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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito A CONSTRUÇÃO DO MÉRITO PARTICIPADO NO PROCESSO COLETIVO Fabrício Veiga Costa Belo Horizonte 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito

A CONSTRUÇÃO DO MÉRITO PARTICIPADO NO PROCESSO COLE TIVO

Fabrício Veiga Costa

Belo Horizonte

2012

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Fabrício Veiga Costa

A FORMAÇÃO PARTICIPADA DO MÉRITO PROCESSUAL NAS AÇÕ ES

COLETIVAS

Tese de Doutorado apresentada ao programa de

Pós-Graduação em Direito da Faculdade Mineira de

Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais como requisito de conclusão do curso de

Doutorado em Direito Processual, sob orientação do

Professor Doutor Vicente de Paula Maciel Junior.

Belo Horizonte

2012

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Costa, Fabrício Veiga C837c A construção do mérito participado no processo coletivo/ Fabrício Veiga

Costa. Belo Horizonte, 2012. 395f.

Orientador: Vicente de Paula Maciel Junior Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Direito.

1. Mérito (Processo civil). 2. Ação coletiva. 3. Cidadania. I. Maciel Júnior, Vicente de Paula. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.

CDU: 347.922

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Fabrício Veiga Costa

A FORMAÇÃO PARTICIPADA DO MÉRITO PROCESSUAL NAS AÇÕ ES

COLETIVAS

Tese apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Direito da Faculdade Mineira de

Direito da Pontifícia Universidade Católica de

Minas Gerais, nível Doutorado, como requisito

de obtenção do título de Doutor em Direito

Processual.

______________________________________________________________

Professor Doutor Vicente de Paula Maciel Junior (orientador)

______________________________________________________________

Professor Doutor Vitor Salino de Moura Eça – PUC MINAS

______________________________________________________________

Professor Doutor Leonardo Augusto Marinho – PUC MINAS

______________________________________________________________

Professor (a) Orlando Aragão Neto - FAMINAS

______________________________________________________________

Professor (a) Juliana Maria Mattos - UNESA

Belo Horizonte, 01 de julho de 2012.

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Dedico essa Tese de Doutorado ao meu professor orientador, Vicente de Paula

Maciel Junior e ao professor e amigo Cícero Alves Soares Neto, pela admiração,

respeito e gratidão; aos meus pais, pelo constante apoio incondicional a todos os

meus projetos profissionais e pessoais; à minha querida avó Izabel, pela estreita

ligação afetivo-espiritual; ao meu querido sobrinho Miguel, esperança de um mundo

melhor, mais justo e menos desigual.

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AGRADECIMENTOS

Inicialmente quero externar meus sinceros agradecimentos aos meus pais

Israel e Claudete, pessoas que são exemplo de bravura, de doçura, de sabedoria,

de perspicácia, de doação e de certeza de que a educação é a forma mais efetiva de

aprimoramento do homem enquanto cidadão. A minha irmã Janaina e ao meu

sobrinho Miguel, que representa a esperança e a vida para todos nós. À minha

querida vó Izabel, pela estreita e verdadeira ligação afetiva, meu eterno carinho.

Ao meu professor orientador, Doutor Vicente de Paula Maciel Junior, exemplo

de retidão, compromisso com a docência; meus sinceros agradecimentos.

Às minhas amigas Juliana Maria Matos, Maria Luisa Costa Magalhães,

Andréia Alves de Almeida, pela presença constante e profunda disponibilidade em

auxiliar-me sempre que precisei.

Aos amigos Welington Teixeira, Sérgio Zandona, Carla Clark, Dheniz Cruz

Madeira, Eduardo Tupynambás, Dayse Starling e João Antonio Lima Castro, pela

amizade sincera e pelas orientações ao longo da minha vida pessoal e profissional.

Aos meus amigos e parceiros de advocacia, Ladislau Rodrigues dos Santos,

Sérgio Eustáquio Duarte e Plauto Rino Pompeu, por compreender e suportarem os

meus inúmeros momentos de ausência.

Às pessoas especiais, Marco Antônio, Rozirene Emetério, Graciane Saliba e

Marcos Costa, por existirem em minha vida e serem presenças constantes no meu

cotidiano, auxiliando-me sempre que preciso.

A minha eterna gratidão a Marlene Fiúza, Maurílio Fiúza e demais familiares,

por tudo que já fizeram e fazem ainda por mim.

Ao eterno mestre, amigo e professor Cícero Alves Soares Neto, que com

leveza me fez compreender a importância da reflexão cientifica como caminho para

a lapidação do ser humano.

Aos meus colegas docentes, coordenadores, corpo administrativo e diretores

da Faculdade de Pará de Minas, Faculdade Pitágoras Unidade Divinópolis,

Fundação Pedro Leopoldo e ao Instituto de Educação Continuada da Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais, em especial a Sônia Malta e Maurício

França.

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Sou como você me vê.

Posso ser leve como uma brisa ou forte como uma ventania,

Depende de quando e como você me vê passar.

Clarice Lispector

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RESUMO

A revisitação teórica do clássico modelo de processo coletivo construído a partir do

sistema representativo é condição indispensável ao entendimento critico do

processo constitucional coletivo e democrático. A proposta de pesquisa que se

desenvolve no presente estudo consiste, já no primeiro capítulo, na apresentação e

na desconstrução do modelo liberal e individual do mérito processual, reduzido no

processo civil às matérias de fato e de direito trazidas aos autos pelo requerente e

requerido, para, assim, demonstrar que a base do atual e vigente modelo de

processo coletivo no Brasil decorre da ideologização do sistema representativo

sedimentado por meio da sistematização teórica do mérito no âmbito do processo

individual. A teoria das ações coletivas como ações temáticas, de autoria do jurista

Vicente de Paula Maciel Júnior, propõe o entendimento do processo coletivo sob a

ótica do objeto (não do sujeito) e, por isso, concentra o seu foco de discussão no

direito fundamental de participação de todos os interessados difusos e coletivos no

debate e na construção discursiva dos provimentos estatais. Assim, as ações

temáticas passam a representar o parâmetro para o entendimento do modelo de

processo coletivo democrático, uma vez que os provimentos deixam de ser

construídos exclusivamente pelo julgador, pelo demandante e demandado,

permitindo-se a ingerência de todos os interessados. A contribuição científica da

pesquisa ora desenvolvida encontra-se na demonstração de que o conceito e a

noção de mérito processual não podem ser reduzidos às questões ou às matérias de

fato e de direito trazidas pelo requerente e pelo requerido aos autos, até porque, o

mérito nas ações coletivas deve ser visto como um procedimento através do qual

todos os interessados difusos e coletivos participam num primeiro momento (até a

fase saneadora) da definição das questões que integrarão o debate meritório para,

em seguida (na fase instrutória) legitimar a participação e o debate dessas questões

de mérito por todos aqueles sujeitos aptos a sofrer os efeitos jurídico-legais do

provimento estatal a ser construído. A legitimidade processual para a propositura

das ações coletivas deixa de ser abstratamente definida pelo legislador, uma vez

que é a análise especifica do caso concreto o referencial para a definição da

legitimidade dos interessados na construção do provimento nas ações coletivas, haja

vista que o objeto da ação proposta é considerado o parâmetro para estabelecer

quem serão os legitimados. Nesse ínterim, a definição das questões de mérito passa

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a ser uma prerrogativa de todo sujeito legitimado a apresentar tempestivamente, ao

longo do procedimento da ação temática, um tema ou uma alegação coerente

àquela inicialmente deduzida em juízo. Por isso, o mérito processual deixa de ser

conseqüência de uma decisão judicial unilateralmente proferida pelo julgador para,

por conseguinte, ser resultado do amplo debate isonômico da pretensão, no lócus

processual, por todos os interessados difusos e coletivos, tanto na primeira fase do

procedimento (fase saneadora = definição das questões e da matéria de mérito)

quanto na segunda fase (fase instrutória = momento em que toda a matéria de

mérito é ampla e isonomicamente debatida por todos os interessados). O direito

fundamental de participação no processo, bem como os princípios da isonomia

processual, fundamentação das decisões judiciais, contraditório, ampla defesa,

devido processo legal e amplo acesso ao Judiciário são referenciais teóricos para o

entendimento critico da formação participada do mérito processual no modelo de

processo coletivo trazido pelo Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Mérito Processual. Teoria das Ações Coletivas como Ações

Temáticas. Cidadania.

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ABSTRACT

The theoretical reconsideration of the classical model of collective process

constructed from the representative system is indispensable to a critically

understanding of the collective and democratic constitutional process. The research

proposal that is developed in this study is, in the first chapter, the presentation and

the deconstruction of the liberal and individual modelof merit procedural, reduced, in

civil procedure, to matters of fact and of law brought before the Court by the applicant

and defendant, in order to demonstrate that the basis of the present model of

collective process in Brazil stems from the idealization of the representative system

crystallized on theoretical systematization of merit in the individual case. The theory

of collective action and thematic actions, authored by the jurist Vincente de Paula

MacielJunior, proposes the understanding of the collective process from the

perspective of the object (not the subject) and therefore focuses its discussion on the

fundamental right of participation of all diffuse and collective interested persons in the

debate and in the discursive construction of State decisions. Thus, the thematic

actions will represent the parameter for understanding the model of collective

democratic process, since the decisions will no longer be built solely by the judge, the

plaintiff and defendant, allowing the intervention of all interested persons. The

contribution of the present scientific research is the demonstration that the concept

and notion of merit cannot be reduced to procedural issues or matters of fact and of

law brought by the claimant and the defendant to the proceedings, once, merit,in

collective actions, should be seen as a procedure by which all the diffuse and

collective interested parties participate at the first moment (until the preparatory

phase) to the definition of the issues that will be part of the merit debate, then (in the

instruction phase) legitimize the participation and debate of those merit questions

among those subjects able to suffer the legal effects of the state judicial provision.

The legal standing in order to bring collective actions cease to be abstractly defined

by the legislator, since it is the analysis of the specific case which is the reference for

defining the legitimacy of interested parties in the construction of the judicial provision

in the collective actions, given that the object of the proposed action is considered

the standard for determining who will be legitimized. Meanwhile, the definition of

merit issues becomes a legitimate prerogative of every subject who may promptly

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submit, throughout the procedure of the thematic action, a coherent theme or

argument to that initially done in court. Therefore, the procedural merit ceases to be a

consequence of a judgment unilaterally rendered by the judge, being consequently

the result of extensive isonomic debate of the claim, the locus of the procedure, for all

diffuse and collective interested persons, both in the first moment of the procedure

(preparatory phase = defining the issues and matters of merit) and second moment

(instructions phase = time when all the merit subjects are debated broadly and

equally by all interested persons). The fundamental right to participate in the process,

as well as the principles of procedural isonomy, justification of judicial decisions,

contradictory, legal defense, due process of law and access to the judiciary constitute

theoretical basis for critical understanding of the participative construction of

procedural merit in the model of collective action brought by a democratic State.

Keywords: Procedural Merit . Theory of the Collective Actions as Thematic

Actions.Citizenship.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 23 2 A GÊNESE DO MÉRITO NO DIREITO PROCESSUAL E DO DEB ATE PRELIMINAR DA PROPOSTA DE PESQUISA. ............... ..................................... 30 2.1 A compreensão jurídica do Direito Processual e do Mérito no Direito

Romano ............................................ .................................................................. 43 2.2 As proposições teóricas de Oskar vön Bülow no e studo do mérito –

Teoria das Exceções e dos Pressupostos Processuais ............................ 53 2.3 As contribuições científicas de Chiovenda no es tudo do mérito no

Direito Processual ................................ ........................................................... 62 2.4 O mérito processual em Calamandrei e os reflexo s de suas

contribuições científicas ......................... ....................................................... 72 2.5 Mérito Processual em Francesco Carnelutti .... .......................................... 80 2.6 O estudo do mérito na obra de Enrico Tullio Lie bman .............................. 87 2.7 O Mérito Processual em Elio Fazzalari ......... ................................................ 95 2.8 As contribuições científicas da doutrina brasil eira no estudo do mérito

processual ........................................ .............................................................. 103 2.9 A concepção individualista do mérito processual no Código de

Processo Civil de 1973............................. ..................................................... 112 2.10 Mérito Processual, Direito de Ação e Acesso à Justiça ........................ 120 2.11 Mérito Processual e Cognição ................. .................................................. 129 2.12 A problemática jurídica do mérito no processo de execução e nos

procedimentos especiais de jurisdição voluntária... ................................ 133 2.13 O Mérito no Código de Processo Civil Italiano ....................................... 144 2.14 Síntese ...................................... ..................................................................... 156 3 ANÁLISE CRÍTICA DA REPERCUSSÃO DO MODELO ATUAL DO PROCESSO COLETIVO PARA A FORMAÇÃO DO MÉRITO ....... ..................... 161 3.1 Historicidade do Processo Coletivo ............ ............................................... 162 3.2 Processo Coletivo Americano: o Sistema da Class Actions e a

problemática da construção do mérito processual.... .............................. 179 3.3 O Sistema Representativo (a problemática jurídi ca da legitimidade

processual nas ações coletivas) como fundamento reg ente da concepção de Processo Coletivo preconizada pela Esc ola Instrumentalista .................................. ........................................................... 191

3.3.1 O Mérito Processual nas ações coletivas visto sob a perspectiva dos Anteprojetos de Código de Processo Coletivo ....... .......................... 199

3.3.2 O mérito processual no Código de Processo Civ il Coletivo – Antônio Gidi .............................................. ........................................................ 212

3.3.3 O mérito processual no Código Modelo de Proce ssos Coletivos para Ibero-América. .................................... ................................................. 226

3.3.4 A análise do mérito processual coletivo no An teprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos da UERJ/UNESA e U SP. ............. 247

3.3.4.1 Do Anteprojeto coordenado por Aluisio Gonça lves de Castro Mendes ........................................................................................................... 248

3.3.4.2 O estudo do mérito processual no Anteprojet o de Código Brasileiro de Processos Coletivos – USP – .................... .................................. 263

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3.3.4.3 Código de Processo Coletivo Brasileiro da P UCMINAS: uma proposta legislativa de teorização do mérito partic ipado. .............. 272

3.4 Síntese ....................................... ...................................................................... 282 4 PROCESSO COLETIVO E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ............. 286 4.1 A constitucionalização do processo e da jurisdi ção no Estado

Democrático de Direito ............................ ..................................................... 287 4.2 O sistema participativo e a Teoria do Discurso como fundamentos

regentes do Processo Coletivo Democrático ......... ................................... 301 4.3 Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas : o processo coletivo

visto sob a ótica do objeto (não do sujeito) ...... ........................................ 311 4.4 O mérito participado visto sob a perspectiva da Teoria das Ações

Coletivas com Ações Temáticas ..................... ............................................ 324 4.4.1 A procedimentalização da construção participa da do mérito no

processo coletivo democrático ..................... ..................................... 330 4.5 Análise crítica da participação dos legitimados no processo coletivo . 341 4.5.1 O instituto do Amicus Curiae e a participação dos legitimados no

processo coletivo brasileiro: historicidade e previ são legislativa ... 348 4.5.1.1 Resgate histórico-legislativo do instituto do Amicus Curiae ......... 351 4.5.2 O Amicus Curiae como herança do Sistema Repre sentativo no

Processo Coletivo vigente e a sua pseudo-participaç ão na construção do mérito processual. ............................. ............................................ 365

4.5.3 Um estudo crítico da ADIN 3510 sob a perspect iva da participação do Amicus Curiae na construção do mérito processual .. ...................... 372

4.6 Síntese ....................................... ...................................................................... 376 5. CONCLUSÃO ...................................... ............................................................... 378 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 385

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1 INTRODUÇÃO O objetivo da presente pesquisa cientifica é desenvolver inicialmente um

estudo teórico dos fundamentos jurídicos utilizados como parâmetro à compreensão

do mérito processual, com o propósito de demonstrar sua gênese e, especialmente,

explicitar que toda a base teórica encontra-se no processo civil. Para isso, foi

necessário a elaboração do primeiro capítulo, momento em que foi demonstrada

toda a construção teórica do conceito de mérito processual, partindo-se do direito

romano e perpassando pelos mais expressivos autores que envidaram esforços para

o debate e o entendimento cientifico do mérito no contexto do processo civil,

especificamente. É de suma relevância esclarecer que a elaboração do primeiro

capítulo torna-se vital na presente pesquisa, a fim de esclarecer que todos os

autores que se debruçaram no estudo do tema mérito processual pautaram suas

reflexões em cima da noção decorrente da matéria ou das questões de mérito. Ou

seja, além de existir uma profunda divergência doutrinária, pelos autores

consultados foi possível verificar que não existe um consenso sobre o que seja o

mérito processual, haja vista que o respectivo tema ora é compreendido como

matéria de fato e de direito, ora como demanda, lide, pretensão, causa de pedir

(próxima e remota).

A elaboração do primeiro capítulo se justifica no sentido de tornar evidente

que, antes de compreender o instituto da formação participada do mérito processual

nas ações coletivas, é necessário esclarecer que a sua teorização se deu a partir de

estudos desenvolvidos na seara do processo individual (processo civil), cujo

entendimento do tema materializa-se e se limita na noção das questões ou das

matérias fático-jurídicas trazidas pelas partes (requerente e requerida) até a fase

saneadora, a fim de serem avaliadas e valoradas, muitas vezes de forma unilateral,

pelo julgador. Trata-se do momento da pesquisa em que foi possível deixar claro

para o leitor que o modelo de processo coletivo vigente no Brasil é reflexo da

concepção liberal e individualista, uma vez que compreende o mérito na mesma

perspectiva trabalhada pelo processo civil, até porque na lei de ação civil pública,

por exemplo, a noção de mérito processual decorre basicamente da matéria e das

questões fáticas trazidas pelos legitimados ao processo, ressaltando-se que o

conceito de legitimidade processual ativa trabalhado na Lei 7437/85 exclui o cidadão

do rol dos legitimados. Isso evidencia claramente que na atual sistemática do

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processo coletivo brasileiro identifica-se que não é possível a formação participada

do mérito processual, haja vista que nem todos os interessados difusos (tal como os

cidadãos) tem legitimidade para participar da definição das questões e da matéria de

mérito nas ações coletivas. É nesse contexto que se desenvolve inicialmente o

estudo do mérito processual na presente pesquisa, uma vez que a atual metodologia

utilizada pelo legislador e pela maioria dos estudiosos do processo coletivo no Brasil

é pautada no sistema representativo, que trabalha em cima da idéia de que o

legislador abstratamente é o detentor da legitimidade de definir taxativamente (e de

forma restritiva) quem é legitimado processual nas ações coletivas. No momento em

que o próprio legislador faz a opção pelo sistema representativo, limitando o rol dos

legitimados para as ações coletivas, certamente também delimita o número de

questões que poderiam ser trazidas para o debate no âmbito do processo coletivo.

Pelo cuidadoso estudo desenvolvido nas obras de Oskar Von Bülow,

Chiovenda, Carnelutti, Calamandrei, Liebman e Fazzalari, foi possível constatar que

o entendimento do mérito processual limita-se às matérias e às questões trazidas

pelo requerente e pelo requerido para os autos, ou seja, o que se verifica na análise

dos autores trabalhados e discutidos no primeiro capítulo é uma concepção técnico-

dogmática do mérito apenas como a matéria (fática e jurídica) trazida pelas partes,

com a finalidade de guiar o juiz no ato decisório. Considerando-se que os primeiros

estudos sobre o mérito processual fundaram-se basicamente na noção de matéria

de fato e da matéria de direito discutidas apenas por quem propôs a ação

(demandante) e contra quem a ação foi proposta (demandado), pode-se afirmar,

inicialmente, que a adoção do sistema representativo como fundamento regente da

atual e vigente sistemática do processo coletivo no Brasil é reflexo da teorização do

mérito processual desenvolvida pelo processo civil. Em decorrência disso, torna-se

impossível pensar a formação participada do mérito processual enquanto o processo

coletivo continuar sendo visto e compreendido como uma extensão das discussões

teóricas perpetradas e desenvolvidas pelos estudiosos do processo civil.

O que se busca discutir ao longo de todo esse trabalho de pesquisa é o

estudo do mérito processual no Estado Democrático de Direito, demonstrando que a

respectiva reflexão cientifica não pode ter o seu entendimento adstrito à noção de

que o mérito processual é a matéria fática e jurídica trazida pelo autor e pelo

demandado na relação processual ora instaurada, haja vista que o mérito deve ser

reconstruído teoricamente, a fim de ser visto e compreendido como um

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procedimento bifásico que viabiliza a formação participada do provimento por todos

aqueles sujeitos legitimamente interessados e que demonstram aptidão para sofrer

os efeitos jurídicos do provimento.

É por isso que o mérito processual pode ser definido como um procedimento

(não como mera matéria de fato e de direito) através do qual num primeiro momento

todos os interessados no provimento terão legitimidade de participar da definição de

todas as matérias de fato e de todas as alegações jurídicas que permearão o objeto

da demanda até a fase de saneamento. Uma vez definido de forma participada o

objeto da demanda ao final da fase postulatória (que se encerra com o saneamento

processual), inicia-se, portanto, a segunda fase do procedimento, que consiste no

momento em que todos os interessados no provimento terão legitimidade para

debater amplamente todas as questões e a matéria trazidas pelas partes no primeiro

momento do procedimento.

Nessa seara sabe-se que o estudo sistematizado e crítico do mérito

processual perpassa, inicialmente, pela distinção teórica de alguns conceitos a ele

inerentes, tais como, demanda, pretensão, lide, matéria de fato, matéria de direito e

causa de pedir. Embora o Código de Processo Civil brasileiro de 1973 tenha

adotado as proposições teóricas de Enrico Tullio Liebman, para quem o mérito e a

lide são institutos correlatos, é importante ressaltar a necessidade de superação do

entendimento ideológico atinente ao tema, a fim de não condicionar a sua

compreensão ao direito das partes (demandante e demandado) e do juiz reduzi-lo

peremptoriamente àquelas questões ora levantadas e alegadas em juízo.

No segundo capítulo pretendeu-se demonstrar as bases teóricas do atual

modelo de processo coletivo brasileiro, centrado no sistema representativo, o que

denota a sua incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito pelo fato de

inviabilizar a formação participada do mérito processual. Os estudos desenvolvidos

no primeiro capítulo foram necessários para demonstrar que toda a base teórica da

atual sistemática adotada no Brasil quanto ao processo coletivo é mero reflexo da

ideologia individual e liberal de processo trabalhada pelos clássicos autores que

propuseram a base de toda a teoria processual. A partir desses estudos,

desenvolveu-se uma análise detalhada do histórico do processo coletivo, do sistema

americano (class action) e de todos os anteprojetos de codificação do direito

processual coletivo, momento em que foi possível constatar que a base teórica de

todos os anteprojetos (salvo o anteprojeto de codificação do processo coletivo

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desenvolvido pela Pucminas) é o sistema representativo, o que torna inviável pensar

em qualquer possibilidade de formação participada do mérito processual, haja vista

que todos os anteprojetos propõem um rol fechado de legitimados processuais a

propositura das ações coletivas. A construção tanto do primeiro capitulo, quanto do

segundo capítulo, foram vitais para o enfrentamento critico do tema problema no

terceiro capitulo, uma vez que foi possível, ao longo de toda a pesquisa, demonstrar

que a gênese do atual modelo de processo coletivo brasileiro encontra-se no

processo civil, que por ser de natureza liberal não propõe uma teoria geral do

processo de cunho democrático, mas sim autoritário, em que o julgador é quem

define os legitimados a participarem da relação processual, assim como institui

unilateralmente as matérias de fato e de direito a serem discutidas ao longo do

procedimento. O mérito processual, nesse contexto, é visto como a repercussão das

questões (fáticas e jurídicas) que o autor e o demandado submeteram à apreciação

do juiz.

A releitura do tema inicia-se pelo entendimento constitucionalizado do direito

de ação no Estado Democrático de Direito (artigo 5º, inciso XXXV da Constituição

brasileira de 1988), que se materializa inicialmente pelo amplo acesso ao Judiciário

e, especialmente, pelo direito assegurado indistintamente a todos os jurisdicionados

(interessados difusos e coletivos) de participar discursivamente da construção do

mérito processual. Assim, a ação passa a ser vista como o direito fundamental de

discussão do mérito da pretensão deduzida, assegurado a todo sujeito que

demonstre interesse jurídico na pretensão (objeto da ação proposta). Dessa forma,

resta superada a possibilidade de extinção do processo sem julgamento do mérito

por carência de ação, uma vez que as cognominadas condições da ação passam a

ser matéria integrante do mérito processual, admitindo-se, ainda, a figura da

extinção do processo sem julgamento do mérito apenas para aquelas situações que

não envolvam matéria de mérito, tal como ocorre com os pressupostos processuais

de existência e de validade da relação jurídico-processual.

A teoria das ações coletivas como ações temáticas, de autoria do jurista

Vicente de Paula Maciel Junior, ao propor o estudo do processo coletivo a partir do

objeto, superando o clássico entendimento que concentra a análise das ações

coletivas no sujeito, supera a concepção liberal-individualista ao estabelecer o

principio da participação como referencial ao debate das pretensões de cunho

transindividual. A constituição de um lócus processual, de amplo e isonômico debate

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fático-jurídico da pretensão coletiva ou difusa, por todos os interessados e

legitimados ao provimento estatal, deve ser vista como o patamar do entendimento

crítico-constitucionalizado do mérito.

O mérito processual não pode decorrer das questões consideradas relevantes

pelo juiz e suscitadas pelo autor da ação, na exordial, e pelo demandado, na peça

de defesa, tal como ocorre no processo civil. Na realidade, o mérito participado nas

ações temáticas deve ser resultado de um amplo debate instaurado

processualmente, em que figura como protagonistas do discurso democrático todos

os interessados na pretensão. Por isso, o mérito processual construído de forma

dialógica assegura a legitimidade do provimento estatal (jurisdicional), viabiliza o

exercício da cidadania e garante a efetivação do principio da inafastabilidade do

controle jurisdicional (amplo acesso ao Judiciário), tendo em vista que é reflexo de

um procedimento instaurado e conduzido a partir da possibilidade dos legitimados

apresentarem tempestivamente temas correlatos à pretensão inicialmente deduzida.

No terceiro capítulo procurou-se demonstrar que o conceito de mérito

processual trabalhado pelos autores e teóricos do processo civil não pode ser

utilizado como parâmetro ao entendimento do mérito nas ações coletivas, haja vista

que a herança liberal torna inviável a implementação do projeto democrático de

formação participada do mérito processual nas ações coletivas. A contribuição

pretendida com a presente pesquisa é propor um novo entendimento cientifico sobre

o mérito processual, superando aquele preconizado pelos autores clássicos (Bülow,

Chiovenda, Calamandrei, Carnelutti, Liebman) e desenvolvido no contexto do

processo civil, que limita a noção de mérito processual à matéria de fato e de direito,

ou seja, as questões fáticas e jurídicas submetidas à apreciação do juiz e trazidas

pelo demandante e pelo demandado ao processo. Dessa forma, o mérito processual

nas ações coletivas deve ser reflexo da formação participada pelos interessados

difusos e coletivos, podendo ser definido como um procedimento bifásico, em que na

primeira fase os interessados terão legitimidade de levar aos autos todas as

questões relacionadas com a pretensão inicialmente deduzida, ressaltando-se que o

despacho saneador é o término dessa primeira fase do procedimento, momento em

que é definida a matéria de mérito. Já na segunda etapa do procedimento temos a

ampla discursividade da matéria de mérito pelos interessados difusos e coletivos,

para que todos possam efetivamente influir, de forma direta, na construção do

provimento. A partir dessas considerações iniciais pretende-se demonstrar, ao longo

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de toda a pesquisa, que o conceito de mérito processual proposto pelos estudiosos

clássicos no primeiro capítulo deve ser repensado, haja vista que na perspectiva do

processo civil a noção de mérito processual restringe-se às questões ou a matéria

apreciadas pelo juiz e trazidas pelo autor e pelo demandado, enquanto a formação

participada do mérito processual nas ações coletivas é reflexo de um procedimento

estabelecido para definir inicialmente a matéria de mérito a ser ampla e

discursivamente debatida pelas partes interessadas em momento posterior ao

saneamento. Nesse contexto, o mérito deixaria de ser visto apenas como a matéria

alegada pelas partes no processo e passaria a ser visto como um procedimento

construído e desenvolvido pelo devido processo legal, tendo em vista que o seu

entendimento supera muito às questões suscitadas processualmente pelas partes.

Afirmar que o mérito processual é um procedimento constitucionalizado de

formação do provimento estatal é reconhecer que o seu entendimento científico não

fica adstrito às questões ou a matéria (fática e jurídica) trazidas pelas partes ao

processo. É nesse contexto que se torna necessário distinguir mérito processual de

matéria de mérito. A partir da teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas os

temas trazidos pelas partes ao longo de todo o procedimento configurariam a

matéria de mérito alegada, até porque, a proposta da presente pesquisa é

demonstrar que a formação participada do mérito processual é um procedimento

através do qual as partes detêm a legitimidade de definir e de debater amplamente

toda a matéria de mérito.

O processo intelectivo do juiz na construção ou na formação participada do

mérito processual nas ações coletivas pressupõe a apreciação de todos os temas,

de todas as questões e matérias (fáticas e jurídicas) trazidas para o debate

processual pelas partes interessadas no provimento, ou seja, o que se pretende

demonstrar ao longo de toda a pesquisa é que o mérito processual não é mero

reflexo de conjecturas solitárias e unilaterais do julgador.

O provimento jurisdicional deve ser conseqüência de um procedimento

meritório desenvolvido discursivamente pelo devido processo legal, em que todos os

interessados tiveram a oportunidade de participar da definição da matéria de mérito

e também do amplo debate de todos os temas (matérias ou questões de mérito)

levantados pelos legitimados. Na realidade, quando o jurista Vicente de Paula Maciel

Junior sistematizou a Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, deixou

claro que os temas trazidos pelos interessados difusos para o processo coletivo

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constituem a matéria ou as questões de mérito que conduzirão todo o debate

processual da pretensão em momento posterior à fase de saneamento e anterior à

decisão (provimento).

O presente trabalho é resultado de uma pesquisa teórico-bibliográfica e

documental, desenvolvida com o propósito de testificar o conhecimento científico

mediante a problematização crítica. A delimitação do problema teórico decorreu de

proposições dedutivas, cuja compreensão somente foi possível por meio de análises

temáticas, teóricas, interpretativas, comparativas, históricas e, essencialmente,

crítico-constitucionalizadas.

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2 A GÊNESE DO MÉRITO NO DIREITO PROCESSUAL E DO DE BATE PRELIMINAR DA PROPOSTA DE PESQUISA.

Inicialmente é importante esclarecer que a elaboração do primeiro capítulo

justifica-se pela necessidade de esclarecimento cientifico de toda a base teórica do

estudo do mérito processual, buscando-se demonstrar que a gênese de toda

produção atinente ao tema proposto encontra-se no direito romano e nas

proposições trazidas por Bülow, Chiovenda, Calamandrei, Carnelutti, Liebman e

Fazzalari, pesquisadores que demonstram em suas obras a estreita e a intrínseca

relação existente entre o mérito processual e diversos outros temas e institutos

correlatos, tais como a matéria de mérito (fática e jurídica), a pretensão, a lide, a

causa de pedir e a demanda. Preliminarmente pretende-se demonstrar que a base

de todo o estudo do mérito encontra-se no processo individual (processo civil) e se

limita às questões de fato e de direito trazidas pelas partes (requerente e requerido)

e apreciadas pelo julgador como referencial para a decisão judicial.

Esse sólido entendimento preconizado pelos autores clássicos, de que o

mérito processual restringe-se à matéria de fato e a matéria de direito trazida apenas

pelas partes (requerente e requerido) à relação processual, tem reflexos diretos no

entendimento critico da formação participada do mérito no processo coletivo. A

teorização de que o mérito processual limita-se à matéria fática e jurídica trazida

pelo autor e pelo demandado no processo se opõe à noção democrático-

constitucionalizada do mérito processual que deve ser visto como a instauração de

um procedimento de construção discursiva do provimento mediante o debate da

matéria de mérito por todos os interessados e afetados pelo provimento estatal.

A proposta específica do primeiro capítulo é justamente estudar e demonstrar

que os critérios utilizados pelos autores clássicos para definir o mérito no processo

individual é utilizado como referencial teórico para a sedimentação do modelo de

processo coletivo adotado pelo Brasil, especialmente quando se analisa, por

exemplo, a Lei de Ação Civil Pública, que ao restringir o rol de legitimados

processuais ativos a sua propositura (excluindo-se o cidadão) certamente demonstra

a opção pelo sistema representativo. O conceito de mérito do processo civil,

trabalhado pelos autores analisados no presente capitulo, é a base de todo o

sistema representativo adotado no modelo de processo coletivo brasileiro vigente,

haja vista que o legislador é quem definiu abstratamente aquelas pessoas

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consideradas legitimadas à propositura das ações coletivas, excluindo-se, na maioria

das vezes o cidadão.

A relação existente entre o mérito do processo civil e o sistema representativo

resta evidente na limitação dos sujeitos que participarão da formação do mérito, ou

seja, tanto no processo civil quanto no modelo de processo coletivo adotado

atualmente no direito brasileiro é o legislador quem define os legitimados a

propositura da ação coletiva, à definição da matéria de mérito e a participação no

debate da matéria de mérito no âmbito processual. Isso implica em limitação na

participação dos interessados na formação do mérito, algo que se pretende

demonstrar ao longo de todo esse capitulo por meio da apresentação dos

fundamentos teórico-científicos utilizados como parâmetro à construção do conceito

de mérito pelos autores estudados.

Tanto no processo civil quanto no processo coletivo brasileiro vigente não se

vislumbra a formação participada do mérito, pelo fato de não haver abertura que

oportunize isonomicamente a participação de todos os interessados na definição da

matéria de mérito e, também, na construção do mérito como conseqüência do

debate amplo das questões fático-jurídicas suscitadas pelas partes. A restrição do

rol de sujeitos legitimados ao debate processual impossibilita a construção

participada do mérito.

É nessa seara que se inicia o estudo específico do tema, ressaltando-se que

etimologicamente a palavra mérito vem do latim meritum, cuja significação é

“merecimento, aptidão, superioridade, bom serviço”1 (BASTOS, 1928, p. 912).

Verifica-se que a palavra mérito encontra-se diretamente vinculada ao

reconhecimento, à aptidão, à capacidade, à superioridade, à habilidade, ou seja,

classicamente a compreensão mais adequada é aquela na qual o mérito se associa

ao significado que designa pessoa merecedora de reconhecimento. Correlacionar o

sentido clássico da palavra mérito com o instituto do mérito processual pode denotar

inicialmente que o julgamento do mérito é uma prerrogativa inerente às pessoas que

merecem discutir os fundamentos fático-jurídicos da pretensão deduzida em juízo

por terem demonstrado previamente os requisitos legais que viabilizam a análise e a

participação na discussão meritória. Considerando-se que a discussão do mérito

processual não é um direito assegurado a todos indistintamente, pode-se afirmar

1 Importante ressaltar que pela pesquisa ora desenvolvida não houve, a partir de 1928, relevante contribuição filológica com relação ao conceito de mérito.

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que a participação no debate do mérito da pretensão é uma prerrogativa assegurada

apenas a determinadas pessoas merecedoras e que tenham demonstrados

previamente os requisitos extrínsecos ao mérito (condições da ação e pressupostos

processuais).

A compreensão dos fundamentos científicos do mérito processual sempre foi,

e ainda é, objeto de profundas e de hesitantes discussões jurídicas, tendo em vista o

seu caráter polissêmico e também a ausência de critérios de cientificidade para o

seu entendimento2.

Essa indefinição teórica acerca do mérito decorre da sua proximidade com o

conceito da causa de pedir, visto processualmente pela Escola Instrumentalista3

como a fundamentação fático-jurídica da pretensão deduzida em juízo e, nessa

perspectiva, o mérito processual restringir-se-ia à análise dessas peculiaridades

fático-jurídicas e/ou apenas jurídicas da pretensão deduzida em juízo.

Sabe-se que o estudo da natureza jurídica do mérito inicia-se a partir das

considerações cientificas ora expostas, porém a elas não se restringem. Isso advém

da necessidade de delimitarmos os fundamentos e os contornos científicos do

entendimento crítico acerca do mérito no âmbito processual.

A ideologização4 e a dogmatização5 do tema mostra-se na dificuldade dos

estudiosos quanto a sua conceituação e também na promiscuidade como o tema é

2 [...] Demonstrando a promiscuidade do legislador na utilização da expressão, em caminho seguido por outros processualistas, Cândido Rangel Dinamarco mostrou que o legislador brasileiro, na Exposição de Motivos do Código de Processo Civil, conferiu à palavra l”lide”, dentre outros, o significado de “mérito”, o mesmo ocorrendo, quase sempre, ao longo do mencionado diploma legal. Assim, expressões como “julgamento antecipado da lide” (v.g. nomenclatura utilizada na seção em que se encontra o artigo 330), “julgar total ou parcialmente a lide” (artigo 468), litisconsórcio por “comunhão de direitos ou de obrigação relativamente à lide” (artigo 46, inciso I), “ conhecimento da lide” (artigo 110) e outras tantas são exemplos da utilização da expressão lide com sinônimo de mérito. (MADEIRA, 2010, p. 109). 3 Todas as vezes que for mencionado ao longo dessa pesquisa a expressão “Escola Instrumentalista de Processo” ou “Escola Paulista de Processo” pretende-se fazer uma remissão aos estudos científicos e sistematizados especialmente pelos professores e pesquisadores da Universidade de São Paulo, e mais recentemente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, especialmente os professores doutores Cândido Rangel Dinamarco, Alfredo Buzaid, Kazuo Watanabe e Ada Pelegrini Grinover, cujos estudos científicos no âmbito do direito processual são relevantes e foram desenvolvidos a partir das proposições teóricas de Enrico Tullio Liebman. 4 IDEOLOGIA: “Esse termo foi criado por Destut de Tracy (Idéologie, 1801) para designar a análise das sensações e das idéias segundo o modelo de Condillac. A I. constituiu a corrente filosófica que marca a transição do empirismo iluminista para o espiritualismo tradicionalista e que floresceu na primeira metade do século XIX (v. ESPIRITUALISMO). Como alguns ideologistas franceses fossem hostis a Napoleão, este empregou o termo em sentido depreciativo, pretendendo com isso identifica-los com sectários ou dogmáticos, pessoas carecedoras de senso político e, em geral, sem contato com a realidade (PICAVET, Lês idéologues, Paris, 1891). Aí começa a historia do significado moderno desse termo, não mais empregado para indicar qualquer espécie de análise filosófica, mas uma doutrina mais ou menos destituída de validade objetiva, porém mantida pelos interesses claros

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abordado. Tal afirmação justifica-se pela ausência de cuidado dos pesquisadores

em diferenciar sistematicamente o mérito, a pretensão, a lide, a demanda, o objeto6,

a causa de pedir próxima e remota. O que se pretende com a presente pesquisa é

inicialmente teorizar o estudo do mérito a partir do processo individual para, assim,

estabelecer critérios científicos suficientes ao seu entendimento no âmbito do

processo coletivo.

A Escola Instrumentalista do Processo compreende o instituto jurídico do

mérito processual a partir da análise das condições da ação, porém apenas

esclarece que a legitimidade ad causam, a possibilidade jurídica do pedido, o

interesse de agir e as condições específicas de procedibilidade da ação penal são

requisitos indispensáveis para a análise do mérito da pretensão, sem adentrar ao

estudo critico e jurídico sobre o que é propriamente o mérito processual.

Simplesmente o debate jurídico limita à demonstração de que a inexistência de uma

das condições da ação no processo civil ocasionará a carência de ação, que terá

como conseqüência a extinção do processo sem julgamento do mérito(CINTRA,

2005, p. 266-272).

O estudo da gênese do mérito processual justifica-se pela proximidade do

tema com a matéria de fato7 e a matéria de direito, consideradas o pressuposto para

ou ocultos daqueles que a utilizam. {...}. Hoje, por I. entende-se o conjunto dessas crenças, porquanto só têm a validade de expressar certa fase das relações econômicas e, portanto, de servir à defesa dos interesses que prevalecem em cada fase desta relação. Foi exatamente com esse sentido que a I. foi estudada pela primeira vez em Trattato di sociologia generale (1916) de Vilfredo Pareto, apesar de, nesta obra, não ser usado o termo I. (que fora empregado em Sistemi socialisti, 1902, pp. 525-26). Em Paeto, a noção de I. corresponde à noção de teoria não-cientifica, entendendo-se por esta última qualquer teoria que não seja lógico-experimental [...]”.(ABBAGNANO, 2003, p. 531-532). 5 Dogma: opinião ou crença. Nesse sentido a palavra é usada por Platão e contraposta pelos céticos à epoché, ou suspensão do assentimento, que consiste em não definir a própria opinião em um sentido ou em outro. Kant entendeu por dogma uma proposição diretamente sintética que deriva de conceitos e como tal distinta de uma proposição do mesmo gênero, derivada da construção dos conceitos, que é um matema. Em outros termos, o dogma são proposições sintéticas a priori de natureza filosófica, ao passo que não poderiam ser chamadas de dogma as proposições de cálculo e geometria (ABBAGNANO, 2003, p.292). 6 Objeto litigioso, pois, é conceito menor do que objeto do processo. Em conclusão, diz que o objeto litigioso “é o mérito, assim entendido o pedido do autos formulado na inicial ou nas oportunidades em que o ordenamento jurídico lhe permita ampliação ou modificação; o pedido do réu na reconvenção; o pedido do réu formulado na contestação, nas chamadas ações dúplices; o pedido do autor ou do réu nas ações declaratórias incidentais (sobre questões prejudiciais); o pedido do autor ou do réu contra terceiro na denunciação da lide; o pedido do réu no chamamento ao processo; o pedido do terceiro contra autor e réu, formulado na oposição. Em suma, é o pedido que, na opinião de Sydney Sanches, caracteriza o objeto litigioso (DINAMARCO, 1987, p. 213). 7 O artigo 330 do Código de Processo Civil vigente (CPC 1973) estabelece: “O juiz conhecerá diretamente o pedido, proferindo sentença: I- quando a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito ou de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência; II- quando ocorrer a revelia”. (BRASIL, Código Civil, Comercial, Processo Civil e Constituição Federal, 2008, p.642). Nesse dispositivo legal verifica-se a relação intrínseca entre o mérito e a matéria de fato. Pelo

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o entendimento de conceitos fundamentais do Direito Processual e, por conseguinte,

requisitos indispensáveis à análise do mérito da pretensão nos ditames expostos

pelo legislador do Código de Processo Civil de 1973. A causa de pedir, o objeto da

lide, a pretensão e a própria lide são institutos cujo entendimento condiciona-se à

teorização do que seja matéria de fato e matéria de direito. O que temos nos

estudos desenvolvidos até então é que a matéria de fato e a matéria de direito,

como temas do Direito Processual, são vistas sob a ótica ideológica, ou seja, existe

uma ínsita relação entre elas e mérito processual.

Tal relação encontra-se claramente estruturada a partir dos conceitos de

sentença terminativa8 (sentença que extingue o processo sem julgamento do

mérito), de sentença definitiva (sentença em que o julgador garante a resolução do

mérito da pretensão deduzida) e também no instituto do Julgamento Antecipado da

Lide9.

O julgamento do mérito processual da pretensão deduzida condiciona-se à

formação do convencimento motivado do julgador referente às questões de fato e de

direito postas pelas partes em juízo. Havendo provas suficientes ao convencimento

do julgador, teremos o julgamento do mérito.

Dessa forma, sabe-se que entre os pesquisadores e os estudiosos do Direito

Processual proposto pelo legislador do Código de Processo Civil de 1973, a análise

do mérito consiste no enfrentamento de todas as alegações fáticas e jurídicas que

que se extrai da leitura do dispositivo o legislador limitou o instituto do mérito às alegações de fato e de direito, inerentes à pretensão, cuja apreciação dar-se-á a partir do exercício da jurisdição pelo julgador, que quando da análise do mérito excluirá qualquer participação das partes (demandante, demandado e demais sujeitos juridicamente interessados na pretensão) na construção do mérito. Assim, pode-se afirmar que o conceito de mérito adotado pelo legislador do Código de Processo Civil de 1973 advém de uma concepção autoritária de processo e do entendimento da jurisdição enquanto sacerdócio e poder exercido pelo julgador. 8 Grosso Modo, pode-se dizer que haverá julgamento conforme o estado, sem que se aprecie o mérito, se o juiz verificar de oficio ou se convencer da alegação de uma das partes, quanto à inexistência de pressuposto processual ou de quaisquer das condições da ação, ou quando houver a presença de pressuposto processual negativo. (WAMBIER, 2005, p. 420) 9 O julgamento antecipado da lide, que é uma espécie do gênero “julgamento conforme o estado do processo, pode ocorrer em três situações. Pode o pedido envolver só direito e não fato, não havendo, portanto, necessidade de produção de provas, além daquelas que já terão sido produzidas com a própria petição inicial (documentais). [...] Também deve haver julgamento antecipado se, embora o mérito envolva matéria de fato e de direito, não houver necessidade de produção de provas em audiência. Nesse caso, inspirado pelo principio da economia processual o legislador autorizou o juiz a dispensar a audiência de instrução e julgamento. Por último, pode haver julgamento antecipado da lide se, tendo o réu se omitido com relação ao ônus de contestar, sendo, portanto, revel, ocorreram os efeitos da revelia. Esses efeitos, como se viu, ocorrem se preenchidas as condições legais (como, por exemplo, não se tratar de direito indisponível) e se o juiz considerar verossímeis os fatos narrados pelo autor na petição inicial, em respeito ao principio do livre convencimento motivado. (WAMBIER, 2005, p. 421-422).

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deverão ser provadas e demonstradas, no âmbito da relação processual instituída

entre as partes e pelas partes, diante da autoridade do julgador.

Importante ressaltar que a complexidade do tema ora posto em debate advém

certamente da sua utilização enquanto sinônimo de pretensão, de lide e de objeto da

demanda. Para aqueles que compreendem o processo como um instrumento para o

exercício da jurisdição e a oportunidade do Judiciário manifestar-se juridicamente

acerca do conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida o conceito

de mérito encontra-se intrinsecamente interligado ao conceito de Lide.

Esse foi o posicionamento adotado nas Exposições de Motivos do Código de

Processo Civil vigente, onde se verifica a utilização da palavra Lide para designar o

mérito da causa. Visando esclarecer a sistemática adotada pelo legislador do Código

de Processo Civil vigente é oportuna a análise de alguns dispositivos para verificar o

sentido e a compreensão jurídica adotada acerca do mérito.

No artigo 330 do CPC10 o legislador pátrio deixou claro que o mérito restringe-

se à apreciação de toda matéria fática e de direito ou apenas a matéria de direito

objeto da pretensão deduzida em juízo. Já no artigo 468 do CPC11 verifica-se a

delimitação do conceito de mérito à compreensão que se tem de Lide hoje. Esse é o

entendimento adotado pelo professor José Marcos Rodrigues Vieira: “ O mérito é o

pedido e é a lide, ou, como visto, é esta nos limites daquele” (VIEIRA, 2002, p. 160).

Segundo explica o autor em comento o conceito de mérito é endoprocessual

e pode ser definido como a lide nos limites do pedido. Nesse sentido

O mérito já foi dito que é o pedido, que é a lide, que é o pedido nos limites da lide e, atribuída à lide a conotação de realidade intra-autos, seria (a meu ver) a lide nos limites do pedido, a lide não transbordante do pedido. Sem maiores discussões sobre a doutrina, não se pode deixar de admitir que o mérito, qualquer que seja a concepção, haja de refletir o conjunto de questões subordinadas à preclusão do deduzido e do dedutível (VIEIRA, 2000, p. 116).

Novamente verifica-se que o conceito de mérito proposto pelo legislador do

Código de Processo Civil refere-se a todas as questões fáticas e jurídicas da

pretensão deduzida em juízo, conforme preceitua o artigo 459, caput: “O juiz

10 Arito 330 do Código de Processo Civil: “O juiz conhecerá diretamente do pedido, proferindo sentença: I- quando a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência; II- quando ocorrer a revelia (artigo 339)” 11 Aritigo 468 do CPC: “A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas”.

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proferirá a sentença, acolhendo ou rejeitando, no todo ou em parte, o pedido

formulado pelo autor. Nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito,

o juiz decidirá de forma concisa”. Todo o nosso ordenamento jurídico foi estruturado

no sentido de vincular a temática do mérito processual ao debate das questões

fático-jurídicas a partir da pessoa do juiz.

Por isso, pode-se afirmar que hoje o entendimento jurídico-científico comum

entre os processualistas é de que o mérito processual percorre a essência da

situação processual instituída a partir do poder inerente à jurisdição. Ou seja, o

enfrentamento do mérito é visto como uma prerrogativa do julgador, e não como um

direito das partes. A justificativa de tal colocação é no sentido de que a construção

ou a análise do mérito não advém de um direito das partes diretamente interessadas

no provimento. Pelo contrário, é produto da legitimidade pressuposta do legislador

que determina, através da imposição das condições da ação e dos pressupostos

processuais, a viabilidade ou não de enfrentamento do mérito.

A ausência de um conceito construído e pacificado sobre o mérito é o que

garante criticamente as reflexões cientificas propostas na presente pesquisa. Para

Candido Rangel Dinamarco “o mérito é o complexo das questões materiais que a

lide apresenta” (DINAMARCO, 1996, p. 200).

Giuseppe Chiovenda compreende o mérito a partir do conceito de demanda.

Nesse sentido é oportuna a citação de Chiovenda exteriorizando o seu entendimento

sobre o que é demanda: “é o ato pelo qual a parte, afirmando existente uma

vontade contrata de lei, que lhe garante um bem, declara querer que essa vontade

se atue, e invoca para esse fim a autoridade do órgão jurisdicional”(CHIOVENDA,

1969, p. 297). Verifica-se, previamente, que para Chiovenda o mérito reside na

demanda, tendo em vista ser a sentença o provimento estatal que reconhece ou não

a demanda do jurisdicionado. Oportuno esclarecer que a demanda é vista aqui como

a pretensão, ou seja, como uma narração reivindicativa de um direito materializado

na petição inicial. Nesse sentido é oportuna a contribuição de Kazuo Watanabe:

“demanda é fato estritamente processual e constitui veículo de algo externo ao

processo e anterior a ele, algo que é trazido ao juiz em busca de um remédio que o

demandante quer” (WATANABE, 1987, p. 731).

No mesmo sentido temos o posicionamento de Cândido Rangel Dinamarco,

que entende ser a demanda o próprio objeto do processo. Nesse sentido temos: “a

demanda é o objeto litigioso do processo, em torno do qual será exercida a

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jurisdição em cada caso concreto, ao juiz não sendo lícito desconsidera-lo, amplia-lo

por iniciativa própria ou pronunciar-se acerca de outro objeto” (DINAMARCO, 1986,

p. 186).

É nessa perspectiva que podemos afirmar que o conceito de mérito encontra-

se intrinsecamente atrelado ao objeto da lide e à pretensão deduzida nos limites do

pedido. Pelo estudo preliminar do tema constata-se a necessidade de maior

profundidade científica no estudo crítico do mérito processual. É evidente a

construção jurídica vinculando o mérito à pretensão, ao objeto da lide e a matéria

fático-jurídica levada ao Judiciário. O processualista italiano Elio Fazzalari também

explicita em sua obra a relação existente entre mérito processual, demanda e lide

Quanto aos provimentos de mérito em sentido lato, podem-se qualificar como tais os provimentos que envolvem a cognição do mérito (isto é, o aspecto substancial deduzido na lide e aquele requerido ao juiz), sejam os que acolhem a demanda judicial, sejam os que a rejeitam. Em sentido estrito, são provimentos de mérito somente os jurisdicionais, ou seja, aqueles que no acolher da demanda invocam uma das medidas reparadoras que constituem a jurisdição (condenação, declaração e constituição): são elas que desenvolvem efeitos substanciais no patrimônio das partes. Por sua vez, a pronúncia de rejeição da demanda – a recusa de invocar aquela medida – deve considerar-se “de rito”, porque desenvolve efeitos somente no processo. (FAZZALARI, 2006, p. 441-442).

Fica claro, inicialmente, que, sob a ótica do processo civil (processo

individual), não podemos hoje visualizar a possibilidade de construção participada do

mérito processual. A predeterminação legal da existência das condições da ação e

dos pressupostos processuais como elementos jurídico-ideologizantes extrínsecos e

intrínsecos à relação processual já denota a existência de condicionantes legais ao

enfrentamento do mérito. Isso evidencia a exclusão das partes como legitimados à

construção participada do mérito no momento em que o legislador legitima o julgador

a deixar de enfrentar o mérito em virtude da ausência de tais elementos.

As condições da ação, tais como dispostas na legislação processual civil

vigente, traz no seu bojo questões atinentes à matéria de mérito, uma vez que a sua

análise perpassa necessariamente pela verificação das questões de fato e de direito

que permeiam, direta ou indiretamente, a pretensão deduzida. Nessa seara, não é

possível, sob o ponto de vista crítico, desvincular o estudo do mérito com relação às

condições da ação (legitimidade ad causam, interesse de agir e possibilidade jurídica

do pedido), uma vez que a análise das circunstâncias vinculadas ao cerne da

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pretensão tem relação intrínseca com todas as alegações trazidas pelas partes aos

autos.

Os pressupostos processuais de validade e de existência (competência do

juízo) da relação jurídico-processual são vistos como questões pré-meritórias ou

exteriores ao mérito da pretensão, tendo em vista que não possuem qualquer

relação com os fundamentos daquilo que está sendo debatido pelas partes no

processo.

A extinção do processo sem julgamento do mérito12 por carência da ação

deve ser vista como um meio ilegítimo de exclusão das partes na construção

participada do mérito processual. É a ratificação do entendimento já solidificado de

que a relação processual é um recinto conduzido pessoalmente pela percepção que

o julgador tem do caso concreto. Isso fica muito evidente no estudo do processo

coletivo na atualidade, tendo em vista que o sistema jurídico-processual adotado

hoje pelo Brasil, no que tange à proteção jurídica dos direitos de natureza

metaindividual, é uníssono ao excluir o cidadão individual como autor da ação

coletiva. A falta de legitimação para agir ao indivíduo que busca o exercício da tutela

coletiva o impossibilita de participar discursivamente da construção do mérito

processual, conforme entendimento preconizado por Vicente de Paula Maciel Junior:

No Brasil um caso típico a demonstrar essa tendência é a falta de legitimação para agir ao individuo no exercício da tutela coletiva no Código de Defesa do Consumidor, que poderia gerar uma série demandas individuais com repercussões coletivas contra a Administração Pública quando a mesma presta serviços públicos. E aqui a revelação das tensões nos processos judiciais discursivos se faz mais nítida, transformando em grande problema moderno a questão do acesso à Justiçam, quando na verdade o que ocorre é uma negação da faculdade de agir ao legitimado natural para a ação. Esse modelo de Justiça no qual se nega legitimação para agir ao individuo é um sinal da presença autoritária das forças políticas dos agentes em um Estado. Eles agem retirando a possibilidade de instauração de processos judiciais discursivos que os fiscalizem e limitem suas ações aos termos da lei (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 127).

Inicialmente pretende-se demonstrar que o enfrentamento do tema referente à

construção participada do mérito processual perpassa pela ruptura com a concepção

autocrática do processo visto como instrumento da jurisdição e a jurisdição como um

12 [...] caracteriza-se a sentença terminativa por desfechar o processo na instância sem a apreciação do seu mérito, deixando de ser conhecido e enfrentado o pedido formulado pelo autor na peça inicial, o que se justifica em virtude da existência de um vício formal, que macula a relação jurídica. (MONTENEGRO FILHO, 2006, p. 563)

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poder do juiz de dizer o direito no caso concreto. Além disso, faz-se necessário

teorizar os elementos e os fundamentos jurídicos indispensáveis à construção do

mérito no Direito Processual, especificamente no processo coletivo, para que fique

evidente que o principio participativo é o referencial para assegurar a todos os

interessados difusos e coletivos o direito fundamental de ser inserido no lócus

processual e, assim, exercer a condição de co-autor do provimento jurisdicional de

natureza meritória.

