão estar sujeitos a interpretações indevidas, que, por sua

vez, em vez de fortalecer o programa fixado pelo texto constitucional, poderão enfraquecê-lo.

Sendo assim, analisar o regime dos servidores públicos é analisar uma das facetas do tipo de

Estado que se estará a oferecer aos cidadãos.

1 Sobre a Reforma de Estado, ensina o professor Silvio Luís Ferreira da Rocha: “A Reforma do Estado, iniciada

pelo Governo Collor e levada adiante no Governo Fernando Henrique, foi marcada por fortes traços do

Neoliberalismo, que recorre à desestatização, à privatização e à desregulamentação para reduzir sensivelmente

a participação do Estado na atividade econômica e, sobretudo, na prestação de serviços públicos. Os

argumentos que justificam essa redefinição das atividades do Estado são financeiros, jurídicos e políticos e

partem da premissa – não comprovada por qualquer experiência histórica recente – de que haverá, ao final do

processo, uma melhoria da capacidade do Estado de atender às demandas sociais” (ROCHA, Silvio Luís

Ferreira da. Terceiro setor. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 32-33).

Page 11: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

11

O objeto deste estudo será, assim, a tipicidade quando inserida no regime disciplinar de

servidores públicos, abordado esse ramo isoladamente das demais disciplinas jurídicas (direito

constitucional, direito penal, etc.), levada em consideração, todavia, a influência que essas

exercem para sua interpretação. Reputada corolário do princípio da legalidade, a tipicidade

possui variações a depender do ramo em que é abordada, de maneira que os pressupostos a ela

necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles

indispensáveis para a aplicação de uma sanção penal. E para o direito disciplinar? Qual será a

sua formatação necessária para que seja respeitada a legalidade? Lembramos que o meio de

concretização desse instituto no Ordenamento Jurídico é o elemento denominado “tipo” (mais

precisamente o tipo formal), cuja construção em termos genéricos e por meio de conceitos

indeterminados é amplamente aceita no âmbito do direito disciplinar, mas por nós questionada

neste trabalho, sendo este, portanto, o ponto nodal da discussão.

Fixado e delimitado o objeto, é importante expor o método pelo qual este será estudado.

O presente estudo se desenvolverá por meio de uma pesquisa jurídico-dogmática que visa a

verificar, a partir do arcabouço normativo e axiológico fixado pela Constituição da República

de 1988, a formatação dos institutos do direito punitivo estatal, com especial atenção para o

direito disciplinar. Para realizar essa pesquisa científica, serão analisadas primeiramente as

regras e princípios que formam o regime de garantias dos servidores públicos na Constituição

Federal de 1988. Outrossim, a partir de análise doutrinária, serão abordadas as premissas e

fundamentos (históricos, filosóficos, pragmáticos e dogmáticos) que justificaram até então um

regime sancionador dotado de tipificação formal mais flexível em relação aos agentes estatais,

em especial por força das chamadas relações especiais de sujeição (ou relações especiais de

poder), a fim de verificar quais os limites que hoje se apresentam. Para fundamentar essa

abordagem, serão estudados, de maneira qualitativa, os elementos e pressupostos do direito

administrativo-sancionador, por meio da exposição do entendimento de doutrina pátria e

estrangeira, bem como da jurisprudência fixada pelos Tribunais pátrios e da análise da

legislação correspondente. A partir disso, teceremos nossas considerações, a fim de desenvolver

uma doutrina que respeite os pressupostos anteriormente estabelecidos, mas ofereça uma

releitura com base na Constituição hoje vigente.

A problematização do tema sob análise se relaciona com o fato de que parcela

considerável da doutrina, tribunais e órgãos legislativos pátrios reputa constitucionais as leis

que fixam tipos disciplinares abertos, modelos legais que dão azo à construção de normas

punitivas sujeitas a um alto grau de discricionariedade do hierarca, o que traz o risco de

Page 12: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

12

cometimento de arbitrariedades por parte deste. Em contrapartida, consideramos que o texto da

Constituição Federal de 1988, além das disposições expressas, consagrou um rol de garantias

ao funcionalismo público, as quais podem conflitar com essa concepção classicamente adotada.

Dessa maneira, faz-se necessária uma investigação minuciosa dos paradigmas que justificaram

a formatação tradicional da tipicidade no direito disciplinar e se esses subsistem com a mesma

feição sob a égide da Constituição da República de 1988.

Por consequência dessa problemática, terá o presente trabalho como objetivo a fixação

de paradigmas e diretrizes que possam auxiliar os operadores do direito na análise de questão

tão capciosa, de sorte que, ainda que seja admitida a constitucionalidade dos tipos abertos,

sejam esses conduzidos a um grau de objetivação que os compatibilize com os princípios da

segurança jurídica, do contraditório, da ampla defesa e do direito fundamental a uma boa

administração.

Como desenvolvimento da pesquisa supraexposta, analisaremos, em uma primeira

parte, o regime estatutário dos servidores públicos fixado na Constituição Federal de 1988 e os

fundamentos que, reputamos, justificaram a opção do constituinte originário por ele. Nesse

primeiro momento será dado enfoque às garantias fixadas no Texto Maior, a fim de estabelecer

as premissas desse regime (por nós considerado protetivo da coisa pública), as quais auxiliarão

no momento de traçar os limites de interferência do legislador e do administrador quando da

formatação e exercício do jus puniendi estatal frente à categoria delimitada. No segundo

capítulo, analisaremos os fundamentos teóricos que historicamente justificaram o tipo de

relacionamento estabelecido entre o cidadão que adquire a condição de agente público e a

máquina estatal. Nesta seção, aprofundaremos a análise das chamadas relações especiais de

sujeição, instituto que consideramos essencial para o desenho da feição dada ao direito

disciplinar nos dias de hoje, em especial no que tange à tipicidade nele. Na terceira parte,

verificaremos os limites e pressupostos do direito administrativo-sancionador para analisar os

requisitos de validade da aplicação de sanções dentro do regime disciplinar, com enfoque nos

pontos de toque entre essa disciplina e o direito penal, ramo cujos institutos julgamos de

fundamental importância para a correta compreensão do direito que versa sobre o

sancionamento de agentes públicos. Por derradeiro, fazendo uso da análise realizada nos três

tópicos anteriores – garantias dos servidores públicos, doutrina das relações especiais de

sujeição e pressupostos do direito administrativo-sancionador, por meio da análise dos

princípios consagrados no Texto Constitucional, verificaremos se é possível a manutenção dos

Page 13: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

13

tipos abertos no direito disciplinar e, caso o seja, como pode ser feita uma compatibilização da

legislação atual ao novo paradigma firmado a partir da edição desse diploma.

Dito isso, passemos à análise dos temas que interessam a esta pesquisa, ressaltando que

buscamos um exame do Direito à luz dos princípios que maximizem o plano político traçado

pela Constituição Federal de 1988, de modo a destacar que a doutrina jurídica deve se prestar

ao melhoramento constante das estruturas postas pelo legislador, pois o direito tem como

objetivo maior a obtenção de soluções que enalteçam e dignifiquem as pessoas2, de sorte que,

em sendo uma ciência de aplicabilidade social, dotada da chamada criptonormatividade3,

interpretações distantes do plano concreto, alheias à realidade, podem promover distorções na

sociedade em que inseridas, as quais não se coadunam com o escopo desse ramo científico,

sendo o fim maior do exegeta a obtenção de soluções que desarmem potenciais conflitivos, e

não conclusões que os agravem.

2 Sobre esse aspecto, relevante a doutrina do professor Ricardo Marcondes Martins quando trata da ponderação

como forma de instrumentalização da melhor função do direito: “O direito é instrumental, em última análise,

ele existe para que as pessoas sejam felizes. É um instrumento dos seres humanos. Não um instrumento de

opressão, como pensava Nietzsche. Ainda que muitas vezes ele seja utilizado para oprimir, não é esse o uso

adequado à sua essência. Quando o direito é utilizado como instrumento de opressão, há uma utilização

indevida. Do ponto de vista científico, o direito existe para a felicidade das pessoas, não de apenas algumas,

não da classe dominante, não apenas dos poderosos, mas de todas as pessoas. Por conseguinte, a ponderação,

corretamente efetuada, deve refletir a composição perfeita de todos os valores reputados importantes para

felicidade de cada pessoa isolada e coletivamente considerada. A solução deve refletir a medida perfeita do

máximo grau de felicidade possível para todos. Exige-se um perfeito equilíbrio, uma perfeita composição de

interesses. Exige-se, enfim, uma decisão justa. Eis o segundo passo: justiça no plano de validade é a decisão

que na medida do possível contribua para a máxima felicidade de todas as pessoas, é, portanto, a composição

perfeita dos seres humanos” (MARTINS, Ricardo Marcondes. Direito e justiça. In: PIRES, Luis Manuel

Fonseca; MARTINS, Ricardo Marcondes. Um diálogo sobre a justiça – A justiça arquetípica e a justiça

deôntica. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 43-91).

3 A respeito da criptonormatividade da ciência jurídica, oportuno citar trecho da obra do professor Tercio

Sampaio Ferraz Jr., com a ressalva de que não consideramos o direito mera técnica, mas verdadeira ciência:

“A discussão-com jurídica tem, a nosso ver, um caráter eminentemente tecnológico. Nesse sentido entendemos

a concepção de Viehweg, segundo a qual as teorias jurídicas são ‘teorias com função social’, teorias de natureza

criptonormativa, das quais decorrem consequências programáticas de decisão, e que devem prever, em todo

caso, que, com sua ajuda, uma problemática social determinada seja solucionável sem exceções perturbadoras.

Do mesmo modo, embora num sentido pouco divergente do de Viehweg, nos fala Reale de ‘modelos

dogmáticos’ como estruturas teoréticas, referidas a ‘modelos jurídicos’, cujo valor procuram captar e atualizar

na sua plenitude” (FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva,

1997, p. 170).

Page 14: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

14

1 O REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES PÚBLICOS

1.1 Intróito

O Estado moderno, fundado como a personificação de uma figura moral, projeta-se na

realidade por meio de seus órgãos (centros de competência) e agentes, pessoas que, devido à

formação de algum vínculo com aquele, passam a presentar-lhe frente aos demais e a executar

suas atividades (jurídicas e materiais). Segundo o professor Celso Antônio Bandeira de Mello,

“o querer e o agir destes sujeitos é que são, pelo Direito, diretamente imputados ao Estado

(manifestando-se por seus órgãos), de tal sorte que, enquanto atuam nesta qualidade de agentes,

seu querer e seu agir são recebidos como o querer e o agir dos órgãos componentes do Estado”4.

Ou seja, em determinado momento, a vontade do agente público e do próprio órgão se

confundem, de maneira que não é possível desvencilhar uma da outra. Esses cidadãos podem

integrar a máquina estatal sob diversas formas, de sorte que, a depender do vínculo que

possuírem, sobre eles incidirão as normas do respectivo regime a que estejam sujeitos. Dentre

os subsistemas aplicáveis, nos debruçaremos no presente estudo sobre a análise do regime

jurídico dos servidores públicos (em sentido estrito) fixado pela Constituição Federal de 1988.

1.2 Os servidores públicos

Importante ressalvar que, quando se fala ordinariamente em funcionalismo público, não

se está necessariamente a referir a determinada categoria específica, visto que, sob a alcunha

“agentes públicos” reúnem-se diversas espécies, as quais comportam algumas variações na

doutrina.

O professor Celso Antônio Bandeira de Mello, por exemplo, ao desenvolver a

sistematização criada pelo mestre Oswaldo Aranha Bandeira de Mello5, divide os agentes

públicos em quatro categorias: a) agentes políticos, titulares de “cargos estruturais à

organização política do país”; b) agentes honoríficos, pessoas que se ligam ao Estado sem

4 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2014,

p. 144.

5 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Teoria dos servidores públicos. Revista de Direito Público, Rio de

Janeiro, v.1, n. 1, p. 40-53, jul.-set., 1967, p. 40 e ss.

Page 15: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

15

vínculo profissional, livremente designados para a composição de comissões técnicas devido a

suas elevadas qualidades; c) servidores estatais, pessoas ligadas ao Estado ou a entes da

Administração Indireta, por vínculo de natureza profissional e sob sua subordinação; d)

particulares em colaboração, cidadãos que exercem, ainda que de maneira eventual, função

pública, não perdendo, todavia, seu viés privado. Dentro dessa sistematização, é importante

esclarecer que o professor Celso Antônio Bandeira de Mello subdivide a categoria dos

servidores estatais (c) entre servidores públicos e servidores de pessoas governamentais de

direito privado (como, por exemplo, os empregados de empresas públicas e sociedades de

economia mista, necessariamente contratados sob o regime celetista). Dentro da categoria de

servidores públicos, estariam os titulares de cargos da Administração Direta, autarquias e

fundações de direito público, Poder Judiciário e esfera administrativa do Poder Legislativo e os

empregados dessas pessoas, os quais, por sua vez, subdividem-se entre aqueles que exercem

funções subalternas, os remanescentes do regime constitucional anterior (quando se contratava

sob a égide celetista sem grandes entraves) e os empregados temporários, com vínculo formado

nos termos do art. 37, IX, da Constituição Federal6.

Já a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro divide a categoria “agente público” em quatro

espécies levemente distintas das supramencionadas, sendo elas: a) agentes políticos, pessoas que

exercem as “atividades de direção e as colegislativas, ou seja, as que implicam a fixação de metas,

de diretrizes, ou de planos governamentais”; b) servidores públicos, grande subgênero que abrange

todos os particulares ligados ao Estado “com vínculo empregatício7 e mediante remuneração paga

pelos cofres públicos”, compreendendo os servidores estatutários (“sujeitos ao regime estatutário e

ocupantes de cargos públicos”), os empregados públicos (“contratados sob o regime da legislação

trabalhista e ocupantes de emprego público”) e os servidores temporários (“contratados por tempo

determinado para atender à necessidade temporária de excepcional interesse público”, nos termos

do art. 37, IX, da Constituição, exercendo função, sem, todavia, ocuparem cargo ou emprego

6 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2014,

p. 251-258.

7 Trazemos o pensamento da nobre doutrinadora, mas ressalvamos nosso entendimento pessoal de que não existe

a formação de vínculo empregatício entre os servidores estatutários e a Administração Pública. Conforme será

esmiuçado em tópico específico, pensamos que o vínculo formado entre esses cidadãos e o Poder Público é

vínculo de natureza institucional e o ato que lhe dá forma se enquadra mais adequadamente na espécie “ato-

condição”, ato que insere o indivíduo num estatuto preexistente, impondo-lhe um novo regime jurídico, ao qual

não estava anteriormente submetido, sem que esse se manifeste sobre suas cláusulas, tal como ocorreria num

contrato.

Page 16: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

16

público8); c) militares, pessoas físicas que prestam serviços às Forças Armadas (Marinha, Exército

e Aeronáutica) e às Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares dos Estados e Distrito

Federal; d) particulares em colaboração com o Poder Público, particulares que prestam serviços ao

Poder Público sem vínculo empregatício e que possuem a remuneração como elemento acidental9.

A distinção suprarrealizada se mostra pertinente, pois não trataremos de todas as

espécies de agentes públicos no presente trabalho, mas apenas dos servidores públicos

ocupantes de cargo efetivo, incluídos no subgênero “servidores estatais” pelo professor Celso

Antônio Bandeira de Mello, mais especificamente os titulares de cargos públicos da

Administração Direta, autarquias e fundações de direito públicos, Poder Judiciário e esfera

administrativa do Poder Legislativo, e como “servidores públicos” em sentido lato pela

professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro.

1.3 Importância e fundamentos do regime estatutário

A Constituição Federal de 1988, desde sua redação originária, reservou tópico

específico aos servidores públicos na Seção II do Capítulo VII do Título II, dispondo, em seu

art. 39 que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de

sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração

8 Ressalvamos não considerarmos os servidores temporários uma terceira categoria do gênero “servidor

público”, mas uma subespécie de empregado público da Administração Direta, autarquias e fundações de

direito públicos, Poder Judiciário e esfera administrativa do Poder Legislativo, conforme lecionado pelo

professor Celso Antônio Bandeira de Mello, a qual ingressará de maneira diferenciada nos quadros da

administração (normalmente por meio de processos seletivos simplificados), nos termos que a legislação do

ente competente estabelecer, com base no autorizativo fixado no art. 37, IX, da Constituição da República, que

admite esse tipo de formação de vínculo em casos excepcionais, ou melhor, em caso de “necessidade

temporária de excepcional interesse público”.

9 Cite-se: “Agente público é toda pessoa física que presta serviços ao estado e às pessoas jurídicas da administração

indireta. Antes da Constituição atual, ficavam excluídos os que prestavam serviços às pessoas jurídicas de direito

privado instituídas pelo Poder Público (fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista). Hoje, o art.

37 exige a inclusão de todos eles. Perante a Constituição de 1988, com as alterações introduzidas pela Emenda

Constitucional n. 18/1998, pode-se dizer que são quatro as categorias de agentes públicos: 1. agentes políticos; 2.

servidores públicos; 3. militares; e 4. particulares em colaboração com o Poder Público. A expressão agente público

não é destituída de importância, tendo em vista que utilizada pela própria Constituição. Assim é que todas as

categorias, mesmo a dos particulares, se atuarem no exercício de atribuições do poder público, acarretam

responsabilidade objetiva prevista no art. 37, §6º, da Constituição Federal, já que o dispositivo fala em danos

causados por agentes públicos. Se o Estado for condenado, cabe ação regressiva contra o agente causador do dano,

desde que tenha agido com dolo ou culpa. Além disso, todas são abrangidas pelo art. 5º, LXIX, da Constituição,

sendo passíveis de mandado de segurança se, no exercício de atribuições do poder público, praticarem ato ilegal ou

com abuso de poder, ferindo direito líquido e certo não amparado pelo habeas corpus. O dispositivo também se

refere a agente e não a servidor” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Servidores públicos. In: _______; MOTTA,

Fabrício; FERRAZ, Luciano de Araújo. Servidores públicos na Constituição Federal. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015,

p. 1-13).

Page 17: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

17

pública direta, das autarquias e das fundações públicas”. Trata-se de norma que garante que os

serviços prestados pelos entes políticos da federação serão executados por servidores de

carreira, organizados sob a forma de um “regime jurídico único”. Ou seja, os servidores

públicos possuem relevante patamar no plano traçado pelo poder constituinte originário,

garantido a eles um regime jurídico próprio. O que significa essa afirmação?

Sobre o regime jurídico único, importante dizer que esse nunca foi integralmente

instituído no Ordenamento Jurídico pátrio. Previsto originariamente no texto constitucional,

lembramos que a Emenda Constitucional n. 19/98 alterou o caput do art. 39 da Constituição

Federal para extinguir a obrigatoriedade de adoção de referido regime, sendo que o Supremo

Tribunal Federal, no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2135, em virtude do

reconhecimento de vício formal (a proposta não fora aprovada pela maioria qualificada da

Câmara dos Deputados), deferiu medida cautelar para suspender os efeitos de referida reforma

(com eficácia ex nunc), de maneira que foi restabelecida a obrigatoriedade original do regime

jurídico único, expressão sobre a qual, todavia, nunca existiu um consenso doutrinário quanto

ao seu significado e extensão. Parcela da doutrina, por exemplo, sustenta que, mesmo diante da

redação original, caberia a cada ente decidir sobre qual regime adotar, ou seja, conviveriam em

harmonia o regime estatutário e o regime celetista, tratando-se de decisão discricionária do ente

federativo a opção por qualquer deles, de maneira que não haveria a prevalência de um sobre o

outro. É o que leciona, por exemplo, o professor José dos Santos de Carvalho Filho, quando

afirma que “consideramos que a intentio do Constituinte foi a de que o regime de pessoal fosse

apenas único, seja o estatutário, seja o trabalhista [...] com o que se poderiam evitar os velhos

confrontos entre servidores da mesma pessoa federativa”10. Corrente contrária, à qual nos

filiamos, sustenta que haveria uma preferência sobre o regime estatutário, mais apropriado para

a proteção e persecução do interesse público, existente para proteger os interesses tutelados do

mau exercício da função pública. Seria, portanto, uma garantia à população, devido ao fato de

que nele há uma maior proteção ao interesse público, seja na proteção oferecida ao patrimônio,

seja na facilitação ao alcance desse interesse11. É o que passa a ser exposto a seguir.

10 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2011, p. 555.

11 MARTINS, Ricardo Marcondes. Princípio da liberdade das formas no direito administrativo. Interesse Público

(IP), Belo Horizonte, ano 15, n. 80, p. 83-124, jul.-ago. 2013.

Page 18: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

18

Não obstante as discussões doutrinárias, certo é que os servidores públicos sctricto sensu

estão submetidos a um conjunto de regras e princípios, organizados na forma de sistema, a fim

de garantir o melhor desempenho da função pública. Trata-se do regime estatutário. Dessa

maneira, os cidadãos ocupantes de cargo efetivo tanto estão submetidos a uma série de

restrições a que não estão sujeitos os cidadãos comuns quanto se revestem de garantias e

prerrogativas específicas para o exercício de seu mister. Importante frisar que essas garantias

não são estabelecidas em prol da pessoa do servidor, mas do cargo que esse ocupa. O Estado é

um ente que existe para tutelar os interesses de seus cidadãos, traduzido no plano jurídico pela

expressão interesse público e, para tanto, poderá se utilizar de um poder (meramente

instrumental12) para a persecução desses fins. Outrossim, seus agentes, como responsáveis por

essas manifestações, farão jus a parcelas desse poder, com o fito único e exclusivo do

desempenho da função pública. Em sendo assim, deverão ser protegidos frente a abusos

internos ou externos, a fim de que exerçam de forma isenta a função pública.

Infelizmente o mundo dos homens não é um poço de virtudes, repleto de pessoas dotadas

do mais alto comprometimento com os deveres de honestidade e bom procedimento. Dessa

maneira, é previsível que aqueles que detêm uma parcela do poder estatal possam sofrer

assédios como forma de cooptação ou coação que visem ao comprometimento do agente

público com interesses espúrios. Para tanto, a fim de que a resistência a esses ataques não fique

na dependência apenas das virtudes pessoais de cada servidor (seres humanos e, como tais,

falíveis) é que sobre esses incide um regime diferenciado. É um regime dotado de restrições (as

quais muitas vezes desaguam no regime disciplinar, a ser tratado em tópico específico) e de

garantias, a fim de que o servidor possa atuar dentro dos maiores parâmetros de isenção, de

modo a imunizá-lo frente às pressões que possa vir a sofrer, garantindo que a prestação da

12 Sobre o tema, salutar a doutrina do professor Celso Antônio Bandeira de Mello: “Quem exerce ‘função

administrativa’ está adscrito a satisfazer interesses públicos, ou seja, interesses de outrem: a coletividade. Por

isso, o uso das prerrogativas da Administração é legítimo se, quando e na medida indispensável ao atendimento

dos interesses públicos; vale dizer, do povo, porquanto nos Estados Democráticos o poder emana do povo e

em seu proveito terá de ser exercido. Tendo em vista este caráter de assujeitamento do poder uma finalidade

instituída no interesse de todos – e não da pessoa exercente do poder –, as prerrogativas da Administração não

devem ser vistas ou denominadas como ‘poderes’ ou como ‘deveres-poderes’, pois nisto se ressalta sua índole

própria e se atrai atenção para o aspecto subordinado do poder em relação ao dever, sobressaindo, então, o

aspecto finalístico que as informa, do que decorrerão suas inerentes limitações” (BANDEIRA DE MELLO,

Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 72-73).

Page 19: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

19

atividade estatal será dispensada aos particulares apenas e tão somente de acordo com os valores

promovidos pelo Estado Democrático de Direito13.

Sendo assim, podemos dizer que o regime estatutário é o regime protetivo da coisa

pública e que as prerrogativas de seus agentes são a instrumentalização dessa proteção. Com

efeito, lembramos que essas prerrogativas não devem ser confundidas com privilégios. São elas

garantias “necessárias ao cumprimento dos deveres ínsitos à função pública”14, sem as quais o

agente que busca a concretização do interesse público não o faria com a eficiência necessária.

Por outro lado, ressaltamos que o Estado, na concepção moderna, a despeito dos lampejos

neoliberais dos anos 1990, é uma força que avança sobre os mais variados setores da sociedade,

que há muito tempo já não mais se restringe à prestação de serviços essenciais. Dessa sorte, a

atuação do ente público tem poder de influenciar a vida de seus cidadãos de forma muito

intensa, o que torna necessário que esse não se desvie de seu plano original (na Constituição

Federal de1988, que estabelece em seu art. 3º: a construção de uma sociedade livre, justa e

solidária; garantia do desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza e da marginalização e

redução das desigualdades sociais e regionais, promoção do bem de todos, sem preconceitos de

origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação). Dessa sorte, é

possível afirmar que as garantias do regime estatutário possuem dupla função: fornecer aos

servidores públicos as prerrogativas necessárias para a persecução do interesse público e, doutra

13 Para essa afirmação, nos socorremos à doutrina do professor Celso Antônio Bandeira de Mello: “O Estado de

Direito presume, como todos sabemos, a submissão do poder a um quadro de legalidade. O Estado de Direito

nasce de um movimento político que se calça tanto na tese da soberania popular, quanto na tese de contenção

de Poder. Realmente, os objetivos que inspiram a consagração jurídica do projeto político do Estado de Direito

descansam, sobretudo, no desejo de resguardar o cidadão contra o exercício desatado do Poder. Ora, o

descomedimento do Poder é particularmente perigoso quando proveniente do Poder Executivo. Pois bem, o

regime constitucional dos servidores públicos almeja exatamente fixar regras básicas favorecedoras da

neutralidade do aparelho estatal, a fim de coibir sobretudo o Poder Executivo de manipulá-lo com desabrimento

capaz de comprometer objetivos do Estado de Direito. É a Administração, em rigor de verdade, que mantém

com os administrados o mais intenso contato e por isso mais intensamente lhes ameaça a liberdade. Se isto

sempre foi verdade, inclusive no período histórico em que emerge o Estado de Direito, hoje as dimensões deste

risco são mais amplas. Ninguém ignora que, atualmente, o Poder Público assume na vida social e na vida

econômica um papel do mais extremo relevo. A ingerência nas condutas individuais e, mais do que isso, o

próprio planejamento do conjunto das condutas sociais é realizado pelo Estado a cotio e a sem fins, sem

nenhuma contestação sólida, sem nenhuma bulha doutrinária ou jurisprudencial. O Estado passou a ter uma

presença avassaladora que parece ser, até mesmo, resultante de razões alheias a quaisquer projetos puramente

políticos ou ideais jurídicos. Está ligada, possivelmente, a fenômenos que promanam do desenvolvimento

tecnológico. Este tornou a ação dos indivíduos potencialmente muito mais predatória” (BANDEIRA DE

MELLO, Celso Antônio. Servidores públicos: aspectos constitucionais. Estudos de Direito Público, São Paulo,

ano IV/V, n. 2/1, p. 82, jul.-dez. 1985 – jan.jun. 1986).

14 MARTINS, Ricardo Marcondes. Estudos de direito administrativo neoconstitucional. São Paulo: Malheiros,

2015, p. 162-163.

Page 20: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

20

parte, garantir ao cidadão que o uso de poder nessa persecução se dará tão somente no sentido

de concretizar os valores consagrados no texto constitucional.

A fim de justificar essa necessidade de imunização, lembramos que hoje se vive um

momento histórico em que o poder dos Estados é substituído pelo poder das grandes

corporações, com a forte possibilidade de câmbio da busca de interesses públicos por interesses

de grupos específicos. E como prevenir eventuais abusos decorrentes desse panorama? Uma

das formas encontradas pelo constituinte originário foi o estabelecimento das garantias dos

servidores públicos, de modo a se concluir que as prerrogativas dessa categoria são, em verdade,

garantias individuais dos cidadãos, que têm direito a uma Administração Pública isenta e

comprometida apenas com os princípios consagrados na Constituição Federal. Dessarte, em

sendo garantias individuais dos cidadãos, verdadeiros pressupostos do Estado Democrático de

Direito, forçoso concluir que se tratam de cláusulas pétreas, uma vez que o inciso IV do §4º do

art. 60 da Constituição Federal estabelece que não serão objeto de deliberação as propostas de

Emenda à Constituição tendentes a abolir os direitos e garantias individuais. Logo, por se

tratarem de direitos políticos inafastáveis, qualquer tentativa de amesquinhamento das garantias

dos servidores públicos trazidas no Texto originário da Constituição Cidadã é inconstitucional,

devendo, como tal, ter sua própria deliberação obstada15.

Não obstante, é necessário esclarecer que, na atualidade, diversos são os autores que

pregam a natureza contratual do regime de servidores. Dessa maneira, sustentam que o vínculo

formado entre a Administração Pública e o cidadão teria natureza negocial, marcado, tal como

qualquer avença de natureza privada, pelo acordo de vontades. O instrumento utilizado para

tanto seria uma espécie de contrato de adesão e o fato de a relação dos servidores públicos ser

necessariamente regulamentada por lei não representaria um óbice a essa concepção, visto que,

nas palavras do professor Florivaldo Dutra de Araújo, “na maior parte das vezes, tanto no setor

público como no âmbito privado, as relações contratuais são previamente padronizadas em

15 Pede-se vênia para citar novamente o professor Ricardo Marcondes Martins: “Quem se debruça sobre o

ordenamento jurídico brasileiro e o estuda como um sistema logo percebe: os direitos constitucionais básicos

do regime estatutário dos servidores públicos são imprescindíveis para que não haja corrupção, são vitais para

que exista um verdadeiro Estado de Direito, são pressupostos da boa administração. Por trás das regras

constitucionais dos servidores públicos há princípios constitucionais diretamente atrelados ao princípio do

Estado de Direito. Ora, se são decorrência lógica, desdobramento imediato, do Estado de Direito, se são

garantia individual e direito político dos cidadãos, são, indiscutivelmente, autênticas cláusulas pétreas”

(MARTINS, Ricardo Marcondes. Estudos de direito administrativo neoconstitucional. São Paulo: Malheiros,

2015, p. 168).

Page 21: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

21

cláusulas gerais, estabelecidas em leis, regulamentos, convenções coletivas e instrumentos

similares”16. Dessa maneira, sustenta o nobre doutrinador que é indiferente que se trate do

regime estatutário ou do regime celetista no âmbito da Administração Pública, ambos seriam

constituídos por meio de vínculos de natureza contratual. Essa concepção busca seu fundamento

ainda no período de formação do Estado Moderno, por reputar ser o contrato o instrumento de

libertação do cidadão frente ao Estado autoritário, o “elemento nuclear do ideário liberal”17.

Assim, a necessária rigidez que reveste o regime estatutário é vista como expressão de

unilateralidade e resquício de autoritarismo, de maneira que flexibilizar o vínculo institucional

seria uma forma de valorizar o indivíduo e fortalecê-lo frente a eventuais abusos estatais.

É importante lembrar que a “opção”18 por determinado regime trará impactos totalmente

diversos sobre a manutenção das garantias fixadas no texto constitucional. Assim, ao se optar

por uma contratualização, reconhece-se a perda de uma rigidez que, se em alguns casos é

reputada um entrave às repercussões sociais no seio estatal, em outros pode representar um

enfraquecimento do servidor frente ao Estado. A fim de justificar essa afirmativa, nos

utilizaremos de um exemplo. Os defensores dessa corrente aduzem que, mesmo em relação aos

empregados que laboram na iniciativa privada, existe a possibilidade de redução salarial por

meio de negociação coletiva, nos termos do inciso VI do art. 7º da Constituição Federal, que

assegura a irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo.

Defendem que a aplicação desse dispositivo em relação aos servidores públicos garantiria ainda

a salvaguarda das contas estatais em períodos de crise. Entendemos ser inaplicável essa hipótese

a referida categoria, primeiramente por não possuírem uma relação contratual com a

Administração Pública (conforme já pontuamos anteriormente, pensamos se tratar de ato-

condição). Doutra ponta, os fundamentados que garantem a irredutibilidade salarial de

servidores públicos e de empregados da iniciativa privada é diferente. Os empregados em geral

estão inseridos em relação de exploração da atividade econômica, na qual se busca uma

proteção apenas em face do poder econômico, de maneira que ponderou o legislador originário

que deveria o obreiro ser protegido de eventuais excessos por parte do empregador. Ocorre que,

16 ARAÚJO, Florivaldo Dutra de. Negociação coletiva dos servidores públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p.

153.

17 Idem, p. 127.

18 Ressalvamos que utilizamos essa expressão, mas entendemos que não se trata propriamente de uma opção do

legislador (ou mesmo do constituinte derivado) a escolha entre um regime ou outro como regra geral. Trata-se

de mero exercício de argumentação. Os fundamentos dessa afirmação foram esmiuçados no decorrer do

presente capítulo.

Page 22: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

22

a par de todas as salvaguardas impostas, o interesse maior de qualquer empregado é a percepção

da contrapartida salarial. Em sendo assim, considerou-se que, em tempos de crise e com a tutela

de sua entidade sindical, é preferível para o empregado ter seu salário reduzido temporariamente

a perder seu emprego, visto que eles não gozam de estabilidade. Quanto aos servidores públicos,

o fundamento da irredutibilidade salarial advém da proteção contra o poder político, a fim de

garantir, nos termos supraexplanados, que esses exerçam sua função de forma isenta, não tendo

que se preocupar com esse tipo de interferência, de sorte que, por terem as proteções

fundamentos diferentes, entendeu por bem o constituinte lhes dar tratamentos diversos.

Assim, observamos que os fundamentos de proteção de um e de outro regime não se

confundem e a defesa das prerrogativas dos servidores públicos vai além de uma simples

proteção contratual do indivíduo. Trata-se, em verdade, da proteção à missão institucional a ele

imposta e que apenas protege a sua pessoa por via reflexa. O intuito maior das garantias

estabelecidas no Ordenamento Jurídico é, portanto, dar ao servidor estatal as condições para

que esse busque o interesse público da melhor forma possível. Trata-se de corolário do direito

fundamental do cidadão à boa Administração Pública e, conforme reconhecido pelo professor

Juarez Freitas “por mais que se entenda a proposta de flexibilização, o regime estatutário ou

institucional é necessário para que se alcancem os desideratos constitucionais”19.

Sobre a crítica do suposto viés autoritário e antidemocrático20, bem como à ineficiência

que emanaria do regime estatutário, discordamos das divergências e apresentamos nossas

razões a seguir. Segundo consideramos, o regime institucional pelo qual optou o constituinte

originário se fundamenta, em verdade, nos termos da doutrina desenvolvida por Max Weber21,

qual seja, na formação de uma burocracia pautada no que chama o autor alemão de

19 FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa Administração Pública. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p.

139.

20 Sobre o tema, cite-se Florivaldo Dutra de Araújo, ao tecer uma análise crítica à teoria unilateral estatutária:

“[...] deve-se afastar a automática associação, feita por muitos, entre interesse público, unilateralidade do

vínculo e subordinação do servidor, identificando o regime de direito público com esses aspectos, de modo

necessário e exclusivo. Deve-se lembrar que foi por essa via que as concepções unilateralistas vieram a

consagrar aqueles setores de atuação estatal não controláveis sob a perspectiva da juridicidade, tendo sido a

função pública inserida entre tais setores, como já registrado. Se essa exclusão pertence ao passado, o que é

exemplo do contínuo e sempre inacabado processo de construção do Estado de Direito, insistem muitos

atualmente em negar a possibilidade de os servidores, por meio de suas entidades representativas, poderem agir

como sujeitos de direitos coletivos” (ARAÚJO, Florivaldo Dutra de. Negociação coletiva dos servidores

públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 150-151).

21 WEBER, Max. Burocracia. In: GERTH, Hans H.; MILLS, C. Weight (Org.). Max Weber: Ensaios de

sociologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982.

Page 23: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

23

racionalidade. Assim, a ocupação de cargos por servidores profissionais prestar-se-ia a formar

uma rede baseada na impessoalidade, a fim de garantir o funcionamento de um sistema

eficiente. Segundo Weber, “o caráter impessoal do trabalho burocrático, com sua separação

entre a esfera privada e a esfera oficial do cargo, facilita a integração do funcionário nas

condições funcionais objetivas dadas para sempre pelo mecanismo baseado na disciplina”22.

Assim, a obediência dos agentes públicos aos comandos do hierarca não se basearia em um

processo de dominação pessoal, mas numa obediência que decorre do próprio arcabouço

normativo. Nesse diapasão, seria o aparato burocrático preenchido por pessoas ligadas por

vínculos que não se confundem com uma mera relação de emprego, as quais deverão atender a

pressupostos de especialização (necessária formação profissional) e se submeter a regras

predefinidas estabelecidas em documentos escritos. Por fim, destacamos a lição do autor, que

reconhece os ganhos de eficiência de uma máquina estatal organizada para ressaltar a

importância de um mecanismo burocrático plenamente desenvolvido, o qual se compara “às

outras organizações exatamente da mesma forma pela qual a máquina se compara aos modos

não-mecânicos de produção”23.

Dessa maneira, frisamos nossa posição no sentido de que não consideramos que o

regime institucional represente uma perda de eficiência ou consagre um déficit democrático,

mas se presta à formação de uma máquina estatal isenta, apta a perseguir o interesse público da

melhor formal possível, de sorte que não se justifica o argumento pragmático de que a

contratualização denotaria um necessário ganho de eficiência. Quanto a esse argumento,

lembramos que o regime estatutário também fundamenta sua existência, dentre outros

argumentos, numa otimização de recursos e acrescentamos a isso o fato de que não há qualquer

dado científico que comprove que existiria uma maior eficiência no regime contratual. Por outro

lado, ressaltamos que, conforme supraexposto, consideramos as prerrogativas dos servidores

públicos garantias individuais dos próprios cidadãos, de maneira que do Ordenamento Jurídico

pátrio também emanaria um óbice de natureza constitucional a essas tentativas de

flexibilização. Fixadas essas premissas, passamos à análise das garantias constitucionais dos

servidores públicos em específico.

22 WEBER, Max. Burocracia. In: GERTH, Hans H.; MILLS, C. Weight (Org.). Max Weber: Ensaios de

sociologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982, p. 243.

23 Idem, p. 249.

Page 24: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

24

1.4 As garantias constitucionais dos servidores públicos

A fim de garantir o bom desempenho da função pública e a isenção do aparelho estatal,

protegendo-o dos ataques promovidos por agentes norteados por móveis não republicanos, o

Texto Maior assegura determinadas garantias aos servidores públicos, que fazem parte do seu

regime jurídico, na condição de prerrogativas. Nesse sentido, estatuiu o constituinte, por

exemplo, que o acesso aos cargos públicos se dará mediante a realização de concurso público,

garantindo-se ainda a estabilidade dos servidores após o interstício de 3 (três) anos24, bem como

a irredutibilidade de vencimentos e aposentadoria mediante regime próprio. Cada uma dessas

prerrogativas possui uma razão de ser e componentes específicos. O regime institucional, como

regime protetor da coisa pública traz uma série de mecanismos para garantir a continuidade do

serviço público, higidez da atuação estatal e o bom funcionamento da Administração. Dessa

forma, passamos a analisar as peculiaridades que permeiam o regime atinente aos servidores

ocupantes de cargo efetivo fundado pela Constituição da República de 1988.

1.4.1 Os cargos públicos

Primeiramente, ressaltamos que servidor público em sentido estrito, tratado no presente

estudo, é aquele ocupante de cargo efetivo e que pode o signo “cargo” ser definido como o mais

restrito complexo de competências, ocupado por um único servidor, após investidura, criado

por lei (art. 61, §1º, II, a, CF/88) para o exercício da função pública. Seriam eles, segundo o

professor Celso Antônio Bandeira de Mello “as mais simples e indivisíveis unidades abstratas

criadas por lei, com denominação própria e número certo, que sintetizam um centro de

competências públicas de alçada da organização central a serem exercidas por um agente” 25.

Acrescentamos que, para que seja possível a sua criação, faz-se necessário, nos termos do art.

169 da Constituição Federal, alterado pela Emenda Constitucional n. 19/98, que haja prévia

dotação orçamentária, suficiente para atender às projeções de despesa de pessoal e aos

acréscimos dela decorrentes e autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias.

24 Inserimos aqui a ressalva de que, inicialmente, previa a Constituição Federal o interstício de 2 (dois) anos como

requisito para a aquisição da estabilidade. Todavia, por força da Emenda Constitucional n. 19/98, foi alterada

a redação do art. 41 do Texto Maior sendo esse período estendido para três anos.

25 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Apontamentos sobre os agentes e órgãos públicos. 1. ed., 2 tir. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 1975, p. 17.

Page 25: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

25

Sobre a natureza jurídica do ato de ingresso do cidadão público no seio da

Administração Pública, reputamos tratar-se de ato-condição, expressão cunhada por Leon

Duguit, que se refere àqueles casos em que, a partir desse ato, passa a incidir sobre o indivíduo

determinado estatuto preexistente. Dessa forma, possui o ato-condição um caráter objetivo,

representado pela alteração no mundo jurídico com o ato que implica a incidência de

determinado conjunto normativo sobre um indivíduo, e um caráter subjetivo, qual seja a

situação do indivíduo em si, sobre a qual passa a incidir um conjunto de normas antes

inaplicável26. Referido ato jurídico é marcado pela unilateralidade, de modo que a vontade do

particular se resume a aceitar ou não a sua submissão a todo um novo regime jurídico. Uma vez

aceita, sobre ele incide involuntariamente todo o estatuto jurídico preexistente, em relação ao

qual não possui poder de alteração, de sorte que não lhe é permitido, por exemplo, discutir as

“cláusulas” desse regime. Dessa maneira, ressaltamos o posicionamento anteriormente firmado

no sentido de que não se trata de ato contratual: inexiste autonomia da vontade, visto que não

existe liberdade no seio da Administração Pública, mas apenas (e quando muito)

discricionariedade27.

1.4.2 O ingresso na Administração Pública

No que tange aos pressupostos para o ingresso na Administração Pública, na condição

de servidor, importante ressaltar inicialmente que a Constituição Federal, no inciso I do seu art.

26 DUGUIT, Leon. Traité de droit constitutionnel, tt. 1er. Paris : Ancienne Librairie Fontemoing & Cie., 1927 (t.

1er), 3ª ed. apud. ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Contrato administrativo. São Paulo: Quartier Latin,

2012, p. 85-86.

27 Sobre discricionariedade e liberdade, explica o professor Ricardo Marcondes Martins: “O que importa, no

exercício da função pública, não é a vontade do agente, mas a vontade do Direito. Assim, supondo-se que o

resultado da ponderação seja a concretização do princípio ‘P1’ pela medida ‘M1’; ainda que o agente

administrativo esteja totalmente incapacitado mentalmente, se realizada a medida ‘M1’, não haverá invalidade.

A vontade do agente, nesses casos em que o Direito, de plano, admite apenas uma solução, chamados

competência vinculada, é totalmente irrelevante. Há, porém, muitos casos em que a vontade do agente passa a

ser relevante, nos quais o Direito não define, de plano, uma única solução como correta. Trata-se de uma

decorrência do pluralismo político: as pessoas têm diferentes visões de mundo e posições axiológicas

discordantes. Suponha-se que para ‘A’ a melhor solução seja ‘x’, para ‘B’ a melhor solução seja ‘y’ e inexistem

critérios racionais passíveis de assegurar que ‘x’ é melhor que ‘y’ nem que ‘y’ é melhor que ‘x’. Nesses casos,

convivem intelecções diferentes, sem que uma delas tenha de ser havida como incorreta. Quando isso ocorre,

o sistema normativo imputa a escolha ao agente competente e faz prevalecer sua vontade. É o que se chama

competência discricionária. Apesar de um erro generalizado confundi-la com liberdade, as diferenças são

abissais. O sistema jurídico não deixa a escolha entre uma alternativa ou outra apenas sob o crivo da vontade

do agente competente; o agente deve escolher a alternativa que segundo sua opinião seja a melhor forma de

realizar o interesse público” (MARTINS, Ricardo Marcondes. Teoria jurídica da liberdade. São Paulo:

Contracorrente, 2015, p. 112-113).

Page 26: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

26

37, garante que “os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que

preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei”.

Primeiramente, sobre a admissão de estrangeiros, fazemos breve parêntese para

esclarecer que a redação originária do inciso I do art. 37 da Constituição Federal não previa a

possibilidade de ocupação de cargos públicos por pessoas que não possuíssem a nacionalidade

brasileira. Essa se referia apenas aos “brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em

lei”. O dispositivo em questão teve sua redação alteada pela Emenda Constitucional n. 19/98,

que incluiu a possibilidade de ocupação de cargo público por estrangeiros “na forma da lei”, o

que deu ensejo a alguma divergência doutrinária, mas terminou por considerar a doutrina

majoritária se tratar o dispositivo constitucional de norma de eficácia limitada, ou seja, norma

que carece de regulamentação em âmbito infraconstitucional para que seja possível o seu

exercício28. Até a presente data não foi editada lei federal nesse sentido, de maneira que o

ingresso de estrangeiros nos quadros públicos federais ainda passa a depender de sua

naturalização, alternativa normalmente adotada por cidadãos oriundos de outros países que

desejam prestar concursos públicos. Neste ponto, lembramos que os demais entes federativos

também possuem capacidade de auto-organização e autolegislação, de maneira que detêm

competência para a edição de seus respectivos estatutos funcionais, o que traz a possibilidade

de criação de lei nesse sentido pelos Estados e municípios. Por fim, ressalvamos a disposição

contida no art. 207 da Constituição Federal, que faculta às universidades a admissão de

professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei. O diploma em questão já foi

editado, qual seja a Lei n. 9.515/97, a qual alterou o art. 5º da Lei n. 8.112/90 para lhe acrescer

o §3º, que dispõe exatamente sobre a possibilidade de provimento de cargos de universidades

e instituições de pesquisa científica e tecnológica federais com professores, técnicos e cientistas

estrangeiros, de acordo com as normas e os procedimentos do próprio estatuto dos servidores

públicos federais.

28 Trata-se da classificação desenvolvida por José Afonso da Silva, que divide as normas constitucionais entre

normas de eficácia plena, aquelas que dispensam regulamentação para o seu exercício; normas de eficácia

contida, aquelas que dariam azo ao exercício de imediato, mas poderiam sofrer alguma limitação quando da

regulamentação infraconstitucional, e normas de eficácia limitada, ou seja, normas que, para que fosse possível

seu exercício, dependeriam de complementação por norma infraconstitucional, as quais, por sua vez, são

subdivididas em declaratórias de princípios institutivos e declaratórias de princípio programático (SILVA, José

Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 81-85).

Page 27: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

27

Dada a previsão constitucional de acesso aos cargos públicos por todos os brasileiros e

estrangeiros na forma da lei, são editadas normas que visam a estabelecer o que se

convencionou chamar de acessibilidade29, que impõe seja o preenchimento dos quadros do

funcionalismo estatal dado da forma mais ampla e democrática possível, autorizado, todavia, à

lei estabelecer requisitos para o referido ingresso. Não obstante, as barreiras legislativas deverão

ser fundamentadas em argumento constitucionalmente válido, ou seja, argumento racional que

esteja de acordo com os ditames do texto maior. Conforme afirma a professora Maria Sylvia

Zanella Di Pietro, é possível ao legislador “estabelecer critérios para a admissão com obediência

ao princípio da isonomia, só estabelecendo exigências específicas quando necessária em razão

das atribuições a serem exercidas”30. Dessa sorte, qualquer norma que imponha discriminação

arbitrária deverá ter sua invalidade declarada.

Por outro lado, a investidura em cargos ou empregos públicos, nos termos do inciso II

do art. 37 da Constituição Federal, depende de aprovação prévia em concurso público de provas

ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na

forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de

livre nomeação e exoneração. Ou seja, a rigor, caso determinado cidadão deseje ingressar na

Administração Pública, salvo nos casos ressalvados na própria Constituição (a exemplo dos

cargos em comissão ou da contração temporária por excepcional interesse público), deverá se

submeter a exame de provas e títulos, de modo a ser apurada sua qualificação técnica para tanto.

Tendo em vista a aludida previsão constitucional, possível afirmar que o concurso

público tem como fonte normativa primária a Constituição Federal, sendo essa, portanto a

principal baliza dos seus contornos jurídicos31. Os fundamentos imediatos para essa exigência

são o princípio democrático, o princípio da impessoalidade e o princípio da moralidade,

buscando-se evitar que apenas pessoas ligadas ao grupo político que se instale

momentaneamente na Administração tenham acesso aos cargos públicos. Dessa maneira, cria-

29 Sobre a acessibilidade, ensina José dos Santos Carvalho Filho: “Acessibilidade é o conjunto de normas e

princípios que regulam o ingresso de pessoas interessadas no serviço público. Os parâmetros que regem o

acesso ao serviço público acarretam vinculação para os órgãos administrativos, de modo que não pode a

Administração criar dificuldades maiores nem abrir ensanchas de facilidades fora das regras que compõem o

sistema. Cuida-se, pois, de verdadeiro direito subjetivo – o direito de acesso aos cargos, empregos e funções

públicas, observadas logicamente as normas aplicáveis em cada tipo de provimento” (CARVALHO FILHO,

José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 589).

30 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 29. ed. São Paulo: Forense, 2016. p. 675.

31 MAIA, Márcio Barbosa; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de. O regime jurídico do concurso público e seu

controle jurisdicional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 11.

Page 28: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

28

se um quadro permanente de agentes, responsáveis pelo funcionamento da máquina estatal e

descompromissados com os interesses do grupo político em exercício. É bem verdade que

deverá existir uma espécie de colaboração entre os agentes permanentes e os representantes

eleitos para os cargos políticos, ressalvando-se, no entanto, que essa colaboração se dará apenas

no que tange ao exercício da função pública, dentro dos patamares da legalidade. Obviamente,

não se está a afirmar que aqueles que ingressam mediante nomeação sem a via do concurso

público (cargos comissionados) prestar-se-ão a apenas e tão somente à prática de atos ilegais a

mando do governante. Esses também deverão se prestar ao atendimento do interesse público,

mas a existência de carreiras permanentes garante que o patrimônio da coletividade estará

constantemente resguardado por agentes neutros, que realizarão uma cooperação vigilante com

o agente político. Dessa maneira, a imposição de um sistema impessoal e democrático de

seleção daqueles que buscam ingressar nos quadros públicos representa uma cautela necessária

à proteção da coisa pública.

Outrossim, o concurso público foi o critério objetivo adotado pelo constituinte

originário como forma de selecionar os melhores candidatos para garantir a excelência do corpo

estatal e a indisponibilidade do interesse público. É sabido que hoje os concursos públicos são

realizados mediante provas da mais alta complexidade, com candidatos extremamente

preparados, já tendo se desenvolvido até mesmo um mercado (em franca expansão) em torno

desses certames. Isso assegura que boas mentes se dediquem a pensar e a executar as tarefas de

estado, em benefício da coletividade e em prol da persecução do interesse público. Além disso,

o seu aspecto democrático tem realizado um “papel construtor da dignidade estatal”, haja vista

o ingresso de novos servidores, notadamente da classe média e dentre os mais pobres da

sociedade, os quais, no processo histórico brasileiro (marcado pelo elitismo e pelo

patrimonialismo) sempre estivaram alijadas das melhores oportunidades, de modo que é agora

possível observar “um movimento paulatino, impessoal, moralizador de novos atores sociais,

os quais têm orgulho de ostentar o status de agente público”32.