O pressuposto teórico essencial à discussão do tema proposto é o estudo do

processo, no contexto da constitucionalidade democrática, cujos fundamentos

centrais são os princípios da legalidade, do contraditório, da ampla defesa e da

obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais. A construção participada

do mérito perpassa pela conjugação da legitimidade processual assegurada a todos

os interessados no provimento jurisdicional (estatal), incluindo-se aqueles que

sofrerão, direta ou indiretamente, os efeitos jurídicos da decisão judicial. Os direitos

de natureza metaindividual designam uma relação organizada de sujeitos orientados

a um mesmo resultado comum, argumento esse que justifica, preliminarmente, a

legitimidade dos interessados participarem de forma discursiva da construção dos

fundamentos regentes do provimento de mérito

A Constituição brasileira de 198813 passou a ser o lócus e o fundamento

jurídico de estruturação do procedimento voltado à construção participada do

provimento (LEAL, 2002, p. 87). Nessa mesma perspectiva teórica, a legitimidade

democrática na construção participada14 dos provimentos passa a ser o objeto da

13 A visão analítica das relações entre processo e Constituição revela ao estudioso dois sentidos vetoriais em que elas se desenvolvem, a saber: a) no sentido Constituição-processo, tem-se tutela constitucional deste e dos princípios que devem regê-lo, alçados a nível constitucional; b) no sentido do processo-Constituição, a chamada jurisdição constitucional, voltada ao controle da constitucionalidade das leis e atos administrativos e à preservação de garantias oferecidas pela Constituição (“jurisdição constitucional de liberdades”), mais toda a idéia de instrumentalidade processual em si mesma, que apresenta o processo como sistema estabelecido para a realização da ordem jurídica, constitucional inclusive. A tutela constitucional do processo tem o significado e escopo de assegurar a conformação dos institutos do direito processual e o seu funcionamento aos princípios que descendem da própria ordem constitucional (DINAMARCO, 1996. p. 25). 14 Acredito estejamos caminhando para o processo como instrumento político de participação. A democratização do Estado alçou o processo à condição de garantia constitucional; a democratização da sociedade fá-lo-á instrumento de atuação política. Não se cuida de retirar do processo sua feição de garantia constitucional, sim fazê-lo ultrapassar os limites da tutela dos direitos individuais, como hoje conceituados. Cumpre proteger-se o indivíduo e as coletividades não só do agir contra legem do Estado e dos particulares, mas de atribuir a ambos o poder de provocar o agir do Estado e dos particulares no sentido de se efetivarem os objetivos politicamente definidos pela comunidade. Despe-se o processo de sua condição de instrumento de formulação e realização dos direitos. Misto de atividade criadora e aplicadora do direito, ao mesmo tempo (PASSOS, 1988, p. 95).

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Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 117)

e da Teoria Neo-Institucionalista do Processo a partir dos princípios institutivos,

visando-se, assim, compreender o processo como um espaço de discursividade

democrática (LEAL, 2009, p. 86)15.

Há aproximadamente 10 anos o professor e processualista Vicente de Paula

Maciel Junior estuda o processo coletivo e publicou no ano de 2006 obra intitulada

Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, com o propósito de revisitar a

propedêutica do processo coletivo clássico desenvolvido a partir do sujeito. Propõe o

autor o estudo do processo coletivo a partir do objeto, fundamento esse considerado

imprescindível ao entendimento democrático-constitucionalizado do processo

coletivo como recinto da discursividade e da dialogicidade como parâmetros lógicos

à construção participada do mérito processual. É por isso que “quanto maior fosse a

participação na formação do mérito, maior seria a legitimação da decisão do

processo coletivo em relação aos efeitos que produziria em face dos interessados

difusos” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 181)

O principio do contraditório, enquanto pressuposto da dialogicidade passa a

ser o fundamento da regência do modelo constitucional de processo. Adolph Wach,

já no século XIX (especificamente no ano de 1865), ao sistematizar cientificamente o

estudo do Direito Processual, já mencionava a importância do contraditório ao

enaltecer que tal princípio oportunizava às partes (autor e réu) a possibilidade de

dialogo no âmbito processual, podendo o réu rebater legitimamente as alegações

propostas pelo autor (WACH, 1977, p. 23-25).

Sob a ótica constitucionalizada e democrática o contraditório deve ser visto

como um princípio que assegura a todos interessados na construção participada do

provimento o direito de influenciar nas decisões judiciais e não serem surpreendidos

por uma decisão unilateralmente imposta pelo julgador (NUNES, 2008, p. 233-235).

Além disso, tal princípio estabelece o dever do julgador se posicionar e se

pronunciar sobre todas as teses e alegações apresentadas pelas partes, não

15 Infere-se que uma teoria neo-institucionalista do processo só é compreensível por uma teoria constitucional de direito democrático de bases legitimantes na cidadania (soberania popular). Como veremos, a instituição do processo constitucionalizado é referente jurídico-discursivo de estruturação dos procedimentos (judiciais, legiferantes e administrativos) de tal modo que os provimentos (decisões, leis e sentenças decorrentes) resultem de compartilhamento dialógico-processual na Comunidade Jurídica, ao longo da criação, alteração, reconhecimento e aplicação de direitos, e não de estruturas de poderes do autoritarismo sistêmico dos órgãos dirigentes, legiferantes e judicantes de um Estado ou Comunidade. (LEAL, 2009, p. 86).

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podendo se esquivar e deixar de se posicionar sob o pretexto do livre

convencimento ou a intima convicção.

É intrínseca a relação existente entre o princípio do contraditório16 com o

principio da obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais17. Diante disso

sabe-se que o enfrentamento do mérito processual na perspectiva da dialogicidade

proposta pelo contraditório pressupõe a possibilidade das partes participarem e

construírem diretamente o provimento, retirando-se a autonomia exclusiva do

julgador de decidir unilateralmente o caso concreto. É nesse sentido que se

posiciona Ronaldo Bretas de Carvalho Dias, na seara da obra de Dierle José Coelho

Nunes:

Enfim, em concepção científica atualizada, como escreve Dierle José Coelho Nunes, forte nas lições doutrinárias de Comoglio e de Trocker, impõe-se a “leitura do contraditório como garantia de influência no desenvolvimento e resultado do processo”, sendo esta a razão de se elevar o contraditório à destacada condição de “elemento normativo estruturador da comparticipação”, assegurando-se o “policentrismo processual”, segundo o devido processo constitucional. Tais premissas levam referido doutrinador a concluir: “permite-me, assim, a todos os sujeitos potencialmente atingidos pela incidência do julgado (potencialidade ofensiva) a garantia de contribuir de forma critica e construtiva para sua formação”. (DIAS, 2010, p. 52-53).

A pré-compreensão que o legislador do Código de Processo Civil de 1973 tem

sobre o mérito processual decorre da abordagem advinda das proposições

ideológicas das obras de Enrico Tullio Liebman, Francesco Carnelutti e Giuseppe

16 [...] o principio do contraditório é referente lógico-jurídico do processo constitucionalizado, traduzindo, em seus conteúdos, a dialogicidade necessária entre interlocutores (partes) que se postam em defesa ou disputa de direitos alegados, podendo, até mesmo, exercer a liberdade de nada dizerem (silêncio), embora tendo direito-garantia de se manifestarem. Daí, o direito ao contraditório ter seus fundamentos na liberdade jurídica tecnicamente exaurida de contradizer, que, limitada pelo tempo finito (prazo) da lei, converte-se em ônus processual se não exercida. Conclui-se que o processo, ausente o contraditório, perderia sua base democrático-jurídico-principiológica e se tornaria um meio procedimental inquisitório em que o arbítrio do julgador seria a medida colonizadora da liberdade das partes. (LEAL, 2009, p. 97). 17 Liga-se aos princípios da ação, da defesa e do contraditório, e ao método do livre convencimento do juiz, a obrigação de motivação das decisões judiciais, vista, sobretudo, em sua dimensão política. Com efeito, a razão da necessidade de motivar pode ter dois enfoques distintos. A mais antiga atém-se a razões exclusivamente técnicas, endoprocessuais, restritas às partes, às quais se assegura o direito de conhecer as razões da decisão, para, adequadamente, impugna-la; e aos órgãos de segundo grau, para dar-lhes meios de controlar a justiça e legalidade das decisões submetidas a sua revisão. [...] Salienta-se, hoje, a função política da motivação, sendo seus destinatários não apenas as partes e o juiz da impugnação, mas quisquis de populo, com a finalidade de aferir-se, em concreto, a imparcialidade do juiz e a legalidade e justiça de decisão [...] Por isso é que diversas Constituições modernas elevam o principio da motivação à estatura constitucional, e o que não significa apenas conferir-lhes maior estabilidade, mas, sobretudo, atribuir-lhe dimensão de garantia do correto exercício da jurisdição [...] (GRINOVER, 1990, p. 34).

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Chiovenda, ao não esclarecer as distinções teóricas existentes precipuamente entre

o mérito, a matéria de fato e a matéria de direito. A proposta da presente pesquisa é

construir e teorizar o mérito processual a partir das premissas trazidas pelo modelo

constitucional de processo, e, mais especificamente, debater a problemática do

mérito no contexto do processo coletivo, cujo entendimento pressupõe a superação

da matriz autoritária de processo centrado na figura do decididor e a (re) construção

de um modelo de processo coletivo compatível com o Estado Democrático de

Direito, não mais centrado no sujeito, mas sim no objeto.

A legítima construção participada do mérito processual pela amplitude da

defesa se faz nos limites temporais do principio do contraditório, até porque a

amplitude de defesa não pode ser compreendida sob a égide da infinitude da

produção de defesa a qualquer tempo, tendo em vista que a defesa das partes

deverá ser produzida no tempo do processo estabelecido pela lei (LEAL, 2009, p.

98). Ressalta-se que o princípio da legalidade, no contexto da processualidade

democrática, não pode ser visto nem compreendido a partir de percepções retóricas,

ou seja, a partir da conveniência da equidade ou da sabedoria inata do julgador em

permitir, quando entender necessária, a construção participada do mérito

processual. Tal afirmação se justifica no sentido de que a lei que estabelece o limite

temporal de construção do mérito processual a partir dos princípios do contraditório,

da ampla defesa e da obrigatoriedade de fundamentação das decisões pelo julgador

deve ser a lei democrática, produzida no recinto da Devido Processo Legislativo

(LEAL, 2010, p. 131-138).

Assegurar a igualdade jurídica de argumentação das partes (interlocutores)

no âmbito processual é o fundamento para garantir a legitimidade do discurso de

construção do mérito participado. A igualdade jurídica18 materializa-se pela igual

oportunidade que os interlocutores terão de verem apreciados todos os seus

argumentos fático-jurídicos pelo julgador no momento em que se pronunciar sobre o

caso concreto. A partir disso é possível identificar a implementação do principio da

fundamentação das decisões judiciais na construção participada do mérito

18 A isomenia, em minha teoria neo-institucionalista, que é instituto operacional do principio da legalidade, define-se pela oportunidade de colocar todos os destinatários normativos (intérpretes) em simétrica posição ante idêntico referente lógico-jurídico construtivo, aplicativo, modificativo ou extintivo do sistema jurídico (LEIS). É o devido processo, no sentido da teoria neo-institucionalista, que é o referente lógico-jurídico (interpretante) a balizar os limites hermenêuticos de um sistema jurídico de “Estado Democrático de Direito” em concepções de uma sociedade aberta [...]. (LEAL, 2010, p. 271.

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processual, até porque, o julgador tem o dever (não mera faculdade) de enfrentar

todas as teses jurídicas e alegações fáticas apresentadas pelas partes interessadas

quando for proferir sua decisão.

Nesse primeiro momento pretendeu-se demonstrar a necessidade de

revisitação do entendimento adotado pelo legislador do Código de Processo Civil de

1973 e pela maioria dos estudiosos no que tange ao mérito processual, para, assim,

esclarecer inicialmente a relevância de debater o tema proposto sob a ótica do

modelo de processo adotado pela Constituição brasileira de 1988.

Na seqüência será desenvolvido um estudo da gênese do mérito, partindo-se

do Direito Romano e passando pelos principais estudiosos do tema, tais como

Bulow, Carnelutti, Chiovenda e Liebman, visando entender mais especificamente os

estudos desenvolvidos por esses autores e demonstrar os fundamentos por eles

utilizados no que tange ao estudo do mérito. Posteriormente desenvolver-se-á um

estudo específico no campo do processo coletivo, com o propósito de identificar os

reflexos das proposições teóricas dos autores consultados no entendimento do

mérito participado no modelo de processo coletivo proposto pelo Estado

Democrático de Direito, averiguando-se, assim, as especificidades jurídicas a serem

observadas na sua construção e levando-se em consideração a complexidade das

relações jurídicas decorrentes da sociedade contemporânea e plural.

2.1 A compreensão jurídica do Direito Processual e do Mérito no Direito

Romano

O desenvolvimento do estudo do direito processual romano na presente

pesquisa justifica-se pela necessidade de esclarecimento da gênese do mérito

processual como reflexo de todas as questões fáticas e jurídicas consideradas

relevantes pelo magistrado. Ou seja, é de suma importância demonstrar que a noção

inicial que se tem de mérito processual relaciona-se com as matérias ou as questões

consideradas relevantes pelo magistrado (não pelas partes interessadas = autor e

réu), como fundamento regente da decisão judicial a ser proferida pelo juiz. Isso

evidencia a gênese essencialmente privada do conceito de mérito, que se encontra

adstrito à noção da matéria (fática e jurídica) proposta pelas partes ao magistrados,

o que torna impossível, até pelo contexto histórico, compreender o mérito de forma

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dissonante ou mais ampla que as próprias questões trazidas pelas partes (autor e

réu) ao processo.

A compreensão do Direito enquanto instrumento regulador da vida em

sociedade decorre da clássica e da estreita relação existente entre o Direito e a

Justiça preconizada pelo Direito Romano-Germânico. Nesse contexto pode-se

afirmar que o Direito é o elemento garantidor da adaptação social decorrente da

necessidade que o homem tem de ordem, de justiça e de segurança (FIUZA, 2004,

p.1). O direito brasileiro encontra seus fundamentos no sistema romano-germânico e

traz no seu âmago a ideologia de que a justiça decorre da aplicabilidade e do

exercício de direitos assegurados aos homens. A justiça, ao longo dos séculos,

decorria não do direito, mas sim da força, considerada o instrumento utilizado na

resolução dos conflitos de interesses.

A gênese do Direito de Ação, tal como se estuda hoje, encontra sua base no

Direito Romano, cuja definição no sentido mais amplo é: “Todo recurso à autoridade

judicial para consagrar um direito desconhecido, ou, simplesmente, a perseguição de

um direito na justiça” (PETIT, 2003, p.813). Pelo exposto verifica-se que a ação deve

ser vista como um procedimento a ser utilizado para garantir a consagração de um

direito violado. A organização do procedimento no Direito Romano variou conforme

as épocas e os três sistemas19 que estiveram sucessivamente em vigor: as ações da

lei (período das legis actiones, que compreende o século VIII ao século V a.c), o

procedimento formulário ou ordinário (o período que se iniciou a partir do século V

a.C até o século II a.C é denominado de período formular do direito romano arcaico)

e o período que se iniciou a partir do século II a.C até o século III d.C denominado

de procedimento extraordinário (período da cognitio extra ordinem – direito romano

clássico que corresponde os anos de 284 a 565 d.C) (PETIT, 2003, p. 813; LEAL,

2009, p. 24-26).

19 Nos treze séculos da historia romana, do século VIII aC ao século VI d.C, assistimos, naturalmente, a uma mudança contínua no caráter do direito, de acordo com a evolução da civilização romana, com as alterações políticas, econômicas e sociais, que a caracterizaram. [...] Tal divisão pode basear-se nas mudanças da organização política do Estado Romano, distinguindo-se, então, a época régia (fundação de Roma no século VIII a C até a expulsão dos reis em 510 a C), a época republicana (até 27 a C), o principado até Diocleciano (que in iciou seu reinado em 284 d C.) e a monarquia absoluta, por este último iniciada e que vai até Justiniano (falecido em 565 d C). Outra divisão, talvez preferível didaticamente, distingue no estudo do direito romano, tendo em conta sua evolução interna: o período arcaico (da fundação de Roma no século VIII a. C. até o século II a C), o período clássico (até o século III d.C) e o período pós-clássico (até o século VI d C) (MARKY, 1995, p. 5-6).

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Durante os dois primeiros sistemas verifica-se a divisão das funções judiciais,

ou seja, a primeira fase era realizada diante do magistrado e a segunda perante o

juiz20. O magistrado era quem regulava a marcha procedimental e delimitava o

objeto do debate, enquanto o juiz era quem analisava as peculiaridades do caso

concreto e proferia a sentença (PETIT, 2003, p. 814). Verifica-se, portanto, que a

magistratura, por meio dos reis, dos cônsules e posteriormente dos pretores, era

quem detinha a legitimidade para a administração da justiça, cabendo aos juizes

proferirem as decisões a partir das predeterminações advindas da magistratura. Ou

seja, eram os magistrados que estabeleciam a viabilidade jurídica de discussão da

pretensão, o que demonstra que a ação não era um direito do cidadão, visto que seu

exercício era condicionado aos entendimentos dos magistrados.

Os magistrados tinham legitimidade de propor uma regra de direito, aplicar

uma regra de direito preexistente e publicar editos, que eram normas com conteúdo

aplicável a todos os cidadãos (PETIT, 2003, p. 816). Como se observa, as funções

dos magistrados equiparam ao que temos hoje como função legislativa, visto que os

magistrados eram revestidos da legitimidade de criar e de determinar a aplicação do

direito mais adequado ao caso concreto, cabendo-se aos juízes a ratificação desse

entendimento. Eram os magistrados que determinavam os direitos que podiam ser

reivindicados pelos homens, até porque o direito de ação somente existia se a

magistratura assim autorizasse.

Nesse contexto pode-se verificar a gênese do mérito processual, visto que a

delimitação das questões fáticas (objeto) e do direito a ser aplicado ao caso concreto

(questão de direito) era uma prerrogativa exclusiva do magistrado (pretor, reis ou

cônsules), que excluía qualquer tentativa das partes de participar da construção do

objeto da demanda. Trata-se de um direito processual de caráter autoritário no

20 A este respecto hay que distinguir em el procedimiento clasico dos fases distintas; uma primera ante el magistrado (in iure) durante la cual los litigantes formulan las reclamaciones y argumentos jurídicos, y uma segunda ente el juez privado (apud iudicem) en la que se rinden las pruebas y se pronuncia el iudicatum fundamentado en una opinión (sententia) del juez. El magistrado pues, se inhibe de juzgar, y sus facultades (iurisdictio) se limitan a determinar el contenido del litigio y garantizar el cumplimiento de la posterior sentencia; el iudex en cambio, ejerce la iudicatio, que consiste en resolver la contienda al tenor de las pruebas. Que la acción es concreta o típica significa que a cada litigio corresponde una acción: la jurisprudencia o el Edicto ofrecen modelos de reclamaciones, pero éstos son adaptados durante la fase in iure, para que reflejen de la manera más exacta el contenido actual de la controversia. Precisamente, las actuaciones ante el magistrado tienen como finalidad principal el determinar cuál es el contexto exacto de la acción; el documento que recoge estos términos, llamado formula, constituye el único principio vinculante para el juez privado, quien deberá atenerse a las instrucciones en él contenidas si pretende que el iudicatum pueda tener eficacia ejecutiva (SAMPER, 1993, p. 48).

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sentido de exclusão de qualquer participação das partes como co-autores do

provimento, visto que as primeiras proposições teóricas acerca da gênese do mérito

encontram-se intrinsicamente atreladas à noção e ao entendimento preconizado

quando da discussão referente à matéria de fato e a matéria de direito.

O imperium merum (poder para infligir castigos corporais), o imperium mixtum

(poder de utilizar-se da coação), a jurisdictio (poder de criar e de aplicar o direito) e o

senatus consultum (poder de nomear tutores e autorizar a venda de imóvel rústico

pertencente a um menor) eram as prerrogativas inerentes ao exercício da

magistratura (PETIT, 2003, p. 815-817). A autoridade judicial pertenceu inicialmente

aos reis, depois aos cônsules e no ano 387 foi confiada ao pretor, com autoridade

para a criação dos editos.

Durante os dois primeiros sistemas de procedimento os juízes eram pessoas

designadas pelos magistrados para analisar e julgar os casos concretos. Havia os

juizes designados para cada assunto, dentre os quais ressalta-se o judex (eram

juizes ou árbitros escolhidos pelo pretor, com idade mínima de 20 anos e com a

incumbência de decidir) e os recuperadores (juízes incumbidos de julgarem os

processos envolvendo interesses de cidadãos e peregrinos), bem como dos juízes

permanentes (são os juízes que compunham os tribunais permanentes) (PETIT,

2003, p. 818-820).

O período das legis actiones (ações da lei) consistia em “certos

procedimentos compostos por palavras e por feitos rigorosamente determinados que

deveriam ser realizados diante do magistrado, fosse para chegar à solução de um

processo, fosse como vias de execução” (PETIT, 2003, p. 821). A oralidade, a

solenidade e o formalismo são características típicas do procedimento a ser

utilizado, visto que as partes, diante do magistrado, pronunciavam palavras que

eram analisadas rigorosamente e com a precisão dos termos legais, sabendo-se que

o menor erro que viesse a ser cometido poderia acarretar-lhe a perda do processo. A

ignorância do procedimento muitas vezes acarretava aos plebeus a perda do

exercício de direitos perante os patrícios. Nesse sentido temos

Do século VIII ao século V a C., tem-se noticia, no Direito Romano, de um sistema chamado de legis actiones, que apresentava três características: judicial, legal e formalista. A judicial, porque se iniciava perante o magistrado (in jure), e em seguida, perante o árbitro particular (apud judicem); legal, porque previsto em regras do magistrado, e formalista por se vincular a formas e palavras sacramentais (verba certa) (LEAL, 2009, p. 24)

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No sistema das ações (legis actiones) os litigantes não podiam exteriorizar as

pretensões mediante a utilização de palavras próprias, visto que deveriam externar e

pronunciar oralmente os termos empregados e previamente definidos na lei (verba

certa). As ações eram caracterizadas pela tipicidade e os litigantes deveriam

reproduzir com rigor formal todo conteúdo previsto exatamente como se encontra

descrito na literalidade lei. Nesse mesmo sentido Antonio Filardi Luiz ressalta-se as

características ínsitas das ações da lei

É um processo legal porque decorrente da lei, ao contrario do que ocorria anteriormente, em que o processo era consuetudinário, baseado, pois, nos costumes. É também formalista, além de solene e imutável, porque processo implica palavras certas e determinadas, alicerçado no principio da verba certa a exigir gestos e atitudes definidos. A mínima infração quanto a tais preceitos leva à perda do processo, relatando Gaio, citado por Cretella Junior, o caso em que um dos litigantes perdeu a causa porque citou a palavra vites, videiras, em lugar de arbores, como determinado em lei, embora a questão se relacionasse com videiras. Finalmente, as legis actiones obedecem a uma ordem judiciária especifica, a ordo judiciorum privatorum. O processo inicia-se apenas perante o magistrado, fase designada in jure, e termina com a decisão do judex, na instância apud judicem, cidadão comum escolhido pelas partes. É o juízo arbitral, privado, em contraposição ao juízo estatal moderno. (LUIZ, 1999, p. 89). (grifo nosso).

No período das legis actiones a legitimidade processual ordinária era

considerada a regra geral, ou seja, “sob as ações da lei, ninguém pode figurar por

outro em assuntos de justiça” (PETIT, 2003, p. 822). Tal regra é excepcionada nos

casos pro libertate (quando uma pessoa livre reclama a liberdade de um escravo,

pelo fato do mesmo não poder sustentar uma ação na justiça), pro populo ((quando

se faz necessário defender os interesses do povo), pro tutela (quando o tutor

sustenta na justiça os direitos do pupilo) ou crimen suspecti tutoris (quando um

cidadão cativo ou ausente no interesse do Estado foi vitima de roubo, a lei autoriza

um terceiro exercitar em seu nome a ação furti) (PETIT, 2003, p. 822-823).

No sistema das legis actiones a ação era um direito que se subdividia em

duas fases, quais sejam, a fase de conhecimento ou de cognição, em que o autor

deverá provar a existência ou não do direito pretendido (actio per sacramentam,

actio per judicis arbitrive postulationem e a actio per conditionem) e a fase de

execução, através da qual o autor poderá exigir o cumprimento do direito

reconhecido em caso de inércia do réu (actio per manus injectionem e a actio per

pignoris capionem) (LUIZ, 1999, p. 88-89).

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O excesso de formalismo, como peculiaridade do sistema das legis actiones,

permite afirmar que a concepção de mérito processual vigente à época consistia na

adequação dos fatos alegados à literalidade da interpretação dada pelo magistrado

ao caso concreto, ou seja, a solenidade do procedimento exigia que a parte

ratificasse o entendimento do magistrado para obter êxito no processo quando do

julgamento do caso concreto perante o juiz. Verifica-se, portanto, a absoluta

exclusão da parte enquanto sujeito legitimado à construção do mérito processual.

O processo no sistema das Legis Actiones inicia-se pela manifestação oral do

demandante, perante o magistrado, de exigir o comparecimento do seu adversário

em dia fixado. Uma vez presentes as partes perante o magistrado o assunto é

exposto e inicia-se o rito da ação da lei que se aplica ao processo. Todo

procedimento instaurava-se oralmente perante o magistrado e para garantir e

comprovar o seu cumprimento as partes tomavam o testemunho das pessoas

presentes com a finalidade de fornecer diante do juiz, caso necessário fosse, o

testemunho do que havia ocorrido perante o magistrado. Essa escolha das

testemunhas denominava-se Litis Contestatio21.(NEVES, 1971, p. 39-40; PETIT,

2003, p. 824-825).

José Carlos Moreira Alves critica a rigidez formal do Sistema das Legis Actiones

[...] no processo formulário não se encontra o formalismo rígido do sistema das ações da lei. Não se pronunciam palavras imutáveis; não se fazem gestos rituais – em conseqüência, não mais se perdem causas por desvios mínimos de formalidades. Por outro lado, não há mais que atender, para a designação de Juiz popular, ao prazo de trinta dias da Lei Pinária, o que tornou esse processo, sem dúvida, mais rápido que o das ações da lei” (ALVES, 1971, 232)

Denomina-se formular ou ordinário o procedimento no qual o magistrado

redige e entrega às partes uma espécie de fórmula ou instrução escrita que indica

ao juiz a questão a ser resolvida e lhe confere o poder de julgar, ou seja, trata-se de

um período do Direito Romano em que a produção do direito encontra-se nas mãos

dos pretores e dos jurisconsultos (PETIT, 2003, p. 833). Assim, “os processos, pois,

são julgados secundum ordinem judiciorum, e, quando, por exceção, o próprio

21 Embora uma corrente de romanistas admita a existência da litis contestatio no período das legis actiones (Pugliese, Il processo civile romano,1º v., p. 390), a função por ela desempenhada aparece mais compreensível no momento da introdução do processo formulário, com a bipartição da relação processual entre procedimento in jure e apud judicium, quando a litis contestario passa a corresponder ao ato de encerramento da primeira fase do processo, desenvolvida perante o pretor. (SILVA, 1996, p. 72)

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magistrado decide a diferença, diz-se que estabelece extra ordinem” (PETIT, 2003,

p. 833).

O advento da Lei Aebutia (século II a C.) instituiu o processo formular e

substituiu o sistema das legis actiones, mantendo o procedimento em duas fases (in

jure, ou seja, perante o magistrado e o procedimento in judicio (segunda fase do

procedimento realizada perante o juiz) (LUIZ, 1999, p. 84-94)22.

O procedimento in jure desenvolvia-se perante o magistrado e se desenvolvia

em três fases: comparecimento das partes, debates in jure e entrega da fórmula. A

magistratura, no período per formula, é exercida pelo pretor romano. As partes

compareciam pessoalmente ou por intermédio de seu mandatário perante o

magistrado (as partes não eram mais obrigadas a comparecerem pessoalmente, tal

como ocorria no sistema das ações da lei). A intentio continha a pretensão do

demandante e constitui o objeto do processo. Ao longo do procedimento in jure o

magistrado (pretor romano) buscava redigir a fórmula que seria aplicada ao caso

concreto. No período per formula a litis contestatio coincide com o decreto do pretor

romano ao emitir a fórmula23. Nesse sentido temos

Quando os debates sobre a composição da fórmula tinham fim, o pretor redige-a, entregando-a ao demandante. Este, na presença do magistrado, comunica-a ao demandado, que deve aceita-la. Se recusa-la, impedindo, dessa maneira, que o processo siga seu curso, expõe-se às rigorosas medidas ordenadas contra o indefensus. Se aceita-la, o acordo das partes para que o litígio seja examinado por um juiz Poe fim ao procedimento in jure. Esse é o momento que é chamado de litis contestatio. Embora a fórmula escrita dispensasse a tomada de testemunhos, como ocorria na prática com as ações da lei, a palavra litis contestatio permaneceu para designar o ultimo ato do procedimento formulário diante do magistrado. Dessa maneira é que o processo está completamente concluído, acarretando importantes conseqüências (PETIT, 2003, p. 47-48).

22 A partir do século V a C., com a expulsão dos reis e o advento da república romana, aboliu-se o sistema rígido das legis actiones e a função de árbitro (judex) foi exercida pelos peritos que se notabilizaram como juristas, surgindo a figura dos jurisconsultos (convocadores do povo para deliberar sobre projetos de lei) e do pretor, nomeado pelo governo (magistrado), que, por via dos éditos (um programa publico de critérios de aplicar o direito vigente), exercia funções jurisdicionais de fornecer a fórmula ao árbitro (instrumento redigido pelo próprio Pretor ) que continha o resumo, limites e o objeto da demanda (litiscontestatio), o nome do árbitro livremente escolhido pelos demandantes e o compromisso a ser assinado pelo árbitro e pelos litigantes de seguirem os termos da fórmula e de os litigantes obedecerem a decisão (sentença) a ser proferida pelo árbitro . (LEAL, 2009, p. 25) (grifo nosso) 23 Em el perído formulário, la litis contestatio coincide com el momento em que, mediante el decreto del pretor que emite la fórmula y la aceptación de ésta por parte de los litigantes, se establecen precisamente los términos fundamentales en que habrá de desarrolharse el judicio; lo cual se realizaba, en el procedimiento de la legis actiones, mediante la solemne invocación de los testigos. Con la diferencia, naturalmente, de que en la litis contestatio del procedimiento formulario no hay ya foirmas solemnes ni la solemne invocación de los testigos. (SCIALOJA, 1954, p. 87-88)

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No Sistema Per Formula a segunda fase, qual seja, o procedimento in judicio,

desenvolve-se perante o juiz e “sua missão consiste em examinar o assunto posto

na fórmula24, em comprovar os fatos que se relacionam e em fazer a aplicação dos

princípios de direito postos em jogo” (PETIT, 2003, p. 49). Nesse período do Direito

Romano sabe-se que a efetiva construção do mérito ocorria perante a autoridade do

juiz, que era quem detinha a legitimidade na análise das questões de fato e das

questões de direito, cabendo ao magistrado identificar a pretensão das partes para,

assim, analisar a viabilidade jurídica do objeto da demanda e, por conseguinte,

elaborar a fórmula que direcionará (não vinculará) o julgamento a ser proferido pelo

juiz.

No que tange à construção do mérito o juiz poderia se posicionar em três

sentidos: a) se o objeto da demanda não lhe parece claro o juiz não tinha o dever

legal de se pronunciar, ou seja, facultava-se ao juiz a possibilidade de não adentrar

diretamente à análise do mérito da pretensão em decorrência da ausência de

clareza e de objetividade no que tange ao objeto da demanda. Pode-se afirmar, no

respectivo caso, que a construção do mérito não ocorria em virtude da ausência de

clareza e de objetividade das partes no que tange à apresentação da pretensão

deduzida. b) a absolvição do demandado ocorria sempre que o demandante não

podia justificar sua pretensão ou quando o próprio demandado apresentava uma

prova que paralisava o processo. Imperava, nesse contexto, a legitimidade do juiz,

quando do enfrentamento e da análise da pretensão deduzida, de não reconhecer o

pedido do demandante quando perdurasse a existência de eventual dúvida quanto

às alegações inicialmente apresentadas pelo autor da ação. c) a procedência do

pedido com a conseqüente condenação do demandado decorria da comprovação do

alegado pelo demandante.

Da análise do procedimento in jure e do procedimento in judicio no período

formular do Direito Romano verifica-se claramente que a construção do mérito

processual decorria da atuação unilateral e solitária do juiz, que buscava

fundamentar suas decisões a partir da fórmula pretoriana, bem como a partir de um 24 A fórmula foi uma criação espetacular. Era uma espécie de decreto pretoriano, em forma de carta dirigida ao juiz, resumindo a causa, estabelecendo os limites subjetivos e objetivos da lide processual, indicando as provas a serem produzidas. Ao gerar uma decisão revestida da coisa julgada material, sem decisão de mérito, funcionava como um relatório definitivo. Quem julgava a causa era o juiz ou o árbitro, resolvendo-se a fórmula. Com o processo formular o pretor passa a se impor para resolver com eqüidade os casos concretos, antes submetidos ao rigorismo das formalidades. É um processo mais rápido, menos formalista e escrito. (MACIEL. Disponível: http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=156. Acesso: 12 abr. 2011)

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juízo de certeza (não de mera probabilidade) acerca das alegações perpetradas pelo

demandante.

Ao assumir o cargo de imperador romano no século III Diocleciano ordenou

que os magistrados fossem responsáveis não apenas pela administração judicial,

como também pelas decisões de todos os assuntos que lhes fossem submetidos,

estabelecendo-se, assim, uma nova divisão do Império, posteriormente ratificada por

Constantino (306-337 d.C). Encerra-se, portanto, a dupla instância típica do sistema

das Legis Actiones e do Período Formular, em que havia a distribuição das

atividades processuais entre o magistrado e o juiz. Ressalta-se, ainda, que no

sistema da Cognitio Extra Ordinem25 a justiça é exercida diretamente pelo Estado,

encerrando-se, portanto, o período da ordo judiciorum privatorum26. Nesse sentido é

relevante ressaltar o entendimento de Antônio Filardi Luiz

Portanto, paulatinamente, vão desaparecendo as duas fases da instância (in jure e apud judicem), acabando o processo por se concentrar no magistrado que, ao mesmo tempo, conhece e decide o litígio, sem necessidade de envia-lo para um árbitro. Essa a grande e fundamental característica do sistema extra ordinem, visto que a ação começa e termina perante o juiz, cedendo a ordo judiciorum privatorum, a justiça de caráter privado, lugar à organização estatal na solução das demandas. A justiça, por conseguinte, passa a ser de responsabilidade total do Estado em sua distribuição, não mais entregues os casos aos árbitros leigos e sem qualquer conhecimento de Direito. ao contrário, os juizes, agora, são elementos pertencentes ao Estado, especializados, e com a função precípua de conhecer e julgar as ações. (LUIZ, 1999, p. 101). (grifo nosso).

Por volta do final do século III d C, ou seja, na Constituição do ano de 294, o

Imperador Diocleciano suprime do processo romano as últimas aplicações do

procedimento formular, ordenando aos presidentes das províncias do Império

Romano a legitimidade para conhecer pessoalmente todas as causas,

independentemente de serem obrigados a enviá-las perante um juiz. Mesmo assim,

a respectiva Constituição facultava aos presidentes das províncias encaminhar as

25 Logo em 17 a . C., Augusto reorganiza o sistema processual do ordo iudiciorum privatorum, então em vigor, ao promulgar a lex Julia privatorum. O detido exame das fontes referentes a essa lei, que, como se sabe, introduziu em definitivo o processo per fomulas, em substituição àquele das legis actiones, levou Palazzolo a convencer-se de que a finalidade última de tal reforma foi tão-só a de racionalizar o regramento processual vigente, mas certamente o desejo de tolher do arbítrio do pretor o maior número possível de controvérsias, incluídas, de modo especial, aquelas que se fundavam nas normas do ius honorarium (TUCCI, 1987, p. 27). 26 [...] É o período da ordo judiciorum privatorum, ou ordem dos processos privado, posto que tudo se passa entre os particulares sem a presença efetiva do Estado, verdadeira justiça privada. (LUIZ, 1999, p. 84) (grifo nosso).

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pretensões para um juiz, caso as ocupações administrativas e a multiplicidade dos

assuntos atinentes às pretensões viesse a impossibilitar o magistrado (presidente da

província) de decidir o caso concreto.

Do estudo analítico do processo romano sob a ótica do mérito processual

pode-se chegar inicialmente às seguintes conclusões:

a) a primeira noção de mérito processual que podemos vislumbrar no Direito

Processual Romano é aquela obtida a partir do entendimento da matéria de

fato e da matéria de direito que permeavam o objeto da demanda. Não

existe uma definição clara o suficiente para explicar com exatidão o mérito

processual nos períodos das Legis Actiones, Per Formula e Cognitio Extra

Ordinem. Tal afirmação se justifica no sentido de que o mérito processual

decorria da noção de objeto, de demanda, ou seja, o enfrentamento do

mérito consistia na análise das questões fáticas levadas ao magistrado e

ao juiz e na identificação do direito mais adequado a ser aplicado ao caso

concreto. É por isso que é possível afirmar que no Direito Processual

Romano o entendimento do mérito processual encontra-se diretamente

vinculado à matéria de fato e à matéria de direito que tangenciam e

constituem o objeto da demanda.

b) O Direito Processual Romano estrutura-se e se desenvolve a partir da

autoridade do magistrado (rei, cônsule, pretor ou presidente da província) e

do juiz, ou seja, nos dois primeiros períodos do Direito Romano (Legis

Actiones e Per Formula) o enfrentamento do mérito processual era uma

prerrogativa inerente ao exercício das atividades do juiz, tendo em vista

que ao magistrado cabia apenas delimitar o objeto da demanda, cujo

julgamento ocorria perante a autoridade do juiz. Já no período da Cognitio

Extra Ordinem o magistrado passa a ser legitimado para a delimitação do

objeto da demanda e também para o enfrentamento do mérito processual,

uma vez que com o advento da Constituição do ano de 294 o Imperador

Diocleciano conferiu aos presidentes das províncias do Império Romano a

legitimidade de não apenas delimitar os objetos das demandas, mas

também decidir e aplicar o direito ao caso concreto, coincidindo-se, assim,

com o enfrentamento do mérito processual não mais apenas pelo juiz, mas

também pelo magistrado e pelos presidentes das províncias.

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c) Durante o período do Império Romano o Direito vigente visava, acima de

tudo, resolver conflitos de interesses envolvendo romanos e peregrinos, ou

seja, conflitos de interesses de natureza essencialmente individual. Por

isso, a concepção que se tinha de objeto da demanda relacionava-se com

questões de cunho essencialmente individual. Dessa forma, sabe-se que a

noção de mérito processual passível de identificação no contexto do Direito

Romano não engloba o processo coletivo, tendo em vista que o processo

nesse período da história da humanidade destinava-se a resolver

precipuamente conflitos de interesses individuais, o que nos leva a afirmar

que a noção de mérito processual passível de compreensão decorre

também da acepção individualista do Direito vigente à época.

2.2 As proposições teóricas de Oskar vön Bülow no e studo do mérito –

Teoria das Exceções e dos Pressupostos Processuais

A contextualização do estudo da obra de Bülow com o objeto da presente

pesquisa resta evidenciada na demonstração de que o autor em questão não

desenvolveu especificamente, em sua obra, um estudo específico sobre o mérito

processual, embora seja possível visualizar, pela própria análise sistemática de sua

produção, que a noção de mérito processual ainda encontra-se adstrita à matéria

fática e jurídica trazida pelas partes (autor e réu) ao processo e utilizada pelo

julgador como referencial e parâmetro para sua decisão. Isso demonstra que o autor

não se desvinculou da noção individualista de mérito já preconizada no direito

romano, considerada pelo juiz como todas as questões relevantes no julgamento da

demanda. Julgar o mérito consiste no enfrentamento e na análise de todas as

questões de fato e de direito trazidas pelas partes no processo. O que se busca com

a presente pesquisa é demonstrar, ao longo de toda a discussão cientifica, que o

conceito de mérito processual não pode ficar adstrito às matérias e às questões

discutidas pelas partes no processo, haja vista que o mérito deve ser visto como um

procedimento que oportuniza democraticamente a todos os interessados o direito de

poder definir e discutir a matéria ou as questões de mérito vinculadas à pretensão

inicialmente deduzida em juízo.

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Oskar vön Bülow, ao publicar em 1868 sua obra intitulada “Teoria das

Exceções e dos Pressupostos Processuais”, propõe a teorização do processo como

relação jurídica a partir da revisitação crítica da concepção romana do Direito

Processual, que se desenvolveu essencialmente a partir do Direito Privado. A

sistematização científica da teoria desenvolvida por Bulow27 decorre inicialmente da

proposição do jurista italiano do século XII, Búlgaro (BÜLOW, 1964, p. 1 e 3), que

afirmava que o processo é um ato de três pessoas, quais sejam, juiz, autor e réu

(judicium est actum trium personarum: judicis, actoris et rei) (LEAL, 2009, p. 78).

A autonomia científica do Direito Processual frente ao Direito Material e o

advento da concepção publicista do processo enquanto relação jurídica constituída

entre juiz, autor e ré é considerada o fundamento central para a contextualização

histórica da teoria de Bulow, que decorreu da polêmica da actio, quando, em 1856,

Windscheid e Muther problematizaram a discussão sobre o direito de ação a partir

de uma análise critica das considerações de Savigny acerca do estudo sobre o

direito de ação desenvolvido a partir da Teoria Imanestista.

Napoleão separou a legislação processual civil da legislação processual penal,

assim como estas da legislação civil e penal (direito material); sua iniciativa exerceu

grande influência sobre os ordenamentos processuais de toda a Europa continental

(LIEBMAN, 2003, p. 51-53). O advento do processualismo científico decorre da visão

do processo desvinculada do direito material, que ocorreu com a polêmica sobre o

direito de ação de Windcheid (a ação é um poder de agir do autor em face do réu) e

Muther (a ação é um direito que o autor exerce frente ao Estado, ou seja, trata-se do

direito a uma prestação jurisdicional).

Dessa forma pode-se afirmar que a obra de Bülow28 não foi a primeira a intuir a

existência de uma relação jurídico- processual de cunho publicístico29, cabendo-lhe

27 Segundo José Eduardo Carreira Alvim “[...] o jurista alemão não criou o conceito de relação jurídica processual, vez que a intuição da relação jurídica processual, de resto, já se encontra em textos de Búlgaro (iudicium est actum trium personarum: iudicis, actoris et rei). O mérito de Bulow foi o de ter sistematizado a relação processual (2005, p. 164). Veja-se, no entanto, que a relação processual de que Búlgaro aproxima-se mais da relação privada, porque, na tradução que o próprio Carreira Alvim oferece para a célebre afirmativa de Búlgaro, “Juízo (processo) é ato de três pessoas: juiz, autor e réu” (2004, p 164), fica clara a alusão a um “ato” (e nenhuma referencia à relação jurídica propriamente dita) – o que implica que o processo teria uma origem contratual, em posição oposta à defendida por Bulow. (LEAL, 2008, p. 38-39) 28 Embora Bülow deixe claro em sua obra (ainda que em breves notas de rodapé) que buscou inspiração na máxima de Búlgaro (jurista italiano do século XII): “judicium est actum trium personarum: judicis, actoris e rei” (o processo é ato de três personagens: do juiz, do autor e do réu)), é na obra de Bethamann-Hollweg (Der Civilprozess Rechets in geschichtlicher Entwicklung, 1864-1874) – “O processo civil do direito comum em seu desenvolvimento histórico”), não resta dúvida de

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a sistematização da teoria da relação processual e a diferenciação existente entre o

direito material e o processual, distinção essa concretizada após a ocorrência da

polêmica da actio, conforme explica Dinamarco:

Von Bülow não foi, na realidade, o primeiro a intuir a existência dessa relação jurídica processual. Antes dele, já tinha sido feita uma referencia a esta na obra de Benthmann-Hollweg, que ele próprio cita. Seu mérito indiscutível foi o de apresentar sistematicamente a teoria da relação processual, que antes fora objeto de um simples aceno [...] Essa despertou a doutrina para a existência de dois planos a observar, o substancial e o processual, distinção esta que veio exposta sistematicamente na obra de Bülow, onze anos após encerrada a polêmica (DINAMARCO, 2002, p. 41-42)

No desenvolvimento de sua teoria Bülow inicialmente retorna ao Direito

Romano com a finalidade de criticar a acepção dada a exceptio, vista como um

instituto processual utilizado para delimitar os fundamentos de argumentação jurídica

do réu na etapa in iure perante o magistrado30. A exceptio romana, em sentido geral,

pode ser vista como um modo de defesa que não contradiz diretamente a pretensão

do demandante e que pode ser utilizado pelo mesmo no curso do processo. A sua

gênese não se encontra no período das Legis Actiones (sistema das ações da lei),

tendo em vista que o advento das exceções no Direito Romano decorre do

procedimento formulário e subsiste durante todo o período da Cognitio Extra

Ordinem. Os efeitos mais comuns das exceções caracterizavam-se tanto pela

absolvição do demandado como uma simples diminuição em sua condenação

(PETIT, 2003, p. 906-907).

Em suas proposições teóricas Bülow critica a exceptio romana enquanto

instituto que limitava o direito de defesa do demandado. O procedimento formular

que foi também fortemente influenciado pelas teses de Bernhard Windcheid, que em sua obra publicada em 1856 – Die Actio des ro:mischen Zivilrechts von Standpunkte des heutigen Rechts (“A ação do Direito Romano do ponto de vista do direito civil), possibilitou a conciliação de uma determinada noção de direito subjetivo (prerrogativa sobre a conduta alheia) com a de processo, restando, portanto, a Bulow apenas a estruturação da teoria da relação processual. (AGUIAR; COSTA; SOUZA; TEIXEIRA, 2005, p. 23-24) 29 [...] desde que los derechos y las obligaciones procesales se dan entre los funcionários del Estado y los ciudadanos, desde que se trat en el proceso de la función de los oficiales públicos y desde que, también, a las partes se las torna em cuenta unicamente em el aspecto de su vinculación com la actividad judicial, esa relacións pertence, con toda evidencia ao derecho publico y el proceso resulta, por tanto, una relacións juridica publica. (BULOW, 1964, p. 2) 30 Segundo Bülow, a exceção teve origem na exceptio dos romanos. Em Roma, no entanto, a exceptio referia-se aos limites da argumentação de defesa do réu ou, dito de outra forma, dizia respeito à articulação fático-jurídica de que o réu poderia se utilizar para evitar que o autor fosse vitorioso no conflito concernente à relação jurídica privada encaminhado ao magistrado para resolução. (LEAL, 2008, p. 40)

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iniciava-se com o comparecimento do demandante perante o magistrado, momento

em que apresentava sua pretensão (intentio) e caso a defesa do demandado fosse

limitada à intentio o debate transcorreria livremente, sem que houvesse necessidade

de agregar algo à fórmula. O demandado também podia sustentar em sua defesa,

perante o magistrado, tese ou alegação estranha à intentio, sabendo-se que para o

juiz apreciar esse modo de defesa do demandado era necessário que a fórmula

estabelecida pelo magistrado o autorizasse a isso. A exceptio romana consiste na

possibilidade do demandado, em sua defesa, alegar questão (ponto controvertido)

estranha à intentio, sabendo-se que a admissibilidade de sua alegação se

condicionava à anuência do magistrado e a inclusão das questões alegadas na

fórmula do pretor que será utilizada pelo juiz como parâmetro ao julgamento da

demanda (PETIT, 2003, p. 844-847).

A partir dessas considerações iniciais Bülow diferencia em sua obra exceções

processuais de pressupostos processuais ao afirmar que as exceções, no sentido

trabalhado no Direito Romano, consiste na oportunização de defesa do demandado

na fase in jure do procedimento formular e perante o magistrado, enquanto os

pressupostos processuais devem ser compreendidos como requisitos de ordem

formal e hábeis a garantir a constituição válida e legítima da relação processual

(competência do juiz). A partir dessas considerações Bülow afirma que os

pressupostos processuais não podem ser vistos como questões de ordem

meramente privada, visto que o Judiciário tem legitimidade para apreciar,

independentemente da manifestação das partes, a legalidade e a observância dos

respectivos pressupostos processuais.

Nesse contexto pode-se afirmar que a sistemática das exceções processuais,

proposta pelo Direito Romano, ao limitar o direito de defesa do demandado,

certamente desencadeia comprometimento à construção do mérito processual. Tal

afirmação se justifica porque no procedimento formulário o mérito processual é

definido e construído unilateralmente pela figura do magistrado, ou seja, pelo pretor

romano, que é o detentor da legitimidade de editar a fórmula a ser utilizada como

parâmetro do julgamento proferido pelo juiz, sabendo-se que a fórmula do

julgamento decorre da intentio (pretensão do demandante) e da exceptio

(admissibilidade da defesa do demandado se o seu conteúdo não contiver questão

estranha a intentio). A autoridade e o poder exercido pelo pretor romano no

procedimento formular são considerados os elementos norteadores para a definição

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do mérito processual, visto que na fase in judicio temos o enfrentamento do mérito

processual pelo juiz, cujo estabelecimento ocorreu na fase in judicio através da

edição da fórmula decorrente da análise da matéria fática e da matéria jurídica

apreciada pelo magistrado.

Verifica-se, assim, que o momento processual em que podemos visualizar a

construção do mérito processual no procedimento formular é na fase in jure,

momento em que o magistrado (pretor) analisa e aprecia toda a matéria de fato e

matéria de direito trazida pelo demandante e pelo demandado para, a partir dessa

análise, editar a fórmula que direcionará as atividades do juiz na fase in judicio. Por

isso, não se pode vislumbrar a construção do mérito processual na fase in judicio,

uma vez que nesse momento do procedimento formular não temos novo debate das

questões de fato e de direito, ou seja, não é permitido ao juiz instituir novo debate

das questões fático-jurídicas trazidas pelas partes, visto que sua atividade limitar-se-

á a aplicabilidade da fórmula predeterminada pelo pretor.

Na obra de Bülow não encontramos um debate direto do tema atinente ao

mérito processual, razão essa que justifica a necessidade de um estudo crítico-

epistemológico-reflexivo acerca de tal temática em suas proposições teóricas. O

processo, na concepção bulowiana, decorre da constituição de uma relação

processual entre pessoas (juiz, autor e réu), cujo magistrado encontra-se em posição

hierarquicamente superior. Nesse sentido pode-se afirmar que “a teoria desenvolvida

por Bülow encontra suas bases na idéia de subordinação de um dos sujeitos da

relação jurídica processual ao outro [...]” (TEIXEIRA, 2008, p. 61). Adepto da

corrente unitarista (unicista), Bülow preconiza que a vontade de lei surge com a

jurisdição, ou seja, o direito nasce do processo, mais especificamente da sentença,

visto que tanto o direito objetivo quanto o direito subjetivo sofrem fundamental

transformação através do processo. Nesse sentido ressalta-se:

[...] a lei vai do comando abstrato (lex generalis) ao concreto (lex specialis contida na sentença) e finalmente à realização deste (execução), tudo isso significando que o direito (não só o subjetivo, como também o objetivo) sofre uma fundamental transformação através do processo (DINAMARCO, 2002, p. 46)

Bülow é unitarista com relação à existência ou não de um direito anterior ao

processo; e como entende que o direito nasce com o processo pode-se afirmar que

é na sentença que o direito é constituído. Em contrapartida, não se pode deixar de

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ressaltar o caráter dualista da teoria bulowiana no momento em que diferencia os

planos normativos do direito material e do direito processual.

Para Bülow “o processo, tendo seus próprios pressupostos, não poderia

permanecer, como até então ocorria, indistinto da relação jurídica afeta aos

interesses das partes, cuja existência essas queriam tornar certa” (LEAL, 2008, p.

28). Nesse sentido, pode-se afirmar que até a segunda metade do século XIX o

processo detinha caráter meramente adjetivo tendo em vista que se tratava de uma

mera extensão do direito civil. Por isso, em sua obra Bülow buscou a autonomia

científica do direito processual frente ao direito material e, a partir daí, passou a

compreender que a relação jurídico-processual é absolutamente distinta das

relações jurídicas e de cunho privado discutidas em juízo, ou seja, é sabido que nas

proposições teóricas apresentadas por Bülow temos a clara diferenciação entre a

relação jurídica constituída no processo (entre juiz, autor e réu) da relação jurídica

de cunho material levado e debatido em juízo. Em decorrência da contribuição

científica da sua obra, Alcalá-Zamora y Castillo afirma que Bülow é “el fundador del

moderno processualismo” (ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLO, 1974, p. 81).

A expressão pressupostos processuais, cunhada por Bulow, é vista como

requisitos de constituição válida da relação processual, considerando-se que a

violação de qualquer pressuposto processual comprometerá, sobremaneira, o a

validade do processo. Segundo André Leal, com o destaque dos pressupostos

processuais e a invenção da “relação jurídica processual” Bülow quer fundamentar

teoricamente a necessidade do aumento do poder do Estado, dos juízes e dos

tribunais (2008, p. 45).

Os pressupostos processuais, na obra de Bülow, dizem respeito à autoridade

judicial competente (denominada atualmente como competência do juízo); parte

capaz ou representante legitimado (trata-se da legitimidade ad causam, considerada

atualmente como condição da ação); direito privado (trata-se da relação jurídica de

direito material considerada o fundamento de constituição da pretensão deduzida em

juízo) (LEAL, 2008, p. 9). No momento em que Bülow substituiu a expressão

exceções processuais por pressupostos processuais pretendeu legitimar o julgador

no controle da relação processual, ou seja, objetivou concentrar nas mãos do

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julgador a legitimidade para o controle dos requisitos de validade de constituição da

relação processual31.

Especificamente no que tange ao debate jurídico acerca do mérito na obra de

Bülow faz-se necessário identificar a distinção existente entre os requisitos

extrínsecos ao mérito e que garantem a validade na constituição da relação

processual, bem como os requisitos inerentes ao mérito, quais sejam, a constituição

do direito (objetivo e subjetivo) a partir da sentença e da autoridade do julgador.

Inicialmente é importante discorrer sobre os requisitos extrínsecos ao mérito,

ou seja, os pressupostos processuais de natureza formal e indispensáveis à validade

jurídica da relação processual, dentre os quais podem ser ressaltados inicialmente a

competência do órgão julgador, ou seja, a legitimidade que cada órgão do Judiciário

tinha de conhecer especificamente determinadas pretensões. A regularidade de

representação das partes por procurador constituído também pode ser ressaltada

como um requisito formal extrínseco ao mérito. Tais requisitos podem ser

denominados de pressupostos processuais de operacionalização e de constituição

válida da relação processual, concedendo-se ao julgador a legitimidade quanto ao

controle e a observância de tais requisitos.

A legitimidade processual (parte capaz ou representante legitimado), na obra

de Bülow, pode ser vista como um elemento extrínseco ao mérito no sentido de que

o julgador detém a legitimidade de avaliar previamente a titularidade da pretensão

deduzida, antes mesmo de adentrar à discussão do mérito. Verifica-se, portanto, que

já na obra de Bülow começa a serem delineados os fundamentos teóricos das

condições da ação, cuja sistematização teórica ocorre a partir da obra de Chiovenda.

Pela análise da obra de Bülow pode-se afirmar que a capacidade da parte ou

de seu representante legitimado (legitimidade ad causam) são considerados

pressupostos processuais extrínsecos ao mérito, tendo em vista a impossibilidade de

constituição válida de relação processual de natureza pública, caso venha a ser

31 Según lo dicho, no puede ya pensarse que el complejo de pressupuestos procesales debe ser mirado desde el punto de vista de las excepciones procesales, como há ocurrudi siempre hasta ahora. Todo el supuesto de hecho de la relación procesal encuentra tan poco lugar en el concepto de exceptio com el de relacións material y aún mucho menos. Todavia se quiere permanecer aferrado a la teoria de las excepciones procesales, de modo que sólo queda eligir e ampliar el concepto de excepcións a todo lo que el demandado diga ocasionalmente ante el tribunal, en vez de restringirlo a lo que debe decir y probar ante el mismo, o afirmar que no se da validez alguna a las prescripciones procesales, ni nulidad del proceso a causa de la transgresión del derecho procesal. Em pocas palabras, o una nocion ridicula de exceptio o proceso contratual puro, es el precio que se puede pagar nada más que por el mantemiento de las exceciones procesales. (BULOW, 1964, p. 294)

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constatada a ausência de capacidade do sujeito ser parte na relação processual ora

instituída.

O juiz, na obra de Bülow, é o intérprete especializado da lei e quem detém a

legitimidade de averiguar a observância dos pressupostos processuais,

considerados requisitos extrínsecos ao mérito processual e indispensáveis à

constituição e à existência da relação processual.

Partindo-se do principio de que os pressupostos processuais são

considerados elementos de constituição e de existência32 da relação processual,

pode-se afirmar que a discussão do mérito vem posteriormente à averiguação da

existência dos pressupostos processuais, e que o controle dar-se-á diretamente pela

autoridade do julgador, independentemente da manifestação das partes.

O mérito processual em Bülow encontra-se intrinsecamente relacionado com o

Direito Subjetivo, considerado o direito que cada sujeito tem ou o poder da vontade

individual sobre a conduta do outro (verifica-se, nesse contexto, a ideologia de

subordinação de um sujeito do processo ao outro sujeito do processo titular do

Direito Subjetivo). “Windescheid, trabalhando o conceito do direito subjetivo, constrói

outro conceito igualmente caro à arquitetura, que foi o da relação jurídica e ambos

influenciam posteriormente a construção do conceito de ação” (MACIEL JUNIOR,

2006, p. 74). Assim, o direito subjetivo é visto como um poder absoluto sobre a

própria conduta, ou, também, como uma prerrogativa sobre uma conduta alheita

(GONÇALVES, 1992, p. 77 apud MACIEL JUNIOR, 2006, p. 74).

O advento do liberalismo teve como conseqüência a ampla proteção jurídica do

indivíduo e, por isso, o direito civil assume o ápice de sua expressão, passando a

inspirar os demais ramos do direito. O direito objetivo passa a assegurar ao indivíduo

o gozo dos direitos subjetivos, que pode ser visto como o poder ou a vontade do

homem, juridicamente protegidos, cuja exteriorização decorre obrigações e de

faculdades estabelecidos em lei.

Importante ressaltar nesse contexto que na concepção de Ihering o direito é um

interesse juridicamente tutelado, enquanto o interesse é a manifestação de uma

32 No que diz respeito aos pressupostos processuais (elementos constitutivos da relação processual), Bulow os define como sendo aqueles requisitos imprescindíveis ao nascimento da relação processual e que englobam os requisitos de admissibilidade e as exigências prévias para que se efetive a relação processual inteira. Dizem respeito às pessoas, ao objeto (litígio) ao fato ou ato gerador (atos necessários à formação da relação processual), à capacidade e legitimação para praticar tais atos [...]. (AGUIAR; COSTA; SOUZA; TEIXEIRA, 2005, p. 26-27).

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pessoa em face de um determinado bem. A noção inicial que temos sobre o Direito

Objetivo é de reconhecimento ou de legitimação de direitos inatos preexistentes aos

sujeitos (MACIEL JUNIOR, 2008, p. 70). Visando o maior esclarecimento cientifico

do tema o professor Vicente de Paula Maciel Junior, autor da Teoria das Ações

Coletivas como Ações Temáticas (teoria cujo desenvolvimento de suas primeiras

proposições iniciou-se há aproximadamente 10 anos), afirma que “o direito objetivo,

a lei, é o critério geral das condutas em um dado ordenamento, no sentido de

estabelecer o norteamento das ações legitimas em um dado Estado” (2006, p. 71)33.

Nesse ínterim pode-se afirmar que em Bülow o mérito processual é uma

discussão posterior à análise dos pressupostos processuais (requisitos jurídicos de

existência da relação processual) e decorre inicialmente do direito subjetivo exercido

pelo autor em desfavor do réu e perante o julgador. Assim sabe-se que o mérito

processual pode ser visto como a discussão judicial referente ao reconhecimento ou

não do Direito Subjetivo através do processo. Além disso, o julgador era quem

detinha a legitimidade para construir unilateralmente o mérito processual, uma vez

que o exercício da Jurisdição dava-se a partir da fundamentação jus-filosófica trazida

pelo Movimento do Direito Livre34. A justiça da sentença judicial decorria do

enfrentamento do mérito a partir da sensibilidade jurídica do meio social do julgador,

ou seja, o juiz, no momento em que fosse analisar o mérito processual buscava

inicialmente fundamentos na lei (positivismo) e, em caso de lacuna, poderia utilizar-

se de argumentos metajurídicos e axiologizantes como parâmetro à análise e ao

reconhecimento ou não do Direito Subjetivo no caso concreto. A exclusão das partes

33 Mas o pensamento de Savigny evoluiu no sentido de procurar uma fusão entre o direito subjetivo e o direito objetivo, quando então desenvolve uma teoria sobre o “direito de ação”, que foi construída sob o perfil da violação dos direitos. Nessa perspectiva seria o próprio direito que, quando violado, se modificaria e entraria em estado de defesa, transformando-se. Da violação do direito nasceria uma relação entre ofendido e ofensor, cujo conteúdo seria a faculdade de pedir uma reparação. Essa relação para Savigny se chama “direito de agir”, ou ação em sentido substancial, que é diferente da ação em sentido formal, ou seja, da efetiva atividade do ofendido mediante a qual ele faz valer o seu direito de agir, atividade que com suas condições e formas diz respeito à teoria do processo. Com isso Savigny enraíza o direito de agir no sistema do direito privado, desvinculando-o das formas processuais mutáveis e abandona a ação em sentido formal ao direito público, sem todavia que a distinção signifique para ele a existência de um limite preciso e a necessidade de observá-lo rigorosamente. Para Savigny, o processo e o direito de ação, concebido e analisado em sua relação com o direito, são estreitamente coligados e devem ser deixados para avaliação de cada um dos cultores de uma e outra disciplina, porque pertencem a um campo limítrofe (ORESTANO, 1978, p. 33 apud MACIEL JUNIOR, 2006, p. 81-82). 34 O Movimento do Direito Livre, assim como a jurisprudência dos interesses e a sociologia jurídica empírica, é a ramificação da doutrina do positivismo jurídico, que concebia o direito como um dado do mundo exterior (fato sociológico) ou um dado do mundo interior (fato psicológico). (AGUIAR; COSTA; SOUZA; TEIXEIRA, 2005, p. 46-47).

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na construção do mérito advinha do caráter autocrático do processo cuja relação

jurídica era instituída e desenvolvida perante a autoridade do juiz.

A sistemática dos Direitos Subjetivos funda-se em ideologia liberal, cujo

entendimento do direito decorria de proposições de natureza privada. O Direito

Subjetivo, na concepção bülowiana, era reconhecido através do processo. O

julgador era legitimado a garantir a constituição de uma relação processual

(mediante a observância de normas processuais de direito público = pressupostos

processuais) em que a pretensão das partes (autor e réu) materializava-se por

interesses jurídicos divergentes (interesse enquanto a manifestação de vontade de

uma pessoa em face de um bem). O enfrentamento do mérito processual pelo

julgador consistia na análise dos interesses jurídicos divergentes para, ao final da

relação processual, proferir uma sentença justa, ou seja, uma sentença através do

qual o juiz reconheceria o direito subjetivo do autor ou do réu.

Nesse contexto pode-se afirmar que o mérito processual em Bülow é a

análise da pretensão das partes (interesses jurídicos divergentes) pelo juiz, análise

essa que se desenvolve inicialmente a partir da lei (positivismo), viabilizando-se ao

magistrado (juiz) o direito de uma análise metajurídica, em caso de lacuna de direito

(Movimento do Direito Livre). Por isso, pode-se afirmar que a construção do mérito

processual em Bülow dá-se de forma unilateral pela autoridade do juiz, excluindo-se

qualquer ingerência das partes interessadas (autor e réu). O processo como

taxonomia da relação jurídica surge em Bülow como instrumento da jurisdição,

devendo essa ser entendida como atividade do juiz na criação do direito em nome

do Estado (não em nome das partes) com a contribuição do sentimento e da

experiência do julgador (LEAL, 2008, p. 60).Na análise do mérito processual o juiz

poderá contrariar o sentido e a vontade da lei quando essa se tornar injusta para um

caso concreto específico.

2.3 As contribuições científicas de Chiovenda no es tudo do mérito no Direito Processual

As contribuições científicas preconizadas por Chiovenda, no contexto da

problemática trazida no presente trabalho de pesquisa, justificam-se no sentido de

demonstrar que o conceito de mérito processual ainda continua sendo trabalhado

como a matéria de fato e de direito alegada pelas partes no processo, e que e o

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julgamento do mérito da demanda consiste na apreciação judicial de todas essas

questões suscitadas pelas partes.

Verifica-se, ainda, que o conceito de mérito é restrito e atrelado a uma visão

privada do processo, não permitindo, pelo próprio contexto histórico da produção

científica da obra de Chiovenda, que todos os sujeitos afetados pela decisão judicial

venham a participar da definição e do debate da matéria de mérito. É nesse contexto

que se inserem as proposições teóricas chiovendianas, consideradas mais um

fundamento legitimo para justificar que o atual substrato jurídico do modelo de

processo coletivo brasileiro vigente, qual seja, o sistema representativo, encontra

sua base no conceito individual de mérito proposto pelo processo civil, haja vista a

restrição quanto à participação dos interessados na formação do provimento de

mérito.

Partindo-se das proposições teóricas desenvolvidas pelo processualista

alemão Oskar von Bülow na segunda metade do século XIX, o processualista

italiano Giuseppe Chiovenda, nas primeiras décadas do século XX, teoriza o

processo como relação jurídica entre juiz, autor e réu e sistematiza a discussão do

processo sob a ótica do Direito Subjetivo.

Inicialmente esclarece que o Direito Objetivo é a “manifestação da vontade

geral coletiva, destinada a regular a atividade dos cidadãos ou dos órgãos públicos”

(CHIOVENDA, 2002-a, p. 17). Aborda em suas proposições teóricas iniciais que o

Direito Objetivo não era produto apenas das normas de direito privado

(regulamentação jurídica das relações entre particulares), mas também englobava

normas jurídicas de direito publico (aquelas que regulam as relações envolvendo

direta ou indiretamente instituições públicas).

À aspiração do sujeito jurídico de dar consecução ou conservar os bens que

lhes são atribuídos pela lei Chiovenda denomina de Direito Subjetivo, que pode ser

definido como a expectativa de uma pessoa com relação a um determinado bem da

vida garantido pela vontade da lei. “Todo direito subjetivo pressupõe (como sua fonte

ou causa imediata) uma relação entre duas ou mais pessoas, regulada pela vontade

da lei e formada pela verificação de um fato” (CHIOVENDA, 2002-a, p. 17).

O processo deve garantir à parte aquilo que ela teria direito (o bem da vida)

se a norma jurídica fosse cumprida, ou seja, o processo, enquanto uma relação

jurídica regulada pelo direito público, deve dar, quanto for possível, a quem tenha

um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que se tem direito de conseguir. È nesse

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sentido Chiovenda afirma ser o “processo civil um complexo de atos coordenados ao

objetivo da atuação da vontade da lei (com respeito a um bem que se pretende

garantido por ela) por parte dos órgãos da jurisdição ordinária” (2002-a, p. 56).

A restrição e a superação da autodefesa decorre da legitimação do Estado na

resolução dos conflitos de interesses. Nesse contexto o processo passa a ser um

instrumento de justiça nas mãos do Estado. O Estado Moderno tem como função

essencial a administração da Justiça e “é exclusivamente seu o poder de atuar a

vontade da lei no caso concreto, poder que se diz jurisdição, e a que provê com a

instituição de órgãos próprios (jurisdicionais)” (CHIOVENDA, 2002-a, p. 58). O

processo, nesse contexto, é visto como o instituto jurídico hábil a garantir a atuação

da vontade concreta da lei, garantindo a parte um bem em face de outros

particulares ou em face da própria administração.

O juiz exercia o poder de coordenar, conduzir e controlar a constituição da

relação jurídica processual. Ao contrário de Bülow, que preconizada a atuação do

juiz centrada no Movimento do Direito Livre (a influência de juízos axiológicos e

metajurídicos na construção unilateral do mérito processual pelo julgador),

Chiovenda mantém nas mãos do juiz o controle da relação processual, porém

destaca o principio da legalidade como norte da atividade jurisdicional. É por isso

“que a função pública desenvolvida no processo consiste na atuação da vontade

concreta da lei, relativamente a um bem da vida que o autor pretende garantido por

ela” (CHIOVENDA, 2002-a, p. 59). Sabe-se que a atividade dos juízes dirige-se ao

exame da norma como vontade abstrata da lei (questão de direito) e ao exame dos

fatos que transformam em concreta a vontade da lei (questão de fato).

Certamente é possível averiguar que tanto as questões de fato quanto as

questões de direito permeiam o conceito de pretensão deduzida em juízo, o que, por

conseqüência, nos remete ao estudo do mérito processual, que, inicialmente na obra

de Chiovenda, pode ser visto como o debate conduzido pelo juiz acerca das

questões fático-jurídicas que refletirão diretamente na atuação da vontade concreta

da lei.

A definição ou a formulação do direito a ser aplicado ao caso concreto sempre

foi alvo de profundos debates entre os estudiosos do processo. Em Bülow o juiz

encontrava-se livre em seu julgamento, podendo-se nortear pelo senso comum

jurídico, pelos costumes e, também, pelo seu senso de justiça quando da análise do

caso concreto. No Direito Romano, especificamente na primeira fase do processo

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formular, o pretor romano era quem detinha a legitimidade para estabelecer a

fórmula e o direito mais adequado a ser aplicado ao caso concreto.

Em Chiovenda a atuação da vontade concreta de lei é o direito a ser aplicado

ao caso concreto, ou seja, em sua obra a atuação do juiz é regrada pelos contornos

da lei, não decorrente de uma interpretação ou compreensão livre do direito a ser

aplicado ao caso concreto. A atuação da vontade positiva da lei ocorre no momento

em que o juiz, através do processo, garante à parte autora um bem da vida mediante

o cumprimento e a aplicabilidade do disposto na lei. Em contrapartida, a atuação da

vontade negativa da lei advém da aplicabilidade de lei ao caso concreto para

reconhecer judicialmente que a parte autora não tem direito ao bem da vida

pretendido inicialmente, o que por conseguinte nos permite concluir que a atuação

da vontade concreta de lei no presente caso ocorrerá em favor do réu.

Nesse contexto, é plenamente possível afirmar que as proposições teóricas

trazidas por Chiovenda, no que tange à atuação da vontade concreta da lei visa

assegurar bilateralmente tanto o bem da vida pertencente ao autor quanto ao réu,

razão essa que justifica a distinção acima mencionada: atuação da vontade positiva

da lei e atuação da vontade negativa da lei.

Do estudo sistemático da obra do processualista italiano observa-se a sua

preocupação quanto à limitação e o controle da atividade jurisdicional35 no que tange

à atuação da vontade concreta da lei:

[...] Outra coisa é considerar isso como mister do juiz, perigosa máxima que pode encorajar as interpretações individuais e cerebrinas. Com desdobrada razão podemos dizê-lo das doutrinas inspiradas no princípio da maior liberdade do julgador (a chamada escola do direito livre) e que a exageraram ao ponto de admitir um poder de correção da lei. Os juizes rigorosamente fiéis a lei conferem aos cidadãos maior garantia e confiança do que os farejadores de novidades em geral subjetivas e arbitrárias. (CHIOVENDA, 2002-a, p. 63)

O controle da atividade jurisdicional pelo princípio da legalidade limitará a

atividade do juiz quanto ao enfrentamento e à construção do mérito processual,

35 La jurisdicción puede ser definida como la función del Estádo que tiene por fin la actuación de la voluntad concreta de la ley mediante la substitución, por la actividad de llos órganos públicos, de la actividad de los particulares o de otros órganos público, sea al afirmar la existencia de la voluntad de la ley, sea al hacerla prácticamente efectiva. (CHIOVENDA, 1940, p. 1-2). A jurisdição pode ser definida como a função do Estado que tem por fim a atuação da vontade concreta da lei mediante a substituição, pela atividade dos órgãos públicos, da atividade dos particulares ou de outros órgãos públicos, seja para afirmar a existência da vontade da lei, seja para torna-la praticamente efetiva (tradução livre).

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especificamente no que se refere à análise das questões de fato e de direito

inerentes à pretensão deduzida. Outra questão de extrema relevância é que a

vontade concreta da lei tende a realizar-se no domínio e nos limites das questões

fáticas levadas pelas partes ao Judiciário.

A ação36 em Chiovenda é um direito que pode fluir da lesão a um direito.

Trata-se de um direito potestativo preexistente à demanda, um direito subjetivo37 do

autor, um poder jurídico autônomo de dar vida à condição de atuação da vontade

concreta da lei por meio dos órgãos jurisdicionais. A ação se realiza através do

processo, cuja utilidade se revela quando não se tem a certeza acerca do direito

pleiteado pelo autor em face de seu adversário. Por isso, Chiovenda trabalha o

processo como instrumento de implementação da justiça, mediante a garantia de

atuação da vontade concreta da lei.

As condições da ação são aquelas condições necessárias para que o juiz

declare e atue a vontade concreta da lei invocada pelo autor, ou seja, as condições

necessárias à obtenção de um pronunciamento favorável (CHIOVENDA, 2002-a, p.

89). Já os “pressupostos processuais compreendem-se as condições para a

obtenção de um pronunciamento qualquer, favorável ou desfavorável, sobre a

demanda” (CHIOVENDA, 2002-a, p. 90). Dessa forma, verifica-se que os

pressupostos processuais na obra de Chiovenda são os requisitos extrínsecos ao

mérito processual e que visam assegurar a existência e a validade jurídica da

relação processual. É nesse sentido que o autor elenca como pressupostos

36 In realtà l’azione è diritto che spetta al titolare affermato (ossia a colui che nella domanda si afferma titolare) del diritto sostanziale, nei confronti del soggnetto passivo affermato dello diritto sostanziale (ossia di colui che nella domanda è affermato soggetto passivo di quel diritto); e soprattutto è um diritto che, a differenza dal diritto sostanziale, no há, come suo contenuto, uma prestazione del titolare passivo dello stesso diritto sostanziale, bensì la prestazione di um altro ed autonomo soggetto: il giudice (o, più in generale, I’organo giurisdizionale) che nel processo opera come organo dello Stato. Ed anche la prestazione dell”organo giurisdizionale, come contenuto del diritto di azione, è diversa ed autonoma dalla prestazione che costituisce el conteunto del diritto sostanziale, anche se strumentale rispetto ad essa; è la prestazione della tutela giurisdizionale, o, più precisamente, lo svolgimento dell’attività giurisdizionale; più precisamente ancora, quell” attività giurisdizionale più qualificata che non si arresta ad uma pronuncia sul processo, ma – in quanto sussistano lê condizioni dell’azione – giunge fino allá pronuncia sul mérito. (MANDRIOLI, 1997, p.58). 37 El derecho subjetivo es precisamente la expectativa de um bien de la vida, garantizada por la voluntad del Estado. El derecho subjetivo pone al que lo posee en una especial condición de preeminencia frente a los demá, por lo que se refiera al bien de que es objeto de ese derecho: porque este bien corresponde sólo a él, con exclusión de todos los demás. En sentido propio derecho subjetivo supone, pues, un bien de la vida que idealmente pueda corresponder también a persona distinta de aquella investida de tal derecho. (CHIOVENDA, 1936, p. 56)

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processuais a competência do juízo38 e a capacidade das partes, considerados pré-

requisitos essenciais ao enfrentamento do mérito pelo juiz. É por isso que Chiovenda

afirma

[...] A sentença, portanto, que se pronuncia apenas sobre os pressupostos processuais, ou seja, que declara possível pronunciar-se sobre a demanda ou absolve do prosseguimento da causa, não é favorável nem ao autor nem ao réu; não concede nem recusa nenhum bem; veremos que, por isso, em regra não deve incluir condenação nas despesas e que não produz coisa julgada substancial” (CHIOVENDA, 2002-a, p, 92).

A demonstração de existência de um direito (possibilidade jurídica do pedido),

a comprovação da legitimação de agir e o interesse de agir (necessidade de buscar

a prestação jurisdicional) são considerados requisitos imprescindíveis à análise do

mérito processual. Ou seja, a discussão e a efetivação da atuação da vontade

concreta da lei somente é possível após demonstradas as condições da ação. “Na

falta de semelhantes condições, deve rejeitar a demanda, independentemente de

uma particular solicitação do réu, mesmo, por exemplo, se o réu é revel”

(CHIOVENDA, 2002-a, p. 227)39.

A compreensão jurídica do mérito processual perpassa pelo esclarecimento

científico de institutos afins. A demanda judicial “é o ato pelo qual a parte, afirmando

existente uma vontade concreta da lei, que lhe garante um bem, declara querer que

essa vontade se atue e invoca para esse fim a autoridade do órgão jurisdicional”

(CHIOVENDA, 2002-b, p. 354). A demanda judicial é a pretensão levada ao

Judiciário, ou seja, são as questões fáticas e jurídicas apresentadas pelo autor

(quando da propositura da ação) e pelo ré (quando da apresentação da defesa). A

nulidade da relação processual poderá decorrer da nulidade da demanda judicial ou

da nulidade dos pressupostos processuais. “Se fundado numa demanda válida o juiz

tem, pelo menos, a obrigação de se declarar competente ou incompetente, fundado

numa demanda nula o juiz, sobre não poder entrar no mérito, não pode sequer

examinar se existem os pressupostos processuais [...]” (CHIOVENDA, 2002-b, p.

383).

38 O primeiro pressuposto processual, ou seja, a primeira condição para poder examinar-se no mérito a demanda judicial, é que a demanda se haja endereçada a um órgão do Estado revistido de jurisdição. (CHIOVENDA, 2002-b, p. 7-8) 39 [...] mancando queste condizioni, egli deve rigettare la domanda, anche senza uma particolare istanza del convenuto, anche se ad es, il convenuto é contumace. (CHIOVENDA, 1960, p. 158)

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A constituição válida da demanda decorre da citação do ré. “O vício máximo

de uma demanda é a falta de comunicação ao réu” (CHIOVENDA, 2002-b, p. 383). A

ausência de regular comunicação do réu acarreta a inexistência da relação jurídica.

A demanda judicial regularmente constituída representa a oportunidade que

as partes têm de delimitar questões fáticas e jurídicas que permearão a construção

do mérito processual perante o juiz. É o momento em que o objeto do processo é

definido, vinculando o juiz quanto à análise do mérito, tendo em vista que o

magistrado não pode se pronunciar a favor ou contra as pessoas que não são

sujeitos da demanda; o juiz não pode conceder nem negar coisa diversa da

demanda e a causa petendi40 não pode ser unilateralmente alterada pelo julgador

(CHIOVENDA, 2002-b, p. 405-406). Ou seja, a demanda judicial é o pressuposto

lógico do mérito processual, que não é definido unilateralmente pelo magistrado,

cujo julgamento de mérito fica vinculado e adstrito ao que as partes alegaram em

juízo.

Temos uma intrínseca relação entre mérito processual e demanda judicial na

obra de Chiovenda. O juiz, ao exercer a jurisdição, não tem liberdade para formar o

seu convencimento desvinculado das questões postas pelas partes em juízo.

Significa dizer que a construção do mérito processual em Chiovenda decorre da

autoridade do juiz, regrada pelo principio da legalidade, cujos critérios para a análise

do mérito são jurídicos e vinculados aos fatos e fundamentos apresentados e

debatidos pelas partes no processo.

Ao contrário do que foi preconizado por Bülow (liberdade do julgador construir

o mérito processual a partir de argumentos jurídicos e metajurídicos, sem ter o dever

de se vincular às questões postas pelas partes no processo), o mérito processual em

40 [...] Etimologicamente causa petendi significa ragione del domandare, titolo giuridico sul quale la domanda si Fonda, comprendente “i fatti e gli elementi didiritto constituenti le ragioni della domanda” (n. 4 art. 163): ma tale definizione, per la sua evidente genericità. È inidônea a descrivere, anche in combinazione com il petitum, la realtà sostanziale che sta a base della domanda introduttiva ed, in particolare, ad individuare modalità ed eventuali limite entro i quali il diritto a rapporto giuridico sostanziale affermato entra a far parte della domanda, contribuendo, per ciò stesso, ad identificarla. Non sembra inutile ricordare che l’elaborazione della nozione di causa petendi è stata fortemente influenzata dallo sviluppo e dalla sucessiva contraposizione delle teorie, di origine germanica, della sostanziazione e della individuazione: la prima, di più ântica concezione (che si ricollega al principio di eventualità, cioè ad um’ida del processo como giudizio su uma serie di fatti), richiede che la domanda debba indicare tutti rilevanti ed identifica la causa petendi nel compendio dei fatti costitutivi posti a fondamento della domanda. La seconda richiede che la domanda specifichi il diritto sostanziale in base al quale si chiede la tutela, assumendo essere compito del processo esclusivamente quello di accertare l’esistenza od inesistenza del diritto, ed assegna allá causa petendi la funzione di individuare soltanto il rapporto giuridico controverso (causa agendi próxima). (MONTESANO; ARIETA, 1996, p. 148).

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Chiovenda decorre das seguintes premissas: 1) o juiz controlará a legalidade da

constituição e da existência da relação processual; 2) a constatação de elementos

que venham a comprometer a validade da relação processual (ausência de

pressupostos processuais ou a nulidade da demanda por ausência de citação do

réu) são fundamentos para inviabilizar a construção e a análise do mérito processual

pelo magistrado; 3) a constituição válida e regular da demanda judicial dar-se-á pela

oportunização juridicamente igual do autor e do réu apresentar legitimamente todas

as questões de fato e de direito pertinentes ao que foi inicialmente alegado em juízo;

4) o julgador, quando da construção do mérito processual, fica vinculado às

questões de fato e de direito postas e alegadas pelas partes em juízo. Isso implica

dizer que o magistrado não tem liberdade de construir unilateralmente o mérito

processual, desconsiderando as alegações das partes no processo. É dever do juiz

construir o mérito processual a partir do que foi debatido e colocado pelas partes na

relação processual.

A sentença de mérito em Chiovenda é conseqüência da análise pelo juiz das

questões inerentes à demanda judicial. Não pode o juiz nem as partes se afastar da

demanda judicial quando forem construir o mérito processual. Nesse sentido

Não somente o juiz deve comportar-se nos limites da demanda, mas deve também abster-se de considerar de oficio determinados fatos que, embora não acarretariam mudança de demanda: secundum allegata et probata partium indicare debet. Pode-se, portanto, dizer que, se se veda à parte afastar-se da demanda inicial, com maior razão de veda ao juiz. (CHIOVENDA, 2002-b, p. 406)

A atuação de ofício do juiz nunca poderá integrar questão atinente ao mérito

processual em virtude de sua vinculação com a demanda judicial. A legitimidade de

atuação de ofício do magistrado fica adstrita ao controle da constituição e da

existência da relação processual41 no contexto da legalidade vigente, ou seja, o juiz

se legitima no controle da validade dos pressupostos processuais e de eventuais

vícios da demanda

41 [...] A relação processual é uma relação autônoma e complexa, pertencente ao direito público. Autônoma, porque tem vida e condições próprias, independentes da existência da vontade concreta da lei afirmada pelas partes, visto fundar-se sobre outra vontade da lei, quer dizer, sobre a norma que obriga o juiz a pronunciar-se em referência a pedidos das partes, quaisquer que sejam:UMA COISA É, POIS, A AÇÃO, OUTRA A RELAÇÃO PROCESSUAL: aquela compete à parte

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[...] Ao juiz não é dado, efetivamente, entrar numa relação jurídica a que faleçam condições de validez. Por essa razão, declara de oficio sua própria incompetência; argúi de ofício sua própria incapacidade subjetiva; manifesta de ofício sua própria capacidade subjetiva; manifesta de oficio a incapacidade das partes; a falta das autorizações necessárias para comparecer em juízo; a incapacidade de ser parte; a falta de procuração; a carência do ius postulandi e assim por diante. (CHIOVENDA, 2002-b, p. 421-422).

Entende Chiovenda que a partir do Estado Constitucional diversas relações

jurídicas são estabelecidas entre os indivíduos, e entre estes e o Estado. Tal idéia

teve por motor a separação dos poderes, o que fez com que o próprio Estado se

submetesse à vontade da lei. Entre o Estado e os indivíduos estabelece-se uma

relação jurídica de direito público, sendo o processo uma das formas dessa relação

(relação jurídica processual) que se apresenta em contínuas interferências e

contraposições em face da relação jurídica constituída entre as partes e deduzida

em juízo pelo autor (relação jurídica substancial).

Em virtude do advento do Estado Constitucional pode-se afirmar que a

construção do mérito42 tem sua base na fundamentação jurídica advinda da análise

da demanda judicial pelo juiz, ou seja, a sensibilidade sócio-jurídica do julgador não

pode servir de parâmetro para o julgamento do mérito da pretensão, assim como o

próprio julgador não tem legitimidade para ignorar as questões postas pelas partes

(autor e réu) quando da constituição da demanda judicial no contexto da relação

processual.

Adepto da teoria dualista do ordenamento jurídico, Chiovenda reconhece que

há direito anterior ao processo, mas afirma que o processo apresenta-se como fonte

autônoma de bens da vida, que não se podem conseguir a não ser no processo. O

juiz ao construir e analisar o mérito processual busca, acima de tudo, garantir às

partes (autor e réu) a atuação da vontade concreta da lei mediante a delimitação da

demanda judicial debatida no âmbito da relação processual instituída perante o juiz.

42 Chiovenda é um exemplo. Ele diz que “objeto do processo é a vontade concreta da lei de cuja existência e atuação se trata, bem como o poder de pedir a sua atuação, i.é, a ação”. A referência à ação e sua inclusão no objeto do processo não só expressa essa postura mental diferente da dos arautos do método que faz deste o centro, como ainda traz uma impropriedade: como pode a ação como poder que é (ou direito público subjetivo, como muitos preferem), ser posta diante do juiz? a ação não é um ato, ela se situa no plano das situações jurídicas. Melhor se expressou Chiovenda, em outra passagem já citada, quando associou a demanda (ato inicial do exercício da ação) e não a ação em si mesma ao conceito de mérito (DINAMARCO, 1987, p. 210).

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O principio da oralidade43, tal como desenvolvido na obra de Chiovenda, pode

ser visto como um retorno ao processo vigente no Direito Romano e também é

importante ressaltar que a oralidade causa reflexos diretos na compreensão e no

entendimento do mérito processual. A finalidade do procedimento oral é aproximar

as partes, facilitar o debate e proporcionar melhores condições ao magistrado para

perquirir com maior clareza a pretensão deduzida em juízo. Ou seja, através da

oralidade o juiz garante um diálogo mais direto entre as partes, viabilizando a

constituição de uma via discursiva de construção participada do mérito processual.

Assim é possível vislumbrar uma participação mais direta das partes (autor e réu) no

debate fático-jurídico de construção do mérito processual.

No processo oral há a “prevalência da palavra como meio de expressão

combinada com o uso de meios escritos de preparação e de documentação”

(CHIOVENDA, 2002-c, p. 61). Além de aproximar as partes, a oralidade viabiliza no

âmbito processual maior efetividade ao principio do contraditório, tendo em vista que

garante maior possibilidade de debate e de participação na construção do mérito

processual. A aplicabilidade do principio da oralidade não pressupõe a exclusão da

escrita no processo, tendo em vista a necessidade de documentação de todo ato

processual oralmente praticado.

Outra vertente do principio da oralidade encontra-se na “imediação da relação

entre o juiz e as pessoas cujas declarações deva apreciar” (CHIOVENDA, 2002-c, p.

43 Naturalmente, a realização do principio da oralidade comportava um abandono radical do velho sistema, ou seja, do denominado “processo comum”, e isto significava evidentemente uma profunda ruptura daquela unidade que havia nascido nos séculos da Idade Média e que, pelo menos em parte, havia sobrevivido ao longo do século XVIII. Mas posto que o século passado foi um século predominantemente inspirado, pelo menos na Europa, em movimentos ideológicos e políticos nacionais e nacionalistas, a ruptura daquela unidade correspondia perfeitamente à tendência dominante na ideologia e na política da época. Por outro lado, como já se teve ocasião de demonstrar, a ruptura da antiga unidade, devida aos novos códigos e leis processuais inspirados em critérios radicalmente novos foi-se convertendo sucessivamente em um fenômeno de tal modo difundido e generalizado na Europa que se pode, hoje em dia, sustentar que, por meio daquela ruptura, foi-se formando uma nova tendência para uma nova unidade. Isto quer dizer que as legislações nacionais que, sucessivamente, acolheram o sistema processual oral foram sendo cada vez mais numerosas, de modo que hoje em dia pode-se afirmar que representam a grande maioria dos sistemas nacionais europeus. No principio da oralidade, inspiraram-se, com efeito, mais ou menos terminantemente, ou, além dos dois códigos, alemão e austríaco, já lembrados, todos os códigos europeus do nosso século, desde o código húngaro de 1º de janeiro de 1911, elaborado principalmente por Alexandre Plóz, o dinamarquês, em vigor desde 1919; o norueguês em vigor desde 1927; o polonês que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1933; o iuguslavo, de 13 de julho de 1939, que entrou em vigor entre 1933 e 1934 (quase literalmente modelado sobre o código austríaco) – para chegar às leis mais recentes, como o código federal suíço de 1947 e o código sueco, em vigor desde 1º de janeiro de 1948, assim como as leis processuais dos paises socialistas da Europa, baseadas também fortemente no critério da relação imediata e oral do juiz com as partes e os outros sujeitos do processo (CAPPELLETTI, 2001, p. 44-45).

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64), ou seja, trata-se de corolário do principio da identidade física do juiz, através do

qual o juiz a quem caiba proferir a sentença e construir o mérito processual deve

assistir e acompanhar diretamente o desenvolvimento das provas das quais tenha

de extrair o seu convencimento.

A legitimidade do julgador na construção do mérito decorre da análise

apurada das provas produzidas pelas partes em juízo, ou seja, o juiz tem o poder de

valorar as alegações e as provas produzidas pelas partes e, a partir de suas

constatações no âmbito processual, definir a matéria de mérito para julgar o mérito

da pretensão. Verifica-se que a oralidade representa para o juiz a oportunidade de

perquerir com maior exatidão e clareza qual a matéria de mérito a ser apreciada em

cada caso concreto.

Chiovenda, em suas proposições teóricas, trabalha dois tipos de cognição: a

cognição que conduz à sentença de mérito e a cognição que se desenvolve sem que

o magistrado enfrente a matéria de mérito (CHIOVENDA, 2002-c, p. 229). Sentença

definitiva é o ato processual através do qual o magistrado enfrenta o mérito da

pretensão deduzida em juízo e satisfaz a obrigação que lhe decorre da demanda

judicial. “É vedado ao juiz recusar a sentença de mérito, quando validamente se

constitui a relação processual” (CHIOVENDA, 2002, p. 230). Isso evidencia

claramente que a construção do mérito processual n obra de Chiovenda perpassa

obrigatoriamente pela observância de requisitos legais que venham garantir a

existência e a regularidade da relação processual. Dessa forma pode-se excluir do

conceito de mérito processual qualquer questão técnica e formal vinculada à

constituição valida da relação processual, tendo em vista a vinculação estreita

existente entre mérito e demanda judicial (questões fático-jurídicas).

2.4 O mérito processual em Calamandrei e os reflexo s de suas

contribuições científicas

No contexto da problemática científica proposta no presente trabalho, a obra

de Calamandrei tem significativa contribuição em razão de o respectivo autor

trabalhar o processo civil na perspectiva dialética. Num primeiro momento pode-se

imaginar que a base teórica da formação participada do mérito processual estaria na

obra de Calamandrei, algo que não se evidencia ao longo dos estudos em razão do

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processo dialético restringir a participação dos interessados no debate da pretensão

deduzida, ou seja, o conceito de dialeticidade trabalhado pelo autor restringe-se às

partes no processo (autor e réu), ressaltando-se que o juiz é o legitimado a conduzir

a relação processual e a analisar quais serão as questões discutidas e consideradas

relevantes ao julgamento do objeto da demanda.

Além de restringir substancialmente a participação na formação do mérito

apenas às partes diretamente envolvidas no processo (autor e réu), Calamandrei

continua limitando o entendimento do mérito processual às questões ou à matéria

suscitadas pelas partes em juízo e analisadas pelo julgador no momento de decidir.

O julgamento do mérito materializa-se pelo enfrentamento e análise, pelo juiz, de

todas as questões propostas e trazidas aos autos pelas partes. Não é possível

vislumbrar na obra do autor italiano parâmetros legítimos ao entendimento do mérito

processual como um procedimento de ampla discursividade da pretensão deduzida

por todos os interessados na pretensão, tal como se pretende discutir ao longo

desse trabalho.

Piero Calamandrei, na primeira metade do século XX, propõe a compreensão

do processo a partir de uma relação processual de natureza dialética (órgão judicial

= juiz; autor e réu), ou seja, os atos processuais “resultam da colaboração de várias

pessoas, cuja atividade se sucede alternativamente na série, do mesmo modo que

nas intervenções de um diálogo” (CALAMANDREI, 1999-a, p. 266). Calamandrei

remonta a máxima de Búlgaro (iudicium esta actus trium personarum, actoris, rei,

iudicis), bem como desenvolve sua teoria a partir das proposições teóricas

bulowianas e chiovendianas.

Calamandrei deixa explícito em sua obra o caráter dialético44 da relação

processual, que pode ser vista como um espaço de debate e de discussão das

44 O processo não é somente uma série de atos que devem se suceder numa determinada ordem estabelecida pela lei (ordo procedendi), senão que é também, no cumprimento desses atos, um ordenado alternar de várias pessoas (actus trium personarum), cada um a das quais, nessa série de atos, deve atuar e falar no momento preciso, nem antes nem deposi, do mesmo modo que na recitação de um drama cada ator tem que saber “entrar” a tempo para sua intervenção, ou numa partida de xadrez têm os jogadores que se alternar com regularidade no movimento de suas peças. Mas a dialeticidade do processo não consiste somente nisto: não é unicamente o se alternar, numa ordem cronologicamente preestabelecida, de atos realizados por distintos sujeitos, senão que é a concatenação lógica que vincula cada um desses atos ao que o precede e ao que o segue, o nexo psicológico em virtude do qual cada ato que uma parte realiza no momento preciso, constitui uma premissa e um estímulo para o ato que a contraparte poderá realizar imediatamente depois. O processo é uma série de atos que se cruzam e se correspondem como os movimentos de um jogo: de perguntas e respostas, de réplicas e contra-réplicas, de ações que provocam reações, suscitadoras por sua parte de contra-reações. (CALAMANDREI, 1999-c, p. 225).

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partes acerca da pretensão e do mérito processual. Talvez a grande contribuição

científica do autor encontra-se no sentido de reconhecer que a relação processual

validamente constituída entre as partes legitima a oportunidade do autor e do réu

atuarem de forma mais dinâmica e direta na construção do mérito. Percebe-se a

preocupação de colocar autor e réu numa posição menos subserviente, mais

autônoma e mais ativa em relação à autoridade do julgador, o que representa uma

das características típicas da obra de Calamandrei

[...] É este o caráter que se poderia denominar dialético do processo, em virtude do qual, o processo se desenvolve como uma luta de ações e de reações, de ataques e de defesas, na qual cada um dos sujeitos provoca, com a própria atividade, o movimento dos outros sujeitos, e espera, depois deles um novo impulso para se pôr, por sua vez, em movimento. Tudo isso pode também se expressar dizendo que o processo não é somente uma série de atos realizados por distintas pessoas na ordem estabelecida pela lei, senão que é também, desde o inicio até o fim desta série, uma relação contínua entre estas distintas pessoas, cada uma das quais se determina a atuar do modo prescrito pela lei em conseqüência e em vista desta relação pessoal em que se encontra com as outras; assim o caráter dialético do processo leva naturalmente a conceber os atos que o formam como a manifestação exterior de uma relação jurídica que corre entre os sujeitos do mesmo; e surge assim a noção de relação processual. (CALAMANDREI, 1999-a, p. 266-267).

O procedimento consiste na regulamentação ou na ordem de sucessão dos

atos constitutivos da relação processual45. A providência jurisdicional é a meta a ser

atingida ao final do procedimento, visto que no processo de cognição a decisão não

pode ser pronunciada antes que da fase de instrução tenham sido recolhidas todas

as provas e apresentadas todas as alegações pelas partes. O órgão judicial não

permanece como espectador inerte até chegar o momento de pronunciar a

providência final, ou seja, ao longo da instrução processual o magistrado atua

efetivamente de forma direta na construção do mérito processual conjuntamente

com as partes. È nesse contexto que Calamandrei enaltece a dinamicidade e a

dialética da relação processual, materializada através do posicionamento ativo

adotado tanto pelas partes quanto pelo juiz, no que diz respeito à busca de todos os

elementos, os fundamentos e a análise de todas as alegações fático-jurídicas que

45 Para disciplinar a estrutura exterior de cada ato processual considerado por si mesmo, o direito processual estabelece por quem pode ser cumprido cada ato (pelos órgãos judiciais ou pelas partes ou por terceiros), que meios de expressão devem ser empregados (idioma oficial, art. 122 do C. p. c.; forma escrita ou forma oral, exemplo, art. 180; publicidade ou segredo, exemplo, art. 128), que condições de lugar (exemplo, art. 139 do C. p. c.) ou de tempo (exemplo, art. 147 do C. p. c.) devem ser observadas para cada um deles. (CALAMANDREI, 1999-a, p. 259)

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orientarão a decisão a ser proferida ao final do procedimento pelo julgador. Nesse

sentido

[...] Também durante a fase preparatória o juiz dirige as partes e colabora com elas; e também antes de chegar ao pronunciamento da providência de mérito que irá por fim ao processo, pode ocorrer que tenha de tomar no curso do processo providências de caráter – Arts. 176-187 – ordinário e preparatório (ver art. 176, art. 187 etc.) que não fecham a série, mas que se intercalam entre as atividades das partes, marcando outras tantas fases internas, cada uma das quais constitui um passo em direção à providência final. (CALAMANDREI, 1999-a, p. 260).

O processo é uma relação jurídica constituída pelas partes46 (autor e réu)

perante o Judiciário, ou seja, “a relação processual é fórmula mediante a qual se

expressa a unidade e a identidade jurídica do processo” (CALAMANDREI, 1999-a, p.

273). A constituição válida da relação processual diferencia-se da relação jurídica de

direito material instituída entre as partes, visto que tal relação decorrente do direito

material é considerada o fundamento central do objeto do processo (demanda

judicial). A relação processual “se constitui no momento em que a demanda, pela

qual uma parte pede uma providência ao órgão judicial, se – Arts. 101, 39, 643 –

comunica à outra parte” (CALAMANDREI, 1999-a, p. 273).

O estabelecimento regular da relação processual entre as partes e perante o

juiz decorre da instauração efetiva do contraditório, ou seja, da oportunização ao réu

de participar diretamente da dinâmica do processo. “A relação processual é uma

relação dinâmica que tende alcançar uma finalidade e a se extinguir no êxito da

mesma” (CALAMANDREI, 1999-a, p. 274). A finalidade da relação processual

regularmente constituída é oportunizar ao juiz o julgamento do mérito do objeto do

processo, a partir do que foi legitimamente alegado pelas partes em juízo. O

magistrado ao proferir julgamento de mérito fica adstrito especificamente ao que as

partes alegaram em juízo, ou seja, a análise do mérito processual pressupõe a

manifestação judicial de todas as questões postas e alegadas pelas partes.

46 A denominação de “partes” com que, desde a terminologia jurídica latina, se indica às pessoas entre as quais versa o litígio perante o juiz, é uma das palavras, freqüentes na linguagem processual, cuja etimologia alude às origens primitivas do processo, concebido como uma luta legalizada a presença de um árbitro neutro; se chamam “partes” os contendentes no processo, no mesmo sentido em que se fala de partes em todos os caso em que há uma contraposição de adversários que competem entre si para a obtenção de uma vitória: um duelo, em um torneio cavalheiroso, em uma competição de ginástica, em uma luta política de partidos ou de frações. (CALAMANDREI, 1999-b, p. 226).

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A ação é um direito concreto47, ou seja, o seu exercício pressupõe o

reconhecimento jurídico da pretensão inicialmente deduzida pelo autor. Assim, “a

ação, entendida em sentido concreto (§34), é o direito à providência (de mérito)

favorável” (CALAMANDREI, 1999, p. 278). O requisito constitutivo para a efetivação

do direito de ação na perspectiva concretista pressupõe obrigatoriamente a análise

do mérito da demanda pelo juiz. Ou seja, a teorização do direito de ação em

Calamandrei encontra-se diretamente vinculada com a compreensão jurídica do

mérito processual, tendo em vista que o exercício do direito de ação ocorre apenas

quando a pretensão ou a demanda do autor é reconhecida pelo juiz. Para isso, é

necessário que o juiz adentre à análise de todas as alegações apresentadas pelas

partes em juízo.

O enfrentamento do mérito processual como corolário do reconhecimento ou

não da ação como um direito concreto condiciona-se, inicialmente, à demonstração

da viabilidade fática e jurídica da demanda judicial (relação entre o fato e a norma), a

legitimação para atuar ou contradizer (investidura para atuar ou contradizer;

titularidade da condição de parte na relação processual) e o interesse processual

(CALAMANDREI, 1999-a, p. 206-220). Além das condições da ação, é necessário

também ressaltar a relevância dos pressupostos processuais como requisitos de

validade e de existência da relação processual e, também, como elementos

extrínsecos ao mérito processual.

Nesse contexto é oportuno ressaltar que em sua obra Calamandrei explica

que o direito substancial é considerado o fundamento do objeto do processo

(demanda judicial) e ressalta a necessidade da distinção entre a relação jurídica

processual e substancial

[...] Decorre desta observação a profunda diferença que se deve fazer entra a relação substancial, que é o mérito da causa, isto é, o tema que o órgão judicial põe diante de si como um evento histórico que já tem sido vivido pelos contendentes antes e fora do processo; e a relação processual, que se cria no mesmo momento em que as partes entram em relação com o juiz e na qual juiz e partes atuam numa cooperação viva, na qual cada um dos seus atos deve conformar-se a outros tantos preceitos jurídicos que o direito processual dirige a cada um deles, momento a momento. (CALAMANDREI, 1999-a, p. 276)

47 A ação pode ser concebida de conformidade com a teoria que consideramos hoje historicamente preferível, como um direito subjetivo autônomo (isto é, tal que pode existir por si mesmo, independentemente da existência de um direito subjetivo substancial) e concreto (isto é, dirigido a obter uma determinada providência jurisdicional, favorável à petição do reclamante. (CALAMANDREI, 1999-a, p. 206).

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Essa distinção entre o direito processual e o direito substancial, mais

especificamente a relação jurídica de cunho processual e substancial, é

imprescindível ao estudo do mérito processual a partir das proposições teóricas

trazidas na obra de Piero Calamandrei. A existência e a regularidade da relação

processual decorre da observância de todas as normas processuais atinentes à

competência do juízo, legitimidade e representação das partes. A instrumentalidade

do processo é indispensável para garantir a validade da relação processual

constituída e, por conseguinte, viabilizar a análise do mérito processual pelo juiz.

Nesse ínterim sabe-se que “para obter a providência jurisdicional sobre o mérito,

não existe outro caminho senão o da rigorosa observância do direito processual”

(CALAMANDREI, 1999-a, p. 277).

Eventual equívoco do juiz quanto à análise do mérito da demanda é

denominado de error in judicando, o que não se confunde com a irregularidade

processual (error in procedendo)48. A não constituição válida e regular da relação

processual inviabiliza a análise do mérito da demanda. Considera-se error in

judicando qualquer interpretação ou análise do mérito processual dissonante com as

alegações e com as provas produzidas pelas partes em juízo. Assim, o mérito

processual em Calamandrei deve ser compreendido a partir da dicotomia e da

correlação existente entre a relação jurídica processual e substancial

[...] com o fim de que o órgão judicial possa chegar a aplicar o direito substancial, isto é, a prover sobre o mérito, é necessário que antes as atividades processuais tenham se desenvolvido de conformidade com o direito processual. Somente se o processo se desenvolve regularmente, isto é, segundo as prescrições ditadas pelo direito processual, o juiz poderá, como se diz, “entrar no mérito”; se, vice-versa, tais prescrições não têm sido observadas, as inobservâncias de direito processual, quando sejam de uma certa gravidade, constituirão – Caráter instrumental do processo – um impedimento para a decisão de mérito (“litis ingressum impedientes”). [...] a investigação do juiz sobre a relação substancial não acontece senão através de um processo regularmente constituído. (CALAMANDREI, 1999-a, p. 277).

No procedimento judicial de análise do mérito da pretensão é necessário

diferenciar os requisitos de admissibilidade da demanda e os fundamentos a ela

48 La contraposición de los errores in judicando a los errores in procedento, dice Beling, parte de uma supuesta diversidad entre dos especies de normas jurídicas que el juez, al ejercitar su actividad en el proceso, podría violar: unas serían normas de derecho procesal, destinadas a indicar al juez el modo de regular su conducta durante el proceso (in procedendo); otras serían normas, por lo general de derecho substancial, destinadas a ser aplicadas en la sentencia para la decisión de la relación litigiosa de mérito (in iudicando). (CALAMANDREI, 1945, p. 165).

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inerentes. Considera-se admitida a demanda que se desenvolve no âmbito de uma

relação processual regularmente instituída e “fundada é a demanda quando quem a

propõe tem ação (em sentido concreto)” (CALAMANDREI, 1999-a, p. 278), ou seja,

é aquela demanda através da qual o pedido do autor é judicialmente reconhecido.

“Neste caso, então, a demanda é admissível (enquanto tem todos os requisitos

processuais para ser admitida ao exame de mérito), mesmo sendo infundada

(enquanto faltam os requisitos constitutivos da ação indispensáveis para acolhê-la)”

(CALAMANDREI, 1999-a, p. 278), O juiz, antes de prover sobre a demanda e

analisar se a mesma é fundada ou não, deverá verificar a observância das questões

sobre a admissibilidade da demanda (questões de mérito e questões de rito). Deverá

o julgador averiguar preliminarmente a presença de todos os requisitos legais de

validade e de regularidade da relação processual, assim como auferir a viabilidade

fático-jurídica da pretensão deduzida em juízo.

Existe uma relação intrínseca entre o direito de ação e o mérito processual,

tendo em vista que a fundamentação decorrente da relação jurídica de direito

substancial representa, na obra de Calamandrei, os requisitos inerentes à análise do

mérito na perspectiva concretista do direito de ação. As condições da ação se

referem aos requisitos atinentes à viabilidade jurídica e fática da pretensão, ou seja,

são todos os elementos indispensáveis à providência favorável do pedido do

demandante, enquanto os pressupostos processuais (órgão judicial competente;

demanda dirigida ao órgão judicial nas formas estabelecidas pela lei processual;

capacidade de ser parte; capacidade processual; representação processual) são

todas aquelas exigências legais de constituição válida da relação processual. O

estudo do mérito decorre simultaneamente da existência da relação processual e da

validade da relação jurídica substancial

[...] para poder pronunciar uma providência favorável ao reclamante é necessária a existência dos “requisitos constitutivos da ação” (ou condições da ação: ver §37), os pressupostos processuais são as condições que devem existir a fim de que possa se ter um – Pressupostos processuais – pronunciamento qualquer, favorável ou desfavorável, sobre a demanda, isto é, a fim de que se concretize o poder-dever do juiz de prover sobre o mérito: assim, enquanto os requisitos da ação fazem referência à relação substancial que preexiste ao processo, os pressupostos processuais são requisitos pertinentes à constituição e ao desenvolvimento da relação processual, independentemente do fundamento substancial da demanda. (CALAMANDREI, 1999-a, p. 280).

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Os pressupostos processuais também podem ser denominados de

pressupostos do conhecimento do mérito, extremos exigidos para decidir o mérito ou

condições da providência de mérito. Isso significa dizer que a falta de um

pressuposto processual acarreta a irregularidade na constituição da relação

processual e, por isso, o juiz tem o dever de emitir uma providência em que declare

expressamente as razões pelas quais não poderá adentrar ao exame da causa,

enquanto no caso do processo regular o juiz tem o dever de prover o mérito. Nesse

contexto sabe-se que em todo o processo temos uma fase preliminar, também

denominada de fase pré-meritória, “na qual o objeto da indagação do juiz não é a

ação, senão que é o processo: um verdadeiro e próprio processo sobre o processo”

(CALAMANDREI, 1999-a, p. 282). A constatação da ausência de um pressuposto

processual levará o juiz a uma providência sobre o processo em que não poderá

prover sobre o mérito da demanda; se a relação processual encontra-se

regularmente constituída, mas o reclamante carece de ação (a carência de ação em

Calamandrei decorre da impossibilidade do reclamante demonstrar fundamentos

fáticos e jurídicos para a procedência do pedido), este terá o direito de obter uma

providência de mérito através da qual o juiz rejeitará sua demanda por ser

considerada infundada; se a relação processual encontra-se devidamente

constituída e o demandante tem ação, o mesmo terá direito de obter o acolhimento

da demanda, ou seja, a análise do mérito favorável ao reclamante. Importante

ressaltar que “se a demanda tem sido declarada inadmissível por razões

processuais, a mesma pode ser proposta de novo em outro processo regularmente

constituído” (CALAMANDREI, 1999-a, p. 283). Trata-se da problemática jurídica

existente no direito brasileiro referente à coisa julgada formal (atinge sentenças

terminativas e tem efeitos endógenos) e à coisa julgada material (atinge as

sentenças definitivas = sentenças de mérito e possui efeitos exógenos, ou seja,

vincula processos vindouros e atinge decisões proferidas em outras relações

processuais validamente constituídas), já trabalhada por Calamandrei na primeira

metade do século XX.

A última discussão proposta por Calamandrei e concernente ao debate do

tema-problema objeto da pesquisa, qual seja, o mérito processual, diz respeito à

defesa do réu e a possibilidade do mesmo alegar as exceções de mérito (ou

exceções substanciais) e as exceções de rito ou de procedimento (ou exceções

processuais). Nas exceções processuais o demandado busca alegar algum vício ou

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defeito na constituição da relação processual (vícios esses que podem também ser

reconhecidos de ofício pelo juiz) que venha a impedir o juiz de decidir sobre a ação

(adentrar ao mérito processual). Já as exceções de mérito são alegadas pelo

demandado com a finalidade de desconstituir as alegações do autor e, por

conseguinte, comprometer o exercício do direito de ação em decorrência da eventual

improcedência do pedido.

A grande contribuição científica do processualista italiano Piero Calamandrei

no que tange ao mérito foi conduzir o estudo e a reflexão do tema a partir do

entendimento concretista do direito de ação, ou seja, ao trabalhar simultaneamente

os pressupostos processuais (requisitos de constituição válida da relação

processual) e as condições da ação (fundamentos de natureza fática e jurídica para

o reconhecimento judicial da demanda e do pedido do demandante), demonstrou

que o enfrentamento do mérito processual não é inerente a toda a qualquer relação

processual, mas somente aquelas em que as relações processual e substancial

foram validamente constituídas.

2.5 Mérito Processual em Francesco Carnelutti

O estudo do objeto da presente pesquisa na obra de Carnelutti justifica-se

pela necessidade de demonstração de que o entendimento acerca do mérito

processual ainda continua adstrito à matéria de fato e de direito trazidas pelas partes

ao processo para integrar a lide, ou seja, mérito em Carnelutti são as questões de

fato e de direito que integram o conflito de interesse litigioso deduzido em juízo. O

julgamento de mérito ocorre quando o juiz adentra às questões fático-jurídicas que

integram a pretensão litigiosa deduzida em juízo, ressaltando-se que a definição das

questões a serem discutidas é uma prerrogativa exclusiva das partes (autor e réu) e

que a apreciação dessas questões em juízo é uma atribuição que se encontra nos

limites da legitimidade da atuação do juiz.

O entendimento do conceito de mérito em Carnelutti é importantíssimo para

demonstrar que a noção que se tem sobre o mérito no modelo de processo coletivo

vigente no Brasil está diretamente ligada ao conceito de lide, ressaltando-se que a

base do sistema representativo encontra-se na ideologia de que a legitimidade na

formação e no debate da matéria de mérito não deve ser ampla e estendida a todos

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os interessados, mas apenas àquelas pessoas previamente autorizadas pelo

legislador. A atual sistemática preconizada pelo modelo de processo coletivo

brasileiro, fundada na ótica representativa, destoa das proposições teóricas e

democráticas do modelo de processo coletivo centrado no sistema participativo e

adotado pela Constituição Federal de 1988.

Especificamente ao longo das três primeiras décadas do século XX o

processualista italiano Francesco Carnelutti desenvolve seus estudos sobre o

processo a partir de duas noções prévias: o interesse e a lide, sendo esta

caracterizada pelo conflito de interesses a que se direciona o processo, enquanto o

interesse pode ser visto como a manifestação de um sujeito com relação a um

determinado bem, ou seja, como “uma posição do homem, ou mais exatamente:

uma posição favorável à satisfação de uma necessidade (sujeito do interesse é o

homem e o objeto daquele é o bem)” (CARNELUTTI, 2000-a, p. 55). A noção de

conflito de interesses decorre da limitação de bens para satisfazer as necessidades

ilimitadas dos homens, ou seja, considerando-se que o interesse consiste na

situação favorável do homem satisfazer uma necessidade, o conflito de interesses

surge “entre dois interesses quando a situação favorável à satisfação de uma

necessidade excluir a situação favorável à satisfação de uma necessidade distinta”

(CARNELUTTI, 2000-a, p. 60-61).