Fora das hipóteses constitucionalmente previstas, a admissão de pessoal sem a

realização do processo seletivo consagrado no texto maior é ato nulo33, o qual deverá ser

32 MAIA, Márcio Barbosa; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de. O regime jurídico do concurso público e seu

controle jurisdicional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 2.

33 É importante ressaltar que o Supremo Tribunal Federal, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade,

reconheceu a invalidade de norma do estado do Rio Grande do Norte que conferia estabilidade a servidores

Page 29: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

29

desfeito para retornar as partes ao status quo ante34. Não há que se falar em fato consumado,

pois isso levaria o particular que ingressou indevidamente a se locupletar de ato repudiado pelo

arcabouço normativo da Constituição Federal. Não obstante nosso posicionamento,

ressalvamos que o Superior Tribunal de Justiça35, ao abordar o tema, já admitiu, ainda que

estatais admitidos sem concurso público no ano de 1989. Ressalvamos que, não obstante o julgado utilize

classificação diversa daquela exposta anteriormente neste estudo, segundo a qual os servidores em questão

seriam servidores de pessoas governamentais de direito privado, é elucidativo o julgado quanto à aplicabilidade

do princípio do concurso público. Assim se manifestou o STF acerca da necessidade de prévia aprovação em

concurso público para o ingresso nos quadros da Administração. Vejamos: “Ementa: Direito Constitucional e

Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Estabilidade Excepcional para Servidores Públicos

Civis Não Concursados. Impossibilidade de Extensão a Empregados de Empresas Públicas e Sociedades de

Economia Mista. Precedentes. 1. A Constituição Federal de 1988 exige que a investidura em cargos ou

empregos públicos dependa de aprovação prévia em concurso público de provas e títulos, de acordo com a

natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista na lei, ressalvadas as nomeações para cargo

em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração (art. 37, II, CF/88). 2. O constituinte originário

inseriu norma transitória criando uma estabilidade excepcional para servidores públicos civis não concursados

da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta, autárquica e das

fundações públicas, em exercício na data da promulgação da Constituição, que contassem com pelo menos

cinco anos ininterruptos de serviço público (art. 19 do ADCT), não estando incluídos na estabilidade os

empregados das sociedades de economia mista e das empresas públicas. 3. A jurisprudência desta Corte tem

considerado inconstitucionais normas estaduais que ampliam a exceção prevista no art. 19 do ADCT a

empregados de empresas públicas e sociedades de economia mista. Nesse sentido: ADI 498, Rel. Min. Carlos

Velloso; ADI 2.689, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie; ADI 100, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie; ADI 125, Rel. Min. Sepúlveda

Pertence, entre outros. 4. Ação direta de inconstitucionalidade procedente” (BRASIL. Supremo Tribunal

Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1301 RN. Requerente: Governador do Estado do Rio Grande

do Norte. Intdo: Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte. Relator: Min. Luís Roberto Barroso. Brasília,

3 de março de 2016. Disponível em

<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=

1301&classe=ADI&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 22 nov.

2016).

34 Mais uma vez, ilustra-se o tema com jurisprudência do Pretório Excelso: “CONSTITUCIONAL E

TRABALHO. CONTRATAÇÃO DE PESSOAL PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA SEM CONCURSO.

NULIDADE. EFEITOS JURÍDICOS ADMISSÍVEIS EM RELAÇÃO A EMPREGADOS: PAGAMENTO

DE SALDO SALARIAL E LEVANTAMENTO DE FGTS (RE 596.478 – REPERCUSSÃO GERAL).

INEXIGIBILIDADE DE OUTRAS VERBAS, MESMO A TÍTULO INDENIZATÓRIO. 1. Conforme

reiteradamente afirmado pelo Supremo Tribunal Federal, a Constituição de 1988 reprova severamente as

contratações de pessoal pela Administração Pública sem a observância das normas referentes à

indispensabilidade da prévia aprovação em concurso público, cominando a sua nulidade e impondo sanções à

autoridade responsável (CF, art. 37, § 2º). 2. No que se refere a empregados, essas contratações ilegítimas não

geram quaisquer efeitos jurídicos válidos, a não ser o direito à percepção dos salários referentes ao período

trabalhado e, nos termos do art. 19-A da Lei 8.036/90, ao levantamento dos depósitos efetuados no Fundo de

Garantia por Tempo de Serviço – FGTS. 3. Recurso extraordinário desprovido” (BRASIL. Supremo Tribunal

Federal. Recurso Extraordinário n. 705140 RS. Recorrente: Glaucia Rosaura dos Santos. Recorrido: Fundação

Estadual do Bem-Estar do Menor – FEBEM. Relator: Min. Teori Zavascki. Brasília, 28 de agosto de 2014.

Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?

numero=705140&classe=RE&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em:

22 nov. 2016).

35 À guisa de exemplo, cite-se o Recurso em Mandado de Segurança n. 25.652-PB, no bojo do qual decidiu aquela

Corte que “o transcurso de quase vinte anos tornou a situação irreversível, convalidando os seus efeitos, em

apreço ao postulado da segurança jurídica, máxime se considerando, como neste caso, que alguns dos

nomeados até já se aposentaram” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Mandado de

Segurança n. 25.652-PB. Recorrente: Marcela Xavier Sintônio Lucena e outros. Recorrido: Tribunal de Contas

do Estado da Paraíba. Relator: Min. Napoleão Nunes Maia Filho. Brasília, 13 de outubro de 2008. Disponível

Page 30: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

30

excepcionalmente, a permanência de servidores contratados sem concurso público nos quadros

da Administração em razão do decurso de tempo (considerado o prazo de cinco anos). Pedimos

vênia para discordar do entendimento da nobre Corte e mantemos o posicionamento de que é

inválida a manutenção de servidores que não ingressaram (salvo as exceções constitucionais)

pela via ordinária do certame. Isso porque, interpretando-se o art. 19 do ADCT a contrário

sensu, que conferiu estabilidade excepcional a determinados servidores admitidos sem concurso

públicos (há mais de cinco anos quando da promulgação da Constituição de 1988), fora

daquelas hipóteses não há que se falar em qualquer outro tipo de estabilidade excepcional. Esse

foi, inclusive, por vias transversas, o fundamento utilizado pelo Supremo Tribunal Federal (no

bojo da ADI 1301/RN, cuja ementa foi transcrita na nota de rodapé n. 33 deste trabalho) para

declarar inconstitucional dispositivo de Constituição Estadual que conferia estabilidade a

servidores fora das hipóteses elencadas nas disposições transitórias36.

É importante ainda ressaltar que, conforme entendimento firmado pelo Supremo

Tribunal Federal37, a Constituição Federal de 1988 veda os chamados “concursos internos”38

em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?i=1&b=ACOR&livre=

%28%28%27ROMS%27.clas.+e+@num=%2725652%27%29+ou+%28%27RMS%27+adj+%2725652%27.s

uce.%29%29&thesaurus=JURIDICO>. Acesso em: 22 nov. 2016).

36 Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Estudos de direito administrativo neoconstitucional. São Paulo:

Malheiros, 2015. p. 172.

37 A título de exemplo, cite-se julgado do Supremo Tribunal Federal que consagrou o entendimento afirmado

para declarar inconstitucionais dispositivos da Lei n. 8.112/90, que admitiam formas de provimento derivado:

“EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Formas de provimento derivado. Inconstitucionalidade. –

Tendo sido editado o Plano de Classificação dos Cargos do Poder Judiciário posteriormente à propositura desta

ação direta, ficou ela prejudicada quanto aos servidores desse Poder. – No mais, esta Corte, a partir do

julgamento da ADIN 231, firmou o entendimento de que são inconstitucionais as formas de provimento

derivado representadas pela ascensão ou acesso, transferência e aproveitamento no tocante a cargos ou

empregos públicos. Outros precedentes: ADIN 245 e ADIN 97. – Inconstitucionalidade, no que concerne às

normas da Lei n. 8.112/90, do inciso III do art. 8º; das expressões ascensão e acesso no parágrafo único do art.

10; das expressões acesso e ascensão no § 4º do art. 13; das expressões ou ascensão e ou ascender no art. 17; e

do inciso IV do art. 33. Ação conhecida em parte, e nessa parte julgada procedente para declarar a

inconstitucionalidade dos incisos e das expressões acima referidos” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal.

Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 837 DF. Requerente: Procurador Geral da República. Requeridos:

Presidente da República e outros. Relator: Min. Moreira Alves. Brasília, 27 de agosto de 1998. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=837&classe=ADI&codigo

Classe=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 10 out. 2016).

38 Sobre os concursos internos, José dos Santos Carvalho Filho: “O concurso interno é o processo eletivo

realizado exclusivamente dentro do âmbito de pessoas administrativas ou órgãos públicos. Como demonstra a

própria expressão, esse tipo de certame não pode ser tido como concurso público, sabido que a participação

dos candidatos é de caráter limitado. A questão do concurso interno surgiu a propósito da regra do art. 19, §1º,

do ADCT da CF. Depois de conferir a certos servidores o direito à estabilidade no serviço público (art. 19,

ADCT, CF), a Constituição consignou que o tempo de serviço desses servidores seria contado como título

quando fossem submetidos a concurso para fins de efetivação, na forma da lei. Como a norma não empregou

o adjetivo público, alguns entenderam que a hipótese ensejaria mero concurso interno. Parece-nos que esse não

Page 31: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

31

para fins de ascensão ou acesso, forma de provimento derivado de cargos39, por meio dos quais

pessoa que já era servidora pública, através de certames oferecidos apenas àqueles que já

detinham essa condição, poderia ascender a outro cargo. Considerou a Suprema Corte que

referida prática não se coadunaria com os princípios consagrados na Constituição Cidadã por

restringir a gama de particulares que podem realizar essas provas, ferindo o princípio da

igualdade e o princípio democrático. Dessa maneira, hoje apenas é admissível a nomeação

como forma de provimento originário, em que o cidadão ingressa na Administração Pública

através de concurso aberto a todos e, caso queira assumir outro cargo, deverá se submeter a

novo certame, do qual se originaria outro provimento originário. Aprovado em concurso

público, será publicado o ato de nomeação do servidor, tomando ele posse e passando ao

exercício. O entendimento em questão comporta alguma divergência doutrinária, tendo em vista

que muitos autores consideram que a possibilidade de realização de concursos internos, em

alguns casos, favoreceria a profissionalização do serviço público com a ocupação de cargos de

hierarquia mais alta (e comumente de maior complexidade) pelas pessoas mais capacitadas, e

não apenas por aqueles politicamente indicados. Segundo Romeu Felipe Bacellar Filho,

referido instituto representava um “sistema de mérito no serviço público, que premiava os

servidores que buscavam o aprimoramento na profissão”40. Dessa maneira, seria salutar que o

provimento de funções de confiança, por exemplo, fosse precedido de certame realizado dentre

os integrantes de uma carreira. Isso premiaria aqueles mais habilitados e capacitados, e não

apenas os servidores que possuíssem os melhores contatos políticos. Ao encontro desse

pensamento vai o professor Ricardo Marcondes Martins que, ao tratar das funções de confiança,

é o melhor entendimento. Na verdade, o Constituinte em nenhum momento pretendeu excepcionar a regra geral

do concurso público. Ao contrário. Quis, isto sim, possibilitar que alguns servidores, se aprovados em concurso

público para cargos efetivos, pudessem ter seu tempo anterior de serviço computado como título. Os que não

desejassem a efetivação nos cargos não precisariam submeter-se ao concurso, pois que já teriam conquistado

a estabilidade. Os servidores, no entanto, que pretendessem ocupar cargos efetivos, deveriam participar

normalmente do concurso público e, se aprovados, seu tempo anterior de serviço valeria como título para a

classificação final dos candidatos” (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo.

24. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 578).

39 Ressalve-se que subsistem outras formas legais de provimento derivado de cargos públicos. Segundo

classificação utilizada pelo professor Celso Antônio Bandeira de Mello, seriam elas: o provimento derivado

vertical, quando o servidor é promovido para cargo de nível mais alto dentro da mesma carreira; o provimento

derivado horizontal, também chamado de readaptação, quando o servidor é alocado em outro cargo mais

compatível com sua ulterior limitação de capacidade física ou mental; provimento derivado por reingresso, por

meio do qual o servidor retorna à atividade, da qual se encontrava desligado (BANDEIRA DE MELLO, Celso

Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 315-316).

40 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Profissionalização da função pública: a experiência brasileira, 2003.

Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/45681/45049>. Acesso em: 26

de jun. 2016.

Page 32: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

32

refere-se à necessidade do estabelecimento de uma confiança objetiva, ou seja, “a confiança de

que o nomeado bem exercerá a função, porque é qualificado para tal”41, pontuando ainda que

“a confiança objetiva implica a confiança por parte de todos da sociedade”42. Dessa maneira, a

fidúcia que deve permear a relação é a fidúcia de que aquele servidor é o objetivamente mais

capacitado para a função, e não uma fidúcia subjetiva, ou seja, baseada apenas nos laços de

amizade entre o hierarca e o indicado.

Realizado o concurso público, a ordem natural é que os candidatos aprovados sejam

nomeados, tomem posse e deem início ao exercício de suas funções. Ocorre que nem sempre a

marcha administrativa toma esse curso, o que traz algumas situações dignas de nota.

Tradicionalmente entendia a doutrina que, não obstante a Administração exteriorizasse

sua necessidade de contratação de servidores ao publicar edital do certame, os candidatos

aprovados teriam mera expectativa de direito à nomeação, ou seja, não teriam direito subjetivo

à investidura, podendo o Poder Público praticar aquele ato ou não, de acordo com sua

competência discricionária. O candidato teria direito à sua convocação, na ordem de aprovados,

o que geraria para ele direito subjetivo à nomeação apenas caso alguém em posição posterior à

sua no certame fosse convocado com sua preterição43 ou caso a Administração Pública

praticasse atos que demonstrassem cabalmente a necessidade de aquisição imediata de pessoal,

como, por exemplo, a contratação temporária de servidores, em regime de urgência (sem

concurso público, portanto), para exercer exatamente as mesmas funções para as quais o

cidadão preterido se candidatou ou mesmo a realização de novo concurso público sem o

escoamento do prazo de validade do primeiro. Atualmente, principalmente após guinada na

jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça44, vem a novel doutrina admitindo que o

41 MARTINS, Ricardo Marcondes. Estudos de direito administrativo neoconstitucional. São Paulo: Malheiros,

2015. p. 170.

42 Idem, ibidem.

43 Referido entendimento foi cristalizado no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que editou a Súmula n. 15, a

qual estabelece: “Dentro do prazo de validade do concurso, o candidato aprovado tem o direito à nomeação,

quando o cargo for preenchido sem observância da classificação” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal.

Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumula&pagina=

sumula_001_100> Acesso em 20 nov. 2016).

44 A título exemplificativo, cite-se julgado daquela Corte: “RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE

SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. APROVAÇÃO DENTRO DO NÚMERO DE VAGAS PREVISTO

NO EDITAL. DIREITO SUBJETIVO À NOMEAÇÃO. PRECEDENTES. 1. De acordo com entendimento

consolidado deste Superior Tribunal de Justiça, o candidato aprovado dentro do número de vagas previsto no

edital do certame não tem mera expectativa de direito, mas verdadeiro direito subjetivo à nomeação para o

cargo a que concorreu e foi classificado. Precedentes. 2. Recurso ordinário provido.” (BRASIL. Superior

Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n. 23.331 RS. Recorrente: Ylen Grangeiro

Atallah. Recorrido Estado de Rondônia. Relator: Min. Maria Thereza de Assis Moura. Brasília, 16 de março

Page 33: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

33

candidato aprovado, dentro do número de vagas, tem direito subjetivo à nomeação no cargo,

ressalvando-se a necessidade de dotação orçamentária. É importante ressaltar que o Supremo

Tribunal Federal, no ano de 2011, acolheu a jurisprudência firmada no âmbito do Superior

Tribunal de Justiça e, no bojo do Recurso Extraordinário n. 598.099, reconheceu que os

candidatos aprovados dentro do número de vagas teriam direito subjetivo à nomeação, hipótese

na qual restou consignado que a Administração Pública “não poderá dispor sobre a própria

nomeação, a qual, de acordo com o edital, passa a constituir um direito do concursando

aprovado e, dessa forma, um dever imposto ao poder público”45. Por outro lado, acrescentamos

que, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 837.311, em outubro de 2015, o Pretório

Excelso trouxe alguns temperamentos à teoria anteriormente firmada acerca da nomeação dos

candidatos aprovados em concurso público. Nesses termos, decidiu que permanece reconhecido

o direito subjetivo à nomeação em favor daqueles candidatos aprovados dentro do número de

vagas, mas, no que tange aos candidatados aprovados fora desse número, o surgimento de novas

vagas ou a realização de novo certame sem o escoamento do prazo da validade do concurso

anterior não lhes gera o direito subjetivo à nomeação, sob o fundamento de que à Administração

Pública caberia decidir acerca da conveniência e oportunidade de nomear os últimos aprovados

em um concurso ou os primeiros aprovados de novel certame46.

de 2010. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?

processo=23331&b=ACOR&p=true&t=JURIDICO&l=10&i=3>. Acesso em: 02 set. 2016)

45 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 598.099 MS. Recorrente: Estado do Mato

Grosso do Sul. Recorrido: Rômulo Augusto Duarte. Relator: Min. Gilmar Mendes. Brasília, 10 de agosto de

2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento. asp?numero=598099&

classe=RE&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 7 jul. 2016.

46 A fim de ilustrar o posicionamento da Suprema Corte, citamos trecho esclarecedor do dispositivo redigido no

bojo do julgamento em referência: Decisão: “O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, fixou

tese nos seguintes termos: ‘O surgimento de novas vagas ou a abertura de novo concurso para o mesmo cargo,

durante o prazo de validade do certame anterior, não gera automaticamente o direito à nomeação dos candidatos

aprovados fora das vagas previstas no edital, ressalvadas as hipóteses de preterição arbitrária e imotivada por

parte da administração, caracterizada por comportamento tácito ou expresso do Poder Público capaz de revelar

a inequívoca necessidade de nomeação do aprovado durante o período de validade do certame, a ser

demonstrada de forma cabal pelo candidato. Assim, o direito subjetivo à nomeação do candidato aprovado em

concurso público exsurge nas seguintes hipóteses: 1– Quando a aprovação ocorrer dentro do número de vagas

dentro do edital; 2 – Quando houver preterição na nomeação por não observância da ordem de classificação; 3

– Quando surgirem novas vagas, ou for aberto novo concurso durante a validade do certame anterior, e ocorrer

a preterição de candidatos de forma arbitrária e imotivada por parte da administração nos termos acima’”

(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 837.311 PI. Recorrente: Estado do Piauí.

Recorridos: Eugênia Nogueira do Rego Monteiro Villa e outro. Relator: Min. Luiz Fux. Brasília, 15 de abril

de 2016. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/

verProcessoAndamento.asp?numero=837311&classe=RE&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJ

ulgamento=M>. Acesso em: 22 nov. 2016).

Page 34: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

34

Adotamos esse posicionamento, por entender que, uma vez publicado o certame, a

Administração Pública já demonstrou sua necessidade de obtenção de novos servidores para a

composição de seus quadros, de modo que ressaltamos que a determinação do número de vagas é

uma escolha do próprio gestor (o que permite o adequado dimensionamento das necessidades

naquele momento), bem como o fato de que necessariamente deverá existir dotação orçamentária

para que se permita a pretendida nomeação, o que impede um desarranjo indevido no orçamento.

Quanto àqueles candidatos aprovados fora do número de vagas previstas no edital, teriam eles o

direito subjetivo à nomeação apenas na hipótese de preterição por não observância na ordem de

classificação, o que pode ser denotado a partir da contratação de servidores temporários ou pela via

da terceirização de serviços para o exercício específico da mesma função.

1.4.3 A estabilidade

Aprovado em concurso público, investido no respectivo cargo para o qual se candidatou,

após 3 (três) anos de efetivo exercício47 e aprovação em avaliação especial de desempenho, é

garantida ao servidor, nos termos do art. 41 da Constituição Federal, a prerrogativa da

estabilidade48. Após esse interstício, só poderá o servido estável perder seu cargo nos casos

expressamente previstos no Texto Maior, quais sejam: a) em virtude de sentença judicial

transitada em julgado; b) mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla

defesa; c) mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei

complementar, assegurada ampla defesa; d) caso não venha a ser cumprido o limite com

despesas de pessoal, na forma do art. 169 da Constituição Federal.

47 Ressalvamos mais uma vez o fato de que o texto originário do art. 41 da Constituição Federal previa o prazo

de 2 (dois) anos de efetivo exercício para a aquisição da estabilidade, e não 3 (três), tal como na redação atual.

48 Sobre o tema, leciona Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “A estabilidade, como prevista nas várias Constituições

brasileiras, desde a de 1934, pode ser definida de maneira genérica como o direito à permanência no serviço

público, assegurado ao servidor público que cumpra o requisito de tempo de serviço exigido para esse fim e

cujo vínculo jurídico com o Poder Público somente se rompe nas hipóteses previstas na Constituição. Para

amoldar o conceito às alterações introduzidas no art. 41 da Constituição pela Emenda Constitucional n.

19/1998, que correspondem à conformação atual do instituto, pode-se definir a estabilidade, de forma

descritiva, como o direito à permanência no serviço público, para o cargo de provimento efetivo, cuja perda

somente ocorre mediante sentença judicial transitada em julgado, processo administrativo em que seja

assegurada ampla defesa, procedimento de avaliação de desempenho ou necessidade de adequar as despesas

com pessoal ao limite constitucional. Esse conceito abrange somente a estabilidade ordinária, disciplinada pelo

art. 41. Não alcança a estabilidade extraordinária outorgada pelo art. 19 das disposições transitórias” (DI

PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Estabilidade do servidor público. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella;

MOTTA, Fabrício; FERRAZ, Luciano de Araújo. Servidores públicos na Constituição Federal. 3. ed. São

Paulo: Atlas, 2015, p. 153-154).

Page 35: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

35

A Constituição Federal admite que, mediante processo judicial, garantidos o

contraditório e a ampla defesa, possa o servidor público estável perder seu cargo. É o que ocorre,

por exemplo, quando o servidor pratica ato sujeito às penas da Lei n. 8.429/92, a chamada Lei

de Improbidade, que impõe como sanção, a depender do ilícito praticado (e dentre outros

sancionamentos possíveis), a perda da função pública. Trata-se de hipótese dotada da maior

gravidade, em que é franqueada ao Poder Judiciário, como um dos Poderes Estatais, a condução

do processo que poderá dar origem à perda do cargo.

Outra hipótese aventada pelo Texto Constitucional é a perda do cargo ou função pública

mediante a instauração de processo administrativo, garantidos o contraditório e a ampla defesa.

É o caso, por exemplo, das infrações disciplinares, objeto do presente estudo, o qual será

estudado com mais atenção no decorrer dos capítulos seguintes.

A terceira hipótese foi trazida pela Emenda Constitucional n. 19/98 e prevê a perda do cargo

mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar,

assegurada a ampla defesa. Como ainda não foi editada a lei em questão, fato é que a norma

constitucional ainda queda ineficaz, por se tratar de norma de eficácia limitada, utilizando-nos do

termo desenvolvido por José Afonso da Silva49. Doutrinariamente, entende a maioria dos autores

que, por meio da avaliação periódica de desempenho, pode o servidor ser exonerado, mesmo que

não tenha pratica nenhum ato específico passivo de sanção administrativa. Ou seja, não versa essa

hipótese sobre uma sanção disciplinar, mas de simples ato de desligamento (exoneração) mediante

avaliação. Nesse sentido, poderia o servidor estável ser desligado dos quadros públicos, ainda que

não tivesse praticado qualquer falta funcional, simplesmente em razão da desaprovação de sua

conduta como um todo, desde que motivado o ato e precedido de procedimento em que fosse

garantido ao servidor o contraditório e a ampla defesa. Todavia, conforme as premissas fixadas na

primeira parte deste capítulo, o regime estatutário, regime protetor da coisa pública que visa a

resguardar o servidor dos desmandos do hierarca, data vênia, não é compatível com essa

interpretação. Dessa maneira, valemo-nos da doutrina do professor Ricardo Marcondes Martins

para propor uma interpretação conforme a Constituição do referido dispositivo, de modo que

concluímos que a avaliação periódica de desempenho não pode dar ensejo à exoneração do servidor,

mas apenas à sua demissão, de sorte que, para que imponha o desligamento do agente público,

deverá necessariamente abordar alguma falta funcional. O processo de avaliação difere do processo

49 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 8. ed., 2. tir. São Paulo: Malheiros, 2015.

Page 36: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

36

disciplinar, pois, para a instauração deste, faz-se necessário a existência de justa causa, sendo que a

avaliação periódica carece de referida justificativa. Basta que chegue sua época, dentro da

periodicidade estabelecida pelo legislador. A partir disso, tratar-se-á basicamente de questão

semelhante àquela abordada no parágrafo anterior: o servidor será submetido a processo

administrativo, garantido o contraditório e a ampla defesa. Por óbvio, para que seja aplicada medida

tão grave, faz-se necessária a imputação de um fato específico (notadamente alguma falta

funcional), não sendo suficiente a mera alegação genérica de que não foi atendido o requisito de

desempenho, sob pena de invalidade do ato de desligamento. Referida interpretação, pensamos, é

aquela que mais se coaduna com o texto constitucional, visto que “não enfraquece a imunização do

servidor público à malévola influência política, não cria uma nova hipótese de perda da estabilidade,

nem dificulta a estabilização de quem não se omita perante a corrupção, o patrimonialismo e o

clientelismo da administração brasileira”50.

É importante ainda ressalvarmos a redação do §4º do art. 41 da Constituição Federal,

incluído pela Emenda Constitucional n. 19/98, que estabelece como condição para a aquisição

da estabilidade a avaliação especial de desempenho por comissão instituída para essa finalidade.

Dessa maneira, segundo o entendimento majoritário, caso o servidor não demonstre

desempenho satisfatório, será desligado dos quadros da Administração, haja vista que o

constituinte derivado não previu qualquer medida alternativa de aproveitamento. Não obstante,

antes do ato de exoneração, faz jus o servidor a procedimento que lhe garanta a ampla defesa,

conforme reconheceu o Supremo Tribunal Federal na Súmula n. 21, a qual garante que

“funcionário em estágio probatório não pode ser exonerado nem demitido sem inquérito ou sem

as formalidades legais de apuração de sua capacidade”. Trata-se, portanto, de hipótese em que

o servidor pode nem mesmo chegar a adquirir a estabilidade, vez que realizada referida

avaliação justamente ao fim do estágio probatório. Sobre esse tema, ressalvamos novamente

nossa posição, já esposada no parágrafo anterior, segundo a qual, para que seja desligado dos

quadros da Administração, deverá o servidor ter cometido alguma falta funcional, ou seja, a

não confirmação na carreira dependerá de referida avaliação, mas a recusa em manter o servidor

deve estar embasada em alguma conduta específica, com a respectiva motivação. Do contrário,

o estágio probatório perde a sua objetividade, passando a instrumento sujeito ao arbítrio do

50 MARTINS, Ricardo Marcondes. Estágio probatório e avaliação de desempenho. Revista Brasileira de Estudos

da Função Pública – RBEFP, Belo Horizonte, ano 5, n. 13, jan.-abr. 2016. Disponível em:

<http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=240271>. Acesso em: 26 jun. 2016.

Page 37: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

37

hierarca. Dessa maneira, concluímos que o servidor, de fato, pode não ser confirmado na

carreira, mas deverá ter dado azo a essa medida por meio do cometimento de algum ilícito.

Por derradeiro, dispõe o art. 169 da Constituição Federal que as despesas com pessoal

ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderão exceder

os limites estabelecidos em lei complementar (hoje editada, a Lei de Responsabilidade Fiscal).

Fixa hoje a Lei Complementar n. 101/2000 no seu art. 19 os seguintes limites, em percentuais

da receita corrente líquida, para a despesa total com pessoal: a) 50% (cinquenta por cento) para

a União; b) 60% (sessenta por cento) para os Estados e; c) 60% (sessenta por cento) para os

municípios. Caso não atendam a esses limites os entes deverão realizar: a) a redução, em pelo

menos 20%, das despesas com cargos em comissão e funções de confiança; b) a exoneração

dos servidores não estáveis. Se essas medidas não forem suficientes para assegurar o

cumprimento da determinação da lei de responsabilidade fiscal, previu o constituinte

reformador que poderá o servidor estável perder seu cargo, desde que ato normativo motivado

de cada um dos Poderes especifique a atividade funcional, o órgão ou unidade administrativa

objeto da redução de pessoal. Ora, pensamos que, neste aspecto, o constituinte reformador foi

infeliz, sendo essa hipótese dotada da mais flagrante inconstitucionalidade, visto que os

servidores, como garantias do Estado Democrático de Direito que são, não podem sofrer com

os desmandos de governantes que excederam seus limites fiscais. O servidor só pode perder seu

cargo como forma de punição, em decorrência de ato por ele praticado e devidamente apurado

pela autoridade competente. Não há que se falar em perda do cargo por atos de terceiros. Essa

hipótese fere todo o arcabouço normativo-axiológico que permeia o regime jurídico dos

servidores, não devendo ser aplicada, portanto (com o reconhecimento incidental do vício de

constitucionalidade que a fulmina). Não obstante essas considerações, informamos a existência

da Lei n. 9.801/99 que, ao versar sobre a perda de cargo público de servidores estáveis por

excesso de despesa com fundamento no dispositivo em comento (§4º do art. 169 da Constituição

Federal), dispõe que referido ato será precedido de ato normativo motivado dos Chefes de cada

um dos Poderes da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal e especificará a

economia de recursos e o número correspondente de servidores a serem exonerados; a atividade

funcional e o órgão ou a unidade administrativa objeto de redução de pessoal; o critério geral

impessoal escolhido para a identificação dos servidores estáveis a serem desligados dos

respectivos cargos; os critérios e as garantias especiais escolhidos para identificação dos

servidores estáveis que, em decorrência das atribuições do cargo efetivo, desenvolvam

atividades exclusivas de Estado; o prazo de pagamento da indenização devida pela perda do

Page 38: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

38

cargo; e os créditos orçamentários para o pagamento das indenizações. Quanto a essa lei,

reiteramos as considerações feitas em relação ao dispositivo decorrente da reforma

constitucional para reputá-la incompatível com o sistema de garantias funcionais estabelecido

no bojo da Constituição Federal de 1988.

A estabilidade tem por função proteger os ocupantes de cargo efetivo de eventuais

arbítrios do hierarca, garantido a busca pelo interesse geral51. Conforme dito anteriormente, os

servidores públicos, no exercício de seu mister, prestam-se a desempenhar de forma isenta a

função pública, por meio da efetivação dos princípios consagrados no texto constitucional.

Ocorre que, na prática desses atos, eles podem se ver obrigados a contrariar seus superiores

hierárquicos ou aqueles que detêm o poder (lembrando que a única vontade que deve prevalecer

é a da lei, e não a de qualquer pessoa). Os agentes permanentes do Estado devem zelar pelos

valores consagrados na Constituição e se empenhar na persecução do interesse público, tarefa

essa que lhe expõe a toda sorte de intempéries, podendo o servidor ser pressionado por agentes

internos ou externos. O agente político pode tentar persegui-lo, o agente econômico pode tentar

capturá-lo. Não conseguindo o que gostaria, pode o maldoso ator tentar se ver livre daquele

inconveniente servidor. Não fosse a estabilidade, poderia o mau administrador facilmente

demiti-lo, substituindo-lhe por alguém menos comprometido com os interesses republicanos.

Dessa forma, se o concurso público garante a isenção na entrada de particulares na

Administração Pública, a estabilidade os protege contra a dispensa arbitrária, garantindo a

imunização das peças-chave na batalha pelo Estado Democrático de Direito, de maneira que,

valendo-nos das palavras do professor Ricardo Marcondes Martins, concluímos que a

estabilidade dos servidores “não é privilégio deles, mas uma garantia individual do

51 Sobre a importância da estabilidade como forma de garantir a busca pelo interesse público, cite-se a professora

Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “A estabilidade no serviço público é própria da forma burocrática de

Administração Pública e constitui garantia necessária quando se quer proteger o interesse geral, no sentido de

que as atividades administrativas do Estado sejam desempenhadas com observância impessoal do disposto no

ordenamento jurídico, independentemente da vontade pessoal do servidor e de seus superiores hierárquicos. É

pensando no fundamento último da estabilidade que se deve afastar, para as atividades-fins da Administração

Pública, voltadas para o atendimento das necessidades coletivas. A possibilidade de prestação de serviços por

pessoas não protegidas pelo instituto da estabilidade. Por isso mesmo, quando a Constituição outorga a

estabilidade ao servidor e lhe dá os contornos de direito subjetivo, não se pode considerar esse direito como

um privilégio outorgado ao servidor para a proteção da relação de emprego, mas como uma garantia de

permanência necessária ao desempenho adequado da função pública, com imparcialidade, continuidade,

legalidade. Quer-se a subordinação do servidor à vontade da lei e não à vontade do superior hierárquico” (DI

PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Estabilidade do servidor público. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella;

MOTTA, Fabrício; FERRAZ, Luciano de Araújo. Servidores públicos na Constituição Federal. 3. ed. São

Paulo: Atlas, 2015, p. 155-156).

Page 39: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

39

administrado contra a malévola influência política no exercício da função pública e um direito

político do cidadão à boa administração” 52.

1.4.4 A disponibilidade

Outro aspecto tratado em relação ao regime jurídico dos servidores públicos no texto

constitucional é a chamada disponibilidade, prevista no §3º do art. 41, o qual, em redação

alterada pela Emenda Constitucional n. 19/98, prevê que “extinto o cargo ou declarada a sua

desnecessidade, o servidor estável ficará em disponibilidade, com remuneração proporcional

ao tempo de serviço, até seu adequado aproveitamento em outro cargo”. É importante lembrar

que a estabilidade não significa a necessária vinculação do servidor a um cargo específico,

podendo esse ser extinto por motivo de desnecessidade ou reorganização da Administração.

Ocorre que simplesmente exonerar o servidor nesses casos tratar-se-ia de dispensa arbitrária,

hipótese vedada pela arcabouço axiológico-normativo consagrado na Constituição Federal de

1988. Dessa maneira, a fim de não “engessar” a atividade do administrador e, ao mesmo tempo,

não deixar os servidores públicos à mercê de propostas de reorganização estatal (o que não é

algo tão raro, bastando lembrar da chamada Reforma Administrativa perpetrada nos anos 1990)

ponderou o constituinte que, nesses casos, o servidor poderia ser afastado de suas funções (em

disponibilidade, portanto) até que pudesse ser aproveitado em outro cargo (ressalte-se que

jamais a disponibilidade poderá se dar em caráter punitivo). Outrossim, importante ressalvar

que, não obstante as posições em contrário53, consideramos que, pelo princípio da simetria das

52 MARTINS, Ricardo Marcondes. Estudos de direito administrativo neoconstitucional. São Paulo: Malheiros,

2015, p. 173.

53 Ressalvando nosso entendimento pessoal de que a extinção de cargos deverá necessariamente ser precedida de

autorização legislativa, citamos a doutrina de José dos Santos Carvalho Filho acerca dos pressupostos da

disponibilidade, a fim de enriquecer o debate. Lembramos que a doutrina que admite a extinção de cargos

públicos sem intermediação legislativa se baseia no art. 84, VI, b¸da Constituição Federal, fruto do poder

constituinte reformador. Cite-se: “Dois são os pressupostos para a disponibilidade. Em primeiro lugar, a

extinção do cargo, que, como já vimos, depende de lei, exceto nas hipóteses dos cargos do Legislativo e do art.

84, VI, ‘b’, da CF, neste caso quando os cargos estiverem vagos, o que foi registrado anteriormente. O outro

pressuposto é a declaração de desnecessidade do cargo. Essa declaração deve ser firmada através de ato

administrativo, normalmente por decreto do Chefe do Poder Executivo, e isso porque a Constituição em

nenhum momento fez exigência quanto à forma dessa manifestação de vontade. Por outro lado, trata-se de

atividade de caráter tipicamente administrativo, que se situa dentro do âmbito discricionário da Administração,

a esta cabendo estabelecer o juízo de conveniência e oportunidade sobre valoração da desnecessidade. O ato

administrativo declaratório, contudo, não é infenso ao controle judicial: se houver vício de legalidade, inclusive

qualquer forma de desvio de finalidade, deverá ser invalidado. Autorizada doutrina advoga o entendimento de

que a declaração de desnecessidade deve ser precedida de lei, com o escopo de regulamentar o art. 41, §3º, da

CF. O STF adotou idêntica posição. Ousamos dissentir desse entendimento. A nosso ver, o citado mandamento

constitucional é autoaplicável, além de não ter feito qualquer exigência quanto à edição prévia de lei. Portanto,

Page 40: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

40

formas, como regra geral, faz-se necessária a edição de lei para extinção de cargos públicos,

haja vista que, se esses são criados por ato legislativo em sentido estrito, a sua declaração de

desnecessidade é ato administrativo que também deverá ser precedido de autorização

legislativa, tal como reconhecido pelo Ministro Eros Grau, quando afirmou que “os cargos

públicos apenas podem ser criados e extintos por lei de iniciativa do presidente da República.

A declaração de desnecessidade sem amparo legal não é hábil a extingui-los”54. Posição

semelhante adotou o Ministro Ricardo Lewandowski quando do julgamento do julgamento da

Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.52155.

Acerca do quanto anteriormente tratado, é importante lembrar que a redação original do

§3º do art. 41 da Constituição Federal previa a possibilidade de conduzir o servidor à

disponibilidade, mas não fazia ressalva quanto à proporcionalidade dos vencimentos. Ou seja,

o servidor que tivesse seu cargo extinto ou tivesse sua desnecessidade declarada passaria à

disponibilidade, mas não sofreria redução de seus vencimentos, fosse por não ter sido ele quem

deu causa àquela situação, fosse como forma de proteção do servidor ao arbítrio do hierarca.

Na toada do que já relatamos acerca das garantias dos servidores e da razão de ser dessas,

verificamos que a lógica criada no sistema de garantias pelo constituinte originário se baseou

na ideia de barrar eventuais investidas de agentes corruptos sobre o servidor público, importante

agente estatal, dotado da grande responsabilidade na proteção do interesse público, conforme

já consignamos. Ora, como não seria possível demitir tão facilmente o servidor devido à

estabilidade, a saída encontrada pelo agente corrupto poderia se basear na condução do servidor

honesto à disponibilidade por meio da extinção de seu cargo ou declaração de sua

parece-nos que a declaração deva ser mesmo formalizada por meio de ato administrativo, em cujo conteúdo o

órgão administrativo procederá à valoração quanto à desnecessidade dos cargos” (CARVALHO FILHO, José

dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 667).

54 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 240.735-5 MG. Recorrente: Município de

Governador Valadares. Recorrido: Vanessa Alves de Araújo Rodrigues. Relator: Min. Eros Grau. Brasília, 5

de maio de 2006. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=

%28240735.NUME.+OU+240735.ACMS.%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/hco5ya6>.

Acesso em: 15 nov. 2016.

55 Cite-se trecho: “A extinção de cargos públicos, sejam eles efetivos ou em comissão, pressupõe lei específica,

dispondo quantos e quais cargos serão extintos, não podendo ocorrer por meio de norma genérica inserida na

Constituição. Incabível, por emenda constitucional, nos Estados-Membros, que o Poder Legislativo disponha

sobre espécie reservada à iniciativa privativa dos demais Poderes da República, sob pena de afronta ao art. 61

da Lei Maior” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1521 RS.

Requerente: Procurador Geral da República. Interessado: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do

Sul. Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Brasília, 12 de agosto de 2013. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=1521&classe=ADI&codigoClass

e=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 15 nov. 2016).

Page 41: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

41

desnecessidade. Assim, à negativa de alguma proposta espúria por parte do agente corruptor,

poderia esse, como forma de se ver livre daquele honesto agente público ou mesmo como forma

de ameaça, extinguir (ou ameaçar extinguir) seu cargo. Caso se tratasse de disponibilidade com

vencimentos integrais, referida ameaça não surtiria tanto efeito psicológico sobre o agente, haja

vista que ele e sua família em nada sofreriam os efeitos econômicos daquele ataque. Todavia,

com a reforma constitucional, passou-se a impor o pagamento de remuneração proporcional ao

agente em disponibilidade. Isso significa que um servidor com, por exemplo, cinco anos de

carreira, receberia parcos vencimentos, o que, na prática, teria efeitos econômicos muito

semelhantes aos de sua exoneração, visto que sua situação financeira seria reduzida à de

penúria. Sendo assim, pensamos que a reforma em questão é inconstitucional, vez que

enfraquece o plano do constituinte originário ao amesquinhar uma garantia legítima, muito cara

ao Estado Democrático de Direito, de modo que se mostra incompatível com o arcabouço

normativo-axiológico consagrado na Constituição Federal de 1988. Para essa afirmação,

valemo-nos da doutrina do professor Carlos Ayres Britto, que afirma que as emendas “somente

existem para manifestar uma discordância quanto à omissão do Constituinte frente a

determinado tema ou, quanto ao modo pelo qual certa matéria recebeu conformação normativa

pelo mesmo Poder Constituinte”56. Tratar-se-iam, portanto, de “limites implícitos” à reforma

constitucional, dos quais advém que o reformador somente pode agir para “reforçar o programa

constitucional originário, para fazê-lo melhor; não para alterá-lo, substitui-lo, enfraquecê-lo.

Toda reforma que contrarie essa diretriz é inválida”57. E é por essas razões que consideramos a

reforma em questão inválida, por contrariar o plano protetivo da coisa pública, traçado

originariamente pelo poder constituinte. Todavia, não obstante nosso posicionamento

doutrinário, esclarecemos que o Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre referida

reforma para declarar constitucional a imposição da proporcionalidade ao servidor posto em

disponibilidade. Dessa maneira, declarou inconstitucional norma do estado do Rio de Janeiro

que garantia o pagamento de vencimentos integrais ao servidor em disponibilidade, por

56 BRITTO, Carlos Ayres. A Constituição e o monitoramento de suas emendas. Revista Eletrônica de Direito do

Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n. 1, jan. 2004. Disponível em

<www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 27 jun. 2016.

57 MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo:

Malheiros, 2011, p. 78-79.

Page 42: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

42

considerar a previsão trazida pelo constituinte reformador válida e de aplicação obrigatória a

todo o serviço público58.

1.4.5 A irredutibilidade de vencimentos

Outro tema bastante importante para a formação do arcabouço axiológico que permeia

o regime jurídico dos servidores públicos é a irredutibilidade de vencimentos. Os servidores

públicos desempenham suas funções e são remunerados por isso. Dever-lhe-á ser pago, em

contrapartida aos serviços prestados, determinado valor, que será fixado em lei específica, de

acordo com a natureza, o grau de responsabilidade e a complexidade dos cargos componentes

de cada carreira, os requisitos para a investidura e as peculiaridades dos cargos, nos termos do

art. 39, §1º, da Constituição Federal. É importante lembrar que não se trata propriamente de

salário, não sendo a função pública espécie de atividade econômica. A Constituição Federal

utiliza as expressões “vencimentos” ou “subsídio” a depender da carreira e esses se prestarão a

garantir ao servidor estatal uma vida digna para ele próprio e para sua família, assegurando,

assim, o exercício seguro e eficaz do seu mister. Trata-se de uma garantia de profissionalismo

no seio estatal.

58 Citamos o julgado a seguir: “EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 90, § 3º, da Constituição

do Estado do Rio de Janeiro. Disponibilidade remunerada dos servidores públicos. Edição da EC n. 19/98.

Substancial alteração do parâmetro de controle. Art. 41, § 3º, da Constituição Federal. Não ocorrência de

prejuízo. Fixação de prazo para aproveitamento do servidor. Inconstitucionalidade. Integralidade da

remuneração. Não recepção pela EC n. 19/98. 1. A Emenda Constitucional n. 19/98 alterou substancialmente

parte do art. 41, § 3º, da Constituição Federal, o qual figura como paradigma de controle na ação. Necessidade

de adoção de dois juízos subsequentes pelo Tribunal. O primeiro entre o preceito impugnado e o texto

constitucional vigente na propositura da ação, com o fim de se averiguar a existência de compatibilidade entre

ambos (juízo de constitucionalidade). Já o segundo entre o dispositivo questionado e o parâmetro alterado

(atualmente em vigor), com o escopo de se atestar sua eventual recepção pelo texto constitucional

superveniente. 2. A imposição do prazo de um ano para aproveitamento do servidor em disponibilidade ofende

materialmente a Carta Federal, pois consiste em obrigação criada pelo Poder Legislativo que não decorre direta

ou indiretamente dos pressupostos essenciais à aplicação do instituto da disponibilidade definidos na

Constituição da República (art. 41, § 3º), e, principalmente, porque não condiz com o postulado da

independência dos Poderes instituídos, ainda que em sede do primeiro exercício do poder constituinte

decorrente. 3. O art. 41, § 3º, da Constituição Federal, na sua redação originária, era silente em relação ao

quantum da remuneração que seria devida ao servidor posto em disponibilidade. Esse vácuo normativo até

então existente autorizava os estados a legislar sobre a matéria, assegurando a integralidade remuneratória aos

seus servidores. Contudo, a modificação trazida pela EC 19/98 suplantou a previsão contida na Carta estadual,

pois passou a determinar, expressamente, que a remuneração do servidor em disponibilidade seria proporcional

ao tempo de serviço. 4. Ação direta julgada parcialmente procedente” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal.

Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 239 RJ. Requerente: Governador do Estado do Rio de Janeiro.

Interessado: Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Relator: Min. Dias Toffoli. Brasília, 29 de

outubro de 2014. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=239&classe=ADI&codigoClasse

=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 18 jul. 2016).

Page 43: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

43

E por que se fala em irredutibilidade? Ora, a resposta pode ser encontrada na mesma

fonte das quais emanam as demais prerrogativas suprarreferenciadas: a proteção da probidade,

do Estado Democrático de Direito e do direito individual a uma boa Administração que assiste

aos cidadãos. O servidor público, conforme já dito, no exercício de seu mister, pode ser

obrigado a contrariar os interesses de grupos específicos que teriam poder suficiente para

interferir no seu destino. Imaginemos a situação de determinado agente político que busca a

obtenção de um parecer do órgão jurídico permanente de determinado ente federativo, mas já

tem ideia da conclusão que gostaria, de modo que busca aquela peça jurídica apenas como

requisito formal para validar o procedimento necessário. Caso não houvesse as prerrogativas

dos agentes públicos responsáveis pela medida, esses poderiam vir a sofrer pressões para

alterarem as conclusões que derivam apenas de sua técnica jurídica. O agente político não pôde

escolher os servidores daquele órgão, haja vista que esses ingressaram por meio de concurso

público, não pode demiti-los, devido à estabilidade. Qual a melhor forma de pressão exercível

nesse caso, que ainda lhe garantiria uma dúvida razoável? A pressão econômica. Bastaria

apresentar a proposta aos servidores: “ou vocês dão o parecer conforme meus interesses ou eu

reduzirei sua remuneração a ponto de prejudicar o sustento de sua família”. Alguns resistiriam,

muitos sucumbiriam à injusta ameaça. Dessa maneira, todas as demais garantias quedariam

insuficientes, pois, não obstante o servidor tenha obtido acesso àquele cargo de forma impessoal

e tenha direito de nele permanecer, pode ser que o governante torne a permanência nele

insustentável.

Por outro lado, ressalvamos que a jurisprudência pátria59 consagrou o entendimento de

que a irredutibilidade de vencimentos de que trata o texto constitucional é apenas no que se

59 Cite-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: “AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO

EXTRAORDINÁRIO. SERVIDORES PÚBLICOS DO ESTADO DE SÃO PAULO. INFLAÇÃO.

IRREDUTIBILIDADE DE VENCIMENTOS. GARANTIA CONSTITUCIONAL DA QUAL NÃO

DECORRE O DIREITO À REVISÃO GERAL DE QUE TRATA O INCISO X DO ART. 37 DA CARTA DE

OUTUBRO (REDAÇÃO ORIGINÁRIA). NECESSIDADE DE LEI ESPECÍFICA. IMPOSSIBILIDADE DE

O PODER JUDICIÁRIO FIXAR O ÍNDICE OU DETERMINAR QUE O EXECUTIVO O FAÇA.

JURISPRUDÊNCIA DO STF. A garantia constitucional da irredutibilidade de vencimentos não autoriza o

Poder Judiciário a fixar índice de revisão geral, na forma do inciso X do art. 37 da Magna Carta (redação

originária), dada a necessidade de lei específica, cujo processo legislativo é de iniciativa privativa do Chefe do

Poder Executivo. Não altera esse entendimento o suposto fato de as leis específicas editadas pelo ente federado

terem concedido aumentos inferiores aos índices inflacionários apurados no período. Mesmo que reconheça

mora do Chefe do Poder Executivo, o Judiciário não pode obrigá-lo a apresentar projeto de lei que trate da

revisão geral anual da remuneração dos servidores, prevista no inciso X do art. 37 da Lei Maior. Ressalva do

entendimento pessoal do Relator. Precedentes: ADI 2.061, Relator Ministro Ilmar Galvão; MS 22.439, Relator

Ministro Maurício Corrêa; MS 22.663, Relator Ministro Néri da Silveira; AO 192, Relator Ministro Sydney

Sanches; e RE 140.768, Relator Ministro Celso de Mello. Agravo regimental desprovido” (BRASIL. Supremo

Page 44: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

44

refere ao valor nominal da remuneração do servidor público, de sorte que não pode ele obter

pela via judicial reajustes de acordo com índices inflacionários (o que representaria, de fato,

irredutibilidade em termos reais), haja vista a necessidade de lei específica para tanto.

Concordamos com esse entendimento, em razão do princípio da separação dos poderes,

ressaltando que existe a necessidade de equilíbrio entre esses, o que impede que o Poder

Judiciário imponha, por exemplo, ao Poder Executivo a implementação imediata da revisão

geral anual, prevista no art. 37, X, da Constituição Federal60. Por outro lado, deve o Poder

Executivo respeitar a determinação constitucional e garantir o reajuste de seus servidores, sob

pena de malferimento de preceito consagrado no Texto Maior. Não obstante nosso

entendimento, ressalvamos a existência de posições doutrinárias mais vanguardistas, as quais

sustentam a existência de direito subjetivo do servidor em face do poder público caso este não

lhe conceda a pretendida revisão anual. É o caso de Wallace Paiva Martins Junior, quando

afirma que “a utilização dos vocábulos ‘assegurada’ e ‘anual’ confere a sua textura o

reconhecimento de veraz direito subjetivo aos servidores públicos à revisão geral da

remuneração em sentido amplo”61 o que suscitaria, segundo esse entendimento, a possibilidade

da concessão judicial do pleito em questão. Segundo os defensores dessa posição, por se tratar

de ato vinculado, cuja omissão por parte do administrador daria ensejo a ilegalidade, o sistema

autorizaria que o Poder Judiciário agisse não mais para simplesmente determinar o saneamento

da omissão ilegal, mas para, substituindo o administrador inerte, editar ele próprio o ato.

Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 327621 SP. Recorrentes: Lázara Aparecida Mariano Rampazo e

outros. Recorrido: Estado de São Paulo. Relator: Min. Carlos Ayres Britto. Brasília, 27 de outubro de 2006.

Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/

processo/verProcessoAndamento.asp?numero=327621&classe=REAgR&codigoClasse=0&origem=JUR&rec

urso=0&tipoJulgamento=M> Acesso em: 2 jul. 2016).

60 Nesse sentido, cite-se Luciana Ferraz: “O segundo comando do dispositivo trata da revisão geral anual das

remunerações (e subsídios) sempre na mesma data e sem distinção de índices: o constituinte reformador

instituiu regra para assegurar o direito à revisão, que atinge cada ente federativo, garantindo aos agentes

públicos, a cada período de um ano (contado a partir da promulgação da Emenda Constitucional n. 19/1998),

reposição das perdas inflacionárias respectivas, mediante percentual único. Houve quem defendesse a

aplicabilidade imediata dessa revisão, independentemente de regulamentação infraconstitucional, pleiteando a

incorporação dos valores devidos aos vencimentos. A posição não se afigurava correta, porquanto, também,

em matéria de revisão geral, fundamental a obediência ao princípio da reserva legal, sobretudo para a

incorporação definitiva dos valores correspondentes às remunerações ou subsídios dos agentes (art. 61, §1º, II,

a, CF). A iniciativa do processo legislativo respectivo é do Chefe do Poder Executivo por abranger

uniformemente os agentes públicos da entidade federativa” (FERRAZ, Luciana. Regime remuneratório dos

servidores públicos – fixação e revisão de remuneração. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MOTTA,

Fabrício; FERRAZ, Luciano de Araújo. Servidores públicos na Constituição Federal. 3. ed. São Paulo: Atlas,

2015. p. 115)

61 MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Remuneração dos agentes públicos. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 116.

Page 45: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

45

Por derradeiro, reafirmando nosso posicionamento acerca da necessidade de lei

específica para a concessão de vantagens pecuniárias a servidores públicos, nos manifestamos

pela impossibilidade de concessão de quaisquer incrementos salariais por meio de acordos,

convenções coletivas ou dissídios coletivos de caráter econômico, momento em que

aproveitamos para destacar a ausência de caráter contratual da relação estatutária, conforme

tratado no início deste capítulo.

1.4.6 O regime previdenciário

Doutra parte, o art. 40 da Constituição Federal garante que aos servidores titulares de

cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas

autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário,

mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos

pensionistas. Trata-se do chamado Regime Próprio de Previdência Social, garantido apenas aos

servidores públicos titulares de cargo efetivo (excluídos, portanto, os empregados públicos, os

ocupantes de cargos exclusivamente em comissão e os ocupantes de cargo temporário, os quais

se submeterão ao regime geral da previdência social), instituído por lei de iniciativa do Poder

Executivo, a fim de garantir aos servidores públicos que já cumpriram sua missão no exercício

da função pública tranquilidade e dignidade quando do encerramento de suas atividades. Nos

termos do art. 41 da Constituição Federal, que teve sua redação alterada sucessivas vezes pelo

poder constituinte reformador (a exemplo das Emendas Constitucionais n. 20/98 e 41/03), a

aposentadoria poderá se dar: a) por invalidez permanente, sendo os proventos proporcionais ao

tempo de contribuição, exceto se decorrente de acidente em serviço, moléstia profissional ou

doença grave, contagiosa ou incurável, na forma da lei; b) voluntariamente, desde que cumprido

tempo mínimo de dez anos de efetivo exercício no serviço público e cinco anos no cargo efetivo

em que se dará a aposentadoria, observado ainda o limite de idade de 60 anos de idade e 35 de

contribuição, se homem, e 55 anos de idade e 30 de contribuição, se mulher; 65 anos de idade,

se homem, e 60 anos de idade, se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de

contribuição; c) compulsoriamente, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição, aos

70 anos de idade, ou aos 75 anos de idade, na forma de lei complementar.

É importante lembrar que o regime de aposentadoria hoje vigente é resultado de

modificações perpetradas por sucessivas emendas constitucionais, sendo que todas essas vieram

no sentido de restringir direitos e amesquinhar o plano traçado pelo constituinte originário, sem

Page 46: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

46

uma justificativa racional suficiente ou comprovação técnica de sua real necessidade62, o que,

segundo nosso entendimento, foram medidas dotadas da mais notória inconstitucionalidade.

Como gritante exemplo por ser dada a extinção da chamada aposentadoria integral, sorte que

hoje essa se dá nos termos do §3º do art. 40 da Constituição Federal, o qual reza que “para o

cálculo dos proventos de aposentadoria, por ocasião da sua concessão, serão consideradas as

remunerações utilizadas como base para as contribuições do servidor aos regimes de

previdência de que tratam este artigo e o art. 201, na forma da lei”. Trata-se da Lei n.

10.887/2004, que estabelece em seu art. 1º o seguinte: “No cálculo dos proventos de

aposentadoria dos servidores titulares de cargo efetivo de qualquer dos Poderes da União, dos

Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, previsto

no § 3º do art. 40 da Constituição Federal e no art. 2º da Emenda Constitucional no 41, de 19

de dezembro de 2003, será considerada a média aritmética simples das maiores remunerações,

utilizadas como base para as contribuições do servidor aos regimes de previdência a que esteve

vinculado, correspondentes a 80% (oitenta por cento) de todo o período contributivo desde a

competência julho de 1994 ou desde a do início da contribuição, se posterior àquela

competência”63.

62 Acerca das mudanças nos direitos e garantias fundamentais dos servidores públicos, leciona com maestria

Priscilia Sparapani: “Mudanças podem ocorrer quanto ao nível elevado que alcançou o plexo de direitos e

garantias fundamentais dos servidores, em regra, para que sofram adensamento. No entanto, o contrário

somente acontecerá se se estiver vivenciando déficit orçamentário ou carência de recursos devidamente

demonstrada e imoralidade quanto aos recursos. Nestas hipóteses, no entanto, haverá necessidade de se criarem

medias jurídicas equivalentes, como exigência da própria proibição de retrocesso social, para evitar

minimizações ou revogações que possam abalar profundamente os direito e garantias fundamentais”

(SPARAPANI, Priscilia. O princípio da vedação ao retrocesso social e sua aplicação ao regime jurídico dos

servidores públicos. 2013. Tese (Doutorado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. São

Paulo, p. 279).

63 Sobre a forma de cálculo da aposentadoria, digna de nota é a construção doutrinária do professor Celso Antônio

Bandeira de Mello, que afirma o seguinte: “[...] quando se diz que os proventos são integrais, isto não significa

– como ocorria no passado – que corresponderão à integralidade dos vencimentos mensais que percebia na

atividade ao se aposentar. Significa – isto, sim – que corresponderão ao montante dos valores que serviram de

base de cálculo de sua contribuição previdenciária (art. 40, §3º), e devidamente atualizados na forma da lei (art.

40, §17), porém tendo a garantia de um determinado piso, calculado da forma seguinte: até o limite máximo

dos benefícios previstos para o regime geral de previdência (R$ 4.390,24 desde 1º de janeiro de 2014), a

aposentadoria nunca poderá ser inferior ao que o servidor percebia no cargo em que se aposentou. Se o servidor

percebia mais do que isto no cargo em que se aposentou, a este valor (R$ 4.159,00) serão acrescidos 70% da

diferença entre tal montante e os vencimentos que lhe correspondiam naquele cargo” (BANDEIRA DE

MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31 ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 299).

Page 47: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

47

1.4.7 Os direitos sociais garantidos aos servidores públicos

Além dos direitos supratratados, previu a Constituição Federal em benefício dos

servidores públicos uma série de direitos sociais garantidos aos trabalhadores que laboram junto

a empresas ou pessoas de direito privado exploradoras de atividade econômica (a chamada

iniciativa privada). Referidos direitos sociais são previstos em favor dos servidores públicos no

§3º do art. 39, o qual ressalva que pode a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão

quando a natureza do cargo o exigir. Cite-se: a) salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente

unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia,

alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com

reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para

qualquer fim; b) garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem

remuneração variável; c) décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor

da aposentadoria; d) remuneração do trabalho noturno superior à do diurno; e) salário-família

pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda nos termos da lei; f) duração do

trabalho normal não superior a oito horas diárias e 44 semanais, facultada a compensação de

horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; g) repouso

semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; h) remuneração do serviço

extraordinário superior, no mínimo, em 50% à do normal; i) gozo de férias anuais remuneradas

com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal; j) licença à gestante, sem prejuízo

do emprego e do salário, com a duração de 120 dias; k) licença-paternidade, nos termos fixados

em lei; l) proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos

termos da lei; m) redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene

e segurança; n) proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de

admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil. Além desses, o art. 39 da Constituição

Cidadã estabelece que é garantido ao servidor público civil o direito à livre associação sindical,

sendo-lhe ainda assegurado o exercício do direito de greve, nos termos da lei específica,

devendo ainda lei reservar percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas

portadoras de deficiência e definir os critérios de sua admissão.

É importante ressaltar que, como já tangenciado, os direitos previstos em benefício dos

empregados da iniciativa privada se prestam a protegê-los do abuso do poder econômico. O

trabalhador é concebido em nosso Ordenamento Jurídico, devido à conformação histórica das

relações de trabalho, como um hipossuficiente, de sorte que, não obstante a liberdade que deve

Page 48: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

48

permear a atuação dos particulares, normas cogentes incidirão sobre a relação empregatícia

(contratual), a fim de protegê-lo da parte mais forte naquele vínculo. Os servidores públicos

também possuem normas de caráter garantidor, sendo que essas visam a protegê-los de abusos

do poder político. O sistema de garantias do regime estatutário vai muito além da proteção de

direitos laborais numa relação de emprego. Trata-se da proteção do próprio Estado de Direito,

nos moldes consagrados na Constituição Federal. Dessa forma, registramos aqui uma crítica às

tentativas de equiparação da relação estatutária à relação empregatícia. A proteção do vínculo

institucional vai muito além do bem-estar do administrado que naquele momento exerce uma

função pública; essa se refere à proteção de algo que transcende a esfera individual daquele

servidor, de modo que é possível afirmar que a proteção às garantias do agente público é a

proteção da higidez da coisa pública e do direito fundamental à boa administração.

Não obstante, o constituinte originário entendeu por bem estender aos servidores

públicos algumas das garantias previstas originariamente aos empregados privados, visto que,

apesar de o fundamento que gerou a norma protetiva ser, em sua maior parte, diverso, os efeitos

garantidores são, em grande parte, similares. A remuneração digna, a garantia do décimo

terceiro salário, a concessão de licença maternidade, dentre outros, se prestam a garantir o

profissionalismo no serviço público e a projetar, no plano estatutário, a dignidade da pessoa

humana, princípio fundamental do Estado Democrático de Direito. Outrossim, garantias como

a possibilidade de sindicalização e de exercício do direito de greve pelos servidores públicos

(com os devidos temperamentos64, haja vista o princípio da continuidade do serviço público)

64 Sobre as peculiaridades do exercício do direito de greve por servidores públicos, nos pronunciamos em outra

oportunidade: “Aprioristicamente, há de se reconhecer que nenhum direito será exercido de forma absoluta, de

maneira que o direito de greve também não deverá sê-lo. Assim, forçoso concluir que se o exercício do direito

de greve, mesmo no setor privado, comportará restrições, maiores ainda serão aquelas impostas no âmbito da

Administração Pública, haja vista a supremacia do interesse público e a necessidade de continuidade dos

serviços públicos (condição hoje alçada a princípio), restrições essas que foram reconhecidas pelo Pretório

Excelso quando da regulamentação da greve em âmbito público. [...] Não obstante tenha sido reconhecida a

possibilidade de exercício do direito de greve por servidores públicos civis, essa prática está condicionada a

diversos requisitos formais e materiais, cumprindo asseverar que, a depender da atividade, ela nem mesmo

poderá ocorrer, não se tratando isso da supressão de um direito, mas do estabelecimento de balizas para o

convívio social. As restrições acima estudadas se justificam pelo respeito à dignidade da pessoa humana, à

supremacia do interesse público, à legalidade estrita e ao princípio da continuidade do serviço público,

ressaltando-se que esses elementos se coadunam para que o Estado preste, dentro de uma ordem específica,

proteção e assistência à sociedade, ressaltando-se que aquele ente que tem como fim maior a busca pelo bem

comum. Assim, a sociedade não pode se tornar vítima de pleitos (muitas vezes razoáveis) cobrados de forma

desarrazoada. O Estado Democrático de Direto depende da manutenção da ordem, não havendo mais espaço

para radicalizações classistas, que subvertem a ordem de prioridades essencial à busca do bem comum,

colocando o interesse público (de todo o povo) atrás de interesses particulares de cunho meramente econômico”

(FERNANDES, Felipe Gonçalves. A regulamentação do direito de greve dos servidores públicos pelo Supremo

Page 49: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

49

são previsões que se coadunam com o plano originário de fortalecer o funcionalismo frente a

eventuais abusos perpetrados pelo hierarca.

1.4.8 Cumulação de cargos e vencimentos

Outro ponto digno de nota quanto ao regime jurídico dos servidores públicos é a

impossibilidade de cumulação de cargos e vencimentos, salvo as hipóteses expressas no Texto

Constitucional. Nesse sentido, o art. 37, XVI, CF, cuja redação originária foi alterada pelas

Emendas Constitucionais n. 19/98 e 34/0165, estabelece que é vedada a acumulação remunerada

de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, nos seguintes casos: a)

dois cargos de professor; b) um cargo de professor com outro técnico ou científico; c) a de dois

cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas. Dessa

forma, garante-se que o servidor público não se dividirá entre as mais variadas funções, de

maneira que sua boa atuação reste prejudicada. Sendo assim, se a Constituição Federal garante

determinadas vantagens aos cargos públicos, limita-as com a outra mão, a fim de manter o

exercício das prerrogativas funcionais dentro dos patamares da mais estrita moralidade, visto

que, conforme já ressaltado, o maior destinatário dessas normas não é a pessoa que

momentaneamente ocupa cargo da Administração, mas o cidadão, que tem direito a uma boa

administração e ao bom funcionamento dos serviços oferecidos à população. Segundo os

professores Valerio Mazzuoli e Waldir Alves, cuja posição adotamos, trata-se de “restrição

expressamente e diretamente constitucional, que não pode sofrer qualquer agravamento da sua

restrição que por lei ou regulamento infraconstitucional”66. Dessa forma, os termos impostos

na Constituição não podem ser agravados ou restringidos por ato infraconstitucional, de sorte

que cabe ao intérprete apenas analisar quais os limites e o alcance da própria norma insculpida

no texto maior.

Além disso, ainda que seja possível a cumulação suprarreferenciada, não poderá o

servidor público, em qualquer hipótese (seja em razão da ocupação de um único cargo, seja em

razão da ocupação de dois) receber parcelas remuneratórias acima do chamado “teto

Tribunal Federal. In: FERNANDES, Felipe Gonçalves Fernandes (Org.). Temas atuais de direito

administrativo neoconstitucional. São Paulo: Intelecto, 2016, p. 103-140).

65 Ressalvamos que a redação originária do artigo em questão não trazia considerações quanto à necessidade de

submissão da remuneração proveniente da cumulação dos respectivos cargos ao chamado teto constitucional.

66 MAZZUOLI, Valerio; ALVES, Waldir. Acumulação de cargos públicos – Uma questão de aplicação da

Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 44.

Page 50: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

50

constitucional”, norma insculpida no art. 37, XI, da Constituição Federal, conforme redação

estabelecida pela Emenda Constitucional n. 41/03, a qual reza que “a remuneração e o subsídio

dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e

fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal

e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os

proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não,

incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio

mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos

Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do

Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no

âmbito do Poder Legislativo e o subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado

a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos

Ministros do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite

aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos”.

Sobre este ponto, merece destaque o fato de que, tendo em vista ser o Brasil um país em

que na maioria das vezes os administradores públicos não são pessoas dotadas de espírito

republicano, vários são os mecanismos criados por categorias privilegiadas de servidores para

receber acima do limite constitucional. Assim, diversas parcelas são concebidas a título

“indenizatório”67, não obstante possuírem claro viés remuneratório, apenas para burlar a norma

em tela. Isso cria categorias diferenciadas no seio estatal, dividindo-se os servidores entre

aqueles que nem sonham em alcançar valores próximos ao teto estatutário, servidores que o

alcançam, mas têm (corretamente) seus vencimentos “cortados” no referido limite e categorias

que simplesmente o burlam, ferindo os princípios da legalidade, moralidade e da boa

administração. Essa prática deve ser coibida, com a necessária incidência do limite

remuneratório a todas as categorias, a fim de garantir que o patrimônio da coletividade não seja

indevidamente vertido em favor de alguns, não importando de quanto se trate. Por fim,

destaque-se que a redação atual do art. 37, XI, da Constituição Federal adveio de reforma

67 Segundo entendimento consolidado no Supremo Tribunal Federal, verbas percebidas a título indenizatório não

se submetem ao teto estatutário (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 606.358 SP.

Recorrente: Estado de São Paulo. Recorrido: Lacy Dias de Almeida. Relator: Min. Rosa Weber. Brasília, 18

de novembro de 2015. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.as

p?numero=606358&classe=RE&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M> Acesso

em: 2 jul. 2016).

Page 51: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

51

perpetrada pela Emenda Constitucional n. 41/2003, a qual estabeleceu subtetos em relação aos

entes federativos, aplicando-se de forma imediata em relação a todo o funcionalismo estatal68.

1.5 Conclusão

Diante de todo o exposto, é possível observar que a Constituição Federal estabeleceu

um regime jurídico composto por garantias e limitações aos servidores públicos, a fim de

promover o bom funcionamento da Administração Estatal e, principalmente, a proteção dos

direitos dos particulares por meio das prerrogativas funcionais daqueles que têm por mister

concretizar o interesse público. Verificamos, dessa forma, que o regime de garantias do serviço

público vai muito além da proteção individual da pessoa do servidor, de modo que, defendemos,

este se presta à proteção da coisa pública e do interesse dos administrados, de maneira que

qualquer ataque a esse regime é um ataque ao próprio cidadão, de sorte que deve ser repelido

pelo Ordenamento Jurídico.

Ocorre que, em contrapartida a essa teia protetiva (do interesse público, repise-se),

submetem-se os servidores a um regime funcional especial, diverso do modo de submissão a

que se submetem os particulares em geral. Para tratar dessa relação, diversas teorias foram

desenvolvidas ao longo dos tempos, normalmente para indicar qual a natureza da relação

formada entre o servidor e o Estado e que tipo de excepcionalidades podem incidir sobre sua

vida funcional, o que foi justificado teoricamente pela doutrina das chamadas “relações

especiais de sujeição”, que passamos a analisar.

68 Neste sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal: “EMENTA: Agravo regimental no recurso extraordinário

com agravo. Direito Constitucional e Administrativo. Incidência do teto constitucional remuneratório previsto

no art. 37, XI, da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 41/03. Eficácia

imediata. Precedentes. 1. O Supremo Tribunal Federal, no exame do RE n. 609.381/GO, Relator o Ministro

Teori Zavascki, julgado sob a sistemática da repercussão geral (Tema n. 480), assentou que o teto de retribuição

estabelecido pela Emenda Constitucional 41/03 possui eficácia imediata, submetendo às referências de valor

máximo nela discriminadas todas as verbas de natureza remuneratória percebidas pelos servidores públicos da

União, estados, Distrito Federal e municípios, ainda que adquiridas de acordo com regime legal anterior. 2.

Agravo regimental não provido” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental no recurso

extraordinário com agravo n. 786299. Agravantes: Célio Francisco da Silva e outros. Agravado: Estado de

Minas Gerais. Relator Min. Dias Toffoli. Brasília, 10 de novembro de 2015. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=786299&classe=ARE-

AgR&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 10 ago. 2016).

Page 52: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

52

2 AS RELAÇÕES ESPECIAIS DE SUJEIÇÃO

2.1 Linhas gerais

A Administração Pública, no decorrer de suas atividades, trava relações com indivíduos,

as quais podem se dar em um âmbito geral ou especial de poder, de sorte que, a depender do

vínculo que os põe em contato, serão atraídos regimes distintos. Em suma, o regime geral de

sujeição é aquele a que se submetem os cidadãos comuns, que não possuem qualquer vínculo

específico com o ente estatal, em relação aos quais a Administração “como regra não possui

poderes para agir senão extraídos diretamente da lei”69; quanto ao regime especial, passamos a

tecer as considerações a seguir.

As relações especiais de sujeição representam um instituto de definição variável ao

longo do tempo (considerada até mesmo impossível por Alfredo Gallego Anabitarte70), por

abarcar situações fáticas bastante distintas entre si. Teoria criada no direito alemão do século

XIX e marcada por uma série de características, essas tendem a ter como ponto comum a relação

formada devido a um vínculo específico entre o particular e a Administração Pública. Esse

vínculo gera direitos e obrigações específicos, os quais garantem um maior avanço da

Administração sobre o patrimônio jurídico do indivíduo inserido naquela relação (em maior ou

menor grau, a depender do tipo de relação) com possibilidade de pontos de toque até mesmo

69 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2014,

p. 842.

70 Sobre a doutrina de Anabitarte, ressalvamos primeiramente que, ao contrário do autor, consideramos possível

a conceituação do termo em questão e, para efeitos da citação que segue, esclarecemos que, quando esse utiliza

a expressão RelS, está a se referir às relações especiais de sujeição. Vejamos: “Hay conceptos en que, dada la

indeterminación de la situación de hecho a la que se confieren, no pueden ser definidos; cualquier definición

de la RleS será siempre insuficiente y, por tanto, inútil. La ciencia del derecho como ciencia conceptual es una

ciencia de definir: se acota de la realidad una situación de hecho y se la califica. Esa complicada labor lógica

– frecuentemente con consideraciones teleológicas – de ir limando lo que la lógica interna del concepto exija

es parte del arte del jurista. Sin embargo, en el caso de la RelS hay que desistir, y esto tanto por la gran diferencia

que existe entre las figuras jurídicas que se comprenden bajo dicho concepto, como por el hecho de ser la RelS

una institución que se desarrolló un poco al margen, careciendo de la consiguiente investigación científica que

la se hubiese acuñado con el debido rigor. Y esto como consecuencia que en el fondo cualquier definición

dependerá del libre arbitrio de cada autor” (ANABITARTE, Alfredo Gallego. Las relaciones especiales de

sujeción y el principio de la legalidad de la administración. Revista de Administración Pública, Madri, n. 34,

p. 24, p. 11-51, ene-abr. 1961).

Page 53: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

53

em direitos fundamentais, impondo-lhes deveres e submissões mais intensas do que aquelas a

que se submetem os particulares em geral.

Julgamos importante o estudo do instituto sobre o qual ora nos debruçamos, pois o

regime jurídico de servidores públicos, não obstante todas as garantias enunciadas no capítulo

anterior, também é, conforme já dito, caracterizado por uma intensa interferência em suas

liberdades fundamentais, o que é justificado histórica e filosoficamente pela admissibilidade de

uma maior ingerência da Administração Pública em seu próprio seio, matéria analisada

criticamente no presente capítulo, começando pela parte histórica, que explica grande parte do

que se admite quanto ao regime hierárquico e disciplinar de servidores públicos.

2.2 Escorço histórico

Nos termos adiantados, a doutrina das relações especiais de sujeição foi desenvolvida

originariamente no direito alemão do Século XIX por autores como Ernst Forsthoff e Laband,

encontrando maior projeção e desenvolvimento, todavia, na obra de Otto Mayer, que, ao tratar

do ato administrativo, se referiu à possibilidade de ordenação de sujeitos mais livremente, por

meio de aludidos atos, quando se tratasse de relações travadas em caráter especial entre

indivíduo e estado71. Nesse sentido, ressaltou o autor alemão a possibilidade de edição de atos

de caráter coletivo pelo administrador, através dos quais poderiam ser dadas instruções que

regulariam as atividades naquele regime72. Externamente, assemelhar-se-ia o ato com uma lei,

sendo que operaria efeitos apenas em face daqueles indivíduos inseridos nas relações de

sujeição especial73. É possível inferir que a doutrina de Mayer surgiu em referência a

71 HIPPLER, Vera Regina. Aspectos das relações especiais de sujeição no direito brasileiro: natureza jurídica e

pressupostos constitucionais. 2009. Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –

PUC/SP. p. 44.

72 MAYER, OTTO. Le Droit Administratif Allemand. Partie Générale. Paris: Bibliothèque Internationale de

Droit Public, 1903, p. 130.

73 Cite-se in verbis: “Cette façon de désigner plus librement les personnes que l´acte administratif concerne atteint

son plus haut degré dans le rapport de sujétion particulière. Ici nous trouvons des actes collectifs avec

designatión indirecte des individus qu´ils concernent et sans restriction à un ensemble de personnes présentes

et définies; ce sont donc les actes faits pour des personae incertae. Aux individus compris dans le rapport de

sujetión, à tous à la fois, des instructions peuvent ètre données, actes administratifs tirant les conséquences du

rapport de sujétion. Ces instructions sont réunies dans des réglements de service, réglements, statuts, et

communiquées par voice de publication ou autres moyens propres à les porter à la connaisance des intéressés.

Elles sont alors obligatoires por chaque individu qui est compris actuellement dans le rapport de sujetión ou

qui y entrera à l´avenir. Extérieueremente alors, l´acte présente une grande ressemblance avec une régle de

droit. Cependant, il n´y a encore là qu´un acte administratif collectif ou, comme on l`a appelé aussi très

justement une disposition générale. Cette disposition n´opère pas avec la force obligatoire générale de la loi;

Page 54: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

54

determinadas situações nas quais as relações poderiam ser reguladas diretamente por atos

administrativos, dispensando o intermédio de um dispositivo legal, o que representaria alguma

flexibilização (ou mesmo afastamento) do princípio da legalidade. As relações que se

submeteriam a esse regime especial seriam representadas majoritariamente por aquelas que

envolvessem a prestação de serviços ao Estado, as relações dentro dos estabelecimentos, bem

como aquelas referentes ao poder de vigilância em instituições de cunho financeiro e tributário.

Importante fazer uma digressão para lembrar que, no período em referência (século

XIX), vigoravam na Europa a percepção liberal e o ideal burguês de contenção do poder estatal

no corpo social, de maneira que a lei seria necessária para regular as relações gerais, em especial

quando versassem sobre liberdade e propriedade (Freiheit und Eigentum). Ou seja: o princípio

da legalidade apenas vigoraria em sua plenitude quando se tratasse de relações gerais74, em que

o poder estatal deveria ser contido. Fora dessas hipóteses, quando se tratasse de uma relação

interna, travada no seio da própria Administração (tal como a dos servidores públicos), seria

possível a ordenação por meio de atos administrativos. Não haveria, nesses casos, tamanha

necessidade de contenção do poder estatal, mas, em verdade, certa condescendência da doutrina

com o empoderamento da máquina pública em suas relações internas.

Nesse contexto, importante ressaltar que algumas teorias precederam a doutrina das

relações especiais de sujeição, fixando as bases teóricas para essa suposta imunização à

legalidade no seio estatal, dentre as quais se destaca a “teoria da impermeabilidade”, que

estabelecia que o Estado, em suas ações reflexivas, não estaria sujeito ao controle jurídico,

reservado apenas à atuação externa. Haveria, assim, duas feições do ente estatal: uma de poder

contido, vinculado à legalidade e às obrigações de direito e outra não jurídica, com relações de

elle opére seulement avec la force du rapport particulier de sujetión: elle ne peut avoir d´effet que pours les

individus et pour les obligations, qui y sont compris. En ce qui concerne ces obligations, le rapport de sujétion

met chacun des individus qu´il comprend en contact avec l´acte administratif qui a été rendu d`avance et qui le

touche aussi; il lui impose comme premier devoir de s´informer de cet acte” (MAYER, OTTO. Le Droit

Administratif Allemand. Partie Générale. Paris: Bibliothèque Internationale de Droit Public, 1903, p. 130-131).

74 Cite-se novamente Anabitarte: “[...] la mayor parte de los Gobiernos de Alemania que, tras las guerras

napoleónicas, se lanzaron al trabajo de montar una legislación constitucional decidieron que sólo sería

necesaria la aprobación de las respectivas Dietas ‘para aquellas leyes generales que afectaran a la libertad y

propriedad de los súbditos’. A decir de THOMA, la fórmula ‘libertad y propriedad’ (Freiheit und Eigentum) la

importo el Barón Vom Stein de la realidad política inglesa – liberty and property -. Así, pues, se obtiene reserva

de la ley = intervenciones generales em la libertad y propriedad de los ciudadanos” (ANABITARTE, Alfredo

Gallego. Las relaciones especiales de sujeción y el principio de la legalidad de la administración. Revista de

Administración Pública, Madri, n. 34, p. 24, p. 11-51, ene-abr. 1961).

Page 55: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

55

poder tratadas em estado semibruto. Haveria, assim, uma “antinomia fundamental” entre Estado

e Sociedade, de modo que apenas no ponto de toque entre essas estruturas tratar-se-ia do

“terreno do direito, do jurídico conhecido como âmbito externo; enquanto que, ao contrário, o

Estado nas suas ações reflexivas (não propriamente relações, pois não há sujeitos de direito)

diz-se tratar-se do não-direito ou o ‘não-jurídico’, conhecido como âmbito interno” 75. Essa foi

certamente uma antecipação da doutrina clássica das relações especiais de sujeição.

Outra teoria que merece nota por também ter influenciado os contornos teóricos das

relações especiais de poder é a chamada teoria orgânica, segundo a qual a Administração

Pública seria um corpo, dotado de personalidade única e composto por órgãos, sorte que não

seria possível se desenvolver ali uma relação jurídica, haja vista se tratar de um ato reflexivo,

diga-se: do estado com ele mesmo. O titular do órgão apenas externaria a vontade estatal76, de

maneira que não haveria como se invocar a legalidade (ou qualquer outro direito fundamental)

para protegê-lo frente à Administração, de sorte que seriam as relações internas do Estado,

espaços livres do direito. Teria sido Schmitthener o primeiro a falar em “relações de sujeição

orgânicas” ao se referir justamente àquelas relações situadas na ordem interna do Estado na

forma de espaços de não direito, caracterizados pelo fato de que o objeto de dominação seria a

pessoa como um todo, e não apenas ações particulares dela, essa sujeição não geraria

propriamente uma relação, mas uma “relação moral de vida” e possuiriam um elemento coação,

o qual se determinaria “por intermédio dos fins objetivos e da ideia do instituto social”77. Desse

75 SCHMITTHENER. Grundlinien des algemeinen Staatsrechts. Benners: Giessen, 1845. apud. HIPPLER, Vera

Regina. Aspectos das relações especiais de sujeição no direito brasileiro: natureza jurídica e pressupostos

constitucionais. 2009. Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. p.

38-39.

76 Clarissa Sampaio Silva explica a concepção do órgão: “[...] o titular do órgão não é considerado em sua

personalidade jurídica própria, mas como instrumento para viabilizar a manifestação de vontade do ente estatal,

pelo que as medidas administrativas adotadas em tais domínios não são consideradas atentatórias aos seus

direitos” (SILVA, Clarissa Sampaio. Direitos fundamentais e relações especiais de sujeição. O caso dos

agentes públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 97).

77 Referida conclusão se deu a partir do escorço histórico formulado por Vera Regina Hippler: “Ao falar em

‘relações de sujeição orgânicas’, a expressão indica bem a compreensão inicial das relações de poder como

espaços livres de direito, relações situadas na ordem interna do Estado e, portanto, no domínio do não-direito.

O que não seria prerrogativa do Estado, uma situação singular e específica dele, pois tanto o cidadão na sua

esfera privada quanto o empresário no desempenho da atividade produtiva conservam seu espaço de

autodisposição. Todavia, reconhecem que foi Laband o primeiro que utilizou a expressão em um sentido estrito,

com o fim de aclarar a situação dos funcionários públicos em relação a seus superiores. Em síntese, a teoria de

Schmitthenner reconhece, junto às relações obrigacionais (que têm caráter jurídico e um objeto limitado), outro

tipo de relações (as de poder), cujas características são: – seu objeto de dominação é a pessoa em seu conjunto,

a não particulares ações desta; – a sujeição que é gerada não é uma relação jurídica, mas uma simples relação

moral de vida; – nestas relações de poder há um elemento de coação presente, mas que se diferencia da coerção

nas relações obrigacionais, pois é uma coação que se determina por intermédio dos fins objetivos e da ideia do

Page 56: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

56

modo, consideramos possível afirmar que a teoria das relações especiais de sujeição foi um

fruto da teoria orgânica, após algum desenvolvimento teórico, realizado por diversos autores

(dentre os quais se destaca Laband, que, apesar de não ter feito uma exposição sistemática

acerca das relações especiais de poder, teve o mérito de separá-las das relações gerais ou

simples78) até se chegar à doutrina de Otto Mayer.

Sendo assim, podemos concluir que as bases doutrinárias que deram o substrato para o

desenvolvimento da teoria clássica das relações especiais de sujeição foram desenvolvidas a

partir de uma herança histórica do Direito Alemão, com reminiscências das relações de

comendação feudal, pautadas na fidelidade vassalar, de modo que o regime interno do Estado

era visto pacificamente pela doutrina e Tribunais como um espaço livre do controle legal e

judicial. Foram, assim, criados espaços de “reserva de administração”79, livres ao administrador

para que esse os ordenasse da melhor maneira que considerasse para a consecução do interesse

público. Sobre essa expressão, explica o professor Celso Antônio Bandeira de Mello que,

conforme dito, tratava-se de doutrina vigente no Direito Alemão, a qual pareceria estranhíssima

aos administrativistas de hoje, pois se referia a atos que não poderiam ser objeto de tratamento

legislativo, por serem de competência exclusiva do Monarca, “disposições preordenadas à

regência do aparelho estatal ou de questões que, na Alemanha, eram havidas como pertinentes

à chamada ‘supremacia especial’ da Administração”80. Para muitos autores, o poder teria

precedido o direito e, segundo a concepção de Jorge Luis Salomoni81, seria a teoria formal das

instituto social” (HIPPLER, Vera Regina. Aspectos das relações especiais de sujeição no direito brasileiro:

natureza jurídica e pressupostos constitucionais. 2009. Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo – PUC/SP. p. 42).

78 Idem, p. 44.

79 SILVA, Clarissa Sampaio. Direitos fundamentais e relações especiais de sujeição. O caso dos agentes

públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 104.

80 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2014,

p. 1088-1089.

81 Cite-se: “[...] esta ‘teoría’ de la relación especial no se construyó como una teoría. En realidad termina siendo

una cuestión de aplicación práctica a colectivos, que inclusive no están predeterminados, pudiendo, estos

últimos, aumentar o disminuir respecto de la situación fáctica en la cual se está aplicando la relación. Por lo

tanto el fundamento de la institución, en mi modesto entender, no tiene existência. Es más, en realidad creo

que nunca se intento fundamentar, sino que fue una doctrina de facto. Es decir, la relación de sujeción especial

no fue otra cosa que el intento de legitimar el poder por sobre el principio de legalidad. La legitimación del

poder como en la totalidad de las instituciones del Derecho administrativo, pero aquí más descaradamente”

(SALOMONI, Jorge Luis. La Cuestión de Las Relaciones de Sujeción Especial en el Derecho Público

Argentino. In: Problemática de la Administración Contemporánea. Buenos Aires: Universidad Notarial

Argentina, 1997, p. 165-166).

Page 57: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

57

relações especiais de sujeição, uma doutrina de fato, mera justificativa do avanço do poder

sobre a legalidade, uma tentativa de legitimar um instituto autoritário desde sua origem.

Tirando algumas divergências pontuais, a teoria em comento foi desenvolvida e aplicada

no direito ao longo dos anos, da época da Monarquia Constitucional até a Lei Fundamental de

Bonn sendo que, em 14/03/1972, a prolação de um julgado pelo Tribunal Constitucional

Alemão levou boa parte da doutrina a decretar o óbito das relações especiais de sujeição,

enquanto outra parte seguiu sustentando sua validade, mas reconhecendo que seria necessária

uma compatibilização com os novos paradigmas do direito.

Trata-se de julgado do Tribunal Constitucional Alemão que reconheceu a ilegalidade da

violação de correspondência de detento submetido a pena em estabelecimento prisional estatal,

que mantinha contato com uma organização de ajuda a detentos e, na missiva interceptada, tecia

duras críticas à administração daquele órgão. Não havia suporte legal para referida atitude, a

qual era justificada pela administração penitenciária pelo fato de que o preso estaria inserido

em uma relação de poder especial, de maneira que não seria necessário dispositivo legal para

sustentar determinados avanços sobre suas prerrogativas pessoais, dentre eles, o sigilo de

correspondência. O âmbito interno da Administração Pública seria permeado pelas

flexibilizações suprarreferenciadas, de sorte que a sua ordenação seria feita por meio de atos

próprios, os quais independeriam de lei. Diante desses fatos, reconheceu a Suprema Corte

teutônica que aos detentos internados em casas de detenção era garantido o sigilo de

correspondência, haja vista a inexistência de lei autorizando referida intervenção82. O ato

impugnado se baseava em dispositivo de um decreto administrativo de autoria dos secretários

de Justiça dos estados-membros, que autorizava a fiscalização e interceptação de

correspondências de detentos com conteúdo injurioso. Ou seja, reconheceu o Tribunal

82 Cite-se trecho da decisão: “2. Não existe uma lei de execução penal que possa, enquanto uma ‘lei geral’, na

acepção do art. 5 II GG, dadas certas circunstâncias, justificar que se apreendam cartas com conteúdo ofensivo

ou que discutam sobre problemas na instituição, problemas estes que não dizem respeito aos detentos. Tais

medidas não são imprescindíveis para manter a execução penal e realizá-la de maneira devida. Uma execução

penal sensata não obriga, necessariamente, que seja cortada aos detentos qualquer possibilidade de expor a seus

correspondentes sua opinião – por natureza, frequentemente depreciativa e hostil – sobre os acontecimentos na

instituição prisional ou sobre seus funcionários [...] 3. [...] Não existe, todavia, nenhuma lei que permita aos

órgãos estatais interceptarem cartas por causa do seu conteúdo, ao qual elas apenas tiveram acesso mediante

um controle que, antes de tudo, tem o propósito de evitar a fuga de detentos ou impedir ações criminosas. Isso

deve – enquanto e até quando a lei não determinar nada diverso – valer também para o caso das ofensas se

dirigirem a funcionários da Justiça. A eles também cabe somente o direito de se oporem a essas ofensas de

acordo com as leis existentes [...]” (SCHWABE, Jürgen. Cinqüenta anos de jurisprudência do Tribunal

Constitucional Federal Alemão. Tradução Beatriz Hennig, Leonardo Martins, Mariana Bigelli de Carvalho,

Tereza Maria de Castro, Vivianne Geraldes Ferreira. Montevideu: Konrad Adenauer, 2005, p. 167).

Page 58: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

58

Constitucional Alemão que, em tese, seria possível que os presos tivessem suas

correspondências violadas sob o argumento da segurança, sendo que tal somente seria válido

com o intermédio de um dispositivo legal, afastando, assim, a teoria de que a Administração

Pública, em seu âmbito interno, estaria imune ao direito, sendo-lhe possível a ordenação geral

por meio de atos administrativos. Não obstante tenha reconhecido a juridicidade das relações

internas da Administração Pública, bem como a necessidade de lei em sentido formal para seu

regramento, ponderou a Corte Constitucional que referidas intervenções aos direitos

fundamentais dos detentos deveriam ser toleradas até que fosse editada a lei de execuções

penais daquele país, o que deveria ocorrer, segundo fixaram, até o fim do período legislativo

então corrente.

Face a esse julgado, a teoria das relações especiais de sujeição precisou de profunda

revisão por parte da doutrina, não sendo mais aplicada com tanta intensidade no direito alemão,

restando, todavia, ainda invocada em diversos países, dentre eles o Brasil, a partir da

contribuição do professor Celso Antônio Bandeira de Mello, que iniciou sua abordagem na

doutrina pátria ao reconhecer que, em determinados caso, valer-se-ia a Administração Pública

de poderes outros, “quando assentada em relação específica que os conferisse”83.

Tudo o quanto fora exposto denota a importância do estudo das relações especiais de

sujeição e suas consequências, sendo analisados as seguir os fundamentos para compatibilizar

a aplicação do instituto em questão na atualidade. Nesse sentido, destacamos que não

rechaçamos a doutrina em questão, considerando que ela, de fato, se aplica no direito pátrio,

mas ressalvamos a necessidade de conformá-la ao nosso paradigma dogmático: a Constituição

da República de 1988, o que será tratado a seguir.

2.3 Conceituação e características

Para desenvolvermos o estudo das relações especiais de sujeição, importante trazer seu

conceito teórico, a fim de fixar as balizas do tema proposto, por se tratar de instituto

desenvolvido basicamente em termos doutrinários e jurisprudenciais.

83 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2014,

p. 842.

Page 59: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

59

Sendo assim, diga-se que Konrad Hesse as conceitua como “aquelas relações que

fundamentam uma relação mais estreita do particular com o Estado e deixam nascer deveres

especiais, que ultrapassam os direitos e deveres gerais do cidadão, em parte, também direitos

especiais”84. Seguindo em seu raciocínio, o autor alemão traz como exemplos desse tipo de

relação o funcionário, o soldado, o estudante de escola pública e o preso85. Com efeito, relações

especiais são aquelas decorrentes de um vínculo especial formado entre o estado e determinado

particular, o qual atrai deveres especiais, ou seja, imposições às quais a população em geral não

está obrigada. No entanto, no que tange aos exemplos de relações trazidas pelo doutrinador

alemão, no trecho transcrito, ressalvamos que, no presente trabalho, conforme será

fundamentado adiante, não nos restringiremos ao conceito clássico que engloba apenas

servidores públicos, alunos de estabelecimento público, presos e militares.

Sobre o que fora afirmado no parágrafo anterior, nos apoiando na doutrina desenvolvida

pelo professor Ricardo Marcondes Martins, dividiremos no presente trabalho as possíveis

categorias submetidas às relações especiais a partir de três critérios, ressalvando, todavia, que

não se trata de conceitos que se excluem, mas se sobrepõem. Assim, temos: a) o critério

orgânico ou do estabelecimento público, mais clássico, proposto por Otto Mayer e que

considera ligada a uma relação especial a pessoa inserida no seio da Administração Pública de

forma contínua e duradoura, tais como servidores públicos e presos (referido critério é aceito

sem grandes divergências pela doutrina majoritária); b) o critério da união de vontades, que

considera que o particular pode também ser inserido numa relação especial de sujeição devido

a um ato de vontade, como, por exemplo, um concessionário de serviço público (este critério já

rechaçado por alguma parte da doutrina, que entende que ele não poderia voluntariamente se

despir de seus direitos individuais, conforme será exposto adiante); c) o critério material ou

funcional, que reza que a submissão especial ocorre devido ao exercício de uma atividade de

relevante interesse público como, por exemplo, a fabricação de cigarros (critério minoritário,

adotado pelo professor Ricardo Marcondes Martins) 86.

84 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução Luís

Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 259.

85 Idem, ibidem.

86 MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo:

Malheiros, 2011. p. 116-117.

Page 60: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

60

Para que a utilização desses critérios não se dê de forma arbitrária, é importante que

façamos uma pequena digressão para explicar como foi fundamentada a questão da adesão a

um regime de submissão especial ao longo dos tempos, a fim de justificar a posição que

adotamos.

Assim, em entendimento sustentado por parte da doutrina até hoje, teóricos

desenvolveram a ideia de que a voluntariedade da submissão seria o fundamento para o

estabelecimento de uma relação especial de sujeição, ou seja, o particular, valendo-se de sua

liberdade de escolha, optaria por se sujeitar a um regime diferenciado. Teóricos contrários

rechaçam esses argumentos, sob a alegação de que a voluntariedade da submissão é sempre

questionável (ela pode não se dar por uma coação legal, mas por uma coação social) e que isso,

por si só, não autorizaria a derrogação de direitos fundamentais do cidadão87. Concordamos

com aqueles que afastam esse fundamento, por entender que, na atual conformação dos direitos

fundamentais, é inadmissível a ideia de que o indivíduo poderia se despir de seus caracteres

fundamentais, ainda que por um ato de voluntariedade. Os direitos fundamentais do homem e

dos cidadãos se referem a esses como seres humanos, e não em sua esfera individual, sendo,

portanto, inderrogáveis como regra geral. Dessa forma, o que caracteriza a inserção de um

indivíduo numa relação especial de sujeição e ao mesmo tempo justifica a sua existência é a

autorização constante do próprio Ordenamento Jurídico. Assim, até pode ser necessária a

concordância do administrado para que esse seja inserido em determinado contexto relacional,

mas qualquer interferência em seus direitos fundamentais decorrerá do próprio ordenamento,

87 Sobre essa divergência, cite-se Anabitarte: “Es perfectamente necesario acabar con la teoría del consentimiento

y, por consiguiente, con la argumentación volenti non fit injuria. Dos puntos deben ser estudiados: primero, si

existe realmente dicho elemento de voluntariedad, y en segundo lugar, caso de existir, si supone esto un

sometimiento ilimitado. En cuanto de voluntariedad, es difícil afirmar muchas veces su existencia. Se puede

hablar de un sometimiento voluntario no solamente cuando no hay una coacción legal, sino cuando tampoco

hay una presión social de índole semejante. Una voluntariedad así – con razón – entendida obliga a rechazar el

argumento de sometimiento voluntario en esas prestaciones estatales de vital importancia; aquí, pues, entran

todos los servicios de abastecimiento y los de transporte. Tampoco cabe hablar de sometimiento voluntario

cuando se utiliza un estabelecimiento de enseñanza, aunque desde luego en este caso habría que considerar la

existencia o no existencia de un auténtico monopolio estatal. (…) Pero, y este es el segundo punto, aun en el

caso de que pudiese considerar el sometimiento voluntario como base para la regulación de las condiciones de

utilización, es una ficción en absoluto fundamentada que dicho sometimiento sea ilimitado y que en virtud de

él los actos del poder del estabelecimiento se muevan en una esfera al margen de cualquier conformación

jurídica” (ANABITARTE, Alfredo Gallego. Las relaciones especiales de sujeción y el principio de la legalidad

de la administración. Revista de Administración Pública, Madri, n. 34, p. 24, p. 11-51, ene-abr. 1961).

Page 61: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

61

não de sua vontade, que passa a ser elemento apenas prejudicial, ou seja, prévio à inserção, mas

não criadora de eventuais restrições.

Outra teoria que buscava fundamentar as relações especiais de sujeição e a sua

formatação foi a teoria das “proposições jurídicas” 88, segundo a qual o princípio da legalidade

não vigoraria no âmbito interno da Administração, valendo apenas no ambiente externo, ou

seja, nas relações gerais. Apenas as medidas externas seriam proposições jurídicas. Dessa

maneira, gravosas imposições poderiam ser impostas aos particulares em submissão especial,

independentemente da existência de lei, pois para eles não haveria um controle jurídico, mas

um “direito doméstico”, imune à legalidade, ao qual se submeteriam pelo fato de residirem no

âmbito interno da Administração. Rechaçamos essa teoria por acreditarmos que o controle de

legalidade deve ser exercido não só no ambiente externo, mas também no ambiente interno da

Administração Pública, como medida a garantir o Estado Democrático de Direito. Tal teoria

jamais seria aceita sob a égide da Constituição da República de 1988, que preza pela legalidade

como um princípio básico da Administração Pública89, o que veda seu afastamento.

Referidas teorias buscaram fundamentar a formatação das relações especiais de

sujeição, devendo ser levado em consideração, no entanto, que foram desenvolvidas em épocas

bastante distintas do momento histórico-jurídico atual. É importante destacar que, após a

Segunda Guerra Mundial, houve um movimento de substantivação do direito, caracterizado,

em suma, por sua constitucionalização, de maneira que os princípios constitucionais passaram

a avançar como fundamento de validade (não mais apenas formal, mas também material) de

todo o ordenamento jurídico. Dessa sorte, todos os âmbitos do direito passaram a ser

88 Sobre as proposições jurídicas, pedimos vênia para citar novamente Alfredo Gallego Anabitarte: “(…) las RleS

fueron consideradas como ámbito de libre conformación por la Administración. Y esto no fue sino la lógica

consecuencia de la entonces predominante concepción de la proposición jurídica. Como ya ha sido expuesto,

la cualidad de la Ley en sentido material – proposición jurídica, norma jurídica – es que establece la libertad y

en particular para la propiedad, o, con otras palabras, la proposición jurídica crea fronteras y límites entre los

diferentes sujetos jurídicos. Ahora bien, al comprender el Derecho como orden normativo regulador exclusivo

– estableciendo limites – de las relaciones externas entre sujetos jurídicos se decía negativamente que toda

norma interna no era una proposición jurídica, teniendo esta concepción su más clara consecuencia en lo que

concierne a la vida interna del Estado y a las RleS” (ANABITARTE, Alfredo Gallego. Las relaciones

especiales de sujeción y el principio de la legalidad de la administración. Revista de Administración Pública,

Madri, n. 34, p. 24, p. 11-51, ene-abr. 1961).

89 A fim de qualificar a afirmação, cita-se o art. 37, caput, da Constituição Federal, que traz a legalidade como

um de seus princípios básicos: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da

União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,

impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...]”.

Page 62: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

62

impregnados pelos valores constitucionais, inclusive o direito administrativo, representando os

princípios a grande expressão desse programa axiológico consagrado no Texto Maior, se

destacando o princípio da legalidade como uma garantia do cidadão, não mais em sua

concepção liberal de mera contenção do abuso estatal frente ao cidadão, mas como valor

transformador da sociedade e pressuposto do controle da própria atividade do administrador.

Assim, a par das discussões acerca da possibilidade de limitação de direitos fundamentais com

base em mero ato administrativo, ressaltamos que, ainda que haja uma lei permitindo referida

afetação, essa deve se basear nos valores constitucionais, de maneira que é possível afirmar que

o fundamento das relações especiais de sujeição é a Constituição90. A justificativa dogmática

dos deveres especiais impostos aos indivíduos inseridos em uma relação especial passa a ser

não mais teorias que viabilizam a incidência desatada do poder estatal, mas a sua necessária

justificação à luz dos valores do Texto Maior.