Tal como Chiovenda e escudado nas concepções de Bülow, Carnelutti adota

a Teoria da Relação Jurídica, para o qual o processo 49é visto como um método para

a formação ou para a aplicação do direito, ou seja, o processo consistiria numa

relação jurídica de origem em normas instrumentais que determinariam poderes e

sujeições para a solução da lide. Aplica-se o processo, por via repressiva ou por via

preventiva, para a formação ou a atuação, mediata ou imediata, geral ou particular

do direito, que por sua vez visa a regulação do conflito de interesses. A matriz

instrumental do processo é percebida ao longo de praticamente todo o Sistema de

Carnelutti, que deixa claro em diversas passagens que o “interesse na composição

do litígio” (CARNELUTTI, 2000-a, p. 98) é o “interesse servido pelo processo”,

ressaltando-se uma suposta finalidade pública do processo civil.

49 O estudo da composição do processo engloba não somente os elementos da lide e do processo, propriamente dito, mas também o conhecimento das relações entre processo e litígio. (PACHECO; MAGALHÃES; FONSEÇA, 2004, p. 155).

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O desenvolvimento das proposições teóricas carneluttianas decorre do

entendimento do processo a partir das noções de relação jurídica e de conflito de

interesses:

[...] a relação jurídica, o mesmo que o conflito de interesses, apresenta duas fases, cada uma das quais corresponde a um dos interesses em conflito. Mas exatamente porque a composição jurídica se produz por meio da garantia de prevalecer a um deles citado, e por meio da imposição ao outro da subordinação, na relação jurídica, diferentemente do simples conflito, os dois interesses apresentam-se em posição distinta. Por isso, a relação jurídica é a composição de dois interesses: um prevalecente ou protegido e outro subordinado. (CARNELUTTI, 2000-a, p. 76).

A finalidade do processo é a justa composição da lide50, ou seja “o processo

se desenvolve para a composição justa do litígio51” (CARNELUTTI, 2000-a, p. 373).

O processo serve para reproduzir o litígio perante o julgador, a fim de habilitá-lo a

decidir. A noção de processo encontra-se diretamente vinculada com o conceito de

lide proposto por Carnelutti, o que repercutirá no entendimento jurídico acerca do

mérito processual, tendo em vista que a lide é um instituto utilizado para designar o

mérito da causa. O objetivo central do processo consiste exatamente no alcance da

justa composição da lide52, considerada a finalidade pública e precípua da relação

processual ora instituída entre as partes e perante o juiz. Como se observa, o

processo na obra de Carnelutti é um instrumento legitimo utilizado pelo julgador para

garantir a paz e a justiça em suas decisões. Em decorrência do caráter polissêmico

da expressão justiça, associada com a possibilidade do julgador utilizar-se do juízo

de equidade, pode-se afirmar que a análise e a construção do mérito processual

decorre não apenas de argumentações jurídicas, mas, acima de tudo, da

possibilidade do julgador utilizar-se da metajuridicidade como critério lógico de 50 Mas, o que há de se entender por composição justa do litígio? Já observei que a justiça é a conformidade com uma regra (supra, nº 7). Por conseguinte, a composição será justa quando for conforme à regra que no processo se tende a aplicar e, por isso, conforme os casos, quando seja conforme o Direito ou à equidade. Por outro lado, a conformidade com a regra é, por sua vez, um juízo; por isso, a composição será justa enquanto seja julgada como tal, distinguindo-se, nesse sentido, da justiça individual e a social (CARNELUTTI, 2000-a, p. 372) 51 Como já asseverado por Carnelutti, o destino do processo para a composição da lide expressou-se já metaforicamente várias vezes como “relação de continente a conteúdo” (Carnelutti, v. 2, 2000, p. 797). Esta metáfora está na base da continência do processo, que é uma fórmula para expressar tal relação: o processo contém aquela quantidade de litígio que serve para compor (Carnelutti, v. 2, 2000, p. 797). (PACHECO; MAGALHÃES; FONSEÇA, 2004, p. 155-156). 52 [...] a composição do litígio não é um fim em si mesmo, e sim um meio para a proveitosa conveniência social. E esta eficácia sua pode se explicar de dois modos: enquanto a composição se extinga, dentro do possível, a aversão entra os litigantes, que contém um gene anti-social e, enquanto, por meio do exemplo, induza a outros litigantes à composição espontânea de conflitos análogos. É evidente que esta influência sedativa e difusora da composição não pode se exercer em si e por si, e sim apenas enquanto seja idônea para satisfazer a necessidade da justiça. (CARNELUTTI, 2000-a, p. 371)

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análise e do balizamento do mérito da causa. “[...] Segundo o Direito, o poder do

legislador é livre, enquanto o poder do juiz está vinculado, inclusive quando

pronunciar uma sentença dispositiva, que terá de formular segundo a equidade [...]”

(CARNELUTTI, 2000-a, p. 373).

A função processual em Carnelutti decorre da combinação de dois

importantes elementos: a paz e a justiça. Entende-se que “onde não há litígio para

compor segundo a justiça, não há função processual” (CARNELUTTI, 2000-a, p.

374). Seria justa uma decisão se a mesma se encontrasse de acordo com uma

regra, ou seja, desde que alinhada com a ideologia da justiça que decorre de uma

concepção de interpretação majoritária (opinião comum) sobre como se solucionaria

determinado conflito. O Estado tem interesse em compor apenas os litígios que

ameaçam a paz social, ou seja, a função pública do processo exterioriza-se no

sentido em que o Estado não tem interesse em se manifestar e garantir a justiça

naqueles litígios que não afetam direta ou indiretamente a paz social. “[...] Isso

significa que o litígio está presente no processo, como a enfermidade o está na cura.

O processo consiste, fundamentalmente, em levar o litígio perante o juiz, ou

também, em desenvolvê-lo na sua presença” (CARNELUTTI, 2000-b, p. 25).

O debate acerca do mérito processual em Carnelutti perpassa pela

legitimidade que o julgador tem de analisar os fundamentos da lide a partir de

argumentações tanto jurídicas quanto metajuridicas. A demonstração da carga

axiológica e metajurídica quanto à análise do mérito da pretensão resta evidenciada

nas proposições teóricas atinentes à justiça e à paz social como corolários da função

processual. Além disso, verifica-se que o debate acerca da construção do mérito

processual advém da unilateralidade da compreensão do magistrado acerca da

pretensão deduzida em juízo, o que denota a total exclusão das partes quanto à

legitimidade de participação na construção do mérito processual.

O processo não se confunde com o litígio, tendo em vista que a relação

jurídica processual tem o propósito de reproduzir o litígio perante a autoridade do

juiz. O litígio deve ser visto na obra de Carnelutti como o pressuposto do processo,

ou seja, “[...] um processo sem litígio é como uma tela sem moldura” (CARNELUTTI,

2000-b, p. 25).

Não há atividade jurisdicional sem lide, considerando-se a lide como um

fenômeno extraprocessual, metaprocessual e metajurídico que é delimitada quando

da propositura da ação, ou seja, trata-se de uma porção do conflito sociológico que

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ingressa no mundo do processo. “O conflito e interesses se converte em litígio em

virtude de uma atitude específica das partes, uma das quais pretende, enquanto a

outra resiste à pretensão” (CARNELUTTI, 2000-b, p. 30). A pretensão decorre da

subordinação de um interesse alheio a um interesse próprio, ou seja, a

dialeticidade53 da relação litigiosa é considerada o fundamento norteador ao

entendimento da lide enquanto pressuposto da relação processual. Quando o titular

do interesse oposto se subordina ao interesse próprio, a pretensão foi suficiente

para resolver o conflito; quando isso não acontece instala-se o litígio. È nesse

ínterim que esclarece Carnelutti que ao conflito de interesses, quando efetivado com

a pretensão ou com a resistência, poderia dar-se o nome de contenda, ou mesmo de

controvérsia, mas que lhe pareceu mais conveniente e adequado aos usos da

linguagem o de lide (CARNELUTTI, 2006, p. 102) – que, por sua vez, foi apropriado

em grande parte nas proposições teóricas desenvolvidas por Enrico Tullio Liebman.

O desenvolvimento de toda teoria do processo em Carnelutti decorre do

entendimento da lide enquanto um conflito intersubjetivo de interesses qualificado

por uma pretensão resistida. A composição imediata do conflito de interesses dar-se-

ia através das normas materiais, ao passo que a composição mediata far-se-ia com

o uso de normas instrumentais que atribuem ao juiz o poder para a composição do

conflito. Os reflexos de tais proposições teóricas encontram-se na exposição de

motivos do Código de Processo Civil de 1973, em que Alfredo Buzaid utiliza-se da

palavra lide para designar o mérito da causa. È nesse sentido que Cândido Rangel

Dinamarco afirma que para Carnelutti o mérito da lide significa um complexo das

questões materiais que a lide apresenta (DINAMARCO, 1986).

O que determinaria o caráter jurisdicional do provimento para a composição

da lide seria o processo, ou seja, a relação jurídica (poder e seus atos) utilizada para

reprodução do conflito de interesses perante o juiz e que permite a aplicação da

sanção pacificadora. (LEAL, 2002, p. 75).

Na esteira das contribuições cientificas trazidas na obra de Francesco

Carnelutti encontra-se o entendimento do professor e processualista mineiro José

Marcos Rodrigues Vieira, para o qual o mérito seria, portanto, a lide nos limites do

53 É evidente que a apresentação da demanda em juízo sempre se faz, de parte a parte, do ponto de vista do interesse pessoal. Nenhuma das partes, em são consciência, irá desenvolver suas argumentações pondo em destaque os pontos que favorecem ou que possam favorecer o seu adversário. A lide é, portanto, uma realidade técnica, intra-autos, por isso mesmo que o magistrado compõe o litígio mediante a busca da verdade formal. (VIEIRA, 2002, p. 61).

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pedido54, ou seja, “o mérito é o pedido e é a lide, ou, como visto, é esta nos limites

daquele” (VIEIRA, 2002, p. 160). “Mérito em verdade, é a composição da lide que

recai sobre relação de direito material controvertida que pode ser quanto a sua

existência, inexistência, modo de ser e ainda quanto a sua realização” (SOUZA,

2011).

A constituição do litígio no âmbito processual encontra vinculação direta com

a matéria de fato trazida pelas partes em juízo. O manejo e a análise da matéria

fática pelo julgador dar-se-á conforme as provas produzidas, as normas jurídicas e

as regras da expediência, visto que é a partir delas que o julgador extrairá a

aplicação da lei ao caso concreto. O enfrentamento do mérito processual está

intimamente ligado a problematização da matéria fática e jurídica pelo magistrado,

que é quem detém a legitimidade de análise de tais questões postas e trazidas pelas

partes em juízo.

É oportuno ressaltar que o exercício legítimo do direito de ação tem como

conseqüência jurídica a possibilidade de resolução da lide mediante a análise do

mérito da demanda. Por isso, sabe-se que o exercício do direito de ação pressupõe

inicialmente a capacidade das partes (“a capacidade é a expressão da idoneidade

da pessoa para atuar em juízo, inferida de suas qualidades pessoais”), ou seja, a

legitimidade de postular ou de ser parte numa determinada relação processual. Além

disso, a legitimação das partes também constitui pressuposto para o exercício do

direito de ação, sabendo-se que “a legitimação representa, pelo contrário, tal

idoneidade inferida de sua posição com respeito ao litígio” (CARNELUTTI, 2000-b, p.

51). A noção de legitimação está relacionada com a titularidade da pretensão e com

a ingerência das partes para com as questões e a matéria de fato e de direito ora

levadas ao juízo da demanda. È nesse contexto teórico que Carnelutti faz a distinção

entre o interesse em litígio (trata-se do objeto do processo, o seja, a demanda

judicial das partes) e o interesse na composição do litígio (refere-se à finalidade

publica do processo exercida pelo juiz no sentido de buscar um provimento

compatível, na medida do possível, com a justiça e a paz social), afirmando-se que a 54 De se notar que o conceito de mérito, acima transcrito, é endoprocessual, sendo definido como a lide nos limites do pedido. É um conceito simples, claro e que, a nosso juízo, merece todos os elogios e acolhidas. Apoiado nele e dando um passo, já nos é possível perceber que o mérito não é o pedido e não é, do mesmo modo, a lide em si (como está expresso em vários dispositivos do CPC vigente e do Anteprojeto, sem que se deixe claro se a lide endo ou extraprocessual), mas a lide narrada nos autos e limitada pelos pedidos formulados por ambas as partes (no caso do demandado também os fazer, quer seja na contestação das ações dúplices, que seja na reconvenção). (MADEIRA, 2010, p. 117).

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ação poderá ser exercida por quem possua interesse na composição do litígio

(comum a qualquer cidadão), quanto àquele que possua interesse no litígio

(CARNELUTTI, 2004, p. 56-57).

A capacidade e a legitimação das partes, assim como o conteúdo da ação,

são requisitos considerados indispensáveis à constituição regular da relação

processual que, por conseguinte, causa reflexos diretos no entendimento e na

construção do mérito processual. “Legitimação processual expressa, portanto, a

idoneidade de uma pessoa para atuar no processo, devida a sua posição e, mais

exatamente, a seu interesse ou a seu ofício” (CARNELUTTI, 2000-b, p. 57). É

relevante a distinção feita pelo autor entre sujeito da ação e sujeito do litígio:

considera-se sujeito do litígio aquele com respeito ao qual se faz o processo e que

sofre suas conseqüências (titular da pretensão deduzida em juízo), enquanto o

sujeito da ação seria quem o faz, pelo menos, quem concorre a fazê-lo e, deste

modo, a determinar aqueles efeitos (titular do direito de postular). Normalmente o

sujeito do litígio coincidiria com o sujeito da ação, mas casos haveria em que o

sujeito da ação não seria o sujeito do litígio, como os casos de legitimidade

extraordinária do Ministério Público (CARNELUTTI, 2004-b, p. 87).

A demanda inicialmente pode ser vista como um instituto inerente ao

exercício do direito de ação pela parte autora da relação processual, ou seja,

demandar é a forma característica da atividade da parte. A constituição efetiva da

demanda judicial depende da manifestação da parte demandada, ou seja, destaca o

autor que a ação não corresponde a uma parte, e sim a cada uma das partes,

apontando a necessidade da bilateralidade e de observância do contraditório para a

finalidade do processo

À demanda introdutória do autor ou do credor corresponde ou, pelo menos, pode corresponder, uma demanda do demandado, quando comparecer no processo de conhecimento, ou do devedor, quando manifesta sua atividade no processo de execução; tal demanda pode concordar ou discordar da do autor ou credor, conforme aqueles que adiram ou resistam à pretensão; o que o art. 36 do Código de Procedimento Civil chama “contra-dizer a demanda”, e o que os arts. 162 e 415 chamam “responder”, não é mais do que a proposição que de sua demanda faz o demandado ao juiz, como o faz o autor. (CARNELUTTI, 2000-b, p. 105-106).

Demanda judicial é sinônimo de objeto do processo, ou seja, é o que as

partes alegam sob o ponto de vista fático e jurídico na relação processual

regularmente constituída perante o Judiciário (a ação para Carnelutti é um direito

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abstrato de natureza pública e dirigida contra o juiz, e não contra o Estado55. Para

Carnelutti, portanto, o direito de ação consistiria em uma situação jurídica que não se

estabelece perante os pretensos direitos materiais de âmbar as partes, mas se

configura como um direito da parte ante o juiz ou o funcionário judicial).

As razões que apóiam a demanda representam o substrato para a

compreensão do mérito processual. As partes têm o dever de proporcionar todos os

elementos para a apreciação do mérito processual a partir dos fundamentos

constitutivos da demanda judicial. A instrução processual é o momento em que o

julgador se utiliza para avaliar as provas e os argumentos das partes e, assim,

adentrar à análise do mérito processual.

Considerando-se que a jurisdição é um poder exercido pelo julgador para

garantir a justiça e a paz social em suas decisões e que o processo exerce uma

função pública cujo escopo é a justa composição da lide, o mérito processual em

Carnelutti decorre das ponderações e das análises do julgador acerca de todas as

questões atinentes a matéria fática e jurídica trazidas pela partes no contexto

processual. É por isso que a explicação do que se pode entender sobre mérito

processual obrigatoriamente se encontra vinculada ao conceito de lide, a matéria de

fato, as questões de direito, cuja análise e debate partirá do senso de justiça da

autoridade do julgador. Na sentença o julgador visa tornar concreto ou particular o

preceito abstrato e genérico contido na norma legal; é por isso que a sentença em

Carnelutti deve ser vista como uma lei específica e individualizada construída a partir

de normas abstratas e genéricas aplicadas ao caso concreto.

2.6 O estudo do mérito na obra de Enrico Tullio Lie bman

O pensamento científico do processualista italiano Enrico Tullio Liebman é de

extrema relevância para o estudo do objeto da presente pesquisa, haja vista que

ratifica o entendimento preconizado anteriormente pelos autores estudados, de que

o mérito processual consiste na análise, pelo juiz, da matéria e das questões de fato

e de direito alegadas pelas partes (autor e réu) em juízo, não se preocupando em

diferenciar mérito processual de matéria de mérito. 55 A ação seria, então, direito ao cumprimento dos atos em que se resolve a tutela jurídica [...]. Não seria direito contra o Estado (Ofício) mas contra o Oficial [...]. Resolve-se em Carnelutti o problema da ação em que a sujeição da parte, quando sucumbente, não é ao direito da outra, mas ao poder que o reconheça [...]. O reverso desse direito seria a obrigação do funcionário. [...] Assim declinou Carnelutti a novidade de seu direito de ação contra o juiz (não contra o juízo). (VIEIRA, 2002, p. 48-49)

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O mérito processual é visto como a análise das questões trazidas pelas

partes ao juiz, ressaltando-se que tal análise é uma prerrogativa exclusiva do

julgador, sujeito considerado o intérprete qualificado da lei. Tanto a definição das

questões de mérito a serem analisadas, quanto os critérios de análises das questões

suscitadas é uma prerrogativa exclusiva do julgador, tal como ocorre até hoje,

quando se analisa a base teórica do Código de Processo Civil brasileiro de 1973.

O que se abstrai criticamente desse contexto é que o mérito consiste no

“merecimento” do julgador em apreciar unilateralmente as questões trazidas pelas

partes no processo para, com fundamento em sua experiência, bem como no

presumido e no notável saber, garantir a justiça da decisão para as partes

envolvidas no conflito de interesses.

É visível na obra de Liebman a reprodução do sistema representativo,

considerado o referencial para modelo do processo coletivo brasileiro vigente, em

que somente está legitimado a apresentar judicialmente as questões de mérito

aquelas pessoas previamente autorizadas pelo legislador, excluindo-se a

possibilidade dos demais interessados serem inseridos processualmente na

definição e no debate de outras questões relacionadas com a pretensão inicialmente

deduzida em juízo. Trata-se de uma teoria absolutamente incompatível com o

sistema participativo, que estabelece a base jurídica do modelo de processo coletivo

democrático.

Partindo-se das concepções teóricas desenvolvidas por Chiovenda e

Carnelutti, o processualista italiano Enrico Tullio Liebman, radicou-se em São Paulo

e, na Universidade de São Paulo, junto com um grupo de alunos e estudiosos

influenciou o pensamento dos processualistas brasileiros, dentre eles, Alfredo

Buzaid, Moacir Amaral dos Santos, José Frederico Marques, Cândido Rangel

Dinamarco e Kazuo Watanabe. A repercussão das proposições liebmanianas no

Brasil pode ser claramente percebida no Código de Processo Civil de 1973,

especificamente no que tange às condições da ação, ao julgamento antecipado da

lide (art. 330 CPC), a compreensão do instituto da coisa julgada a partir da ideologia

da imutabilidade e da indiscutibilidade da decisão judicial. Visando ressaltar a

influência das teorias de Liebman sobre o processo civil brasileiro Cândido Rangel

Dinamarco ressalta que

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[...] os pensamentos e escritos de Liebman, notadamente aqueles voltados ao direito brasileiro, vieram a projetar-se intensamente na cultura processualística de nosso país, com intensa repercussão, desde logo, na doutrina dos que com ele conviveram e, ao longo de todas essas décadas, no pensamento formado entre os discípulos de seus discípulos (...). Já passadas mais de seis décadas de sua chegada, ainda hoje é possível sentir o peso das propostas que trouxe e, sobretudo, das grandes premissas que plantou entre nós, como verdadeiras raízes da formação do pensamento científico brasileiro do processo civil (DINAMARCO, 2005, p. 78).

É relevante a contribuição cientifica Liebman no que tange ao estudo do

mérito processual, conforme será demonstrado pelas discussões a serem

desenvolvidas ao longo desse trabalho cientifico. O exercício da jurisdição56 em

Liebman decorria da concentração dos poderes de julgar nas mãos do magistrado,

ou seja, o juiz era considerado o intérprete qualificado da lei com a legitimidade de

julgar de forma justa ou injusta, no sentido de viabilizar a implementação da paz

social, tendo em vista que o fim último de sua atividade era a justiça de suas

decisões57.

Para Chiovenda a jurisdição é uma função do Estado que o legitima a garantir

a aplicação da vontade positiva ou negativa da atuação concreta da lei, ou seja, o

referido autor diferenciou claramente a atividade administrativa do Estado (função

executiva) da atividade do juiz, sabendo-se que somente esta última atividade tinha

caráter jurisdicional. Seguindo a mesma sistemática jurídica proposta por Chiovenda,

Liebman diferencia a atividade jurisdicional da atividade judicial a partir do conceito

de joeiramento prévio.Ao ser proposta uma determinada ação o juiz primeiro deveria

analisar a presença dos elementos indispensáveis a análise do mérito processual,

quais sejam, os pressupostos processuais (requisitos extrínsecos ao mérito que

visam garantir a validade jurídica da relação processual) e as condições da ação

(legitimidade ad causam, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido). O

joeiramento prévio consistia na análise da existência desses requisitos

56 Julgar quer dizer valorar um fato do passado como justo ou injusto, como lícito ou ilícito, segundo o critério do juízo fornecido pelo direito vigente, e enunciar em conseqüência a regra jurídica concreta destinada a valer como disciplina do fato típico em exame (Caio deve mil a Tício; Semprônio está condenado à reclusão). A operação lógica do juízo pode ser feita de quem quer que seja, dotado da necessária cognição e dará lugar a um parecer, uma opinião; mas apenas a que advém do juiz e é expressa numa sentença tem um conteúdo vinculativo e uma eficácia vinculante. Mediante a execução forçada, por sua vez, os órgãos judiciários dão atuação prática efetiva àquilo que a lei dispõe para o caso singular em concreto. (LIEBMAN, 2003, p. 23) 57 O juiz como intérprete qualificado da vontade da lei não significa que “ele possa atribuir à norma conteúdos conforme à sua preferência subjetiva e arbitrária; pelo contrário, ele deve se esforçar para exprimir as exigências e os valores da sociedade de seu tempo. O fim último da sua atividade é a justiça e, com ela e por meio dela, a paz social” (LIEBMAN, 2003, p. 24)

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indispensáveis à apreciação do mérito processual. Uma vez constatada a ausência

de tais requisitos o magistrado não julgaria o mérito da demanda e, por isso,

exerceria a atividade judicial (considera-se judicial a atividade do magistrado atinente

à extinção do processo sem julgamento do mérito, ressaltando-se que tal atividade

não é considerada jurisdicional, visto que se equipara muito mais a uma atividade

administrativa exercida pelo juiz). O exercício da atividade jurisdicional58 pelo

magistrado dar-se-ia apenas quando o mesmo enfrentasse o mérito da demanda, ou

seja, Liebman deixa claro em sua obra que o exercício da atividade jurisdicional

encontra-se intrinsecamente vinculado à análise do mérito processual pelo

magistrado.

Os pressupostos processuais (capacidade especifica = competência do juiz;

capacidade das partes; ausência de impedimento derivado da litispendência; do

compromisso arbitral) são condições de desenvolvimento valido do processo, e a

ação é um direito condicionado (condições da ação) de provocar o exercício da

jurisdição no sentido de obter o julgamento do pedido, ou seja, a decisão da lide, ou,

em suma, a análise do mérito.

O pensamento liebmaniano apontava que a função do processo ”não se

cumpre num só momento ou num só ato, mas como uma série coordenada de atos

que se desenvolvem no tempo e tendem à formação de um ato final” (LIEBMAN,

2003, p. 45). É nesse contexto que temos a “idéia de um proceder em direção de

uma meta e o nome dado ao conjunto de atos trazidos à existência no exercício

dessa função” (LIEBMAN, 2003, p. 45). Liebman trabalha a noção de procedimento

como “diversas etapas de um caminho que se percorre para chegar ao ato final, no

qual se identificam a meta do itinerário pré-fixado e, inclusive, o resultado da inteira

operação” (LIEBMAN, 2003, p. 48). Pela análise das considerações do autor verifica-

58 [...] Entendendo por jurisdição a atividade do poder judiciário, destinada a realizar a justiça mediante a aplicação do direito objetivo às relações humanas intersubjetivas, no processo de cognição somente a sentença que decide a lide tem plenamente natureza de ato jurisdicional, no sentido mais próprio e restrito. Todas as outras decisões tem caráter preparatório e auxiliar: não só as que conhecem dos pressupostos processuais, como também as que conhecem das condições da ação e que, portanto, verificam se a lide tem os requisitos para poder ser decidida. Recusar o julgamento ou reconhece-lo possível não é ainda, propriamente, julgar: são atividades que por si próprias nada tem de jurisdicionais e adquirem esse caráter só por serem uma premissa necessária para o exercício da verdadeira jurisdição. A ordem jurídica tende com a jurisdição ao fim de realizar-se praticamente. Esse fim é conseguido pela decisão de mérito, não pelo exame da existência das condições para que ela possa ser proferida. Nessa fase preparatória o processo funciona, em certo sentido, como um filtro para evitar que haja exercício de jurisdição quando faltam os requisitos que a lei considera indispensáveis para que se possam alcançar resultados satisfatórios. (LIEBMAN, 2001, p. 109)

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se que a meta do processo é viabilizar ao magistrado o exercício da jurisdição no

que tange especificamente à análise do mérito da pretensão. É nesse contexto

teórico que encontramos a gênese da ideologia desenvolvida pela Escola Paulista

de Processo, para quem o processo é o instrumento da jurisdição.

O processo59 é uma relação jurídica constituída pelas partes (autor e réu),

perante o Judiciário, através da qual o juiz se coloca em posição hierarquicamente

superior, excluindo toda e qualquer forma de participação direta ou indireta das

partes na construção do mérito processual. “A atividade com a qual se desenvolve

em concreto a função jurisdicional se chama processo” (LIEBMAN, 2003, p. 45), e

essa atividade se cumpre por meio de uma série coordenada de atos que se

desenvolvem no tempo e tendem à formação de um ato final. Todas as atividades

desenvolvidas no processo são minuciosamente regulamentadas pela lei tendo em

vista que o processo é a atividade com a qual se desenvolve concretamente a

função jurisdicional.

Decidir é uma prerrogativa inerente ao exercício da jurisdição60. O conjunto da

atividade jurisdicional ordena-se no “esquema de uma demanda que uma parte61

dirige ao órgão jurisdicional em confronto com a parte contrária, à qual o órgão

jurisdicional responde com uma decisão” (LIEBMAN, 2003, p. 45). Para Liebman o

mérito processual delimita-se através do pedido das partes e também encontra

relação direta com o conceito de lide, visto que o processo tem por escopo realizar o

Direito Material através da construção e da concretização do mérito pelo juiz.

O objeto do processo é um conceito utilizado para explicar o mérito

processual, tendo em vista que a análise de toda a matéria e de todas as questões

trazidas pelas partes no processo passa a integrar a matéria de mérito a ser 59 “O processo é feito para dar razão a quem a tem; mas exatamente por isso no processo é garantida a ambas as partes a possibilidade de defender as próprias razões e de lutar com armas iguais para fazê-las triunfar” (LIEBMAN, 2003, p. 49). 60 Falar em decisão evoca desde logo, na mente do processualista, a função jurisdicional e especificamente o processo de conhecimento. [...] Embora a decisão não constitua exclusividade da jurisdição, nem a jurisdição só se exerça decidindo, tão importante é o momento decisório na caracterização desta (nas origens, foi somente judicium), que é muito comum confundi-la com a função cognitiva e identifica-la nesta. Constitui bem uma expressiva manifestação desse pensamento arraigado na mente dos juristas a indicação da sentença (de mérito ) como “ato jurisdicional magno”, ou seja, “aquele em que a função jurisdicional realiza a sua função mais nobre e significativa. (DINAMARCO, 1996, p. 90-91). 61 As partes têm direitos subjetivos processuais que consistem em “poderes que a lei lhes reconhece de provocar a atividade judicial e de determinar que ela se desenvolva numa ou noutra direção” (LIEBMAN, 2003, p. 49). “Esses direitos subjetivos são abstratos, ou seja, tem por objeto a atividade do juiz, o resultado favorável ou desfavorável desta atividade, que dependerá por sua vez da convicção do juiz sobre a existência ou não de fundamento das razoes de uma e da outra parte e, portanto, de seu julgamento do mérito da causa ” (LIEBMAN, 2003, p. 49).

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enfrentada pelo julgador.Carnelutti entende que o objeto do processo consiste nos

interesses contraditórios das partes62. Na esteira de Liebman o objeto do processo é

o pedido do autor, conforme explica a seguir

[...] A razão é fácil de explicar: o pedido do autor é o objeto do processo. É ele manifestação da vontade dirigida à autoridade judiciária requerendo desta uma atividade de determinado conteúdo. Todo o desenvolvimento do processo consiste em dar a tal pedido o devido seguimento, de conformidade com a lei, e o órgão público se desimcumbe de sua função ao proferir os atos com que atende ao mencionado pedido. (LIEBMAN, 2001, p. 100) (grifo nosso).

No processo civil, cuja natureza do objeto versa sobre interesses individuais,

a parte autora, ao acionar o Judiciário, delimita inicialmente o objeto do processo ao

esclarecer sua pretensão na petição inicial. No momento em que a parte demandada

apresenta defesa há a constituição efetiva do objeto do processo mediante a

intenção de apenas desconstituir os fatos e fundamentos alegados pelo autor

(contestação) ou através da ampliação do objeto do processo (reconvenção). É

nesse momento que se considera efetivamente instaurada a demanda, visto que são

definidas todas as questões (de fato e de direito) que nortearão a compreensão do

mérito processual. Trata-se da oportunidade que o magistrado tem de visualizar

claramente a linha de discussão e de debate que será construída pelas partes na

relação processual.

Em contrapartida, a noção de objeto no processo coletivo não se delimita

apenas ao que as partes (demandante e demandado) da relação processual

alegaram em juízo, uma vez que a construção do objeto do processo coletivo, e, por

conseguinte, a construção participada do mérito processual nas ações coletivas, dar-

se-á através da oportunização de implementação do amplo debate no espaço

processual, em que os protagonistas desse espaço de discussão são todos aqueles 62 É sabido que Carnelutti atribui ao conceito de lide uma importância teórica e sistemática fundamental tendo, assim, posto muito cuidado em dar-lhe uma conceituação exata, eis, pois, sua definição: lide é o conflito de interesses qualificado pela pretensão de um dos interessados e pela resistência do outro. A lide, assim conceituada, desdobra-se em duas subespécies: uma que é caracterizada pela contestação da pretensão de um dos interessados e a outra pela simples insatisfação daquela pretensão. Deve ficar bem claro que a lide, assim bem entendida, se distingue rigorosamente do processo, sendo que este constitui o continente e aquela o conteúdo. Por outro lado, a lide também não deve ser confundida com a antiga noção de controvérsia, produto das afirmações contraditórias de duas pessoas: para Carnelutti a divergência de afirmações, o contraste de vontades, representa apenas o sintoma, a manifestação visível, o elemento formal enfim da matéria viva constituída pelo conflito de interesses efetivos e concretos, interesses de dois sujeitos que pretendem satisfazer suas necessidades de conteúdo econômico, moral ou psicológico por meio de um bem e por isso lutam para subordinar o interesse alheio ao interesse público (LIEBMAN, 2001, p. 95).

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sujeitos que demonstram interesse jurídico na apresentação de temas correlatos à

pretensão inicialmente deduzida pela parte autora: essa é a proposta da Teoria das

Ações Coletivas como Ações Temáticas, desenvolvida pelo jurista e pesquisador

Vicente de Paula Maciel Júnior (MACIEL JÚNIOR, 2006, p. 178-182).

Julgar o mérito processual é manifestar-se acerca do objeto da demanda. È

desse contexto que se consegue visualizar a ínsita relação existente entre mérito,

lide e pedido. Os pedidos das partes (demandante e demandado) representam o

objeto do processo e a delimitação dos fundamentos da lide em juízo. Demandar

nada mais é do que a expectativa da parte autora ver reconhecida sua pretensão

(considera-se pretensão como a narração reivindicativa expressa na petição inicial).

O conflito de pedidos das partes (demandante e demandado) constitui a matéria

lógica do processo e o elemento formal de seu objeto, ao passo que a dedução e a

constituição do conflito de interesses em juízo representa o substrato material do

processo. “Este conflito de interesses, qualificado pelos pedidos correspondentes,

representa a lide, ou seja, o mérito da causa” (LIEBMAN, 2001, p. 102). A lide é um

conflito de interesses moldado em juízo a partir dos pedidos das partes formulados

ao juiz.

Liebman deixa explicito em suas proposições teórica que o mérito processual

é a lide63, ou seja, que a natureza dialética da lide constitui o fundamento essencial

ao entendimento e à construção do mérito processual. È o demandante o autor do

objeto do processo e, por conseguinte, o responsável por delimitar o objeto da lide

que norteará a análise do mérito processual pelo julgador

[...] contraste com a realidade de nosso tempo, a qual configura o processo como uma realidade jurídica de direito público, fundada no poder jurisdicional da autoridade judiciária, combinado com a iniciativa dos interessados. Esta iniciativa cabe ao autor; ele é que propõe o pedido e com isso suscita a lide e fixa o mérito da causa. A atitude do réu é, para esse efeito sem conseqüência. O máximo que ele pode fazer é contestar o pedido do autor, sem alterar-lhe os limites; e, por outro lado, a alegação de fatos e questões novas, embora estenda a matéria lógica a ser examinada, não modifica a identidade e os limites do pedido [...]. Naturalmente, o réu pode propor pedido próprio, que não seja a simples contestação ao pedido do autor; mas, então, seria ele, por sua vez, autor em reconvenção e nova lide seria introduzida no mesmo processo (LIEBMAN, 2001, p. 102-103)

63 Lide é, portanto, o conflito efetivo ou virtual de pedidos contraditórios, sobre o qual o juiz é convidado a decidir. Assim modificado, o conceito de lide torna-se perfeitamente aceitável na teoria do processo e exprime satisfatoriamente o que se costuma chamar de mérito da causa. Julgar a lide e julgar o mérito são expressões sinônimas que se referem à decisão do pedido do autor para julga-lo procedente ou improcedente e, por conseguinte, conceder ou negar a providência requerida (LIEBMAN, 2001, p. 103).

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O exercício da jurisdição e a atuação do juiz no processo, especificamente no

que tange à análise do mérito processual, é limitada64 ao que a parte autora alegou

em juízo, até porque “o juiz não poderá pronunciar-se sobre o que não constitua

objeto do pedido” (LIEBMAN, 2001, p. 99). Assim como Carnelutti, Liebman

desenvolve suas proposições teóricas a partir da estreita relação existente entre

processo e lide, relação essa que “repousa na implícita suposição de existir para

cada conflito de interesses surgido entre duas pessoas o correspondente processo

destinado a acolhê-lo em sua totalidade” (LIEBMAN, 2001, p. 97).

Sistematizar o enfrentamento do mérito processual pressupõe a observar os

requisitos legais de validade da relação processual a ser regularmente constituída

em juízo65 (pressupostos processuais, quais sejam, a competência do juiz; a

capacidade das partes ou a legitimidade ad processum; e a falta de fatos impeditivos

do processo em relação à determinada lide, tais como, a litispendência, a suspeição

e o compromisso arbitral), ou seja, “o processo deve ser proposto e conduzido com a

observância de uma série de regras de caráter formal que condiciona sua validade e

sua capacidade de progressão” (LIEBMAN, 2001, p. 104). Por isso, Liebman

trabalha as condições da ação (possibilidade jurídica do pedido, interesse

processual e legitimação) como requisitos que a lide deve possuir para ser julgada,

ou seja, para que o mérito processual seja julgado em juízo. Além disso, é

importante ressaltar que a coisa julgada e a perempção constituem fatos extintivos

da ação, ou seja, assim como as condições da ação, a ausência de fatos extintivos

são considerados requisitos extrínsecos ao mérito processual, cuja observância, na

concepção liebmaniana, viabilizará o exercício efetivo do direito de ação.

Na obra de Liebman o conceito de mérito processual encontra-se diretamente

vinculado à lide, o que significa dizer que a lide é pressuposto para o entendimento e 64 [...] o juiz está ligado e limitado em seus poderes por essa escolha do autor: ele não pode de ofício compor o conflito na forma que achar mais apropriada e sim se limitar a concordar, ou não, com a solução que lhe foi apresentada. A lei dá ao autor a liberdade, a iniciativa e a responsabilidade da escolha no modo de resolver a controvérsia, exigindo dele a indicação da forma concreta e determinada de tutela que pretende conseguir para satisfação de seu interesse. A tarefa do juiz é unicamente decidir se a solução proposta é conforme ou não com o direito vigente. (LIEBMAN, 2001, P. 98-99). 65 Fixado desse modo o conceito de mérito é claro que todas as questões por ele não abrangidas constituem questões prévias, cujo exame pode levar a uma destas duas conseqüências: ou à continuação do processo para o julgamento do mérito, ou à terminação do processo sem conhecimento do mérito (absolvição da instância em sentido amplo). [...] A lei estabelece, porém, algumas regras, cuja observância é necessária para que o processo se realize com as devidas garantias de imparcialidade, eficiência, ordem, respeito ao direito dos terceiro e assim por diante. A inobservância dessas regras produz a impossibilidade do julgamento da controvérsia. (LIEBMAN, 2001, p. 103-104).

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a análise do mérito processual. Ambos os institutos estão muito próximos e, por isso,

acabam recebendo a mesma conotação processual. Sabe-se que a sistematização

do entendimento teórico do mérito tem sido uma constante preocupação dos

estudiosos66 e processualistas, que em sua maioria compreende o mérito como a

composição da lide ou a análise das questões fático-jurídicas atinentes à relação

jurídica de direito material controvertida levada a juízo.

2.7 O Mérito Processual em Elio Fazzalari

Há aproximadamente duas décadas o processualista brasileiro Aroldo Plínio

Gonçalves publicou obra com o propósito de analisar criticamente as proposições

teóricas desenvolvidas pelo processualista italiano Elio Fazzalari, ressaltando-se

que, a partir desse momento, inúmeros outros estudiosos brasileiros passaram a se

debruçar na compreensão do processo na perspectiva fazzalariana. A teoria

proposta por Fazzalari pretendeu revisitar as construções cientificas desenvolvidas

pelos pandectistas, cujo entendimento sinalizou sempre para o processo como uma

relação jurídica67. O processo passa a ser visto como uma estrutura através da qual

a construção do provimento desenvolvia-se pelo contraditório, considerado uma

“estrutura dialética do processo, que comprova a autonomia deste em relação a seu

resultado” (FAZZALARI, 2006, p. 5). Pode-se afirmar, ainda, que o processo é uma

estrutura na qual se desenvolvem, segundo o ordenamento estatal, numerosas

atividades de direito público e algumas atividades de direito privado. Por atividade de

direito público ressalta Fazzalari os deveres do Estado o qual os executa sempre em

obediência à lei que lhe impõe a obrigação de faze-lo. A jurisdição é indicada como

66 A matéria de mérito que se constitui do equivocadamente chamado direito material (direito alegado e examinável no espaço-tempo do mérito) passa a ser reconhecida judicialmente através do processo que especifica a lide, nos limites do petitum, a que se referia Carnelutti, por indicar o ponto crítico (culminante-meridium) da litigiosidade entre as partes sobre um bem da vida jurídica – a res in judicium deducta, como já salientamos. Não havendo lide, claro fica também que o procedimento instaurado se torna inócuo, quando se pretenda, em juízo, solução de um conflito não demonstrado. Assim, a lide é condição do exame do mérito, embora a lide possa ser julgada antes do tempo merital. (LEAL, 2009, p. 135-136) (grifo nosso) 67 A profundidade com que a idéia do processo como “relação jurídica” arraigou-se na ciência do Direito Processual Civil pode ser apreendida na exposição de CÂNDIDO R. DINAMARCO:”A doutrina da relação jurídica processual nasceu na Alemanha há pouco mais de um século e tem hoje ampla aceitação em toda a literatura do mundo romano-germânico. Embora a idéia já andasse pela doutrina do processo, dela não se tinha senão mera intuição e foi apenas no século passado que se observou a sua existência – ressaltando-se que se trata de relação nitidamente distinta da de direito substancial, da qual difere, em seus pressupostos, em seu objeto e em seus sujeitos” (GONÇALVES, 2001, p. 71).

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atividade de administração da justiça, cujo dever é tutelar o interesse na repressão

às violações de lei.

Verifica-se a distinção entre processo e procedimento pelo critério lógico da

inclusão, uma vez que foi desenvolvida uma teoria do provimento, em que o

processo é visto como uma garantia das partes. Trata-se de uma teoria que supera o

dogmatismo hermético que trazia em seu bojo uma concepção autoritária de

processo até então vigente (processo como relação jurídica entre pessoas, em que o

julgador era legitimado a exercer, de forma centralizada, o poder de decidir os

pedidos inerentes à pretensão deduzida a partir de argumentos jurídicos e

metajurídicos – ou de cunho axiológico), tendo em vista que propõe a

democratização do discurso processual. Há a reconstrução do conceito de parte no

processo, não mais como pessoas sujeitas à autoridade do julgador, mas como reais

responsáveis pela construção do provimento: “a legitimação para agir, ligada ao

contraditório e vista como participação dos sujeitos no processo (como

contraditores), enquanto prováveis destinatários da eficácia do ato emanado”

(FAZZALARI, 2006, p. 5).

O conceito de norma, na obra de Fazzalari, precede o estudo do processo, ou

seja, para se chegar à noção de processo devemos partir do estudo da norma

jurídica. A norma caracteriza-se por ser um cânone de valoração de condutas68, ou

seja, “a norma jurídica pinça os elementos jurídicos que as condutas sociais

apresentam, isolando-as nessa perspectiva (nesse caso, a perspectiva jurídica)”

(FAZZALARI, 2006, p. 49). A norma jurídica tem como objetivo a valoração de

condutas como lícitas ou devidas69, e por isso “pode ser indicada como valor jurídico

a ser colocado ao lado de outros valores (os éticos, os científicos, os estéticos, e

assim por diante)” (FAZZALARI, 2006, p. 50). Dessa forma pode-se afirmar

[...] Sob o plano lógico-formal a norma consiste no padrão de valoração de um conduta, articulando-se: 1- pela descrição do comportamento do ato que

68 Abbiamo rilevato la natura della quale valore; qui accenniamo allá su strutura, Sul piano lógico-formale la norma consiste nel cânone di valutazione di uma condotta, il qualer si articola: nella descrizione Del comportamento, o atoot che dir si voglia (in essa sono i9ndicati i vari elementi, o requisiti, dell’atto; nel collegamento all’atto di uma delle qualifiche di lecito e di doveroso (FAZZALARI, 1996, p. 46-47) 69 A distinção entre elas se mantém pelo conteúdo que comportam, e não pela referibilidade a qualquer hierarquia, pois enquanto as normas materiais se destinam a valorar a conduta, qualificando-as como lícita e como ilícita, tendo como matéria as situações jurídicas de que decorrem direitos e deveres, as normas processuais disciplinam a jurisdição: o exercício da função jurisdicional e o instrumento pelo qual se manifesta o processo. (GONÇALVES, 2001, p. 49-50).

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se queira regular (nela os vários elementos e requisitos do ato são apontados); 2- pela ligação ao ato, de uma das qualificações de ilícito ou de obrigatório. Assim, por exemplo, o pagamento por parte do devedor é obrigatório; a cultivação do terreno por parte do proprietário é lícita. (FAZZALARI, 2006, p. 78).

A noção de ilicitude não está contida na norma em abstrato, visto que pode

ser auferida a ilicitude mediante a valoração de uma determinada conduta ou

comportamento frente a uma determinada situação concreta: “Ilícita é a qualidade

que pode ligar-se não à conduta abstrata contemplada pela norma, mas àquela

concretamente mantida por um sujeito, e de forma diferente do modelo de conduta

devida” (FAZZALARI, 2006, p. 78). Ilicitude para Fazzalari é uma qualidade que se

liga à conduta concreta contrária à norma e não à norma abstrata, pois o direito não

regulamenta o que é ilícito, mas sim o que é lícito. Diz Fazzalari que matar alguém

não é um ilícito normativo, pois o que se tem na consideração jurídica do homicídio é

o dever de não matar; portanto, a conduta lícita não matar. Nesse contexto

manifesta-se Aroldo Plínio Gonçalves

[...] enquanto Kelsen concentrou o estudo da juridicidade no ilícito, Fazzalari trabalha exatamente em linha contrária. O ilícito, para ele não é o cânone de conduta. A conduta é valorada pelo lícito, e o ordenamento jurídico é o complexo de normas, de faculdades, de poderes, de deveres, o complexo de licitudes. O ilícito nele comparece, mas como a conduta que consiste na inobservância do dever. (GONÇALVES, 2001, p. 155).

A aplicabilidade da norma jurídica condiciona-se à “indicação do pressuposto

em função do qual determinado comportamento é submetido à valoração jurídica”

(FAZZALARI, 2006, p. 78). Tal pressuposto, denominado pelo autor como

fattispecie, pode ser um fato ou um ato, tal como um acidente de trânsito que tem

como conseqüência o dever de indenizar do agente. É nesse sentido que Fazzalari

trabalha o conceito de ilicitude não como uma previsão na norma em abstrato, mas

como a valoração de uma situação concreta.

A norma jurídica não pode ser contemplada apenas como um “padrão de

valoração de uma conduta”70 (FAZZALARI, 2006, p. 81), tendo em vista que deve

70 A norma jurídica, do ponto de vista de sua estrutura lógica, é contemplada não apenas como “cânone de valoração de uma conduta”, isto é, como regra vinculante e exclusiva que expressa os valores da sociedade, mas também em relação à conduta por ela descrita, a que se liga a valoração normativa. Sendo o ato sinônimo de conduta (que tem no comportamento o seu conteúdo), dessa valoração resulta a qualificação do ato jurídico como lícito (o uso do próprio bem), ou como devido. A posição do sujeito em relação à norma permite falar em posição subjetiva, ou posição jurídica

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ser compreendida e estudada sob outros pontos de vista. Por isso, é inicialmente

importante analisar a conduta descrita pela norma e a valoração atribuída à mesma.

Outro ponto de vista relevante é a análise tanto do sujeito a que a norma se destina,

bem como a posição do respectivo sujeito com relação à norma, tendo em vista

poder imputar ao sujeito a valoração normativa pretendida. A posição do sujeito com

relação à norma pode ser descrita como uma faculdade (se a conduta é valorada

pela norma como lícita) ou como um dever (se tal posição é valorada como

obrigatória). É nesse contexto que se pode apreender o conceito de procedimento71

como sendo uma seqüência de normas, atos e posições subjetivas para, ao final,

valorar a conduta como lícita ou devida. “O ordenamento jurídico é freqüentemente

considerado do ponto de vista das normas; já o contrato, do ponto de vista dos atos;

a ação judicial, por sua vez, do ponto de vista das posições jurídicas” (FAZZALARI,

2006, p. 84). Se o procedimento é regulado de modo a viabilizar a participação a

participação de todos os interessados na construção do provimento em simétrica

paridade (contraditório), é possível extrair a noção de processo como a estrutura que

viabiliza a legitimação da instauração do espaço de debate e de interlocução de

todos os interessados na construção do provimento.

O Estado em todas as esferas de atuação e os órgãos públicos emitem

provimentos72 no exercício de suas respectivas atividades, ressaltando-se que os

provimentos são atos inerentes às atribuições de cada órgão público e através dos

quais os respectivos órgãos do Estado legislam, governam ou fazem justiça. Sempre

que a preparação do provimento decorrer da direta ingerência das partes em sua

construção em contraditório, tem-se o processo. É a análise do provimento que vai

indicar quando há processo e deverá haver o modelo processual (isto é, a

participação dos interessados, em contraditório, ao iter de formação do ato final)

sempre que a atividade a ser desenvolvida deva lidar com interesses em contraste.

subjetiva, e qualificar a conduta como faculdade ou poder, se é valorada como lícita, e como dever, se é valorada como devida (GONÇALVES, 2001, p. 106). 71 [...] o procedimento se verifica quando se está de frente a uma série de normas, cada uma das quais reguladora de uma determinada conduta (qualificando-a como lícita ou obrigatória), mas que enunciam como condição da sua incidência o cumprimento de uma atividade regulada por outra norma da série, e assim por diante, até a norma reguladora de um ato final. (FAZZALARI, 2006, p. 93). 72 Já se disse que os provimentos são – quanto ao seu conteúdo, emanações de vontade dos órgãos públicos, os quais, por sua vez, pertencem ao gênero mais amplo no qual estão compreendidas, como espécies distintas em razão da peculiaridade da disciplina, também as vontades de direito privado (ou seja, os negócios jurídicos) (FAZZALARI, 2006, p. 443).

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No que diz respeito ao provimento de mérito pode-se verificar na obra de

Fazzalari que o conceito de mérito processual ainda tem profunda relação com a

noção de lide e também ainda prevalece a ideologia da procedência do pedido do

autor da ação ser requisito imprescindível ao entendimento do mérito. Ressalta-se

que o provimento meritório em Fazzalari não mais decorre exclusivamente da

autoridade do magistrado (julgador), visto que a efetivação do contraditório como

pressuposto lógico da legitimação do espaço processual de construção participada

do provimento viabiliza a reconstrução e a revisitação do entendimento até então

preconizado pelos processualistas (Bülow, Chiovenda, Calamandrei, Carnelutti e

Liebman) de que o mérito decorre da legitimidade solitária do magistrado, cujo

exercício da jurisdição materializa-se no poder de julgar unilateralmente as

pretensões deduzidas. É oportuna a manifestação de Fazzalari

Quanto aos provimentos “de mérito” em sentido lato, podem-se qualificar como tais os provimentos que envolvem a cognição de mérito (isto é, o aspecto substancial deduzido na lide e aquele requerido ao juiz), sejam os que acolhem a demanda judicial, sejam os que a rejeitam. Em sentido estrito, são provimentos de mérito somente os jurisdicionais, ou seja, aqueles que no acolher da demanda invocam uma das medidas reparadoras que constituem a jurisdição (condenação, declaração, ou constituição): são elas que desenvolvem efeitos substanciais no patrimônio das partes. Por sua vez, a pronúncia de rejeição da demanda – a recusa de invocar aquela medida – deve considerar-se “de rito”, porque desenvolve efeitos somente no processo (FAZZALARI, 2006, p. 441-442).

Considerando-se que a compreensão do provimento73 em Fazzalari não

decorre apenas da noção de processo judicial, a construção do mérito processual

dar-se-á em qualquer processo (judicial, administrativo e legislativo, ou seja,

qualquer processo desenvolvido perante órgãos públicos) em que o contraditório74

73 O provimento implica na conclusão de um procedimento, pois a lei não reconhece sua validade, se não é precedido das atividades preparatórias que ela estabelece. Mas o provimento pode ser como ato final do procedimento não apenas porque este se esgota na preparação de seu advento. Pode ser concebido como parte do procedimento, como seu ato final, como o último ato de sua estrutura. É na possibilidade de se enuclearem os provimentos, em conjunto, segundo esta ótica, pela qual eles são o próprio ato final do procedimento, que FAZZALARI encontra a perspectiva própria para o estudo do processo (GONÇALVES, 2001, p. 112). 74 A orientação ainda dominante gira, porém, em torno da convicção de que o processo e procedimento pertencem ao mesmo gênero. Isso não só sob o perfil extrínseco, enquanto se trata de esquemas que se resolvem ambos em uma sucessão ordenada de atos, mas também sob o perfil intrínseco, enquanto obedeceriam ambos a um mesmo tipo de racionalidade. Nesse quadro, não se pode negar que o contraditório não representa uma necessidade “imanente” ao processo, porque não diz respeito diretamente ao momento fundamental do juízo. A sua função se exaure no garantir às partes a “paridade de armas” através de uma contraposição mecânica de teses e assim, em última análise, em um instrumento de luta. Voltam à mente as analogias entre jogo e processo, que implicam a reconstrução do contraditório como princípio lógico-formal (PICARDI, 2008, p. 141-142).

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efetivamente se instaura mediante a oportunização de todos aqueles que detém

interesse jurídico na construção do provimento poder participar do debate de todas

as questões fáticas e jurídicas que permeiam o conceito de demanda e que refletirão

diretamente no entendimento jurídico do mérito processual. Fazzalari entende que o

provimento de mérito é aquele através do qual o juiz adentra à análise das

especificidades fático-jurídicas que constituem a pretensão deduzida, porém, antes

de adentrar à análise e à construção do mérito o magistrado analisar a situação que

legitima a emanar o provimento jurisdicional. Ou seja, Fazzalari condiciona à análise

do mérito à regularidade do processo desenvolvido. Por isso, antes de enfrentar as

questões de mérito, o magistrado deverá averiguar a regularidade das questões que

validam a relação processual (tal como a competência do juízo), sabendo-se que a

análise de mérito da demanda não ocorrerá se o juiz constatar que as partes não

detém a legitimação para a análise da pretensão e a construção participada do

mérito processual em contraditório (o provimento de rejeição não é jurisdicional, em

sentido estrito, mas sim de rito)75. Considera-se provimento de rejeição ou de rito

aquele em que o magistrado deixa de apreciar o mérito da demanda (questões de

fato e questões de direito inerentes à pretensão deduzida) por ausência de

legitimação das partes em participarem diretamente da construção do mérito

processual. A noção de mérito processual em Fazzalari exclui a manifestação do juiz

acerca de questões estritamente de natureza processual, ou seja, todas as vezes

que for judicialmente constatada a existência de algum vicio que venha comprometer

a regularidade e a validade na constituição do processo o juiz deixará de exercer a

atividade jurisdicional e exercerá, apenas, a atividade judicial (atividade na qual o

magistrado deixará de conduzir a discussão da demanda juntamente com as partes,

considerando-se que a demanda materializa-se em questões de fato e de direito 75 A situação que o legitima a emanar o provimento jurisdicional (e legitima as partes a recebê-lo) é constituída não somente pela “situação substancial” – em sede civil: dever, direito, lesão, -0 mas também, e previamente, pela regularidade do processo desenvolvido, isto é, dos atos processuais criados até o momento. Por isso deve enfrentar, além das imprescindíveis “questões de mérito” (nos seus componentes de fato e de direito), também, e em primeiro lugar, aquelas de “rito” (obviamente, mesmo quando elas se refiram ao fato ou ao direito) se existem (poderá, em verdade, dar-se que não tenham sido levantadas questões processuais, nem o juiz se dê conta de suscita-las de ofício, ou mesmo que elas tenham sido já resolvidas no meio tempo: por exemplo, tendo a Corte de Cassação sentenciado em matéria de regulamento de jurisdição que o juiz de quo é competente), e, afinal, declarará estar legitimado ao provimento jurisdicional, o juiz a emanará (legitimação ativa ao provimento) e as partes se submeterão (legitimação passiva ao provimento); se, entretanto, no final ou no curso da cognição de que estamos falando, o juiz constatar não possuir aquela legitimação, deverá rejeitar a demanda (Como já dito e como ainda veremos, o provimento de rejeição não é jurisdicional em sentido estrito, mas sim de rito: constitui a recusa a emitir o provimento, isto é, de condenar, ou declarar, ou constituir) (FAZZALARI, 2006, p. 442-443).

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postas e trazidas pelas partes no espaço discursivo do processo constituído a partir

do contraditório).

Antes de analisar o mérito da demanda o juiz deve analisar se está investido

do dever de emitir o provimento que lhe foi demandado ou se terá que recusar o

provimento pelo fato de ter refutado a demanda por ausência de legitimação das

partes. Para isso, o juiz, antes de tudo, deverá reconstruir a situação de fato a partir

das alegações e provas produzidas pelas partes. O juízo de fato, pelo juiz, antecede

a análise do mérito processual, uma vez que é através dele que o magistrado afirma

ou nega a existência de fatos relevantes à demanda (o juízo de fato constitui na

análise da existência de fatos constitutivos, extintivos e impeditivos como alegações

inerentes à demanda judicial das partes). “O juízo de direito, isto é, a valoração dos

fatos com base nas normas substanciais” é posterior ao juízo de fatos (FAZZALARI,

2006, p. 456), ressaltando-se que as partes diretamente interessadas no provimento

participarão de forma direta da valoração dos fatos a partir do juízo de direito trazido

pelo juiz. “O juiz deve, pois, individuar e interpretar a norma jurídica substancial [...],

aplicá-la aos fatos verificados e deduzir as conseqüências. [...] É esse, como se

disse, o chamado juízo de direito” (FAZZALARI, 2006, p. 462-463). A interpretação

da norma a ser aplicada no julgamento do mérito da demanda pressupõe a

determinação da fatispécie legal, ou seja, da situação através da qual se dá a

valoração de um comportamento que viabilizará o juízo de direito, assim como o juiz

deverá se ater à análise da individuação do comportamento descrito pela norma.

Qualquer intérprete que exorbita o seu dever de apreender a norma se coloca fora e

contra o ordenamento constitucional italiano, que preza pelo controle da legalidade

no exercício da atividade jurisdicional (FAZZALARI, 2006, p. 481).

No direito processual civil italiano a situação substancial (que nada mais é do

que a situação de direito material que será discutida no decorrer do processo, e

decidida no ato final do provimento, ou seja, trata-se do direito subjetivo pretendido,

considerado como a posição de vantagem de um sujeito em relação a um

determinado bem) não é considerada condição prévia para a instauração do

processo jurisdicional, “pois a lei processual requer a exposição do pedido, mas não

a exposição dos fatos e do direito como condição para o processo, podendo ela ser

feita em fase posterior a sua inauguração” (GONÇALVES, 2001, p. 157). “O juiz

deve limitar-se a recusar a demanda por falta de pressuposto substancial da

pronúncia jurisdicional, o que não significa declarar ilícita a conduta não disciplinada

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no ordenamento: a sentença de rejeição é pronúncia de rito e não de mérito”

(FAZZALARI, 2006, p. 479-480). Fica clara a distinção proposta por Fazzalari: a

análise do mérito processual não ocorrerá sempre que a parte autora deixar de

demonstrar a sua legitimação76 (titularidade do Direito Subjetivo = posição de

vantagem de um sujeito com relação a um bem) na construção participada do

provimento mediante a implementação efetiva do contraditório. A ausência de

legitimação para o provimento decorrerá da não demonstração da situação

substancial, o que ensejará uma sentença de rejeição da demanda, não considerada

para Fazzalari uma sentença de mérito (o pressuposto para a sentença de mérito é a

existência, a análise e o debate processual da situação substancial = Direito

Subjetivo, debate esse em que será assegurado a todas as partes o direito de

participação na construção do mérito da demanda a partir do contraditório).

O processo cumpre a sua finalidade enquanto estrutura que prepara a

construção participada do provimento no momento em observa o procedimento em

contraditório77.

Na compreensão do autor o procedimento evidencia-se por uma seqüência de

normas, em que uma norma valora uma determinada conduta como lícita ou devida,

considerando-se que a respectiva conduta qualificará a conduta subseqüente. Na

seqüência normativa que compõe a estrutura do procedimento, a observância da

incidência da norma que prevê o ato que pode ser exercido ou deve ser cumprido é

pressuposto, é condição de validade, da incidência de outra norma que dispõe sobre

a realização de outro ato, sendo deste o pressuposto, assim até que o procedimento

se esgote atingindo seu ato final, quando se verificaram todos os pressupostos

normativamente previstos para a emanação do provimento (GONÇALVES, 2001, p.

111).

76 FAZZALARI resolveu a questão distinguindo a legittimazione ad agire e a legittimazione al provvedimento. Esta última não ocorrerá no caso em que se constata a inexistência do dever e, ou, direito subjetivo (ou que o autor e o réu não são, respectivamente, titulares do direito e do dever) e, conseqüentemente, da lesão ao direito. Entretanto, o processo existiu, como existiu a ação, como série de posições subjetivas das partes que o acompanha do princípio até o momento do provimento (GONÇALVES, 2001, p. 160). 77 Como exposto, FAZZALARI caracterizou os provimentos como atos imperativos do Estado, emanados dos órgãos que exercem o poder, nas funções legislativa, administrativa ou jurisdicional. O procedimento, como atividade preparatória do provimento, possui sua especifica estrutura constituída da seqüência de normas, atos e posições subjetivas, em uma determinada conexão, em que o cumprimento de uma norma da seqüência é pressuposto da incidência de outra norma e da validade do ato nela previsto (GONÇALVES, 2001, p. 111-112).

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Já o processo é visto como uma das espécies do procedimento, cuja distinção

decorre do tratamento dispensado aos partícipes que sofrerão efeitos do ato final,

ressaltando-se que tal participação no âmbito procedimental deverá garantir às

partes posição de simétrica paridade (contraditório)78. A participação do juiz na

construção do provimento não se desenvolve em contraditório entre as partes, tendo

em vista que entre o juiz e as partes não existe interesses em disputa: “a

participação em contraditório79 se desenvolve entre as partes, porque a disputa se

passa entre elas, elas são as detentoras de interesses que serão atingidos pelo

provimento” (GONÇALVES, 2001, p. 121). Mesmo não tendo interesse direto na

demanda, o juiz é o responsável pela construção, em conjunto com as partes

legitimadas ao provimento, do mérito processual. Não se pode deixar de ressaltar

que a noção de mérito processual em Fazzalari decorre do entendimento do autor

acerca do Direito Subjetivo, considerado o norte do debate da demanda judicial.

2.8 As contribuições científicas da doutrina brasil eira no estudo do mérito

processual

Na exposição de motivos do Código de Processo Civil brasileiro de 1973

verifica-se que no Código de Processo Civil brasileiro de 1939 o vocábulo lide ora é

utilizado para designar o processo (artigo 96 do Código de Processo Civil brasileiro

de 193980) ora o mérito da causa, tal como ocorre no artigo 28781, no artigo 684,

78 Tale struttura consiste nela partecipazione dei destinatari degli effetti dell’atto finale allá fase preparatória del medesimo; nella simmetrica parità delle lo posizioni. (FAZZALARI, 1996, p. 83). 79 O contraditório é a garantia da participação das partes, em simétrica igualdade, no processo, e é garantia das partes porque o jogo de contradição é delas, os interesses divergentes são delas, são elas “os interessados e os contra-interessados” na expressão de FAZZALARI, enquanto, dentre todos os sujeitos do processo, são os únicos destinatários do provimento final, são os únicos sujeitos do processo que terão os efeitos do provimento atingindo a universalidade de seus direitos, ou seja, interferindo imperativamente em seu patrimônio. O contraditório não é o “dizer” e o “contradizer” sobre matéria controvertida, não é a discussão que se trava no processo sobre a relação de direito material, não é a polêmica que se desenvolve em torno dos interesses divergentes sobre o conteúdo do ato final. Essa será a sua matéria, o seu conteúdo possível. O contraditório é a igualdade de oportunidade no processo, é a igual oportunidade de igual tratamento, que se funda na liberdade de todos perante a lei. É essa igualdade de oportunidade que compõe a essência do contraditório enquanto garantia de simétrica paridade de participação no processo (GONÇALVES, 2001, p. 127). 80 Artigo 39 do Código de Processo Civil brasileiro de 1939: Ordenada a citação, ficará suspenso o curso da lide. § 1º A citação do alienante far-se-á:a) quando residente na mesma comarca, dentro de oito (8) dias, contados do respectivo despacho;b) quando residente em comarca diversa, ou em lugar incerto, dentro de trinta (30) dias.(grifo nosso). § 2º Se a citação não se fizer no prazo marcado, a acção prosseguirá contra o réu, não lhe assistindo, em caso de má fé, direito a ação regressiva contra o alienante. BRASIL. Decreto-lei 1608, de 18 de setembro de 1939. Disponível: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=12170. Acesso: 01 mai. 2012.

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inciso IV82 e no 687, §2º83, todos do Código de Processo Civil brasileiro de 1939. Já

o Código de Processo Civil brasileiro de 1973 deixa explícito que a utilização da

palavra lide é para designar especificamente o mérito da causa, haja vista que o

julgamento, pelo juiz, do conflito de interesses qualificado por uma pretensão

resistida, mediante o qual o juiz acolhe ou rejeita o pedido, dando razão a uma das

partes e negando à outra, constitui uma sentença definitiva de mérito. Nesse

contexto pode-se afirmar que a lide é o objeto principal do processo e nela se

exprimem as aspirações em conflito de ambos os litigantes.

Ao longo de toda a legislação processual brasileira, especificamente o direito

processual civil, verifica-se que a expressão mérito é constantemente utilizada para

designar a lide, a causa de pedir (próxima e remota), a pretensão, objeto da

demanda, ou seja, toda construção que o direito brasileiro desenvolveu acerca do

mérito processual é no sentido de limitar sua compreensão à matéria ou as questões

postas e propostas pelas partes na relação processual. A concepção que se tem

sobre o mérito processual restringe-se à matéria ou as questões fático-jurídicas

trazidas pelas partes (autor e demandado) para a relação processual e que servirão

de parâmetro e de referencial para o julgamento dos pedidos.

Trata-se de um entendimento jurídico em que tanto o legislador quanto os

doutrinadores não se preocupam em diferenciar teoricamente o mérito processual da

matéria ou das questões de mérito. Isso decorre do fato do conceito do mérito

processual restringir-se à noção de matéria de mérito, ou seja, daquelas questões

postas e trazidas pelas partes (autor e demandado) para a relação processual, e que

servirão de parâmetro para o julgamento da lide.

Esse debate científico é extremamente relevante para a presente proposta de

pesquisa, tendo em vista que se busca demonstrar, ao longo de todo trabalho, que o

instituto do mérito não pode se limitar à noção de que o mérito processual constitui-

se apenas pelas matérias ou questões fáticas e jurídicas trazidas pelas partes na

81 Art. 287. A sentença que decidir total ou parcialmente a lide terá força de lei nos limites das questões decididas BRASIL. Decreto-lei 1608, de 18 de setembro de 1939.. 82 Art. 684. Quando a medida for preparatória, será proposta por meio de petição escrita, que indicará:IV – o objeto da lide principal e as razões que a determinam. BRASIL. Decreto-lei 1608, de 18 de setembro de 1939. 83 Art. 687. As medidas preventivas só terão eficácia enquanto pendente a ação, podendo ser revogadas ou modificadas.§ 2º Se a sentença que resolver a lide transitar em julgado, cessará de pleno direito a eficácia da medida, embora não expressamente revogada. BRASIL. Decreto-lei 1608, de 18 de setembro de 1939..

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105

relação processual. O que se pretende demonstrar e construir ao longo dessa

pesquisa é o entendimento de que o mérito processual é uma conseqüência do

debate e da definição participada das questões de mérito levantadas pelo juiz e por

todas as partes juridicamente interessadas no provimento final. Por isso, torna-se

necessário desconstruir a concepção liberal-civilista de que o mérito limita-se à

definição das matérias e das questões a serem apreciadas em juízo unilateralmente

pelo julgador, para passarmos a compreendê-lo como um procedimento bifásico em

que, num primeiro momento todas as partes juridicamente interessadas, e também o

juiz, possam definir, até a fase de saneamento, quais serão as questões fático-

jurídicas que integrarão o objeto da demanda e, em seguida, na segunda fase do

procedimento (após a fase saneadora), viabilizar o amplo debate de das questões

postas por todos aqueles legitimados ao provimento final. Essa é considerada, em

linhas gerais, a proposta e a contribuição científica pretendida com a presente

pesquisa, que visa demonstrar que o mérito processual é um procedimento através

do qual os legitimados ao provimento final têm a oportunidade de definir e discutir

amplamente todas as questões inerentes e vinculadas, direta ou indiretamente, à

pretensão inicialmente deduzida em juízo.

A atual sistemática proposta pelo Código de Processo Civil brasileiro vigente

não oportuniza a construção participada do mérito processual, tendo em vista que

limita às partes (autor e demandado) o direito de trazer aos autos as questões que

integrarão a lide, não oportunizando maior amplitude de participação de todos

aqueles sujeitos que teriam legitimidade de participar da construção do provimento

final. Além disso, o legislador do Código de Processo Civil conferiu exclusividade ao

julgador no que tange à atribuição legal de proferir o despacho saneador, a fim de

unilateralmente definir quais serão as questões relevantes à formação do mérito da

demanda. Isso implica dizer que após o despacho saneador a análise e a

interpretação das questões de mérito é uma prerrogativa exclusiva do julgador, sem

que as partes possam influir diretamente na construção da sentença de mérito. O

processo intelectivo de construção do mérito processual é uma prerrogativa

exclusiva do julgador, que se utilizando do livre convencimento motivado, decide o

caso concreto da forma que melhor lhe convier.

Para o processo civil brasileiro o julgamento de mérito é uma atividade

intelectiva exclusiva do juiz, uma vez que as partes ficam eqüidistantes do contexto

decisório,até porque são vistas como meras coadjuvantes.

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A maior demonstração de que no processo civil o mérito processual está

intrinsecamente ligado à lide encontra-se na distinção teórica proposta e existente

entre defesas de mérito (defesa de mérito direta84 e defesa de mérito indireta85) e

defesa processual86. A defesa de mérito é aquela em que a parte demandada

apresenta fatos extintivos, impeditivos ou modificativos, a fim de desconstituir as

questões e a matéria fática e jurídica alegada pelo autor da ação, mediante a

demonstração e a utilização de meios legitimamente lícitos e utilizados pelo

demandado em sua defesa.

A matéria e as questões que integrarão o mérito são definidas no processo a

partir das alegações na exordial e também pelo que o demandado alegou na sua

defesa. O direito processual civil brasileiro vigente é claro ao explicitar que todas as

questões de mérito são delimitadas quando da propositura da ação e no momento

da apresentação da defesa. Isso deixa claro que a regra geral adotada no direito

pátrio é que a delimitação da matéria de mérito é uma prerrogativa exclusiva do

autor da ação e do demandado, excluindo-se qualquer possibilidade de um terceiro

a relação jurídico-processual poder participar direta e efetivamente da definição da

matéria de mérito que integrará a pretensão deduzida.

Da mesma forma verifica-se quanto à análise e a apreciação da matéria de

mérito proposta pelas partes. O julgamento do mérito processual é uma prerrogativa

exclusiva do julgador, que é a pessoa detentora da legitimidade de analisar e

valorar, com exclusividade, todas as provas e as questões postas e trazidas pelas

partes aos autos. Não se pretende, aqui, excluir a participação do juiz no processo.

84 Deixa-se claro, contudo, que a defesa de mérito direta não se dirige apenas contra o fato alegado, podendo também se voltar contra o efeito jurídico que o autor deseja retirar desse fato. De modo que o réu pode simplesmente contestar o fato constitutivo, mas também negar o efeito jurídico que o autor pretende extrair do fato afirmado, sendo que em ambas as hipóteses estará exercendo defesa de mérito direta (MARINONI, 2006, p. 324). 85 Contudo, o réu pode, adotando o principio da eventualidade, articular defesa de mérito indireta – em que o fato constitutivo poderia ser dito “implicitamente aceito” – e, ao mesmo tempo, apresentar defesa de mérito direta – negando expressamente o fato constitutivo. Nesse caso, o fato expressamente negado na defesa direta, considerando o principio da eventualidade, na realidade não é admitido na indireta. O fato é sempre negado, afirmando-se que, na eventualidade de não ser aceita a defesa indireta, deverá ser acolhida a direta, uma vez que a afirmação de fato do autor não é verdadeira. Assim, por exemplo, o réu pode alegar que o crédito afirmado pelo autor, caso existisse, estaria prescrito, situação em que o réu alega a prescrição (defesa indireta) mas não admite o fato constitutivo (defesa direta) (MARINONI, 2006, p. 325). 86 Não há como pensar me incompatibilidade entre a defesa processual e a defesa de mérito, ou entre a defesa de mérito indireta e a defesa de mérito direta que nega os efeitos jurídicos que o autor pretende extrair do fato que alegou. O real problema se apresenta quando se pensa na alegação de fato impeditivo, modificativo ou extintivo que possa ser incompatível com a negação de fato constitutivo (MARINONI, 2006, p. 325).

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O que se busca é demonstrar que o juiz deve ser visto como mais um sujeito

interessado na construção participada do provimento, assim como ocorre com todos

os demais sujeitos legitimamente interessados na pretensão deduzida em juízo. “O

processo, nessa dimensão, assume a condição de via ou conduto de participação, e

não apenas de tutela jurisdicional (MARINONI, 2006, p. 431).

A formação participada do mérito processual somente se torna viável e

plausível mediante a superação da concepção hermética e autocrática do processo

visto como um instrumento da jurisdição. O processo constitucional democrático e a

jurisdição devem ser vistos como instituições que buscam a implementação dos

direitos fundamentais mediante a participação ampla de todos os interessados na

construção dos provimentos.

A racionalidade jurídica deve ser vista como o referencial para o exercício

democrático da jurisdição, retirando das mãos do julgador a exclusividade no que

tange à valoração da matéria e das questões de mérito que integram o cerne da

relação processual.

Alexandre Freitas Câmara afirma que “o saneamento do processo é, em

verdade, uma decisão interlocutória que nada saneia, mas tão-somente declara

saneado o processo, ou seja, o declara livre de quaisquer vícios que possam impedir

seu regular prosseguimento” (2005, p. 366). Na realidade o despacho saneador é o

momento em que o julgador fará uma análise preliminar da observância de todos os

requisitos de validade e de existência da relação processual, considerado o requisito

indispensável à apreciação e o julgamento da matéria de mérito na fase instrutória.

O posicionamento do autor em comento denota claramente o entendimento

preconizado pelo legislador do direito processual civil brasileiro, qual seja, o juiz é o

legítimo titular do exercício da jurisdição e autorizado a controlar e a analisar todas

as questões extra-meritórias (condições da ação e pressupostos processuais) e

propriamente meritórias, cabendo as partes o direito de apenas alegar e trazer aos

autos as questões, as matérias e as alegações consideradas relevantes e conexas

com a pretensão inicialmente deduzida em juízo.

Ao contrário do que se discute no presente trabalho de pesquisa, no processo

civil brasileiro vigente não podemos falar em formação participada do mérito, tendo

em vista que inexiste discussão ampla das questões de mérito trazidas aos autos,

não é oportunizada a ampla legitimidade de todos os interessados trazerem aos

autos questões de mérito além daquelas suscitadas pela parte autora e demandada

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e, também, pelo fato da análise das questões de mérito alegadas ser uma

prerrogativa exclusiva do juiz, que não se vincula àquilo que foi alegado pelas

partes, possuindo ampla liberdade de análise de acordo com o principio do livre

convencimento motivado.

Novamente ressalta-se que a proposta do presente trabalho científico não é,

em momento algum, excluir a participação do juiz no ato de decidir e julgar, nem

tampouco deslegitimá-lo no que tange ao exercício da jurisdição. O que se busca é

democratizar o exercício constitucionalizado da jurisdição mediante o entendimento

de que o juiz é mais um interessado em participar isonomicamente da discussão das

questões de mérito e a decidir conforme os critérios e os fundamentos que nortearão

a ampla discursividade da matéria de mérito. A formação participada de mérito que

se propõe no presente trabalho é justamente a oportunidade de todos (juiz,

Ministério Público e todos os sujeitos juridicamente interessados da pretensão)

poderem levantar e propor questões e matéria de mérito, além de debatê-las

amplamente no âmbito processual.

O jurista mineiro Ernane Fidélis dos Santos afirma que o mérito processual

integra-se pela matéria e pelas questões postas e propostas pelo autor e pelo

demandado na relação processual, uma vez que o julgamento do mérito consiste na

análise dessas questões pelo juiz para, assim, poder reconhecer ou não o pedido da

parte autora (2007, p. 163). Por isso deixa claro em sua obra que “o mérito é a

matéria de fundo do Processo de Conhecimento e do Cautelar. No Processo de

Conhecimento é o próprio litígio, a lide que constitui seu objeto” (SANTOS, 2007, p.

163).

A exposição das proposições jurídico-científicas do processualista em análise

evidencia que o conceito de mérito processual adotado pelo processo civil brasileiro

está intrinsecamente vinculado à noção de lide e de matéria de fato e de direito que

integra as questões suscitadas pelas partes em juízo (autor e demandado). Deixa

claro em sua obra que o julgamento do mérito da lide deverá ocorrer nos limites

daquilo que as partes pediram expressamente em juízo, momento em que

novamente ratifica o entendimento de que o mérito limita-se às questões fáticas e

jurídicas alegadas pelas partes. O próprio conceito de sentença extra e ultra petita

demonstra que o mérito processual fica adstrito àquilo que a parte autora alegou na

exordial e que o demandado propôs em sua defesa. Oportunizar que outras pessoas

interessadas, além da parte autora e da parte demandada, possam, no curso do

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processo civil (até a fase saneadora), apresentar alegações ou trazer questões

conexas, porém distintas, àquelas inicialmente alegadas e propostas na fase

postulatória, certamente acarretará a nulidade do provimento em razão da

concepção hermética de que o processo e a definição da matéria de mérito é uma

prerrogativa exclusiva das partes (autor e demandado) e do juiz. O que se propõe ao

longo de toda essa pesquisa é revisitar esse entendimento adotado pelo processo

civil brasileiro no que concerne à formação do mérito processual de maneira mais

ampla, a fim de oportunizar e garantir que todos os interessados sejam inseridos no

lócus processual da discursividade efetiva da pretensão deduzida em juízo.

O jurista Cássio Scarpinella Bueno alerta a comunidade jurídica, a partir das

colocações de José Frederico Marques, para a necessidade de compreensão do

processo civil sob a ótica e o enfoque da constitucionalidade democrática, motivo

esse que justifica a utilização, pelo autor em comento, da terminologia “modelo

constitucional do direito processual civil” (2008, p. 158-159). Certamente a releitura

do processo civil vigente a partir do paradigma proposto pela Constituição Federal

de 1988 causa reflexos diretos no entendimento critico do tema mérito processual.

O modelo de processo proposto pelo legislador constituinte supera e se opõe

àquele adotado pelo legislador do Código de Processo Civil brasileiro de 1973, haja

vista que Alfredo Buzaid instituiu no Brasil a concepção de processo através da qual

o juiz é o legitimado a conduzir solitariamente a marcha processual, exercendo a

jurisdição como uma atribuição inerente ao seu cargo, sem permitir qualquer

ingerência ou participação (direta ou indireta) das partes juridicamente interessadas

na construção do provimento final. Tal afirmação se justifica no sentido em que o

juiz, no ato de julgar, não fica adstrito necessariamente àquilo que as partes

alegaram e provaram ao longo do procedimento. Pelo principio do livre

convencimento motivado o julgador tem legitimidade e liberdade no ato de julgar,

podendo valorar provas e decidir conforme suas convicções, dispensando-se a

análise e o enfrentamento de todas as alegações fáticas e de todas as teses

jurídico-legais propostas pelas partes em juízo. Pela interpretação dogmática da

concepção de processo vigente no Brasil e adotada pelo Código de Processo Civil

brasileiro de 1973, não constitui violação dos princípios do contraditório, da ampla

defesa e do devido processo legal o fato do julgador se eximir de enfrentar, de se

manifestar e de fundamentar todas as alegações e questões trazidas pelas partes

para o processo. O juiz tem o dever de julgar, apreciar e decidir de forma

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fundamentada apenas aquelas questões consideradas por ele relevante no

julgamento do mérito processual.

A constitucionalização do processo civil brasileiro somente será viável, sob o

ponto de vista democrático, se houver uma profunda revisitação teórica do modelo

de processo civil vigente no Brasil, especificamente no que tange ao tratamento e

aos critérios utilizados como referenciais ao entendimento critico do mérito

processual e das questões de mérito.

A base teórica de todo processo constitucional encontra-se no principio

participativo, que em termos pragmáticos consiste no direito assegurado a todas as

partes interessadas juridicamente no provimento de poderem participar efetivamente

da sua construção, por meio da proposição e do direito de análise das questões ora

alegadas e trazidas nos autos. A participação no processo não se materializa

apenas no direito das partes poderem alegar todas as questões de mérito por ela

consideradas relevantes e conexas com a pretensão inicialmente deduzida em juízo.

O efetivo direito de participação no processo se materializa pelo direito de alegação

das partes e pelo dever do julgador apreciar e a se manifestar, de forma jurídico-

constitucionalmente fundamentada, acerca de cada questão de mérito levantada e

proposta pelas partes.

Os princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal

são corolários do principio da participação no processo, haja vista que constitui

dever do julgador dar oportunidade a todos os interessados na pretensão

inicialmente deduzida de poderem trazer para o processo todas as questões de

mérito correlatas e conexas àquela inicialmente deduzida pela parte que propôs a

ação. Além disso, constitui dever do magistrado proporcionar o direito de todos os

interessados debaterem, de forma ampla e isonômica, todas as questões de mérito

ora suscitadas e trazidas para os autos por todos os sujeitos legitimamente

autorizados a participarem na formação do mérito processual.

O principio da obrigatoriedade de fundamentação jurídico-legal também é

considerado corolário do principio da participação no modelo de processo civil

constitucional, haja vista que cabe ao magistrado, no julgamento do mérito da

pretensão deduzida, enfrentar, analisar, se posicionar, discutir e apreciar todas as

questões de mérito decorrentes de alegações fáticas e jurídicas propostas e trazidas

aos autos pelas partes interessadas no provimento final. A omissão do magistrado

quanto à análise de qualquer questão de mérito proposta e levantada nos autos

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pelas partes interessadas no provimento constitui verdadeiro cerceamento de

defesa, vedado pela constitucionalidade democrática brasileira.

O jurista Alexandre Freitas Câmara descreve muito bem o paradigma

autocrático adotado pelo processo civil brasileiro, que concentra nas mãos do

magistrado o poder de autorizar ou não a participação das partes no processo, além

de possuir e exercer o poder de conduzir unilateralmente toda a instrução

processual87. Esse modelo de processo vigente no Brasil causa reflexos diretos no

que tange ao entendimento do tema “mérito processual”, haja vista que o julgamento

de mérito passa a ser visto como uma prerrogativa exclusiva do magistrado e reflexo

do que o julgador considera ou não relevante na análise do caso concreto. A

legitimidade de conduzir a instrução processual confere ao juiz o poder de definir

quais questões de mérito são consideradas por ele relevantes para o caso concreto,

muitas vezes ignorando ou desconsiderando outras questões relevantes levantadas

ou suscitadas pelas partes interessadas ao longo do procedimento.

Quando o magistrado deixa de apreciar uma ou mais questão de mérito

alegada pelas partes, não se preocupando sequer em fundamentar sua recusa,

ocorre a negativa da jurisdição, que no Estado Democrático de Direito deve ser vista

como um direito assegurado a todos indistintamente de poder propor, debater e

argumentar em juízo todas as pretensões as quais são titulares. A negativa da

jurisdição materializa-se em diversas situações, tais como: a) a supressão do direito

das partes alegarem questões de mérito consideradas relevantes ao caso concreto e

a pretensão inicialmente deduzida em juízo, ou seja, pela negativa do magistrado

em não permitir que todas as partes juridicamente interessadas na pretensão

deduzida possam participar da definição das questões de mérito; b) a retirada do

direito das partes juridicamente interessadas debaterem amplamente as questões de

mérito levadas aos autos; c) a dispensa do magistrado em não ter o dever de se

posicionar e de fundamentar todas as questões de mérito trazidas aos autos pelas

partes interessadas, além de configurar verdadeira negativa de jurisdição, acarreta

às partes interessadas o cerceamento de defesa e o absoluto abandono do modelo

de processo preconizado pela Constituição Federal de 1988.

87 O juiz tem, no processo civil brasileiro, o poder de conduzir a instrução do processo. Tal poder (que se desdobra em vários outros poderes menores, como o de determinar as provas que serão produzidas, conduzir sua produção e valorar cada prova produzida, por exemplo),está descrito, fundamentalmente, em dois dispositivos do Código de Processo Civil: os arts. 130 e 131 (CÂMARA, 2008, p. 30).

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Por isso, pensar o processo civil sob a égide do constitucionalismo

democrático pressupõe inicialmente implementar, de forma efetiva, o principio da

participação, principio esse que deve ser visto como um meio legitimo de garantia de

formação participada do mérito mediante a proposição e o debate das questões de

mérito por todos os sujeitos juridicamente interessados na pretensão. Em sentido

absolutamente contrário a tal entendimento está o posicionamento do jurista

Alexandre Freitas Câmara, para quem o “processo, instrumento de realização da

jurisdição, é um microcosmo do Estado a que serve” (CÂMARA, 2008, p. 35). Na

seqüência do raciocínio, o autor em comento afirma que “é ponto pacífico que só há

democracia (e, portanto, Estado Democrático de Direito), onde haja legitimidade no

exercício do poder” (CAMARA, 2008, p. 35).

Pensar o Estado Democrático de Direito na perspectiva teórica que preconiza

a intrínseca relação existente entre poder e direito é certamente um equivoco, haja

vista que a própria noção processualizada de democracia trabalha os Direitos

Fundamentais sob a égide do principio da participação, ou seja, da legitimidade dos

interessados no provimento poderem ser inseridos no amplo debate critico e jurídico

das questões de mérito de delimitam o objeto da demanda.

Inicialmente pretende-se demonstrar que os autores brasileiros, em sua

grande maioria, reproduzem em suas obras o modelo de processo civil adotado e

proposto pelo legislador do Código de Processo Civil de 1973 que, conforme

exposto, traz um modelo de processo incompatível com a constitucionalidade

democrática, justamente por não viabilizar a ampla participação dos sujeitos

interessados na definição, na proposição e na ampla discursividade das questões de

mérito que delimitam o objeto da demanda, inviabilizando, por conseguinte, qualquer

tentativa no sentido de alcançar a formação participada do mérito processual.

2.9 A concepção individualista do mérito processual no Código de Processo Civil de 1973

O delineamento de toda teoria geral do processo civil brasileiro decorre da

ideologização de que o processo é uma sucessão lógica de preclusões88, cuja

88 O fenômeno da preclusão, estudado e sistematizado por Giuseppe Chiovenda, assume função muito relevante no processo civil. A partir da classificação do mestre italiana, considerada sob os aspectos temporal, lógico e consumativo, Antônio Alberto Alves Barbosa a definiu como o instituto que impõe a irreversibilidade e a auto-responsabilidade no processo e que consiste na impossibilidade da prática de atos processuais fora do momento e da forma adequados,

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análise e enfrentamento do mérito da pretensão condiciona-se à observância e ao

preenchimento dos requisitos legais extrínsecos e que tangenciam a noção de

mérito processual (condições da ação e pressupostos processuais89).

O mérito processual decorre de uma construção de natureza individual que

perpassa pelas alegações fáticas e jurídicas apresentadas pelo demandante na

petição inicial e pelo demandado na defesa. Verifica-se que a construção do mérito

no processo civil depende da atuação das partes que se encontram em juízo,

especificamente da atuação do demandante e do demandado, que se legitimam na

delimitação da matéria de mérito até o momento processual do despacho saneador,

que é quando o magistrado unilateralmente aprecia as suas alegações e define qual

das questões postas comporá a matéria de mérito a ser discutida em juízo.

No processo civil a participação do demandante e do demandado na

construção do mérito processual é indireta, tendo em vista que não possuem a

garantia de que todas as questões postas em juízo comporão a matéria de mérito

que delimitará os contornos jurídicos da pretensão e da decisão a ser proferida. Será

o magistrado o legitimado a definir as questões alegadas pelas partes e que

considera relevantes para integrar a matéria de mérito. Não é possível vislumbrar a

possibilidade de construção participada do mérito processual no direito processual

civil vigente, tendo em vista que a atuação do magistrado exclui qualquer forma de

participação direta das partes interessadas na construção do mérito processual, haja

vista que a delimitação da matéria e das questões que comporão o mérito é uma

prerrogativa inerente ao conceito de jurisdição, considerada o poder-dever do

Estado Juiz de dizer o direito mais adequado ao caso concreto. È nesse sentido que

se manifesta Ernane Fidélis dos Santos

contrariamente à lógica, ou quando já tenham sido praticados válida ou invalidamente. A preclusão, assim, garante ordem, coerência e direcionamento aos atos processuais, impedindo avanços e recuos que tumultuem a seqüência das fases procedimentais. É o impulso que movimento o encadeamento dos atos processuais e assegura celeridade na resolução dos conflitos. Incide tanto em relação às faculdades e ônus processuais das partes como em relação às questões decididas pelo juiz (CPC, art. 471). Há, ainda, a preclusão pro iudicato, que produz efeitos externos ao processo (LUCON; GABBAY, 2007, p.83). 89 As matérias de processo e de ação, na lei brasileiro, quando ausentes, levam a resultados diversos, pois a matéria de processo, se ausente e inconvalidável em qualquer um de seus aspectos, provoca a extinção do processo, enquanto a matéria de ação, em igual circunstância, enseja a carência da ação com extinção do processo. O certo é que, quando o juiz aprecia o mérito, porque presentes os elementos formativos ou funcionais do procedimento, fala-se que a sentença que julgou o pedido é de procedência ou improcedência (sentença de mérito) e, se transitada em julgado, é sentença. definitiva, enquanto a sentença transitada que só julgou matéria de processo e (ou) matéria de ação é sentença terminativa – extingue o processo ou profere a carência da ação e extingue o processo. (LEAL, 2009, p. 136) (grifo nosso)

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Estabelecidas, assim, as finalidades específicas do Estado, no exercício da jurisdição, podemos defini-la como o poder-0dever do Estado de compor os litígios, de dar efetivação ao que já se considera direito, devidamente acertado, e de prestar cautela aos processos em andamento ou a se instaurarem, para que não percam sua finalidade prática (2007, p. 09).

Verifica-se, na citação acima mencionada, a intrínseca relação estabelecida

entre jurisdição, lide e mérito processual. A fundamentação teórica de origem

romano-germânica do processo civil brasileiro parte da pressuposição de que a

matéria de mérito a ser apreciada pelo julgador decorre de uma relação jurídica

litigiosa entre as partes. É por isso que temos a dificuldade de identificar a matéria

de mérito nos procedimentos especiais de jurisdição voluntária, haja vista a ausência

de questões litigiosas entre as partes a ensejar a definição da controvérsia suficiente

ao entendimento e a visualização da matéria de mérito no âmbito processual.

O despacho saneador90 é o marco processual para o levantamento e a

definição da matéria e das questões que integrarão o mérito da demanda, assim

como a oportunidade que o julgador terá de analisar a existência de eventuais vícios

processuais que venham a comprometer a validade jurídica da fase instrutória. É

nesse momento processual que o magistrado analisará as preliminares, a existência

de eventuais questões de ordem publica de oficio ou que foram suscitadas pelas

partes e que poderão comprometer a análise do mérito da pretensão. “A atividade

saneadora do juiz é constante no processo91. A qualquer momento, inclusive no

despacho inicial, deve o juiz conhecer de matéria referente aos pressupostos

processuais e às condições da ação” (SANTOS, 2007, p. 492).

O despacho saneador é uma realidade no processo civil brasileiro desde a

vigência do Código de Processo Civil de 193992, contexto histórico em que foi

90 Um dos institutos que mais sofreu com a reforma do Código de Processo Civil foi o do despacho saneador, hoje designado saneamento do processo. No sistema antigo, o despacho saneador, disciplinado no art. 294 do CPC/39, prestava-se, em profundidade, para sanear o processo, para regularizá-lo, para escoimá-lo dos vícios que o maculam. Era a oportunidade adequada para que o juiz pronunciasse as nulidades insanáveis e mandasse suprir as sanáveis, para que verificasse a presença das condições da ação, bem como designasse a audiência de instrução e julgamento e deferisse o pedido para a realização de provas (ALVIM, 2007, p. 424). 91 Como a atividade saneadora é constante no processo, cumpridas as providências preliminares ou sendo elas indispensáveis, pode o juiz decretar a extinção do processo sem julgamento do mérito, desde que ocorra qualquer das hipóteses previstas no art. 267 (SANTOS, 2007, p. 493)_ 92 No saneamento, a exemplo do que já ocorria com o antigo despacho saneador constante do Código de Processo Civil de 1939, são fixados, de pronto – não mais, como antes da reforma empreendida em dezembro de 1994, somente no inicio da audiência (art. 451) –, os pontos controvertidos, decididas as questões processuais pendentes e determinadas as provas a serem produzidas, às luz das que foram requeridas pelo autor na inicial e pelo réu com a contestação e

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elaborada a súmula 424 do STF: “transita em julgado o despacho saneador de que

não houve recurso, excluídas as questões deixadas, explícita ou implicitamente,

para a sentença” (ALVIM, 2007, p. 423). A respectiva súmula foi revogada pelo fato

do Código de Processo Civil brasileiro de 1973 estabelecer que o trânsito em julgado

é inerente às decisões finais de mérito, o que não inclui os despachos de mero

expediente, bem como pelo fato de não se poder admitir a preclusão de matéria de

ordem pública (condições da ação e pressupostos processuais).

Antes de fixar os pontos controvertidos da demanda a ensejar e a nortear a

fase instrutória e decisória o julgador deverá conhecer e analisar detalhadamente a

possível existência de matéria de ordem pública que venha a inviabilizar a análise do

mérito processual. Considera-se de ordem pública “a matéria que não se sujeita à

preclusão, porque interessa diretamente ao exercício da função jurisdicional e não

às partes, podendo o seu reconhecimento dar-se até mesmo de ofício (art. 267, §3º)”

(SANTOS, 2007, p. 492).

Sanear o processo93 é o momento processual em que o juiz declara inexistir

quaisquer irregularidades ou nulidades que venham a comprometer a apreciação do

mérito. “Por pontos controvertidos devemos entender as alegações fáticas e jurídicas

sustentadas por uma das partes e negadas pela parte contrária” (MONTENEGRO

FILHO, 2011, p. 408). É importante ressaltar que a fixação dos pontos controvertidos

é uma prerrogativa exclusiva do magistrado94 a partir do que o autor alegou na inicial

e o demandado sustentou em sua defesa. A fase de saneamento do processo é

posterior a não resolução consensual da pretensão na audiência preliminar.

“Frustrada que venha a ser, porventura, a tentativa de conciliação, o juiz fixará os

pontos controvertidos, decidirá as questões processuais pendentes e determinará

provas a serem produzidas, designando audiência de instrução e julgamento, se

reconvenção, se oposta, e que o juiz entender necessárias e relevantes para o julgamento da causa. (ALVIM, 2007, p. 421-422). 93 O saneamento é a ocasião em que o juiz resolve as questões processuais pendentes (pressupostos processuais e condições da ação) e determina as provas a serem produzidas, designando audiência de instrução e julgamento, se necessário (Cód. Proc. Civil, art. 331, §2º). Nesse momento, são fixados os pontos controvertidos objeto de comprovação. Como referido ato de fixação é meramente auxiliar do desenvolvimento da instrução, o juiz pode revê-lo no curso desta. Daí ser desprovido de conteúdo decisório, tendo natureza ordinatória. Já o saneamento, propriamente dito, tem caráter decisório, recaindo sobre as questões processuais, alegadas ou não, e sobre as provas requeridas pelas partes (SANTOS, 2008, p. 276). 94 O magistrado, quando fixa os pontos controvertidos, limita a instrução probatória, apenas permitindo sejam feitas indagações às partes e às testemunhas, no momento da realização da audiência de instrução e julgamento, se coincidentes com os pontos fixados anteriormente (MONTENEGRO FILHO, 2011, p. 408).

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necessário” (MOREIRA, 2007, p. 98). Nesse contexto do debate jurídico é relevante

mencionar o posicionamento de Cássio Scarpinella Bueno

A fixação dos “pontos controvertidos” (questões) e a determinação da prova que lhe é correlata é providência que otimiza, em todos os sentidos, a fase instrutória e que por isso não pode ser apequenada. O sucesso, a bem da verdade, daquela nova fase do procedimento depende desta prévia fixação com vistas a realizar adequada e suficientemente o princípio da economia e da eficiência processuais (BUENO, 2007, p.230).

O despacho saneador é a demonstração mais clara de que o processo civil

brasileiro se estrutura a partir de uma sistemática jurídica de uma sucessão lógica de

preclusões, em que o magistrado é o sujeito legitimado para delimitar solitariamente

a matéria de mérito e os pontos controvertidos da demanda a partir do que as partes

alegaram. É nesse sentido que se faz necessária a revisitação do despacho

saneador sob a ótica da processualidade democrática preconizada pela Constituição

brasileira de 1988, visto que tal momento processual não deve materializar apenas a

oportunidade do julgador delimitar a matéria de mérito a ser apreciada em juízo. Por

isso Luiz Rodrigues Wambier afirma

A fixação dos pontos controvertidos é de grande importância, pois delimita a atividade probatória das partes. Se isso ocorrer de modo a que as partes, por seus procuradores, dessa atividade participem ativamente, muito provavelmente da decisão de saneamento não haverá a interposição de recurso de agravo (WAMBIER, 2008, p. 526).

O saneamento do processo95 não deverá se limitar a um despacho

unilateralmente proferido por um julgador solitário, mas sim materializar a

oportunidade que todas as partes juridicamente interessadas na pretensão terá,

95 Duas grandes modificações implantou o Código de Processo Civil em relação ao estatuto de 14939, quanto ao antigo despacho saneador. A primeira delas reside no sentido bem mais restrito que tem a expressão “saneamento do processo” hoje, do que a de que vinha carregado o “despacho saneador” de antigamente. No regime antigo, a atividade do juiz na “fase saneadora”, ou “fase do despacho saneador”, realizava, conforme o caso, três tarefas distintas: a) declarava regular o processo e presentes as condições da ação, dispondo sobre provas e designando dia e hora para a audiência de instrução e julgamento; b) determinava a regularização do processo, quando existente alguma nulidade sanável; c) punha fim a ele desde logo, sem julgar-lhe o mérito, quando não tivesse condições de prosseguir (tudo isso nos termos dos arts. 294-296 do velho Código). No Código vigente, o “saneamento do processo” significa bem menos. Após a resposta do réu, virão as providências preliminares (arts. 323-328) e depois delas, o julgamento conforme o estado do processo (arts. 329-331). Consistirão aquelas, conforme o caso, em: a) mandar que o autor especifique provas (arts. 324); b) ouvir o autor, em dez dias, sobre fatos novos alegados pelo réu (art. 326) ou sobre qualquer defesa preliminar (art. 327). E consiste o julgamento conforme o estado do processo em: a) extinção deste (art. 329); b) julgamento antecipado da lide (art. 330); c) saneamento do processo (DINAMARCO, 1987, p. 169-170).

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conjuntamente com o julgador, de analisar e delimitar as questões que integrarão a

matéria de mérito da demanda. A revisitação do saneamento do processo sob a

perspectiva discursivo-participativa se faz necessária para o entendimento critico-

constitucionalizado-democrático do mérito processual construído diretamente por

todos aqueles que demonstram interesse jurídico na pretensão deduzida.

Todo o debate proposto acerca da audiência preliminar e do saneamento

processual visa demonstrar que no processo civil brasileiro o entendimento

prevalente acerca do mérito da demanda é aquele cuja definição das questões de

mérito, assim como a construção e a apreciação do mérito processual decorrerá

essencialmente da autoridade do julgador.

A participação de qualquer parte juridicamente interessada na discussão e na

construção do mérito no processo civil brasileiro condiciona-se à anuência do

julgador, uma vez que é o juiz quem analisa a existência dos requisitos formais e

indispensáveis a análise do mérito, assim como é quem define unilateralmente as

questões consideradas por ele relevantes a integrar a matéria de mérito. Significa

dizer que o julgador não fica vinculado e tampouco obrigado a aderir ou a apreciar

as questões levantadas pelas partes quando considerá-las irrelevante ao caso

concreto.

No momento em que o processo civil brasileiro vigente legitima o direito do

julgador definir solitariamente as questões que comporão a matéria de mérito

certamente não garantirá a participação dos interessados no processo. Além disso,

tal entendimento jurídico legitimará a afronta aos princípios constitucionais do

processo, especificamente a violação do principio do contraditório (limitação ou

supressão do direito da parte interessada argumentar juridicamente e faticamente a

pretensão deduzida em juízo) e do principio da ampla defesa (retirada do direito das

partes interessadas participarem do debate referente as provas consideradas

relevantes ao caso concreto, tendo em vista que a decisão acerca das provas que

poderão ser produzidas partirá da autoridade do julgador).

A concepção vigorante acerca do mérito no processo civil brasileiro decorre

de proposições teóricas que preconizam o processo como um recinto de prevalência

da autoridade do julgador (tal como ocorre no processo coletivo96), em que a

96 Para a Escola Paulista de Processo o magistrado exercerá sua autoridade de julgador tanto no âmbito do processo civil quanto no contexto do processo coletivo. Nesse sentido se posiciona Paulo Henrique dos Santos Lucon: [...] o juiz assume funções de direcionamento e gerenciamento

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realidade vigorante consiste na exclusão de qualquer participação das partes

juridicamente interessadas na construção do provimento.

Certamente as proposições teóricas trazidas pelo direito processual civil

vigente causam reflexos diretos no entendimento do mérito no processo coletivo, tal

como trabalhado e desenvolvido pela Escola Paulista de Processo.

A sistematização do processo coletivo no Brasil decorre das premissas

trabalhadas pela Teoria Geral do Processo desenvolvida em bases privatísticas e

individualistas, o que leva alguns estudiosos a defender a existência do direito

processual civil individual e o do direito processual civil coletivo97. Trata-se de uma

concepção de processo coletivo enraizada ainda na vertente civilista. Por isso, não

se pode afirmar efetivamente a existência de uma autonomia do direito processual

coletivo98, tal como proposto pela Escola Paulista de Processo, tendo em vista que o

respectivo ramo da ciência jurídica desenvolve-se a partir da concepção unitarista de

processo, cuja ideologia central é o processo civil. Pensar o processo coletivo a

partir do processo individual é não admitir a existência de um modelo de processo

coletivo democrático, pelo fato de limitar substancialmente a participação dos

interessados na construção do provimento.

A crítica que aqui se faz acerca do posicionamento da Escola Paulista quanto

à autonomia cientifica do processo coletivo99 justifica-se no fato desse ramo do

direito processual se desenvolver a partir do sujeito, ou seja, a concepção de

processo coletivo adotada hoje no Brasil foi construída com base no sistema

representativo. Entende-se que a efetiva autonomia do processo coletivo no Estado

importantes no Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos. As preclusões, que não deixaram de existir, são apenas atenuadas, notadamente no que se refere à fixação do objeto litigioso do processo, submetido à interpretação extensiva do juiz, nos limites da necessidade de proteção do bem jurídico coletivo subjacente, considerando a relevância do contraditório, como dinamizador da relação processual, ao permear todo o procedimento. (LUCON; GABBAY, 2007, p. 87) 97 Já tivemos a oportunidade de sistematizar, em dissertação de mestrado defendida em junho de 2000 e depois publicada em 2003, que o direito processual coletivo é, no Brasil, um novo ramo do direito processual. Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery também defendem a idéia de existência de um direito processual civil individual e de um direito processual civil coletivo (ALMEIDA, 2007, p. 55-56) 98 Em edição recente (2005), Ada Pelegrini Grinover, Antônio Carlos de Araújo e Cintra e Cândido Rangel Dinamarco passaram a sustentar, na clássica obra Teoria Geral do Processo, que, sendo caracterizado por princípios e institutos próprios, o direito processual coletivo pode ser separado, como disciplina processual autônoma, do direito processual individual (ALMEIDA, 2007, p. 56). 99 Aplicam-se-lhes todos os princípios gerais do direito processual, mas, além desses, tem ele princípios próprios ou, ao menos, em relação a ele os princípios gerais devem passar por uma releitura e revalorização. Assim, por exemplo, a interpretação das normas sempre em benefício do grupo (quanto à legitimidade ad causam e os poderes do juiz etc.), a atenuação do principio dispositivo e do principio da estabilização da demanda, um novo conceito de indisponibilidade objetiva e subjetiva, uma maior liberdade das formas (GRINOVER apud ALMEIDA, 2007, p. 56)

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Democrático de Direito perpassa pelo seu entendimento a partir do objeto, ou seja,

do sistema participativo (cidadania) adotado como fundamento da Republica

Federativa do Brasil, conforme preconizado pela Teoria das Ações Coletivas como

Ações Temáticas.

Todo esse debate científico ora desenvolvido reflete diretamente na noção de

mérito no processo coletivo vigente, cuja construção e compreensão advém do

debate instaurado apenas entre os sujeitos legitimados a propositura das ações

coletivas juntamente com o julgador e o Ministério Público.

É evidente a exclusão de participação de todos os sujeitos juridicamente

interessados no provimento. No Brasil o modelo de processo coletivo vigente

estrutura-se na ideologia do sistema representativo, que se funda na pressuposição

de escolha, pelo legislador, de todos aqueles sujeitos e instituições considerados

preparados e legitimados à propositura das ações coletivas. Não é possível, assim,

vislumbrar o exercício da cidadania a partir do modelo de processo coletivo adotado

atualmente no Brasil.

A elaboração de uma Teoria Geral do Processo Coletivo construída a partir do

modelo de processo constitucional no Estado Democrático de Direito se faz

necessária com a finalidade de vislumbrar a superação dos reflexos das teorias

civilistas no entendimento do processo coletivo. A compreensão unitária100 do direito

processual torna-se inviável em virtude das evidentes distinções existentes entre os

mais diversos ramos do processo, especificamente o processo coletivo, cujo objeto

e todas as discussões processuais não versam sobre interesses de cunho

essencialmente individual.

A autonomia cientifica do processo coletivo pressupõe a sistematização de

uma teoria geral construída a partir do sistema participativo, que oportuniza

amplamente a possibilidade de participação de todos os sujeitos juridicamente

interessados na construção do mérito processual. Tal sistematização teórica

justifica-se pelo fato do processo coletivo democrático ser visto como uma instituição

que garante a inclusão (não a exclusão) de todos os interessados no debate fático e

jurídico de todas as questões relevantes à construção do provimento. Em

contrapartida, pode-se afirmar que o processo civil brasileiro vigente não adota um

sistema que viabiliza a participação de todos os interessados na construção do

100 Modernamente a ciência do direito processual tem recebido uma inspiração unificadora. Após séculos de tratamento distinto, o direito processual civil e o direito processual penal

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120

provimento, haja vista que a autoridade exercida pelo julgador quase sempre

representa um sistema de exclusão de participação das partes no processo.

2.10 Mérito Processual, Direito de Ação e Acesso à Justiça

A significação da expressão acesso à justiça101 tem caráter polissêmico,

relativo102 e conotação decorrente de uma concepção autoritária de processo, em

que o julgador é legitimado a decidir solitariamente103 e também a apreciar o mérito

processual a partir de análises jurídicas e metajuridicas da demanda levada pelas

partes ao Judiciário.

É de extrema relevância jurídica a revisitação teórica da relação existente

entre mérito processual, direito de ação e acesso à justiça (acesso à jurisdição é

uma expressão mais adequada e compatível com o modelo constitucional de

processo proposto pelo paradigma democrático adotado na Constituição brasileira

vigente).

Na acepção democrática proposta pela Constituição brasileira de 1988 a ação

é uma palavra “integrante da expressão jurídica direito-de-ação, destinada a

significar direito constitucionalizado incondicional de movimentar a jurisdição” (LEAL,

2009, p. 129).

Dos romanos herdamos a concepção privatística da ação intrinsecamente

vinculada à noção de direito, ou seja, é a partir desse contexto teórico que se pode

delinear a proposição da Teoria Imanentista104, para a qual o direito material era

101 Evitaremos aqui a expressão equívoca de “acesso à justiça”, porque, como já esclarecemos, a palavra justiça, quando assim posta nos compêndios de direito pode assumir significados vários que, a nosso ver, perturbam a unidade semântica e seriedade científica do texto expositivo (LEAL, 2009, p. 68). 102 Para Chaim Perelmann a relatividade no entendimento e na compreensão do que seja a Justiça se justifica no sentido de que não se pode convencer qualquer pessoa de que “determinada concepção de justiça é a única boa, a única que corresponde ao ideal de justiça perseguido pelo coração dos homens, sendo todas as outras apenas embustes, representações insuficientes que fornecem da justiça uma imagem falsa e servem de uma justiça apenas aparente que abusa da palavra justiça para fazer que se admitam concepções real e profundamente injustas” (BEZERRA, 2001, p. 147). 103 O juiz precisa estar perenemente lembrado de seu solene e patético compromisso com a justiça. Deve revelar essa consciência ao longo do processo e de sua instrução e depois, ao sentenciar, no modo como encara a prova e seus resultados, como interpreta os fatos diante do direito e os textos legais diante do objeto do processo em julgamento (DINAMARCO, 1988, p. 118). 104 [...] Assim, para essa escola, o direito material (bem da vida jurídica) era imanente à ação para exercê-lo, o que queria dizer que ação e direito surgiam de modo geminado, não sendo possível separa-los. Percebe-se claramente que a palavra ação, nessa corrente histórica, tinha significado, ao mesmo tempo, de direito de movimentar a jurisdição e direito ao procedimento de modo inerente e sincrônico ao direito material instituído. Há, portanto, aderência do procedimento ao direito criado, formando uma só e única figura jurídica (LEAL, 2009, p. 130).(grifo nosso).

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imanente ao exercício da ação, conforme preconizado no artigo 75 do Código Civil

brasileiro de 1916: “a todo direito corresponde uma ação que o assegura” (SANTOS,

2007, p. 48). Depreende-se a ínsita relação existente entre o mérito processual e o

direito de ação na perspectiva imanentista, haja vista que a noção de mérito decorria

diretamente do direito material e da matéria fática que permeava o conceito de

demanda levada ao Judiciário.

A autonomia do direito de ação frente ao direito material irrompeu-se com a

polêmica de Windscheid e Muther, para os quais a ação era respectivamente um

direito exercido em desfavor dos interesses jurídicos do réu ou um direito à

prestação jurisdicional. Adolph Wach lançou as bases do concretismo, teoria na qual

a ação passou a ser vista como um direito a uma sentença favorável ao autor (LEAL,

2009, p. 131). “Para Wach, a ação seria direito público, dirigido contra o Estado,

perante o réu, objetivando a prestação jurisdicional, mas autônomo por excelência”

(SANTOS, 2007, p. 48).

Degenkolb e Plosz delinearam a acepção abstrata da ação, agora

compreendida “como um direito incondicionado de movimentar a jurisdição, pouco

importando o reconhecimento do direito material alegado” (LEAL, 2009, p. 131). A

efetivação da autonomia do direito material com relação ao exercício do direito de

ação ocorreu com a superação do concretismo. A concepção de mérito processual

que se pode abstrair desse contexto não se vinculava ao reconhecimento, pelo juiz,

dos pedidos do autor, tal como preconizado pelo concretismo, visto que o mérito

processual decorria da oportunidade que o juiz tinha de analisar as questões fáticas

e jurídicas trazidas pelas partes, independentemente do acolhimento do pedido da

parte autora.

No inicio do século XX Chiovenda sistematizou a teoria da ação como um

direito potestativo, cujo exercício, pelo autor, materializava-se no poder de exigir do

réu um bem da vida perante o Judiciário. Seguindo o mesmo raciocínio inicialmente

proposto por Chiovenda, Carnelutti e Liebman sistematizaram o exercício do direito

de ação a partir da observância prévia das condições da ação e dos pressupostos

processuais, vistos juridicamente como matéria processual pré-meritória, ou seja,

que antecede a compreensão e a análise da matéria de mérito, considerada um

conceito diretamente relacionado com a matéria de fato e as questões de direito que

delineiam o entendimento da demanda judicial.