Dessa maneira, retomando a discussão iniciada ao tratar dos critérios que cingiriam os

tipos de relações especiais de sujeição, é possível afirmar que tanto a pessoa inserida em

determinado órgão administrativo (critério orgânico) quanto aquela que mantivesse com ele

determinado tipo de relação por meio de um ato voluntário (a exemplo de um concessionário)

ou desempenhasse atividade de relevância social (como a fabricação de cigarros) poderá se ver

submetida a uma maior interferência sobre sua liberdade, haja vista a materialidade daquelas

atividades. A partir dessa materialidade, justificada pela Constituição da República, a qual

consagra valores em seu texto, é justificável a submissão a determinado tipo de intervenção,

não ao arrepio do texto legal, mas a partir de um contexto formado pela própria legalidade, que

funda e formata esses ambientes de atuação, de maneira que se faz desnecessário um

regulamento exaustivo, por se tratar de matéria que já advém de um regulamento legal prévio.

90 A respeito da Constituição como fundamento das relações especiais de sujeição, cite-se Canotilho: “Ao

contrário do defendido pela doutrina clássica das relações especiais de poder, os cidadãos regidos por estatutos

especiais não renunciam a direitos fundamentais (irrenunciabilidade dos direitos fundamentais) nem se

vinculam voluntariamente a qualquer estatuto de sujeição, produtor de uma capitis deminutio. Trata-se tão

somente de relações de vida disciplinadas por um estatuto específico. Este estatuto, porém, não se situa fora da

esfera constitucional. Não é uma ordem extraconstitucional, mas sim um estatuto heteronomamente vinculado,

devendo encontrar o seu fundamento da Constituição (ou estar, pelo menos, pressuposto)” (CANOTILHO, J.

J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3. ed. Portugal: Almedina, 1999, p. 437).

Page 63: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

63

2.3.1 Características fundamentais

Fixadas as premissas acerca de quem poderia se submeter às relações especiais de

sujeição e qual seria o fundamento para tanto, importante tecer algumas considerações sobre

suas notas características.

Jorge Luis Salomoni ensina que, para se verificar a conformação do instituto em questão

em algum ordenamento, faz-se necessário verificar três pontos: a) o sistema constitucional do

país; b) a regulação constitucional e legal dos direitos humanos; c) as relações jurídicas

possíveis entre o Estado, a sociedade e o indivíduo. Aponta ainda aquelas que considera as

características que as conformariam: a) um acréscimo (ou uma máxima) de vinculação do

indivíduo à Administração Pública produzido pela relação especial de sujeição; b) um déficit

de legalidade justificado por essa relação especial; c) uma afetação (ou diminuição) dos direitos

fundamentais91.

Trazendo essa concepção para o ordenamento jurídico pátrio, é possível afirmar que a

Constituição da República Federativa do Brasil encarta uma série de valores em seu texto

(ressaltando a concepção de que os princípios são a projeção jurídica de valores), os quais se

prestam a pavimentar a busca pelos seus objetivos fundamentais. Neste ponto, importante fazer

ressalva para esclarecer que a expressão “princípio” é uma palavra polissêmica, ou seja, possui

diversos significados. Conforme ensinado pelo professor Ricardo Marcondes Martins, a

91 Cite-se: “entiendo que la primera cuestión que debe ser tratada es la de delimitar, lo que, a mi modo de ver,

son los tres núcleos básicos o problemáticos, que se deben intentar por lo menos esbozar, para entender esta

categoría de la relación de sujeción especial dentro de un determinado ordenamiento jurídico. […] En punto a

ello, me parece fundamental que el primer núcleo temático sea el sistema constitucional del país de que se trate,

fundamentalmente en orden a dos cuestiones: a la división de poderes y al principio de legalidad establecido

en la Constitución. Ello así porque, obviamente, cuando se comparan ordenamientos jurídicos de países como

Alemania y España con el de Argentina, nos encontramos que las bases constitucionales son diversas, sobre

todo en el origen histórico de las instituciones allí contenidas y en la filosofía política que les dio nacimiento.

[…] La segunda cuestión, el segundo ámbito temático o problemático, a mi modo de ver, es la regulación

constitucional y/o legal de los Derechos humanos o fundamentales, y como operan en el mecanismo

constitucional. […] Y finalmente, la tercera cuestión vinculada estrechamente a la segunda, se refiere a las

relaciones jurídicas posibles entre el Estado, la sociedad y el individuo, y a mi especial preocupación teórica,

la fundamentación material racional de las relaciones especiales de sujeción. No se debe olvidar que la categoría

jurídica en análisis, se asienta sobre tres principios que la conforman: i) una máxima vinculación o un plus de

vinculación del administrado a la administración producida por la relación de sujeción especial; ii) un déficit

de legalidad que se torna legal por esa especial relación de sujeción, y; iii) una disminución de los derechos

fundamentales” (SALOMONI, Jorge Luis. La Cuestión de Las Relaciones de Sujeción Especial en el Derecho

Público Argentino. In: Problemática de la Administración Contemporánea. Buenos Aires: Universidad

Notarial Argentina, 1997, p. 153-154).

Page 64: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

64

abordagem conceitual de referida expressão princípio pode ser dividida em três fases: numa

primeira fase, os princípios são vistos como os conceitos elementares de determinada doutrina;

em uma segunda fase, são vistos como vetores interpretativos, ou seja, as ideias-chave que estão

por trás do conjunto de normas jurídicas vigentes; já numa terceira fase seriam os princípios

considerados normas jurídicas que positivam um valor, mandados de otimização que

determinam que os valores por eles consagrados devem ser efetivados na maior medida

possível. Nesta terceira fase, os princípios são espécies do gênero “norma”, dotados de forte

semelhança em relação aos valores, diferindo apena em um ponto: enquanto os valores estão

no plano axiológico, os valores estão no plano deontológico, haja vista que são a positivação

daqueles. A primeira fase se encontra superada, mas as duas posteriores não se excluem92. No

entanto, dada a polissemia, reputamos importante ressalvar o sentido em que se usa a palavra

princípio quando dita num texto. Sendo assim, informamos que no início do presente parágrafo,

utilizamos a palavra “princípio” na abordagem dada pela terceira fase.

Para tanto, a atividade estatal deve ser realizada de modo a garantir o bom

funcionamento da Administração Pública, de sorte que a formulação e a interpretação do

estatuto de determinada categoria de servidores públicos ou a constituição de um ato de outorga

de serviço público (atos que inserem o particular numa relação especial de sujeição) devem ser

norteados por esses princípios fundamentais. Nesse contexto, a ideia de um regime alheio ao

controle e à legalidade não pode ser aceita em nosso paradigma atual. Isso porque, conforme já

ressaltamos, os princípios da legalidade e do devido processo legal foram consagrados pela

Constituição Cidadã, fazendo-se impossível a formatação de instituto que passe ao largo deles.

Nesta esteira, a Constituição Federal de 1988 deu grande importância aos direitos fundamentais,

enumerando-os explicitamente (principalmente em seu art. 5º), sem prejuízo daqueles que

emanarem das interpretações sucessivas do Texto Maior, sendo que, da mesma forma, as

relações do Estado com a sociedade e dos indivíduos enquanto integrantes do aparelho estatal

também são submetidas a essa conformação constitucional. A legislação pátria bem pode tratar

de direitos fundamentais. Todavia, na concepção jurídica de 1988, esses têm por característica

a constitucionalidade (são essencialmente constitucionais), de maneira que é possível concluir

que qualquer característica que se admita às relações especiais de sujeição deve ter por limite

92 MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso de direito e a constitucionalização do direito privado. São Paulo:

Malheiros, 2010, p. 13-29.

Page 65: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

65

os valores constitucionais, principalmente quando se trata de ordenação ou limitação de direitos

fundamentais.

Ainda sobre as características das relações especiais de sujeição, salutar a doutrina do

professor Ricardo Marcondes Martins93, que as delimita em face das relações gerais, para dizer

que: a) ambas estão sujeitas ao princípio da legalidade, mas na relação especial há um maior

campo de discricionariedade; b) nas relações especiais existe uma incidência mais branda do

princípio que dá primazia às ponderações do legislador, o que significa dizer que, por outro

lado, torna-se mais pesado o princípio que dá primazia às ponderações do administrador, ou

seja, o campo de discricionariedade do administrador é alargado pela autorização conferida pelo

sistema, que, dada a peculiaridade daquela situação, pôde se utilizar de normas mais vagas, a

serem preenchidas por aquele (a lei cria uma base a ser completada pelo administrador); c) o

sistema admite de forma mais pacífica o estabelecimento de ordenações de direitos nas relações

especiais94; d) a executoriedade é admitida como regra nas relações especiais. Sendo assim,

observa-se que o tratamento reservado às relações especiais de sujeição não é um alijamento da

legalidade, mas um incremento da executoriedade e da discricionariedade do administrador, as

quais, não obstante, não deixam espaços livres às escolhas do agente estatal, vinculadas que

estão à concretização ótima dos valores consagrados no programa constitucional de 1988.

93 In litteris: “Então, indaga-se: qual a diferença entre a ordenação decorrente da sujeição geral e a ordenação

decorrente da sujeição especial? Há quatro diferenças fundamentais. Ambas estão sujeitas ao princípio da

legalidade, segundo o qual as ponderações autônomas no plano abstrato devem decorrer do exercício da

função legislativa e as ponderações no plano concreto devem levar em consideração o princípio formal que dá

primazia ao cumprimento das ponderações abstratas. Ao estabelecer a norma abstrata o legislador pode remeter

expressa ou tacitamente o complemento da norma ao administrador. Daí a primeira diferença: o sistema é mais

tolerante com a remissão à apreciação da Administração no âmbito da sujeição especial que no âmbito da

sujeição geral. Segunda diferença: o princípio formal que dá primazia ao cumprimento da ponderação abstrata

é menos pesado no âmbito da sujeição especial que no âmbito da sujeição geral. Terceira diferença: o sistema

jurídico é muito mais infenso ao estabelecimento de encargos e sujeições nas relações gerais de sujeição que

nas relações especiais de sujeição. Quarta diferença: como regra geral, na sujeição especial os atos

administrativos têm executoriedade, ao contrário do que ocorre na sujeição geral, em que só há executoriedade

quando esta for imprescindível para a eficaz tutela do valor protegido pela Administração” (MARTINS,

Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo: Malheiros, 2011, p.

309-310).

94 Para explicar esse conceito, importante a doutrina do professor Carlos Ari Sundfeld, que define como

Administração ordenadora aquela “parcela da função administrativa, desenvolvida com uso do poder de

autoridade, para disciplinar, nos termos e para os fins da lei, os comportamentos dos particulares no campo das

atividades que lhe é próprio” (SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. 1. ed., 3. tir. São

Paulo: Malheiros, 2003).

Page 66: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

66

Valendo-nos novamente da doutrina do professor Ricardo Marcondes Martins, fazemos

ressalva para esclarecer o que entendemos por essa flexibilização da legalidade. Com o fim da

Segunda Guerra Mundial, empreendeu-se uma revisão do princípio da legalidade, de modo a

surgirem duas concepções, a francesa, que cria a figura do decreto autônomo, atribuindo função

legislativa ao Poder Executivo, e a alemã, que reflete a diretriz de que a lei deve ser cumprida

pela Administração na medida em que esse cumprimento reflita o cumprimento dos princípios

constitucionais95. Em razão disso, desenvolveram-se no ordenamento jurídico brasileiro duas

correntes sobre o tema: uma que defende a admissibilidade irrestrita de regulamentos

autorizados e outra que admite a utilização de regulamentos expressa ou implicitamente

autorizados. Sobre a doutrina do regulamento autorizado, entende o insigne professor que o

Poder Executivo, salvo exceções expressas no texto constitucional (representadas pela lei

delegada e pelas medidas provisórias), não pode exercer ponderações em abstrato, de maneira

que qualquer aproximação com a concepção francesa seria inadmissível. Mesmo nos casos de

sujeição especial, isso não poderia ser cogitado. A doutrina problematiza essa concepção

trazendo o exemplo das bibliotecas públicas, em que se admitiria a imposição de multa pelo

descumprimento de obrigação com base em uma portaria ou decreto96. No entanto, segundo

defendemos, tolera-se isso numa espécie de modulação, tão somente em virtude da necessidade

decorrente de lacunas normativas inadmissíveis, devido à necessidade de imposição da

normatividade, mas não pela possibilidade de ponderação autônoma em abstrato pelo

administrador97, ou seja, não se trata de uma permissão do sistema, mas da tolerância advinda

do reconhecimento de uma invalidade sem a imposição imediata de seus efeitos, por reconhecer

que é necessário maturidade institucional para essa adequação. Não obstante essa ressalva,

destacamos que, devido às relações especiais de que tratam, em determinados casos será

possível ao legislador se utilizar de textos legais dotados de maior generalidade (ou a hipótese

ou a consequência não estará descrita em toda a sua completude), os quais serão

complementados por uma postura mais atuante do administrador, proporcionando maior âmbito

de discricionariedade a este. Sendo assim, não se pode falar em uma “mitigação” do princípio

da legalidade, haja vista que não está autorizado o administrador a atuar em um vácuo

legislativo (por meio de um decreto autônomo, por exemplo), mas num maior âmbito de

95 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 80-

81.

96 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2014,

p. 844.

97 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 84.

Page 67: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

67

conformação devido à incompletude normativa do texto formal, sempre dentro das balizas

fixadas por ele, no entanto.

Dessa maneira, podemos concluir o seguinte sobre relações especiais de sujeição: são

relações formadas em decorrência de determinado vínculo especial (não necessariamente

formal) formado entre a Administração Pública e o particular, o qual abarca diversas categorias

(servidores, presos, concessionários de serviços públicos, exploradores de atividades de

relevante interesse público etc.), impondo-lhes deveres mais intensos do que aqueles

outorgados à população em geral, com uma afetação de direitos fundamentais e potencial

mitigação do princípio da legalidade. Resta agora saber como se dá a conformação do instituto

à doutrina dos direitos fundamentais no regime jurídico dos servidores públicos imposta pela

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

2.4 Relações especiais de sujeição, direitos fundamentais e regime constitucional dos

servidores públicos

Conforme já fixado neste trabalho, as relações especiais de sujeição surgiram no direito

alemão, inseridas em um caldo autoritário que admitia a existência de espaços de reserva de

administração, justificados, dentre outros fundamentos, pelo fato de a Administração Pública

necessitar de maior autonomia para agir ou dispensar controle em seu ambiente interno, haja

vista que ali nem mesmo floresceriam direitos.

Nessa esteira, no que tange aos servidores públicos, destaca-se que esses eram

originariamente considerados órgãos daquele grande organismo, perdendo consideravelmente

(praticamente de forma absoluta) sua liberdade e direitos adjacentes em prol do exercício da

função. Não discordarmos da necessária perda de liberdade do indivíduo quando comprometido

com o exercício da função pública (é pacífico na doutrina que a lógica referente aos direitos

fundamentais nas relações especiais é distinta daquela que vigora nas relações gerais98), sendo

essa, inclusive, uma premissa que adotamos neste trabalho. Todavia, necessária se faz uma

98 Sobre o tema, Konrad Hesse: “Hoje existe concórdia sobre isto, que a problemática não pode ser resolvida sem

uma limitação dos direitos fundamentais, que as relações de status especiais, porém, também não se são

eximidas simplesmente de validez dos direitos fundamentais, como isso tinha aceito a Doutrina do Direito

Estatal mais antiga. Na questão, entretanto, até que ponto podem ser traçados limites aos direitos fundamentais

em relações de status especiais e como devem ser fundamentados esses limites, falta uma concepção uniforme”

(HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução Luís

Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 260).

Page 68: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

68

compatibilização dessa zona de contato entre o servidor e o Poder Público, a fim de adequá-la

ao arcabouço axiológico da Constituição Federal de 1988.

Primeiramente, é importante ressaltar que, conforme já exposto, adota-se neste trabalho

a premissa de que as relações especiais de sujeição subsistem no Ordenamento Jurídico pátrio,

justificadas, caso a caso, pelo fundamento constitucional que as embasa. No caso dos servidores

públicos, justifica-se a possibilidade de afetação de direitos fundamentais dessa categoria, com

o fim de garantir a concretização dos princípios encartados na Constituição da República

Federativa do Brasil, pelo fato de que são esses os seus principais agentes concretizadores, uma

vez entendido o exercício da atividade estatal como a “aplicação e concretização dos princípios

constitucionais”99, ou seja, independentemente da atividade material exercida, sempre haverá a

busca pela execução ótima dos mandamentos de otimização consagrados no texto

constitucional. E aqui surge o primeiro ponto de inflexão: as restrições impostas aos direitos

fundamentais dos servidores públicos só podem se dar na exata medida da concretização dos

princípios que justificam essa intervenção. Trata-se do dever de observância da regra da

proporcionalidade, em formulação trazida por Robert Alexy100.

Por outro lado, devem essas restrições, além de fundamento constitucional101, ter base

legal. Ainda que se admita que o princípio da legalidade seja, de certa forma, mitigado no

99 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 52.

100 Nesse sentido, cite-se a lição de Robert Alexy: “No princípio da proporcionalidade em sentido estrito, que

também pode ser designado ‘princípio da proporcionalidade’, trata-se, pelo contrário, da otimização

relativamente às possibilidades jurídicas. Esse é o campo da ponderação. Somente essa deve aqui interessar.

Uma relação forma o núcleo da ponderação, a qual pode ser designada como ‘lei da ponderação’ e deixa

formular-se como segue: Quanto mais alto é o grau de não-cumprimento ou prejuízo de um princípio, tanto

maior deve ser a importância do cumprimento do outro. A lei da ponderação deixa reconhecer que a ponderação

deixa decompor-se em três passos parciais. Em um primeiro passo deve ser comprovado o grau de não-

cumprimento ou prejuízo de um princípio. A esse deve, em um segundo passo, a seguir, seguir a comprovação

da importância do cumprimento do princípio em sentido contrário. Em um terceiro passo deve, finalmente, ser

comprovado se a importância do cumprimento do princípio em sentido contrário justifica o prejuízo ou não-

cumprimento do outro” (ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução Luís Afonso Heck. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 132-133).

101 Sobre o tema, cite-se Konrad Hesse: “Como as garantias de liberdade jurídico-fundamentais são fundamentadas

pela Constituição, assim também podem os limites dessas garantias encontrar sua base somente na

Constituição. Por causa do significado dos direitos fundamentais para o status do particular e para a ordem

total da coletividade, o importante é, exatamente, na limitação dos direitos fundamentais, levar a sério a

Constituição escrita; isso tanto mais quanto a Constituição escrita normaliza as possibilidades de limitação

respectivas não por uma cláusula geral, senão por reservas individuais, cuidadosamente graduadas. Por isso, é

exigido cautela especial na aceitação de limites de direitos fundamentais não-escritas. É necessária, nesse

ponto, a prova que se trata de limitações de Direito Constitucional não-escrito. A mera afirmação que a proteção

de um ‘bem comunitário de hierarquia superior’ requer a limitação não basta para isso” (HESSE, Konrad.

Page 69: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

69

âmbito das relações especiais de sujeição, é importante dizer que haverá hipóteses em que

cláusulas gerais não serão suficientes para garantir a validade de determinado diploma102, o que

torna imperiosa uma análise mais detida, em especial quando se trata do regime jurídico de

servidores públicos, visto que quaisquer limitações devem ser passíveis de justificação à luz do

regime que se busca regular.

Na doutrina alemã, existem dois métodos para compatibilizar as relações especiais de

sujeição e os direitos fundamentais: o método estático e o método dinâmico103. Segundo o

método estático, deveria existir uma prévia enumeração de quais direitos fundamentais seriam

afetados em cada relação; segundo a concepção dinâmica, esses direitos não necessitariam de

um prévio arrolamento, emanando das circunstâncias de cada relação. Pensamos que a adoção

do método estático, não obstante pudesse aparentar trazer mais segurança jurídica em um

primeiro momento, não se adequaria às próprias características dos princípios constitucionais,

dada a sua formatação naturalmente fluida, o que traria apenas uma virtual sensação de

segurança, solapada a médio prazo pelas mudanças que se apresentam no corpo social ao longo

dos tempos. Sendo assim, torna-se mais razoável interpretar a relação à luz da Constituição

Federal e, com isso, sopesar os princípios que incidirão a cada uma delas.

Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução Luís Afonso Heck. Porto

Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998. p. 250).

102 Sobre a possibilidade de insuficiência das cláusulas gerais, Clarissa Sampaio Silva: “[...] a escolha pela edição

de leis repletas de cláusulas gerais, de conceitos indeterminados, que intencionalmente confiram poderes

decisórios à Administração não pode ser aleatória, necessitando, antes, de justificativa material” (SILVA,

Clarissa Sampaio. Direitos fundamentais e relações especiais de sujeição. O caso dos agentes públicos. Belo

Horizonte: Fórum, 2009, p. 159).

103 Para essa afirmação, valemo-nos da pesquisa de Vera Regina Hippler, com o devido esclarecimento de que a

sigla RES se refere às “relações especiais de sujeição” e a sigla LFB se refere à “Lei Fundamental de Bonn”.

Vejamos: “Há dois métodos seguidos por aqueles doutrinadores que perfilham a segunda corrente, daqueles

que preconizam a mantença das RES mesmo na vigência da LFB: 1. Método estático – faz uma enumeração

positiva dos direitos que resultam limitados em cada relação especial de sujeição; 2. Método dinâmico – que

se pergunta acerca da imbricação entre os direitos fundamentais e o fim específico de cada RES. Parte-se da

premissa que o art. 1º, III da LFB – ‘os seguintes direitos fundamentais vinculam aos Poderes Legislativo,

Executivo e Judicial a título de direito diretamente aplicável’ – vincula também a Administração. O problema

que se coloca é que esta vinculação que tem o mesmo ponto de partida não produz um mesmo ponto de chegada.

Diante da tensa relação direitos fundamentais e fim da RES, se pretere o primeiro. Na dúvida, vige o princípio

da eficácia da atuação administrativa” (HIPPLER, Vera Regina. Aspectos das relações especiais de sujeição

no direito brasileiro: natureza jurídica e pressupostos constitucionais. 2009. Dissertação (Mestrado). Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. p. 81-82).

Page 70: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

70

Nesse sentido, forçoso observar que os direitos fundamentais serão ordenados pelo

legislador104, admitindo, inclusive alguma limitação quanto a sua formatação, a qual deverá

advir, via de regra, da lei. É possível, nesses casos, invocar uma espécie de competência

legislativa conformadora105, qual seja a que se refere à competência detida pelo Poder

Legislativo de ditar os limites de determinados direitos fundamentais. Ressalve-se apenas que

essa conformação está submetida a alguns limites, não partindo do nada, de maneira que deve

o legislador respeitar os limites já trazidos no texto constitucional, bem como aqueles que

advenham da linguagem corrente (por exemplo, ele não pode utilizar o signo “liberdade de

expressão” com conotação diversa daquela já consagrada). Outrossim, nos termos

supradelineados, as restrições impostas aos direitos fundamentais de servidores públicos só se

justificam na medida em que forem exigidas para concretização de outros valores

constitucionais, devendo o legislador respeitar, ainda, o seu núcleo essencial.

Especificamente no que tange aos servidores públicos ocupantes de cargo efetivo, esses

estarão sempre submetidos a um estatuto, o qual deverá ser introduzido no Ordenamento

Jurídico através de lei. Esse estatuto vai variar de categoria para categoria, podendo ainda a

intensidade das sujeições encontrar matizes, a depender da função que se exerça106. Ou seja, o

nível acrescido de sujeição poderá não ser o mesmo para todas as categorias.

104 Sobre a ordenação dos direitos fundamentais pelo legislador, pede-se vênia para citar novamente Hesse: “Essa

necessidade, muitas vezes, mal tida em conta, de organização jurídica confirma que liberdades jurídico-

fundamentais carecem do direito e somente como liberdades jurídicas, não como ‘naturais’, podem ganhar

realidade. Ela torna clara, em medida especial, que o legislador, a quem essa organização incumbe de

preferência, não só pode ser considerado como inimigo dos direitos fundamentais, mas que no âmbito dos

direitos fundamentais, cabe a ele uma tarefa positiva. Ela, finalmente, deixa aparecer a conexão estreita da

Constituição, como ordem fundamental jurídica da coletividade, com as partes restantes da ordem jurídica”

(HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução Luís

Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 248).

105 MARTINS, Ricardo Marcondes. Função social da posse: In: GUERRA, Alexandre; BENACCHIO, Marcelo.

Direito Imobiliário brasileiro: novas fronteiras na legalidade constitucional. São Paulo: Quartier Latin, 2011,

p. 233-247.

106 Sobre a possibilidade de variação do nível de sujeição a que estão sujeitas as diversas categorias, cite-se

Clarissa Sampaio Silva: “[...] o nível acrescido de sujeição, cuja comparação, por sua vez, é feita no tocante a

relações estabelecidas pelos cidadãos com o Poder Público não é, de forma alguma, o mesmo para todas as

categorias funcionais, havendo aquelas em que se revela bastante significativo, como é o caso dos militares, e

outras em que é bem menor, de que modo não se está diante de uma realidade uniforme. E, assim como a

geometria do princípio da legalidade, pode conformar-se variável, sem que, por isso, a legalidade deixe de sê-

lo, também as relações especiais não possuem a mesma configuração, ainda que dentro da mesma espécie

denominada funcional, circunstância que não impede a sua identificação” (SILVA, Clarissa Sampaio. Direitos

fundamentais e relações especiais de sujeição. O caso dos agentes públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p.

286-287).

Page 71: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

71

Assim, o servidor público, ao concordar com seu ingresso no seio da Administração

Pública, estará sujeito a um estatuto predeterminado, que poderá influenciar, inclusive, na sua

vida pessoal. A justificativa para tanto é o seu dever de cumprimento dos valores constitucionais

e a lei fará essa ligação entre os valores do texto constitucional e a vida funcional do servidor.

Nesse sentido, dentre muitos casos, restrições podem ser impostas quanto à liberdade de

expressão, liberdade religiosa, liberdade de manifestação e liberdade política, vida privada,

intimidade e desenvolvimento da personalidade. Passemos a analisar alguns exemplos.

A Constituição Federal garante a liberdade de expressão e a liberdade de pensamento.

Por outro lado, deve o servidor público se submeter a uma série de princípios que podem vir a

limitar essa liberdade. Por exemplo, observe-se o caso de um professor universitário junto a

uma universidade pública: pode ele se valer de sua liberdade de pensamento e expressão para

fazer apologia ao genocídio de judeus? Ora, a Constituição Federal possui como um de seus

principais valores, o princípio democrático. A função do servidor público pode ser entendida

como a concretização dos valores constitucionais. Ao fazer apologia a tamanha atrocidade no

exato momento do exercício de suas funções, certamente o professor não concretiza um valor

constitucional, mas o amesquinha. É bem verdade que, ao lecionar, tem o professor um grau de

liberdade de expressão bem mais amplo do que um juiz, por exemplo (essencialmente vinculado

ao direito em sua técnica jurídica). Todavia, essa liberdade deve ser exercida em observância

ao seu estatuto, que possui fundamento constitucional e, ao desrespeitar o estatuto, desrespeita

seu próprio fundamento, sorte que sua conduta não pode ser tolerada, por ofender o Texto

Maior.

Outro exemplo que pode ser vislumbrado é a possibilidade da edição de Emenda

Constitucional com o fito de proibir a filiação político-partidária de advogados públicos. Como

se trata de reforma trazida pelo poder constituinte derivado, seria possível, em tese, que essa

norma fosse declarada inconstitucional. No entanto, que fundamentos poderiam basear a sua

exigência? Primeiramente porque os membros da advocacia pública, por exercerem mister de

patamar constitucional, com forte influência sobre a vida dos cidadãos podem ser limitados em

sua liberdade política, visto que possui o administrado direito a um órgão de consultoria e

representação do ente estatal isento e alheio a intervenções de cunho político-partidário.

Refletimos assim, se seria razoável que, uma vez proibida a atividade político-partidária,

exigissem os órgãos superiores das respectivas carreiras que seus membros deixassem de

comparecer a manifestações públicas de cunho político-partidário. Neste ponto, cabe a

Page 72: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

72

problematização de que os advogados públicos têm por função realizar a representação

processual e controle interno da Administração Pública, de modo que estão sujeitos à troca de

partidos, por serem agentes permanentes, de maneira que a vedação à atividade partidária

poderia ser justificada pela necessária isenção desses, que poderiam (em tese) agir com maior

ou menor afinco a depender do partido no governo. Assim, apenas a título de argumentação,

poderiam os superiores basear essa exigência no fundamento racional da imunização do agente

público. Por outro lado, uma lei ou emenda constitucional que proibisse a atuação político-

partidária dos cidadãos em geral certamente seria eivada de inconstitucionalidade chapada. A

partir disso, não obstante não tragamos conclusões peremptórias, vislumbramos como a

interferência no grau de liberdade é diferenciada a depender de cada regime (geral ou especial)

se trate.

Outro aspecto que pode ser arguido é quanto à vida privada dos servidores públicos. É

possível que, de alguma forma, essa venha a ser afetada em razão de seu estatuto? Imagine-se

o caso de um advogado público que resolve, em sua vida pessoal, se tornar cantor de músicas

de cunho lascivo, de caráter debochado e letras ofensivas. Outrossim, ele se apresenta em

programas de rádio e televisão, utilizando-se do fato de ser um advogado público para

promoção, por passar uma imagem jovial e descontraída, tipicamente distinta daquela que um

particular costuma ter de um servidor dessa envergadura. É possível se exigir, em tese, que ele

se abstenha de referida conduta? Ora, o estatuto não proíbe o livre desenvolvimento da

personalidade ou mesmo a liberdade artística. Todavia, o fato de o servidor em questão sempre

se apresentar por meio do cargo, utilizando-o como forma de promoção pessoal, somado ao

fato de as letras possuírem caráter ofensivo, ou seja, que pode vir a pôr em xeque a credibilidade

dos demais membros de sua instituição, leva à reflexão acerca da possibilidade de limitação

dessa.

Com efeito, as questões anteriores tratam de meras problematizações. Trazem casos de

interesse prático para que o leitor, intuitivamente, chegue a alguma conclusão baseada em suas

convicções jurídicas e pessoais. Todavia, resta um problema: como o Ordenamento Jurídico

aceitará eventual intervenção nos direitos fundamentais de servidores públicos? Para responder

a esse questionamento, é importante registrar algumas considerações doutrinárias já tecidas

para, ao final, denotarmos nossas conclusões.

Neste ponto, cite-se inicialmente a doutrina de Alfredo Gallego Anabitarte, que aponta

como pressuposto de validade para a intervenção administrativa nas relações especiais de

Page 73: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

73

sujeição a necessidade de uma base legal e fundamentação detalhada, havendo a possibilidade

de utilização de existência de normas autorizantes dotadas de alto grau de generalidade quando

justificado e a adequação das restrições impostas ao patrimônio individual do administrado aos

objetivos perseguidos por aquele órgão107.

Jorge Luis Salomoni, antes de negar a vigência das relações especiais no direito

argentino, reputa que essas, além de analisadas à luz da legalidade, devam ser confrontadas com

o princípio da legitimidade, a fim de verificar se as instituições de direito administrativo

satisfazem aos requisitos de validade formal, mas também material108.

Neste ponto, reputamos relevante fazer um breve parêntese para lembrar a teoria de

Ronald Dworkin (que inspirou o autor argentino) acerca da legitimidade, quando este vislumbra

que um Estado é legítimo se sua estrutura e suas práticas constitucionais forem obedecidas

devido a um sentimento geral dos cidadãos, tradutor do que ele chama de integridade,

esclarecendo-se que Dworkin reputa que haveria dois princípios da integridade política: um

legislativo e um jurisdicional, referindo-se o primeiro à imposição de que os legisladores tentem

tornar o conjunto de leis moralmente coerente e o segundo se referiria à demanda que a lei,

tanto quanto possível, seja vista como coerente. Dessa sorte, um Estado que aceita a integridade

como ideal político teria mais chance de irradiar esse sentimento de legitimidade (visto que

107 Em conclusão ao seu raciocínio, registra o autor español: “Así, pues, de lo dicho se deduce: – el Principio de

la Legalidad de la Administración debe regir en las relaciones especiales de sujeción como consecuencia de la

decisión jurídicoconstitucional por el Estado de derecho; – en las relaciones especiales de sujeción el Principio

de la Legalidad de la Administración exige que todas las intervenciones en la situación jurídica del individuo

tengan como base una autorización legal; – la base legal explicita puede ser sustituida por una cláusula general;

la cláusula general sólo estará justificada cuando: haya una imposibilidad de regular todos los casos

(respectivamente, intervenciones), o bien haya de mantenerse la debida elasticidad con el fin de salvaguardar

la eficiencia de la Administración; – las intervenciones en la situación jurídica del individuo deben servir a la

finalidad objetiva de la relación especial de sujeción, así como deben ser exigidas por ésta o por una situación

dada” (ANABITARTE, Alfredo Gallego. Las relaciones especiales de sujeción y el principio de la legalidad

de la administración. Revista de Administración Pública, Madri, n. 34, p. 24, p. 11-51, ene-abr. 1961).

108 Cite-se: “Resulta necesario para completar el anális, hacer una mención a un problema que me interesa tanto

como el principio de legalidad, y que nos otro que el principio de la legitimidad de las instituciones. […] Este

principio que me viene preocupando teóricamente desde hace tiempo, me permite sostener que las instituciones

del Derecho administrativo, así como la teoría del Estado en la cual están inmersas, deben ser confrontadas no

solamente con la legalidad formal, sino también con la legitimidad de las mismas. […] comparto la necesidad

de argumentar y justificar las instituciones jurídicas administrativas que otorgan poder para que a los ojos de

los administrados sean legítimos. Pareciera ser que las relaciones de sujeción especial, deberían ser

confrontadas con este principio de legitimidad y, adelanto mi opinión, que de esta confrontación no saldría

airosa, porque la base de la institución a la cual me estoy refiriendo parte de los ya mencionados tres conceptos

fundamentales, tanto en su formulación clásica o histórica, como en la actualidad, que pueden resumirse en la

existencia de un déficit de legalidad y una disminución de los Derechos fundamentales”. (SALOMONI, Jorge

Luis. La Cuestión de Las Relaciones de Sujeción Especial en el Derecho Público Argentino. In: Problemática

de la Administración Contemporánea. Buenos Aires: Universidad Notarial Argentina, 1997, p. 157-158).

Page 74: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

74

haveria uma identificação entre a comunidade e o ordenamento jurídico), de maneira que se

pode dizer que a integridade atrai a legitimidade109.

Valendo-nos das considerações supra, é possível afirmar que as relações especiais de

sujeição, na concepção atual do direito, até poderiam autorizar alguma mitigação do princípio

da legalidade, sendo que, para que sejam válidas, deve haver uma forte confrontação entre os

valores fundamentais encartados no texto constitucional e os fins a que elas se prestam. A

validade material deve se aliar à validade formal para, em conjunto, construírem um instituto

juridicamente válido, apto a regular a atividade estatal sem a afetação inconstitucional de

direito.

Sobre essa validade material, é importante destacar aquilo que Konrad Hesse chama de

“concordância prática”110, que denota a necessidade de compatibilização entre os direitos

fundamentais dos administrados e a necessária realização da função estatal. Ou seja, a qualquer

análise que se preste a fazer das relações especiais de sujeição deve levar em conta os direitos

dos administrados, inafastáveis e utilizados como freio frente aos avanços das intervenções

estatais necessárias à realização do seu mister, de modo que simplesmente alegar a supremacia

do interesse público já não é suficiente para justificar intervenções sobre direitos individuais;

agora se faz necessária uma “coordenação proporcional” dessa supremacia aos valores

protetivos fundamentais (e destes àquela), a fim de que ambos alcancem uma “eficácia ótima”.

109 DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 216-229.

110 A respeito da concordância prática, leciona o mestre germânico: “Onde a Constituição, por isso, inclui relações

de status especiais em sua ordem, trata-se, para ela, não só das condições de vida garantidas jurídico-

fundamentalmente, mas também das condições de vida daquelas ordens especiais, porque o todo de sua ordem

assenta sobre a existência e a vida de ambas. Ela põe, com isso, do mesmo modo como nas limitações dos

direitos fundamentais no status cívico geral a tarefa da concordância prática: nem devem os direitos

fundamentais ser sacrificados às relações de status especiais, nem devem as garantias jurídico-fundamentais

tornar impossível a função daquelas relações. Ambos, direitos fundamentais e relações de status especiais,

carecem, antes, de coordenação proporcional, que proporciona a ambos eficácia ótima. Também as relações de

status especiais limitadores devem, por conseguinte, ser vistas ‘na luz dos direitos fundamentais’. A

consideração aos direitos fundamentais é exigida sempre no quadro possível – mesmo que isso traga consigo

para as autoridades administrativas dificultações ou incomodidades” (HESSE, Konrad. Elementos de direito

constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio

Fabris, 1998, p. 262).

Page 75: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

75

Sendo assim, até será admissível a “ordenação específica de alguns direitos”111, mas

essa deverá ser justificada pelos fins constitucionais e ponderada caso a caso.

Diante de todo o exposto, é possível chegar a algumas conclusões acerca das relações

especiais de sujeição: o Ordenamento Jurídico pátrio admite a existência de relações especiais

de sujeição, sendo que essas não mais vigoram tal como em sua concepção clássica, carecendo

de fundamento constitucional (expresso ou implícito no Texto Maior), projetado no espaço

infraconstitucional através de uma lei em sentido estrito (requisito formal), lei esta que deverá

estar em acordo com os valores consagrados na Constituição Federal (requisito material),

havendo ainda a necessidade de respeito aos direitos fundamentais dos administrados, de

maneira que resta obrigatória a compatibilização dos sacrifícios de direitos individuais aos fins

buscados pela medida que se busca implementar (e vice-versa). A busca por essa

compatibilização se dará por meio de um juízo de proporcionalidade, respeitando-se, via de

regra, o núcleo essencial dos direitos.

Pois bem. No que tange aos servidores públicos, ressaltamos que as relações especiais

de sujeição criam pontos de toque muito sensíveis entre estes e a máquina estatal da qual fazem

parte, os quais se mostram mais candentes em relação aos aspectos hierárquico e disciplinar,

ponto nodal do presente trabalho. Sendo assim, resta o seguinte questionamento: analisada toda

a necessidade de compatibilização das relações especiais de sujeição (berço do regime

disciplinar de servidores) seria possível a existência de um tratamento infralegal de eventual

regime correcional? Em havendo a necessidade de base legal, seria suficiente a utilização de

normas autorizantes dotadas de alto grau de generalidade?

Todos esses questionamentos dizem respeito a um passo que se deu adiante em relação

às relações especiais de sujeição, que foi a criação do direito disciplinar, subsistema do direito

administrativo, possuidor de uma lógica peculiar, a qual passou muito tempo imune às

111 Cite-se: “O estatuto dessas relações especiais de poder deve ter fundamento na Constituição, admitindo-se a

ordenação específica de alguns direitos, quando necessária para o atingimento dos fins constitucionais que

justificam essas relações. A legitimidade da compressão dos direitos fundamentais há de ser apurada mediante

um esforço de concordância prática e de ponderação de valores contrapostos em cada caso. Não se pode partir

do pressuposto de que, nos casos de inclusão voluntária nestes estatutos, o indivíduo tenha renunciado aos

direitos fundamentais (que são irrenunciáveis em bloco). A limitação aos direitos se torna admissível quando

se construir em meio necessário para a obtenção dos fins, com respaldo constitucional, ínsitos às relações

especiais de poder. Por isso, essas limitações hão de ser proporcionais, não tocando todos os aspectos da vida

do sujeito” (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.

Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 325-326).

Page 76: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

76

evoluções protetivas que afetaram o direito administrativo. Tal se deu em grande parte em razão

da doutrina das relações especiais de sujeição, que impregnou seu arcabouço filosófico e

axiológico, mas que buscaremos analisar com base nas premissas fixadas no presente capítulo,

a fim de verificar se as conclusões a que chegaremos serão as mesmas da doutrina tradicional.

Page 77: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

77

3 O REGIME DISCIPLINAR DE SERVIDORES PÚBLICOS

3.1 Intróito

O regime disciplinar dos servidores públicos é um capítulo do direito administrativo,

estudado pelo chamado direito administrativo disciplinar, o qual, por sua vez, pode ser incluído

no direito administrativo sancionador, ramo mais abrangente que versa sobre as sanções

impostas diretamente pelo Poder Público em âmbito administrativo. Ou seja, trata-se de um

microssistema que possui suas bases fixadas no direito administrativo, mas que se reveste de

uma lógica própria, haja vista seus elementos específicos, exatamente aqueles que justificam

um estudo em apartado112.

Segundo a tradicional doutrina de Themistocles Brandão Cavalcanti, sob o título direito

disciplinar “poder-se-ia reunir todo o regime jurídico relacionado com as sanções internas

aplicadas aos funcionários públicos ou às pessoas que vivem na dependência imediata dos

órgãos da administração” 113.

A doutrina tradicional relaciona o regime disciplinar diretamente com o chamado poder

disciplinar da Administração Pública114, sendo que, analisado sob o viés da Constituição da

República de 1988, melhor seria se falar em competência disciplinar, haja vista que essa potestade

se apresenta de forma meramente instrumental115, a ser utilizada na exata medida e tão somente

112 Sobre a posição enciclopédica do direito disciplinar, cita-se a doutrina de Egberto Maia Luz: “[...] devemos

firmar o conceito de que o Direito Administrativo Disciplinar existe na sua ordenação específica e

característica, porém, oriundo do Direito Administrativo. É de seu conteúdo o exercício do poder discricionário

do Estado condicionado e vinculado mesmo ao exercício do direito de defesa do servidor alcançado por esta

atuação. Genericamente este é o conceito derivado da posição enciclopédica do Direito Administrativo

Disciplinar”. E conclui: “Isto posto, tem-se como certo que o Direito Administrativo Disciplinar comporta,

perfeitamente, como definição, aquela que o inscreve como o ramo do Direito Administrativo destinado a

apurar, decidir e regular, por todos os aspectos pertinentes, visando as relações que o Estado mantém com os

seus servidores, visando ao respeito das leis e das normas que regulam as atividades funcionais” (LUZ, Egberto

Maia. Direito administrativo disciplinar – Teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p.

64).

113 CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Direito e processo disciplinar. Rio de Janeiro: Fundação Getulio

Vargas, 1966, p, 105.

114 Idem, p. 37.

115 Sobre a instrumentalidade das prerrogativas da Administração Pública, digna de nota é a doutrina do professor

Celso Antônio Bandeira de Mello: “Tem-se função apenas quando alguém está assujeitado ao dever de buscar,

no interesse de outrem, o atendimento de certa finalidade. Para desincumbir-se de tal dever, o sujeito de função

necessita manejar poderes, sem os quais não teria como atender à finalidade que deve perseguir para a

Page 78: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

78

para a persecução do interesse público, de maneira que é possível afirmar que o seu fundamento116

é a busca pela consagração do conjunto de valores que emanam da Constituição da República, ou

seja, o que justifica a existência de um direito voltado à punição de servidores públicos que cometam

infração é o fato de que, sem ele, seria impossível a manutenção da boa Administração e a busca

pelo interesse público117, bem como o respeito ao direito fundamental à boa administração que

assiste aos cidadãos, ressaltando-se, nesse sentido a doutrina de Antonio Carlos Alencar Carvalho

que justifica a existência do direito disciplinar como forma de “prevenir irregularidades no serviço

público e preservar os valores e interesses superiores da coletividade confiados à Administração

Pública, a qual atua mediante atos praticados por seus agentes, daí a importância do regramento da

conduta deles” 118.

Posto isso, tendo em vista que os agentes incumbidos de desempenhar as funções da

Administração Pública são seres humanos e, como tais, estão sujeitos a vícios e tentações,

satisfação do interesse alheio. Assim, ditos poderes são irrogados, única e exclusivamente, para propiciar o

cumprimento do dever a que estão jungidos; ou seja: são conferidos como meios impostergáveis ao

preenchimento da finalidade que o exercente deverá suprir. Segue-se que tais poderes são instrumentais:

servientes do dever de bem cumprir a finalidade a que estão indissoluvelmente atrelados. Logo, aquele que

desempenha função tem, na realidade, deveres-poderes. Não ‘poderes’, simplesmente” (BANDEIRA DE

MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 100-101).

116 Diversas foram as teorias que surgiram ao longo da história para fundamentar a potestade disciplinar. Sobre

elas, precisa a análise doutrinária realizada por Regis Fernandes de Oliveira: “Diferentes teses procuraram

fundamentar a potestade sancionadora disciplinar. São elas: teoria da soberania; autarquia; supremacia

hierárquica; personalidade jurídica de direito público e existência de ordenamentos normativos. Manuel Diez

adota essa última teoria e afirma que ‘os ordenamentos normativos, enquanto chegam a formar parte do Estado,

transformam-se em ordenamentos jurídicos e conservam sua potestade disciplinar. Por isso concluímos dizendo

que o fundamento da potestade disciplinar está nos ordenamentos normativos disciplinares, que, quando são

reconhecidos pelo Estado, transformam-se em ordenamentos jurídicos disciplinares’. Para Themistocles

Cavalcanti, ‘a subordinação é fator elementar para que se exerça o poder disciplinar. A outra consequência do

poder hierárquico e de maior importância, é a competência para exercer a função disciplinar’. Cumpre salientar

que, diferentemente do poder hierárquico, o poder disciplinar tem caráter punitivo. Essa é a característica que

também diferencia a potestade disciplinar da potestade regulamentar” (OLIVEIRA, Regis Fernandes de.

Infrações e sanções administrativas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 59).

117 Importante lembrar que o povo é o fundamento de todo o poder estatal. É o que ensina Egberto Maia Luz: “O

Estado é personalidade jurídica de Direito Público e, nestas condições, demanda e pode ser demandado;

respeita e deve ser respeitado. Na organização estrutural do Estado há um verdadeiro complexo de atividades

que lhe são próprias para poder, com segurança, ser erigido como Estado; mas, não resta dúvida, todas elas,

quaisquer que sejam os regimes ou os sistemas de governo, devem convergir para o único ponto: o povo e este,

no reclamo justo do atendimento dos direitos inerentes à dignidade da criatura humana. A despeito desta

conceituação, o Estado se reveste de poderes de força para bem cumprir as suas finalidades. [...] A força

decorrente do poder não significa, de forma alguma, a adoção da própria força como elemento prevalente para

intimidação ou coação. Antes, esta força representa o necessário grau de confiança e de garantia que o povo

deve ter nas instituições que ele próprio adotou e das quais a execução das suas finalidades institucionais”

(LUZ, Egberto Maia. Direito administrativo disciplinar – Teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1992, p. 29-30).

118 CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar e sindicância. 3. ed.

Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 84.

Page 79: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

79

justifica-se que não se possa deixar o regramento de suas condutas relegado a sua própria sorte,

de modo que, à vista de anomalias na vida funcional, far-se-á necessária a intervenção

hierárquica e disciplinar para a manutenção da ordem e a boa persecução do interesse público.

3.2 Linhas gerais

O direito disciplinar, até chegar à conformação que conhecemos hoje, percorreu um

longo caminho histórico, iniciado com a visão hermética, que considerava os atos internos da

Administração capítulo imune ao direito e terminando, no Brasil, com a sua

constitucionalização, que teve como marco a promulgação da Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988.

Relembramos que, a princípio, os aspetos punitivos dos servidores estatais estavam

visceralmente ligados às teorias que tratavam das relações especiais de sujeição, estudadas no

capítulo anterior, as quais sempre foram o fundamento para justificar o afastamento do controle

legal e jurisdicional das relações sobre elas versadas, as quais, sob fundamentos diversos,

sempre pregaram a existência de um não direito no seio da Administração Pública, ou de um

“direito doméstico”, caracterizado pela intensa submissão pessoal do agente público aos seus

superiores, a qual passaria ao largo da lei.

As teorias se desenvolvem ao longo dos tempos e, não obstante haja muitas vezes

revoluções conceituais a partir do câmbio de uma abordagem para outra, fato é que as bases

sobre as quais se edificam os estudos posteriores sempre acabam por herdar traços da teoria dita

superada, de maneira que, mesmo havendo o sobrepujamento de qualquer teoria, não

necessariamente haverá o seu total esquecimento e a anulação de sua influência. Dessa forma,

possível afirmar que o direito disciplinar, tal como se desenvolveu, levou consigo fortes marcas

da época do nascedouro das relações especiais de sujeição, lembrando-se de que só existirá uma

relação disciplinar onde houver uma relação de sujeição especial119, de modo que é impossível

realizar o estudo aprofundado de um (regime disciplinar) sem abordar o outro (relação especial

de sujeição).

119 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 604.

Page 80: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

80

Assim, não obstante a evolução pela qual tenha passado a teoria das relações especiais

de sujeição (a qual sempre influenciou o direito disciplinar), fato é que grande parte da doutrina,

jurisprudência e órgãos legislativos ainda se vale de conceitos de uma época marcada pela

impermeabilidade dessas relações ao direito. Por essa razão, afirmamos, com base na evolução

histórico-dogmática explanada no capítulo anterior, que o ramo em estudo, assim como diversos

institutos do direito administrativo, nasceu com a pecha do autoritarismo do qual não se

desvinculou com tanta facilidade.

Com efeito, as penas disciplinares eram vistas inicialmente como um castigo ou uma

vingança imposta ao servidor, concebidas posteriormente como um remédio apto a curar uma

enfermidade120, donde se nota forte influência da concepção orgânica, segundo a qual o Estado

é um organismo e cada servidor é um órgão que deve funcionar em harmonia para manter o

sistema saudável, o que justificaria medidas extremas para a extirpação de anormalidades em

seu funcionamento.

Mesmo em tempos modernos, é possível trazer exemplos representativos do quão

deletéria essa concepção pode ser para o regime republicano. Nesse sentido, lembra-se que até

pouco tempo o direito disciplinar era marcado fortemente pela ideia de discricionariedade do

hierarca121 quanto à caracterização ou não da infração disciplinar, bem como à persecução de

120 Cite-se Mauro Roberto Gomes de Mattos: “Inicialmente a punição criminal e a posteriori a disciplinar, sendo

essa última direcionada aos poucos servidores públicos existentes naquela época, eram tidas como castigo e

vingança, observando-se que a pena imposta era admitida somente como remédio contra o mal praticado pelo

acusado. Essa ideia de castigo foi virtualmente se transformando em penalidades estabelecidas por normas

legais, com a finalidade de imposição de sanção ao infrator, garantindo-lhe, contudo, algumas prerrogativas de

defesa. E coube ao lusitano F. A. F. da Silva Ferrão, Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, em alentado

estudo sobre o projeto do Código Penal de Portugal, solicitado pelo Imperador do Brasil, D. Pedro II, definir,

em 1865, que ‘o crime é uma enfermidade social; a pena é um remédio; o lugar do seu cumprimento não é mais

do que um hospital’” (MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Tratado de direito administrativo disciplinar. 2.

ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 2).

121 Em obra editada no bojo do período em referência, Themistocles Cavalcanti tratou da discricionariedade no

âmbito do direito administrativo disciplinar, considerando que o controle somente seria possível quando a

infração imputada inexistisse ou fosse muito discrepante a sua qualificação do quanto razoavelmente exigido

pela norma. Cite-se: “A relação entre o fato e a lei que o qualifica é que se enquadra na definição do poder

discricionário, problema que se coloca muito acima da mera apreciação da legalidade. A qualificação real de

certos pressupostos contidos na definição legal não se esgota na letra da lei, mas depende da interpretação do

seu aplicador, em função de condição de fatos variáveis de caso para caso. A correição judicial do

comportamento da autoridade pode exercer-se nesse terreno mas somente quanto o fato inexiste, tal como

considera a autoridade, ou quando a sua aplicação é gritante com a realidade. A lei pune a falta de urbanidade

do funcionário, porque o seu conceito varia em função de situação de fato, geralmente se qualificando a

finfração pela descategoria e outras manifestações positivas que perturbem a boa harmonia interna do serviço

público. A apreciação é discricionária, mas não há como evitar o controle superior quando é gritante a

interpretação da autoridade com o conceito comum, usual, das qualidades exigidas pela lei, para a boa ordem

Page 81: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

81

seu subordinado. Esse período, que teve seu ápice durante a ditadura militar no Brasil, é

identificado por uma ampla margem de atuação do hierarca, alimentada pela existência de tipos

abertos e pelo afastamento do controle jurisdicional (marcado pela ideia de intangibilidade do

mérito administrativo), o que levou ao cometimento de sucessivas arbitrariedades contra

servidores públicos, os quais, pelos mais diversos motivos (dentre os quais se destaca a oposição

política ao governo de então), foram perseguidos e demitidos, sob a justificativa de que o

enquadramento do fato à norma seria tarefa exclusiva do hierarca, de modo que esse mérito não

poderia ser revisto pelo Poder Judiciário. Sobre esse período ressalta Mauro Roberto Gomes de

Mattos que “o juízo discricionário do Administrador público, em face da insuficiência da lei

em relação às características específicas de cada caso concreto, permitia a exacerbação do

referido poder, em detrimento das garantias dos servidores acusados”, dando como exemplo as

demissões sumárias que ocorreram com fundamento no Ato Institucional de 9 de abril de

1964122.

Nesse período foi feito grande uso do instituto da famigerada “verdade sabida”, espécie

que dispensava a regular apuração da infração e o devido processamento do servidor acusado,

sob a alegação de que, por se tratar de fato notório, dispensava a instauração de qualquer

procedimento em face do agente. Em contrapartida, é preciso ressalvar que hoje impera no

direito administrativo disciplinar o princípio da verdade real, o qual pressupõe que eventual

condenação de servidor acusado pelo cometimento de falta funcional se dará mediante a prova

da efetiva materialidade da infração e de sua respectiva autoria mediante amplo conjunto

probatório colhido em regular processo de apuração. Nesse sentido, lembramos que, nos termos

dos incisos LIV e LV do art. 5º da Constituição da República123, são garantidos ao acusado o

devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório no âmbito dos processos judiciais e

administrativos124, o que engloba o processo disciplinar. Dessa maneira, consideramos

do serviço público” (CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Direito e processo disciplinar. Rio de Janeiro:

Fundação Getúlio Vargas, 1966, p. 90)

122 MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Tratado de direito administrativo disciplinar. 2. ed. Rio de Janeiro:

Forense, 2010, p. 10.

123 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade, nos termos seguintes: [...] LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido

processo legal; LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são

assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”

124 Sobre a verdade sabida, Romeu Felipe Bacellar Filho: “O próprio nome já revela o conteúdo do procedimento:

quando o fato for de conhecimento notório aplica-se diretamente a pena, tendo em vista a desnecessidade do

Page 82: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

82

impossível o apenamento de servidor público sem a prévia realização de regular processo com

a garantia de defesa plena, o que leva à conclusão de que condenações sumárias baseadas na

chamada verdade sabida, no atual regime constitucional, afrontariam sobremaneira as garantias

fixadas no texto maior, de modo que são rechaçadas pelo ordenamento jurídico pátrio, o que

torna o instituto em comento mera curiosidade histórica, referência de um período ao qual seria

inconcebível retroceder.

Diante do exposto, é possível notar uma evolução no trato da fundamentação e

consequências do direito administrativo disciplinar ao longo dos tempos, passando ele de mero

instrumento para fazer valer a vontade de autoridades superiores para a forma de um regime de

garantias que visa a imunizar a atuação estatal a eventuais interesses estranhos à persecução do

interesse público. Essas garantias representam a outra faceta da dualidade composta pelo

binômio composto pelo dever de punir do Estado quando deparado com irregularidades e pelas

garantias do Estado de Direito, de maneira que se faz salutar a investigação acerca da

composição dessa relação, a qual parte do regime sancionatório administrativo.

3.3 Regime das infrações e sanções disciplinares

Conforme dito anteriormente, o direito administrativo disciplinar é o ramo que se

debruça sobre as penalidades administrativas impostas a servidores públicos em razão de

infrações por esses cometidas e que tenham alguma relação com o cargo ocupado ou com as

funções por eles desempenhadas. É possível dizer, portanto, que o objeto de estudo dessa

matéria são, basicamente, infrações e sanções afetas a um determinado grupo de pessoas.

Para fins de análise, é importante primeiramente fixar o que se entende por infração

administrativa, tarefa para a qual nos valemos da doutrina de Regis Fernandes de Oliveira, que

ensina ser essa o “comportamento típico, antijurídico, cuja sanção é aplicada por órgão

administrativo, ou pelos órgãos judicial ou legislativo, no exercício de função atípica”,

processo, porque a verdade resta conhecida. Formou-se um consenso doutrinário acerca da

inconstitucionalidade da verdade sabida. A Constituição de 1988 exige, incondicionalmente, o processo

(procedimento em contraditório) para aplicação de sanção disciplinar de qualquer espécie e seja qual for o

conjunto probatório que a Administração Pública disponha para tanto” (BACELLAR FILHO; Romeu Felipe.

Processo administrativo disciplinar. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 92).

Page 83: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

83

pontuando ainda que essa seria uma espécie do gênero “ilícito” 125. Segundo Daniel Ferreira,

infração administrativa é “uma espécie do gênero ilícito – como também o são o ilícito penal,

o civil e o de improbidade administrativa – e exige para sua investigação a atuação de um ou

de mais agentes, no exercício de função administrativa, e que pode ensejar, afinal, a imposição

de uma sanção da mesma ordem”126. Ou seja, a infração administrativo-disciplinar é espécie

jurídica de um gênero maior (ilícito em seu sentido lato), inserida no âmbito do direito

administrativo, caracterizada pelo comportamento em desconformidade com o direito que,

atendidos alguns pressupostos, será passível de sanção.

Neste sentido, ressalvamos desde já que, ao analisarmos o direito administrativo

disciplinar, nos utilizaremos bastante de conceitos de direito penal, isso porque,

ontologicamente, o ilícito penal, civil e o administrativo não se distinguem em sua natureza,

conforme será esmiuçado adiante, ressaltando neste momento que a única distinção entre essas

espécies é o órgão que aplicará a sanção, em função típica ou atípica. Para essas afirmações,

valemo-nos novamente da doutrina de Regis Fernandes de Oliveira, quando afirma que “o

conceito de antijuridicidade é comum a diversos ramos do direito; pertence à teoria geral do

direito. Por isso não se distinguem os ilícitos civil, criminal e administrativo, em sua essência;

ontologicamente, são uma e mesma coisa”127. Além disso, o direito punitivo como um todo

encontra seu núcleo básico na Constituição Federal, o que justifica a existência de “cláusulas

constitucionais que dominam tanto o Direito Penal, quanto o Direito Administrativo

Punitivo”128. Por essa razão, ou seja, por considerarmos esses tipos de ilícitos irrupções do

mesmo fenômeno em ramos distintos, justificamos desde já a utilização constante do

paralelismo entre conceitos de direito penal e os institutos do direito administrativo-disciplinar

para fins deste estudo129.

125 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2012, p. 33.

126 FERREIRA, Daniel. Teoria geral da infração administrativa a partir da Constituição Federal de 1988. Belo

Horizonte: Fórum, 2009, p. 191.

127 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2012, p. 33.

128 OSORIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015,

p. 144.

129 Falamos em utilização paralela, pois não se trata basicamente da transposição dos princípios e garantias do

direito penal para o direito administrativo sancionador, haja vista que, dadas as peculiaridades de cada ramo,

será admissível a existência de matizações. É o que ensina Clarissa Sampaio Silva: “[...] há a tendência de se

considerar o poder sancionatório da Administração Pública e do Estado na esfera penal, como oriundos de um

Page 84: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

84

Nesta esteira, pontuamos que mesmo os mais profundos estudos de direito penal não

foram capazes de chegar a uma definição pronta e acabada do crime em seu estado bruto na

sociedade, ou seja, condutas que por si mesmas, sejam consideradas crimes, prescindindo de

uma valoração normativa. É o que os professores Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini

denominam “conceito material de delito com caráter preexistente (ou vinculativo) ao momento

da elaboração da lei”, de maneira que, reconhecendo a inexistência desse instituto jurídico,

descrevem crime como “a realização de fato descrito na lei (aspecto formal) mais a consequente

lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico relevante (aspecto material)” 130. Ou seja, tanto no

direito penal quanto no direito disciplinar, a conduta que constituirá uma infração será aquela

ação ou omissão normativamente eleita pelo legislador como desvaliosa por supostamente

representar um uma ofensa (ou ameaça de ofensa) relevante ao bem jurídico protegido, digna

de sanção em sua respectiva esfera. Note-se: a uma representação formal deverá ser somada

uma relevância material da conduta sob análise.

Acompanhando o raciocínio esposado acima, destacamos que infração e sanção são

expressão correlatas, ou seja, a uma infração corresponderá uma sanção, de modo que esta será

penal, administrativa ou civil a depender apenas do órgão que a aplique131. Ressalvamos, no

entanto, que o simples cometimento de uma infração não leva à aplicação mecânica e

automática de uma sanção. Para tanto, faz-se necessário o atendimento a certos pressupostos.

Por essa razão, vislumbramos que, sendo ontologicamente semelhantes, a sanção penal e a

administrativo-disciplinar deverão atender a pressupostos análogos, de modo que se faz

poder punitivo único. Diante de tal premissa, que não significa deixar de reconhecer a autonomia do Direito

Administrativo sancionatório no tocante ao Direito Penal, pode-se falar numa firme orientação no que pertine

à necessidade de aplicação, ao sancionamento de condutas realizadas pela Administração, dos mesmos

princípios e garantias constitucionais, embora com matizações, que regem o sancionamento em matéria penal,

os quais não lhes são privativos [...]” (SILVA, Clarissa Sampaio. Direitos fundamentais e relações especiais

de sujeição. O caso dos agentes públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 270) .

130 GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Curso de direito penal. Parte geral. Arts. 1º a 120. Salvador:

JusPodium, 2015, p. 169.

131 Trata-se de afirmação inspirada na doutrina do professor Ricardo Marcondes Martins: “Infração e sanção são

conceitos correlatos. Infração é o descumprimento de uma obrigação ou proibição legal e sanção é a

consequência jurídica imposta ao infrator ou responsável em decorrência da realização da conduta proibida ou

da não realização da conduta obrigatória. Será administrativa quando a lei qualifica o agente administrativo

para apurar a infração e aplicar a sanção. A nota diferencial entre a infração e a sanção penal e a infração e a

sanção administrativa está, como se percebe, na competência; a penal é imposta pela autoridade jurisdicional,

a administrativa pela autoridade administrativa. Eis uma conclusão inexorável: se a sanção é imposta por agente

no exercício da função administrativa, de sanção penal não se trata” (MARTINS. Ricardo Marcondes. Sanções

administrativas no Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC. Revista Brasileira de Infraestrutura

– RBINF, Belo Horizonte, ano 4, n. 8, p. 47-88, jul.-dez. 2015).

Page 85: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

85

necessário o estudo, em âmbito administrativo, dos elementos estruturantes do delito penal.

Dito isso, valendo-nos da já consolidada contribuição da doutrina criminal, possível afirmar

que, para que um fato, no âmbito do direito disciplinar, seja punível, faz-se necessário que esse

seja: a) fato típico; b) antijurídico; c) culpável e; d) punível. Analisemos esses elementos

detalhadamente.

3.3.1 O fato típico

Diz-se que um fato é típico quando a conduta de determinado ser humano se adéqua à

hipótese prevista em uma norma132, ou seja, com a respectiva subsunção da ação ou omissão

praticada pelo agente à hipótese trazida no texto legal, agregado ao fato de que essa conduta

tenha causado relevante dano ou ameaça de dano ao bem jurídico protegido pela norma, bem

como haja dolo ou culpa por parte do agente.

Segundo Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, o tipo penal “é um

instrumento legal, logicamente necessário e de natureza predominantemente descritiva, que tem

por função a individualização de condutas humanas penalmente relevantes (por estarem

penalmente proibidas)” ao passo que tipicidade se referiria à conduta, ou seja, “é a característica

que tem uma conduta em razão de estar adequada a um tipo penal, ou seja, individualizada

como proibida por uma lei penal” 133.

Dessa maneira, é possível afirmar que, para que determinado delito seja passível de

punição, deverá ele se enquadrar em um modelo geral e abstrato previsto em lei. É o que a

doutrina chama de tipicidade formal, ponto nodal do presente trabalho quando analisada sob a

ótica do direito disciplinar. Como o presente capítulo se presta apenas a tecer considerações

sobre os pressupostos da aplicação da pena nesse ramo, nos limitaremos a afirmar que a

tipicidade formal em direito disciplinar é tema ensejador de grande polêmica, haja vista a

132 Sobre o conceito de norma, pede-se vênia para citar novamente o professor Ricardo Marcondes Martins:

“Norma consiste na padronização, por meio da abstração, da ocorrência de determinado fenômeno. A norma

sempre obedece a um esquema lógico, em que o consequente é condicionado a um antecedente – ‘H → C’ (‘Se

a hipótese, então a consequência’). Se a ligação obedece ao princípio da causalidade, decorre de uma imposição

da Natureza, é chamada de norma natural; se obedece ao princípio da imputação, decorre de uma imposição

humana, é chamada de norma de comportamento. A norma jurídica é uma norma de comportamento, mas, ao

contrário das normas morais e religiosas, ela autoriza a obtenção de uma tutela jurisdicional” (MARTINS,

Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 26).

133 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte geral.

11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 399.

Page 86: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

86

admissão dos chamados tipos abertos, ou seja, suportes legais que, diferentemente daqueles

exigidos no âmbito do direito penal, são dotados de alto grau de abstração, o qual permite ao

intérprete realizar grande interferência na tarefa da adequação da conduta ao texto da lei, com

a possibilidade de inserir diversas espécies de condutas (das mais graves às mais simplórias)

sob um mesmo dispositivo, ou seja, na configuração da chamada tipicidade. Analisar essa

problemática é tarefa reservada ao próximo capítulo.

Mas não é só. Conforme adiantado, além desse enquadramento, é necessário que a

conduta formalmente típica traga relevante dano ou ameaça de dano ao bem jurídico protegido

pela norma, bem como haja dolo ou culpa por parte do agente, de maneira que é possível

afirmar, com base na lição de Luiz Flavio Gomes e Alice Bianchini, que o fato típico possui

três dimensões: formal, material e o dolo ou culpa134. Na esteira dessa lição, no que tange à

dimensão material, haverá um juízo de valoração/desaprovação tanto sobre a conduta do agente

(visto que o desvalor penal sempre recairá sobre a conduta de um ser humano), quanto sobre o

seu resultado jurídico, o qual deverá representar um perigo concreto ou transcendental,

significativo, intolerável, objetivamente imputável ao risco criado ou incrementado e que esteja

“no âmbito de proteção da normal penal”135136. Assim, além daquela adequação formal, a

correspondência meramente literal entre o fato e a norma, deverá o juiz (ou hierarca, no caso

do direito disciplinar) verificar se aquela conduta praticada pelo agente ou o seu respectivo

resultado representa um grau de perturbação à ordem que a torne digna de uma sanção. Por essa

razão, a doutrina se refere ao princípio da ofensividade, segundo o qual, “se não foi afetado

significativamente o princípio concretizado pela norma, não é possível reação jurídica ao

descumprimento do dever imposto por ela”137.

134 GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Curso de direito penal. Parte geral. Arts. 1º a 120. Salvador:

JusPodium, 2015, p. 213.

135 Idem, ibidem.

136 Importante notar que referidos autores se inspiram na teoria da imputação objetiva desenvolvida por Claus

Roxin: “A teoria da imputação objetiva tenta resolver os problemas que decorrem destes e de outros grupos de

casos, ainda a serem examinados. Em sua forma mais simplificada, diz ela: um resultado causado pelo agente

só deve ser imputado como sua obra e preenche o tipo objetivo unicamente quando o comportamento do autor

cria um risco não permitido para o objeto da ação (1), quando o risco se realiza no resultado concreto (2) e este

resultado se encontra dentro do alcance do tipo (3)” (ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Tradução Luís

Greco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 104).

137 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 627.

Page 87: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

87

É com base nos mesmos fundamentos que doutrina e jurisprudência138 pátrias passaram

a aceitar, por exemplo, a aplicação do princípio da bagatela aos crimes praticados contra a

Administração Pública, ou seja, muitas vezes a conduta do agente se reveste de tamanha

insignificância que não faz jus ele ao sancionamento estatal. É o caso, por exemplo, do servidor

público que leva, de forma definitiva, uma folha de papel sulfite para sua residência.

Formalmente ele praticou o verbo do tipo “peculato”, previsto no art. 312 do Código Penal139,

que o define como “apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem

móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito

próprio ou alheio”. O diploma criminal impõe pena de reclusão de dois a doze anos e multa a

quem praticá-lo. Todavia, não faz sentido a aplicação de tamanho apenamento (ou o

apenamento disciplinar de demissão, por exemplo) ao servidor que essa conduta pratica, não

obstante ele tenha praticado exatamente a conduta prevista na hipótese geral e abstrata da norma

(ele era servidor, se se apropriou de um bem móvel qualquer, utilizou-se do seu acesso à

repartição para tanto e o fez em proveito próprio). Não seria razoável ou proporcional demitir

o bom servidor que cometeu o deslize de se apropriar (ainda que indevidamente) de uma folha

de papel. Por essa razão, afirma-se que o princípio da insignificância se aplica no seio da

Administração Pública, tanto quando se trata de sanções penais quanto disciplinares. Assim, a

conduta do agente, além de apresentar certo grau de lesividade, deve produzir resultado

relevante e, ainda, apresentar uma inadequação social, de sorte que “se a conduta do agente

público se subsumir à literalidade do tipo de uma infração disciplinar mas for socialmente

adequada ou seja, conforme à ordem social, à realidade histórica, ao ‘normal’ da vida –, não

será passível de sanção, ainda que não seja exemplar”140.

138 Apenas a título de ilustração, cite-se julgado do Supremo Tribunal Federal que admite a aplicação do princípio

da insignificância a crimes praticados contra a Administração Pública: “AÇÃO PENAL. Delito de peculato-

furto. Apropriação, por carcereiro, de farol de milha que guarnecia motocicleta apreendida. Coisa estimada em

treze reais. Res furtiva de valor insignificante. Periculosidade não considerável do agente. Circunstâncias

relevantes. Crime de bagatela. Caracterização. Dano à probidade da administração. Irrelevância no caso.

Aplicação do princípio da insignificância. Atipicidade reconhecida. Absolvição decretada. HC concedido para

esse fim. Voto vencido. Verificada a objetiva insignificância jurídica do ato tido por delituoso, à luz das suas

circunstâncias, deve o réu, em recurso ou habeas corpus, ser absolvido por atipicidade do comportamento”

(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 112388 SP. Impetrante: José Hércules Ribeiro de

Almeida. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Brasília, 21 de agosto de

2012. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/

portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=112388&classe=HC&codigoClasse=0&origem=JUR&r

ecurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 10 set. 2016).

139 BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

140 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 628.

Page 88: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

88

Outrossim, para que se atendam as três dimensões do tipo, necessário se faz que o agente

tenha agido com dolo ou culpa, ou seja, dotado de um elemento subjetivo que implique o agente

tenha desejado o resultado (dolo), assumido o risco quanto a ele (dolo eventual) ou não tenha

se valido da diligência desejável naquele caso, ou seja, que tenha agido com imprudência,

negligência ou imperícia (culpa)141. Tal se dá por força do princípio da responsabilidade

subjetiva, princípio esse que impõe ser incabível a responsabilização do agente sem que ele

tenha agido com algum tipo de animus em relação ou resultado, ou melhor, caso lhe falte o

elemento subjetivo, nem mesmo típica a conduta é. Ou seja, não se trata de causa de exclusão

de pena, mas propriamente da exclusão do delito. Dessa maneira, afasta-se a possibilidade de

responsabilização criminal objetiva142. No que tange ao regime sancionador administrativo

(ramo genérico que engloba o direito disciplinar), não obstante a existência de alguma

controvérsia, defende autorizada doutrina que também não seria admissível a responsabilidade

objetiva do agente infrator, haja vista os princípios do contraditório, ampla defesa e presunção

de inocência143. Em se tratando especificamente do direito disciplinar, especialmente devido ao

141 Sobre a terceira dimensão do tipo, cite-se a doutrina: “Por força do princípio da responsabilidade subjetiva, não

existe crime sem dolo ou culpa. Não existe responsabilidade objetiva em direito penal. Se não constatado dolo

ou culpa na conduta do agente, não há que se falar em crime. É dentro da terceira dimensão da tipicidade que

o juiz deve examinar a questão do dolo ou culpa. O dolo ou a culpa revelam a posição do agente frente ao bem

jurídico, que será de intenção inequívoca (dolo direto), indiferença (dolo eventual) ou descuido. No dolo direto

existe intencionalidade dirigida à ofensa ao bem jurídico. No dolo eventual o agente atua com indiferença

(assume o risco de produzir o resultado). Na culpa age com descuido frente ao bem jurídico. Esse descuido se

concretiza por meio da negligência, imprudência ou imperícia” (GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice.

Curso de direito penal. Parte geral. Arts. 1º a 120. Salvador: JusPodium, 2015, p. 232-233).

142 Sobre a responsabilidade objetiva, escreve abalizada doutrina: “A imputação da produção de um resultado,

fundada na causação dele, é o que se chama responsabilidade objetiva. A ‘responsabilidade objetiva’ é a forma

de violar o princípio de que não há delito sem culpa, isto é, diz respeito a uma terceira forma de tipicidade, que

se configuraria com a proibição de uma conduta pela mera causação de um resultado, sem exigir-se que esta

causação tenha ocorrido dolosa ou culposamente. A responsabilidade objetiva não ocorre somente quando se

pune uma conduta só porque causou um resultado, mas também quando a pena é agravada pela mesma razão.

Ambos os casos implicam, pois, violações ao princípio nullum crimen sine culpa” (ZAFFARONI, Eugenio

Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte geral. 11. ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2015, p. 470-471).

143 Cite-se Regis Fernandes de Oliveira: “A Constituição Federal atual deu novo enfoque à responsabilização do

infrator e estendeu a sua proteção, expressamente, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos

acusados em geral, assegurando-lhes o contraditório e a mais ampla defesa, além da presunção de inocência

(art. 5º, LV e LVII, da CF). Nessa mesma esteira, a Lei 9.784/1999, que regulou o processo administrativo no

âmbito da Administração Pública Federal, visou, prioritariamente, a proteção do direito dos administrados e a

obediência a princípios expressos ou não escritos (arts. 1.º e 2.º). É o que se depreende da dicção do seu art.

2.º, que, antes de declarar a extensa enumeração de princípios, utilizou a expressão ‘dentre outros’, para

submeter o processo administrativo não só à lei, mas ao direito: (....)”. E conclui: “Assim, a responsabilidade

objetiva do suposto infrator, presumidamente inocente até final decisão na esfera administrativa (art. 5.º, LVII,

da CF), não pode mais ser admitida. O contraditório e a ampla defesa garantem ao infrator o direito de influir

efetivamente, de modo eficaz, na decisão do processo administrativo. Se a responsabilização do infrator puder

ser feita objetivamente, as garantias citadas não seriam mais do que mero reforço teórico de um discurso apenas

Page 89: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

89

seu paralelismo em relação aos institutos de direito penal, com o qual compartilha diversas

garantias em face do jus puniendi estatal, admitem com maior tranquilidade doutrina e

jurisprudência pátrias a impossibilidade de punição do agente com base na mera voluntariedade,

o que se reforça com a previsão do §6º do art. 37 da Constituição Cidadã que “ao vedar a

responsabilidade civil objetiva do agente público, por extensão lógica, também veda a

responsabilidade disciplinar objetiva”144. Dessa maneira, para que seja punido

disciplinarmente, imprescindível se faz que o agente tenha agido com dolo culpa, elementos

integrantes, portanto, também do tipo disciplinar.

Diante do exposto, observamos que o enquadramento da conduta de determinado agente

público como fato típico, ou seja, para que essa seja dotada de tipicidade, necessário se faz

percorrer uma séria de requisitos, representados pelas dimensões do fato típico, de sorte que

apenas se satisfeitos em todos esses é que poderão ser analisados os demais condicionantes da

infração. Assim, além de estar previamente descrita em lei, aquela conduta deverá ser praticada

voluntariamente e representar dano ou risco relevante aos valores a que a norma visa proteger.

Sem isso, não é possível a imputação do agente.

3.3.2 A antijuridicidade

A antijuridicidade, na doutrina de Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini, representa a

“contrariedade do fato (formal e materialmente típico) com o ordenamento jurídico. O fato

antijurídico não se encontra amparado por nenhuma norma justificante (causa de exclusão da

antijuridicidade)145“. Com efeito, trata-se da prática de um fato formal e materialmente típico

sem que esse possua qualquer justificativa que exclua a sua característica de ato lesivo ao

ordenamento, ou seja, sua antijuridicidade. Assim, a tipicidade seria apenas um indício de

antijuridicidade “porque com a primeira teremos afirmada apenas a antinormatividade da

conduta”146.

programático” (OLIVEIRA; Regis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. 3. ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2012, p. 41-42).

144 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 626.

145 GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Curso de direito penal. Parte geral. Arts. 1º a 120. Salvador:

JusPodium, 2015, p. 385.

146 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte geral.

11 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 509.

Page 90: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

90

As causas legais de exclusão da antijuridicidade, as chamadas descriminantes, no

Ordenamento pátrio são previstas no art. 23 do Código Penal, sendo elas: a) estado de

necessidade; b) legítima defesa; c) estrito cumprimento de dever legal; d) exercício regular de

direito. É possível projetá-las no âmbito do direito administrativo sancionador (e do direito

disciplinar, por suposto), apesar da possibilidade de inexistência de previsão jurídica

específica147. Trata-se de consequência da já invocada permeabilidade e paralelismo entre o

direito penal e o direito administrativo sancionador, com base nas justificativas dantes

relacionadas.

Segundo o art. 25 do Código Penal, age em legítima defesa aquele que, “usando

moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu

ou de outrem”. O fundamento maior da existência de referido instituto é o de que “ninguém

pode ser obrigado a suportar o injusto”148. Dessarte, aquela pessoa que se vê injustamente

agredida (ou presencia injusta agressão a bem jurídico de outrem) tem autorização legal para

repelir aquele assédio, desde que o faça com a utilização dos meios necessários, entendidos

esses como os meios menos gravosos possíveis para o êxito naquela defesa. É possível transpor

essa situação para o sistema disciplinar: o servidor público que agride um colega pode ser

enquadrado no respectivo tipo que verse sobre a prática de ofensas físicas a outrem no ambiente

de trabalho. Todavia, a prática dessas ofensas físicas pode ocorrer frente a uma injusta agressão.

É o caso, por exemplo, do agente estatal que se veja na situação de vítima de um colega

enfurecido que se dirige no sentido de ofender sua integridade física. Dessa maneira, não

obstante não haja previsão expressa em seu estatuto de que esse poderia repelir a injusta

147 É o que ensina Regis Fernandes de Oliveira: “Embora não exista sistematização legislativa sobre o tema, busca-

se a criação doutrinária, valendo-se não apenas dos princípios e regras do direito penal como, também, de

situações específicas do direito administrativo. Num esforço de sistematização, passamos a enumerar as causas

de exclusão da infração. Pode a infração ser excluída pela legítima defesa, quando se está diante de agressão

ilegal, não provocada, destinada a preservar direito próprio ou de outrem, empregando meios moderados à

defesa [...]. Da mesma forma o estado de necessidade, situação em que se encontra a pessoa que, para salvar

de perigo atual e iminente um bem jurídico próprio ou alheio, é obrigada a sacrificar um bem jurídico de outrem

[...]. Também quem está no estrito cumprimento de dever legal não comete infração punível. Direito e infração

são noções antitéticas. Onde há direito não há infração; onde se vê esta, não há aquele. O funcionário que, por

necessidade, causa lesões corporais a um louco, para recolhê-lo a um hospício, não comete infração. Da mesma

forma, há exclusão da antijuricidade quando alguém está no exercício regular de um direto. Se o proprietário

coloca vidros sobre os muros para evitar lesões, não comete infração a normas municipais, salvo exceção

legalmente prevista (proximidade de escola, por exemplo)” (OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Infrações e

sanções administrativas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 89-90).

148 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte geral.

11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 518.

Page 91: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

91

agressão (desde que moderadamente), o Ordenamento Jurídico, devido ao diálogo das fontes

do direito penal e direito disciplinar, afastará a antijuridicidade de sua conduta, não podendo

ele sofrer qualquer punição, portanto. Sobre a consagração da legítima defesa em âmbito

disciplinar, oportuno o registro de que a Lei n. 8112/90, que versa sobre o regime jurídico dos

servidores públicos federais, prevê no inciso VII do art. 132 a legítima defesa como causa

excludente da aplicação de pena de demissão em casos de ofensas físicas praticadas pelo agente

público em serviço149.

Já o estado de necessidade corresponde, segundo o art. 24 do Código Penal, àquelas

situações nas quais o agente pratica o ato (formal e materialmente típico) para salvar direito

próprio ou de outrem de perigo atual que não tenha provocado e nem tenha sido a ele possível

evitar, de sorte que não seja razoável exigir o sacrifício do bem em risco naquelas

circunstâncias. O exemplo clássico do estado de necessidade, no direito penal, é o do furto

famélico, ou seja, o do furto praticado por pessoa em estado de penúria para saciar a própria

fome. Exemplo que pode ser dado também é o da pessoa que, para fugir de um incêndio, se vê

obrigada a danificar os bens de seu vizinho. A ela não poderá ser imputado o crime de dano.

Essa excludente de antijuridicidade já possui uma aplicação mais problemática no âmbito

disciplinar de determinadas categorias. Trata-se de servidores públicos que possuem por dever

funcional a exposição a determinados riscos, o que torna mais difícil a permissão de que deixem

de exercer o seu mister com base nessa descriminante. Um fiscal de rendas deve autuar a

empresa sonegadora, ainda que submetido a pressões. Um advogado público deve dar parecer

de acordo com a mais estrita legalidade, ainda que o agente político deseje o contrário. Assim,

como regra, salvo situações excepcionalíssimas, eles não podem se eximir de exercer suas

funções (ou fazê-las em desacordo com o direito) sob alegação de que estavam sob risco (para

a proteção de bem próprio). É por isso que as garantias funcionais são algo tão caro aos

servidores públicos. Não obstante, é possível vislumbrar a hipótese, por exemplo, de servidor

público que, dentro de sua repartição, ao se deparar com um incêndio, se vê obrigado a arrombar

uma porta para salvar a própria vida. A rigor, ele danificou um bem público e poderia ser

processado por isso. No entanto, sua conduta terá a antijuricidade afastada devido à

descriminante em comento.

149 Cite-se: “Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos: [...] VII – ofensa física, em serviço, a servidor

ou a particular, salvo em legítima defesa própria ou de outrem;” (BRASIL. Lei n. 8.112/90, de 11 de dezembro

de 1990).

Page 92: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

92

Por outro lado, há casos em que servidores praticarão atos formal e materialmente

típicos, mas que terão sua antijuridicidade afastada, não por se tratar de um estado de

necessidade, mas por se tratar de um dever legal ou do exercício regular de um direito, ou seja,

a autorização advém de um outro permissivo150. Não obstante não se exija que essas pessoas se

tornem heróis, arriscando suas vidas de forma desmedida, certo é que determinadas categorias

de servidores terão, por dever funcional, a obrigação de submissão a riscos normalmente não

imputáveis a um cidadão comum151.

O exercício regular de um direito e o estrito cumprimento de um dever legal estão

previstos no inciso III do art. 23 do Código Penal. No que se refere ao direito disciplinar,

possível seccionar os institutos para dizer que o primeiro se refere à prática de uma conduta não

relacionada diretamente com o exercício da função152, ou seja, trata-se da prática de ato que, a

princípio, representaria uma falta funcional, não fosse a existência de um permissivo. Por

exemplo, alguns estatutos permitem o chamado abono de faltas, ou seja, que o servidor público

(dentro de um limite estabelecido em lei) possa se ausentar de suas funções por um dia, desde

que faça uso de referido direito. Ou seja, não haverá que se falar em falta funcional, pois o

servidor, em verdade, exerce um direito seu. Doutra ponta, o estrito cumprimento do dever legal

se refere aos casos nos quais a prática do fato típico se refere ao próprio exercício da função

como, por exemplo, a hipótese de um policial militar que exerce a função de controle de

150 Sobre essa problemática, valiosa a lição do professor Ricardo Marcondes Martins: “A alegação do estado de

necessidade é total ou parcialmente obstada nos casos de posições especiais de dever, nos quais é próprio do

exercício funcional do agente o dever de proteger a comunidade. Soldados, bombeiros, policiais, médicos,

juízes, não podem invocar a situação de perigo, própria do exercício da profissão, para se desincumbir de seu

dever. Além disso, quando o ordenamento jurídico autoriza expressamente o agente público a exercer

determinada conduta, se ela for típica, a antijuridicidade estará excluída: (a) pelo exercício regular de direito,

se a conduta não se referir ao próprio exercício funcional; (b) pelo estrito cumprimento do dever legal, se a

conduta autorizada disser respeito ao próprio exercício da função” (MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos

dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 630).

151 Sobre o tema, cite-se Clarissa Sampaio Silva: “O exercício das funções de militar, quer durante uma guerra,

quer em operações de defesa do território; de polícia, em especial aquela destinada a assegurar a ordem pública,

do corpo de bombeiros, responsável pela execução de atividades de defesa civil, envolvem, inelutavelmente

situações que implicam risco à integridade física e à vida de seus integrantes. Mais ainda, o cumprimento dos

deveres funcionais exige que tais agentes, se preciso for, coloquem em risco a própria vida, tal como consta,

por exemplo, do Estatuto das Forças Armadas. Trata-se, entretanto, de exigência que somente poder ser feita

dentro de uma relação específica, sendo de todo impossível cogitá-la não apenas para os demais administrados,

quanto para os demais agentes públicos, porque feita em virtude dos mais elevados objetivos perseguidos pelas

instituições respectivas, como, no caso das Forças Armadas, a defesa da Pátria, com a utilização de medidas

que forem necessárias” (SILVA, Clarissa Sampaio. Direitos fundamentais e relações especiais de sujeição. O

caso dos agentes públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 219).

152 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 630.

Page 93: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

93

distúrbios urbanos e acaba tendo que praticar algum tipo de lesão corporal em populares

ensandecidos que tentam linchar um delinquente. Obviamente o uso dessa força só é

cumprimento do dever legal enquanto “estrito”, ou seja, na exata medida necessária para o

alcance do resultado, de maneira que qualquer excesso já expõe o agente público aos rigores do

direito disciplinar.

Dessa maneira, observa-se que o sistema traz hipóteses em que, não obstante o servidor

público pratique ato formal e materialmente típico, não poderá ser processado por aquela

conduta. Não obstante as escolhas feitas pelo legislador, no sentido de se tolerar, como no caso

da legítima defesa, ou habilitar, como no estrito cumprimento do dever legal, a prática de

determinadas condutas, por reconhecer que o convívio em sociedade (sendo a vida funcional

na Administração Pública um microcosmo disso) afasta a subsunção formal e absoluta das

condutas aos tipos, de maneira que é possível falar até mesmo na existência de causas

supralegais de exclusão da antijuridicidade153, qual seja o afastamento da ilicitude de

determinados comportamentos com base nos valores consagrados no Ordenamento Jurídico,

valores esses projetados no plano jurídico sob a forma de princípios, tema que será objeto de

estudo mais aprofundado em momento oportuno.

3.3.3 A culpabilidade

Primeiramente, importante fixar que a culpabilidade ora tratada não se confunde com o

chamado “princípio da culpabilidade”, princípio referenciado por alguns autores, que veda a

responsabilidade objetiva em âmbito penal, ou seja, para que determinada conduta seja típica

153 Sobre o tema ensina Claus Roxin: “[...] do exposto conclui-se que o postulado da determinação legal não vige

como princípio estrutural desta categoria do delito, mas só como limite da modificabilidade dos princípios

sócio-regulativos. Isso significa: já que os direitos de intervenção se originam de todos os ramos do direito, e,

como o demonstra o exemplo do estado de necessidade supralegal, também podem ser deduzidos dos princípios

gerais do direito positivo, ainda que inexista expressa previsão legal, a evolução de outros ramos do direito,

independente do princípio nullum-crimen, influi de modo direto sobre a extensão da punibilidade, sem que o

Código Penal precise ser modificado. A ‘lex’ do art. 103, parágrafo 2º, da Lei Fundamental não é, como no

tipo, a lei penal, mas a totalidade da ordem jurídica. A dinâmica das causas de justificação acarreta, por sua

própria natureza, um relaxamento no princípio nullum-crimen. A mutabilidade das medidas ordenadoras

jurídicas encontra, porém, seu limite no princípio da determinação, já que é inadmissível revogar um princípio

legal de regulação através de interpretação, ou limitá-lo sem base legal, por considerações de política criminal”

(ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar,

2012, p. 63-64).

Page 94: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

94

(considerando que o dolo e a culpa fazem parte do tipo), deverá o agente ter se portado, pelo

menos, de maneira culposa154.

No sentido que analisaremos esse signo, explicamos que, além de ser típico e

antijurídico, para que o cidadão que praticou determinada conduta seja apenado, faz-se

necessário que o fato sob análise (sua conduta qualificada) também seja culpável, quer dizer,

que aquela conduta, sob a perspectiva das condições do autor, não se justifique perante o direito.

É esse o terceiro requisito do delito ou infração, o qual, na definição de Luiz Flávio Gomes e

Alice Bianchini, representa o “juízo de reprovação (de censura) que recai sobre o agente que

podia se motivar de acordo com norma e agir de modo diverso, conforme o Direito”155. Ou seja,

trata-se da “reprovabilidade”156 a que se sujeita aquela pessoa que poderia ter se portado de

maneira diversa. A contrario sensu, impõe-se exclusão da sanção157 quando constatado que a

pessoa não poderia adotar outra conduta senão aquela típica e antijurídica.

Trata-se, assim, da capacidade que tinha o agente de entender sua conduta e de sua

liberdade de disposição sobre ela, de sorte que é possível afirmar que a culpabilidade tem na

autodeterminação seu fundamento antropológico, ou seja, as condutas são imputáveis a

indivíduos livres e capazes de se portar de acordo com suas convicções, de forma que é excluído

o determinismo como elemento apto a justificar a incidência do sistema de aplicação de sanções

154 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte geral.

11 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 470.

155 GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Curso de direito penal. Parte geral. Arts. 1º a 120. Salvador:

JusPodium, 2015, p. 423.

156 Importante notar que parte da doutrina administrativista adota a expressão “reprovabilidade” para tratar o

presente instituto. Por todos, cite-se Daniel Ferreira: “A reprovabilidade consiste na última parte do conceito

estratificado de infração administrativa e se revela, aqui pleonasticamente, como a reprovação do injusto

administrativo (= o anti-normativo não justificado; o comportamento substancialmente típico e antijurídico).

Mais bem explicando, pode ser que haja conduta, através de uma ação vidente. É possível que esta seja típica,

de sorte que se amolde com perfeição à moldura legal, preenchendo-a substancialmente em seus aspectos

objetivo e subjetivo – quando necessário. Afinal, é bastante provável, até mesmo, que não haja a interferência

neutralizante de qualquer causa de justificação. A despeito disto tudo, ainda pode ser que a infração não se dê”

(FERREIRA, Daniel. Teoria geral da infração administrativa a partir da Constituição Federal de 1988. Belo

Horizonte: Fórum, 2009, p. 295).

157 A respeito do fato de se tratar de hipótese de exclusão da sanção, Regis Fernandes de Oliveira: “Nas infrações

que são praticadas com a consideração do elemento subjetivo (culpabilidade) ocorrem hipóteses em que, ainda

que os comportamentos sejam típicos e antijurídicos, não se aplica a sanção, pois há hipóteses de exclusão da

sanção. Por exemplo: numa infração de trânsito onde havia faixa assinalada de pedestre e, posteriormente, é

ela mudada de lugar e o particular invade a faixa atual de proibição, pensando que invadira a anterior (não mais

em vigor), que já não vale, como marcação de vedação, pode ele demonstrar ter agido com erro. O erro pode

eliminar o elemento subjetivo e excluir a culpa” (OLIVEIRA; Regis Fernandes de. Infrações e sanções

administrativas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 91).

Page 95: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

95

penais, por se considerar que “se suprimirmos a liberdade de vontade, veremos que o nosso

Código Penal é inexplicável”158.

Referido conceito também se projeta sobre o plano sancionatório-administrativo, haja

vista que a impossibilidade de imposição de um juízo de reprovação sobre o cidadão que comete

uma infração administrativa (ou sobre o servidor público que comete infração disciplinar)

também deve ser considerada quando da formação do juízo punitivo pelo agente responsável.

Segundo Ricardo Marcondes Martins, consiste a culpabilidade num “juízo de valor negativo,

de reprovação do agente público pela realização não-justificada de uma falta disciplinar. Esse

juízo tem por fundamento o poder de agir conforme o direito”159.

Neste sentido, a doutrina tradicional, baseada nos dispositivos trazidos pelo Código

Penal pátrio, reúne algumas situações capazes de afastar a culpabilidade. São elas: a)

inimputabilidade; b) inevitável desconhecimento da proibição; c) inexigibilidade de conduta

diversa (coação moral irresistível ou obediência hierárquica). Serão elas estudadas a seguir.

3.3.3.1 A imputabilidade

A imputabilidade se refere às condições psíquicas do agente de ter consciência da

conduta que pratica. Em sentido diametralmente oposto, a inimputabilidade se refere justamente

àquele agente que não possui plenas faculdades mentais para valorar os seus atos. Assim, uma

criança de dez anos que, movida por sentimento de repulsa, empurra seu irmão escada abaixo,

vindo este a falecer, não pode ser penalmente responsabilizada por aquela conduta. Enquadra-

se esse agente dentre os chamados inimputáveis, pessoas que não possuem total discernimento

sobre as consequências de suas ações, as quais, por opção política do legislador, são isentas da

aplicação de uma sanção. É importante esclarecer que o Código Penal brasileiro adota o sistema

biológico, ou seja, basta que o indivíduo seja menor de 18 (dezoito) anos para que sua

inimputabilidade seja presumida de forma absoluta160. Da mesma forma, um louco que, em

estado de delírio, ataca um transeunte, caso comprovada sua total ausência de discernimento

sobre a própria conduta, não poderá ser apenado criminalmente. Ele até poderá sofrer outros

158 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte geral.

11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 544.

159 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 630.

160 GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Curso de direito penal. Parte geral. Arts. 1º a 120. Salvador:

JusPodium, 2015, p. 444-445.

Page 96: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

96

tipos de medidas restritivas (tal como a internação como medida de segurança), mas não se

tratará de uma sanção penal, na natureza das analisadas neste trabalho.

Transpondo esse instituto para o direito disciplinar é forçoso compreender que o

servidor público que descumpre deveres funcionais por não se encontrar em pleno gozo de suas

faculdades mentais não pode ser punido por atos que tenha praticado nessa condição. A pena

tem como função primordial desestimular a prática de infrações. Se a parte sequer tem noção

de que pratica um ato contrário ao direito, qual seria o sentido em puni-la161?

Ressalve-se que, de fato, existem exames admissionais a que se submetem os candidatos

que desejem ingressar no serviço público. Caso eventual moléstia se manifeste quando do

exame de ingresso, não deverá ser o candidato aprovado ainda nessa fase do concurso. Caso se

manifeste durante o estágio probatório, cumpridas as formalidades legais, poderá ele não ser

confirmado na respectiva carreira. Todavia, referidos atos não representam sanções, mas a

aferição da ausência de condições biopsicológicas do agente para desempenhar a importante

função pública com base em um fato objetivo, qual seja a grave moléstia que lhe acomete e

compromete o desempenho de suas funções. Não se trata aqui de uma análise genérica acerca

do desempenho das funções do agente como requisito para confirmação na carreira (o que dá

azo a grande subjetividade e compromete a impessoalidade do sistema), mas da ausência de um

requisito específico, delimitado e palpável, qual seja a sua inimputabilidade devidamente

atestada por profissional habilitado e avaliada mediante processo administrativo.

No entanto, não obstante o necessário atendimento a esses requisitos, pode acontecer de

referida condição se manifestar no agente após anos de vivência funcional. Não são poucos os

casos de pessoas que manifestam sintomas de esquizofrenia, transtorno bipolar ou depressão,

v.g., após determinada idade. Caso essas pessoas, venham a descumprir determinados deveres,

como por exemplo, os deveres de assiduidade ou de urbanidade, não deverão ser apenadas tal

como se qualquer outro servidor em condições saudáveis. Elas poderão, por exemplo, ser

afastadas para tratamento de saúde ou mesmo aposentadas por invalidez, mas não deverão ser

161 Sobre a função da pena, cite-se a lição de Ricardo Marcondes Martins: “A finalidade da pena é desestimular a

prática da infração, por isso não há sentido em punir o agente público que praticou falta funcional quando

acometido por grave doença mental. Se o agente não tinha capacidade de discernimento, não pode sofrer a

sanção disciplinar, por falta de culpabilidade, vale dizer: agente público portador de doença mental que, incapaz

de entender o caráter ilícito de sua conduta, pratica falta funcional não deve ser demitido, mas aposentado.

Enfim: a inimputabilidade do agente exclui a sua culpabilidade e, assim, sua responsabilidade disciplinar”

(MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 632).

Page 97: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

97

punidas por uma condição à qual não deram causa e que comprovadamente lhes retira o pleno

discernimento acerca dos fatos. Não obstante, pode ainda ser que a moléstia que acomete o

servidor tenha se originado por conduta a ele (a princípio) imputável. É o caso, por exemplo,

do alcoolismo ou do vício em entorpecentes. Apesar disso, referidas condições já são hoje

reconhecidas como doenças, de maneira que o servidor público que as detenha não deverá ser

punido, mas tratado (ou aposentado, a depender da gravidade). Assim, por exemplo, o advogado

público que se encontra acometido de profunda depressão e que, até que se constate sua

condição, tenha perdido diversos prazos importantes, não deverá ser punida por referidos

equívocos funcionais, tal como provavelmente seria se estivesse numa condição de higidez

psíquica. A grande dificuldade nesses casos se encontra no caráter cíclico162 de referidas

moléstias, de maneira que se torna difícil identificar se o servidor cometeu aqueles equívocos

durante um estado de vulnerabilidade ou se estava em sua condição de total discernimento. Isso

impõe a necessidade de grande sensibilidade por parte da comissão responsável por apurar

eventual infração, a fim de que não sejam cometidas injustiças contra um servidor que, naquele

momento, precisava de apoio (inclusive profissional). Na dúvida, deve-se absolver o servidor,

por respeito aos valores consagrados na Carta da República de 1988, que impõem respeito à

dignidade da pessoa humana e pressupõem a inocência do agente no âmbito do direito punitivo.

3.3.3.2 Inevitável desconhecimento da ilicitude

Outro aspecto digno de nota, dentro das causas de exclusão da culpabilidade, é o

inevitável desconhecimento da ilicitude. Ou seja, após verificar que o agente era, de fato,

imputável, deverá o juiz verificar se ele possuía plena ou, pelo menos, potencial consciência da

ilicitude do ato que praticava163. Importante ressalvar que nos referimos a conhecimento efetivo

162 Sobre essa dificuldade, pondera Daniel Ferreira: “[...] o problema reside no reconhecimento de estados

especiais de incapacidade, que podem ser transitórios e episódicos. Depressão é um estado que pode ser

transitório ou permanente, e ainda, pode se apresentar como surto (portanto episódico). Importa reconhecer,

neste escopo, que eventual falta ao serviço (mesmo que reiterada) pode não configurar infração disciplinar,

pela reduzida capacidade de querer. O depressivo usualmente não quer nada; salvo dormir. Portanto, a

investigação da ausência da capacidade de entender e de querer deve se tornar dever de ofício em processos

administrativos disciplinares instaurados, por exemplo, para detectar e avaliar (estranho e reiterado)

descumprimento do dever de assiduidade e que pode desembocar em inassiduidade habitual ou abandono de

cargo. Na primeira hipótese, a investigação poderá redundar no reconhecimento da não reprovabilidade da

conduta, por falta de substancialidade do tipo objetivo (por exemplo); nas duas últimas, a resposta se dará no

entorno da constatação de ausência da tipicidade subjetiva” (FERREIRA, Daniel. Teoria geral da infração

administrativa a partir da Constituição Federal de 1988. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 299).

163 GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Curso de direito penal. Parte geral. Arts. 1º a 120. Salvador:

JusPodium, 2015, p. 453.

Page 98: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

98

ou potencial, pois o agente não pode alegar desconhecimento deliberado acerca das proibições,

a fim de praticar ilícitos sem qualquer apenamento. Ou seja, apenas quando for realmente

justificável, fato embasado em algo superior a sua capacidade de conhecimento, é que poderá

o indivíduo ser eximido do elemento culpabilidade em razão do não conhecimento da sua

proibição. Essa excludente é prevista no art. 21 do Código Penal, que se refere ao erro sobre a

ilicitude do fato para afirmar que “o desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a

ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena”.

Referida causa de exclusão da culpabilidade encontrará eco também no direito

disciplinar, de maneira que o erro de proibição previsto no art. 21 do Código Penal será aplicado

por analogia a esse ramo, mas será aplicada apenas de maneira excepcional, pois “o agente

público tem o dever de conhecer as normas que regem as suas funções”164.

Sobre o tema, importante a doutrina do professor Daniel Ferreira, em sua obra Teoria

Geral da Infração Administrativa, que traz o chamado “estado de erro” como figura autônoma

dentro das causas excludentes da culpabilidade. Segundo o autor, essas espécies não se

confundiriam com o desconhecimento da ilicitude, pois só se erra sobre aquilo que se conhece.

Dessa maneira, pressupõe-se que o agente tinha conhecimento da norma, mas errou quando da

sua interpretação. Inclui nessa categoria o “erro de proibição” e o “erro de compreensão geral”

para afirmar que o primeiro se refere ao “equívoco a partir daquilo que se supõe legítimo,

conforme o direito” 165, ao passo que o segundo se referia àquelas situações em que, devido ao

corriqueiro uso de conceitos gerais indeterminados, não há uma concepção clara acerca da

proibição, de maneira que a formação dessa noção pressupõe aspectos culturais de cada lugar,

de sorte que poderá ser aplicada, por exemplo, de forma diversa em cada unidade da federação,

dada a diversidade cultural de nosso país166. Concordamos com a materialidade da doutrina do

nobre professor, ou seja, consideramos que, de fato, é alegável o “estado de erro”, mas

reputamos que, no direito disciplinar ele terá uma feição que poderá se confundir, em

determinados casos, com o próprio inevitável desconhecimento da ilicitude.