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A compreensão da ideologia do acesso à justiça não pode se limitar ao

entendimento atinente ao direito de estar em juízo, ao direito de reconhecimento

jurídico da pretensão ou ao direito a uma prestação jurisdicional em que o juiz

poderá ou não enfrentar o mérito da pretensão deduzida. É preciso reconstruir o

entendimento clássico, dogmático e positivista do acesso à justiça105 como o direito

a uma ordem jurídica justa, cuja justiça se efetiva a partir da visão unilateral do juiz

acerca do caso concreto. A revisitação dessa concepção filosófica de justiça106

decorrente do poder jurisdicional e da autoridade do juiz se faz necessária para a

resignificação do entendimento do tema a partir de proposições teóricas decorrentes

de um direito construído em bases democráticas. O acesso ao Judiciário deve ser

visto como um Direito Fundamental de participação efetiva no debate jurídico

construído em bases processuais em que os sujeitos juridicamente interessados

sintam-se co-autores do provimento. Nesse ínterim, sabe-se que a compreensão do

acesso à justiça como um Direito Fundamental é o fundamento teórico para viabilizar

a cidadania como pilar da participação dos interessados no processo.

É necessário esclarecer inicialmente que o acesso ao Judiciário, conforme

previsão expressa do artigo 5. Inciso XXXV da Constituição brasileira de 1988

(principio da inafastabilidade do controle jurisdicional), consiste no direito das partes

juridicamente interessadas participarem de forma direta da construção do mérito da

demanda. O acesso ao Judiciário no Estado Democrático de Direito materializa-se

pela implementação do debate da pretensão, pelas partes, no espaço processual, e

poderem construir efetivamente o mérito. É nesse sentido que se posiciona Ada

Pelegrini Grinover, representante da Escola Paulista de Processo:

105 Essa visão de acesso à justiça não representa apenas o acesso ao Judiciário, mas o acesso a todo meio legítimo de proteção e efetivação do Direito, tais como o Ministério Público, a Arbitragem, a Defensoria Pública etc. Até no plano jurisdicional, o direito de acesso à justiça não é só o direito de ingresso ou o direito à observância dos princípios constitucionais do processo, mas também o Direito constitucional fundamental de obtenção de um resultado adequado da prestação jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CF). A decisão que se projeta para fora, atingindo as pessoas, como resultado da prestação jurisdicional, deverá ser constitucionalmente adequada e justa (ALMEIDA, 2010, p. 171). 106 [...] a Justiça Constitucional tem sido chamada a agir em benefício da realização efetiva dos direitos sociais contidos na Constituição, e muitas vezes, também tem sido conclamada a exercer função normativa ou normogenética, o que vem sendo admitido na literatura mais especializada (cf. AGRA, 2005: 235); interventiva e ativista, repercute na própria atuação e construção de prioridades pelo Estado prestacional. Certas Constituições, em determinados âmbitos ou tópicos específicos e por meio da previsão de certos institutos inovadores, reforçam ou conferem suporte a essa leitura da Justiça Constitucional substantiva (TAVARES, 2010, p. 13).

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Por outro lado, no enfoque atual, a questão do acesso à justiça se insere num quadro participativo. A participação popular na administração da justiça e a participação popular mediante a justiça são duas facetas pelas quais se concretiza no processo a moderna democracia participativa [...] Por sua vez, a participação mediante a justiça significa a própria utilização do instrumento processo como veiculo de participação democrática. Concretiza-se ela, exatamente, pela efetiva prestação da assistência judiciária e pelos esquemas da legitimação para agir. Desse modo que a questão do acesso à ordem jurídica justa, no plano processual, se insere no quadro da democracia participativa, por intermédio da participação popular pelo processo (GRINOVER, 1996, p. 116).

Importante esclarecer que a construção da doutrina do acesso à justiça pela

Escola Paulista de Processo é produto da ideologização da ordem jurídica justa em

que o julgador é aquela pessoa legitimada a resguardar a justiça entre as partes,

mediante a utilização de argumentações jurídicas e metajuridicas. Não é essa a

leitura proposta no presente trabalho acerca do tema acesso à justiça. Busca-se,

com a presente pesquisa, a análise critica do acesso ao Judiciário como um Direito

Fundamental do cidadão debater juridicamente de forma ampla a pretensão e o

mérito processual da demanda. A participação do julgador no debate isonômico e

jurídico da pretensão constitui corolário da legitimidade democrática do provimento.

A proposta do legislador constituinte no artigo 5, inciso XXXV foi redesenhar o

acesso à justiça (acesso ao Judiciário) a partir da superação do entendimento

autoritário da ação como um direito cujo exercício fica adstrito à observância das

condições da ação107 e dos pressupostos processuais, tal como trabalhado por

Bulow, Chiovenda, Carnelutti e Liebman, o mesmo entendimento adotado pelo

Código de Processo Civil de 1973 (e também como se observa na ideologia

dominante do Novo Código de Processo Civil). O acesso ao Judiciário deve ser visto

como um Direito Fundamental corolário da cidadania, considerada fundamento do

Estado Democrático de Direito108. Importante ressaltar que a cidadania, nessa

perspectiva, deve ser vista como um direito de participação no processo e, por

107 O estabelecimento de condições para a ação, em face do modelo constitucional que amplia o acesso à Justiça, constitui um óbice à apreciação da lesão e da ameaça a direito, ofendendo o Texto Constitucional (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 168). 108 Inspirando-nos nas doutrinas até aqui colacionadas e levando em conta o principio da Supremacia da Constituição, do qual emerge a garantia fundamental do devido processo constitucional, entendemos que, em sentido jurídico amplo, ação, espécie do gênero direito constitucional de petição, é direito assegurado a qualquer pessoa (natural ou jurídica, de direito público ou de direito privado), exercido contra o Estado, consistindo em lhe exigir seja prestada a jurisdição, tendo por base a instauração de um processo legal e previamente organizado segundo o devido processo constitucional, no qual postulará decisão sobre uma pretensão de direito material (Constituição Federal, art. 5º, inciso XXXIV, alínea a, e incisos XXXV, LIV e LV) (DIAS, 2010, p. 82).

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conseguinte, de participação na construção e no debate do mérito processual.

Nesse sentido, ressalta-se o entendimento do jurista Vicente de Paula Maciel Junior:

Quando o texto constitucional diz que a lei não excluirá da apreciação do poder judiciário “lesão” ou “ameaça a direito”, surge naturalmente a indagação se a norma infraconstitucional poderia criar condições para o exercício da ação ou pressupostos processuais. A garantia constitucional parece ter evoluído no sentido de superar o formalismo e as contradições do sistema dualista do direito subjetivo e da relação jurídica processual. Tanto no tema da ação quanto no processo, a opção do legislador foi a de garantir o acesso a um pronunciamento judicial sobre o mérito. Portanto, o estabelecimento de condicionantes para a ação nesses sistemas estaria superado. A ação é meio e não fim. Sendo meio, não poderia ser obstáculo ao fim, que é a apreciação dos interesses em conflito, onde se afirmam lesões ou ameaças a direito. A lei processual, diante do imperativo constitucional, não poderia estabelecer condicionantes à ação. A única condição existente para o acesso à Justiça, segundo esse modelo constitucional, é a afirmação perante o Poder Judiciário da existência de lesão ou ameaça a direito. Ou seja, todo cidadão brasileiro tem direito a uma decisão “sobre o mérito” , para verificar a ocorrência ou não de uma lesão ou uma ameaça a um direito (2006, p. 163-164). (grifo nosso)

Ao contrário do que preconiza o legislador do Código de Processo Civil de

1973 (para o qual a ação é vista como um direito a uma prestação jurisdicional cujo

exercício fica condicionado aos requisitos propostos pelas condições da ação e

pelos pressupostos processuais), a leitura critica que se pode fazer das proposições

teóricas trazidas pelo legislador constituinte é que o acesso democrático ao

Judiciário decorre da oportunização das partes participarem isonomicamente das

discussões da demanda (pretensão deduzida) no espaço processual, bem como da

possibilidade de se efetivar Direitos Fundamentais a partir da revisitação do instituto

do mérito processual. A relação existente entre direito de ação e acesso ao

Judiciário encontra-se diretamente vinculada ao estudo do mérito109, tendo em vista

109 A ação, principalmente nos modelos constitucionais que asseguram o livre acesso à Justiça não deve ter condicionantes, mas sim evolui para um sistema que estabeleça responsabilidades decorrentes dos atos abusivos e ilícitos oriundos dos excessos no uso do direito de ação. Saber se há ou não legitimação para agir é questão que envolve o julgamento a luz de provas dos autos e da verificação ou não se o interesse afirmado pela parte corresponde a um direito que o autor invoca para si. Dizer que a parte não é legítima significa o mesmo que afirmar a inexistência do direito em face do interesse manifestado pela parte. Saber se alguém é parte para invocar a aplicação da lei a um interesse manifestado é questão que envolve o próprio mérito da demanda e conduz a procedência ou a improcedência do pedido. Se alguém não é reconhecido pelo processo judicial como o titular de um interesse manifestado não terá por conseqüência o objeto de sua pretensão. O pedido será improcedente. É improcedente porque, após o processo, restou comprovado que o direito objetivo invocado pela parte não corresponde ou pode ser aplicado à situação jurídica relatada. A

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que a democratização do acesso ao Judiciário viabiliza o exercício da cidadania no

momento em que é assegurado a todos os jurisdicionados o direito de participar

efetivamente da construção do mérito processual.

Importante esclarecer que nos estados liberais burgueses a noção que se

tinha sobre o acesso à justiça110 encontrava-se vinculada ao direito natural, ou seja,

considerando-se que tais direitos eram anteriores ao Estado, ressalta-se que era

dever do próprio Estado não permitir que tais direitos fossem infringidos por outros.

A ideologia liberal vigorante não tinha o foco voltado para garantir o acesso à justiça

aos pobres111 e aos mais necessitados, tendo em vista que o conceito de igualdade

formal viabilizava apenas o acesso formal à justiça, o que nos leva a concluir, pelo

menos imediatamente, que no período liberal não se vislumbrava o amplo acesso à

justiça (CAPPELLETTI, 2002, p. 9). “Fatores como diferenças entre os litigantes em

potencial no acesso prático ao sistema, ou a disponibilidade de recursos para

enfrentar o litígio, não eram sequer percebidos como problema” (CAPPELLETTI,

2002, p. 10). manifestação do interesse da parte não encontra suporte normativo (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 164-165). 110 É muito importante apresentar o entendimento do jurista Gregório Assagra de Almeida acerca da temática “acesso à justiça” no contexto da instrumentalidade do processo e pautado na perspectiva de Mauro Cappelletti: “[...] Nesta fase instrumentalista do direito processual, é que se desenvolveram as denominadas ondas renovatórias do acesso à justiça. A primeira onda renovatória do acesso à justiça é conhecida como gratuidade da justiça aos pobres; esse primeiro movimento pelo acesso à justiça não foi suficiente, especialmente por tratar o pobre como individuo e esquecer-se da coletividade (direitos massificados). A segunda onda renovatória do acesso à justiça, que aqui nos interessa particularmente, é conhecida como representação em juízo dos interesses difusos e tem inicio no final da década de 1960 e início da década de 1970 nos Estados Unidos e na Europa (França, Suécia etc.). Esta segunda onda renovatória do acesso à justiça é conhecida também como movimento mundial pela coletivização do processo. Entretanto, as duas primeiras ondas renovatórias do acesso à justiça não foram suficientes, o que fez surgir uma terceira onda chamada de um novo enforque sobre o acesso à justiça. Esta terceira onda renovatória do acesso à justiça possui três dimensões. A primeira dimensão é que ela é abrangente das ondas renovatórias anteriores, mas vai além. Pela segunda dimensão, o acesso à justiça passa a ser visto por intermédio de um novo método de pensamento – como direito ao acesso a uma ordem jurídica justa, o que passa a ser objeto de indagação da filosofia do direito e da teoria geral do direito, de sorte que não há sentido em se falar em direito sem efetividade, pois a efetividade é um problema relacionado diretamente com a temática do acesso à justiça. Em uma terceira dimensão, esse novo enfoque sobre o acesso à justiça (terceira onda renovatória do acesso à justiça) propõe um amplo e moderno programa de reformas do sistema processual, que se viabilizaria por intermédio: a) da criação de meios alternativos de solução de conflitos (substitutivos jurisdicionais, equivalentes jurisdicionais), tais como alguns já implantados no Brasil (arbitragem, a tomada pelos órgãos públicos legitimados às ações coletivas do compromisso de ajustamento de conduta às exigências legais etc.); b) da implantação de tutelas jurisdicionais diferenciadas (podemos citar, no Brasil, a antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional pretendida; os juizados especiais; o procedimento monitório etc.); c) de reformas pontuais no sistema processual, a fim de torná-lo mais ágil, eficiente e justo (ALMEIDA, 2007, p. 23-24). 111 O acesso à justiça dentre outros aspectos a ser considerado, sempre foi ligado à idéia de custo. Inegável que há um custo implicitamente vinculado ao acesso à justiça seja ele obtido pela via jurisdicional, processual, seja pela via extraprocessual. Esses custos, de qualquer espécie, dificultam e, às vez desestimulam e até inviabilizam o acesso à justiça (BEZERRA, 2001, p. 181).

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A busca pela proteção jurídica dos direitos coletivos decorrente da superação

do individualismo liberal vigente até o final do século XIX foi suficiente para emergir

as bases do Estado Social, a partir do qual o acesso à justiça passa a ser encarado

como o mais básico dos direitos humanos, cujo propósito é assegurar igualdade

jurídica no acesso à justiça. “O acesso não é apenas um direito social fundamental,

crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central da

moderna processualística” (CAPPELLETTI, 2002, p. 13).

A partir dos estudos desenvolvidos por Mauro Cappelletti percebemos a

grande complexidade que permeia o estudo do tema acesso à justiça. O autor

focaliza seu debate cientifico na necessidade de superação dos obstáculos que

muitas vezes inviabilizam o acesso à justiça, tais como, a pobreza e as limitações de

natureza econômico-financeira do jurisdicionado. Esclarece, ainda, que o acesso à

justiça deve ser assegurado não apenas para tutelar pretensões de natureza

essencialmente individual, haja vista que a coletivização das demandas judiciais

desencadeou a necessidade de ampliação das vias de acesso à justiça para garantir

a proteção dos direitos coletivos. Além disso, verifica-se a extrema preocupação do

autor com relação à efetividade do acesso à justiça, especificamente no que tange à

viabilização do exercício de direitos às partes a partir do processo e do acesso ao

Judiciário.

Ao contrário do que é preconizado pela Escola Instrumentalista, cujos

representantes trabalham o acesso à justiça como o acesso a uma ordem jurídica

justa112, com o advento da Constituição de 1988 e a institucionalização do Estado

Democrático de Direito ocorreu a revisitação do instituto do acesso à justiça, que

passa a ser visto como o direito de acesso ao Judiciário como forma de participação

no processo113 (não apenas os processos cuja pretensão é de natureza

essencialmente individual, mas também o processo cuja pretensão é de direito

112 O direito de acesso à Justiça é, fundamentalmente, direito de acesso à ordem jurídica justa. São dados elementares desse direito: 1- o direito à informação e perfeito conhecimento do direito substancial e à organização de pesquisa permanente a cargo de especialistas e orientada à aferição constante da adequação entre ordem jurídica e a realidade sócio-econômica do País; 2- direito de acesso à Justiça adequadamente organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo de realização da ordem jurídica justa; 3) direito à preordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a efetiva tutela de direitos; 4) direito à remoção de todos os obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo à Justiça com tais características (WATANABE, 1988, p. 135). 113 Superação do entendimento do processo, como garantia de direitos individuais, alçado ele a instrumento político de participação na formulação do direito pelos corpos intermediários e de provocação da atuação dos agentes públicos e privados no tocante aos interesses coletivos ou transindividuais por cuja satisfação foram responsáveis (PASSOS, 1988, p. 96).

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coletivo) e, além disso, como um Direito Fundamental de discussão114, de

construção e de análise do mérito da demanda. O principio da inafastabilidade do

controle jurisdicional foi instituído para permitir ao cidadão não apenas o direito de

encaminhar sua pretensão ao Judiciário, mas, acima de tudo, o direito de discussão

da pretensão perante o Judiciário.

O principio do contraditório115 é considerado fundamento essencial ao estudo

do direito de ação (acesso ao Judiciário) a partir da constitucionalidade democrática,

tendo em vista que o respectivo princípio oportuniza a todos os interessados no

provimento o direito de igualdade no debate fático e jurídico da pretensão. As

condições da ação116 e os pressupostos processuais, da forma como propostos no

Código de Processo Civil vigente (1973), e ao contrário do que é preconizado pelo

legislador constituinte, limita o direito de debate e de participação no processo, uma

vez que obstaculizam a discussão da matéria de mérito ao estabelecer a

obrigatoriedade de cumprimento de requisitos formais à análise do mérito

processual117. A dogmatização no entendimento do direito de ação, a partir das

114 O Direito Fundamental de Discussão, ora mencionado no contexto da presente pesquisa, se refere ao principio participativo, que deve ser visto como o fundamento que garante a todo sujeito juridicamente interessado na pretensão o direito de discutir e de debater amplamente todas as questões de mérito ora propostas e que tenham relação com o que foi inicialmente alegado pelo autor da ação proposta. 115 A Escola Instrumentalista de Processo compreende o principio do contraditório como o direito que as partes tem de influenciar na formação da convicção do juiz. Trata-se de um entendimento autoritário acerca do principio do contraditório que decorre da acepção de que a jurisdição é um poder do magistrado decidir solitariamente o mérito da pretensão deduzida em juízo. Nesse sentido temos: “O núcleo essencial do principio do contraditório compõe-se, de acordo com a doutrina tradicional, de um binômio: “ciência e resistência” ou “informação e reação”. O primeiro destes elementos é sempre indispensável, o segundo, eventual ou possível. [...] É que o contraditório no contexto dos “direitos fundamentais”, deve ser entendido como o direito de influir, de influenciar, na formação da convicção do magistrado ao longo de todo o processo. Não se deve entende-lo somente do ponto de vista negativo, passivo, defensivo. O Estado-juiz, justamente por força dos princípios constitucionais do processo, não pode decidir, sem que garanta previamente amplas e reais possibilidades de participação daqueles que sentirão, de alguma forma, os efeitos de sua decisão (BUENO, 2008, p. 107-108). 116 As condições da ação não se confundem com os pressupostos processuais. a jurisdição é imparcial. Para que se faça correto julgamento, mister se faz que o processo se tenha formado validamente. Existem, assim, três ordens de matéria que o juiz, necessariamente, enfrenta, quando julga no processo: matéria de processo, matéria de ação e matéria de mérito. As duas primeiras, conjuntamente, podemos chamar de condições de admissibilidade do julgamento da lide (SANTOS, 2007, p. 52). 117 “Exercitado o direito de ação, espera-se a prolação da sentença de mérito (que atribua a vitória a uma das partes), uma vez observados os princípios e as normas processuais, e oportunizado ao réu o direito de apresentar a sua defesa, concordando ou contrapondo-se às pretensões aduzidas pelo autor na peça inicial. Contudo, para que isto se confirme, é necessário o preenchimento de requisitos mínimos, atinentes à própria validade da ação, sem os quais é impossível aprofundar na análise do direito defendido pelas partes em litígio. Encontramo-nos diante de exigências formais, decorrentes do exercício do direito de ação. Nesse particular, verificamos que a Lei de Ritos adota a teoria ecética da ação, desenvolvida por Liebman, dispondo que a ação é um direito subjetivo que não se prende

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proposições ideológicas do Código de Processo Civil de 1973, deve ser vista como

elemento obstaculizador do acesso legítimo e democrático ao Judiciário (considera-

se legítimo o acesso ao Judiciário a implementação do direito de debate e de

argumentação da pretensão no âmbito processual).

A legitimação democrática da participação dos sujeitos no processo é

considerada o fundamento central do entendimento do mérito participado no

processo coletivo. “As diversas manifestações dos interessados, comuns ou

divergentes, constituiriam o mérito da demanda coletiva” (MACIEL JUNIOR, 2006, p.

180). Tal afirmação se justifica no sentido de ser o processo o espaço que legitimará

a discussão da pretensão coletiva por todos aqueles titulares do direito coletivo que

balizará juridicamente a construção do provimento.

O processo coletivo, a partir das proposições teóricas desenhadas pelo

Estado Democrático de Direito, deve ser uma espaço de inclusão (não de exclusão)

de todos os interessados na pretensão coletiva e no debate do mérito. O processo

coletivo é um instituto hábil a legitimar a participação direta e o exercício da

cidadania. A própria construção do conceito de cidadania a partir do modelo de

processo coletivo democrático decorre da implementação do direito de participação

de todos os interessados no provimento. “A demanda coletiva dever ser

essencialmente participativa (VIGORITI, 1979, p. 03-16), no sentido de permitir que

o maior número de legitimados interessados possa defender suas teses em juízo”

(MACIEL JUNIOR, 2006, p. 178). A coerência e a congruência dos argumentos

levantados pelos interessados difusos no debate jurídico e na construção participada

do mérito processual são necessárias para evitar a infinitude das discussões do

processo coletivo, ou seja, o direito de participação do interessado no processo é

regrado pela delimitação inicial da pretensão (objeto) coletiva deduzida em juízo. “A

legitimação do provimento decorrente de uma ação coletiva se dá pelo procedimento

que permita a inclusão dos legitimados para a participação na construção da

decisão” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 178).

O cerne de toda a problemática atinente ao acesso amplo e democrático ao

Judiciário é viabilizar a participação aberta de todos os legitimados interessados na

construção do provimento e do mérito processual, especialmente nas ações

ao direito material nela envolvido (como defendia a teoria concreta), sujeitando-se, contudo, à observância de condições, sem as quais não se pode validar a ação. Essa teoria situa-se no meio-termo entra as teorias concreta e abstrata (MONTENEGRO FILHO, 2011, 114-115).

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coletivas, cuja finalidade é “legitimar essa participação no sentido de que ela

represente efetivamente o maior número de interessados no fato ou situação jurídica

geradores do conflito coletivo” (MACIEL JÚNIOR, 2006, p. 178). È nesse contexto

que se posiciona Vicente de Paula Maciel Junior

A ação coletiva deve ser a demanda que propõe um tema, abrindo a possibilidade de que o próprio conteúdo do processo seja definido de modo participativo. O processo coletivo demanda, portanto, uma frase inicial na qual o seu objeto seja formado. O mérito do processo é construído, dentro de um determinado período de tempo fixado na lei, até quando será possível que os diversos interessados compareçam na demanda e formulem seus pedidos (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 179).

Toda essa discussão teórica perpassa pela revisitação da concepção clássica

do processo coletivo pensado e construído a partir do sujeito. O acesso ao Judiciário

é estreito e limitado quando o processo coletivo é compreendido a partir dessa

vertente teórica, uma vez que o legislador é considerado o legitimado a escolher os

sujeitos que terão acesso à justiça. Em contrapartida, temos a Teoria das Ações

Coletivas como Ações Temáticas, desenvolvida pelo jurista Vicente de Paula Maciel

Junior, cujo entendimento do processo coletivo parte do objeto (e não do sujeito),

pois assim é possível viabilizar maior participação direta118 dos interessados difusos

no processo coletivo com a maior ampliação do acesso ao Judiciário. O que se

pretende discutir oportunamente no presente trabalho são os instrumentos legítimos

de efetivação da participação dos interessados difusos no processo coletivo, tais

como as audiências públicas e a utilização da internet como canal de comunicação e

de participação dos cidadãos diretamente no processo coletivo.

2.11 Mérito Processual e Cognição

A finalidade do processo de conhecimento119, na concepção da maioria dos

estudiosos brasileiros representantes da Escola Paulista de Processo120, é o

118 La participación popular más directa que puede surgir en materia de Justicia y proceso la constituye, sea la designacións de jueces elegidos por voto popular, sistema que se ensaya en las comunidades locales de los Estados Unidos, así como la propia designación (por este medio primero o por otros órganos secundarios en otros casos) de jueces populares, tales como los tribunales de camaradas sociéticos. (VESCOVI, 1988, p. 365). 119 Proceso de cognición es, pues, aquel que tiene por objeto uma pretensión en que se reclama del órgano jurisdiccional la emisión de una declaración de voluntad: si se da a esta declaración de voluntad el nombre de sentencia, el proceso de cognición es, característicamente, el que tiene a obtener una sentencia del Juez (GUASP, 1998, p. 559).

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acertamento de direitos a partir de pressuposições jurídicas e metajurídicas dos

julgadores acerca do mérito da pretensão deduzida em juízo pelas partes. Nesse

ínterim pode-se afirmar que a cognição é vista como um ato decorrente do

conhecimento inato e da inteligência do juiz121, para, a partir de sua experiência,

colocar-se na condição de responsável pela promoção da justiça entre as partes.

Trata-se de entendimento autocrático, republicanista e produto de acepções trazidas

pelo modelo de Estado Social, regido pela ideologia de que a jurisdição é um poder

concebido miticamente, para ser exercido pelo juiz e cuja finalidade é distribuir entre

as partes a decisão mais justa para o caso concreto.

Não se pretende aqui propor a eliminação da atuação legitima do juiz no

processo civil, tendo em vista que se busca repensar criticamente, sob a ótica

democrática, os limites jurídico-constitucionais de sua atuação. A pertinência da

análise crítica proposta é verificada naqueles casos em que o julgador concentra

exclusivamente o poder de julgar em suas mãos, excluindo-se a interferência de

qualquer sujeito interessado na construção do provimento.

A concepção de que a cognição é um ato do juiz causa reflexos diretos no

entendimento do mérito processual, uma vez que o caráter axiológico prevalente no

exercício da jurisdição é considerado o aspecto regente para a apreciação da

matéria de fato, da matéria de direito e, essencialmente, para a interpretação e a

utilização das provas no julgamento da demanda. Seguindo o entendimento ora

preconizado, Kazuo Watanabe afirma que a justiça precisa ser rente à realidade

social e essa aderência à vida somente se consegue com o aguçamento da

sensibilidade humanística e social dos juizes (2005). Para a cognição adequada a

caso concreto, pressuposto de um julgamento justo, a sensibilidade mencionada é

um elemento impostergável.

Nessa mesma linha de raciocínio Luiz Antônio Nunes afirma que a cognição

decorre de uma atividade intrínseca à capacidade intuitiva do julgador, do seu senso

de justiça e da sua sensibilidade no tocante à análise do mérito da pretensão

deduzida em juízo 120 O processo de conhecimento é aquele em que a parte realiza afirmação direito, demonstrando sua pretensão de vê-lo reconhecido pelo Poder Judiciário, mediante a formulação de um pedido, cuja solução será ou no sentido positivo ou no sentido negativo, conforme esse pleito da parte seja resolvido por sentença de procedência ou de improcedência (WAMBIER, 2008, p. 136). 121 A cognição é prevalentemente um ato de inteligência consistente em considerar, analisar e valorar as alegações e provas produzidas pelas partes, vale dizer, as questões de fato e as de direito que são deduzidas no processo e cujo resultado é o alicerce, o fundamento do judicium, do julgamento do objeto litigioso do processo.” (WATANABE, 2005, p. 67).

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Ao tratarmos da verdade subjetiva, devemos nos imiscuir no espírito daquele que julga. Lembramos que a inteligência, que tem função específica de propiciar a percepção da verdade, é faculdade indispensável ao julgador. A inteligência, às vezes, chega à verdade intuitivamente, ou seja, há a posse desta pela percepção intelectiva, ou verdade intuída, alcançando-a, outras vezes, pela sensibilidade, isto é, busca o auxílio dos sentidos para que ela, verdade, chegue ao espírito: é a verdade sensível. No processo, veremos ao seu tempo que o julgador utiliza-se da intuição e da sensibilidade para o exercício de seu mister (2000, p. 19).

A atividade cognitiva do juiz efetiva-se no momento em que o mesmo se

imiscui no conflito de interesses propriamente dito, mediante a análise das questões

de fato e de direito que integram a matéria de mérito da pretensão122. A cognição é

vista pela Escola Instrumentalista como uma atividade intelectual do juiz (muitas

vezes um exercício de subjetividade do julgador) mediante a análise e a decisão do

conflito de interesses contrapostos ora deduzidos em juízo, em que o julgador

consegue auferir o direito material a ser reconhecido no processo123. Nesse sentido

se posiciona Antônio Cláudio da Costa Machado

Na verdade, a cognição funciona como um ponto de contato, ou uma ‘ponte’, que permite a ligação entre a realidade do direito material e a de um processo que proponha a realizá-lo o mais plenamente possível. Talvez, melhor do que ‘ponte’ seja a ideia culinária de ‘ingredientes’ para identificar a cognição como elemento integrante do modus faciendi dos procedimentos judiciais, uma vez que o fenômeno cognitivo, ao se expressar ritualmente desta ou daquela maneira por meio da regulamentação dos atos do juiz, dará este ou aquele colorido ao procedimento como um todo, tornando-o mais ou menos habilitado para a realização satisfatória da vontade do direito material numa ótica sócio-jurídica (1998, p. 74).

É através do processo de conhecimento que o julgador realizará a valoração

dos pressupostos e dos requisitos que autorizarão a análise do mérito da pretensão,

com a finalidade de decidi-las. Para Alexandre Freitas Câmara a cognição é “a

técnica utilizada pelo juiz para, através da consideração, análise e valoração das

alegações e provas produzidas pelas partes, formar juízos de valor acerca das

questões suscitadas no processo, a fim de decidi-las” (1998, p. 48). Assim, pode-se

122 Na concepção de Jaime Guasp “La pretensión procesal es uma declaración de voluntad por la que se solicita uma actuación de un órgano jurisdiccional frenta a persona determinada y distinta del autor de la declaración” (GUASP, 1998, p. 206). 123 A cognição é, portanto, um ato de inteligência, de lógica do juiz. Mas não se limita a isto. É, também, uma atividade fortemente marcada pela ingerência de outros elementos, intitulados de componentes de caráter não-intelectual pelo professor Kazuo Watanabe. [02] Assim, condicionanes culturais, econômicos, políticos, sociais, axiológicos, volitivos, ocasionam os mais diversos reflexos na atividade cognoscente desenvolvida pelos juízes (GUEDES, 2011)

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afirmar que a cognição é a técnica que oportunizará ao julgador a possibilidade de

valoração solitária das provas e dos argumentos fáticos e jurídicos suscitados pelas

partes no processo. Além disso, ressalta-se que a cognição processual, tal como

exposto até então, efetiva-se mediante o convencimento do julgador a partir da sua

análise unilateral das discussões processuais. É por isso que para Murilo Carraras

Guedes “a cognição consagra, pois, toda a atividade intelectual realizada pelo

julgador para decidir qualquer processo. Não existem decisões, salvo quando

arbitrárias, despida de cognição (atividade intelectual séria e comprometida)” (2011).

Em contrapartida às discussões acima expostas pode-se afirmar que o

entendimento trazido pela maioria dos autores no que diz respeito à cognição

processual não é compatível com o modelo de processo proposto pelo Estado

Democrático de Direito, tendo em vista encontrar-se arraigado a um modelo de

processo e de jurisdição ainda centralizado na autoridade do julgador como ser

onisciente dotado de sapiência inata para o julgamento do mérito da pretensão a

partir do seu senso distributivo de justiça. É nesse sentido que se manifesta o

professor Rosemiro Pereira Leal acerca do tema

Evidente que seria tautológico e ridículo afirmar que o processo de conhecimento é o processo pelo qual o juiz toma conhecimento do processo. Processo de Conhecimento é segmento importante da Teoria do Processo, porque é uma conquista teórica relevantíssima para a humanidade que imprimiu novos rumos ao estudo do Processo pelo principio moderno da reserva legal, só se admitindo a cognição jurisdicional em bases normativas prévias (precedentes, anteriores) aos fatos e atos a serem jurisdicionalizados. O processo de conhecimento assenta-se no sistema probatório da persuasão racional, em que a ratio legis há de anteceder ao logos aleatório ou discricionário do julgador. O processo de conhecimento, como modalidade de direito fundamental constitucionalizado (ampla defesa, contraditório e isonomia pelo devido processo legal), proscreveu, de vez, os sistemas inquisitórios e dispositivo de livre convicção do juiz que se fazia a ainda se faz em legislações retrógradas, como a brasileira, em bases de arbítrio e em juízos de poder, equidade e conveniência, num percurso histórico que se registra desde as tribos primitivas, passando pelos Romanos, até o common law de nossos dias, como se vê, principalmente, nos judiciários ingleses e americanos (LEAL, 2009, p. 139) (grifo nosso).

A partir das proposições teóricas desenvolvidas no contexto da

processualidade democrático-constitucionalizada, a cognição deve ser revisitada e

passar a ser compreendida sob a égide do devido processo legal, do contraditório,

da ampla defesa e da isonomia processual. É necessário deixar de estudar a

cognição como um lócus de prevalência da subjetividade do julgador mediante a

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implementação de juízos axiologizantes e de equidade. É por isso que se faz

necessária a superação da ideologia do livre convencimento do juiz pelo advento da

persuasão racional pautada no principio da fundamentação jurídico-legal das

decisões judiciais. É esse o paradigma norteador das reflexões acerca da cognição

judicial no Estado Democrático de Direito, uma vez que a cognição não deve

decorrer do conhecimento cognominado inato à pessoa do juiz. O processo cognitivo

desenvolvido no âmbito constitucional-democrático materializar-se-á pelo espaço

destinado à racionalização da pretensão pelas provas e pelos argumentos trazidos

pelas partes no processo.

É necessário deixar de valorar a pretensão para racionalizar o processo

cognitivo mediante a instauração de um procedimento compartilhado de análise do

mérito da pretensão, retirando das mãos do julgador o poder e a autoridade

exclusiva de decidir conforme suas convicções. Nesse contexto, a cognição deixa de

ser uma atividade, uma técnica ou um método exclusivo de formação do

convencimento do julgador, para passar a ser vista como o referencial de

racionalização da pretensão pela atividade compartilhada das partes no que diz

respeito à construção do mérito processual pelos princípios institutivos do processo,

quais sejam, o contraditório, a ampla defesa, a isonomia processual e o devido

processo legal.

2.12 A problemática jurídica do mérito no processo de execução e nos procedimentos especiais de jurisdição voluntária

Conforme debatido anteriormente, o mérito processual compreendido a partir

da Exposição de Motivos do Código de Processo Civil brasileiro de 1973 é visto

como sinônimo da palavra lide124, considerando-se a lide como o objeto principal do

processo, uma vez que nela se exprimem as aspirações em conflito de ambos os

litigantes. Ao longo de toda a legislação processual civil vigente encontram-se

dispositivos legais que expressam claramente o intuito do legislador designar o 124 A identificação entre lide e mérito, todavia, apesar de inspiração carneluttiana, salvo engano jamais foi feita assim, em termos tão claros e radicais, pelo próprio Carnelutti. Como vimos, este conceitua o mérito a partir da lide, mas não diz que ele seja a lide. Mérito é, para ele, “o complexo de questões materiais que a lide apresenta”. Ao construir a sua conceituação em sede doutrinária, Alfredo Buzaid disse também, após expor o conhecido conceito de lide a partir de seu elemento material, que é o conflito de interesses: “o julgamento desse conflito de pretensões mediante o qual o juiz, acolhendo ou rejeitando o pedido, dá razão a uma das partes e nega-a à outra, constitui uma decisão definitiva de mérito”. Ele invocou também o pensamento de Liebman, que dissera: “lide é o fundo da questão, o que equivale dizer: o mérito da causa” (DINAMARCO, 1987, p. 200).

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mérito125 processual a partir do instituto da lide, tal como ocorre com o disposto do

artigo 267 (extinção do processo sem julgamento do mérito), artigo 468 (estabelece

que a sentença que julgar no todo ou em parte a lide tem força nos limites da lide e

das questões decididas em juízo) e o artigo 330 (que estabelece o julgamento

antecipado da lide, designando expressamente que se trata do julgamento

antecipado do mérito da demanda em virtude da existência de provas suficientes

nos autos a viabilizar o julgamento da demanda pelo juiz).

Verifica-se que a doutrina tem se utilizado indevidamente da expressão mérito

sem o cuidado necessário para individualizá-lo e diferenciá-lo da lide, ou seja, sem

muito rigor cientifico. Além disso, é muito comum verificar a confusão terminológica

existente entre os institutos do mérito, da pretensão, da demanda e da lide. A

demanda levada pelo requerente ao Judiciário é a primeira manifestação das partes

para viabilizar a delimitação da pretensão, uma vez que “a demanda, assim narrando

fatos, conclui por colocar diante do juiz uma pretensão, veiculada no pedido de

emissão de um provimento jurisdicional de determinada ordem, com conteúdo que

indica e referente ao bem da vida especificado” (DINAMARCO, 1987, p. 187). Dessa

forma pode-se conceituar a pretensão como a narração reivindicativa de direitos

descritos na petição inicial (instrumento gráfico-cartular materializador da pretensão).

O princípio da demanda consiste na oportunidade que as partes têm de delimitar os

fundamentos fáticos e jurídicos da pretensão deduzida no processo de

conhecimento. Além disso, sabe-se que a demanda é corolário do principio da

congruência, considerado o parâmetro regente para o julgador proferir sua decisão

nos limites126 do que as partes alegaram em juízo.

125 Mérito,meritum, provém do verbo latino mereo (merece) que, entre outros significados, tem o de “pedir, pôr preço” (é a mesma origem de “meretriz” e aqui também há a idéia do preço, exigência). Daí se entende que meritum causae (ou, na forma plural que entre os mais antigos era preferida, merita causae) é aquilo que alguém vem a juízo pedir, postular, exigir. O mérito, portanto, etimologicamente é a exigência que, através da demanda, uma pessoa apresenta ao juiz para seu exame (DINAMARCO, 1987, p. 202). 126 A lei processual é particularmente severa, ao sancionar o principio da correlação entre o provimento jurisdicional e a demanda, mesmo porque o provimento que ultrapasse qualquer dos limites postos por estas (partes, causa petendi, petitum) constituirá, de certa forma, exercício não provocado da jurisdição. A regra geral está no Código de Processo Civil, cujo artigo 128 estabelece que “o juiz decidirá a lide (rectius: a demanda) nos limites em que foi proposta”; fundamentos de fato diferentes dos alegados na demanda não podem ser considerados e o Código de Processo Penal exige providências destinadas a assegurar a mecânica do contraditório (art. 384), ou mesmo nova demanda (aditamento à denúncia ou queixa), quando fatos novos surgirem na instrução e forem relevantes; é defesa a prolação de provimento diverso do postulado, ou abrangendo objeto mais amplo que o indicado na petição inicial (CPC, art. 460). Os pronunciamentos extra ou ultra petita, ou de alguma outra forma violadores das limitações postas pela demanda, trazem surpresa para a parte

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Na concepção proposta por Cândido Rangel Dinamarco, existem três

posições fundamentais que poderão ser utilizadas na conceituação do mérito

processual: a) aqueles que conceituam o mérito processual no plano das questões,

ou complexos de questões referentes à demanda; b) os que se valem da demanda

ou de situações externas ao processo, trazidas a ele através da demanda; c) e por

último, aqueles que se utilizam da lide como fundamento para explicar e

compreender o mérito processual (1987, p. 188).

Liebman e Carnelutti vêem o mérito da demanda nas questões de fundo do

processo, quais sejam, as questões de mérito, consideradas como todas as

alegações de fato e jurídicas que integram a pretensão. A questões de mérito nada

mais são do que os pontos controvertidos da demanda, que nortearão o julgador na

construção do mérito processual. Nesse sentido Carnelutti se posiciona no sentido

de que o “mérito da lide significa, portanto, o complexo das questões materiais que a

lide apresenta”. Garbagnati define mérito como “grupo de questões relativas ao fato

constitutivo do direito invocado processualmente pelo autor e à escolha e

interpretação das normas jurídicas que lhe serão aplicadas”. Já Enrico Tulio

Liebman, citado por Candido Rangel Dinamarco (1987, p. 189) afirma

O conhecimento do juiz é conduzido com o objetivo de decidir se o pedido formulado no processo é procedente ou improcedente e, em conseqüência, se deve ser acolhido ou rejeitado. Todas as questões cuja resolução possa direta ou indiretamente influir em tal decisão formam, em seu complexo, o mérito da causa. Com isso, está o Mestre asseverando que o mérito é representado pelas questões com influência na decisão (que o juiz prepara através da cognição) sobre a procedência ou improcedência da demanda.

É indiscutível a relação existente entre mérito e questões controversas que

permeiam a demanda, assim como afirma Fazzalari, para quem o “mérito é o objeto

da controvérsia, ou seja, a situação substancial e seus componentes”

(DINAMARCO, 1987, p. 193). Considerando-se que os pedidos do autor na exordial

e eventuais pedidos do requerido na reconvenção constituem o objeto do processo

pode-se afirmar que o mérito processual consistirá na argumentação jurídica das

questões que permeiam e integram os pedidos das partes. Certamente trata-se de

uma noção essencialmente individualista e privada do entendimento do mérito

processual limitado aos pedidos expressamente feitos pelas partes, porém, tal

vencida e constituem inegável violação à exigência constitucional do contraditório, bem merecendo, portanto, a repulsa que lhes devota a lei (DINAMARCO, 1987, p. 186-187).

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entendimento não deixa de ser oportuno e coerente no sentido em que a própria

noção de mérito processual perpassa pelo debate das questões trazidas pelas

partes no processo.

Giusseppe Chiovenda associa em sua obra o conceito de mérito processual à

demanda inicialmente proposta em juízo pela parte interessada, sustentando ser de

mérito a sentença em que o juiz se manifesta sobre a demanda da parte autora. É

nesse sentido que o autor afirma que “a sentença de mérito é o provimento do juiz

acolhendo ou rejeitando a demanda do autor destinada a obter a declaração da

existência de uma vontade da lei que lhe garanta um bem ou da inexistência de uma

vontade da lei que o garanta ao réu” (CHIOVENDA, 1928, p. 100). Verifica-se que o

autor pretende diferenciar o mérito processual das questões a ele atinentes, tendo

em vista que afirma que dentre as questões de mérito temos as questões sobre as

condições da ação (importante ressaltar que se trata de posicionamento bastante

particular, uma vez que a partir de proposições de cunho concretista Chiovenda

afirma que a sentença que decide sobre as condições da ação é de natureza

meritória). È por isso que “para ele, o mérito reside na demanda, na medida em que

assevera ser de mérito a sentença que a acolhe ou rejeita” (DINAMARCO, 1987, p.

195).

A partir das considerações expostas por Chiovenda verifica-se que a

demanda é o parâmetro teórico para o entendimento jurídico acerca do mérito

processual, incluindo-se como matéria de mérito tanto a decisão em que o

magistrado reconhece a ausência de alguma das condições da ação quanto a

decisão em que aprecia todas as questões de fato e de direito que integram a

demanda levada ao Judiciário pelas partes, tendo em vista que para o autor em tela

a demanda é considerada o mérito da causa.

Outros autores, tais como Redenti, Friedrich Lent e Fazzalari127, adotam

entendimento distinto dos que já foram expostos anteriormente, tendo em vista que

afirmam que “o mérito, portanto, ou objeto do processo, seria representado pela

127 Para o processualista italiano Elio Fazzalari o mérito é o objeto da controvérsia da demanda judicial, ou seja, a situação substancial e seus componentes. A alusão à situação substancial, como expressão do mérito, não é tão inconveniente quanto a referência à relação controvertida. Situação jurídica é locução menos precisa e mais ampla e correspondente, na linguagem desse autor, ao direito subjetivo deduzido em estado de asserção. A posição de Fazzalari, bem pensado, significa que o mérito (“parâmetro para a determinação dos deveres do juiz e poderes das partes”) reside na afirmação de direito subjetivo, da obrigação correspondente, da lesão e (eventualmente) da situação extraordinariamente legitimante (DINAMARCO, 1987, p. 197-198).

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relação jurídica substancial controvertida128 pelas partes: controvertida quanto à sua

existência, inexistência, modo de ser” (DINAMARCO, 1987, p. 196). Os respectivos

autores partem da pressuposição de que a relação jurídica controvertida preexiste

ao processo, é de natureza privada e, por isso, se utilizam do processo como

instituto que viabilizará às partes buscarem judicialmente uma manifestação do

julgador no que tange à controvérsia ora exposta.

Delimitar o entendimento do mérito processual a uma relação controvertida de

direito material é o mesmo que reconhecer a existência do debate de questões de

mérito apenas no contexto do processo de conhecimento. Praticamente toda a

produção cientifica no âmbito do processo civil sinaliza para o estudo e o debate

jurídico do mérito como algo inerente ao processo de conhecimento. Dessa forma,

não seria possível visualizar a discussão meritória no processo de execução, uma

vez que a sua finalidade seria, tão somente, garantir a satisfatividade de um direito

material incontroverso esculpido em um título executivo. Da mesma maneira, não

seria possível identificar a discussão meritória nos procedimentos especiais de

jurisdição voluntária, tendo em vista a ausência de litigiosidade ou de relação jurídica

controvertida.

Para aqueles estudiosos que vinculam o estudo do mérito à ideologia do

processo como instrumento de resolução e de apreciação ou análise de relações

jurídicas litigiosas ou controvertidas, é certo não será possível imediatamente pensar

o mérito processual sob a égide do processo de execução e dos procedimentos

especiais de jurisdição voluntária. Porém, a compreensão sistemática do tema ora

exposto perpassa pela revisitação e a reconstrução teórica do próprio conceito de

mérito, bem como a superação do entendimento relacionado ao reducionismo do

mérito processual à noção de lide, tal como proposto e desenvolvido por Carnelutti.

Embora a finalidade imediata do processo de execução seja a satisfatividade

do crédito pretendido pelo exeqüente e materializado em um titulo executivo (judicial

ou extrajudicial), é sabida a possibilidade de vícios ou de nulidades na constituição

do titulo, considerado um dos inúmeros fundamentos que ensejariam a possibilidade

de discussão jurídica do mérito no processo de execução. A propositura dos

Embargos a Execução, assim como da Impugnação na Fase de Cumprimento de

128 A relação jurídica litigiosa relevante para o processo é, no pensamento de Betti, relação jurídica afirmada e cuja existência será objeto de declaração a ser dada afinal pelo juiz (DINAMARCO, 1987, p. 198)

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Sentença, são momentos processuais em que o executado poderá suscitar a

necessidade do debate do mérito da pretensão executiva.

As alegações do executado constituem matéria de mérito no momento em

que demonstram e alegam a inexistência do débito pretendido pelo exequente, ou

seja, sempre que o magistrado declarar judicialmente a inexistência da relação

obrigacional entre exequente e executado enfrentará o mérito da pretensão no

contexto do processo de execução. Ou seja, todo provimento jurisdicional em que se

reconheça a inexistência da relação jurídica entre credor e devedor perpassa pela

discussão meritória no contexto processual.

Compreender o mérito processual como a oportunidade assegurada à partes

de debater jurídico-legalmente a pretensão deduzida pode ser visto como importante

fundamento para a revisitação da ideologia vigente de que no processo de execução

não existe discussão meritória. O máximo que podemos afirmar é que o processo de

execução não tem especificamente o propósito de discussão do mérito processual,

considerando-se sua finalidade imediata, mas tal afirmação não pode ser utilizada

no sentido de inviabilizar por total a possibilidade de construção e de debate

meritório no cerne das pretensões executivas.

Excluir a possibilidade de qualquer discussão meritória no processo de

execução é admitir a validade absoluta de todo e qualquer titulo executivo, partindo-

se do pressuposto de que seria impossível visualizar ou admitir vícios jurídicos que

pudessem impedir a satisfação do crédito pretendido pelo exeqüente. Seria o

mesmo que reconhecer que todo titulo objeto de execução deveria ser pago pelo

executado ao exeqüente, retirando do devedor eventual ou possível direito de

exercício do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.

Reconhecer a possibilidade de discussão do mérito no processo de execução

é legitimar as partes no direito de participar da construção do mérito processual,

garantindo ao executado o direito de resistência legitima à pretensão executiva

trazida pelo exeqüente ao Judiciário. Inúmeras questões de mérito poderão ser

suscitadas pelo executado na defesa do processo de execução: vicio de vontade na

emissão de titulo executivo extrajudicial; comprovação de pagamento total ou parcial

do débito alegado; nulidade processual absoluta em titulo executivo judicial (vício ou

ausência de citação); inexistência de relação jurídica entre credor e devedor

suficiente para viabilizar a emissão de titulo executivo. Em toda e qualquer alegação

legitima apresentada pelo executado como forma de resistir à pretensão executiva

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do exeqüente é possível vislumbrar a discussão de mérito, mesmo que sejam

alegações atinentes a vícios formais suficientes para inviabilizar a satisfação do

crédito pelo exeqüente.

Nos dizeres de Candido Rangel Dinamarco

O executado que queira opor resistência à pretensão do exeqüente, terá o ônus de ofertar embargos, fora da relação processual e do procedimento de execução. O afastamento das questões de mérito não significa, porém, que inexista mérito no processo executivo. Há o mérito representado pela pretensão executiva deduzida mediante a demanda inicial. O fato de eventual julgamento a respeito ter outra sede (a dos embargos) não significa que mérito inexista naquele processo (1987, p. 207).

Na sentença que julga os embargos de devedor o magistrado adentra às

questões de mérito suscitadas pelas partes juridicamente interessadas na demanda,

tendo em vista que a oportunização do contraditório e da ampla defesa representa o

parâmetro para justificar a análise e a discussão do mérito processual.

Especificamente no processo de execução o que temos é a discussão indireta do

mérito processual, haja vista que a apreciação e o julgamento das questões

meritórias discutidas nos embargos de devedor certamente refletirão na

exigibilidade, certeza e liquidez da pretensão executiva.

O fundamento da ideologia de inexistência do mérito no processo de

execução justifica-se no fato de toda a discussão meritória condicionar-se à matéria

alegada pelo executado em sua defesa. “O afastamento das questões de mérito não

significa, porém, que inexista mérito no processo executivo” (DINAMARCO, 1987, p.

207). È certo afirmar que não é possível afirmar que em todo processo de execução

encontra-se o debate do mérito processual, tendo em vista que naqueles processos

em que o devedor reconhece o pedido do exequente não se pode visualizar o

debate do mérito em virtude da inexistência de resistência do executado quanto à

satisfatividade do crédito pretendido pelo exequente.

Especificamente no processo de execução, o reconhecimento do pedido pelo

executado inviabiliza a análise do mérito da pretensão pelo magistrado, uma vez que

o critério legítimo para auferir o enfrentamento do mérito no processo de execução

encontra-se na defesa do executado, especialmente na resistência do executado em

reconhecer a obrigação exigida pelo exequente. Já no processo de conhecimento, o

reconhecimento do pedido pela parte demandada não acarretará a impossibilidade

de analise do mérito da pretensão. O próprio legislador do Código de Processo Civil

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brasileiro de 1973, em seu artigo 269, inciso II afirma expressamente que haverá

resolução de mérito quando o réu reconhecer a procedência do pedido do autor. A

análise do mérito no presente caso decorre do debate isonômico estabelecido entre

as partes (demandante e demandado), que conjuntamente com o magistrado,

deliberaram pela ratificação da pretensão do requerente.

Cândido Rangel Dinamarco é categórico ao afirmar que “há o mérito

representado pela pretensão executiva deduzida mediante a demanda inicial” (1987,

p. 207). No mesmo sentido o autor afirma que o fato do exame do mérito da

pretensão ter o seu julgamento em outra sede (a dos embargos) não significa dizer

que o mérito inexista no processo de execução.

É necessário esclarecer que a constatação da existência de matéria de mérito

no processo de execução129 acarretará conseqüentemente uma sentença de mérito.

No momento em que o magistrado julga procedente os embargos a execução,

declarando inexistir o crédito pretendido pelo exequente, certamente adentrará ao

mérito da pretensão porque o conteúdo de tal decisão é o reconhecimento da

inexistência de relação jurídico-creditícia entre as partes. Contrariando o

entendimento acima exposto, Cândido Rangel Dinamarco, citando José Carlos

Barbosa Moreira, afirma que temos sentença de mérito nos embargos de devedor

cujos efeitos se estendem para o processo de execução em si

O que é certo não haver ali é a sentença de mérito. Barbosa Moreira colheu bem a situação, dizendo que a definição da sentença como ato que põe termo ao processo ‘decidindo ou não o mérito da causa’ foi feita com ‘olhos fitos exclusivamente no processo de conhecimento e no cautelar, porque na execução não existe mérito a ser apreciado. Não é que não haja mérito ali, o que não há é a apreciação do mérito (1987, p. 207).

Pela citação acima mencionada verifica-se que a intenção do autor é

demonstrar que a discussão do mérito processual concentra-se no julgamento dos

embargos, e não propriamente no processo de execução. O que se pode observar é

que no processo de execução temos a extensão dos efeitos da decisão de mérito

que julgou os embargos, e não propriamente o julgamento do mérito do processo de

execução. Tal debate existe somente pelo fato do procedimento adotado no

129 O reconhecimento mais autorizado da existência do mérito na execução está no próprio título de famoso livro de Liebman “Le opposizioni di merito nel processo di esecuzione”. A tradução brasileira abandonou a literalidade do título original (seria: os embargos de mérito), sendo conhecida como Embargos do Executado (DINAMARCO, 1987. p. 207).

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processo civil brasileiro estabelecer o trâmite dos embargos a execução em autos

distintos do processo de execução em si. Certamente se os embargos130 fossem

protocolizados e julgados nos mesmos autos do processo de execução tal discussão

cientifica seria inócua no sentido em que o julgamento procedente dos embargos a

execução implicaria no julgamento e na análise do próprio mérito da execução em si.

Na atual sistemática de execução de titulo judicial no Brasil a apresentação da

defesa do executado (impugnação) ocorrerá nos mesmos autos em que o titulo

judicial se encontra (sincretismo processual) e é executado, o que torna inócua a

discussão atinente à análise do mérito apenas quando do julgamento da defesa no

processo de execução, e não no processo de execução em si.

É certo que a defesa do executado é o que viabilizará a discussão do mérito

processual, mas isso não justifica a afirmação no sentido de que o debate do mérito

processual tem seus efeitos limitados ao campo da defesa da parte executada, não

se estendendo para o contexto amplo do processo de execução.

Com previsão nos artigos 1103 a 1210 do Código de Processo Civil brasileiro de

1973, os procedimentos especiais de jurisdição voluntária materializam claramente o

propósito do Estado em controlar a legalidade de relações jurídicas de cunho

essencialmente privado, cuja característica central é a consensualidade entre as

partes diretamente interessadas na pretensão deduzida em juízo. A inexistência de

lide nas pretensões atinentes aos procedimentos especiais de jurisdição voluntaria é

o ponto central de toda a problemática jurídica referente ao mérito processual, tendo

em vista a intrínseca relação existente entre litigiosidade131 e mérito que permeia o

estudo do respectivo tema para o direito processual civil brasileiro.

130 O mérito da execução, quando julgado através dos embargos (CPC, art. 471, inc. VI: fundamentos de direito material), conduz a uma sentença que declara procedente ou improcedente a execução mesma. Os termos são inversos: procedência dos embargos, improcedência da pretensão executiva; improcedência dos embargos, procedência desta. O próprio Código de Processo Civil, aliás, fala de uma sentença “que julgar improcedente a execução de dívida ativa da Fazenda Pública” (art. 475, inc. III): é a que julga procedentes os embargos de mérito opostos a ela, acolhendo-os (DINAMARCO, 1987, p. 207-208) 131 Não havendo litígio não se fala de partes, e do mesmo modo, de contestação. Na jurisdição voluntária têm-se interessados e a citação dá oportunidade manifestação de um dos interessados em 10 dias. Não havendo litígio nem um processo contencioso, não se admite nessa manifestação ou resposta a notificação reconvenção, embora, possa incidir efeito da revelia. A litigiosidade pode ocorrer no efeito incidental e o juiz tem ampla e livre liberdade de investigação dos fatos podendo aplicar às soluções os elementos de conveniência e oportunidade, como por circunstâncias supervenientes, sem prejuízo aos efeitos já produzidos, poderá modificar a sentença. (AYRES, 2010) Disponível: http://www.webartigos.com/artigos/jurisdicao-voluntaria/33601/. Acesso: 12 out. 2011.

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Inúmeras são as criticas cientificas à jurisdição voluntaria no sentido de

acarretar o desvirtuamento da função típica do Judiciário132, tal como explicita Gisele

Leite: “A chamada jurisdição voluntária também denominada de graciosa ou

administrativa, nada tem de gratuita e realmente desfigura as funções do Poder

Judiciário, arremessando-as para o terreno à Administração própria do Poder

Executivo” (2004) . José Frederico Marques, citado por Gisele Leite, afirma que a

“jurisdição voluntária é uma atividade administrativa que o Judiciário exerce na tutela

de direitos subjetivos” (2004).

A máxima que norteia o estudo da jurisdição voluntária consiste na legitimidade

do Judiciário imiscuir-se na administração pública de interesses privados dos

jurisdicionados. É por isso que se afirma que a jurisdição voluntaria é exercida inter

volentes, ou seja, por solicitação ou por consentimento exclusivo dos interessados

na pretensão.

Considerando-se que toda a teorização da jurisdição se deu a partir do conceito

de lide e da legitimação de um poder mítico concedido ao juiz para resolver conflitos

de interesses entre particulares, verifica-se entre a maioria dos autores e

pesquisadores do direito processual civil que a jurisdição voluntária é uma atividade

atípica do Judiciário e que a jurisdição contenciosa é considerada uma atividade

essencialmente jurisdicional133.

A sistematização teórica da jurisdição enquanto poder do julgador dirimir a

litigiosidade entre as partes através da aplicação do direito vigente (lei) causa

reflexos diretos na compreensão do mérito no contexto dos procedimentos especiais

de jurisdição voluntária134. Considerando-se que tradicionalmente o mérito

processual é explicado a partir do conceito de lide, poder-se-ia afirmar previamente

132 As diversas teorias sobre a natureza jurídica da jurisdição voluntária podem ser enquadradas, a grosso modo, em cinco grupos, onde é encarada I) como uma atividade administrativa; II) como uma atividade genuinamente jurisdicional; III) como um tertium genus; IV) como uma atividade negocial e V) como não sendo jurisdicional e não se sabendo a que categoria pertence, presumindo que seja administrativo. (MARQUES, 2011). 133 A jurisdição contenciosa produz coisa julgada, a voluntária não produz. Até porque a decisão final paira sobre numa equação de incógnitas eternamente variáveis. Aliás, a coisa julgada é bem mais adequadamente conceituada como a qualidade de que se reveste a sentença tornando-se numa decisão definitiva, imutável e irrecorrível. Na jurisdição contenciosa há partes, na voluntária há interessados ou requerentes conforme menciona o art. 1.104 do CPC; enquanto que o art. 262 do CPC que explicita escrachadamente que “o processo civil começa por iniciativa da parte”. (LEITE, 2004) Disponível: http://jusvi.com/artigos/2119. Acesso em: 12 out. 2011. 134 Na jurisdição contenciosa há ação, na voluntária há simples pedido de um interessado. Tanto é assim que o art. 1.112 e seguintes do CPC in verbis menciona “o procedimento terá início...”. Assim na jurisdição contenciosa há ação e pretensão; na voluntária não há ação nem pretensão, entendida a pretensão como a exigência de que um interesse alheio se subordine ao próprio (LEITE, 2004).

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que inexiste discussão meritória na jurisdição voluntária, uma vez que a atuação do

julgador não seria para dirimir conflitos de interesses, mas apenas ratificar o

entendimento consensualmente adotado pelos particulares. Dessa forma, a

teorização do mérito processual nos procedimentos especiais de jurisdição

voluntária pressupõe a revisitação do clássico e dogmático entendimento de que o

mérito processual é a lide levada pelas partes para que o Judiciário possa resolvê-la

por meio da lei.

A desvinculação entre lide e mérito135 é o pressuposto da ressemantização do

tema na perspectiva crítica, tendo em vista que no paradigma da constitucionalidade

democrática o mérito processual é corolário dos princípios da ampla defesa, do

contraditório, da isonomia processual e do devido processual legal, cuja finalidade é

viabilizar amplamente o debate fático e jurídico da pretensão mediante a isonômica

participação de todos os interessados. A ausência de lide nos procedimentos

especiais de jurisdição voluntária não implica necessariamente a impossibilidade de

debate cientifico da pretensão pelas partes interessadas. Tal afirmação justifica-se

pelo fato da lide não poder ser vista como requisito indispensável ao debate jurídico

da pretensão, uma vez que até mesmo no âmbito da consensualidade é

perfeitamente possível a instauração do debate jurídico-legal da pretensão deduzida.

Os interessados na pretensão objeto dos procedimentos especiais de jurisdição

voluntária têm legitimidade na instauração do debate jurídico no espaço processual,

com a finalidade de oportunizar a construção participada do provimento jurisdicional.

O julgador não deve assumir uma postura necessariamente inerte com a finalidade

exclusiva de ratificar o posicionamento dos interessados, tendo em vista que é

imprescindível que atue de forma mais ativa na participação do debate das questões

meritórias que integram a pretensão e o objeto da jurisdição voluntária, até porque

nem sempre o que as partes inicialmente buscam junto ao Judiciário é a forma mais

legítima de resguardar isonomicamente direitos de todos os interessados. Ao

julgador cabe o dever de implementar a isonomia entre as partes e os demais

interessados no debate do mérito processual da pretensão objeto da jurisdição

135 A Exposição de Motivos do Código de Processo Civil consagrou que a lide só é usada no projeto para designar o mérito, embora o Código de Processo Civil empregue o vocábulo lide em sentido diverso. Evidente a influência Carneluttiana na identificação entre lide e mérito; mas o mestre italiano não fez tal identificação. Embora conceitue mérito a partir da lide, não diz ser essa o próprio mérito. Este “é o complexo de questões materiais que lide a apresenta” (DINAMARCO, 1986, p. 200) (RODRIGUES, 2002, p. 60).

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voluntária, além de se inserir como sujeito legitimado a participar da discussão fática

e jurídica do mérito.

A proposição teórica de discussão do mérito processual na jurisdição voluntária

é uma questão até hoje não enfrentada diretamente pelos estudiosos do processo

civil, tendo em vista a clássica associação existente entre lide e mérito processual. A

discussão da respectiva problemática cientifica implica na desconstrução da

concepção tradicional sobre mérito processual vigorante entre os autores. É

necessário repensar o mérito processual como um tema atinente ao modelo

democrático de processo e como a oportunidade de ingerência direta das partes na

construção do provimento. Para isso, faz-se necessária a superação do

entendimento de que o mérito consiste apenas na análise das questões de fato e de

direito que integram a lide, uma vez que as questões de mérito devem ser vistas

como toda e qualquer questão que viabilizará o debate da pretensão,

independentemente da sua vinculação com a lide. Não podemos desconsiderar a

existência do debate meritório nas clássicas pretensões decorrentes de uma relação

litigiosa, porém, não é possível desconsiderar ou ignorar a temática do mérito

processual no contexto da jurisdição voluntária.

Vincular o debate jurídico do mérito da pretensão à existência de lide é

reconhecer o caráter autocrático do modelo de processo civil vigente e desenvolvido

a partir da ideologização da autoridade do julgador136 em decidir e se manifestar

unilateralmente sobre o conflito de interesses (relação jurídica litigiosa) envolvendo

as partes diretamente vinculadas e interessadas na pretensão.

2.13 O Mérito no Código de Processo Civil Italiano

O artigo 24, 1º da Constituição Republicana da Itália enuncia que todas as

pessoas poderão agir em juízo na busca da tutela de direito próprio, desde que

demonstre a legitimidade processual e o interesse jurídico na demanda

(MANDRIOLI, 2000, p. 7). O processo italiano, na concepção desenvolvida por

Mandrioli é visto como um fenômeno jurídico, ou seja, uma situação jurídica através

136 Para, então, desenvolver e desempenhar a função de Justiça Pública, estabeleceu-se a JURISDIÇÃO, como o “PODER QUE TOCA AO ESTADO, ENTRE AS SUAS ATIVIDADES SOBERANAS, DE FORMULAR E FAZER ATUAR PRATICAMENTE A REGRA JURÍDICA CONCRETA QUE, POR FORÇA DO DIREITO VIGENTE, DISCIPLINA DETERMINADA SITUAÇÃO JURÍDICA”, segundo Liebman (MARQUES, 2011) (grifo nosso).

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da qual o processo viabiliza a operacionalização e a aplicação de uma norma

jurídica genérica a um determinado caso particular (MANDRIOLI, 2000, p. 31). A

norma jurídica busca valorar abstratamente comportamentos humanos, enquanto o

processo busca a análise de uma situação jurídica especifica em que a norma

jurídica será valorada em determinado caso concreto.

O processo é visto como um fenômeno jurídico unitário, dinâmico e

instrumental, que se desenvolve a partir de uma série de situações particulares que

acontecem ao longo do tempo. Dessa análise emerge evidente a autonomia do

fenômeno jurídico processual frente ao direito substancial, ou seja, o processo passa

a ser visto como um instrumento aparentemente mais simples, que se evidencia a

partir de uma relação jurídica constituída entre o autor, o réu e o órgão judicial, cuja

finalidade é a busca pela prestação jurisdicional. Os pressupostos processuais (ou

pressupostos da relação processual) também são vistos como requisitos extrínsecos

ao mérito processual e que devem ser observados para assegurar a existência

jurídica válida da relação processual (MANDRIOLI, 2000, p. 34-37).

No direito processual civil italiano encontramos as condições da ação137 como

requisitos intrínsecos à demanda e que devem ser previamente observados para

que o mérito processual possa ser apreciado em juízo (MANDRIOLI, 2000, p. 39-43)

(a ausência das condições da ação acarretará a impossibilidade de prosseguimento

do processo e, por conseguinte, da análise do mérito).

A possibilidade jurídica do pedido, considerada a primeira condição da ação,

consiste no dever do autor da ação demonstrar previamente a viabilidade jurídica da

pretensão, para que obtenha êxito quanto à análise jurídica do mérito da demanda.

A fundamentação jurídica da pretensão (demanda) deduzida em juízo encontra-se

diretamente vinculada com a possibilidade jurídica do pedido. Dessa forma, fica

bastante complicado desvincular a fundamentação jurídica da pretensão

(possibilidade jurídica do pedido) do mérito processual, até porque, a construção do

mérito processual perpassa diretamente pela análise da fundamentação jurídica da

pretensão deduzida. Considerar a possibilidade jurídica como matéria pré-meritória

nada mais é do que antecipar a análise do mérito processual, uma vez que no

137 As condições da ação são requisitos indispensáveis à análise do mérito da pretensão e ao reconhecimento da pretensão deduzida pelas partes, ou seja, são requisitos extrínsecos ao mérito processual que visam garantir a validade da relação jurídica mediante a observância da legitimidade ad causam, interesse de agir e da possibilidade jurídica do pedido (SATTA; PUNZI, 2000, p. 134).

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momento em que o julgador manifesta que a pretensão não é juridicamente viável

certamente analisará o mérito da demanda.

Entende-se por interesse de agir a demonstração, pelo autor da ação, de

fatos constitutivos e de fatos lesivos a um direito alegado em juízo (MANDRIOLI,

2000, p. 44), conforme preceitua o artigo 100 do Código de Processo Civil italiano. A

legitimidade para agir pode ser auferida mediante a afirmação da titularidade do

autor da ação com relação ao direito afirmado na demanda judicial em desfavor do

réu (legitimado processual ativo é aquele que afirma ser titular do direito pretendido

na demanda e legitimado processual passivo é aquele contra quem se alega a

violação do direito) (MANDRIOLI, 2000, p. 44).

A comprovação da ausência de alguma condição da ação ou de algum

pressuposto processual inviabilizará o exame do mérito (MANDRIOLI, 2000. p. 45).

O exercício da jurisdição no direito processual civil italiano consiste no poder

exercido pelo juiz que o legitima a descobrir e a criar138 o direito mais adequado ao

caso concreto (PICARDI, 2008, p. 12-15). Verifica-se que a atuação do julgador

consiste na auferição da existência de elementos pré-meritórios (condições da ação

e pressupostos processuais) bem como na análise do mérito da pretensão deduzida

em juízo. No que concerne ao exame do mérito a atuação do julgador ficará adstrita

e vinculada à alegação das partes (autor e réu), embora seja expressamente

reconhecida e legitimada a atuação de um juiz ativo e dinâmico, munido de amplos

poderes de direção formal e material do processo (TROCKER, 1974, p.7). O juiz

dispõe de amplos poderes discricionários139 no que concerne à formação da

sentença

138 Uma primeira orientação atribui ao juiz a função de “descobrir” (Rechtsfindung) as regras, escavando na magma do direito, estendendo ou restringindo, integrando ou corrigindo o dado normativo, o juiz desenvolve uma série de operações hermenêuticas, a sua vez sofisticadas, dirigidas a descobrir a regula iuris e aplicá-la no caso concreto. Em definitivo, segundo tal orientação o juiz, “encontrada” a regra, “declara-a” (Rechtsprechung); o legislador, por sua vez, dita a regra (Rechtssetzung) (PICARDI, 2008, p. 13). 139 Na verdade, a discricionariedade é um conceito de relação. A discricionariedade do juiz, em particular, é colocada em conexão indissolúvel com a própria função judiciária. Nas hipóteses em que o juiz deva escolher entre duas ou mais alternativas, igualmente legítimas, deverá tomar a decisão mais oportuna para desempenhar a função reclamada. O poder discricionário do juiz se, de um lado, não é um poder vinculado, de outro, nem mesmo é um poder absoluto, enquanto relacionado à própria função jurisdicional e, como tal, sujeito a limites. Com efeito, a margem de discricionariedade concedida aos juizes é relativa, na medida em que opera em um determinado âmbito espacial e temporal e, portanto, pode variar segundo os diversos ordenamentos e épocas. Uma alteração normativa, ou de fato, ou até uma alteração socioeconômica, pode ampliar ou restringir a margem de discricionariedade deixada ao juiz (PICARDI, 2008, p. 17).

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Já há tempos colocou-se em evidência que a atividade do intérprete não pode se reduzir a uma simples explicitação, mas é sempre uma contínua “reformulação” “da norma”, e também se esclareceu que a individualização da regra a ser aplicada no caso concreto, longe de se impor do exterior, é fruto de uma escolha que o juiz desenvolve na interpretação ou aplicação da norma. Hoje é precisado que, no iter de formação da sentença, o juiz dispõe de amplos poderes discricionários e, exatamente por meio do exercício desses poderes, é que ele cria a decisão (PICARDI, 2008, p. 15).

Ainda no que diz respeito ao exercício da jurisdição no processo civil italiano

ressalta-se a pronúncia segundo o juízo de equidade, que constitui uma exceção a

regra contida no artigo 113 do Código de Processo Civil italiano, segundo a qual o

juiz deve, no momento em que for decidir, seguir a norma jurídica (MANDRIOLI,

2000, p. 69). O juízo de equidade vem ratificar a discricionariedade do julgador e

pode ser utilizado apenas excepcionalmente nas hipóteses expressamente previstas

em lei e que englobam pretensões de menor complexidade.Importante ressaltar que

tal possibilidade materializa o direito do julgador utilizar-se de argumentos de cunho

metajurídico na análise do mérito processual.

A utilização da equidade e da discricionariedade pelo julgador representa o

caráter autoritário da concepção de processo vigente no direito italiano, cujo

exercício da jurisdição encontra-se concentrado nas mãos do julgador, o que

impossibilita qualquer tentativa de democratizar a construção participada do mérito

processual.

A Lei Fundamental de Bonn140, publicada na Alemanha em 23 de maio de

1949, considerada o fundamento do neoconstitucionalismo e a base do

entendimento jurídico do Estado Constitucional de Direito, instituiu a ação como um

direito constitucional a tutela jurisdicional (TROCKER, 1974, p.183). Nesse contexto

pode-se afirmar que a acepção constitucionalizada acerca do direito de ação não

comporta as condições da ação, uma vez que a ação consiste no exercício do direito

à discussão e à análise do mérito processual, independentemente de qualquer

requisito que venha a obstaculizar o enfrentamento do mérito da demanda pelo

julgador. A ação, no processo civil italiano, caracteriza-se por ser o direito a uma

prestação jurisdicional bem diversa e autônoma da prestação que constitui o direito

substancial, ou seja, a ação é um direito para o qual o juiz (como um órgão do

140 Embora a Lei Fundamental de Boon tenha sido produzida no contexto do direito alemão, ressalta-se a sua direta influência quanto ao direito processual civil italiano.

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Estado) manifesta-se através de um provimento de mérito (MANDRIOLI, 2000, p.

47).

O artigo 101 do Código de Processo Civil italiano enuncia que o juiz não pode

se pronunciar sobre a demanda se a parte contra a qual é proposta a ação não foi

regularmente citada para o exercício efetivo do principio do contraditório. É

importante esclarecer que a demanda consiste no pedido ao juiz de um provimento

de mérito (MANDRIOLI, 2000, p. 78-79). Faz-se necessária de instauração de uma

situação jurídica através da qual a implementação do contraditório viabilizará a

dialeticidade entre as partes no processo, a fim de proporcionar ao juiz condições de

julgamento e análise da pretensão. O processo civil italiano destaca o principio da

colaboração e da responsabilidade processual das partes com relação à construção

do provimento, ressaltando-se que a colaboração das partes não deve ser vista

como mera participação, mas sim, como a oportunidade efetiva de influenciar

diretamente na construção do mérito processual (TROCKER, 1974, p. 667-668).

A finalidade central do processo é proporcionar às partes o direito concreto de

efetivamente desempenharem o papel de sujeitos ativos e legitimados a atuarem

diretamente na solução do litígio, sabendo-se que a efetivação do contraditório

condiciona-se a existência de um espaço processual em que os sujeitos do processo

possam debater, de forma jurídica e isonômica, a pretensão deduzida em juízo.

Além de assegurar o direito de participação no processo, o contraditório

assegura às partes o direito de não serem surpreendidas por uma decisão de mérito

em que não tiveram qualquer oportunidade de participação e responsabilidade

processual. O principio do contraditório materializa o direito de igualdade de

manifestação das partes no processo (TROCKER, 1974, p. 385), ou seja, o

contraditório no processo civil italiano é visto como um princípio constitucional

previsto no artigo 24 da Constituição Italiana e que exterioriza o direito de defesa

das partes.

Ressalta-se, ainda, que o não enfrentamento do mérito em decorrência da

constatação da ausência de alguma das condições da ação ou dos pressupostos

processuais inviabiliza o exercício e a implementação efetiva do principio do

contraditório, tendo em vista que as partes juridicamente interessadas no provimento

não terão a oportunidade de participar da construção do mérito processual da

demanda.

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O direito de participação das partes no processo materializa-se pela

oportunização de controle da atividade jurisdicional, especificamente no que diz

respeito ao mérito processual. No momento em que as partes diretamente

interessadas nos provimentos são chamadas a participarem da discussão e da

construção do mérito processual a atividade jurisdicional passa a ser exercida de

forma democrática e menos autoritária pelo julgador.

A proposta da presente pesquisa é justamente debater a existência de

critérios e de fundamentos jurídicos a fim de esclarecer quem são as partes

legitimamente habilitadas a participarem da construção do mérito processual em

cada provimento construído no âmbito jurisdicional, ou seja, busca-se, a partir da

Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas desconstruir a concepção de

processo coletivo pensado a partir dos sujeitos para compreende-lo

sistematicamente sob a égide do objeto e da noção de interessados difusos na

construção participada do mérito processual.

Sob o ponto de vista democrático-constitucional, considera-se legítimado a

participar da construção do provimento e do mérito processual toda pessoa que

demonstrar interesse jurídico na pretensão deduzida, e não apenas aqueles sujeitos

eleitos e escolhidos pelo legislador como representantes da maioria. Pensar o

processo civil e o processo coletivo na perspectiva democrática é superar a ideologia

vigente da democracia representativa (construída a partir dos representantes eleitos

pelo Estado) e desenvolver toda a produção científica sob a ótica do principio

participativo (na Constituição brasileira de 1988 encontramos no artigo 1º a

soberania popular como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil,

considerada o pressuposto teórico básico ao entendimento constitucionalizado do

modelo de processo democrático).

No direito italiano verifica-se a extensão do conceito de legitimidade

processual para agir a partir do fenômeno jurídico das ações em grupo. O

fundamento de tais ações encontra-se na socialização dos direitos e na

reconstrução da concepção de que o processo é um recinto utilizado apenas para

garantir a satisfação dos direitos de cunho individual. Nos termos trazidos pela

Constituição Italiana a compreensão social dos direitos encontra-se diretamente

inserida na dinâmica da estrutura processual vigente, considerada o fundamento

para o exercício das liberdades fundamentais. A relativização do conceito individual

de legitimado à propositura de ações judiciais se contrapõe aos direitos coletivos,

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150

responsáveis por ampliar o espectro do entendimento dos sujeitos legitimados à

construção do mérito processual (TROCKER, 1974, p. 209-210).

As ações em grupo são consideradas uma categoria das ações coletivas e

foram criadas especificamente para ampliar a esfera dos sujeitos legitimados a

provocar a intervenção do órgão jurisdicional e ampliar o campo da situação jurídica

subjetiva e subjacente à relação processual (TROCKER, 1974, p.211). A tutela

jurisdicional dos direitos coletivos significa a emancipação do sujeito, que poderá

buscar a proteção não apenas de direitos de natureza individual. O Judiciário abre-

se para viabilizar a tutela dos direitos da coletividade, uma vez que o artigo 24 da

Constituição Italiana passou a assegurar a todos os cidadãos individuais e a toda a

coletividade, grupo de pessoas e instituições voltadas a proteção dos direitos de

todos os interessados difusos e coletivos a facilitação do direito de acesso ao

Judiciário mediante a ampliação do conceito de legitimado processual (TROCKER,

1974, p. 215).

Ultrapassado o debate jurídico referente ao direito de ação e a legitimidade

processual141 do direito italiano142 é importante ressaltar a distinção proposta pelo

direito processual civil italiano existente entre questão preliminar de mérito e questão

prejudicial de mérito (MONTESANO; ARIETA, 1997, p. 398). Considera-se questão

preliminar de mérito a inobservância de requisitos legais considerados

indispensáveis à análise do mérito da pretensão (condições da ação e pressupostos

processuais), visto que o preenchimento de tais requisitos certamente viabilizará o

exame das questões meritórias, podendo ocorrer ou não o reconhecimento da

pretensão e dos pedidos inicialmente deduzidos em juízo (LUIZO, 1997, p. 53-55).

Dessa forma, resta evidente que a questão preliminar de mérito refere-se à matéria

de cunho processual que inviabiliza o adentramento, pelo juiz e pelas partes, na

discussão do mérito processual (é por isso que se menciona as condições da ação e

os pressupostos processuais como matérias clássicas a demonstração da preliminar

de mérito). A propositura de uma ação de conhecimento com a finalidade de exigir o

cumprimento de um determinado contrato poderá ensejar a alegação da preliminar

141 Analisando o processo civil italiano verifica-se que a legitimidade processual ativa decorre da demonstração, pelo autor da ação, da viabilidade jurídica da pretensão, assim como a demonstração da coerência dos fatos e dos fundamentos jurídicos ora alegados em juízo (PICARDI; GIULIANI, 2004, p.13). 142 Importante esclarecer que assim como no processo civil brasileiro, o processo civil italiano diferencia sentença definitiva de sentença não definitiva (terminativa) (PICARDI, 2003, p. 70)

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de ausência de interesse de agir por se tratar de titulo executivo extrajudicial,

ocasionando, assim, a extinção do processo sem julgamento do mérito.

No que diz respeito à questão prejudicial de mérito pode-se afirmar que não

estamos nos referindo especificamente a matéria processual, ou seja, ao contrário

das questões preliminares que inviabilizam a análise do mérito da pretensão por

questões de natureza estritamente processual, as questões prejudiciais inviabilizam

o enfrentamento do mérito da pretensão deduzida muitas vez pela existência de

alegações e de questões atinentes ao direito material.

Considera-se questão prejudicial de mérito a existência de alegações ou de

questões, normalmente vinculadas ao direito material, surgidas ao longo do

processo que inviabilizam o enfrentamento do mérito pelo julgador. Um clássico

exemplo é a demonstração da prescrição no caso de uma ação de cobrança. Mesmo

comprovando-se a legitimidade do requerente e do requerido, demonstrada a

possibilidade jurídica do pedido, o interesse de agir das partes, os pressupostos

processuais de validade e de existência da relação jurídico-processual sabe-se que

a análise do mérito processual fica prejudicada pelo reconhecimento judicial da

prescrição. O magistrado não adentrará na discussão e na análise referente à

existência ou a inexistência de uma relação jurídico-obrigacional entre credor e

devedor, ou seja, não haverá análise do mérito processual (se o requerido poderá ou

não ser condenado a pagar o requerente) por ser a prescrição considerada uma

questão prejudicial de mérito (a prescrição e a decadência, embora sejam

consideradas no direito brasileiro hipóteses de resolução do mérito da pretensão,

devem ser reconhecidas como questões prejudiciais de mérito, tendo em vista que

inviabilizam a discussão das especificidades atinentes ao mérito da pretensão

deduzida em juízo).

Conforme exposto, é de competência exclusiva do juiz, no processo civil

italiano e brasileiro, a análise das questões de mérito apresentadas pelas partes em

juízo. Todavia, antes de proferir a decisão das questões de mérito o julgador deverá

se manifestar acerca das questões prévias, consideradas indispensáveis à análise

do mérito da pretensão, tais como as preliminares e as prejudiciais de mérito.

“Conforme Barbosa Moreira e Thereza Alvim, as questões prévias podem ser

classificadas como questões preliminares ou questões prejudiciais – embora

Cândido Dinamarco prefira chamar as prejudiciais de questões de mérito, de acordo

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com o tipo ou o teor de influência exercido sobre as questões posteriores” (FREIRE,

2011).

Verifica-se nos estudos apontados a constante preocupação dos juristas em

diferenciar o mérito processual de outras questões processuais, ora denominadas

questões prévias e questões posteriores. O critério muitas vezes utilizado para tais

distinções refere-se à análise ou não das questões de fato e de direito que

permeiam a matéria de mérito trazida pelas partes em juízo. Considera-se preliminar

toda questão que antecede ou se encontra alheia à matéria de mérito; prejudiciais

são aquelas questões que não se confundem com as preliminares, mas que

comprometem, sobremaneira, a análise das questões meritórias pelo julgador. É

nesse sentido que se posiciona Barbosa Moreira e Thereza Arruda Alvim

Note-se, porém, que é possível entre duas questões (questão prévia e questão posterior) ocorrer uma relação de dependência lógica, sem que uma delas (a questão posterior) seja exatamente a questão de mérito. Barbosa Moreira oferece a respeito interessante exemplo: numa ação popular, a questão sobre a validade do ato de naturalização é prévia (prejudicial) em relação à questão sobre a legitimidade para a causa e esta, por sua vez, é prévia (preliminar) em relação à questão de mérito. Outro bom exemplo é o de Thereza Alvim: tendo o autor usado do procedimento sumário (sumaríssimo à época), objeta o réu quanto ao valor da causa (porque, exemplificativamente, tem interesse em promover reconvenção); a questão sobre o valor é prévia (prejudicial) em relação à questão do tipo de procedimento, enquanto a questão do procedimento será prévia (preliminar) em relação à questão de mérito (FREIRE, 2011).

A problemática cientifica que permeia toda essa discussão refere-se a

distinção jurídica a ser estabelecida entre mérito processual e questão prejudicial de

mérito, tendo em vista a proximidade existente entre os institutos. Considera-se

discussão meritória a análise das questões que integram (não somente permeiam) a

pretensão deduzida em juízo. Já as prejudiciais de mérito são questões que

permeiam o mérito processual e que se constatadas inviabilizam a análise das

questões inerentes ao mérito da pretensão deduzida.

As prejudiciais de mérito, conforme mencionado anteriormente são questões

que se encontram mais diretamente vinculadas ao direito material (não são questões

processuais que inviabilizam a análise do mérito, tais como as preliminares de

mérito), e que quando constatadas impedem que o mérito seja julgado pelo juiz.

Uma ação proposta por um servidor investido em cargo comissionado visando uma

vantagem pecuniária assegurada apenas aos servidores de cargos efetivos é um

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exemplo que ilustra bem a distinção existente entre questão prejudicial de mérito e o

mérito processual propriamente dito. Nesse caso, o juiz competente não poderá

adentrar especificamente à análise do mérito da pretensão deduzida (que consiste

no direito à gratificação pecuniária e no valor de eventual condenação do Estado)

pelo fato da existência de uma questão prejudicial, que consiste na demonstração de

que o próprio autor da ação não tem legitimidade para reivindicar tal direito. Não se

tratar de hipótese de ilegitimidade processual ativa porque a comprovação de tal

situação perpassa pela análise do direito material e não se refere especificamente

ao direito processual. Considerar-se-ia preliminar de mérito no presente caso se

fosse constatado de imediato que o autor da ação não era servidor publico

(comissionado ou efetivo). Como foi necessário avaliar o direito material antes da

análise do mérito processual, considera-se que se trata de clássico exemplo de

prejudicial de mérito, tendo em vista que foi necessário que o juiz competente

verificasse inicialmente que o direito à pretendida vantagem pecuniária estende-se

apenas aos servidores efetivos, e não aos servidores comissionados. Não era

possível, mediante análise preliminar, que no presente caso o magistrado auferisse

a ilegitimidade processual ativa, uma vez que foi necessário adentrar à análise de

questões referentes ao direito material para constatar a impossibilidade de

julgamento do mérito da pretensão deduzida em juízo.

Outra discussão que surge no presente contexto é a seguinte: no momento

em que o magistrado acolhe uma prejudicial de mérito será proferida sentença

definitiva ou sentença terminativa. O esclarecimento cientifico de tal indagação

perpassa inicialmente pelo estudo crítico-sistematizado do mérito processual.

Considera-se sentença definitiva ou sentença de mérito aquela em que o magistrado

se manifesta acerca do direito material alegado e pretendido pelas partes em juízo.

Sentença terminativa é aquela proferida pelo magistrado quando o mesmo justifica a

existência de uma questão processual que o impossibilite de analisar o direito

material pretendido pelas partes em juízo.

No momento em que o magistrado profere decisão fundamentada justificando

a impossibilidade de análise do direito material pretendido pelas partes em

decorrência da existência de uma questão prejudicial de mérito profere uma

sentença que não se enquadraria basicamente em nenhuma das duas classificações

acima mencionadas e adotadas pelo Código de Processo Civil brasileiro vigente e

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também preconizada pelo processo civil italiano (sentenças terminativas e sentenças

definitivas).

Trata-se de sentença em que o magistrado fundamenta a impossibilidade de

análise do mérito da pretensão inicialmente deduzida em virtude da existência de

uma questão prejudicial (questão atinente ao direito material e que justifica a

impossibilidade de análise do mérito da pretensão inicialmente deduzida). Nesse

caso o magistrado não estaria julgando o mérito da pretensão porque não adentraria

à análise do direito material pretendido pelas partes em juízo. O magistrado também

não estaria se esquivando da análise do mérito da pretensão inicialmente deduzida

por constatar a existência de uma questão de ordem processual que pudesse

inviabilizar o julgamento do mérito (preliminar de mérito decorrente da ausência de

condições da ação ou de pressupostos processuais). A decisão proferida no

presente caso consiste na justificativa judicial de impossibilidade de apreciação do

mérito processual por constatar a existência de uma questão de direito material que

impossibilite tal análise e julgamento.

Dessa forma, pode-se afirmar que a sentença que aprecia e reconhece a

existência de uma questão prejudicial é considerada uma sentença atípica, tendo em

vista que deixa de julgar o mérito processual por razões vinculadas ao direito

material, e não ao direito processual. Por isso, não se poderia inclui-la na clássica

classificação proposta pelo processo civil italiano e brasileiro, que dicotomiza as

sentenças a partir do critério em que o julgador analisa ou não o mérito da pretensão

a partir de justificativas de ordem essencialmente processual. Não existe no

processo civil brasileiro e italiano uma espécie de sentença que justifica o não

julgamento do mérito processual a partir de questões atinentes ao direito material, tal

como a prejudicial de mérito.

O que encontramos na doutrina e na legislação brasileira é o enquadramento

da sentença que acolhe a prejudicial de mérito no conceito de sentença definitiva.

Trata-se de posicionamento minimamente precipitado, sob o ponto de vista do

entendimento critico do processo civil democrático. Tal crítica se justifica inicialmente

pelo seguinte argumento: no acolhimento da prejudicial de mérito não há o

julgamento do mérito da pretensão inicialmente deduzida em juízo, mas sim, a

justificativa do não julgamento do mérito da pretensão por razões inerentes ao direito

material. O julgamento do mérito processual ocorreria se o magistrado enfrentasse

as questões alegadas pelas partes em juízo e que servem de condão para justificar

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o direito material pretendido. O acolhimento da prejudicial de mérito busca justificar a

impossibilidade de discussão das questões suscitadas pelas partes com o propósito

de reconhecer o direito material pretendido. É por isso que se trata de uma espécie

de sentença atípica que não pode ser confundida com a sentença definitiva, tal

como trabalhada no Código de Processo Civil brasileiro de 1973.

Recentemente o processo civil italiano passou por uma reforma que buscou

estabelecer critérios mais claros para o entendimento dos prazos peremptórios.

Pretendeu-se limitar o tempo para a conclusão do processo mediante a restrição dos

prazos recursais (PANZAROLA, 2009). Estabeleceu-se, também, um regime mais

rígido das preclusões como o parâmetro para reger todo o processo civil sob a ótica

da efetividade, tendo em vista que “na Itália, como se pôde ver, a longa duração dos

processos faz parte da história” (SCHENK, 2011). A superação da morosidade

judicial é considerada um dos principais desafios do processo civil italiano e, por

isso, o legislador italiano buscou “resolver o problema com a fixação de termos

peremptórios para a prática dos atos processuais” (SCHENK, 2011).

Trata-se da mesma ideologia que norteia a elaboração do Anteprojeto do

Novo Código de Processo Civil brasileiro, centrada no entendimento do processo

civil visto sob a égide do tempo cronológico. Verifica-se que o legislador continua a

alimentar o entendimento equivocado de que o problema da morosidade judicial será

resolvido por meio de simples intervenção legislativa.

Fica evidente que a intenção do legislador, tanto no processo civil italiano,

quanto no processo civil brasileiro, é tão somente reduzir o tempo de duração do

processo, acarretando, assim, a sumarização da cognitio mediante a restrição do

espaço processual de argumentação da pretensão pelas partes juridicamente

interessadas. Ao limitar os prazos recursais e restringir o número de recursos

cabíveis o legislador alimenta a ideologia de que ocorrerá a amenização da

morosidade judicial.

Repensar o processo civil a partir desses parâmetros teóricos é perpetuar a

concepção autocrática de um modelo de processo incompatível com o Estado

Democrático de Direito. A superação da morosidade judicial não será possível

através da sumarização da cognitio e da deslegitimação das partes interessadas na

discussão ampla e na construção participada do provimento. Reduzir os prazos

recursais, assim como diminuir o número de recursos cabíveis no processo civil, é o

mesmo que limitar o acesso ao Judiciário e suprimir a legitimidade de todos os

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interessados poderem discutir e participar isonomicamente da construção do mérito

processual.

O que pretende o legislador brasileiro através das constantes reformas

processuais é fortalecer a autoridade do julgador e restringir o espaço de

participação das partes na construção do mérito processual, reduzindo, assim, a

legitimidade dos interessados no acesso amplo ao Judiciário, tal como esculpido no

artigo 5º, inciso XXXV da Constituição brasileira de 1988.

2.14 Síntese

A elaboração do primeiro capítulo da presente pesquisa cientifica justifica-se na

necessidade de apresentação e de demonstração que a base teórica do estudo do

mérito encontra-se no processo civil, especificamente nas questões ou nas matérias

fáticas e/ou jurídicas trazidas pelas partes para serem apreciadas pelo juiz ao longo

do processo. Na sistemática apresentada pelos autores estudados resta claro que o

julgamento do mérito consiste na análise, pelo julgador, das questões de mérito

trazidas pelas partes (autor e réu) para o processo. A crítica inicialmente proposta é

que a noção de mérito trabalhada no contexto do processo civil é restritiva,

dogmática e vinculada à legitimidade unilateral do juiz julgar o caso concreto. Os

autores clássicos não trabalham a noção de mérito como produto do debate amplo

das questões de mérito por todos interessados na demanda e pelo juiz. O que se

busca, ao longo dessa pesquisa, é propor a construção de um conceito de mérito a

partir da leitura crítica dos autores que estudaram o instituto no contexto do processo

civil.

A proposta da respectiva pesquisa cientifica é desenvolver um estudo jurídico

acerca do mérito processual, especificamente no que tange à sua construção no

modelo de processo coletivo proposto pelo Estado Democrático de Direito. Por isso,

procurou-se inicialmente esclarecer o caráter ideológico do instituto do mérito

processual, demonstrando a ausência de sérios critérios científicos utilizados como

parâmetro ao seu estudo, tendo em vista a sua ínsita relação com a causa de pedir

próxima, causa de pedir remota, matéria de fato, matéria de direito, pretensão,

objeto da lide e demanda. Verifica-se, ainda, que o Código de Processo Civil

brasileiro de 1973 adotou expressamente na sua Exposição de Motivos a estreita

vinculação existente entre lide e mérito processual, procurando-se ressaltar a

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concepção carneluttiana para a qual o pressuposto teórico para o entendimento

jurídico do mérito processual é a demonstração da existência de uma relação

jurídica litigiosa entre as partes.

No estudo do Direito Romano foi possível verificar inicialmente que a

compreensão do mérito encontra-se diretamente vinculada à matéria de fato e a

matéria de direito integrante da pretensão deduzida pelas partes e que a análise do

mérito era uma prerrogativa exclusiva do juiz, tendo em vista que ao magistrado

incumbia delimitar o objeto do processo e controlar a regularidade da marcha

processual.

Oskar Von Bülow procurou diferenciar matéria de mérito de questões

extrínsecas ao mérito ao ressaltar que a análise do mérito processual condicionava-

se à constituição válida e regular da relação jurídico-processual diante de um juiz

competente e legitimado para a análise da pretensão deduzida pelas partes. Por

isso, desenvolve toda sua teoria a partir dos pressupostos processuais,

considerados os requisitos extrínsecos ao mérito e cuja finalidade é a

operacionalização e a constituição válida da relação processual, legitimando o

julgador no controle da observância de tais requisitos. Considerado o interprete

especializado da lei, o juiz detém a legitimidade para averiguar os requisitos legais

extrínsecos ao mérito, assim como se encontra investido na autoridade de

apreciação do mérito processual a partir da análise do Direito Subjetivo do autor da

ação.

Em Chiovenda a legitimação do julgador no exercício da jurisdição consiste na

busca da atuação positiva ou negativa da vontade concreta da lei, enaltecendo o

principio da legalidade como norma jurídica regente para o controle da jurisdição. É

muito próxima a relação existente entre mérito processual e demanda judicial

quando se analisa a obra de Chiovenda, tendo em vista que a legitimidade do

julgador analisar o mérito da pretensão fica condicionada à observância dos limites

impostos pelo principio da legalidade no que tange ao exercício da jurisdição e

também às questões de fato e de direito levantadas pelas partes interessadas e que

integram a demanda judicial. Isso significa dizer que o julgador não possui uma

liberdade incondicionada quanto à análise do mérito, tal como proposto por Bulow,

até porque, para Chiovenda, são as partes que direcionam o foco do debate judicial

como parâmetro à análise do mérito processual pelo juiz. Chiovenda ressalta o

principio da oralidade como fundamento regente para o maior aprimoramento da

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participação das partes na construção do mérito processual mediante a aproximação

dos interessados no conflito, facultando ao juiz uma análise mais aprimorada acerca

das peculiaridades fático-jurídicas inerentes à pretensão. Mesmo assim não é

possível afirmar que a análise do mérito processual na obra de Chiovenda ocorre de

forma democrática por meio da participação das partes, tendo em vista que a

prerrogativa para julgar o mérito da pretensão ainda é exclusiva do juiz.

A dialeticidade na relação processual é uma característica peculiar da obra de

Calamandrei e, por isso, autor e réu poderão atuar de forma dinâmica na construção

participada do mérito processual. Verifica-se, em sua obra, a possibilidade de

atuação mais direta e efetiva das partes na construção do provimento. Há uma

intrínseca relação existente entre direito de ação e mérito processual, tendo em vista

que a fundamentação jurídico-legal decorrente da relação jurídica de direito

substancial representa, na obra de Calamandrei, os requisitos inerentes à análise do

mérito na perspectiva concretista do direito de ação, tendo em vista a clássica

distinção que faz entre relação jurídica de direito substancial e material.

Francesco Carnelutti é o grande precursor do estudo e da compreensão do

mérito processual vinculado ao conceito de lide, considerando-a como um fenômeno

metaprocessual caracterizado por um conflito intersubjetivo de interesses qualificado

por uma pretensão resistida. Tal proposição teórica foi adotada expressamente na

Exposição de Motivos do Código de Processo Civil brasileiro de 1973 ao reconhecer

que o julgador é parte legitimada a conduzir unilateralmente a construção do mérito

processual, dispensando-se qualquer tipo de participação das partes interessadas.

O manejo e a análise da matéria de fato pelo julgador e a repercussão jurídico-legal

da pretensão deduzida em juízo pelas partes são considerados os parâmetros para

o entendimento do mérito processual na obra de Carnelutti. Ressalta-se que o

exercício legítimo do direito de ação na perspectiva carneluttiana, tem como

conseqüência jurídica a possibilidade de resolução da lide mediante a análise do

mérito da demanda.

Ao considerar o juiz como o intérprete qualificado da lei, Enrico Tullio Liebman

afirma que o poder de decidir é uma prerrogativa exclusiva da jurisdição, cuja

finalidade específica é dirimir relações jurídicas conflituosas existentes entre as

partes. O mérito da pretensão delimita-se pelo pedido das partes, uma vez que o

objeto da demanda é considerado o parâmetro para o debate processual das

questões meritórias trazidas pelas partes no processo. Ao desenvolver suas

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proposições teóricas Liebman, assim como Bulow, Chiovenda e Carnelutti,

compreende o processo como uma relação jurídica constituída pelas partes diante

do juiz, considerada a autoridade legitimada para a análise do mérito da demanda

independentemente de qualquer participação dos interessados na construção do

provimento.

Ao propor um novo modelo de processo, compatível com o Estado

Democrático de Direito, Elio Fazzalari revisita a concepção autoritária do mérito

processual preconizada até então pelos estudiosos do processo civil a partir da obra

de Liebman, Chiovenda e Carnelutti. O mérito processual deixa de ser uma

prerrogativa exclusiva do processo judicial e passa a ser estudado sob a ótica do

processo legislativo e administrativo. Dessa forma, verifica-se que a construção do

mérito será possível em qualquer processo em que o contraditório efetivamente se

instaura mediante a oportunização de debate isonômico da pretensão por todos

aqueles que demonstram aptidão de sofrer os efeitos jurídicos do provimento.

Fazzalari entende o provimento de mérito como aquele em que o juiz adentra à

análise das questões de mérito que integram a pretensão deduzida, porém, antes de

adentrar à construção do mérito o magistrado deverá analisar a situação que o

legitima a emanar o provimento jurisdicional.

No Processo Civil Italiano verifica-se que as condições da ação são

juridicamente tratadas como questões extrínsecas à discussão meritória da

pretensão, que poderão ser alegadas por meio das preliminares de mérito (meio de

defesa através do qual o demandado poderá alegar a impossibilidade de apreciação

ou de análise do mérito da demanda pelo fato da parte autora inobservar os

requisitos técnicos que viabilizam a discussão meritória). Ao debater as questões

prejudiciais de mérito os processualistas italianos, tais como Picardi, afirma que se

trata de questões normalmente vinculadas ao direito material e que quando surgidas

ao longo do processo inviabilizam a análise do mérito da demanda pelo julgador. A

problemática cientifica que permeia toda essa discussão diz respeito à distinção

jurídica existente entre mérito processual e questão prejudicial de mérito.

Consideram-se mérito todas as questões que integram (não somente permeiam) a

pretensão deduzida em juízo, enquanto as prejudiciais de mérito são questões que

permeiam o mérito processual e que se constatadas inviabilizam a análise das

questões inerentes ao mérito da pretensão deduzida.

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Estabelecer as condições da ação e os pressupostos processuais como

requisitos indispensáveis à apreciação do mérito da pretensão certamente é limitar o

acesso ao Judiciário, considerando-se o principio da inafastabilidade do controle

jurisdicional (artigo 5º, inciso XXV da Constituição brasileira de 1988) como norma

regente que assegura indistintamente a todo jurisdicionado o direito de amplo

acesso ao Judiciário. Ter acesso ao Judiciário sob a perspectiva da

constitucionalidade democrática é ter o direito de participar amplamente da

discussão e da construção do mérito processual referente a toda pretensão a qual a

parte demonstre interesse jurídico.

O estudo sistemático do mérito processual pressupõe a superação do

entendimento que parte da premissa de que a cognição é um ato de inteligência ou

de sapiência inata do julgador. É necessário reconstruir e ressemantizar o

entendimento critico acerca da cognição processual, que deverá ser vista sob a

perspectiva do modelo constitucional e democrático de processo. A atividade

cognitiva centrada na autoridade do juiz é mero reflexo do modelo autocrático

adotado pelo direito processual civil brasileiro vigente e incompatível com a

Constituição brasileira de 1988. A cognição não deve ser vista como uma atividade

exclusiva do juiz, mas sim como uma prerrogativa das partes, cujo exercício dar-se-á

a partir do debate da pretensão mediante a implementação dos princípios

constitucionais do contraditório, da ampla defesa, da isonomia processual e do

devido processo legal. A resignificação teórica da cognição sob o patamar

democrático-constitucionalizado deve ser vista como o fundamento teórico regente

ao entendimento crítico do mérito processual como um espaço que legitima as

partes interessadas ao debate fático-jurídico da pretensão deduzida.

O mérito no processo civil deve ser entendido como toda a matéria de fato e

de direito, trazida pelas partes (autor e réu) para o processo, e definida como

relevante pelo julgador no momento em que for apreciar e decidir as peculiaridades

e as questões que integram a pretensão deduzida em juízo. O mérito no processo

coletivo é resultado da participação de todos os interessados difusos e coletivos na

definição da matéria e das questões de mérito para, assim, viabilizar a constituição

de um lócus processual de ampla discursividade da pretensão e alcançar, por

conseguinte, a legitimidade democrática do provimento jurisdicional.

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3 ANÁLISE CRÍTICA DA REPERCUSSÃO DO MODELO ATUAL DO PRO CESSO COLETIVO PARA A FORMAÇÃO DO MÉRITO

O objetivo da pesquisa nesse segundo momento é discorrer inicialmente

sobre a gênese do processo coletivo, buscando-se levantar os fundamentos teóricos

utilizados pelos estudiosos como parâmetro ao estudo crítico do modelo de processo

coletivo vigente. Na seqüência, desenvolver-se-á uma análise do processo coletivo a

partir do modelo proposto pela Constituição brasileira de 1988, que estabelece com

um dos seus pilares, já no artigo 1º, a soberania popular.

Considerando-se as peculiaridades da pretensão coletiva, bem como o

fundamento regente do modelo de processo adotado pelo Estado Democrático de

Direito, torna-se indispensável a abordagem critica da sistemática proposta pelo

modelo de processo coletivo desenvolvido pela Escola Paulista, especificamente no

que diz respeito à legitimidade processual.

A desconstrução do modelo de processo coletivo centrado no sistema

representativo será possível mediante a constitucionalização das reflexões jurídicas

a serem oportunamente desenvolvidas. No mesmo sentido, pode-se afirmar que o

processo coletivo democrático não pode mais ser pensado e estudado a partir do

sujeito, e especialmente sob a ótica exclusiva do julgador. É necessário, no

paradigma democrático, que o processo coletivo seja pensado a partir do objeto, ou

seja, o legislador, assim como o magistrado, não possui legitimidade jurídica para

estabelecer taxativamente quem serão os legitimados à propositura das ações

coletivas, excluindo-se, muitas vezes, inúmeros interessados difusos e coletivos na

pretensão. Tal afirmação se justifica a partir da Teoria das Ações Coletivas como

Ações Temáticas, desenvolvida há pelo menos 15 anos pelo processualista mineiro

Vicente de Paula Maciel Junior, para quem a legitimidade processual de qualquer

sujeito numa ação coletiva será definida pelo objeto ou pelo tema ora posto em

discussão. Qualquer interessado difuso ou coletivo terá legitimidade processual para

figurar como parte no processo coletivo democrático, desde que demonstre

claramente o interesse jurídico na pretensão.

Continuar estudando o processo coletivo sob a vertente autoritária é o mesmo

que legitimar o acesso restrito ao Judiciário, algo incompatível com o disposto no

artigo 5º, inciso XXXV da Constituição brasileira vigente. No momento em que o

legislador estabelece taxativamente os legitimados à propositura das ações

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coletivas, restringindo a legitimidade processual dos interessados difusos e coletivos,

viola a soberania popular e a cidadania, considerados dois importantes fundamentos

jurídicos do Estado Democrático de Direito.

Antes de adentrar especificamente na reflexão cientifica da temática

envolvendo o processo coletivo democrático, faz-se necessário um estudo da

historicidade e da gênese do processo coletivo.

3.1 Historicidade do Processo Coletivo

A proteção dos direitos coletivos, de natureza metaindividual, é uma

preocupação que transpassa a historiografia mundial desde os primórdios, ou seja, a

necessidade de disciplinar juridicamente tais direitos coincide certamente com o

advento das civilizações143.

Nesse ínterim, pode-se afirmar que o antecedente histórico mais remoto que

se tem noticia no estudo do Direito Coletivo é a ação popular romana. O interesse

dos romanos para com a proteção jurídica não apenas dos conflitos individuais

certamente se explica pela construção do ideal de Democracia prevalente ao longo

de toda a história do Império Romano.

Tal afirmação se justifica pela solidificação da idéia de interesse público,

muito evidente no Direito Romano e produto da construção da res publica que

viabilizava o sentimento de cada cidadão romano poder pleitear judicialmente e

também participar de todas as decisões referentes ao interesse público. Por isso,

resta clara a afirmação de que, embora a base do Direito Romano encontrava-se

sedimentada no Direito Privado, o cidadão romano podia participar ativamente da

vida do Estado através do instrumento da ação popular, o que não significava a

prevalência absoluta dos interesses estatais em detrimento dos interesses dos

cidadãos (LEONEL, 2002, p. 40-43).

143 Desde os primórdios das ações em grupo (representative actions) na Inglaterra, o caráter coletivo esteve associado e vinculado ao interesse comum (common interest), tendo sido transplantado posteriormente para outros países. Em determinadas legislações, como nos Estados Unidos, a essência coletiva do processo passou a estar ligada à obrigatoriedade da proteção metaindividual, no caso, mediante o uso das class actions (mandatory class actions). No ordenamento americano, a solução judicial unitária se faz necessária, expressamente, para impedir condutas incompatíveis da parte adversa da classe, nos termos da Regra 23 (b) (1) (A), e, também, para não permitir que a instauração de um processo, por determinada pessoa, acabe, na prática, dispondo sobre o interesse de outros indivíduos, que não figuram como parte, ou interferindo de modo a impedir ou prejudicar os interesses destes (MENDES, 2006, p. 36).

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A ação popular romana tinha caráter predominantemente penal e visava,

acima de tudo, a defesa de coisas públicas e de caráter sacro. Dentre os

legitimados, as mulheres e os menores eram excluídos, por não serem reconhecidos

como cidadãos. Ressalta-se, ainda, a impossibilidade de substituição processual em

caso de morte do autor da ação, o que demonstra ser um profundo equivoco, até

porque se o objeto da ação versa sobre uma pretensão metaindividual não se

justificava a extinção do processo com a morte do autor da ação.

Admitia-se também a qualquer tempo a oposição de exceção à coisa julgada

sempre que demonstrado o interesse juridicamente legitimo de prosseguir com o

debate jurídico de novas questões relacionadas à pretensão inicialmente deduzida

em juízo e de caráter e interesse da coletividade (LEONEL, 2002, p. 44-45).

Resta esclarecer que através da ação popular o cidadão romano podia

controlar a atividade estatal, com o propósito de averiguar se o interesse da

coletividade estava sendo efetivamente protegido. Tratava-se de uma instrumento

hábil a controlar não somente a atividade estatal mas, acima de tudo, limitar o

exercício abusivo das liberdades individuais que pudessem contrariar os interesses

da coletividade. Nesse sentido afirma-se

A ação popular tinha em Roma amplitude extraordinária, servindo não somente para a tutela de interesses individuais com conseqüências publicas (como no caso de defesa pessoal do uso de vias publicas por meio do interdictum ne quid in loco publico vel itinere fiate; como ainda da utilização dos rios, ancoradouros, bebedouros, entre outras coisas, por força dos interdictum ne quid in flumine publico ripave ejus Fiat; uso de esgotos públicos, por meio do interdito de cloacis, entre outros); mas ainda, e sobretudo, para a tutela de interesses mais propriamente coletivos, como na defesa de sepultura comum, efetivação de fundações instituídas por atos de disposicao de ultima vontade, oposição à colocação de telhas e janelas de coisas que pudesses ser lançadas à rua, entre outras (LEONEL, 2002, p. 47).

É recente a regulamentação da ação popular, tendo ocorrido em 30 de março

de 1836 com a lei comunal, na Bélgica e, em seguida, na França, com a lei comunal

de 18 de julho de 1837. Na Itália foram implementadas em 20 de setembro de 1859

a lei 26, que previa a possibilidade de ação popular para matéria eleitoral, e também

a Lei 765, de 06 de agosto de 1927, que previa o uso da ação popular em matéria

urbanística (LEONEL, 2002, p. 52).

A experiência inglesa é considerada juridicamente relevante no estudo e na

análise histórica do processo coletivo. Verifica-se no sistema common Law a

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existência de instrumentos do processo coletivo, considerados a gênese da class

action. Desde o século XVII verifica-se na Inglaterra a existência de Tribunais de

Equidade (Courts of Chancery), que admitiam o Bill of Peace (trata-se de um modelo

de demanda que rompeu com o principio segundo o qual todos os interessados

devem participar do processo). Houve, nesse período histórico, o advento do

sistema representativo no processo coletivo inglês, uma vez que se passou a admitir

que determinados grupos de indivíduos atuassem em nome próprio na defesa dos

interesses de seus representados (legitimidade extraordinária) (LEAL, 1998, p. 140).

Importante ressaltar que da experiência das cortes inglesas encontramos a

gênese das ações de classe (class action), difundida no sistema norte-americano

principalmente a partir do ano de 1938, com o advento da Rule 23 das Federal Rules

of Civil Procedure. Em 1966 verifica-se uma importante reforma no sistema norte-

americano que sedimentou o sistema da class action.

A Inglaterra é apontada pelos estudiosos como o berço dos litígios coletivos,

tendo em vista que as ações de grupo tornaram-se freqüentes nos séculos XIV e XV

(MENDES, 2009, p. 39)144. A Court of Star Chamber cumpriu durante

aproximadamente duzentos e cinquenta anos importante papel diante da resolução

de litígios coletivos. Durante o século XVII temos o desenvolvimento do Bill of Peace,

considerada uma instituição legitimada a julgar demandas coletivas condicionadas a

existência de interesses comuns, envolvendo um numero elevado de pessoas

comprovadamente vinculadas aos efeitos da coisa julgada (MENDES, 2009, p. 43).

Com o advento das corporações o período compreendido pelos anos 1700 a 1850

caracteriza-se pelo declínio dos litígios de grupos na Inglaterra, fatores esses que

contribuíram de forma direta para que praticamente no final do século XIX e inicio do

século XX o desaparecimento das ações coletivas por longo período na Inglaterra. A

partir da segunda metade do século XX verifica-se o ressurgimento das ações

coletivas na Inglaterra com o advento das representative actions, contidas desde

1965 na Order 5 e Rules 12145 e 13146 (MENDES, 2009, p. 45).

144 As ações de grupo tornaram-se freqüentes nos séculos VIV e XV, especialmente nos povoados (villages) e paróquias (parishes), refletindo, por certo, a estrutura e organização social daquela época, em que as instituições intermediárias, como a família, as vilas, a Igreja, concentravam importância econômica e política, formando a base do sistema de produção. A defesa dessas células sociais no processo pelos seus respectivos lideres, foi se desenvolvendo e multiplicando naturalmente (MENDES, 2009, p. 39). 145 Segundo a Regra 12, quando uma quantidade grande de pessoas possuísse o mesmo interesse, em qualquer procedimento, o processo poderia ser inicia e prosseguir, se a corte não determinasse

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No direito norte-americano no ano de 1820 o caso West v. Randall é

considerado a primeira demanda coletiva registrada historicamente. Em 1829 a

Suprema Corte apreciou o caso Beatty v. Kurtz, ação coletiva proposta por um grupo

de luteranos em desfavor de um herdeiro que estaria ameaçando de lhes retirar a

posse do barracão onde faziam suas pregações. Em 1842 a Suprema Corte norte-

americana edita a Equity Rules 48, considerada a primeira norma escrita relacionada

com a class action nos Estados Unidos da América. Nessa primeira regra a Suprema

Corte adotou o entendimento no sentido de não permitir que os efeitos do julgado

atingissem os interessados ausentes do processo, representando, dessa forma, a

denegação do caráter coletivo do processo. Finalmente, no ano de 1938, surge nos

Estados Unidos o primeiro Código de Processo Civil no âmbito federal, que acabou

por instituir através da Regra 23 as ações coletivas (MENDES, 2009. p. 58-64)147.