A afirmação acima é explicada pelo fato de que, em âmbito disciplinar, conforme já

ressaltamos, é comum a utilização de tipos formais abertos, com o uso de conceitos gerais e

164 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 632.

165 FERREIRA, Daniel. Teoria geral da infração administrativa a partir da Constituição Federal de 1988. Belo

Horizonte: Fórum, 2009, p. 311.

166 Idem, p. 313.

Page 99: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

99

indeterminados na redação, de maneira que o aperfeiçoamento da norma dependerá de forte

tarefa hermenêutica do hierarca (não adentraremos neste momento na validade dessa norma,

pois é tarefa sobre a qual nos debruçaremos no próximo capítulo). Dessa sorte, dada a abertura

do tipo formal, é possível que seja editada nova norma a partir da sua aplicação ao caso

concreto, de maneira que passe a incidir, dali para frente, tipificação totalmente diversa daquela

que era consagrada anteriormente167. Em casos como esses, onde a conduta antes vista com

naturalidade, passa a ser interpretada como ato ilícito a partir de determinado momento, não

poderá o agente ser atingido abruptamente pela nova interpretação e, a partir dela, punido. O

Ordenamento Jurídico pátrio consagra o princípio da não surpresa, de maneira o agente tem o

direito de saber quais condutas por ele praticadas são consideradas faltas funcionais antes de

qualquer sancionamento. É o que afirma, em contexto ligeiramente diverso, o professor Daniel

Ferreira ao justificar a vedação à aplicação imediata de novas concepções disciplinares, quando

afirma que “o que até ontem era (ou parecia fortemente) permitido (e a partir de um razoável

juízo de subsunção) não pode, de um momento para outro, e sem justo motivo, passar a

proibido; quanto o mais com efeitos retroativos”168.

Para reforçar o argumento, trazemos um exemplo: imagine-se o trabalho em

determinada repartição pública na qual o edital do concurso de ingresso, plasmado na redação

do estatuto dos servidores, previa que os servidores teriam carga horária de trinta horas

semanais. Nenhum dos dois jamais especificou a jornada diária e não há regulamento que trate

disso. Aquela repartição se resume a executar tarefas burocráticas e não realiza atendimento ao

público. À vista disso, alguns servidores optam por trabalhar de segunda a sexta, por seis horas

diárias, cumprindo integralmente a carga estabelecida. Já outros, optam por comparecer à

repartição por oito horas em determinados dias da semana, alternando essa carga de trabalho

com jornadas de quatro horas em outros dias, também cumprindo a integralidade da carga

semanal. No entanto, a partir de determinada data, a chefia daquele setor é modificada e, ao

analisar o prontuário dos servidores, o novo chefe conclui que alguns deles, não obstante

tenham cumprido a totalidade da carga semanal, não respeitaram a jornada diária da instituição,

haja vista que saíram mais cedo em determinados dias da semana ou chegariam mais tarde

167 É importante ressalvar que o professor Daniel Ferreira também faz uso da doutrina dos conceitos gerais

indeterminados para se referir ao estado de erro, mas, ressaltamos, os classifica como espécies autônomas de

causa de exclusão da culpabilidade, as quais não se confundem com o inevitável desconhecimento da ilicitude

(FERREIRA, Daniel. Teoria geral da infração administrativa a partir da Constituição Federal de 1988. Belo

Horizonte: Fórum, 2009, p. 311).

168 Idem, p. 312.

Page 100: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

100

noutros (justamente aqueles dias em que o servidor passaria apenas quatro horas na repartição).

Assim, desrespeitariam o dever de pontualidade previsto no estatuto. Diante disso, determina a

apuração de eventuais faltas funcionais daqueles servidores. Pensamos que, em tese, é possível

à chefia de determinado órgão interpretar a lei para fixar a hora de entrada e saída de seus

servidores. Todavia, refletimos, é razoável impor sanção disciplinar com base em novel

interpretação da qual as partes sequer tinham conhecimento? Pensamos que, justamente, se trata

de hipótese de aplicação do princípio da não surpresa de modo que a chefia até poderá trazer

suas considerações acerca da pontualidade dos servidores, mas não está autorizada a puni-los

com base em conduta praticada quando do estado de total tolerância dela por parte da própria

Administração Pública.

Dessa maneira, é recomendável que a alteração de posições hermenêutico-disciplinares

(frisamos a duvidosa constitucionalidade dessa conduta) seja amplamente divulgada nas

respectivas repartições, a fim de, a partir disso, considerar de conhecimento de todos os

servidores que determinada conduta, antes aceita ou tolerada, é hoje considerada falta funcional

dentro daquele âmbito. E, somente a partir disso, é que poderão os servidores ser avaliados sob

o novo parâmetro.

Diante do exposto, concluímos que o inevitável desconhecimento da ilicitude da

conduta poderá se basear tanto no total desconhecimento do tipo formalmente previsto (hipótese

mais difícil de ocorrer no mundo dos fatos, é verdade), como no desconhecimento da

interpretação que se dá de determinada norma preexistente (à potencial ilicitude, portanto), a

qual poderá afastar o sancionamento de determinada conduta praticada, haja vista a inexistência

de culpabilidade.

3.3.3.3 Inexigibilidade de conduta diversa: coação moral irresistível, obediência

hierárquica e causas supralegais

Outro ponto a ser ressaltado, ainda no que tange às causas excludentes de culpabilidade,

é a chamada “inexigibilidade de conduta diversa”, quando o juiz ou hierarca deverá analisar a

normalidade ou anormalidade das circunstâncias em que foi praticado o ilícito. A depender da

anormalidade em que praticada a conduta, pode ser excluída a culpabilidade169.

169 GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Curso de direito penal. Parte geral. Arts. 1º a 120. Salvador:

JusPodium, 2015, p. 460.

Page 101: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

101

Dentre essas situações ditas anormais, o Código Penal se refere, em seu art. 22, à coação

moral irresistível e à obediência hierárquica a ordem não manifestamente ilegal.

Comecemos pela coação moral irresistível. Esta se refere às situações nas quais, em

razão de grave ameaça, o agente (no caso, vítima direta ou indireta da coação) não consegue se

portar de acordo com suas próprias convicções. Ou seja, não obstante tenha conhecimento da

tipicidade e da antijuridicidade da conduta que irá praticar, o indivíduo não pode resistir à

atemorização que lhe é imposta. Conforme acentua a doutrina, essa coação deve ser realmente

irresistível, e não se basear em mero termo reverencial. Ressalvamos que, não obstante possa

ser física ou moral, a coação física não se enquadra no presente tópico, pois, havendo coação

física, sequer existirá, em termos técnicos, conduta do agente, devido à ausência de ato

voluntário170.

Em relação aos servidores públicos e ao direito disciplinar, ressaltamos o que já foi dito

quando nos referimos ao estado de necessidade, valendo-nos da teoria do professor Ricardo

Marcondes Martins, para afirmar que a algumas categorias, devido a sua especial situação de

responsabilidade, é mais difícil que possam se valer desta causa excludente da culpabilidade171.

É o caso, por exemplo, do advogado público que não poderá se negar a dar um parecer de acordo

com a legalidade, sob o fundamento de que estaria sofrendo ameaças de determinado indivíduo.

Ele deverá desempenhar suas funções de acordo com o interesse público, de modo que

concluímos que é preferível fortalecer suas prerrogativas a elastecer a presente categoria.

Já a obediência hierárquica, se refere ao cumprimento de ordem ilícita. Trata-se de

excludente de culpabilidade que só se aplica às relações de direito público (exclui, portanto, as

relações de caráter familiar ou religioso)172, sobre as quais ressalvamos que se diferenciam do

estrito cumprimento do dever legal, pois este se refere a uma ordem baseada em lei, a qual

exclui a tipicidade, vez que “quem cumpre ordem legal está agindo dentro da normalidade

jurídica”, ou seja, “Não pratica fato típico”173; a obediência hierárquica, por sua vez, se refere

170 GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Curso de direito penal. Parte geral. Arts. 1º a 120. Salvador:

JusPodium, 2015, p. 460.

171 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 633.

172 GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Curso de direito penal. Parte geral. Arts. 1º a 120. Salvador:

JusPodium, 2015, p. 462.

173 Idem, ibidem.

Page 102: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

102

ao cumprimento de uma ordem, de per si, ilícita174. Ou seja, eventual ilicitude não é uma

consequência do excesso no cumprimento da ordem (por exemplo, um policial que usa da força

física para efetuar uma desocupação, mas acaba por exceder seu dever funcional, ferindo

ilicitamente os cidadãos), mas a própria essência da ordem. Não obstante, para que incida como

forma excludente da culpabilidade, a ordem não poderá ser manifestamente ilegal, ou seja, não

poderá, sob vastos parâmetros, fugir às regras de razoabilidade da sociedade comum, como, por

exemplo, a prática de tortura ou a execução de presos. Caso se trate de casos tais, deverão ser

punidos tanto o hierarca quanto o subordinado.

Por derradeiro, destacamos a existência de outras causas de exclusão da culpabilidade.

São as causas supralegais, assim chamadas por não possuírem previsão legal expressa175.

Assim, além daquelas hipóteses trazidas na literalidade da norma, é possível que o julgador, ao

se deparar com determinado caso, possa afastar a culpabilidade daquele indivíduo devido à

inexigibilidade de conduta diversa. Sobre isso, diga-se que é necessário preencher as lacunas

legislativas com a sistematicidade típica que a ciência do direito é capaz de oferecer, a fim de

não torná-lo rígido em excesso, em desfavor das garantias do cidadão e da racionalidade do

próprio sistema. Segundo o professor Ricardo Marcondes Martins, a inexigibilidade de conduta

diversa é “um princípio jurídico implícito, segundo o qual em condições anormais o sistema

jurídico não exige esforços não-razoáveis para evitar a prática do injusto”176.

Transpondo esse conceito para o direito disciplinar, é compressível, então, que a

Administração Pública possa identificar a ausência de justa causa para processar e punir

servidor que deixou de praticar determinado ato em razão da total ausência de condições no

plano fático. É o caso, por exemplo, do advogado público exemplar, que jamais cometeu

qualquer falta funcional, mas, devido a uma “explosão de demanda” se vê assoberbado com

elevação drástica no número de peças processais que deve elaborar. A Administração Pública

não possui orçamento para o ingresso de novos servidores ou procuradores, restando ele

abandonado à própria sorte. Não há papel para imprimir, o parque tecnológico é antigo e

defasado e o acesso à rede mundial de computadores, meio pelo qual ele poderia realizar o

protocolo de suas peças processuais, é insuficiente. Não obstante todo o esforço, este acaba por

174 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 633.

175 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar,

2012, p. 80-81.

176 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 634.

Page 103: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

103

não observar o prazo para a apresentação de uma defesa. Não há no seu estatuto qualquer

dispositivo que exclua a tipicidade ou a antijuricidade da conduta. Esse ato também não se deu

com base em coação moral irresistível ou obediência hierárquica. Não obstante, é razoável

invocar a inexigibilidade de conduta diversa com base em fundamento supralegal, haja vista

que, no caso, não houve qualquer ato imputável àquele bom servidor. Não há conduta a ser

inibida. Pelo contrário, aquele servidor apenas agiu de acordo com seu dever funcional.

Todavia, não conseguiu cumpri-lo na integralidade devido a falha da própria Administração.

Dessa maneira, é defensável o afastamento da culpabilidade com base em fundamento

supralegal.

3.3.4 A punibilidade

A punibilidade, segundo a doutrina à qual nos filiamos, não constitui o delito, de

maneira que é possível afirmar que “a punibilidade não é uma característica do delito, e sim um

resultado de sua existência”177. Dessa maneira, uma vez identificado o fato típico e ilícito, sem

qualquer excludente de culpabilidade, poderá o indivíduo ser punido por sua conduta, desde

que atendidos alguns requisitos. Esses requisitos, analisados posteriormente à constatação da

configuração do delito, são englobados no que se chama punibilidade.

Com efeito, se refere a doutrina à existência de condições objetivas de punibilidade e à

ausência de causas extintivas de punibilidade. Essas condições objetivas se referem a

circunstâncias externas à pessoa do agente e ao crime em si, cuja existência é imprescindível

para a regular aplicação da pena. É o caso, por exemplo, do devido processo legal. Já as causas

extintivas da punibilidade, caso ocorram, obstarão a aplicação da pena. Ou seja, é necessário

que inexistam para o regular sancionamento do indivíduo que cometeu ato delituoso. Segundo

o art.107 do Código Penal, que traz um rol exemplificativo, extingue-se a punibilidade pela

morte do agente; pela anistia, graça ou indulto; pela retroatividade de lei que não mais considera

o fato como criminoso; pela prescrição, decadência ou perempção; pela renúncia do direito de

queixa ou pelo perdão aceito, nos crimes de ação privada; pela retratação do agente, nos casos

em que a lei a admite; pelo perdão judicial, nos casos previstos em lei. Passemos a analisar os

pressupostos em tela de forma mais detida.

177 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte geral.

11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 662.

Page 104: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

104

3.3.4.1 Condições objetivas de punibilidade

Conforme dito, as condições objetivas da punibilidade consubstanciam-se em certos

requisitos, alheios ao próprio delito, os quais devem ser observados pelo Poder Público para

que este possa regularmente apenar o indivíduo infrator.

No Direito Disciplinar, destacam-se como condições objetivas da punibilidade do

agente público que cometeu falta funcional, a emissão de parecer prévio pelo órgão jurídico

competente e a instauração de regular processo em que seja garantido o pleno exercício de

defesa ao acusado178.

3.3.4.1.1 Elaboração de parecer pelo órgão jurídico

Sobre a elaboração de parecer pelo órgão jurídico competente, destacamos que tal

procedimento se presta ao controle interno dos atos da Administração Pública, haja vista que,

com o fito de verificar a regularidade do processo disciplinar em curso, o qual poderá impor

grave sancionamento ao servidor acusado, é salutar a avaliação e emissão de parecer pelo órgão

técnico, apto a analisar a legalidade da medida prestes a ser tomada. Essa obrigatoriedade cria

um duplo controle e maior procedimentalidade, de modo a respeitar as garantias do servidor

acusado, bem como a própria regularidade da atuação estatal. Além disso, fornece subsídios e

argumentos para a comissão processante, seja para a condenação, seja para a absolvição do

acusado.

3.3.4.1.2 Processo disciplinar

Sobre a existência de processo em que seja garantido o pleno direito de defesa ao

acusado, a fim de delimitar o objeto face à legislação esparsa (os entes federativos possuem

competência para legislar sobre direito disciplinar de seus servidores), nos utilizaremos dos

conceitos trazidos na Lei Federal n. 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores

públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.

Assim, nos termos do art. 143 da Lei n. 8.112/90, “a autoridade que tiver ciência de

irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante

178 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 635.

Page 105: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

105

sindicância ou processo administrativo disciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa”. Neste

estudo nos utilizamos da expressão-gênero “processo disciplinar” para referirmo-nos a ambas

as espécies, vez que essas são bastante semelhantes, diferindo basicamente no fato de que a

sindicância se presta ao processamento e julgamento de faltas cuja pena será a de advertência

ou suspensão de até 30 (trinta) dias, ao passo que o processo administrativo disciplinar se

debruça sobre os fatos que possam acarretar penalidade de superior gravidade.

Gera certa confusão na doutrina o fato de que referida legislação também chama de

“sindicância” o ato nominado comumente em outros diplomas legislativos de “apuração

preliminar”, o qual se presta tão somente a verificar se existe a materialidade suficiente para a

instauração da respectiva sindicância ou processo administrativo disciplinar. Diante dessa

dualidade, ensina Romeu Felipe Bacellar Filho que o termo “sindicância” terá duas acepções

possíveis dentro do direito disciplinar, quais sejam: “(a) dirigida a simples atividade

investigatória, sem acusados ou litigantes, a sindicância comporta-se como procedimento; (b)

na presença de litigantes e acusados, a sindicância materializa-se como processo (procedimento

em contraditório)”179. Assim, podemos falar em sindicância-investigação e em sindicância-

processo.

Diante do exposto, verificamos o seguinte: constatada a existência de falta funcional

deverá a autoridade competente apurar (ou determinar a apuração) os indícios de autoria e

materialidade daquela, o que normalmente se dá por meio de sindicância-investigação,

realizada com o fito de “promover uma apuração sumária dos fatos, buscando fornecer os

elementos básicos para a instauração do processo disciplinar”180.

Neste momento, a rigor, não existem acusados e o procedimento se presta apenas a

apurar aprioristicamente os fatos, semelhante ao inquérito que precede a ação penal. Por essa

razão, é admissível a supressão ou redução do contraditório em seu bojo, haja vista seu caráter

de sumariedade. Ora, o máximo que pode decorrer da sindicância-investigação é a determinação

da instauração do respectivo processo disciplinar, ou seja, esse procedimento não acarretará a

179 BACELLAR FILHO; Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar. 2. ed. São Paulo: Max Limonad,

2003, p. 94-95.

180 LESSA, Sebastião José. Do processo administrativo disciplinar e da sindicância. Brasília: Brasília Jurídica,

1994, p. 45.

Page 106: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

106

punição do servidor público181. Não obstante não haja contraditório, é possível que no seu bojo

ocorra a arguição e oitiva de pessoas que potencialmente poderão vir a ser acusadas em

posterior (e eventual) processo. Diante disso, uma vez arguido de qualquer forma, é razoável

que o cidadão que o foi possa solicitar informações, vez que, não obstante ainda não haja a

obrigatoriedade de comunicação dos atos naquele momento, subsistirá ao Estado o dever de

prestar informações aos possíveis interessados (salvo os casos em que regularmente se admite

sigilo).

Ressaltamos que a sindicância-investigação busca, em essência, apurar a existência de

justa causa para a instauração de um processo disciplinar. Mauro Roberto Gomes de Mattos

conceitua com exatidão a justa causa ao afirmar que é ela “a condição mínima exigida pela

norma legal, pela jurisprudência e pela doutrina para que não ocorra uma acusação sem

fundamento e temerária, movida por interesses que não são jurídicos, totalmente desatrelada de

provas e de embasamentos sérios”, tendo a lei processual adotado a “teoria da substanciação”

segundo a qual “não basta ao autor afirmar a existência da relação jurídica, sendo também

necessária a demonstração inicial do fato concreto que deu azo à sua pretensão”182. Assim, para

se instaurar qualquer processo disciplinar, necessário se faz apurar com esmero, ainda que em

procedimento sumário, indícios suficientes de materialidade e autoria da infração, bem como

da sua subsunção a algum tipo legal.

Ademais, lembramos que o direito disciplinar, apesar da importância maior dada ao

direito penal ao longo da história por grande parte da doutrina, pode franquear a aplicação de

penas por vezes mais graves do que aquelas impostas em âmbito criminal183, merecendo ainda

ser ressaltado o fato de que a instauração de processo disciplinar injusto pode atemorizar o bom

servidor, uma vez que, para muitos cidadãos, o simples fato de se ver sujeito passivo em um

181 CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar e sindicância. 3. ed.

Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 461.

182 MATTOS; Mauro Roberto Gomes de. Tratado de direito administrativo disciplinar. 2 ed. Rio de Janeiro:

Forense, 2010, p. 181-197.

183 Embasamos essa afirmação na doutrina de Fábio Medina Osório: “Embora se revele possível exigir um mínimo

de coerência legislativa na atividade sancionadora lato sensu e, mais ainda, se mostre viável constatar que, em

tese, o Direito Administrativo é menos severo do que o Direito Penal, não há a priori, uma vinculação do

legislador a uma necessária menor severidade no âmbito sancionador administrativo ou a uma necessária maior

severidade no campo penal. Com efeito, tais instâncias, seja no plano institucional, seja no plano estritamente

jurídico, são independentes no momento da feitura das leis” (OSORIO, Fábio Medina. Direito administrativo

sancionador. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 208).

Page 107: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

107

processo punitivo já é motivo suficiente para grave sofrimento emocional, de modo que deve

ser evitada ao máximo a instauração temerária da medida em comento. Dessa maneira, possível

afirmar que a configuração da falta funcional deverá ser sempre vinculada184, ou seja, a sua

existência, demonstrada através da justa causa, será pressuposto imprescindível para a

instauração do próprio processo disciplinar.

Por outro lado, esclarecemos que a competência para a instauração desse procedimento

inquisitorial é do chefe da repartição ou da autoridade titular do órgão, não obstante possa ser

essa competência avocada por autoridade superior àquela, “sempre que recomendar a gravidade

dos fatos ou ante o risco de interferência de possíveis envolvidos no bom termo dos trabalhos

investigatórios, ocasião em que pode convir a designação de servidores de outros Estados ou

mesmo de órgãos diversos”185. Nos termos do art. 149 da Lei n. 8.112/90, o procedimento será

conduzido por comissão composta de três servidores estáveis designados pela autoridade

competente, que indicará, dentre eles, o seu presidente, o qual deverá, segundo entendemos, ter

formação jurídica. Não existe procedimento específico para essa marcha, mas converge a

doutrina no sentido de que seriam necessários pelo menos os seguintes atos: instauração, com

a publicação do ato de abertura e nomeação da comissão sindicante e apresentação de relatório

conclusivo, que decidirá sobre a instauração de processo disciplinar punitivo ou

arquivamento186.

Por derradeiro, ponto polêmico referente à sindicância-investigação é a sua

obrigatoriedade ou não. Parte da doutrina entende que, por ser inafastável a necessidade de

configuração de justa causa, inafastável seria a necessidade de instauração do referido

procedimento inquisitorial. Ousamos divergir por considerarmos que a sindicância não se

confunde com a justa causa, de modo que é possível à autoridade processante demonstrar a

justa causa já na portaria de instauração do processo disciplinar punitivo. De qualquer modo,

sobre ela recairá forte ônus argumentativo, impondo-se lhe a obrigação de narrar com precisão

os fatos e fundamentos que a levaram a submeter aquele servidor ao polo passivo da demanda.

Neste sentido, lembramos o fato de que mesmo no Direito Penal é admissível a dispensa do

184 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 637.

185 CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar e sindicância. 3 ed.

Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 461.

186 Idem, p. 462.

Page 108: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

108

inquérito policial e proposição de plano da denúncia, nos termos dos arts. 46, §1º, e 47 do

Código de Processo Penal187.

Verificada a justa causa, de plano ou após a realização de sindicância-investigação,

deverá a autoridade competente instaurar processo administrativo disciplinar ou sindicância

punitiva. Conforme dito anteriormente, tais ritos não se diferenciam ontologicamente.

Basicamente, a sindicância se presta ao processamento e apenamento na forma de advertência

ou suspensão não superior a 30 (trinta) dias e deverá ser encerrada no prazo de 30 (trinta) dias,

prazo prorrogável pelo mesmo período. Já o processo administrativo disciplinar se presta ao

processamento e imposição de penas mais gravosas que aquelas (tal como a demissão), tendo

prazo de duração de 60 (sessenta) dias, prorrogável por igual período.

A Lei n. 8.112/90 não especifica o procedimento específico da sindicância, fazendo-o

apenas em relação ao processo administrativo disciplinar. Por considerarmos que não existe

distinção material entre os dois institutos, entendemos aplicáveis todos os pressupostos e

garantias do processo administrativo disciplinar à sindicância. Tal como ensina Romeu Felipe

Bacellar Filho, dada a heterogeneidade da nomenclatura adotada pela esparsa legislação pátria,

pouco importa o nomem iuris que se dê ao processo adotado, visto que “desde que o

contraditório e a ampla defesa estejam assegurados, tanto a sindicância quanto o processo

disciplinar atenderão a exigência constitucional do processo administrativo”188. Sendo assim,

discordamos da doutrina que entende ser a sindicância procedimento sumário, com

contraditório e ampla defesa mitigados em relação ao procedimento disciplinar. Dita concepção

se adéqua tão somente à chamada sindicância-investigação, procedimento preliminar e

inquisitorial, conforme dito, mas não à sindicância-processo, que, não obstante a menor

187 Para adotar esse posicionamento, pedimos vênia para nos basear mais uma vez na preciosa lição do professor

Antonio Carlos Alencar Carvalho: “[...] aplica-se, no caso, o mesmo entendimento, consagrado na doutrina e

na jurisprudência, de que poderá ser proposta denúncia, de plano, dispensado o prévio inquérito policial, se

houver desde já elementos que habilitem o Ministério Público a promover a ação penal (art. 46, §1º, e 47,

Código de Processo Penal). Comprovada a autoria e a materialidade do fato, além das circunstâncias indicativas

da responsabilidade disciplinar do servidor público, cabe a pronta abertura do processo administrativo

disciplinar, podendo-se dispensar a realização de sindicância investigativa preliminar, visto que a finalidade

desta seria trazer aos autos o que nele já existem: os elementos bastantes para indicar se houve transgressão

funcional e seus autores, assim como outras informações circundantes de relevo” (CARVALHO, Antonio

Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar e sindicância. 3 ed. Belo Horizonte: Fórum,

2012, p. 461).

188 BACELLAR FILHO; Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar. 2. ed. São Paulo: Max Limonad,

2003, p. 91.

Page 109: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

109

gravidade das penas por ela tratadas, se valerá das mesmas garantias presentes no processo

administrativo disciplinar. Valendo-nos mais uma vez das palavras de Romeu Felipe Bacellar

Filho, afirmamos que “enquadrar a sindicância como processo sumário equivaleria a assentir

de que nela poderia haver menos ou nada de contraditório em relação ao processo modelo”,

concluindo que “isto só é lícito na sindicância-investigação, pois se trata de procedimento e não

de processo”189.

Desta sorte, nos termos do art. 151 da Lei n. 8.112/90, o processo disciplinar se

desenvolverá nas seguintes fases: a) instauração, com a publicação do ato que constituir a

comissão; b) inquérito administrativo, que compreende instrução, defesa e relatório; c)

julgamento.

Retornando à marcha do regular processo disciplinar (seja sindicância, seja processo

disciplinar em sentido estrito), esclarecemos que, uma vez apurada a justa causa, a autoridade

competente determinará a instauração do processo, através de despacho fundamentado, e o

servidor designado para presidi-lo elaborará Portaria com o nome do acusado, a exposição

circunstanciada do fato reprovável e sua classificação legal190. O art.156 da Lei n. 8.112/90

assegura ao servidor o direito de acompanhar o processo pessoalmente ou por intermédio de

procurador, arrolar e reinquirir testemunhas, produzir provas e contraprovas, bem como

formular quesitos, quando se tratar de prova pericial. Assim, uma vez instalada a comissão

processante, deverá ser procedida a citação do acusado191. Aperfeiçoada a citação, iniciar-se-á

a fase de inquérito, na qual será realizada a colheita de provas, nos termos do art. 155, que

admite exemplificativamente a tomada de depoimentos, acareações, investigações e diligências

cabíveis, admitindo, quando necessário, a utilização de técnicos e peritos, de modo a permitir a

completa elucidação dos fatos. Colhidas as provas, passa-se à fase de indiciação, que representa

uma “avaliação madura em torno da culpa do servidor acusado, à luz de todas as provas e fatos

reunidos nos autos, depois de devidamente esclarecido o quadro fático, após a realização dos

atos processuais instrutórios pertinentes”192. Trata-se, portanto, de uma espécie de saneamento

189 BACELLAR FILHO; Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar. 2. ed. São Paulo: Max Limonad,

2003, p. 103.

190 LESSA, Sebastião José. Do processo administrativo disciplinar e da sindicância. Brasília: Brasília Jurídica,

1994, p. 50.

191 CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar e sindicância. 3. ed.

Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 579.

192 Idem, p. 712.

Page 110: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

110

do processo, momento em que o órgão processante poderá verificar, com base nas provas

colhidas, se há fundamento jurídico para a continuidade daquela persecução. Importante

lembrar que não se trata de um juízo irretratável, mas que, acaso mantido, ensejará à

formalização da acusação na peça indiciatória. Uma vez isso ocorra, será o acusado citado para,

no prazo de 10 dias, apresentar defesa (art. 161, §1º, Lei n. 8.112/90). Apreciada a defesa, a

comissão elaborará relatório minucioso, onde resumirá as peças principais dos autos e

mencionará as provas em que se baseou para formar a sua convicção, o qual concluirá acerca

da inocência ou responsabilidade do servidor acusado. No prazo de 20 (vinte) dias, contados do

recebimento do processo, a autoridade julgadora proferirá a sua decisão. A parte poderá recorrer

desse decisum, nos termos do art.107 da Lei n. 8112/90, no prazo de 30 (trinta) dias, se valendo

de pedido de reconsideração ou do recurso hierárquico. Ressalvamos, por fim, a previsão de

que o processo poderá ser revisto, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando se aduzirem

fatos novos ou circunstâncias suscetíveis de justificar a inocência do punido ou a inadequação

da penalidade aplicada.

Por fim, lembramos que, segundo a doutrina tradicional, ao Poder Judiciário é vedado

analisar o mérito das sanções impostas no âmbito do processo disciplinar, tal como leciona

Themistocles Brandão Cavalcanti ao afirmar que “em matéria disciplinar, a noção de abuso de

poder há de ser assim conceituada, ligada à questão da legalidade, porque imune ao controle de

mérito, estão os atos disciplinares, por força da própria lei”193. Essa corrente é chamada pelo

professor Antonio Carlos Alencar Carvalho de “mais ortodoxa” e, segundo seus adeptos,

“restringe-se a inspeção judicial à legalidade dos atos praticados, à existência dos motivos

declarados para a prática das medidas adotadas, à existência ou não de desvio de finalidade,

além do respeito às formalidades pertinentes”. Por outro lado, a moderna tendência

jurisprudencial e doutrinária aponta no sentido de “inserir, na alçada do controle jurisdicional,

a conformidade das medidas adotadas em face dos princípios da razoabilidade da

proporcionalidade, da individualização da pena, como forma de conter os excessos e o caráter

desarrazoado das decisões administrativas prolatadas”194. Neste sentido, o controle de

legalidade, consistente na verificação do respeito do ato administrativo aos patamares da

legislação correspondente, se dará não só em relação aos aspectos formais do processo, mas

193 CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Direito e processo disciplinar. Rio de Janeiro: Fundação Getulio

Vargas, 1966, p. 92.

194 CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar e sindicância. 3. ed.

Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 1339-1340.

Page 111: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

111

também aos seus aspectos materiais, o que não representa uma intromissão indevida no mérito

administrativo, mas da análise do processo a partir do paradigma material da Constituição

Federal, ou seja, aos seus ditames principiológicos, em especial à impessoalidade,

razoabilidade, moralidade e persecução do interesse público.

3.3.4.2 Causas extintivas da punibilidade

Conforme ressaltamos no início deste capítulo, o art.107 do Código Penal traz, de

maneira exemplificativa, algumas causas extintivas da punibilidade. É defensável sua aplicação

ao direito disciplinar, de modo que faremos uma breve análise dessas, sem, entretanto, descer

a grandes minúcias, haja vista se distanciarem do cerne do presente estudo.

A morte do agente, por motivos óbvios, extingue a sua punibilidade. Assim, diante da

certidão de óbito do acusado, deve o juiz ou comissão processante extinguir o processo, de

modo que penas como a demissão ou suspensão do agente público, por ausência de substrato

fático, não poderão ser aplicadas. Não obstante, eventuais efeitos civis, tal como a indenização

por prejuízos causados, podem incidir sobre os sucessores do de cujus, os quais, em tese,

herdarão seu patrimônio.

Já o indulto se refere ao ato de competência privativa do Presidente da República, o

qual, com base no art. 84, XII, da Constituição Federal pode extinguir penas ou eliminar a

punibilidade coletivamente, ao passo que a graça se refere a ato semelhante, sendo que

individualmente concedido195. A anistia consiste em ato legislativo, prolatado pelo Congresso

Nacional e sancionado pela Presidência da República, com fulcro no art. 48, VIII, da

Constituição Federal, e se refere a determinado crime, não necessariamente a um grupo de

pessoas. Ele abole a infração, isentando de pena aqueles que a praticaram. Sobre a aplicação da

legislação punitiva no tempo, lembramos que a retroatividade da lei que não considera mais

crime determinada conduta, o chamado abolitio criminis, tem aplicação controvertida ao direito

disciplinar. Por considerarmos que este ramo deriva do jus puniendi estatal, tal como o direito

penal, pensamos ser inafastável a aplicação dessa garantia geral da dogmática criminal ao

direito disciplinar. Em reforço, citamos a posição de Regis Fernandes de Oliveira, que considera

195 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte geral.

11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 668.

Page 112: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

112

possível a retroação da lei mais benéfica ao acusado, afirmando que “caso haja alteração do

regime jurídico, pode beneficiar-se o infrator com a retroação benigna. Aplica-se o inc. XL do

art. 5º da CF, porque a norma constitui-se em garantia constitucional, não se limitando seu

conteúdo a albergar o fato criminal, mas também o administrativo”196. Assim, por se tratar de

uma garantia constitucional do cidadão frente à potestade punitiva estatal, retroage a lei mais

benéfica para favorecer o acusado, seja em processo criminal, seja em processo administrativo,

o que garante que a abolição da infração disciplinar extinguirá a punibilidade em face do

servidor acusado em razão da mesma.

Ainda como causas extintivas da punibilidade, ressaltamos que a renúncia do direito de

queixa e o perdão aceito são fundamentos ligados a crimes de ação penal privada. Logo,

inaplicáveis ao regime disciplinar, nos quais os processos tramitarão sempre por impulso

oficial. É verdade que muitas vezes os órgãos de Corregedoria agirão mediante provocação dos

interessados, como no caso de um servidor que representa outro devido a ofensa verbal contra

ele praticada no ambiente institucional. Todavia, uma vez protocolizado o requerimento, aquele

ato sai da esfera de disponibilidade do agente e o bem que passa a ser tutelado é a higidez da

própria prestação do serviço público. Em âmbito disciplinar, o agente ofendido é protegido

apenas de maneira reflexa. Dessa maneira, não pode ele renunciar ao direito de punir do Estado.

Pelos mesmos fundamentos, consideramos inaplicável a retratação do agente.

O perdão judicial é hipótese trazida no Código Penal que se refere a “causas pessoais

que excluem a punibilidade ou a operatividade da coerção penal estabelecidas pelo juiz, em

casos concretos”197. É o que pode ocorrer, por exemplo, em casos de homicídios culposos,

quando o julgador considerar que o fato por si só já trouxe apenamento suficiente ao autor,

como na hipótese do pai que, culposamente, atropela o próprio filho, matando-o. A dureza dos

fatos afasta a necessidade de aplicação de pena. Pensamos ser inaplicável essa hipótese ao

direito disciplinar, pela própria natureza das infrações abarcadas por esse ramo.

Por derradeiro, como causas de extinção da punibilidade, citamos a decadência, e a

prescrição. A decadência, segundo Regis Fernandes de Oliveira, se refere às situações em que

196 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2012, p. 86.

197 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte geral.

11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 669.

Page 113: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

113

“a atuação do Poder Político independe de qualquer atuação correlata do particular. Quando

depende apenas da Administração a iniciativa para a apuração da infração e deixa esta de agir”

198. Ou seja, trata-se de situação em que a Administração Pública queda inerte, perdendo o

próprio direito que a levaria a instar o particular. Já a prescrição se refere à perda da pretensão

punitiva estatal em razão da inércia do Poder Público nas situações em que, instado o particular,

numa relação de direito e obrigação, nasceu para o titular do direito, a Administração Pública,

uma pretensão, mas essa deixa de exercê-la no prazo legal. Segundo o art. 142 da Lei n.

8.112/90, estatuto dos servidores públicos civis da União, a ação disciplinar prescreve em 05

(cinco) anos, quanto às infrações puníveis com demissão, cassação de aposentadoria ou

disponibilidade e destituição de cargo em comissão e em 02 (dois) anos, quando se referir a

delito passível de suspensão.

3.3.5 As esferas penal, cível e disciplinar

Ressaltamos ainda que, não obstante tratemos da responsabilidade disciplinar na

presente obra, fato é que a mesma conduta ilícita praticada por servidor público no exercício de

suas funções pode ensejar, além do apenamento nessa esfera, a imposição de sanções penais e

civis. Para fins de verificação do sistema legislativo pátrio, continuamos a nos debruçar sobre

a Lei n. 8.112/90, a qual estabelece em seu art. 125 que as sanções civis, penais e administrativas

poderão cumular-se, sendo independentes entre si. Essa possibilidade de cumulação de penas

sempre foi aceita com tranquilidade pela doutrina e jurisprudência pátrias devido à reconhecida

independência das esferas, a partir das quais afasta-se eventual alegação de bis in idem, ou seja,

a dupla cominação em razão do mesmo fato.

Reafirmamos aqui o nosso entendimento de que o jus puniendi estatal é uno, mas isso

não impede que de um mesmo fato possam originar-se sanções de diferentes naturezas, visto

que o bem jurídico tutelado por cada uma dela é distinto. Independentes que são (com as

ressalvas que faremos a seguir), dependerão de subsunção específica ao tipo em cada um desses

ramos, não obstante exista a possibilidade de comunicação entre eles. Ou seja, os pressupostos

para a configuração do delito e para a aplicação da pena (não obstante muito se aproximem em

alguns casos, podendo até mesmo se informar mutuamente) serão distintos. Por exemplo, o

198 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2012, p. 170.

Page 114: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

114

policial militar que agride e mata um torcedor na porta de estádio de futebol a fim de controlar

um transtorno de massa poderá ter como sanção penal a prisão, como sanção disciplinar a perda

do cargo e ser ainda condenado em âmbito civil pela reparação de danos morais à família da

vítima. Nesse exemplo, sua conduta configurou ao mesmo tempo um homicídio no âmbito

criminal, ofensa aos deveres específicos do estatuto no âmbito disciplinar e a ofensa a direito

da personalidade no âmbito cível. Nem por isso se cogita falar em um triplo apenamento injusto,

visto que a razão de ser e os pressupostos em cada uma delas é distinto e, a princípio,

independente. A partir disso, analisemos os aspectos dogmáticos da inter-relação dessas esferas.

3.3.5.1 A responsabilidade penal e o direito disciplinar

Segundo o art. 123 da Lei n. 8.112/90, a responsabilidade penal abrange os crimes e

contravenções imputadas ao servidor nessa qualidade, o que, segundo entendemos, não os

restringe aos chamados crimes funcionais próprios, ou seja, aqueles que exigem a qualidade

especial de agente público para sua prática199. Dessa forma, a título de exemplo, tanto é

abrangido por essa definição o crime de peculato, previsto no art. 312 do Código Penal, o qual

só pode ser praticado (de maneira exclusiva) por servidor público200, quanto os crimes comuns,

desde que praticados na condição de agente público, de modo a subsistir o nexo causal entre

aquele ato ilícito e o exercício funcional.

Conforme dito anteriormente, existe a princípio uma independência entre as respectivas

esferas. Todavia, a novel doutrina vem adotando posicionamento no sentido de que esse

“dogma da independência” estaria encontrando seu ocaso, pelo menos no que tange a aspectos

procedimentais. Nesse sentido, citamos Mauro Roberto Gomes de Mattos, que utiliza o

exemplo o crime de sonegação fiscal para ilustrar essa afirmação, demonstrando que a ação

penal ou a investigação disciplinar dependerão da constituição definitiva do crédito tributário,

nos termos do art. 142 do Código Tributário Nacional, como condição de procedibilidade.

Dessa forma, até referida apuração não haverá justa causa para a instauração do processo

disciplinar ou do processo penal, por atipicidade. Assim, dependem a persecução penal e

199 MATTOS; Mauro Roberto Gomes de. Tratado de direito administrativo disciplinar. 2. ed. Rio de Janeiro:

Forense, 2010, p. 308.

200 Consistente o crime de peculato no ato de servidor público que se apropria de dinheiro, valor ou qualquer outro

bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou

alheio.

Page 115: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

115

disciplinar da configuração da materialidade do delito no âmbito administrativo, o que

demonstra que não existe total independência entre essas. Caso essa existisse, seria possível a

persecução penal antes mesmo da conclusão dos procedimentos administrativos201.

No mesmo sentido, destacamos os reflexos que a sentença penal pode impingir no

processo disciplinar. Segundo o art. 126 da Lei n. 8.112/90, a responsabilidade administrativa

do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua

autoria. Dessa maneira, uma vez comprovado no âmbito criminal que não houve autoria ou

materialidade, tal constatação necessariamente obstará a aplicação de pena no âmbito

administrativo pelos mesmos fatos. Isso porque historicamente o processo penal é rito dotado

de maiores garantias e busca a verdade real de forma mais aguda do que os processos de índole

disciplinar (esses também o fazem, mas, como sabemos, ainda se busca o aperfeiçoamento de

sues institutos). Assim, consagrou o legislador a ideia de que, uma vez afastada a

responsabilidade do servidor no âmbito penal, com base naqueles fundamentos (inexistência de

autoria e/ou de materialidade), impossível aplicá-la, pelo mesmo evento delituoso, em âmbito

disciplinar. Dessa maneira, no exemplo citado no tópico anterior (3.2.5), caso reste configurado

em âmbito criminal que o policial militar que desferiu golpes contra o torcedor que terminou

por falecer fora outro, e não aquele acusado, necessariamente os efeitos dessa sentença penal

deverão influenciar a sentença disciplinar, a qual, por via de consequência, será absolutória. Por

essa razão, é defensável que, quando o servidor estiver sendo processado em ambas as esferas

pelo mesmo motivo, desde que não haja elementos robustos o suficiente na esfera disciplinar,

seja o processo disciplinar suspenso até o fim do processo criminal, a fim de evitar a condenação

injusta e seus respectivos prejuízos.

Por outro lado, interpretando a contrario sensu o dispositivo em questão, a sentença

criminal que absolve o acusado por falta de provas não exercerá influência sobre o processo

disciplinar, de modo que pode aquele policial militar ser absolvido por falta de provas em

âmbito criminal, mas, ainda assim, ser demitido da corporação em razão dos elementos colhidos

no processo disciplinar. Registramos a existência de entendimentos contrários a esse

posicionamento, os quais consideram que, mesmo quando se tratar de sentença penal

absolutória por falta de provas, deverá esta influenciar a decisão a ser proferida em âmbito

201 MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Tratado de direito administrativo disciplinar. 2. ed. Rio de Janeiro:

Forense, 2010, p. 306-307.

Page 116: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

116

disciplinar. Sustentamos o posicionamento de que a ineficiência da acusação em âmbito

criminal não configura constatação de uma “verdade real”, bem como o fato de que, não

obstante a ação delituosa seja a mesma que impulsiona as duas ações persecutórias, os

fundamentos para a aplicação das penas (ainda que em muito busquemos sua aproximação)

ainda são diversos. Ou seja, o grau de desvio funcional necessário para a aplicação de uma pena

de demissão é gradativamente inferior àquele necessário para a aplicação de uma pena restritiva

de liberdade, de modo que o conjunto probatório carece de maior detalhamento em um do que

em outro.

3.3.5.2 A responsabilidade civil e o direito disciplinar

Por outro lado, estabelece o art. 122 da Lei n. 8.112/90 que a responsabilidade civil

decorre de ato omissivo ou comissivo, doloso ou culposo, que resulte em prejuízo ao erário ou

a terceiros. Para a melhor exegese do dispositivo, devemos considerar que não basta que a

conduta do agente público gere prejuízo. Necessário se faz que essa conduta seja ilícita.

Ora, a atuação estatal se presta constantemente a interferências no patrimônio jurídico

de outrem, mas não necessariamente gerará o dever de indenizar, pelo menos não para o agente.

Por exemplo, se um policial, em perseguição a um suspeito requisita administrativamente o

carro de um administrado, gerando-lhe pequenos danos no decorrer desse acossamento, é bem

razoável que a Administração Pública seja condenada a indenizar referidos danos. Mas o agente

público, que apenas desempenhou seu mister com esmero, não poderá ser responsabilizado,

desde que não tenha havido qualquer excesso, obviamente.

Com efeito, conforme dito anteriormente, à vista de um ato ilícito praticado por agente

público, além da possibilidade de responsabilização em âmbito disciplinar e criminal, pode ser

esse instado a responder civilmente pelos seus atos. O administrado que sofreu dano pela

atuação estatal poderá: a) requerer a reparação do dano por ele suportado administrativamente;

b) ajuizar ação condenatória exclusivamente em face do Poder Público; c) ajuizar ação

Page 117: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

117

condenatória exclusivamente em face do agente que praticou o ato ilícito202; d) ajuizar ação

condenatória em face do Poder Público e do agente em litisconsórcio passivo203.

Nos dois primeiros casos não haverá maiores dificuldades, pois, independente de dolo

ou culpa, o Estado responderá objetivamente pelos danos causados, podendo requerer o

regresso desses danos em face do agente público, caso demonstrada sua culpa ou dolo em

processo administrativo específico. Dessa maneira, concluindo o processo que o agente

cometeu ato ilícito com dolo ou culpa, poderá ser-lhe administrativamente imposta a pena de

ressarcimento, a qual poderá ser realizada de duas formas: a) caso se trate de uma relação geral

de sujeição (como, por exemplo, no caso de particulares em colaboração ou gestores de

negócios públicos204) ou caso não seja possível o desconto direto nos vencimentos do servidor

(devido ao seu desligamento dos quadros, por exemplo), será realizada a inscrição em dívida

ativa e procedida execução fiscal sobre seu patrimônio; b) poderão ser efetuados descontos

mensais sem seus vencimentos, a fim de saldar a dívida205206. Nos termos do art. 37, §5º, CF, a

202 Ressalvamos que o Supremo Tribunal Federal já decidiu em sentido contrário a isso: “EMENTA: RECURSO

EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO: § 6º DO

ART. 37 DA MAGNA CARTA. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. AGENTE PÚBLICO (EX-

PREFEITO). PRÁTICA DE ATO PRÓPRIO DA FUNÇÃO. DECRETO DE INTERVENÇÃO. O § 6º do art.

37 da Magna Carta autoriza a proposição de que somente as pessoas jurídicas de direito público, ou as pessoas

jurídicas de direito privado que prestem serviços públicos, é que poderão responder, objetivamente, pela

reparação de danos a terceiros. Isto por ato ou omissão dos respectivos agentes, agindo estes na qualidade de

agentes públicos, e não como pessoas comuns. Esse mesmo dispositivo constitucional consagra, ainda, dupla

garantia: uma, em favor do particular, possibilitando-lhe ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito

público, ou de direito privado que preste serviço público, dado que bem maior, praticamente certa, a

possibilidade de pagamento do dano objetivamente sofrido. Outra garantia, no entanto, em prol do servidor

estatal, que somente responde administrativa e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se

vincular. Recurso extraordinário a que se nega provimento” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso

Extraordinário n. 327.904 SP. Recorrente: Associação de Caridade da Santa Casa de Misericórdia de Assis.

Recorrido: José Santilli Sobrinho. Relator: Min. Carlos Britto. Brasília, 08 de setembro de 2006. Disponível

em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.

asp?numero=327904&classe=RE&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso

em: 7 set. 2016).

203 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 602.

204 Idem, p. 604.

205 Idem, p. 605.

206 Ressalve-se que o Supremo Tribunal Federal decidiu no sentido de que o desconto no patrimônio do servidor

deve ser precedido de sua aquiescência, posição que refutamos. Vejamos: “EMENTA: Mandado de Segurança.

2. Desaparecimento de talonários de tíquetes-alimentação. Condenação do impetrante, em processo

administrativo disciplinar, de ressarcimento ao erário do valor do prejuízo apurado. 3. Decisão da Mesa

Diretora da Câmara dos Deputados de descontos mensais, em folha de pagamento, sem a autorização do

servidor. 4. Responsabilidade civil de servidor. Hipótese em que não se aplica a auto-executoriedade do

procedimento administrativo. 5. A Administração acha-se restrita às sanções de natureza administrativa, não

podendo alcançar, compulsoriamente, as conseqüências civis e penais. 6. À falta de prévia aquiescência do

servidor, cabe à Administração propor ação de indenização para a confirmação, ou não, do ressarcimento

apurado na esfera administrativa. 7. O art. 46 da Lei n. 8.112, de 1990, dispõe que o desconto em folha de

Page 118: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

118

lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou

não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento. Ou seja,

a partir da interpretação desse dispositivo, concluímos que, a qualquer tempo, pode a

Administração Pública ajuizar ação de ressarcimento, por previsão do poder constituinte

originário.

Outrossim, o ato ilícito pode não causar dano a terceiros, mas ao erário. Nesta hipótese,

a regra será semelhante, ou seja, a Administração Pública deverá intentar processo

administrativo autônomo em face do servidor público e, constatada sua conduta culposa ou

dolosa, executar administrativamente a dívida.

Por fim, caso seja o agente incluído (exclusivamente ou em litisconsórcio com o Estado)

no polo passivo, deverá ser demonstrado seu dolo ou culpa para a respectiva condenação. Caso

o agente seja eximido de responsabilidade em âmbito judicial, caso demonstrada sua ausência

de dolo ou culpa (ou mesmo a sua não autoria, por exemplo), por respeito à segurança jurídica,

à boa-fé, e à definitividade das decisões judiciais, não poderá o Estado ajuizar ação de regresso

contra ele. Todavia, caso seja o feito julgado improcedente em relação a sua pessoa por motivos

que não interfiram no mérito atinente a sua responsabilidade, como, por exemplo, com base em

aspectos formais, então será possível a ação de ressarcimento.

pagamento é a forma como poderá ocorrer o pagamento pelo servidor, após sua concordância com a conclusão

administrativa ou a condenação judicial transitada em julgado. 8. Mandado de Segurança deferido” (BRASIL.

Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n. 24182 DF. Impetrante: José Veiga Filho. Impetrado:

Presidente da Câmara dos Deputados. Relator: Min. Maurício Corrêa. Brasília, 12 de abril de 2004. Disponível

em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?

numero=24182&classe=MS&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M> Acesso em: 7

nov. 2016).

Page 119: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

119

4 A TIPICIDADE E O DIREITO DISCIPLINAR

4.1 Ponto nodal

Conforme dito anteriormente, para que alguém seja responsabilizado por alguma ação

ou omissão, deve essa estar previamente descrita na lei como hipótese autorizadora da aplicação

de uma sanção, de sorte que é possível afirmar que é pressuposto da aplicação da pena a

existência de um modelo geral e abstrato que descreva determinada conduta e a ela preveja uma

sanção, ou, nos dizeres do professor Ricardo Marcondes Martins quando trata dos pressupostos

da sanção disciplinar, “a conduta do agente deve corresponder à prévia descrição legal, ao tipo

da infração. Exige-se: (1) que a infração esteja previamente prevista em lei; (2) que a infração

esteja previamente descrita na lei; (3) que a sanção esteja previamente prevista na lei”207. Trata-

se da tipicidade formal208. Conforme dito, tipo é o elemento normativo descritivo e de uma

conduta ao passo que a tipicidade é a adequação de uma conduta àquele modelo antecedente.

Antes de nos debruçarmos sobre a tipicidade no direito disciplinar, importante abordá-

la no âmbito do direito penal. Quanto a essa, oportuno lembrar que, segundo o art. 5º, inciso

XXXIX da Constituição da República de 1988, “não haverá crime sem lei anterior que o defina,

nem pena sem prévia cominação legal”, de maneira que se afirma que no direito penal vige o

princípio da legalidade, ou seja, para que um cidadão se veja processado por determinado delito,

esse deverá necessariamente estar previsto em lei de maneira anterior à realização da conduta,

lembrando-se que “sem a presença de um ato voluntário (dominado ou dominável pela vontade

humana – ...) não há que se falar em conduta penalmente relevante”209.

Além disso, no direito penal, devido ao alto grau de interferência na vida dos cidadãos,

que podem se ver privados de sua liberdade, bem como pelo desenvolvimento histórico

garantista desse ramo jurídico, exige-se que a hipótese descritiva do delito seja posta de maneira

207 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 618.

208 Lembramos que, segundo abalizada doutrina, a tipicidade se divide em tipicidade formal e tipicidade material,

sendo que sobre a tipicidade material já tecemos as devidas considerações no item 3.2.1 do presente trabalho,

ao qual remetemos o leitor que deseje se debruçar sobre o tema.

209 GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Curso de direito penal. Parte geral. Arts. 1º a 120. Salvador:

JusPodium, 2015, p. 214.

Page 120: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

120

clara e precisa no texto legal, não se admitindo, como regra, conceitos genéricos ou

indeterminados. Sendo assim, consagra-se o que chamaremos no presente trabalho de tipicidade

“fechada”, ou seja, uma necessária e precisa descrição da conduta reputada delituosa, a qual

funcionará como garantia ao cidadão, que não poderá ver a si imputada qualquer conduta para

efeitos criminais, mas apenas aquela exatamente prevista no texto legal. É o que a doutrina

chama de “estrita adequação formal”, garantida por força do princípio da taxatividade 210. Ou

seja, os tipos fechados consagram um verbo, o qual deverá ser praticado para a configuração

apriorística do delito; no exemplo “matar alguém”, não importa a forma como se deu a conduta

do homicídio (se foi por meio de arma de fogo, objeto cortante ou envenenamento), importando,

em essência, que aquela conduta determinou o fim da vida de outrem, de modo que o verbo

consagrado é um só: matar. O grau de subjetividade para a configuração da infração é, portanto,

muito baixo.

Ocorre que no direito disciplinar pátrio, ao contrário do que ocorre no direito espanhol,

onde se exige para a aplicação de sanções administrativas as mesmas garantias exigidas como

pressupostos para a aplicação da sanção penal, o que se dá basicamente devido à previsão de

referida prerrogativa em seu texto constitucional211, nosso Texto Maior não faz ressalvas quanto

à legalidade estrita ou fechada nos tipos disciplinares, o que levou parcela tradicional da

doutrina a crer na existência de uma atipicidade em âmbito disciplinar, ou seja, que poderiam

ser impostas penalidades aos servidores unicamente com base no descumprimento de deveres

funcionais genericamente previstos em seus respectivos estatutos, dispensada a necessidade de

previsão em um modelo legislativo.

A doutrina evoluiu e passou a entender que, de fato, existe a necessidade de previsão

legal dos tipos aplicáveis ao direito disciplinar, como faz Regis Fernandes de Oliveira ao

210 Devido ao seu didatismo e precisão, nos permitimos mais uma vez citar os penalistas Luiz Flávio Gomes e

Alice Bianchini: “Se o fato da vida real encontra correspondência com a descrição legal é típico (do ponto de

vista formal, literal). Do contrário, é atípico. A relação de tipicidade, ou seja, a adequação do fato à letra da lei,

deve ser enfocada de modo estrito porque, por força do princípio da taxatividade e da garantia da lex estrita o

tipo penal não admite analogia contra o réu. O fato ou conta com estrita adequação formal ou não é típico”

(GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Curso de direito penal. Parte geral. Arts. 1º a 120. Salvador:

JusPodium, 2015, p. 226).

211 A Constituição Espanhola traz a seguinte previsão em seu art. 25.1: “Artículo 25.1. Nadie puede ser condenado

o sancionado por acciones u omisiones que en el momento de producirse no constituyan delito, falta o

infracción administrativa, según la legislación vigente en aquel momento”. (Disponível em:

<http://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-1978-31229>. Acesso em: 7 de jun. 2016).

Page 121: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

121

afirmar que “a conduta ilícita capaz de receber uma sanção administrativa não prescinde de

subsunção a uma norma de direito normativo preexistente”212, de maneira que, com relação à

atual doutrina majoritária, é possível afirmar que, pelo menos, o suporte legal para a previsão

da conduta punível deve existir. Todavia, com fundamento histórico nas relações especiais de

sujeição, doutrina e jurisprudência pátrias, refletindo a legislação vigente, admitem quase que

pacificamente a validade dos tipos disciplinares abertos, ou seja, a descrição genérica de

condutas no dispositivo legal, a ser amplamente “complementada” pelo hierarca no momento

da caracterização da infração, o que acaba por dar ensejo ao enquadramento de diversos verbos

sob aquele suporte normativo. Data maxima venia, reservamos críticas a esse entendimento, o

qual, pensamos, merece uma revisão a partir do paradigma da Constituição Cidadão de 1988,

conforme passamos a expor a seguir.

4.2 Propostas para uma conformação contemporânea

Nos capítulos anteriores, fixamos as premissas para tratar do direito disciplinar e sua

conformação atual, especificamente no ponto mais problemático dessa discussão: a tipicidade

formal neste ramo. Conforme pontuamos, na disciplina em comento são admitidos os chamados

tipos abertos, ou seja, suportes normativos dotados de extrema generalidade, os quais deixam

em grande parte ao arbítrio do hierarca a decisão sobre a própria configuração (ou não) de

eventual delito. Não são poucos os exemplos de figuras dessa espécie, como o inciso VI do art.

132 da Lei n. 8.112/90, o qual prevê como hipóteses ensejadoras de demissão a “incontinência

pública” e a “conduta escandalosa na repartição”, ou a disposição trazida no inciso V do art.117

da mesma lei, que proíbe ao servidor “promover manifestação de apreço ou desapreço no

recinto da repartição”. A pergunta que trazemos à baila é: diante de todas as premissas fixadas

nos capítulos anteriores (os direitos dos servidores públicos são garantias individuais dos

cidadãos, as relações especiais de sujeição tiveram sua conformação modificada diante da

juridicização e da constitucionalização do ambiente interno da Administração Pública

promovida no estado moderno e o fato de o direito disciplinar hoje adotar premissas

semelhantes às de direito penal), é possível a manutenção de referida concepção?

212 OLIVEIRA; Regis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2012, p. 37.

Page 122: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

122

Reputamos que a situação acima narrada cria um ambiente funcional de precariedade

incompatível com os valores do regime jurídico de direito público. O estabelecimento de regras

claras e predefinidas é pressuposto do próprio Estado de Direito, sem as quais é ferida

mortalmente a segurança jurídica, de modo que o poder, antes controlado por meio de normas

gerais e abstratas, a todos aplicáveis, é devolvido ao arbítrio do indivíduo, um potencial déspota

que pode “reinar” em um pequeno órgão ou sobre toda uma carreira pública. Assim, se por um

lado as regras que devem ser observadas não traduzem fielmente os regramentos objetivos

internos da Administração, as regras que fundamentam a punição são praticamente “cheques

em branco” ao hierarca, que, a qualquer contrariedade, poderá imputar ao seu subordinado

alguma conduta que se enquadre naqueles tipos abertos consagrados no direito disciplinar. Isso

transforma todo o feixe de garantias previsto pelo constituinte originário aos servidores públicos

em uma mera carta de intenções. De que adianta a salvaguarda da estabilidade se é possível

processar e demitir o servidor sob praticamente qualquer fundamento? A ideia do tipo punitivo

é trazer segurança jurídica, garantindo ao bom servidor a segurança para atuar com correção

dentro dos meandros da Administração Pública. Sujeitá-lo de forma majoritária ao arbítrio do

hierarca é contrariar o arcabouço protetivo da coisa pública que permeia o regime jurídico

administrativo.

Com efeito, o plano constitucional traçado pelo constituinte originário não pode quedar

como texto meramente formal, esquecido na pragmática do dia a dia das repartições. Dessa

forma, conscientes de que a doutrina tem importante papel na conformação do direito ao texto

constitucional, enfrentamos o problema propondo a sua análise a partir dos fundamentos

materiais da Constituição da República. Para tanto, necessária se faz uma análise da própria

conformação do direito atualmente, a qual passa pelo estudo dos princípios jurídicos e do

Estado Constitucional. Vejamos.

4.3 O Estado constitucional

As teorias contemporâneas de limitação do poder político surgiram na toada do

movimento histórico-político chamado constitucionalismo, fundado a partir das constituições

francesa, de 1791, e norte-americana, vigente a partir de 1788213, decorrentes das revoluções

213 MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo:

Malheiros, 2011, p. 27-28.

Page 123: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

123

liberais deflagradas no século XVIII nesses respectivos países, e basearam-se, de forma geral,

na ideia de que o poder dos governantes deveria ser limitado a partir da utilização de regras

predefinidas, baseadas primeiramente em textos normativos. Ocorre que dos modelos de Estado

dali oriundos, inicialmente, Estado Liberal, para, na atualidade, Estado Constitucional, houve

todo um processo histórico de avanços e retrocessos. Para analisar essa evolução, valemo-nos

da preciosa exposição do professor Gustavo Zagrebelsky214.

Conforme dito, a formação do Estado de Direito passou pela limitação do poder

absoluto. E a forma de limitação encontrada pelos cidadãos para ser imposta ao Estado foi a lei,

de modo que se caracterizou aquilo que o autor chama de “estado legislativo”. Os franceses

consideravam a lei uma expressão do parlamento, o qual, por sua vez, expressava a vontade do

povo, absoluta sob os fundamentos da soberania da vontade popular. A lei era, assim, a

expressão maior de direito. Todavia, conforme pontua Zagrebelsky, trocou-se um poder

absoluto por outro. Registra o doutrinador que essa concepção legalista foi abordada pelos

ingleses sob prisma diferente, para os quais a lei não seria a expressão de um poder absoluto,

mas apenas mais um elemento de um complexo sistema, participando o magistrado ativamente

da criação do direito. No sistema francês, todavia (aquele que mais fortemente inspirou a

doutrina e a legislação pátrias, registre-se), o juiz deveria apenas enunciar a vontade expressa

na lei, de modo a ser a generalidade desta essencial ao Estado de Direito, por estabelecer uma

“normatividade média”, aplicável, portanto, da mesma forma a todos os indivíduos. Ressalva

Zagrebelsky, no entanto, que essa concepção, à medida que demonstrava uma limitação ao

poder estatal, expressava o monopólio político-legislativo de uma classe social relativamente

homogênea: a burguesia. Dessa forma, lembra que o Estado de Direito fora uma proposta desse

grupo social, por ela construído e moldado de acordo com seus interesses dominantes. Essa

concepção, todavia, encontrou oposições nas exigências do proletariado (classe nascente

naquele momento histórico, já no Século XIX), que, junto com o pós-guerra e as dúvidas acerca

da perfeição da lei, levaram a uma mudança de paradigmas que desembocaria no Estado

Constitucional. O Estado passou a se portar de forma mais ativa em relação a seus cidadãos e o

seu dever prestacional, agora reconhecido, levou a uma crise da legalidade tradicional. No

estado de direito, a garantia de direitos se reduzia àquelas previstas na lei, exigíveis de plano de

acordo com a conformação literal ali anunciada. Todavia, a proclamação dos chamados direitos

sociais nos textos constitucionais veio a funcionar como diretriz não vinculante. A mudança de

214 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho ductil – Ley, derechos, justicia. Madrid: Trotta, 2011.

Page 124: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

124

paradigma se deu com a teoria dos direitos públicos subjetivos, de tradição norte-americana,

que reconheceu aos indivíduos um patrimônio de direitos originários, independente e protegido

frente à lei. Essa teve sua instrumentalização proporcionada pelas Constituições dotadas de

rigidez, as quais proporcionaram uma verdadeira fragmentação do direito, ao separar a lei dos

direitos. A lei apenas agia de forma delegada, não podendo, assim, operar contra aquele que lhe

concedeu o poder, a Constituição. O estado constitucional representou, assim, uma mudança de

paradigma em relação ao estado de direito, baseado principalmente na mudança de foco da lei

para a Constituição, em razão da superação da ideia de um Estado superior e onisciente após a

Segunda Guerra Mundial215.

A partir da evolução histórica adrede delineada, podemos concluir que hoje o paradigma

do direito já não é mais o de supremacia da lei e que a adequação do texto legal passa não mais

a se basear apenas no seu próprio parâmetro, mas naqueles estabelecidos no Texto

Constitucional. Caso a lei não se adéque aos parâmetros constitucionais, deverá ser declarada

inválida ou interpretada de acordo com os ditames da Constituição. Lembramos que o

fundamento do sistema jurídico encontra sua materialidade no texto constitucional, de modo

que, para além de uma supremacia formal, a Constituição representará um diploma

materialmente impregnado de valores e dotado de normatividade, ou seja, as diretrizes e

determinações nela consagradas deverão incidir sobre o Direito como um todo, de modo que as

interpretações adotadas pelos operadores deverão ser aquelas que enalteçam e instrumentalizem

os preceitos fixados no Texto Maior216.

Na esteira dos fenômenos acima observados, a doutrina trata da chamada

“constitucionalização do direito”, a qual, segundo ensina Virgílio Afonso da Silva, fazendo uso

da lição de Schuppert e Bumke, ocorre por diferentes meios, quais sejam reformas legislativas,

desenvolvimento jurídico por meio da criação de novos direitos individuais e de minorias,

mudança de paradigma nos demais ramos do direito, irradiação dos efeitos da Constituição nas

relações privadas e deveres de proteção e constitucionalização do direito por meio da jurisdição

ordinária”217. Neste estudo, nos debruçaremos majoritariamente sobre a “mudança de

215 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho ductil – Ley, derechos, justicia. Madrid: Trotta, 2011, p. 9-73.

216 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio

Antonio Fabris, 1991, passim.

217 SCHUPPERT, Gunnar Folke; BUMKE, Christtian. Die Konstitutionalisierung der Rechtsordnung:

Überlegugen zum Verhältnis von verfassungsrechtlicher Ausstrahlungswirkung und Eigenständigkeit des

Page 125: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

125

paradigma nos demais ramos do direito”, assumindo o papel reservado à doutrina como um ator

nesse fenômeno218.

Concordamos com a lição dos professores acima referenciada, destacando que, em seu

aspecto normativo, esse avanço constitucional sobre o direito e a sociedade se dará através da

impregnação de todas as atividades jurídicas pelos princípios constitucionais, seja pela função

hermenêutica que podem desempenhar, seja pela sua função normativa, hoje amplamente

reconhecida. Dessa maneira, não obstante já tenhamos realizado alguns apontamentos acerca

dessa espécie normativa, nos aprofundaremos sobre ela no próximo tópico.

4.4 Os princípios jurídicos

Conforme ressalta a doutrina, a expressão “princípio”, tão comum aos operadores do

direito nos dias de hoje, é expressão plurívoca, ou seja, possui diversos significados, de maneira

que ao intérprete, quando utilizá-la, é recomendável a ressalva acerca da acepção que se lhe

concede naquele momento219.

À vista disso, lembramos a lição do professor Ricardo Marcondes Martins, já citada no

capítulo 02 deste estudo, segundo a qual, não obstante a pluralidade de significados que

expressão “princípios” possui, é possível reconhecer uma evolução em três fases no seu estudo

pela Ciência do Direito. Em um primeiro momento, princípios seriam os fundamentos de uma

dada disciplina, seus aspectos mais importantes; na segunda fase, princípios seriam “diretrizes

ou vetores de interpretação”, ou seja, ainda não se apresentam como normas jurídicas

autônomas, mas possuem extrema importância para se entender a lógica e o espírito de

determinado sistema; na terceira fase, princípios possuem a estrutura lógica de normas jurídicas,

constituindo, ao lado das regras, espécie desse gênero, “expressões irredutíveis de manifestação

do deôntico”. Lembramos que, conforme ensina o nobre professor, a primeira fase se encontra

superada, mas a segunda e a terceira não se excluem, de modo que é possível se falar em

“einfachen”Rechts. apud. SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito. 1. ed., 4. tir. São

Paulo: Malheiros, 2014, p. 39.

218 Registramos que Schupert e Bumke, segundo ensina Virgílio Afonso da Silva, reconhecem três atores como os

grandes impulsionadores da constitucionalização do direito, quais sejam: o legislador, o judiciário e a doutrina

jurídica (Idem, p. 43).

219 SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito. 1. ed., 4. tir. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 29-

30.

Page 126: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

126

princípio ora como vetor de interpretação, ora como norma jurídica, cabendo ao jurista

especificar em que acepção se utiliza o signo naquele momento220.

Lembramos que a terceira fase consagrou-se principalmente a partir dos estudos de

Robert Alexy, o qual considera existir uma distinção lógica entre princípios e regras. Segundo

o doutrinador alemão, os princípios traduziriam um “dever ser ideal”, ou seja, um comando que

“não prevê que aquilo que é devido é possível fática e juridicamente em toda sua extensão, mas

que exigem porém cumprimento o mais amplo e aproximativo possível”221. Desse conceito é

que se extrai o chamado caráter prima facie especial dos princípios, cujo grau de cumprimento

dos mandados deles decorrentes, por serem ideais, dependerá das condições fáticas e jurídicas

existentes222. Por outro lado, em condições normais, incidente uma regra, deverão ser aplicadas

as suas consequências jurídicas, na exata medida por ela determinada. Sobre essa distinção, ao

analisar a doutrina de Alexy, ensina Virgílio Afonso da Silva que “os princípios se distinguem

das regras de forma clara, pois estas, se válidas, devem ser realizadas sempre por completo”223,

ao passo que os princípios variarão “especialmente diante da existência de outros princípios

que imponham a realização de outro direito ou dever que colida com aquele exigido pelo

primeiro”224.

Por outro lado, é importante considerar que princípios representam a concretização de

um valor225, de modo que estes são inseridos no Ordenamento Jurídico por meio daqueles, ou

seja, os princípios representam a positivação dos valores que os inspiram. Dessa maneira, a

positivação de um valor representará a transcendência deste do plano axiológico (que diz se

algo é bom ou ruim) para o deôntico (plano do dever ser) através de um princípio. Sendo assim,

nesta terceira fase, os princípios são mandados de otimização, que impõem que o valor por ele

consagrado seja efetivado na maior medida possível, de acordo com o caso concreto226.

220 MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso de direito e a constitucionalização do direito privado. São Paulo:

Malheiros, 2010, p. 15.

221 ALEXY, Robert. Teoria discursiva do direito. Organização, tradução e discurso introdutório por Alexandre

Travessoni Gomes Trivisonno. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, p. 190.

222 Idem, p. 190-191.

223 SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito. 1. ed., 4. tir. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 32.

224 Idem, ibidem.

225 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo:

Malheiros, 2011, p. 153.

226 MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso de direito e a constitucionalização do direito privado. São Paulo:

Malheiros, 2010, p. 18.

Page 127: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

127

Diante dessas premissas, forçoso notar que, mais do que simplesmente estabelecer

exortações de boas intenções, os princípios conformarão a interpretação e a aplicação do direito,

o que, para efeitos de nosso estudo, trará fortes repercussões ao direito disciplinar, uma vez seja

esse analisado a partir do arcabouço normativo-axiológico fixado pela Constituição de 1988.

Para essa mudança de paradigma, trazemos alguns fundamentos que consideramos aptos a

justificar o motivo pelo qual o direito disciplinar (em especial a tipicidade em seu âmbito)

possui essa conformação no presente estágio evolutivo e por que razões essa não mais se

sustenta. Para tanto, trazemos fundamentos de cunho ontológico, histórico, pragmático e

dogmático. Vejamos.

4.5 Fundamentos para a modificação da hermenêutica consagrada em relação à

tipicidade no direito disciplinar

Conforme analisado anteriormente, a aceitação de tipos abertos pela maioria da

doutrina, legislação e jurisprudência pátrias é o patamar atual em que se encontra a análise da

tipicidade formal no âmbito do direito disciplinar. Conforme ressaltamos anteriormente,

referidos tipos são considerados abertos por abarcarem sob sua redação diversos verbos,

diversas espécies de conduta. Diferentemente do exemplo já dado acerca do crime de

homicídio, em que se consagra o verbo “matar”, para o qual não importa a forma ou as

circunstâncias em que isso se deu, a designação é uma só, os tipos disciplinares abertos se

tornam verdadeiras normas “guarda-chuva”, em relação aos quais diversos verbos podem ser

praticados para efeitos de um mesmo dispositivo (gritar, matar, roubar, dançar, etc.), de modo

que não se sabe qual seria a conduta mais leve ou a mais grave nele enquadrada. No entanto, de

encontro a essa concepção, trazemos neste trabalho algumas premissas, as quais indicam sua

incompatibilidade para com o arcabouço normativo-axiológico fixado pela Constituição

Federal de 1988.

Com efeito, conforme estudamos no primeiro capítulo, o regime de garantias dos

servidores públicos é um regime protetivo da própria coisa pública, de modo que o

enfraquecimento dessa salvaguarda representa desrespeito ao próprio cidadão, que tem direito

a uma Administração Pública isenta e pautada tão somente pela rigorosa busca pelo interesse

público. Eventual insegurança na condução interna da máquina pública poderia enfraquecer (ou

mesmo subverter) todo esse regime de garantias idealizado pelo constituinte originário.

Ademais, as relações especiais de sujeição, as quais tiveram no seu nascedouro a ideia de

Page 128: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

128

imunização do âmbito interno da Administração ao próprio direito já não mais possui essa

feição, haja vista o avanço não só dos institutos jurídicos sobre todos os compartimentos dos

entes estatais, mas da sua constitucionalização. Por derradeiro, como premissa fixada no

terceiro capítulo, possui o direito disciplinar aproximação visceral para com o direito penal, o

que torna insuficientes as garantias hoje fixadas naquele âmbito, as quais merecem maior

influxo da doutrina criminal, tarefa a que nos propomos neste estudo.

Neste diapasão, ressaltamos que os tipos abertos em matéria disciplinar podem deixar

ao arbítrio do hierarca a própria configuração ou não de eventual infração. Isso porque,

conforme ensina Riccardo Guastini227, um documento normativo é um agregado de enunciados

do discurso prescritivo, tido por discurso prescritivo aquele utilizado para modificar o

comportamento dos homens. Esses enunciados que são agregados para formar um documento

normativo são qualquer expressão linguística sob forma acabada, não se confundindo com o

isolado artigo da lei ou com o isolado parágrafo, visto que esses podem muito bem ser

constituídos por uma pluralidade de enunciados. Assim, são exemplos de enunciados tanto as

disposições quanto as normas, sendo que disposição é qualquer enunciado que faça parte de um

documento normativo; norma é todo enunciado que constitua o sentido ou o significado

atribuído a uma disposição. Desta feita, é possível dizer que a disposição é um texto ainda a ser

interpretado, enquanto a norma é um texto interpretado. Dito isso, conforme o ensinamento do

professor Guastini, a norma é o produto da interpretação, de modo que, se uma disposição é

extremamente genérica, esse produto será constituído de forma substancial pelas convicções do

intérprete, o qual, se analisado apenas sob essa perspectiva (daí a importância dos princípios,

que serão conectados a esse discurso posteriormente) possuirá grandes espaços de atuação

hermenêutica do hierarca, visto que os limites estabelecidos pelo texto são demasiadamente

amplos. Ou seja, o processo de deslindamento da norma será marcado por alto grau de

subjetividade do agente público que interpreta a disposição, pois, como a disposição é o

elemento limitador da sua interpretação, uma disposição que pouco limita, pouco garante,

descaracterizando a própria função do tipo, qual seja a de “assegurar transparência ao poder

punitivo estatal e, ademais, segurança jurídica à pessoa humana e àqueles que podem ser

atingidos pelo Direito Administrativo Sancionador”228. Sobre essa posição, é importante

227 GUASTINI, Riccardo. Das fontes às normas. São Paulo: Quartir Latin, 2005, p. 27-28.

228 OSORIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015,

p. 279.

Page 129: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

129

ressalvar que, conforme consideramos, não obstante sempre haja a interferência do intérprete

no processo de elucidação da norma, a sua conclusão não pode ser arbitrária (qualquer

interpretação cabível dentro de um quadro geral), ou seja, existe uma interpretação correta, que

deve ser buscada pelo intérprete ou aplicador229. No entanto, quanto mais genérico é o

dispositivo, mais distante fica o hermeneuta desse sentido constitucional, o que lhe franqueia

margem maior para fundamentar eventuais arbítrios.

Ressalvamos que não estamos a afirmar que será sempre inválida a utilização de

disposições legais genéricas ou mesmo que é vedada a subjetividade por parte do intérprete,

pois essa é inevitável em grande parte dos casos. No entanto, em se tratando especificamente

do direito disciplinar, essa amplitude merece temperamentos, pois espaços de baixíssima

densidade normativa dão azo a interpretações que, nesse ramo do direito administrativo, mais

do que em qualquer outro, podem se mostrar arbitrárias, de modo a amesquinhar as garantias

típicas do próprio regime público. Trata-se de fenômeno que comporta riscos, pois, conforma

afirma Gabriel Ivo, “sem uma disposição para estabelecer o ponto de partida, todo e qualquer

sentido seria possível, o que tornaria frágeis as fronteiras do Direito, permitindo interpretações

arbitrárias”230. Por analogia, aplicamos esse raciocínio às disposições que pouco descrevem

para concluirmos que os tipos abertos tornam frágeis as balizas jurídicas e malferem o direito

fundamental à segurança jurídica, situação inaceitável no Estado de Direito, visto que, nas

palavras de Humberto Ávila, “se o Estado de Direito é a proteção do indivíduo contra a

arbitrariedade, somente um ordenamento acessível e compreensível pode desempenhar essa

função” para concluir que “o Estado de Direito ou é seguro, ou não é Estado de Direito”231. É

por essa razão que se propõe uma revisão da interpretação da legislação disciplinar pátria,

baseada nos fundamentos que passam a ser analisados abaixo.

4.5.1 Fundamento ontológico

Primeiramente, destacamos que não existe uma diferença ontológica entre o tipo

disciplinar e o tipo penal. Ou seja, não são eles institutos que nascem de fontes ou sob

229 MARTINS, Ricardo Marcondes. Direito e justiça. In: PIRES, Luis Manuel Fonseca; MARTINS, Ricardo

Marcondes. Um diálogo sobre a justiça – A justiça arquetípica e a justiça deôntica. Belo Horizonte: Fórum,

2012, p. 149-244.

230 IVO, Gabriel. O direito e a inevitabilidade do cerco da linguagem. In: CARVALHO, Aurora Tomazini de

(Org.). Constructivismo lógico-semântico. São Paulo: Noeses, 2014, p. 65-91.

231 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 221.

Page 130: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

130

fundamentos diversos. Conforme ensina Fábio Medina Osório, o Direito Público Punitivo se

subdivide em dois ramos: o direito penal e o direito administrativo. Segundo o douto professor,

são essas duas as disciplinas que se referem, fundamentalmente, a mecanismos de que o Estado

dispõe para garantir a ordem pública e o ordenamento jurídico globalmente considerado, razão

pela qual diferenciam-se dos demais ramos do direito (como o direito civil, o trabalhista e o

processual), nos quais também são previstas “penas” e “sanções”232. Na mesma toada, Ricardo

Marcondes Martins, ao tratar das infrações e sanções administrativas, pontua que “a nota

diferencial entre a infração e a sanção penal e a infração e a sanção administrativa está, como

se percebe, na competência: a penal é imposta pela autoridade jurisdicional, a administrativa

pela autoridade administrativa” 233234. Por outro lado, destacamos que, segundo já registramos

neste estudo, não há uma definição prévia de crime na sociedade, ou seja, não há uma conduta

predeterminada que naturalmente, por seu grau de reprovabilidade moral, seja considerada

crime. O seu enquadramento em referido rol se dá a partir da opção legislativa em determinado

momento histórico, a qual julga certa ação humana digna de inibição através da coercibilidade

penal ou disciplinar. Conforme ensinam Zaffaroni e Pierangeli, “o ‘delito’ não existe

sociologicamente se prescindirmos da solução institucional comum”, destacando que o

“significado social” das condutas tipificadas como crimes é totalmente diferente. Como

exemplo, registram que, a princípio, o único traço comum entre uma pessoa que emite um

cheque sem provisão de fundos e alguém que comete o crime de estupro é o fato de que ambas

são consideradas infrações penais235.

A partir disso, possível concluir que não existe uma homogeneidade quanto às condutas

tipificadas como crimes. Não existe um conceito material inafastável que una todas elas sob um

único feixe. O que existe é uma eleição do legislador, levando em conta, na maioria das vezes,

a reprovabilidade do fato. Da mesma forma, também se insere no âmbito da discricionariedade

legislativa eleger certa conduta praticada no seio da Administração como infração disciplinar

232 OSORIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015,

p. 132-133.

233 MARTINS, Ricardo Marcondes. Sanções administrativas no Regime Diferenciado de Contratações Públicas –

RDC. Revista Brasileira de Infraestrutura – RBINF, Belo Horizonte, ano 4, n. 8, p. 47-88, jul.-dez. 2015.

234 Aproveitando a lição, citamos ainda Regis Fernandes de Oliveira, no mesmo sentido: “O conceito de

antijuridicidade é comum aos diversos ramos do direito; pertence à teoria geral do direito. Por isso não se

distinguem os ilícitos civil, criminal e administrativo, em sua essência; ontologicamente, são uma e mesma

coisa” (OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. 3. ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2012, p. 33).

235 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte geral.

11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 59.

Page 131: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

131

ou como crime. Ou seja, do mesmo modo que uma conduta pode ser tipificada como crime

contra a Administração Pública, sujeito a pena privativa de liberdade, poderia também ter sido

tipificada como infração disciplinar, sujeita a pena de demissão. Lembramos que o mesmo fato

pode ensejar punição das duas esferas, mas que isso não é uma característica intrínseca:

determinada conduta pode ser considerada infração disciplinar, mas não crime e vice-versa

(situação mais incomum, reconhecemos). Possível concluir, portanto, que o que se estuda é a

própria prerrogativa punitiva estatal, a qual, por opção legislativa, poderá ser condensada no

âmbito do direito penal ou no âmbito do direito disciplinar, de modo que não há uma diferença

essencial entre esses.

É importante ressaltar que, conforme já discorremos, o direto penal não se diferencia

necessariamente do direito disciplinar pela gravidade das condutas ou das penas impostas. Ora,

se determinada conduta pode ser apenada com a prestação de serviços à comunidade no direito

penal, outra pode ensejar a perda de cargo público de servidor, fato sensivelmente mais grave.

Ressalvamos a possibilidade de controle da constitucionalidade de uma lei que imponha sanção

absurda ou abusiva a determinada infração (ou mesmo que tipifique absurdamente determinada

infração), mas dada a amplitude da discricionariedade do legislador236, é admissível, a princípio,

o apenamento sob lógica diversa daquela que rege o senso comum, visto que, não obstante

possa ser vista como boa ou ruim aquela disposição, ela só deverá ser extirpada do ordenamento

jurídico se for efetivamente inválida.

Dessarte, sustentamos que não é possível falar em uma diferença ontológica entre a

infração disciplinar e a infração penal. Ambas decorrem do jus puniendi estatal e plasmadas no

poder conferido às respectivas esferas competentes pela Constituição, de modo que não há uma

diferença conceitual entra elas: reduzidas a conceitos mínimos, tratam-se de condutas que

infringem uma norma de proteção pública, sujeitas a uma pena. A diferença entre elas reside na

consequência, ou melhor, em quem vai aplicar a consequência: se a sanção será aplicada em

âmbito administrativo ou perante o poder judiciário. Todavia, não obstante essas esferas de

poder se diferenciem, ambas decorrem do poder punitivo estatal, instituto único que, como tal,

236 Neste sentido, leciona Fábio Medina Osório: “[...] o Direito Penal é, apenas em tese, mais severo do que o

Direito Administrativo Sancionador, dado seu caráter fragmentário. Sem embargo, na prática, dentro da ampla

liberdade de configuração legislativa dos ilícitos, nada impede o legislador de adotar critérios de maior

severidade de tratamento dos ilícitos do Direito Administrativo Sancionador. Podem-se discutir as escolhas

legislativas de tipificação mais severa de ilícitos no campo do Direito Administrativo, em detrimento do Direito

Penal, pelo ângulo da legitimidade, oportunidade e conveniência, mas não da legalidade ou constitucionalidade,

salvo absurdos ou abusos intoleráveis” (OSORIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 5. ed.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 203-204).

Page 132: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

132

demanda tratamento uniforme. Assim, as garantias constitucionais reservadas aos acusados em

ambas são, se não as mesmas, muito próximas, razão pela sustentamos a obrigatoriedade dos

tipos formais minuciosamente descritos em ambas as esferas.

Por derradeiro, importante ressalvar, a fim de espancar quaisquer dúvidas, que essa

unidade ontológica entre as infrações disciplinares e penais não enseja um bis in idem em razão

da possibilidade de apenamento em ambas as esferas. Isso porque, não obstante a conformação

lógica de ambas seja a mesma, unidas pela sua origem constitucional e fundamento mediato,

qual seja a garantia da ordem pública e o ordenamento jurídico globalmente considerado, o

fundamento imediato que as ampara é diferente, visto que, enquanto a coibição de infrações

disciplinares se presta a proteger o funcionamento interno da máquina pública estatal como

objeto imediato, a tipificação de condutas como crimes visa a proteger a sociedade de forma

mais genérica. Mesmo a coibição aos crimes contra a Administração Pública, não obstante

também contribua para o bom funcionamento dessa, possui como fundamento imediato a

proteção ao patrimônio material e imaterial da sociedade. O fim buscado é a pacificação social.

Isso justifica que as faltas funcionais sejam apreciadas dentro do seio da própria Administração

Pública ao passo que os crimes serão processados e julgados pelo Poder Judiciário237. Ora, se

um servidor pratica o crime de peculato, furtando bem de sua repartição pública, o patrimônio

de toda a sociedade foi lesado. Da mesma forma, não obstante o regime protetivo, não é

interessante para a Administração Pública ter em seus quadros servidor que se porte de modo a

praticar esse tipo de conduta. Assim, concluímos: os fundamentos imediatos de expressão do

jus puniendi estatal em cada uma das esferas são distintos, não obstante a conformação lógica

que o fundamente, em âmbito constitucional, seja a mesma, e é essa distinção no fundamento

imediato que justifica o processamento e aplicação de pena em esferas distintas e, a princípio,

independentes.

Conforme o exposto, tanto o direito penal quanto o direito disciplinar advém do jus

puniendi estatal, de maneira que devem ser resguardados, se não exatamente pelas mesmas

garantias, por aspectos garantidores semelhantes, oriundos do direito constitucional punitivo.

Com efeito, o fato de algo ser enquadrado como infração penal ou disciplinar só depende de

237 Sobre esses fundamentos distintos, precisa a lição de Egberto Maia Luz: “O ilícito administrativo assume, via

de regra, características próprias porque da sua existência resulta a quebra da normalidade para a vida

administrativa decorrente da atuação de um ou de mais de um servidor público, enquanto que do ilícito criminal

resulta a lesão de direito cuja vítima maior não é aquela fisicamente apontada, porém, a que recebe os reflexos

indiretos, isto é, a sociedade” (LUZ, Egberto Maia. Direito administrativo disciplinar – Teoria e prática. 2. ed.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 103).

Page 133: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

133

uma escolha legislativa, com base em seu fundamento imediato, a qual condicionará a

respectiva esfera punitiva. Dessa forma, a título de argumentação, até podem ser admitidas

algumas matizações, haja vista as peculiaridades de cada sistema, mas essas não podem

suplantar o sistema de garantias estabelecido no texto maior, dentre as quais se destaca a

tipicidade formal “fechada”, típica do direito penal. Ambos possuem matriz constitucional, de

maneira que as garantias do processo constitucional a elas se impõem como um todo.

4.5.2 Fundamento histórico

Conforme analisado no capítulo atinente às relações especiais de sujeição (Capítulo 02

deste estudo), o regime jurídico dos servidores públicos evoluiu a partir de uma doutrina que

consagrava, no que tange às relações internas da Administração Pública, a sua imunização à

juridicidade para criar uma espécie de “direito doméstico”, o qual acabava por relegar o destino

funcional dos servidores públicos aos desígnios do próprio administrador ou hierarca. O direito

penal, por sua vez, evoluiu como forma de proteção do cidadão frente ao Estado, uma garantia

individual desse contra eventuais abusos estatais, o que justificou o forte desenvolvimento de

teorias e legislações que tratam o indivíduo como o fim da norma. Dessa maneira, se o direito

disciplinar foi visto historicamente como garantia de punição daquele que representasse uma

conturbação ao bom funcionamento do serviço público, o direito penal se consagrou como um

elemento protetivo frente a arbitrariedades. Ou seja, por um lado evoluiu-se como se a falta de

garantias dos servidores fosse algo salutar ao direito disciplinar, por assegurar com mais

veemência a proteção ao coletivo, ao passo que a consagração de garantias de direito penal foi

incorporada como sinônimo civilizatório, direito fundamental de proteção do cidadão frente aos

arbítrios do Estado. Isso explica a razão pela qual somente em tempos atuais começa a se

discutir a insegurança do servidor dentro da Administração Pública, justificada pelo fato de que

este é o protetor da própria Administração (e consequentemente, dos interesses dos cidadãos),

de modo que, se o cidadão faz jus à proteção contra os abusos estatais em sua esfera privada,

também deverá sê-lo na projeção de seus interesses nas relações interna corporis do Poder

Público.

Page 134: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

134

Conforme ensinam Zaffaroni e Pierangeli, o direito penal sofreu fortes mudanças a partir

das ideias do “despotismo ilustrado” 238 do Século XVIII, que inspiraram a alteração de diversas

codificações penais europeias, dentre as quais se destaca a reforma penal austríaca, que, em

1787, promoveu a revisão da Constitutio Criminalis Theresiana, sancionada pela Rainha Maria

Theresa, para dividir as infrações penais entre graves (ou penais) e leves (ou policiais). Referida

reforma substituiu ainda a pena de morte em diversos casos e consagrou o princípio do nullum

crimen sine lege, proibindo a analogia para fins penais. Já o Direito Administrativo, no mesmo

momento histórico via nascer o Estado Moderno a partir dos escombros da Revolução Francesa,

quando os revolucionários, desconfiados do perfil aristocrático dos juízes de então, buscaram

criar um espaço imune ao Poder Judiciário, submetido ao juízo dos próprios administradores (o

que, em muito, explica a criação da jurisdição administrativa). A igualdade propugnada pelos

ideais da revolução apenas se consagrava no seio da sociedade; frente ao Estado o que existia

era grande desigualdade e verticalidade, a qual superava muitas vezes aquela imposta pelos reis

do Antigo regime239. Tudo em prol do ideal revolucionário. Isso explica, dentre outras coisas,

o elevado grau de autoritarismo que marcou a conformação inicial da maioria dos institutos de

direito administrativo. Somado à teoria já existente no direito alemão, das relações especiais de

sujeição, o que se viu foi um regime disciplinar caracterizado por forte arbítrio do hierarca.

Desse caldo autoritário nasce a justificação histórica de por que razão o tipo formal, para fins

disciplinares, sempre foi aberto e genérico: simplesmente porque não havia preocupação com

o seu controle e a sua juridicidade. Essa atenção vem de uma concepção moderna, a qual, de

forma ainda incipiente, busca hoje reformar vários institutos do direito administrativo a partir

de uma perspectiva material constitucional.

Assim, se o direito penal se firmou como um direito de garantias dos cidadãos frente ao

abuso estatal, o direito sancionador administrativo (ramo que engloba o direito disciplinar) se

desenvolveu à semelhança das teorias de direito penal como forma de defesa social, típica de

regimes despóticos (e não do Estado de Direito), o qual vê a sociedade como um ente (ou

organismo) superior e tende a conceber um direito punitivo transpersonalista e autoritário240.

238 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte geral.

11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 194.

239 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. Revolución Francesa y administración contemporánea. 4. ed. reimpr.

Navarra: Civitas, 2005, passim.

240 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte geral.

11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 94.

Page 135: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

135

Dessa forma, concluímos que direito penal e direito administrativo tiveram em determinado

momento histórico o impulso científico que os conformou até a data de hoje, mas trilharam

caminhos totalmente distintos, não por serem ontologicamente diferentes, mas por se prestarem

historicamente a fins diversos, o que, pensamos, merece revisão. Ou seja, não obstante hoje já

se reconheça que direito disciplinar e direito penal possuem o mesmo fundamento, ou seja,

ambos decorrem do jus puniendi estatal, não possuindo qualquer diferença ontológica,

conforme ressaltamos acima (item 4.3.1), sua evolução histórica por caminhos teóricos distintos

explica a razão pela qual recebem tratamentos tão díspares da doutrina, legislação e

jurisprudência, fato que, entendemos, merece correção, destacando-se, para efeitos do presente

estudo, a inconstitucionalidade da utilização de tipos abertos no direito disciplinar.

4.5.3 Fundamento pragmático

Quanto ao fundamento pragmático sobre o qual sustentamos nossa proposta, o

dividimos em duas partes: primeiro, a impossibilidade alegada tradicionalmente pela doutrina

de previsão de todas as infrações disciplinares pelo legislador, que consideramos um falso

problema; segundo, a insegurança que os tipos abertos trazem para o dia-a-dia dos servidores

públicos. Vejamos.

Quanto ao primeiro fundamento, registramos que a doutrina pátria justificou

historicamente a impossibilidade do estabelecimento de tipos “fechados” no âmbito do direito

disciplinar, pois seria impossível ao legislador prever todas as condutas passíveis de configurar

infrações funcionais. Pensamos, todavia, não ser esse um argumento peremptório a justificar a

adoção de tipos abertos em direito disciplinar, haja vista que nem mesmo em direito penal existe

uma tipificação fechada e rigorosa de todas as espécies criminosas. Conforme reconhecem

Zaffaroni e Pierangeli, não existem sistemas formados absolutamente por tipos legais (o

legislador jamais alcançaria tanto casuísmo), da mesma forma que inexistem sistemas formados

totalmente por tipos judiciais. O que existe, em verdade, são “sistemas que perseguem o ideal

dos tipos legais, na procura do maior grau de certeza do proibido que as técnicas legais

permitam, e sistemas que se distanciam deste ideal”241. Diante disso, o simples argumento de

que seria impossível ao legislador prever todas as infrações em direito disciplinar também é

aplicável ao direito penal, mas nem por isso abriu-se mão, nesse ramo, da busca pela melhor

241 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte geral.

11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 401.

Page 136: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

136

tipificação das condutas ditas delituosas. Dessarte, o que propomos é a mudança de paradigma

no direito disciplinar para que se passe a buscar a descrição mais exata dos tipos punitivos que

abrange, o que, se não pode ser feito de imediato pela doutrina por depender de alterações

legislativas, pode ter a contribuição dessa para oferecer diretrizes de objetivação ou de

“fechamento” do tipo disciplinar. Sendo assim, o argumento de que seria impossível prever

todas as condutas representa um falso problema, o qual não impede o direito penal de buscar

esses objetivos, não devendo, portanto, representar óbice ao direito disciplinar.

Quanto ao segundo argumento, lembramos, valendo-nos da doutrina de Agustín A.

Gordillo, que o Poder Público tende a criar regras que nunca são cumpridas em sua

integralidade, de modo a existir uma Administração real e uma Administração “paralela”.

Segundo o professor argentino, são impostas regras excessivas, as quais nem mesmo o servidor

mais exemplar cumpre integralmente, o que cria naturalmente uma duplicação vil do sistema,

de forma a existir um sistema legal e um sistema real. Isso ocorre tanto no seio da sociedade (a

exemplo do motorista que trafega pela esquerda quando deveria trafegar pela direita), quanto

dentro da própria Administração Pública. Assim, é possível falar em um sistema e em um

parassistema, de sorte que o excesso de regras passa a ser utilizado não para a coação a quem

se afasta do programa legal, mas para quem se afasta do programa paralegal, sendo que a

violação de normas parassistemáticas não encontrará sanção apenas no parassistema, mas

também no próprio sistema242. Ou seja, o excesso de regras (muitas vezes desconhecidas e

obscuras, a exemplo dos tipos abertos) passa a ensejar um descumprimento generalizado. Para

ilustrar essa situação, retomamos o exemplo já dado no início deste capítulo, referente à

proibição de “manifestação de apreço ou desapreço no recinto da repartição” para afirmarmos,

com toda segurança, que essa é uma regra não cumprida na grande maioria das repartições

públicas do país. Em qualquer órgão estatal do Brasil é possível ver colegas cantando parabéns

para outros na data de seus respectivos aniversários ou discutindo os rumos da política no país,

com cada lado externando (inclusive de forma acalorada) sua posição político-partidária sem

que nada com eles ocorra. Ambas as situações podem ser interpretadas como manifestação de

apreço ou desapreço, de modo que é possível concluir que grande parte dos servidores

descumpre a regra de seu estatuto. E, na prática, a quem atende essa situação de

descumprimento? Ao administrador mal-intencionado, o qual, a pretexto de coibir referida

conduta poderá perseguir seus inimigos e concorrentes, poupando seus aliados, haja vista que,

242 GORDILLO, Agustín A. La administración paralela. Madrid: Civitas, 1982, passim.

Page 137: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

137

como todos descumprem a norma estatutária, todos estarão sujeitos ao arbítrio do hierarca.

Dessa maneira, reputamos que, sob um aspecto pragmático, os tipos abertos funcionam como

verdadeiro pretexto para a perseguição de inimigos e adversários do hierarca243. Sem saber que

condutas são propriamente configuradas infrações funcionais, instaura-se um ambiente de medo

e acossamento, de modo que o risco se torna a regra e a insegurança jurídica grassa no seio da

Administração. Neste sentido, a zona cinzenta dos tipos abertos tanto permitirá a penalização

do bom servidor quanto a benevolência do hierarca para com o mau servidor, haja vista que,

com um fraco balizamento legal, a conduta descrita no tipo será aquela que o hierarca indicar a

seu bel-prazer. Desse modo, um sistema que estabeleça maior rigor para a caracterização da

tipicidade funcionará como uma dupla garantia: tanto vai garantir que o bom servidor não fique

sujeito a pressões, quanto que o mau servidor será devidamente processado quando faltar com

seus deveres funcionais.

Assim, concluímos que as garantias reservadas no texto constitucional, na prática,

acabam caindo por terra frente ao arbítrio concedido ao hierarca por meio dos tipos abertos. As

garantias do funcionalismo existem para que os servidores se portem com moralidade e altivez,

independente das pressões que se lhe imponham. Deixar a sua persecução ao arbítrio do pessoal

de outro servidor é ignorar a possibilidade de corrupção da máquina pública e amesquinhar um

plano garantidor previsto pelo constituinte originário.

4.5.4 Fundamento dogmático

O Direito é uma ciência e caracteriza-se, como tal, pela sistematicidade. Como todo

sistema científico, possui os chamados elementos aglutinadores, os quais lhe dão a lógica e a

coerência necessárias para a harmonização e aproximação em si mesmo daquele todo

inicialmente caótico. No caso da ciência jurídica, os elementos aglutinadores são os princípios.

Nas palavras do professor Ricardo Marcondes Martins, sem eles, seriam os elementos do direito

mero amontoado de normas, mera soma, de modo que “são os princípios jurídicos, ideias-chave,

243 O professor Ricardo Marcondes Martins tratou com originalidade no direito brasileiro: “O direito disciplinar é

outro bom exemplo de funcionamento paralelo do modelo de prestância ou rivalidade. As regras disciplinares,

no funcionalismo público, costumam, por um lado, não ser impostas aos amigos dos superiores hierárquicos;

por outro, são rigorosamente aplicadas aos inimigos. As regras permanecem vigentes, mas não são impostas à

generalidade dos servidores. Quando um servidor incomoda, por não fechar os olhos à corrupção alheia, as

regras, ineficazes para todos, tornam-se eficazes para ele” (MARTINS, Ricardo Marcondes. Direito e justiça.

In: PIRES, Luis Manuel Fonseca; MARTINS, Ricardo Marcondes. Um diálogo sobre a justiça – A justiça

arquetípica e a justiça deôntica. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 149-244).

Page 138: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

138

fundamentais, que estão por trás do conjunto das normas jurídicas vigentes”244. Assim, a partir

dos princípios o intérprete poderá transformar o todo caótico formado pelas normas jurídicas

(esparsas e inicialmente assistemáticas) em um objeto coerente e unitário. Dessa forma, é

impossível interpretar corretamente determinado sistema normativo sem fazer uso dos

princípios, ou melhor “a interpretação mais consentânea aos princípios jurídicos é a

interpretação cientificamente correta”245. Por essa razão, pensamos que o estudo do presente

tema carece de análise dos institutos em referência a partir dos valores consagrados pelos

princípios que emanam da Constituição Federal. Chamamos a esse fundamento de dogmático,

pois o Texto Maior é que fixará os dogmas que serão adotados pelo cientista do direito como

pressuposto para as demais formulações.

Dito isso, destacamos inicialmente que nos opomos à utilização de tipos abertos no

direito disciplinar, dentre os outros fundamentos já analisados, devido à significativa perda da

segurança jurídica que esses proporcionam. Para estudo da segurança jurídica, valemo-nos da

lição de Humberto Ávila, que escreveu brilhantemente sobre o tema e observa que a

Constituição Federal de 1988 previu expressamente a proteção da “segurança” em seu

preâmbulo ao afirmar que se reúnem os representantes do povo para instituir um Estado

Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a

segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de

uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e

comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.

Conforme afirma acertadamente o doutrinador, ao se referir à segurança, no mínimo, cinco

vezes nessa disposição, “pode-se dizer, com isso, que a Constituição como que eleva a

segurança à ‘quinta potência’, já no seu ‘Preâmbulo’, ao estabelecer, com redundância enfática,

algo como ‘tornar segura a segurança como algo digno de ser assegurado em uma sociedade

segura’”246. E, por óbvio, quando se refere a esse conceito, se refere à segurança em seu âmbito

jurídico (e não apenas físico), pois nos termos do art. 1º da Constituição Federal, a segurança é

assegurada como um valor (o que ultrapassa a “dimensão meramente psicológica ou física”),

244 MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso de direito e a constitucionalização do direito privado. São Paulo:

Malheiros, 2010, p. 22.

245 MARTINS, Ricardo Marcondes. Justiça deôntica. In: PIRES, Luis Manuel Fonseca; MARTINS, Ricardo

Marcondes. Um diálogo sobre a justiça – A justiça arquetípica e a justiça deôntica. Belo Horizonte: Fórum,

2012, p. 149-244.

246 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 215-216.

Page 139: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

139

porque o “direito à segurança” é previsto no art. 5º, ao lado do direito à igualdade, liberdade e

à propriedade, “valores sociais objetivos” e também porque, dentre os valores fundamentais

catalogados pelos incisos do art. 5º, há proteção tanto à segurança física e individual quanto às

exteriorizações de pensamento, consciência e crença, o que faz pressupor uma amplitude

maior247. Nesta esteira, reconhece Ávila que a segurança jurídica é uma norma-princípio, visto

que “pelo exame de sua estrutura e das suas partes constituintes, verifica-se que ela determina

a proteção de um ideal de coisas cuja realização depende de comportamentos, muitos dos quais

já previstos expressamente”248.

Seguindo na doutrina da Humberto Ávila, em seu âmbito material, o princípio da

segurança jurídica se caracteriza por três aspectos: a) cognoscibilidade; b) confiabilidade e; c)

calculabilidade. A cognoscibilidade diz respeito à impossibilidade de uma predeterminação

pronta e acabada de todos os conceitos utilizados pelo legislador, o que não quer dizer que a

linguagem normativa não terá núcleos já definidos pela doutrina e pela jurisprudência249. A

confiabilidade significa que o Estado é um transformador da sociedade e essa tende a se

modificar, mas essas naturais alterações não impedem que os administrados tenham um mínimo

de estabilidade em suas relações (“um mínimo de permanência das regras válidas como

condição para que o homem possa livremente plasmar a própria vida”)250. Já a calculabilidade,

em oposição à previsibilidade, diz respeito à impossibilidade de total univocidade dos

regramentos normativos, o que não impede, todavia, que, mesmo com alterações legislativas,

sejam respeitados os direitos fundamentais. Refere-se também à vedação de interpretações

alijadas de critérios de legitimação, bem como pelo fato de que “a escolha do sentido depende,

igualmente, de estruturas externas dadas por regras materiais e procedimentais, como regras de

competência administrativa ou jurisdicional, ou procedimentos administrativos ou judiciais”251.

Dessa maneira, observamos que o constituinte originário se preocupou sobremaneira com a

segurança jurídica dos administrados, pressuposto para o desenvolvimento de uma sociedade

justa e igualitária. E essa concepção se sociedade justa passa por uma Administração Pública

imunizada a interesses não republicanos, por meio dos quais alguns grupos tentam se apropriar

do patrimônio de todos. Por essa razão, é imperioso que as regras disciplinares atendam ao

247 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 263.

248 Idem, p. 264.

249 Idem, ibidem.

250 Idem, p. 265.

251 Idem, p. 266-267.

Page 140: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

140

requisito da cognoscibilidade, com a possibilidade de estabelecimento de núcleos precisos das

prescrições às quais os servidores são submetidos; ao requisito da confiabilidade, protegendo-

os contra alterações bruscas de entendimento, hipótese que já seria consideravelmente

prevenida com o estabelecimento de tipos dotados de maior exatidão; bem como ao requisito

da calculabilidade, ou seja, o conhecimento acerca de que condutas são enquadradas nos

dispositivos passíveis de imposição ou, pelo menos, dos critérios de legitimação que as

justifiquem.

Mas não é só. Destacamos ainda a importância que segurança jurídica possui por

influenciar consideravelmente outros princípios consagrados na Constituição da República.

Com efeito, os princípios constitucionais se relacionam entre si e, não obstante se caracterizem

por uma constante tensão, esses também, em determinados momentos, podem se fortalecer e se

amparar mutuamente, num círculo virtuoso. É o que ocorre, por exemplo, na relação do

princípio em comento com o princípio da igualdade, o qual, uma vez garantido, é também uma

forma de salvaguardar a segurança jurídica, projetando-se, segundo Humberto Ávila, de dois

modos: a) pelo dever de igualdade perante a lei (“como as normas, gerais e abstratas, devem

ser aplicadas de maneira uniforme e impessoal, sem as considerações da pessoa, os cidadãos

que se encontram em situação equivalente deverão receber igual tratamento”); b) o cidadão que

recebeu determinado tratamento da Administração tem direito à manutenção daquele

tratamento, mantidas as condições que o justificaram252. No mesmo sentido, destacamos a sua

relação com o princípio da dignidade humana, do qual a segurança jurídica é um pressuposto

para o alcance, visto que “sem um ordenamento minimamente inteligível, estável e previsível

o homem não tem como se autodeterminar, plasmando o seu presente e planejando o seu futuro

com liberdade e autonomia”253. Na perspectiva de nossos estudos, afirmamos, portanto, que o

ambiente de insegurança criado no Administração Pública pelos tipos abertos, além de ofender

o regime de proteção da coisa pública, ofende o direito fundamental à dignidade de seus

servidores. Ou seja, além de criar um ambiente de insegurança, que fere os anseios de

imunização da máquina pública, nos moldes idealizados pelo constituinte originário, relega os

servidores, cidadãos inseridos em uma relação de sujeição especial, a uma situação de potencial

arbítrio, incompatível com o Estado Democrático de Direito. Por outro lado, ao relacionarmos

o princípio da segurança jurídica com a moralidade administrativa, ainda nos valendo da lição

252 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 237-238.

253 Idem, p. 239.

Page 141: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

141

de Humberto Ávila, concluímos que esse impõe ao Estado o dever de evitar comportamentos

desleais e não fundamentados ao cidadão, bem como a função de orientar a conduta do

administrado, a fim de evitar sua frustração ou surpresa254. Assim, o hierarca que

arbitrariamente “cria” norma para enquadrar a conduta de um desafeto, antes atípica, age de

forma ilegal, vez que, não obstante o quadro normativo fornecido por aquele dispositivo, dada

a sua generalidade e abstração, lhe garanta formalmente essa atuação, materialmente ele estará

ofendendo, dentre outros princípios, o princípio da moralidade, o que impõe a sua correção.

Doutra ponta, conforme ensina Fábio Medina Osório, destacamos que “pelo ângulo

substantivo, a legislação deve estar em conformidade com os critérios do just and fair standart,

ajustando-se às ideias de razoabilidade e interdição à arbitrariedade”255. Ou seja, a legislação

também deve ser analisada sob uma perspectiva material, de modo que nem o seu conteúdo

deve expressamente abrigar prescrições arbitrárias, nem ela pode dar ensejo a ações arbitrárias,

de modo que é irrelevante o fato de que, na elaboração do texto legislativo, o legislador não

consagrou formalmente ditames abusivos, se a consequência desse texto dá azo a atuações

abusivas, a exemplo dos tipos disciplinares abertos. Dessa maneira, sob uma perspectiva

substancial do direito, é preciso verificar as consequências que a técnica legislativa utilizada

poderá acarretar no âmbito de sua operabilidade, bem como a harmonia (ou desarmonia) dessa

consequência em relação ao arcabouço axiológico consagrado no texto constitucional. São dois

momentos, portanto, o que nos remete à teoria estruturante de Friedrich Müller, segundo o qual

a norma possui duas partes: o programa normativo e o âmbito normativo. O primeiro diz

respeito às próprias disposições da norma, ou seja, ao texto que consagra, ao passo que o

segundo se refere aos aspectos da realidade que condicionam a interpretação, de modo que

aplicar corretamente o direito também envolve uma apreensão da realidade256. Dessa maneira,

possível concluir que estabelecer um programa normativo alijado da realidade ou que dê azo a

arbitrariedades no corpo social não é uma exegese válida frente ao propósito do direito e, em

nosso caso, aos valores consagrados no texto da Constituição Federal. O intérprete deverá

buscar interpretações que se coadunem com o programa estabelecido no Texto Constitucional,

de maneira que, levando esses aspectos em consideração, será possível a alteração do sentido

254 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 243.

255 OSORIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015,

p. 184.

256 MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. São Paulo: Max Limonad, 2000.

Page 142: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

142

da norma, ainda que sem a alteração do texto, destacando-se, dentre os motivos que podem

levar a esse câmbio interpretativo, as consequências de seu texto na realidade.

Além disso, conforme afirma Clarissa Sampaio Silva, “a escolha pela edição de leis

repletas de cláusulas gerais, de conceitos indeterminados, que intencionalmente confiram

poderes decisórios à Administração não pode ser aleatória, necessitando, antes, de justificativa

material”257. Ou seja, caso opte por se utilizar de conceitos indeterminados, deverá o legislador

justificar materialmente a sua utilização e essa justificativa racional deve ser aceita pelo sistema,

o que, com base nos argumentos aqui expostos, pensamos não ocorrer em relação aos

dispositivos legais que consagram tipos disciplinares abertos por não se sustentarem perante o

“princípio da razoabilidade das leis”258.

Diante de todo o exposto, concluímos que, também sob este fundamento, a consagração

de tipos disciplinares abertos não é ato consentâneo com o Texto Constitucional, por violar os

princípios da segurança jurídica, da dignidade humana e da igualdade, dentre outros, de sorte

que a técnica de interpretação constitucional adotada nos leva à proposição de alterações da

hermenêutica consagrada, conforme passamos a expor no tópico a seguir.

4.6 Diretrizes de objetivação

De acordo com o quanto observado acima, o direito administrativo disciplinar pátrio

apresenta uma severa falha, historicamente consagrada, no que se refere à tipicidade formal em

seus domínios. Os tipos abertos comumente utilizados em nossa legislação positivada eivam de

inconstitucionalidade dispositivos em praticamente todas as leis disciplinares do país. Ocorre,

todavia, que simplesmente apontar inconstitucionalidades em determinado(s) diploma(s) ou

sugerir uma alteração legislativa (solução de lege ferenda) seria algo um tanto inconclusivo

para efeitos de um estudo científico. Pensamos que o papel do cientista do direito é o de

apresentar uma solução de lege lata, ou seja, nos termos da legislação em vigor, a fim de

adequá-la e compatibilizá-la ao referencial adotado, qual seja, em nosso caso, os princípios

consagrados no Texto Maior.

257 SILVA, Clarissa Sampaio. Direitos fundamentais e relações especiais de sujeição. O caso dos agentes

públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 159.

258 OSORIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015,

p. 194.

Page 143: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

143

Neste ponto, importante fazer breve parêntese para embasar a solução ora proposta.

Segundo Hans Kelsen, na brilhante obra A Teoria Pura do Direito, a norma jurídica se

assemelha a uma moldura, na qual o intérprete sempre conseguirá enquadrar diversas

interpretações. O papel científico do Direito resumir-se-ia a essa tarefa interpretativa, de modo

que o ato volitivo, ou seja, a escolha entre qualquer das soluções apontadas, seria um ato

político, de sorte que poderia o intérprete adotar livremente qualquer uma delas. Sob essa

perspectiva, não haveria uma solução jurídica correta, vez que qualquer das soluções escolhidas

pelo intérprete seria válida, indiferentemente259. A essa dificuldade (ou impossibilidade) de

encontrar a solução jurídica correta chamou o professor Tercio Sampaio Ferraz Jr. de “desafio

kelseniano”260. Como alternativa à solução desse desafio, o professor Ricardo Marcondes

Martins261 propõe o uso de duas teorias: a teoria do legislador racional, formulada por Carlos

Santiago Nino e a teoria da interpretação criativa, de autoria de Ronald Dworkin. Segundo a

teoria do legislador racional, os textos normativos são naturalmente caóticos, formulados por

pessoas que não necessariamente têm conhecimento jurídico-científico, de maneira que caberá

ao intérprete realizar a sua tarefa hermenêutica de modo a dar-lhes coerência. Para tanto, se

valerá de algumas pressuposições, como por exemplo, a da unidade do legislador (o legislador

não é um único órgão ou pessoa, mas, em verdade, um conjunto de órgãos difundidos

espacialmente do território nacional e agregados sob suas competências) ou pressupor que as

leis terão necessariamente uma pretensão de justiça ou que terão um senso operativo, no sentido

de resolver problemas do dia-a-dia da sociedade262. Já a teoria da interpretação criativa,

formulada por Ronald Dworkin, reza que, ao interpretar a norma, o hermeneuta buscará a

melhor interpretação possível, de sorte que, dentre os vários sentidos possíveis, deve ele almejar

aquele que mais se adéque àquilo que chama “princípio da integridade”, o qual se subdivide em

dois: um aplicável ao legislador e outro aplicável ao juiz. O princípio da integridade aplicável

ao legislador faz com que esse, ao editar uma lei, vise a um texto parte de um todo coerente,

259 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 390.

260 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 5. ed. São Paulo: Altas, 2007, p. 265.

261 MARTINS, Ricardo Marcondes. Direito e Justiça. In: PIRES, Luis Manuel Fonseca; MARTINS, Ricardo

Marcondes. Um diálogo sobre a justiça – A justiça arquetípica e a justiça deôntica. Belo Horizonte: Fórum,

2012, p. 43-91.

262 SANTIAGO NINO, Carlos. Introdução à análise do direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. apud.

MARTINS, Ricardo Marcondes. Direito e Justiça. In: PIRES, Luis Manuel Fonseca; MARTINS, Ricardo

Marcondes. Um diálogo sobre a justiça – A justiça arquetípica e a justiça deôntica. Belo Horizonte: Fórum,

2012, p. 149-244.

Page 144: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

144

íntegro do ponto de vista valorativo e linguístico. Por outro lado, ao aplicar a norma, também

deverá o juiz considerá-la coerente tanto quanto puder263.

Dessa maneira, tendo em vista que o legislador pode cometer atecnias ao redigir um

texto legislativo, bem como pelo fato de que cabe ao intérprete, em vez de adotar qualquer

interpretação que o amesquinhe, buscar aquilo que de melhor pode ser extraído da redação

consagrada, propomos a utilização de algumas diretrizes as quais, se não resolvem

peremptoriamente todos os problemas da tipicidade na legislação disciplinar pátria, se prestam

a melhorar o direito e direcioná-lo ao norte que deve lhe inspirar, qual seja, em nosso caso, o

arcabouço material consagrado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Dessarte, reconhecemos que a imposição de restrições próprias da tipificação penal ao

legislador disciplinar é medida que pressupõe a existência de um Estado de Direito maduro,

ainda não alcançado pela experiência pátria264. Neste passo, no que tange à tipicidade,

reconhecemos que nossa legislação disciplinar ainda não atenderia aos requisitos enumerados

no presente trabalho, de sorte que, caso exigidos de imediato, praticamente toda ela quedaria

inválida. Dessa forma, é possível admitir que, temporariamente, com fundamento na teoria das

relações especiais de sujeição (sob a perspectiva que expusemos neste trabalho, ressalve-se),

admita-se a responsabilização funcional do agente público a despeito da inexistência de prévia

descrição pormenorizada de sua conduta em norma legal disciplinar. No entanto, a fim de

equalizar a proposta formulada à legislação pátria, para que avancemos rumo a um Estado de

Direito seguro, que salvaguarda a segurança jurídica como elevado valor, como forma de

objetivar a legislação disciplinar pátria, propomos as seguintes diretrizes de objetivação.

Como primeiro passo, dentro do sistema das relações especiais de sujeição, sob a

perspectiva ora proposta, necessária a análise da conduta do servidor frente aos pressupostos

indispensáveis ao próprio exercício dos poderes referentes a essa relação, segundo a proposta

do professor Celso Antônio Bandeira de Mello, que, fazendo estudo delas, propõe

condicionantes positivos e negativos para o exercício dos poderes que comportam, os quais

auxiliarão o intérprete do direito na fixação de patamares objetivos para a configuração de faltas

funcionais. Assim, como pressupostos positivos são citados: a) o fundamento último dos

poderes em questão deve ser a lei (de forma implícita ou explícita); b) o poder a ser exercido

263 DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. apud. MARTINS, Ricardo

Marcondes. Direito e Justiça. In: PIRES, Luis Manuel Fonseca; MARTINS, Ricardo Marcondes. Um diálogo

sobre a justiça – A justiça arquetípica e a justiça deôntica. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 149-244.

264 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 620.

Page 145: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

145

deve encontrar seu fundamento também nas relações especiais de sujeição, ou seja, no nosso

caso, se relacionar a aspectos funcionais do servidor; c) as disposições advindas do poder em

questão devem ser restritas aos fins almejados por aquela relação em sujeição especial; d)

respeito aos princípios da razoabilidade de da proporcionalidade; e) pertinência temática em

relação ao objeto a ela atrelado. Como pressupostos negativos cita o douto professor da escola

de Perdizes: a) não podem contrariar ou ferir direitos, deveres ou obrigações advindos da lei ou

da Constituição; b) não podem extravasar os limites daquela relação especial; c) não podem

exceder os limites dos fins a que se propõe aquela relação especial de sujeição; d) não podem

elidir ou restringir direitos de terceiros alheios àquela relação especial265.

Na esteira do parágrafo anterior, com o fito de auxiliar a verificação da configuração da

falta funcional, destacamos a necessidade de, uma vez atendidos os pressupostos, efetuar-se

uma combinação dos tipos abertos do direito disciplinar com outros elementos objetivos da

legislação, a fim de que sua consubstanciação não se torne arbitrária. Sobre isso, digna de

referência é a doutrina de Mauro Roberto Gomes de Mattos que, ao analisar a legislação federal

(Lei n. 8.112/90), propugna a combinação dos tipos abertos com elementos encartados no art.

128 de referida lei, tais como “a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela

provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes

funcionais”266. Dessa maneira, concluímos que os tipos abertos jamais poderão ser aplicados de

forma isolada, sendo-lhes imposta a necessidade de atender, num primeiro momento, aos

pressupostos positivos e negativos citados no parágrafo anterior, se relacionar com outros

elementos objetivos trazidos pela legislação.

Num terceiro plano, como último passo necessário à configuração da infração funcional,

propomos a utilização da teoria do professor Ricardo Marcondes, chamada regra da

razoabilidade às avessas, segundo a qual, na ausência de adequada tipificação da conduta, “para

que haja punição disciplinar do agente não se deve perguntar se a imposição da sanção é

razoável, mas sim se não é razoável a não-imposição da sanção” 267. Conforme dito, ela advém

da impossibilidade imediata da completa tipificação das infrações disciplinares, do que decorre

que a falta disciplinar, na ausência de uma tipificação legal pormenorizada, só será passível de

265 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2014,

p. 845-846.

266 MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Tratado de direito administrativo disciplinar. 2 ed. Rio de Janeiro:

Forense, 2010, p. 208.

267 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 620-

624.

Page 146: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

146

configuração se houver um consenso acerca da irrazoabilidade quanto à não imposição dessa.

No regime disciplinar, a causa é a relação entre a infração disciplinar e a aplicação da pena,

sendo que aquela (causa) é sempre vinculada, pois não é qualquer circunstância da vida,

escolhida pelo agente, que pode legitimar a aplicação de uma pena, mas somente uma infração,

que é o seu pressuposto legal. Assim, a determinação da conduta como infração não poderá

fazer parte da vontade do agente, mas tão somente da interpretação da lei. A regra em comento

torna a caracterização da infração uma atividade vinculada, passível de verificação

jurisdicional, visto que, apesar de não haver perfeita tipificação legal formal, o consenso social

acerca da conduta infracional tornará possível referida certificação268.

Assim, se, a título de exemplo, um professor da rede pública molesta um aluno menor

de idade, ainda que não haja previsão específica em seu estatuto funcional quanto à prática de

atos de pedofilia, dada a repulsa que aquela conduta causa, bem como a sua gravidade, é patente

que apenas uma pessoa fora de um juízo de moral mínimo entenderia que não haveria causa

para puni-lo. Assim, seguindo na exemplificação, se existir um tipo em sua legislação

disciplinar, ainda que genérico (tal como a conhecida “incontinência de conduta”) certamente

o professor pedófilo deverá ser enquadrado, processado e, se comprovada a autoria,

materialidade e dolo ou culpa, punido. Porque não é razoável não puni-lo: há um consenso

social quanto à necessidade de sua punição. No entanto, se uma servidora de ambiente

burocrático comparece à sua repartição utilizando trajes sumários, como uma minissaia e uma

camiseta decotada, ainda que para juízo de alguns seja essa conduta moralmente inadequada,

não há como enquadrá-la no mesmo tipo, ainda que o hierarca assim deseje, por não haver

qualquer consenso quanto a sua conduta. Pessoas mais apegadas a uma moral tradicional podem

considerar seus trajes inadequados, ato passível de punição perante o direito. No entanto, outras,

de visão mais tolerante, podem entender que não há qualquer problema naquilo. Assim, num

juízo de valor médio, dada a falta de consenso, forçoso concluir pela atipicidade da conduta.

Caso deseje coibir o uso de trajes considerados inadequados, deverá a chefia daquele setor,

embasado em ato legal preexistente (necessariamente), expedir ato infralegal geral e abstrato,

regulamentando aquele dispositivo para especificar o que naquele órgão se entende por

vestimenta “inadequada”. No entanto, para essa regulamentação, trazemos a ressalva de Regis

Fernandes de Oliveira, segundo quem “para a criação de tipos infracionais, é imprescindível

268 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 620-

624.

Page 147: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

147

que exista prévia competência estipulada em lei e que o rol das sanções também tenha anterior

previsão normativa”269. Não obstante, apenas condutas praticadas a partir do início da vigência

daquela norma infralegal seriam passíveis de punição, dada a regra da anterioridade, aplicável

ao direito disciplinar. Outrossim, qualquer mudança de posicionamento deverá ser comunicada

aos subalternos. Do contrário, salvo aquelas condutas enquadráveis na regra da razoabilidade

às avessas, a conduta será atípica.

Aprofundando os estudos, quanto à referenciada possibilidade de a Administração

Pública, em seu âmbito interno, regulamentar os dispositivos de lei que consagram tipos abertos

(apenas para a punição de atos praticados a partir de sua edição, repise-se), pontuamos que

reconhecemos a possibilidade de edição de regulamentos internos que versem sobre direito

disciplinar, mas sempre com a ressalva de que esses deverão respeitar os pressupostos fixados

nos parágrafos anteriores, tratando simplesmente de regulamentar a legislação preexistente, a

fim de esclarecê-la, jamais podendo criar um novo tipo, estender a interpretação do dispositivo

legal ou criar obrigações para terceiros. Trata-se de mero processo de elucidação, à semelhança

do que ocorre nos “tipos penais em branco”, os quais trazem uma disposição em aberto,

complementa pela autoridade executiva competente, à vista das especificidades técnicas, tal

como o art. 66 da Lei n. 11.343/2006, o qual estabelece que, para fins do disposto naquele

diploma, o conceito de drogas substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras será

utilizado com base em ato do Poder Executivo (mais especificamente a Portaria n. 344/98).

Outrossim, ressaltamos que, ainda na sindicância-investigação, deverá a comissão

sindicante primeiramente verificar o ato investigado em oposição aos regulamentos expedidos,

à regra da razoabilidade às avessas e, num último momento, sua (in)compatibilidade frente aos

precedentes judiciais e administrativos. Assim, o fato deverá ser objeto de uma descrição

pormenorizada, para que o servidor, quando da formalização da acusação, tenha pleno

conhecimento da conduta a ele imputada, bem como da ofensa que ela representa ao sistema.

Sobre a importância da fundamentação e dos precedentes para o direito administrativo

sancionador, Fábio Medina Osório, ao tratar da jurisprudência judicial pontua que essa “vincula

as autoridades administrativas, pois revela a interpretação final do ordenamento jurídico

brasileiro” de modo que os precedentes deverão ser respeitados, já no âmbito interno da

269 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2012, p. 79.

Page 148: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

148

Administração Pública, por aqueles que manejem as regras e princípios do Direito

Administrativo Sancionador270. Isso reflete o sentimento de confiança e de segurança do

administrado para com a Administração Pública, de modo que não pode ele ser surpreendido

pela imputação de falta funcional referente a conduta consagrada pela jurisprudência

(administrativa e judicial) atípica. Neste sentido, o servidor não saberia nem teria como saber

que aquela conduta era faltosa, de modo que pode ser afastada a sua tipicidade com base no

desconhecimento da ilicitude, conforme estado no item 3.2.3.2 deste estudo.

Diante do exposto, concluímos que, não obstante o sistema legislativo pátrio consagre

tipos abertos no direito disciplinar, é possível a utilização de parâmetros para a objetivação

desses enunciados normativos. Dessa forma, a fim de verificar se determinada conduta

configura infração disciplinar, deverá o intérprete analisar se essa atende aos pressupostos

positivos e negativos do exercício do poder disciplinar para, num segundo momento, confrontá-

lo com os demais elementos objetivos trazidos na legislação. Efetuado esse íter, chegará o

intérprete a determinada conduta, a qual deverá ser confrontada com a regra da razoabilidade

às avessas, ou seja, verificar se, depurada a conduta praticada, seria razoável a não punição do

servidor. Se houver consenso social quanto à irrazoabilidade da não punição, deverá o agente

faltoso ser processado e, caso seja verificada a autoria, materialidade e dolo ou culpa, punido.

Além disso, é de suma importância, antes mesmo da imputação da conduta, a verificação da

doutrina judicial e administrativa quanto àquele tema, a fim de garantir a segurança jurídica,

não frustrando uma expectativa legítima do servidor. Como medida última, julgamos possível

a especificação das condutas consagradas em tipos abertos a partir da edição de atos infralegais,

a fim de esclarecer àquela gama de pessoais quais condutas são consideradas ilícitas, sob pena

de possibilidade de alegação de justificável desconhecimento da antijuridicidade por parte do

servidor.

270 OSORIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015,

p. 171.

Page 149: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

149

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme expusemos no presente trabalho, a Constituição Federal de 1988 elegeu os

servidores públicos, dentre outros institutos, como instrumento para a defesa do programa

originário estabelecido e, em última instância, do próprio Estado Constitucional e Democrático

de Direito. Como forma de assegurar que seus agentes se dedicariam apenas a sua missão

institucional, estabeleceu uma série de garantias e restrições em capítulo específico, a fim de

salvaguardar a tarefa de busca pelo interesse público, mesmo quando confrontada com

interferências indevidas, tanto para garantir poderes instrumentais que facilitariam essa

persecução em sua forma ativa, quanto por meio de instrumentos protetivos que lhes

garantissem uma blindagem nas situações em que passivamente fossem sujeitados a investidas

de terceiros.

Por outro lado, dado o desenvolvimento histórico da teoria das relações especiais de

sujeição, que impregnou fortemente doutrina, jurisprudência e legislação pátrias, as garantias

dos servidores públicos, mesmo sob a égide da Constituição da República de 1988, sempre

tiveram como contraponto um regime disciplinar inseguro, caracterizado por forte interferência

do hierarca, com normas formadas por um amálgama entre as convicções pessoais deste e os

dispositivos legais que isso lhe permitiam, de maneira que, a depender do grau de aplicação de

cada um desses elementos (notadamente quando o subjetivismo do hierarca supera em níveis

elevados o quanto estabelecido no programa normativo), a busca pelo interesse público poderia

acabar desvirtuada.

Como resultado desse desenvolvimento histórico-dogmático, as previsões infracionais

no âmbito do direito disciplinar foram consagradas por meio dos chamados tipos abertos, ou

seja, dispositivos legais que, nessa esfera, designam condutas aptas a configurar faltas

funcionais, mas o fazem de maneira genérica e imprecisa. Nesses casos, o enunciado normativo

se resume à indicação vaga de condutas baseadas geralmente em conceitos indeterminados, de

modo que acabam por se tornar, em muitos casos, meros pretextos para que o hierarca, dentro

de sua larga margem interpretativa, amolde a lei de acordo com seus interesses circunstanciais,

por diversas vezes descolados do interesse público, mas de difícil controle. Não obstante, a

título de contraponto, lembramos que o tipo punitivo sempre foi visto como uma garantia do

cidadão frente ao estado-juiz, mas nunca objeto de grandes reflexões no âmbito disciplinar,

visto que a doutrina tradicional sempre reconheceu a possibilidade da utilização de redações

Page 150: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

150

genéricas nesse ramo devido à intrínseca relação do servidor para com o ente estatal, ou seja,

por se tratar de uma relação inserida no seio da própria Administração, admitir-se-ia uma

métrica de controle mais flexível, visto que, segundo essa concepção, punir o servidor que

destoasse do ambiente interno seria um prêmio para a sociedade, nunca um ataque a ela.

Dessa maneira, se por um lado a Constituição garantiu salvaguardas como a estabilidade

e o acesso aos quadros da Administração Pública pela via do concurso público como forma de

torná-la impessoal e imunizada aos interesses do grupo político em exercício no poder ou

mesmo de grupos econômicos, por outro, doutrina, legislação e jurisprudência pátrias

consagraram um sistema disciplinar que enfraquece esse propósito do Texto Maior, ao relegar

majoritariamente ao hierarca (comumente alguém ligado ao grupo político no poder) a tarefa

de configuração da norma apta ao enquadramento de servidores públicos supostamente faltosos.

Ou seja, em vez da persecução de criação de um sistema baseado em tipos legais (aqueles

majoritariamente consagrados em texto de lei), anuiu-se com a conformação de um sistema

dotado de tipos administrativos (majoritariamente consagrados pelas convicções do agente

competente). Entenda-se: de fato, o mister disciplinar compete ao hierarca, mas esse deve ser

exercido com base no interesse público, e não em quaisquer outros proveitos. Com efeito, o

interesse público é traduzido na vontade da lei, a qual, por sua vez, concretiza os valores

emanados do Texto Constitucional, de modo que qualquer desvio desse programa legislativo é

nocivo ao Estado Constitucional. Num mundo ideal, seria cogitável trabalhar com a ideia de

tipos abertos, desde que tivéssemos a certeza de que todos os hierarcas, não obstante a vontade

da lei não tenha ficado clara, basear-se-iam apenas nos princípios constitucionais. Todavia,

como sabemos, o mundo dos homens não é permeado apenas por virtudes, de sorte que é preciso

tornar o máximo objetivo possível o exercício da função administrativa. Não obstante, no

sistema legislativo pátrio, a tarefa de salvaguarda da segurança jurídica consagrada pelo tipo,

enquanto instituto, acaba solapada por um sistema que pouco define e entrega quase que

completamente aos agentes superiores a tarefa de conformação da norma.

Por outro lado, além do fundamento supra, que se baseia no amesquinhamento do

programa constitucional devido ao enfraquecimento das garantias do funcionalismo público,

consequência da utilização de tipos disciplinares abertos, ressaltamos que o direito disciplinar,

tal qual o direito penal, é uma expressão do jus puniendi estatal, de maneira que deve ser

revestido, se não das mesmas, de garantias semelhantes às que atendem àquele. Conforme

ressaltamos, não há uma distinção ontológica entre as sanções e infrações consagradas em

ambos os ramos, de modo que a configuração de uma falta funcional só poderá se dar a partir

Page 151: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

151

dos mesmos pressupostos da infração penal. Ou seja, para que algum servidor seja punido pelo

cometimento de um ilícito disciplinar, o fato a ele imputado deverá ser típico, antijurídico e

dotado de dolo ou culpa. O revestimento do direito disciplinar das garantias do direito penal

revela um ponto de inflexão no desenvolvimento da doutrina, por passar a tratar o servidor

como um sujeito de direitos frente a uma máquina potencialmente arbitrária, sendo que o objeto

de proteção é muito mais amplo: não se trata apenas da proteção do servidor em sua esfera

individual, mas da proteção ao interesse público pelo qual ele tem a missão de zelar.

Nesta esteira, ponto digno de nota que se refere à grande diferenciação entre os dois

ramos, a qual justificou a consagração de seus institutos, especialmente da tipicidade, sob

formas tão distintas foi o seu desenvolvimento histórico: enquanto o direito penal se

desenvolveu como forma de proteção do cidadão contra abusos estatais, o direito disciplinar se

consagrou como uma forma de extirpar anomalias do organismo formado pela máquina pública,

e nunca como uma forma de salvaguarda do Estado de Direito (conforme propomos, ele é tanto

uma forma de punir o mau servidor quanto de proteger o bom servidor de perseguições

indevidas). Essa diferença de tratamento teve seu maior ponto de ruptura no primeiro

pressuposto da infração, ou seja, no fato típico.

Como consequência do desenvolvimento histórico da matéria no Brasil, um país no qual

infelizmente considerável parcela da população e, por consequência, dos detentores do poder,

não possuem elevada noção de republicanismo, a conformação do direito disciplinar, na

experiência pátria, se deu para a perseguição de desafetos e a proteção dos amigos do poder.

Ou seja, devido ao alto grau de abertura dos tipos disciplinares, concede-se ao hierarca

elevadíssima discricionariedade, a qual muitas vezes descamba para a arbitrariedade. Já o

controle dessa, por sua vez, torna-se extremamente difícil, pela quase total falta de parâmetros.

Conforme ressaltamos, praticamente todos os estatutos funcionais vigentes no âmbito desta

federação possuem regras que rotineiramente não são cumpridas, seja devido ao seu tom

draconiano, seja devido ao mais puro desconhecimento. E esse descumprimento é, a princípio,

tolerado pelos superiores. No entanto, ao primeiro sinal de desagrado, o tipo disciplinar é logo

interpretado para embasar a punição do servidor que contraria os interesses detentores do poder.

O que acontece, então, se um servidor de carreira denuncia ato de corrupção de seu superior?

Que segurança possui esse servidor para denunciar algo de irregular (seu mister) se possui

sempre uma espada de Dâmocles sobre sua cabeça? É esse o grande ponto: se aquela carreira

possuísse um estatuto com regras claras e definidas, o servidor que se comportasse de maneira

antijurídica seria necessariamente submetido aos rigores de uma apuração disciplinar (devido

Page 152: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

152

ao claro enquadramento, ficaria difícil a aplicação de um “perdão informal” do hierarca que lhe

fosse simpático), sendo que o bom servidor, que desagradasse seus superiores, mas cumprisse

sua missão institucional, estaria resguardado de eventual retaliação, visto que teria um diploma

legislativo claro como forma de resguardo.

Dessa maneira, com base nos argumentos acima, justificamos uma proposta de ruptura

com a interpretação tradicional, a qual admite a utilização de tipos abertos, desde que esses

tenham base em dispositivo legal. Conforme consideramos, não basta que esses dispositivos

tenham base legal, é preciso que eles tragam uma descrição pormenorizada da conduta

tipificada, sob pena de invalidade. No entanto, conscientes de que a legislação pátria seria

duramente afetada por essa interpretação, de modo que praticamente toda ela seria eivada de

inconstitucionalidade, propusemos uma tarefa para que fosse dada a melhor interpretação à

legislação pátria.

Por essa razão, sabendo que não existem nem mesmo sistemas penais dotados

unicamente de tipos legais, os quais dispensam qualquer tarefa interpretativa (por mais clara

que seja a lei, essa sempre ocorrerá), propusemos formas de objetivar o direito disciplinar

pátrio. Dessa mentira, valendo-nos dos pressupostos positivos e negativos trazidos pelo

professor Celso Antônio Bandeira de Mello e da regra da razoabilidade às avessas, de autoria

do professor Ricardo Marcondes Martins, além de combinar outros elementos (elementos

objetivos da própria legislação, auxílio através da regulamentação infralegal e jurisprudência

judicial e administrativa), propusemos diretrizes de objetivação, as quais, se não resolvem por

definitivo os problemas da tipicidade no direito disciplinar pátrio, se prestam a modificar o

paradigma na busca por um sistema de tipos legais, consagrados de forma minuciosa na lei. O

estabelecimento desse norte pode ser a primeira tarefa na busca por uma melhor interpretação

do direito e aperfeiçoamento das instituições pátrias.

Assim, o fundamento último dos poderes que deverão ser exercidos pelo hierarca em

face do servidor será a Constituição, cujos efeitos serão espraiados pela legislação, a qual

necessariamente dará suporte a eventual competência disciplinar. Dessarte, ainda que reste

alguma discricionariedade ao hierarca (o que se justifica pela ligação visceral entre o direito

disciplinar pátrio e a teoria das relações especiais de sujeição), a partir dos elementos propostos,

será possível trazer maior procedimentalidade às relações disciplinares. Outrossim, lembramos

que eventual poder exercido o será de forma meramente instrumental, de modo que sua

efetivação restringir-se-á aos fins almejados por aquela relação, com respeito aos princípios da

razoabilidade e da proporcionalidade, bem como pertinência temática em relação ao objeto a

Page 153: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

153

ela atrelado, de modo que, além de ser ancilar, aquele exercício deve ser compatível com a

função exercida pelo servidor. Na mesma esteira, essa relação entre superior e subordinado não

poderá contrariar ou ferir direitos, deveres ou obrigações advindos da lei ou da Constituição

nem extravasar os limites daquela relação especial ou dos fins a que ela se propõe nem elidir

ou restringir direitos de terceiros alheios àquela relação. Mas não é só. A utilização desses

pressupostos auxilia a nortear o exercício da competência sancionatória em face de qualquer

pessoa inserida numa relação especial de sujeição, tornando-a mais consentânea com os

pressupostos do seguro Estado de Direito. Seguindo adiante em nossa tarefa de fixação de

diretrizes de objetivação do tipo disciplinar, valemo-nos ainda da regra da razoabilidade às

avessas, de autoria do professor Ricardo Marcondes Martins, segundo a qual, em razão da

impossibilidade imediata da completa tipificação de todas as infrações disciplinares, devido à

carência de um quadro legal que atenda aos requisitos necessários, o que eivaria toda a

legislação pátria de inconstitucionalidade, é possível propor, com base em todos os

fundamentos declinados, que a infração disciplinar só será passível de configuração se houver

um consenso acerca da irrazoabilidade quanto à não imposição dessa. Ou seja, não se trata da

arguição quanto à razoabilidade da configuração de uma infração, mas da irrazoabilidade de

sua não configuração. Isso se dá em razão da relação entre a infração disciplinar e a aplicação

da pena, visto que aquela (causa) passará a ser sempre vinculada, pois não será qualquer

circunstância da vida, escolhida pelo agente, que poderá legitimar a aplicação de uma pena,

mas somente uma infração, naqueles moldes, que funcionará como pressuposto legal. Desse

modo, a configuração da conduta infracional não será fruto majoritariamente da vontade do

agente, mas da interpretação da lei. As balizas legais se tornarão mais rigorosas, vez que a

caracterização da infração passará a ser atividade vinculada. Assim, a configuração ou não da

falta funcional passará a ser um ato passível de controle, o que garantirá aos servidores a atuação

com maior tranquilidade e a segurança para a boa persecução do interesse público. Outrossim,

far-se-á necessário o confrontamento dessa conclusão com os precedentes exarados pela própria

Administração Pública e pela jurisprudência pátria, a fim de evitar casuísmos e garantir que,

agindo da mesma forma que historicamente aceito, aquele servidor não será alvo de

perseguição; por outro lado, caso aja de maneira historicamente punível, deverá ser alvo de

persecução.

Diante do exposto, concluímos afirmando ser possível que a doutrina melhore e

modifique as estruturas de poder do sistema administrativo pátrio. Esse é o seu papel e propor

mudanças na interpretação vigente pode ser algo de grande valia na busca por uma sociedade

Page 154: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

154

mais justa e igualitária, bem como por um Estado blindado à corrupção e aos interesses espúrios

que tanto os atormentam. Assim, o direito disciplinar, que historicamente se manifestou como

um instrumento de opressão pode ser guiado sobre uma trilha mais consentânea com os valores

consagrados pela Constituição da República de 1988. O melhoramento da Administração

Pública, por respeito à garantia fundamental do cidadão a uma boa Administração, é tarefa que

deve ser constantemente buscada pelo intérprete e, pensamos, trouxemos nossa contribuição na

busca por uma Administração impessoal e objetiva, vinculada apenas à vontade da Constituição

e ao respeito às instituições republicanas.

Page 155: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

155

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução Luís Afonso Heck. Porto Alegre:

Livraria do Advogado, 2007.

ALEXY, Robert. Teoria discursiva do direito. Organização, tradução e discurso introdutório

por Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. Rio de Janeiro: Forense Universitária,

2014.

ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Contrato administrativo. São Paulo: Quartier Latin,

2012.

ANABITARTE, Alfredo Gallego. Las relaciones especiales de sujeción y el principio de la

legalidad de la administración. Revista de Administración Pública, Madri: ene-abr.

1961.

ARAÚJO, Florivaldo Dutra de. Negociação coletiva dos servidores públicos. Belo Horizonte:

Fórum, 2011.

ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar. 2. ed. São Paulo:

Max Limonad, 2003.

_______. Profissionalização da função pública: a experiência brasileira, 2003. Disponível em:

<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/45681/45049>. Acesso

em: 26 de jun. 2016.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Apontamentos sobre os agentes e órgãos públicos.

1. ed., 2 tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975.

_______. Curso de direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

_______. Servidores públicos: aspectos constitucionais. Estudos de Direito Público, São Paulo,

ano IV/V, n. 2/1, jul.-dez. 1985 – jan.-jun. 1986.

BRITTO, Carlos Ayres. A Constituição e o monitoramento de suas emendas. Revista Eletrônica

de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n. 1, jan. 2004.

Disponível em: <www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 27 jun. 2016.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3. ed. Portugal:

Almedina, 1999.

CARVALHO; Antonio Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar e

sindicância. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. ed. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2011.

Page 156: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

156

CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Direito e processo disciplinar. Rio de Janeiro:

Fundação Getulio Vargas, 1966.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 29. ed. São Paulo: Forense, 2016.

_______; MOTTA, Fabrício; FERRAZ, Luciano de Araújo. Servidores públicos na

Constituição Federal. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

FERNANDES, Felipe Gonçalves Fernandes (Org.). Temas atuais de direito administrativo

neoconstitucional. São Paulo: Intelecto, 2016.

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva,

1997.

_______. Introdução ao estudo do direito. 5. ed. São Paulo: Altas, 2007.

FERRAZ, Luciana. Regime remuneratório dos servidores públicos – fixação e revisão de

remuneração. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MOTTA, Fabrício; FERRAZ,

Luciano de Araújo. Servidores públicos na Constituição Federal. 3. ed. São Paulo:

Atlas, 2015.

FERREIRA, Daniel. Teoria geral da infração administrativa a partir da Constituição Federal

de 1988. Belo Horizonte: Fórum, 2009.

FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa Administração Pública. 3. ed. São Paulo:

Malheiros, 2014.

GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. Revolución Francesa y administración contemporánea.

4. ed. reimpr. Navarra: Civitas, 2005.

GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Curso de direito penal. Parte geral. Arts. 1º a 120.

Salvador: JusPodium, 2015.

GORDILLO, Agustín A. La administración paralela. Madrid: Civitas, 1982.

GUASTINI, Riccardo. Das fontes às normas. São Paulo: Quartir Latin, 2005.

GUERRA, Alexandre; BENACCHIO, Marcelo. Direito imobiliário brasileiro: novas

fronteiras na legalidade constitucional. São Paulo: Quartier Latin, 2011.

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto

Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.

HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha.

Tradução Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998.

HIPPLER, Vera Regina. Aspectos das relações especiais de sujeição no direito brasileiro:

natureza jurídica e pressupostos constitucionais. 2009. Dissertação (Mestrado).

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.

Page 157: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

157

IVO, Gabriel. O direito e a inevitabilidade do cerco da linguagem. In: CARVALHO, Aurora

Tomazini de (Org.). Constructivismo lógico-semântico. São Paulo: Noeses, 2014.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

LESSA, Sebastião José. Do processo administrativo disciplinar e da sindicância. Brasília:

Brasília Jurídica, 1994.

LUZ, Egberto Maia. Direito administrativo disciplinar – Teoria e prática. 2. ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1992.

MAIA, Márcio Barbosa; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de. O regime jurídico do concurso

público e seu controle jurisdicional. São Paulo: Saraiva, 2007.

MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso de direito e a constitucionalização do direito privado.

São Paulo: Malheiros, 2010.

_______. Direito e justiça. In: PIRES, Luis Manuel Fonseca; MARTINS, Ricardo Marcondes.

Um diálogo sobre a justiça – A justiça arquetípica e a justiça deôntica. Belo Horizonte:

Fórum, 2012.

_______. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008.

_______. Estágio probatório e avaliação de desempenho. Revista Brasileira de Estudos da

Função Pública – RBEFP, Belo Horizonte, ano 5, n. 13, jan.-abr. 2016. Disponível em:

<http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=240271>. Acesso em: 26

jun. 2016.

_______. Estudos de direito administrativo neoconstitucional. São Paulo: Malheiros, 2015.

_______. Função social da posse: In: GUERRA, Alexandre; BENACCHIO, Marcelo. Direito

Imobiliário brasileiro: novas fronteiras na legalidade constitucional. São Paulo:

Quartier Latin, 2011.

_______. Princípio da liberdade das formas no direito administrativo. Interesse Público (IP),

Belo Horizonte, ano 15, n. 80, p. 83-124, jul.-ago. 2013.

_______. Regulação administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo: Malheiros, 2011.

_______. Sanções administrativas no Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC.

Revista Brasileira de Infraestrutura – RBINF, Belo Horizonte, ano 4, n. 8, p. 47-88,

jul.-dez. 2015.

_______. Teoria jurídica da liberdade. São Paulo: Contracorrente, 2015.

MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Remuneração dos agentes públicos. São Paulo: Saraiva,

2009.

MATTOS; Mauro Roberto Gomes de. Tratado de direito administrativo disciplinar. 2. ed. Rio

de Janeiro: Forense, 2010.

Page 158: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

158

MAYER, OTTO. Le Droit Administratif Allemand. Partie Générale. Paris: Bibliothèque

Internationale de Droit Public,1903.

MAZZUOLI, Valerio; ALVES, Waldir. Acumulação de cargos públicos – Uma questão de

aplicação da Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Teoria dos Servidores Públicos. Revista de Direito

Público, Rio de Janeiro, n. 1, p. 40, jul.-set. 1967.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.

Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. São Paulo: Max Limonad,

2000.

OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. 3. ed. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2012.

OSORIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 5. ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2015.

PIRES, Luis Manuel Fonseca; MARTINS, Ricardo Marcondes. Um diálogo sobre a justiça –

A justiça arquetípica e a justiça deôntica. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. São Paulo: Malheiros, 2003.

ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Tradução Luís Greco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,

2012.

SALOMONI, Jorge Luis. La Cuestión de Las Relaciones de Sujeción Especial en el Derecho

Público Argentino. In: Problemática de la Administración Contemporánea. Buenos

Aires: Universidad Notarial Argentina, 1997.

SANTIAGO NINO, Carlos. Introdução à análise do direito. São Paulo: WMF Martins Fontes,

2010.

SCHWABE, Jürgen. Cinqüenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal

Alemão. Tradução Beatriz Hennig, Leonardo Martins, Mariana Bigelli de Carvalho,

Tereza Maria de Castro, Vivianne Geraldes Ferreira. Montevideu: Konrad Adenauer,

2005.

SILVA, Clarissa Sampaio. Direitos fundamentais e relações especiais de sujeição. O caso dos

agentes públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2009.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 8. ed., 2. tir. São Paulo:

Malheiros, 2015.

SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito. 1. ed., 4. tir. São Paulo:

Malheiros, 2014.

Page 159: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

159

SPARAPANI, Priscilia. O princípio da vedação ao retrocesso social e sua aplicação ao regime

jurídico dos servidores públicos. 2013. Tese (Doutorado). Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo – PUC/SP. São Paulo.

SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. 1. ed., 3. tir. São Paulo: Malheiros,

2003.

WEBER, Max. Burocracia. In: GERTH, Hans H.; MILLS, C. Weight (Org.). Max Weber:

ensaios de sociologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal

brasileiro – Parte geral. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho ductil – Ley, derechos, justicia. Madrid: Trotta, 2011.

Jurisprudência e legislação consultadas

BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

_______. Lei n. 8.112/90, de 11 de dezembro de 1990.

_______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n.

25.652-PB. Brasília, 13 de outubro de 2008. Disponível em:

<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?i=1&b=ACOR&livre=%28%28

%27ROMS%27.clas.+e+@num=%2725652%27%29+ou+%28%27RMS%27+adj+%

2725652%27.suce.%29%29&thesaurus=JURIDICO>. Acesso em: 22 nov. 2016.

_______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 239 RJ. Brasília,

29 de outubro de 2014. Disponível em: <http://www.

stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=239&classe=ADI&cod

igoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 18 jul.

2016.

_______. Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo

n. 786299. Brasília, 10 de novembro de 2015. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=786299&

classe=ARE-AgR&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipo Julgamento=M>.

Acesso em: 10 ago. 2016.

_______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 837 DF. Brasília,

27 de agosto de 1998. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/

portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=837&classe=ADI&codigoClass

e=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 10 out. 2016.

_______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1301 RN.

Brasília, 3 de março de 2016. Disponível em <http://www.stf.jus.br/

portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=1301&classe=ADI&codigoClas

se=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 22 nov. 2016.

Page 160: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

160

_______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1521 RS.

Brasília, 12 de agosto de 2013. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=1521&cla

sse=ADI&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso

em: 15 nov. 2016.

_______. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 112388 SP. Brasília, 21 de agosto de

2012. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcesso

Andamento.asp?numero=112388&classe=HC&codigoClasse=0&origem=JUR&recur

so=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 10 set. 2016.

_______. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n. 24182 DF. Brasília, 12 de abril

de 2004. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/

verProcessoAndamento.asp?numero=24182&classe=MS&codigoClasse=0&origem=J

UR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 7 nov. 2016.

_______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 240.735-5 MG. Brasília, 5 de

maio de 2006. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/

listarJurisprudencia.asp?s1=%28240735.NUME.+OU+240735.ACMS.%29&base=ba

seAcordaos&url=http://tinyurl.com/hco5ya6>. Acesso em: 15 nov. 2016.

_______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 327621 SP. Brasília, 27 de

outubro de 2006. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/

verProcessoAndamento.asp?numero=327621&classe=REAgR&codigoClasse=0&orig

em=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M> Acesso em: 2 jul. 2016.

_______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 327.904 SP. Brasília, 8 de

setembro de 2006. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcesso

Andamento.asp?numero=327904&classe=RE&codigoClasse=0&origem=JUR&recur

so=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 7 set. 2016.

_______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 598.099 MS. Brasília, 10 de

agosto de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/

portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=598099&classe=RE&codigoCla

sse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 7 jul. 2016.

_______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 606.358 SP. Brasília, 18 de

novembro de 2015. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/ver

ProcessoAndamento.asp?numero=606358&classe=RE&codigoClasse=0&origem=JU

R&recurso=0&tipoJulgamento=M> Acesso em: 2 jul. 2016.

_______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 705140 RS. Brasília, 28 de

agosto de 2014. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/processo/

verProcessoAndamento.asp?numero=705140&classe=RE&codigoClasse=0&origem=

JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 22 nov. 2016.

_______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 837.311 PI. Brasília, 15 de abril

de 2016. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/

verProcessoAndamento.asp?numero=837311&classe=RE&codigoClasse=0&origem=

JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 22 nov. 2016.

Page 161: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...necessários para a aplicação de uma sanção no âmbito do direito civil são diversos daqueles indispensáveis para a aplicação

161

_______. Supremo Tribunal Federal. Súmula n. 15. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumula&pagin

a= sumula_001_100> Acesso em 20 nov. 2016

<http://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-1978-31229>. Acesso em: 7 de jun. 2016.