O texto formulado para a Regra 23 no ano de 1966 sofreu alterações nos

anos de 1987, 1998, 2003 e 2007. O pré- requisito inicial para a propositura da class

action é que a parte legitimada a propositura da ação deverá integrar a própria

classe e que o numero excessivo de integrantes da classe tornará inviável a

constituição do litisconsórcio. A adequada representação do autor da ação, a

existência de questões de fato e de direito comuns aos integrantes da classe, assim

como a identidade de pretensões ou de defesas entre o representante e a classe

também integram os requisitos indispensáveis à propositura da ação de classe.

diferentemente, pela iniciativa ou em face de apenas um ou alguns dos interessados que estariam representando os demais (MENDES, 2009, p. 45-46). 146 A Order 15, Rule 13, das Rules of the Supreme Court previa, por sua vez, em circunstâncias limitadas, que as ações poderiam ser ajuizadas por pessoas que não detinham também a titularidade do direito em litígio. Diferenciava-se, assim, da hipótese contida na Regra 12, na medida em que estariam os processos, por um lado, circunscritos a lides relacionadas com herança, com bens sujeitos à custódia e administração de terceiros e à interpretação de documentos escritos, inclusive de leis, mas, por outro, a legitimação extraordinária não estaria restrita às pessoas que estivessem partilhando do interesse comum afetado (MENDES, 2009, p. 47). 147 A Rule 23 previa, na verdade, três categorias diversas de ações coletivas: a) as puras, verdadeiras, autênticas ou genuínas (true); b) as híbridas (hybrid); c) as espúrias (spurious) – classificação que é atribuída ao professor J. W. Moore, que participou da redação do Código. A distinção, segundo consta em geral nos livros, propiciou certa dificuldade de interpretação e definição clara das hipóteses. A ação de classe pura pressupõe a existência de unidade absoluta de interesse do grupo, ou seja, pressupõe a demonstração efetiva da natureza indivisível do direito ou do interesse comum a todos os membros do grupo. Nas ações de classe hibridas os membros da classe compartilham do interesse em relação a um bem jurídico objeto da ação, entretanto, o direito não é único ou comum a todos (há uma pluralidade de direitos que incidem sobre o mesmo objeto). Nas ações de classe espúrias há uma pluralidade de interesses decorrentes de uma questão comum de fato ou de direito a indicar como apropriada a agregação dos direitos individuais para a utilização de um remédio processual comum (MENDES, 2009, p. 64-66).

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Segundo estabelece Pedro da Silva Dinamarco (2001, p. 327-329) as premissas que

regem a Regra 23 das Federal Rules of Civil Procedure são as seguintes:

a) O pressuposto inicial da class action é autorizar que um ou mais membros

da classe podem demandar ou serem demandados como representantes

dos interesses de todos, caso a categoria seja tão numerosa que torne

inviável a participação direta de todos os interessados.

b) Uma única ação poderá desenvolver-se como class action, desde a

pretensão verse sobre questões de fato e de direito comuns ao grupo e

também desde que os pedidos ou defesas dos litigantes sejam idênticos

aos pedidos ou defesas da própria classe.

c) O pressuposto para o desenvolvimento válido da class action é que as

questões de fato e de direito levadas ao Tribunal sobrepujam as questões

de caráter estritamente individual, ressaltando-se e necessidade de

averiguação da extensão e do conteúdo da demanda para cada parte

interessada.

d) Quanto ao procedimento judicial, inicialmente caberá ao Tribunal averiguar

se a pretensão deduzida poderá ou não desenvolver-se como class action.

Uma vez reconhecido judicialmente que a demanda será desenvolvida

como uma class action torna-se necessária a notificação de todos os

integrantes do grupo titular da pretensão deduzida em juízo. A partir da

notificação cada integrante tem legitimidade para, no prazo legal, requerer

a sua exclusão do grupo, ressaltando-se que qualquer componente da

classe que não requereu que fosse excluído poderá, se desejar, intervir no

processo, representado por seu advogado.

e) A sentença proferida na class action, favorável ou contrária, será

vinculante a todos aqueles que o tribunal declarar serem integrantes da

classe, bem como com relação a todos aqueles que não requereram a sua

exclusão.

f) Os litigantes não podem renunciar ou transigir no âmbito da class action

sem autorização do Tribunal, que disporá sobre a notificação, na forma em

que determinar, do conteúdo da renúncia ou da transação a todos os

membros do grupo. Verifica-se a direta intervenção do Judiciário na

proteção e no reconhecimento jurídico dos direitos difusos, que por serem

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considerados de natureza indisponível não poderão ser renunciados ou

objeto de transação sem qualquer intervenção estatal.

g) Com relação ao direito de recorrer o Tribunal de Recursos pode, em sua

discricionariedade, admitir um recurso de uma sentença emanada de um

juízo distrital concedendo ou negando a certidão da class action sob o

fundamento da Regra 23, se a solicitação for feita no prazo de 10 dias

após o registro da sentença.

h) A propositura da class action dar-se-á por meio de um ou alguns dos

membros da classe com legitimidade para representar e defender os

interesses de todos os seus membros, sempre que for inviável, na prática,

o litisconsórcio ativo dos interessados.

i) Ao juiz, com a propositura da class action, é atribuído uma gama

significativa de poderes, tais como a análise das condições de

admissibilidade da demanda, a adequada representação dos

demandantes bem como os pressupostos para o desenvolvimento e a

instrução da ação.

j) Atendidos todos os requisitos de admissibilidade e de desenvolvimento do

processo a sentença proferida no julgamento da class action fará coisa

julgada com eficácia geral, de modo a vincular todos os membros da

classe, inclusive aqueles que não foram devidamente notificados, desde

que tenha sido reconhecida sua adequada representação.

O dogma liberal pautado no caráter privatístico das pretensões levadas ao

Judiciário foi superado com o advento de um novo modelo de Estado, ora

denominado Estado Social, cujo eixo central passou a ser a socialização dos direitos

e o advento da metaindividualidade como parâmetro regente ao estudo da Ciência

do Direito. O fenômeno da transindividualização dos direitos ocorreu essencialmente

na segunda metade do século XX, especialmente a partir dos anos 70, quando se

verifica a operacionalização de medidas e de instrumentos destinados à proteção

jurídica do meio ambiente e dos consumidores.

A proteção jurídica do meio ambiente, assim como dos direitos do

consumidor, é considerada o ponto de partida do debate contemporâneo acerca dos

direitos difusos e coletivos em vários sistemas jurídicos. Além da sistematização

jurídica no campo do Direito Material, é importante ressaltar o advento da teorização

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do processo coletivo como ramo do conhecimento jurídico destinado a

operacionalizar a implementação e a executoriedade dos direitos difusos e coletivos

no Estado Democrático de Direito.

Tornou-se necessária a construção de uma Teoria Geral do Processo

Coletivo, tendo em vista ser considerada impropriedade a utilização da Teoria Geral

do Processo Civil como norte para reger toda a compreensão do processo coletivo,

haja vista as peculiaridades jurídico-legais inerentes ao Direito Coletivo e ao

Processo Coletivo. Reproduzir a metodologia do processo civil para a explicação e a

compreensão do processo coletivo é o mesmo que não reconhecer a autonomia

cientifica do Processo Coletivo como área propriamente especifica da Ciência do

Direito.

Até meados do século XX o processo civil era visto essencialmente como um

instrumento destinado à solução de controvérsias cujos interesses tinham caráter

meramente individual. As normas jurídicas processuais e procedimentais destinadas

à regular a atuação do magistrado não tinham como objeto os direitos difusos e

coletivos. A complexidade das relações sociais na contemporaneidade refletiu-se no

entendimento do direito como um todo, especificamente no contexto dos conflitos

envolvendo diretamente os direitos difusos e coletivos. Na medida em que se tornam

mais complexas as relações sociais os conflitos de interesses ganham novos

contornos, deixando a esfera exclusivamente individual e passando a englobar o

contexto coletivo e difuso.

A complexidade das relações jurídicas reguladas pelo direito difuso e coletivo

desencadeou cientificamente o surgimento de inúmeras problemáticas cientificas no

âmbito do processo coletivo, tais como a definição da legitimidade processual ativa,

a questão envolvendo a coisa julgada e os seus efeitos jurídico-legais.

O estudo da historicidade do processo coletivo e dos direitos coletivos e

difusos perpassa pela compreensão da experiência francesa da Loi Royer, de 1973,

modificada em 1988, cujo artigo 46 estabeleceu que as associações regularmente

declaradas que tem como objeto explícito a defesa dos interesses dos consumidores

poderão, quando autorizadas para esse fim, atuar perante a jurisdição civil

relativamente a fatos que produzam prejuízo direto ou indireto ao interesse coletivo

dos consumidores (ZAVASCKI, 2005, p. 26).

Solução semelhante foi adotada na Espanha, com o advento da Lei 20/84

(Ley General para La Defensa de los Consumidores y Usuários), ao conferir

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legitimidade ativa às associações com o propósito de promover demandas coletivas

de natureza consumeirista e que envolva questões relacionadas à prestação de

serviços, incluindo a informação e a educação dos consumidores e dos usuários,

seja em caráter geral, seja em relação a produtos ou serviços determinados.

Posteriormente ressalta-se o advento da Ley Organica Del Poder Judicial, de 1985,

que buscou propiciar maior amplitude de acesso ao poder Judiciário, visando

permitir que a proteção dos direitos ou interesses coletivos pudesse ser exercida em

juízo pelas corporações, associações e grupos atingidos ou que estejam legalmente

habilitados para a sua defesa (ZAVASCKI, 2005, p. 26).

A Itália tem cumprido um relevante papel no estudo e no aprimoramento da

compreensão das tutelas e dos direitos coletivos e difusos. No inicio do século XX a

Itália foi o berço dos movimentos sociais e do direito do trabalho, implementando a

cultura das associações operárias e patronais (MENDES, 2010, p. 95). A partir dos

anos de 1911 e 1912 verifica-se a preocupação dos estudiosos e do Estado italiano

no que tange à proteção jurídica dos direitos coletivos e difusos, conferindo aos

próprios titulares dos respectivos direitos e também a determinadas instituições a

legitimidade quanto à propositura de ações voltadas à proteção jurídica dos direitos

difusos e coletivos.

É indiscutível o vanguardismo do Estado italiano no que tange à preocupação

quanto ao estudo, a compreensão e a proteção dos direitos difusos e coletivos,

embora se ressalte que somente a partir dos anos 70 que os temas atinentes ao

direito e ao processo coletivos passam a ser diretamente estudados por

consagrados autores italianos, tais como Vittorio Denti, Mauro Cappelletti, Andrea

Proto Pisani, Vincenzo Vigoriti, Nicolò Trocker e Michele Taruffo, dentre outros

(MENDES, 2010, p. 97). “Em termos normativos, a legitimação dos sindicatos,

prevista no art. 28 da Lei 300, de 1970, costuma ser apontada como importante

precedente na introdução da tutela coletiva no direito positivo italiano” (MENDES,

2010, p. 107). Um grande marco histórico-jurídico que diz respeito aos direitos

difusos e coletivos no direito italiano ocorreu em 1973, conforme a seguir exposto:

Não se pode deixar de mencionar que o assunto foi, em certa parte, impulsionado pela decisão proferida pelo Conselho de Estado, no dia 9 de março de 1973, que reconheceu legitimação à associação ambientalista Itália Nostra para impugnar um ato da província de Trento, autorizando a construção de uma auto-estrada na zona circundante do lago de Tovel. O julgado contrasta com uma longa série de pronunciamentos reiterados, nos

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quais se negava a possibilidade de defesa de interesses que não fossem exclusivamente individuais. Foi considerada, assim, como o grande precedente na direção de um tratamento mais generoso em relação aos interesses difusos, classificação essa que, na época, carecia, ainda mais, de precisa definição (MENDES, 2010, p. 97).

Na Itália148 as alterações mais significativas com relação aos direitos coletivos

ocorreram por influência direta do Tratado da União Européia, de 1992, que cuidou

do tema da proteção ambiental e do consumidor em seus artigos 129 e 130. A partir

do respectivo Tratado foi editada a Lei 281, em 1998, reconhecendo os direitos

coletivos dos consumidores e estabelecendo a forma de sua tutela jurisdicional.

Anteriormente, no ano de 1996149, verifica-se que foi criada legislação que alterou o

Código Civil Italiano ao estabelecer uma espécie de ação inibitória para pretensões

de natureza difusa e coletiva, cuja propositura poderia ocorrer através de entidades

associativas, em caso de urgência, visando coibir a utilização abusiva dos contratos

(ZAVASCKI, 2005, p. 26). “Na Itália há previsão da possibilidade de ajuizamento de

ações populares ainda hoje em matéria eleitoral, de beneficência, e em questões

urbanísticas, relacionadas à defesa dos interesses comunais” (LEONEL, 2011, p.

53).

148 Em termos normativos, a legitimação para os sindicatos, prevista no art. 28 da Lei 300, de 1970, costuma ser apontada como importante precedente na introdução da tutela coletiva no direito positivo italiano. As associações sindicais podem, com fulcro no dispositivo, pedir a cessação da conduta anti-sindical e a remoção de seus efeitos. As providências previstas possuem caráter essencialmente inibitório (MENDES, 2009, p. 107). Em termos de meio ambiente, a participação das associações recebeu impulso, embora modesto, com a edição da Lei 349, de 08-07-1986, que prevê a possibilidade de intervenção tanto nos processos judiciais versando sobre indenização por danos ambientais, bem como de recorrer, em sede de jurisdição administrativa, contra os atos administrativos considerados ilegítimos, visando a sua anulação. Para tanto, as associações de caráter nacional ou com estruturação em pelo menos cinco regiões estar registradas junto ao Ministério do Meio Ambiente, incumbido de baixar decreto relacionando, inclusive, a finalidade programática das entidades, de modo de disposição interna e o funcionamento democrático conforme previsto nos respectivos estatutos (MENDES, 2009, p. 108). 149 O desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial no sentido da admissibilidade de postulação, no contencioso administrativo, da tutela de interesses supraindividuais, posteriormente acabou recebendo o beneplácito legislativo. O art. 18 de Lei 349, de 08-07-1986, que instituiu o Ministério do Meio Ambiente, conferiu expressamente legitimação, às associações individualizadas com decreto do titular da respectiva pasta para postular perante a justiça administrativa a anulação de atos ilegítimos e lesivos ao meio ambiente [...] O art. 28 da Lei 300, de 1970, conferiu instrumento de proteção de situações subjetivas de grupo de trabalhadores que somente podem ser tuteladas de forma coletiva, como v. g., o exercício do direito de greve, cujo acesso à justiça seria inviabilizado na hipótese de concessão de via de tutela em caráter exclusivamente individual. [...]. Com a Legge n. 244 de 2007, foi introduzida e disciplinada no ordenamento italiano a ação coletiva com escopo ressarcitório de interesses de consumidores, atendendo às diretrizes elaboradas no plano da Comunidade Econômica Européia. A demanda é proposta por associação de defesa de consumidores, podendo a ela aderir através de manifestação escrita, em momento próprio e após publicidade adequada a respeito da existência do litígio coletivo, membros do grupo de pessoas lesadas em relações de consumo que são especificadas nos dispositivos que regulam essa nova modalidade de prestação jurisdicional (LEONEL, 2011, p. 56-59).

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Mauro Cappelletti trouxe grande contribuição cientifica para o debate dos

direitos coletivos em artigo cientifico publicado no ano de 1976 e intitulado Appunti

sulla tutela giurisdizionale di interessi collettivi ou diffusi. No respectivo trabalho

cientifico enunciou proposições que influenciaram (a ainda influencia) todo o mundo

no estudo do processo coletivo, ao atentar que a realidade contemporânea trouxe

um novo paradigma para o entendimento da ciência do direito e por isso enalteceu a

necessidade de adequação do direito processual à exigência de tutela dos direitos

coletivos. Cappelletti destacou ainda em sua obra a importância de teorizar e

viabilizar o acesso à justiça no que tange ao debate e à proteção dos interesses

coletivos (MENDES, 2009, p. 98-103).

Outro processualista italiano que contribuiu substancialmente para o estudo

dos direitos difusos e coletivos a partir do processo coletivo foi Vincenzo Vigoritti,

que em 1979 através de sua obra intitulada Interessi collettivi e processo: la

legittimazione ad agire teorizou o processo coletivo a partir do principio da

participação popular como parâmetro para justificar a ampliação e o alargamento de

legitimidade processual e da participação através da jurisdição. Vigoriti “desenvolve

o tema, inicialmente, sob o prisma da participacao popular, principio que encontraria

fundamento constitucional, a ampliação da legitimação representaria, assim, o

alargamento da participação através da prestação jurisdicional“ (MENDES, 2010, p.

104). Uma das grandes preocupações da obra de Vigoriti é sistematizar a distinção

teórico-pragmática existente entre os conceitos de direito coletivo e direito difuso. Os

direitos difusos “se referem a um estado mais fluido do processo de agregação dos

interesses individuais, ou seja, no qual não se faz presente a coordenação das

vontades singulares” (MENDES, 2010, p. 105).

Na Alemanha temos no sistema processual a previsão de tutela coletiva a ser

exercida por associações, cuja finalidade é a proteção do consumidor e do meio

ambiente (ZAVASCKI, 2005, p. 27), ou seja, “a defesa judicial dos interesses

coletivos, em sentido amplo, é realizada na Alemanha, basicamente através das

Verbandsklagen, que são as ações associativas (MENDES, 2009, p. 118). Essa

forma de regular o processo coletivo decorre da cultura do associativismo que

permeia historicamente a sociedade alemã. “ A necessidade de organização e

estruturação dos interesses comuns, sejam eles esportivos, festivos ou voltados

para a defesa do meio ambiente ou dos consumidores, enseja o fortalecimento das

entidades e organizações civis” (MENDES, 2009, p. 118). A legitimidade processual

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das associações encontra-se prevista na Lei Contra a Concorrência Desleal, Lei

sobre as Ações Inibitórias em Matéria de Direito do Consumidor e outras infrações,

na Lei para o Regulamento das Clausulas Gerais dos Contratos e na Lei contra as

Limitações da Concorrência ou Lei dos Cartéis).

Em Portugal a Constituição de 1976 estabeleceu expressamente que a tutela

dos direitos coletivos ocorrerá por meio da ação popular, cuja finalidade é prestar a

tutela preventiva, reparatória e sancionatória de lesões à saúde pública, ao meio

ambiente, à qualidade de vida e ao patrimônio cultural150. O advento da Lei 83/95

veio regular o direito de participação procedimental e de ação popular, consagrando

no ordenamento jurídico português o acesso supra-individual à justiça (MENDES,

2009, p. 133). Posteriormente, no ano de 1996, ocorreu em Portugal a edição da Lei

24/96, ampliando o espectro da ação popular e fazendo incluir a proteção dos

consumidores (ZAVASCKI, 2005, p. 27). Dessa forma verifica-se que nos termos do

artigo 52, n. 3 da Constituição portuguesa, combinado com o artigo 1., n. 2 da Lei

83/95, a ação popular pode ser utilizada como instrumento de persecução dos

direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, não se prestando a consecução

de direitos estritamente individuais.

Historicamente o primeiro registro que se encontra no Canadá quanto ao

estudo do processo coletivo encontra-se na província de Quebec, que no ano de

1978 introduziu no seu Code de Procedure Civile o remédio jurídico denominado

recours collectif. Em 1992 foi editada a Ontario Class Proceedings Act, seguida da

Lei de Processamento Coletivo aprovada em 1995 na província de British Columbia.

È de suma importância ressaltar que o modelo adotado nas três legislações acima

mencionadas adota estruturalmente a Regra 24 do direito federal norte-americano.

No ano de 1998 foi editada no Canadá legislação federal atinente às ações

coletivas, conforme dispõe a Regra 114 das Federal Court Rules, sob a

denominação de representative proceedings. “Em conformidade com a Regra

Federal 114, quando duas ou mais pessoas tiverem o mesmo interesse, a ação

poderá ser instaurada por iniciativa ou em face de algum ou alguns deles, na

150 Quanto ao art. 52, a Constituição especifica, agora no n. 3, os contornos da ação popular, conferindo “a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos caso e termos previstos na lei, nomeadamente o direito de promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, a degradação do meio ambiente e da qualidade de vida ou a degradação do patrimônio cultural, bem como de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização (MENDES, 2009, p. 131-132),

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173

qualidade de parte representativa de alguns ou de todos os demais” (MENDES,

2009, p. 142-143).

O Código Modelo de Processos Colectivos para Ibero-América, editado quase

dez anos após a Lei de Ação Civil Pública brasileira (Lei 7347/85), ainda continua

restrito ao sistema representativo como parâmetro ao entendimento jurídico-legal do

modelo de processo coletivo ora proposto (GRINOVER, WATANABE, MULLENIX,

2008, p. 45), ou seja, não é possível verificar na respectiva proposta legislativa a

tentativa do legislador implementar o sistema participativo como norte a viabilizar a

todos os interessados difusos a legitimidade processual suficiente a propositura das

ações coletivas. Por isso, é oportuno demonstrar que o respectivo modelo de

processo coletivo foi concebido em desconformidade com a processualidade

constitucional-democrática centrada no paradigma participativo como fundamento

regente ao exercício pleno da cidadania.

Na Colômbia a tutela processual dos direitos e interesses coletivos está

contida no artigo 88 da Constituição Política e regulamentada pela Lei 472 de 1998.

A Constituição colombiana vigente estabelece expressamente as ações populares e

de grupos como instrumentos legítimos a garantir a proteção dos interesses e dos

direitos difusos, assim entendidos como os interesses supraindividuais e de natureza

indivisível, bem como as ações coletivas para a tutela de direitos individuais

homogêneos. Dentre os legitimados à propositura das ações coletivas temos as

pessoas físicas e jurídicas, assim como os demais legitimados expressamente

autorizados pela lei, como é o caso das Organizações não Governamentais

(GRINOVER, WATANABE, MULLENIX, 2008, p. 46/47). Verifica-se que na Colômbia

foi adotado o sistema participativo como parâmetro regente ao estudo do processo

coletivo, tendo em vista a possibilidade de qualquer cidadão e titular de um direito

difuso deter a legitimidade de propositura da ação popular.

Na Argentina, especificamente na província da Catamarca, encontra-se a Lei

local 2034, de 14 de agosto de 2001, considerada uma legislação muito completa

sob o ponto de vista dos interesses difusos e direitos coletivos. A respectiva

legislação estabelece expressamente que em caso de violação dos direitos difusos e

coletivos admite-se a propositura da ação preventiva, da ação de reparação em

espécie bem como da ação de reparação pecuniária pelo dano causado ao interesse

coletivo. Adotou-se na Argentina o sistema participativa no que tange à legitimidade

para a propositura da ação coletiva, tendo em vista a possibilidade do cidadão

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propor uma ação coletiva sempre que conseguir demonstrar que a violação do

direito difuso ou coletivo o afetou de maneira pessoal e direta151. Mesmo a legislação

prevendo a possibilidade do cidadão propor uma ação coletiva, caberá ao juiz

analisar a legitimidade da pessoa ou do grupo de pessoas interessadas

juridicamente na tutela dos direitos difusos e coletivos. Tal prerrogativa assegurada

ao julgador denota claramente o caráter autocrático (não democrático) do modelo de

processo coletivo proposto na sistematicidade jurídico-legal argentina em virtude de

concentrar os poderes nas mãos do juiz e legitimá-lo a definir quem possui

legitimidade e interesse jurídico na busca da proteção dos direitos difusos e

coletivos.

Ainda na Argentina, ou seja, na Província de Rio Negro, o Código de

Processo Civil e Comercial da Província, promulgado em 19 de dezembro de 2006,

estabelece expressamente a proteção jurídica dos direitos individuais homogêneos,

ou seja, todos aqueles direitos individuais provenientes de uma origem comum e que

tenham como titulares os membros de um grupo (GRINOVER, WATANABE,

MULLENIX, 2008, p. 78). Para esse tipo de ação é considerado legitimado todos os

afetados, o Ministério Público, municípios, entidades legalmente constituídas para a

defesa dos direitos coletivos e qualquer pessoa física que atue no resguardo dos

direitos afetados. Verifica-se, novamente, a adoção do sistema participativo como

parâmetro regente ao estudo e a compreensão do processo coletivo, embora não

seja possível afirmar que se trata de um modelo de processo coletivo efetivamente

compatível com o Estado Democrático de Direito porque, embora a legislação

argentina preveja expressamente a possibilidade de propositura da ação pelos

cidadãos interessados na pretensão difusa ou coletiva, observa-se que todo o

processo continua sendo conduzido e desenvolvido a partir da autoridade exercida

pelo juiz, o que deslegitima ou limita a participação do cidadão no que tange à

construção ampla e participada do provimento jurisdicional de forma isonômica.

A Constituição do Uruguai prevê norma expressa de regulação do processo

coletivo, sem prejuízo de normas expressas sobre a proteção do meio ambiente

151 Están legitimados para ejercer e impulsar lãs acciones previstas em la ley, La Fiscalía de Estado, El Ministerio Público, las municipalidades, los organismos descentralizados o autárquicos con capacidad para estar em juicio según sus estatutos, los entes reguladores, las entidades legalmente constituidas e inscriptas em el registro respectivo para La defensa de los intereses difusos o derechos colectivos y cualquier asociación civil, sociedad o particular, cuando accionen invocando La afectación de um interes difuso o colectivo que les concierna de manera personal y diresta (art. 8) (GRINOVER, WATANABE, MULLENIX, 2008, p. 76).

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(GRINOVER, WATANABE, MULLENIX, 2008, p. 79). Não existe no Uruguai uma

legislação especifica para regulamentar a proteção jurídica dos interesses coletivos

e difusos, porém, todo o processo coletivo é regulamentado a partir do artigo 42 e

220 do Código Geral de Processo, do ano de 1989. Não se observa na legislação

uruguaia a distinção entre interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais

homogêneos, limitando-se o legislador a se referir aos interesses difusos. No que

tange à legitimidade processual ativa a legislação autoriza a propor ações coletivas

o Ministério Público, as associações ou instituições representativas, bem como

qualquer cidadão. Verifica-se que no Uruguai adota-se um sistema misto

(representativo-participativo) como parâmetro regente ao estudo e a compreensão

do processo coletivo, tendo em vista estabelecer expressamente a possibilidade de

instituições (ex. Ministério Público) e do próprio cidadão como legitimados a

propositura de uma ação coletiva destinada a proteção dos direitos e interesses

difusos, coletivos e individuais homogêneos, desde que demonstre claramente o

interesse jurídico na pretensão coletiva deduzida em juízo (interesse jurídico no

sentido de poder sofrer os efeitos da decisão judicial ora proferida no âmbito de uma

ação coletiva).

No Brasil não foi diferente, uma vez que a gênese do processo coletivo está

Ação Popular, que foi inicialmente inserida no Direito pátrio através do artigo 113,

inciso XXXVIII da Constituição de 1934: “Qualquer cidadão será parte legítima para

pleitear a declaração de nulidade ou anulação de atos lesivos do patrimônio da

União, Estados ou dos Municípios” (BRASIL, Constituições Brasileiras, 2001, p.

161). “Foi na Constituição da República de 1934, em seu artigo 113, XXXVIII, que ao

cidadão foi conferida a legitimidade para propor ação popular para pleitear a

nulidade ou a anulação de atos lesivos ao patrimônio da União, dos Estados ou dos

Municípios” (CARVALHO, 2005, p. 222).

É de suma importância esclarecer que o primeiro instrumento processual hábil

no Direito pátrio ao controle das atividades estatais encontra-se na Constituição de

1934, especificamente no que tange ao controle do patrimônio público. “Na

Constituição de 1937 foi suprimida a previsão da ação popular, retornando a receber

tratamento em sede constitucional novamente na Carta de 1946 (Art. 141, inc.

XXXVIII), com a mesma feição da disposição da Constituição de 34” (CARVALHO,

2005, p. 223). Sabe-se que historicamente tal possibilidade foi suprimida na

Constituição de 1937, que pelo próprio contexto histórico, marcado por um regime

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político de exceção, o cidadão encontrava-se impossibilitado de participar das

decisões estatais e se encontrava refém do arbítrio dos detentores do poder. Assim

ressalta-se

No intervalo observado entre a Constituição do Estado Novo até a publicação da Carta de 1946, foi editado o novo ordenamento processual civil unificado, sendo que neste havia a previsão, no artigo 670, da possibilidade de ajuizamento de ação pelo Ministério Público ou por qualquer do povo, com o escopo de dissolver associação civil com personalidade juridica que promovesse atividade ilícita ou imoral, reavivando aquela espécie de ação que já fora prevista anteriormente na própria Carta de 1934, tida pela doutrina de então como popular (LEONEL, 2002, p. 52).

Com o advento da Constituição de 1946 houve o renascimento da ação

popular em seu artigo 141, inciso XXXVIII: “Qualquer cidadão será parte legítima

oara pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio

da União, dos Estados, dos Municípios, das entidades autárquicas e das sociedades

de economia mista (BRASIL, Constituições Brasileiras, 2001, p. 103)”. Novamente

temos a possibilidade jurídica de controle do patrimônio público pelo cidadão. Dessa

forma observa-se:

[...] Em seguida, foram instituídas ainda duas ações de natureza popular no âmbito da legislação infraconstitucional, quais sejam: uma pelo artigo 35, §1º, da Lei 818, de 18.09.1949, relacionada à aquisição, perda e reaquisição da nacionalidade e perda de direitos políticos; e ainda outra, pelo artigo 15, §1º, da Lei 3.052, de 21.12.1958, relativa à impugnação do enriquecimento ilícito (matéria hoje regulada pela Lei 8.429/92, que será tratada oportunamente). [...] (LEONEL, 2002, p. 54)

Em 29 de junho de 1965, em pleno período da Ditadura Militar, foi sancionada

a Lei 4.717, que disciplinava no plano infraconstitucional a ação popular.

Reconheceu-se a legitimidade processual de qualquer cidadão pleitear a anulação

ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio dos entes da

Administração Pública Direta e Indireta. O requisito para a comprovação da

cidadania e da legitimidade para a propositura da presente ação era o titulo de

eleitor e a demonstração da regularidade no exercício dos direitos políticos. A

sentença de improcedência ou de carência da ação estava sujeita ao reexame

necessário e a de procedência à possibilidade de propositura de recurso de

apelação recebido no efeito suspensivo (BRASIL, Vademecum, 2007, p. 1080/1082).

Tal legislação denota a tentativa do legislador institucionalizar o controle das

atividades estatais diretamente pelo cidadão. Acontece que tal fiscalidade não era

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de natureza ampla, excluindo-se, por exemplo, a possibilidade de controle do meio

ambiente e demais direitos de natureza metaindividual e potencializador do exercício

pleno da cidadania. Com isso, sabe-se que temos, nesse período da historia

brasileira, o início da legitimação do cidadão no controle e fiscalidade das atividades

estatais, até porque tal controle era um tanto limitado em decorrência do próprio

contexto da historiografia brasileira, um período de regime político de exceção.

Dessa forma, sabe-se que não é possível afirmar nesse contexto histórico

efetivamente o exercício legítimo da cidadania através da propositura da ação

popular.

A Carta de 1967, e a Emenda Constitucional 1/69, em seu artigo 153, inciso

XXXI previa: “Qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular que

vise a anular atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas (BRASIL,

Constituições Brasileiras, 2001, p. 165)”. Novamente ressalta-se a existência de

uma previsão legal um tanto genérica que garante ao cidadão um controle restrito

das atividades estatais e à margem da legitimidade democrática e do Modelo

Constitucional de Processo Coletivo.

Em 1981 foi editada a Lei 6938, que instituiu a Política Nacional do Meio

Ambiente e representou grande avanço na sistematização jurídico-legal das

questões atinentes aos direitos difusos no Brasil:

A primeira dentre estas leis posteriores à ação popular, destinadas a tutela de interesses metaindividuais, foi a Lei 6938 de 1981 que institui a Política Nacional do Meio Ambiente, a qual previu a possibilidade de defesa dos interesses difusos relacionados ao meio ambiente, disciplinando de forma pioneira a legitimação exclusiva do Ministério Público para a respectiva ação de responsabilidade civil. A legitimação do Ministério Público representou um avanço pois somente o cidadão era legitimado para a propositura da ação popular, enquanto que no pólo passivo somente o Poder Público poderia figurar, com esta nova disciplina qualquer agente poluidor poderia ser demandado (CARVALHO, 2005, p. 223).

Em 24 de julho de 1985 adveio para o sistema jurídico brasileiro a Lei 7.347,

que disciplinou a ação civil pública, cujo objeto pode ser o meio ambiente, o

consumidor e patrimônio público. Isso representa mais uma tentativa do legislador

pátrio regulamentar através de uma legislação especifica o processo coletivo.

Verifica-se que o tratamento jurídico-legal dado ao processo coletivo ainda continua

adstrito à concepção representativa por não contemplar o cidadão como legitimado

para a sua propositura, ou seja, na lei da ação civil publica o legislador optou por

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excluir o cidadão como parte legitima à propositura da ação. Mesmo assim toda a

doutrina brasileira manifesta-se no sentido de reconhecer a importante contribuição

legislativa trazida com o advento da Lei 7347/85:

Cumpre ressaltar, contudo, que esse diploma legal constitui o marco para grandes avanços que se sucederam e para um efetivo acesso à justiça, proporcionando agora a possibilidade de se postular em juízo a tutela dos interesses transindividuais, pois veiculou novidades que obrigaram uma releitura do tradicional art. 3º do Código de Processo Civil, concebido, repita-se, sob o influxo da visão processualista que ainda necessitava vencer a segunda fase metodológica da ciência processual referida. Menos de um ano antes do advento da Lei nº 7347/85, o legislador brasileiro já dava demonstração de sua preocupação com o que Cândido Rangel Dinamarco denomina de universalização da jurisdição, ou seja, com a preocupação de cada vez mais trazer ao seio do Judiciário o maior número possível dos conflitos de interesses detectáveis na sociedade, a fim de solucioná-los com legitimidade e justiça, perseguindo a pacificação (VIGLIAR, 1999, p. 21).

A Constituição de 1988 reiterou o tratamento jurídico-legal dado a ação

popular como um instrumento hábil que legitima o cidadão no controle dos atos e

das atividades estatais, ampliando o objeto ou a parte integrante da pretensão

coletiva deduzida em juízo. Com o advento da Constituição de 1988 ficou

expressamente consagrada a tutela material dos direitos de natureza transindividual,

como é o caso do meio ambiente, do patrimônio publico, da probidade

administrativa, da proteção do consumidor e do patrimônio histórico, artístico,

turístico e paisagístico. O texto constitucional vigente atribuiu aos direitos difusos e

coletivos o status jurídico de Direitos Fundamentais em virtude do seu caráter

imaterial, indisponível e irrenunciável.

O legislador constituinte ao possibilitar a propositura da ação coletiva pelo

cidadão veio apenas confirmar o principio da participação expressamente previsto no

artigo 1º da Constituição brasileira de 1988, que trouxe a soberania popular como

um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Nesse contexto sabe-se que

se encontra expressamente previsto no direito brasileiro o fundamento constitucional

e democrático para justificar juridicamente o entendimento do modelo de processo

coletivo que viabiliza a oportunização de construção participada do mérito

processual.

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3.2 Processo Coletivo Americano: o Sistema da Class Actions e a problemática da construção do mérito processual.

A class action pode ser inicialmente definida como uma ação de classe

proposta por uma ou mais pessoas ou uma entidade com a finalidade de buscar a

proteção jurídica de direitos pertencentes a um grupo de pessoas e cujo julgamento

vinculará o grupo como um todo152 (GIDI, 2003, p. 334).

O instituto da class action, a partir do direito norte-americano153, pode ser

compreendido como um procedimento jurídico-legal através do qual uma pessoa ou

um grupo de pessoas é considerado legitimado para representar um grupo de classe

de pessoas que compartilham, entre si, de interesse comum ou coletivo. O

pressuposto básico da respectiva ação de classe é a demonstração prévia, pelo

autor da ação, da sua legitimidade para representar um grupo de pessoas que tem

direitos comuns entre si. A sua utilização limita-se à determinadas hipóteses ou

situações em que a junção de todos que detém a legitimidade de ser parte no

processo não é algo plausível, porque a junção de todos numa mesma relação

processual causaria dificuldades insuperáveis ao exercício da jurisdição e

possivelmente tornaria a demanda judicial interminável (FRIEDENTHAL; KANE;

MILLER, 1985, p. 728).

A gênese das class actions154 é o direito inglês do século XVII, no bill of

peace155, que estabelecia um procedimento através do qual reconhecia-se a

152 a class action is the action brought by a representative plaintiff (collective standing), in protection of a right that belong to a group of people (object of the suit), which judgment will bind the group as a whole (res judicata). 153 Nos Estados Unidos, como é cediço, é bastante intensa a participação popular na gestão do interesse público (de que são um bom exemplo as class actions), do mesmo modo como é intensa a fiscalização e supervisão estatal em todas as matérias concernentes aos interesses difusos (MANCUSO, 1997, p. 189). 154 A origem das class actions remonta ao denominado Bill of peace do direito inglês do século XVII, procedimento no qual era possível propor uma ação ou sofrer uma ação por intermédio de partes representativas (representative parties). Eram admitidas nos juízos de equidade, perante a Court of Chancery. Posteriormente, com a fusão entre os sistemas da law e da equity, decorrente da Court of Judicature Act, de 1873, a class action acabou sendo estruturada de forma mais aproximada a suas características modernas, nos moldes em que vigora nos países do common law. A Regra 10 do referido diploma determinava que, havendo multiplicidade de partes comungando do mesmo interesse em uma controvérsia, uma ou mais das partes poderiam acionar ou ser acionadas, ou ainda autorizadas pela Corte para litigar em beneficio das demais. Demonstrados os requisitos necessários, como a existência de grande numero de litigantes cuja junção fosse impraticável, comunhão de interesses, e ainda que as partes nomeadas estivessem em condições de adequadamente representar os ausentes, seria admitida a class action (LEONEL, 2011, P. 61). 155 Trata-se de uma prática dos Tribunais Ingleses dos séculos XVII e XVIII utilizado para resolver conflitos de interesses de natureza não exclusivamente individual, ou seja, de disputas legais envolvendo múltiplas partes que compartilham aspectos comuns.

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possibilidade de propor uma ação ou ser demandado em uma ação proposta por

intermédio de partes representativas (representatives parties). Os requisitos do

respectivo procedimento adotado no direito inglês eram semelhantes àqueles

previstos nas class actions, quais sejam, a existência de um grande número de

pessoas que compartilham interesses comuns envolvidos no conflito, bem como a

existência de uma pessoa ou de um grupo de pessoas legitimado a representar

adequadamente os interesses jurídicos daqueles que não figuravam,

expressamente, no processo (COUND; FRIEDENTHAL; MILLER; SEXTON, 1979, p.

261-262).

O advento da Federal Equity Rule 38, no ano de 1912 nos Estados Unidos da

América, foi decisiva para o aprimoramento e a compreensão da class action, tendo

em vista que o presente diploma normativo foi o primeiro a definir o instituto e

também a estabelecer os requisitos essenciais a sua aplicabilidade. A

representatividade por um membro da classe de pessoas é imprescindível em

virtude da inviabilidade de participação de todos os membros da classe na relação

processual. A existência de uma questão de fato ou de direito comum a todos os

interessados também é pressuposto essencial à propositura regular da class action

(TARUFFO, 1969, p. 619).

No ano de 1938 ressalta-se, nos Estados Unidos da América, o advento da

Rule 23 das Federal Rules of Civil Procedure, cuja finalidade principal foi descrever

detalhadamente quando se verificava a hipótese de cabimento de uma class action.

A sistematização das class actions a partir da Rule 23 ensejou diversas

classificações156 conforme a extensão dos efeitos da decisão proferida com relação

156 Esta nueva version de la Regla 23 restringió lãs acciones de clase a três tipos o categorias [...] (1) Una acción de clase será acogida si la interposición de acciones separadas puede crear um riesgo de decisiones judiciales inconsistentes o contradictorias vinculadas a los miembros individuales de la clase que podrían determinar que la parte que se opone a la clase deba efectuar conductas incompatibles. Asimismo, la acción también será receptada em el caso de que la multiplicidad de acciones individuales pueda crear um riesgo de decisiones judiciales respecto de algún miembro de la clase que haga imposible, perjudique o disminuya la ulterior protección de los intereses de los otros miembros ajenos al proceso individual. (2) Se autoriza la interposición de uma acción de clase, cuando la parte opuesta a la clase – contraparte – ejecutó um acto, se negó a actuar o dejó de ejercer um deber legal de modo uniforme ante el grupo o unan omisión cuyos efectos son aplicables a la generalidad de la clase y puede ser remediada, con relación a toda la clase, con un mandato de hacer o no hacer. (3) El juez considera que las cuestiones de hecho y derecho comunes a la clase predominan sobre otras cuestiones que afectan solamente a miembros individuales y que una acción de clase es superior a otros métodos que puedan servir para resolver eficazmente la controvérsia. Para esa determinación el juez deberá tener en cuenta: a) la conveniência para los intereses de los miembros de la clase em defender sus derechos individualmente; b) la prolongación y naturaleza de outro litígio ya empezado por otros miembros de la clase; c) el deseo de los miembros de concentrar

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181

aos direitos de cada sujeito juridicamente interessado na pretensão deduzida, tal

como preceitua José Rogério Cruz e Tucci:

Antes da Reforma de 1966157, a Regra 23, como visto, ensejava uma tríplice distinção das class actions, dependendo do character of the right deduzido em juízo e, por isso, diferente era a extensão dos limites subjetivos da coisa julgada (binding effect) em cada uma das espécies então concebidas. Com efeito, na denominada true class action – quando o direito da categoria era joint ou common – a eficácia ultra partes da decisão atingia diretamente todos os membros do grupo, ainda que estranhos ao processo. Tratando-se de hipótese de hybrid class action – quando os direitos dos componentes eram distintos (several), mas referentes a um único bem, na qual havia um interesse comum, os efeitos da denominada claim preclusion atingiam todos os membros tão-somente em relação aos seus respectivos direitos sobre o bem que havia sido objeto da controvérsia [...]. Por outro lado, na hipótese de spurious class action – quando os direitos dos componentes eram distintos (several), mas dependentes de uma questão comum de fato ou de direito, ensejando uma decisão uniforme, a qual, como decorre da própria denominação, apenas do ponto de vista prático era inserida entre as class actions, a sentença projetava seus efeitos exclusivamente àqueles que participavam do processo [...] (1990, p. 26).

O recebimento e o processamento da class action condiciona-se à

demonstração da impossibilidade de reunião de todos os membros individualmente

considerados em um só processo, ressaltando-se que as questões de fato e de

direito levadas perante a Corte devem ser comuns a toda a classe. A class action

torna-se necessária sempre que a propositura de ações individuais, cujo objeto

sejam direitos coletivos, puder causar prejuízos aos interesses de outros membros

da classe não envolvidos nas ações individuais. Além disso, se o direito pretendido é

comum aos integrantes de uma determinada classe, recomenda-se que a pretensão

coletiva seja julgada de forma a causar efeitos jurídicos idênticos a todos os titulares

dos respectivos direitos, a fim de evitar decisões contraditórias entre si158.

el litígio en ese foro, y d) lãs dificultades que pueden producirse em el manejo de la acción de clase (MAURINO; NINO; SIGAL, 2005, p. 36). 157 De outro lado, a doutrina especializada assevera que, em decorrência da ampla aceitação do instituto, foi promovida sua reforma em 1966, para dirimir dúvidas e esclarecer pontos ainda obscuros relacionados à prática de sua utilização perante os tribunais, conforme a redação original da Regra 23. A modificação mais relevante foi aquela relacionada à classificação tríplice contida no texto primitivo. Diante da redação da norma, eram concebidos três tipos de class actions, dependendo do caráter do direito tutelado, gerando o julgado diversos efeitos. Assim, na true class action, o direito era absolutamente comum a todos os membros do grupo; na hybrid class action, o direito era comum em razão de várias demandas sobre um mesmo bem; e, na spurious class action, inúmeras pessoas, possuindo interesses diversos, reuniam-se para litigar em conjunto (LEONEL, 2011. p. 63). 158 Bajo las normas actuales, para que uma acción sea conducida em forma colectiva, antes de que uma clase pueda ser sometida a revisión judicial, La Regla 23 (a) estabelece cuatro requisitos prévios de admisibilidad. [...] Así, conforme a los prerrequisitos de lãs acciones de clase – Regla 23, sección (a) – uno o más miembros de uma clase pueden demandar o ser demandados como partes representantes de otros, em el caso de que: (1) La clase sea tan numerosa que resulte impracticable

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182

A propositura de uma ação individual poderá ensejar o advento de uma class

action se o objeto suscitado pelo autor da ação for de titularidade comum de uma

determinada classe de pessoas. Assim, poderá o juiz americano, uma vez

preenchidos todos os requisitos legais previstos na Rule 23, receber uma ação

individual e dar prosseguimento a ela como ação coletiva, desde que o objeto

suscitado pela parte autora verse sobre os interesses jurídicos e fáticos de uma

determinada categoria ou grupo de pessoas. Caso essa situação venha a ocorrer na

prática, é importante ressaltar que a decisão judicial proferida estenderá todos os

seus efeitos jurídicos sobre todos aqueles sujeitos jurídico-faticamente interessados

na pretensão inicialmente deduzida em juízo. Uma vez preenchidas todas as

condições de regular processamento da class action todos aqueles sujeitos que dela

participaram, direta ou indiretamente por meio de um representante, serão afetados

pelo conteúdo da decisão ora proferida (MELLO, 1993). Não se pode deixar de

ressaltar que é legitimidade da Corte o direito de analisar unilateralmente se a ação

coletiva é a melhor forma disponível para o julgamento eficiente da controvérsia, a

fim de sobrepujar o julgamento das ações individuais devidamente conexas à

pretensão deduzida em juízo.

Normalmente as situações que dão ensejo a propositura de uma class action

são de caráter pecuniário e condenatório (voltada para fins ressarcitórios em que se

busca simultaneamente a cessação da ilicitude seguida da reparação por perdas e

danos). Porém, em situações excepcionais, poderá ser objeto de uma ação de

classe pretensões coletivo de caráter inibitório revestidas de caráter mandamental,

com o propósito de proteger direitos de natureza imaterial, como por exemplo, ação

judicial proposta com o intuito de inibir discriminação religiosa ou racial.

Os princípios da celeridade processual, efetividade processual, segurança

jurídica (evitar decisões individuais contraditórias versando sobre uma determinada

pretensão coletiva) e economia processual são comumente utilizados como

la participación de todos em el proceso. (2) Existan cuestiones de derecho o hecho comunes a la clase, que permitan uma resolución judicial común a todos los miembros de Ella. (3) Los reclamos o defensas del representante de la clase Sean típicos de los reclamos o defensas propios de la clase. En otras palabras, el representante debe compartir los mismos intereses y debe ser uno de los miembros de la clase, por lo que la acción será propuesta em su próprio nombre y em nombre de todas las personas em situación similar. (4) Pueda estimarse que el representante de la clase protegerá adecuadamente los intereses de SUS miembros, como requisito esencial para que sea cumplido El debido proceso legal em cuanto a los miembros presentes y a los ausentes de la clase (MAURINO; NINO; SIGAL, 2005, p. 35).

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fundamentos para justificar o regular processamento e julgamento das class actions

no sistema norte-americano.

A primeira critica pertinente à sistemática americana das class actions refere-

se a sua incompatibilidade com o modelo de processo trazido pela Constituição

brasileira de 1988, que estabelece como possibilidade o direito de todos os

interessados difusos ou coletivos manifestarem-se, de forma direta, como partes no

processo coletivo cujo objeto versa sobre direitos aos quais são titulares. Em

contrapartida, o sistema das class actions reproduz o modelo de representatividade

como parâmetro ao entendimento do processo coletivo, haja vista que oportuniza

diretamente ao representante da classe o direito de participar da construção do

mérito processual, excluindo-se os demais interessados (ora representados) da

possibilidade de participarem diretamente de todo o debate fático-jurídico da

pretensão no âmbito processual, haja vista que sua participação é indireta e por

intermédio do representante da classe.

Mesmo não tendo participado da construção do mérito da pretensão coletiva

objeto da class action, os sujeitos representados sofrem diretamente os efeitos

jurídicos da decisão ora proferida. A participação dos representados é proibida por

questão de celeridade e de economia processual, haja vista que a delegação da

legitimidade processual ao representante da classe obstaculiza e inviabiliza qualquer

ingerência do interessado difuso ou coletivo (representado) no debate da pretensão

coletiva. Nesse ínterim, verifica-se que a impossibilidade de qualquer participação do

representado no debate processual da pretensão representa verdadeira supressão

do principio do contraditório e da ampla defesa, haja vista que sofrerão os efeitos

jurídicos da decisão sem ter tido qualquer oportunidade de resistir ao julgamento ou

de construir discursivamente o mérito da pretensão coletiva deduzida em juízo.

A não participação do representado na construção do mérito processual não

decorre da voluntariedade do sujeito, mas sim, trata-se de algo imposto pelo

sistemático modelo das class actions norte-americanas. Estender os efeitos de uma

decisão judicial envolvendo pretensão coletiva sobre pessoas que foram

impossibilitadas de exercer livremente o contraditório e a ampla defesa é o mesmo

que legitimar a violação do devido processo legal. O mesmo não se diz com relação

às pessoas as quais foi oportunizado o exercício do contraditório e da ampla defesa

e, livre e voluntariamente, os titulares dos respectivos direitos optaram por não

participar diretamente da construção do mérito processual da pretensão coletiva.

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Não se pode admitir a relativização dos princípios do contraditório e da ampla

defesa no processo coletivo sob o argumento proposto pelo Sistema Representativo,

visto que a existência de um representante de uma determinada classe não poderá

dar ensejo à supressão do direito dos representados exercerem legitimamente o

contraditório e a ampla defesa.

A representatividade adequada é considerada uma questão preliminar159 para

o recebimento e o processamento regular da class action, pois o julgamento do

mérito da pretensão condiciona-se à demonstração da regularidade da

representatividade adequada do autor da ação para que todos os interessados, ora

representados, possam sofrer os efeitos do provimento. Na análise da adequada

representação a Corte deverá averiguar rigorosamente a observância dos seguintes

requisitos: a) a demonstração inequívoca pelos titulares da pretensão de efetivo

interesse jurídico na promoção daquela demanda; b) a representatividade adequada

por advogados tecnicamente preparados para enfrentar todos os desafios

apresentados no desenrolar da class action; c) averiguar a inexistência de qualquer

conflito entre as partes no interior da classe, ou seja, verificar a unidade dos

integrantes da classe no que tange à promoção da respectiva demanda.

A demonstração de que o autor da ação oferece condições suficientes para

fornecer uma adequada representação para todos os membros da classe é algo

imprescindível para o entendimento jurídico da coisa julgada nas class actions. O

processamento regular da ação denota a sua admissibilidade em virtude da

adequação na representatividade pelo autor. Em face disso, sabe-se que o

julgamento do mérito da pretensão coletiva será visto como um típico precedente,

com as conseqüências jurídico-legais que lhe são inerentes, uma vez que sua

aplicabilidade será estendida a todos as demais pretensões conexas àquela

inicialmente deduzida em juízo.

Qualquer irregularidade constatada na representação do autor da ação

(representatividade inadequada) traz como conseqüência a limitação na extensão

dos efeitos da coisa julgada, ou seja, a coisa julgada não estenderá seus efeitos

jurídicos para aquelas pessoas que não tenham sido adequadamente representadas

pelo autor da ação.

159 Existe controvérsia doutrinária sobre tratar-se a representatividade adequada como uma questão preliminar ou prejudicial, porém, é pacífico entre os estudiosos de que a representatividade adequada é uma questão prévia que deve ser necessariamente resolvida antes do julgamento do mérito da pretensão (ALVIM, 1977, p. 11-25).

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A Federal Rule 23 estabelece expressamente a necessidade de garantir a

publicidade ampla do objeto da ação de classe, de acordo com as circunstâncias

concretas de cada caso. Já se encontra sedimentado na jurisprudência americana a

obrigatoriedade de ampla publicização de todos os membros da classe que possam

ser identificados e encontrados mediante a utilização de razoável esforço, mesmo

que a classe seja constituída por milhares de pessoas. A inobservância do principio

da publicidade poderá acarretar a extinção do processo sem julgamento do mérito,

tendo em vista a ausência de uma condição de procedibilidade da class action: a

devida comprovação da adequada representação do autor da ação mediante a

efetivação do principio da publicidade. Todo o custo da noticia da tramitação do

processo será suportado pelo autor da ação que, somente se vitorioso, poderá

cobrar de toda a classe, na proporção que cada sujeito faz jus ao beneficio

alcançado com a class action.

Ao notificar cada sujeito interessado, deverá o autor da ação informar na

notificação160 a possibilidade de cada membro requerer expressamente a sua auto-

exclusão da ação proposta. Tal pedido de auto-exclusão poderá ser feito a qualquer

momento antes do julgamento do mérito da pretensão para que a parte interessada

não venha a sofrer os efeitos jurídicos da coisa julgada. Caso o membro da classe

não requeira expressamente a sua exclusão na forma da lei sofrerá todos os efeitos

jurídicos da decisão judicial ora proferida. Uma vez notificado, o membro da classe

poderá participar diretamente da ação, desde que se faça representar por advogado.

Nesse contexto todo é de extrema relevância esclarecer que nenhum individuo é

tratado como membro da classe enquanto não tiver sido regularmente notificado

acerca da existência da class action e desde que tenha optado em participar

daquela relação processual e se seus efeitos conseqüentes.

Outra questão de suma relevância no estudo do tema diz respeito à

discricionariedade que o Tribunal tem de analisar previamente se uma determinada

pretensão pode, ou não, assumir a forma de ação coletiva. Trata-se de decisão

160 La sección (c) (2) de la Regla 23 establece, solamente para el caso de configurarse una acción de clase del tipo (b.3), que la notificación debe ser la mejor posible, esto es la notificación individual de todos los miembros del grupo que puedan ser razonablemente identificados y la notificación general para todos los miembros que no lo sean. A su vez la ley determina que la notificación debe incluir, como mínimo: a) El anuncio de que el juez excluirá del grupo al miembro que así lo requiera dentro del plazo estipulado y notificado em esse momento; b) que el fallo sea favorable o no a los intereses de la clase, incluirá a todos los miembros que no soliciten su exclusión dentro del plazo anteriormente señalado; y c) Que cualquier miembro que no haya solicitado su exclusión podrá participar del juicio com patrocínio letrado (MAURINO; NINO; SIGAL, 2005, p. 39).

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exclusiva do julgador fundada essencialmente na análise perfunctória da condição

de representante adequado do autor da ação, que deverá demonstrar o interesse de

defender os direitos de toda uma classe de pessoas e não apenas os seus próprios

interesses. Sempre que o Judiciário negar a certificação da classe, a ação proposta

poderá prosseguir, porém, como ação individual e sem a possibilidade de extensão

dos efeitos da decisão para terceiros que não figuraram como parte na relação

processual.

Concentrar nas mãos do Judiciário a legitimidade exclusiva de análise da

natureza coletiva da pretensão é suprimir a legitimidade processual de todos os

interessados difusos e coletivos debaterem a pretensão e construírem

participadamente o mérito da ação de classe.

São sete161 as condições indispensáveis para o reconhecimento jurídico da

class action162 e, consequentemente, o seu regular processamento e julgamento:

a) O sujeito que pretende ser reconhecido como representante adequado

dos membros de uma determinada classe deverá fornecer argumentação

fático-jurídica suficiente de que existe uma classe sujeita a violação de um

determinado direito cuja titularidade é comum a todos os integrantes. É

necessário ao autor da ação a descrição detalhada da classe, definindo

quais são as pessoas que nela estão incluída , assim como, deverá

demonstrar quais pessoas podem ser incluídas em tantas subclasses

quantas forem consideradas viáveis e necessárias ao caso concreto. 161 Para a aceitação de uma demanda proposta por um interessado como class action, é necessário o atendimento de alguns requisitos: a) deve haver uma classe; b) aquele que se pretende adequado representante deve ser membro atual da classe; c) a classe deve ser tão numerosa que a reunião de todos os seus membros demonstre-se impraticável; d) as questões que dão ensejo ao litígio de fato ou de direito, devem ser comuns aos membros da classe e predominar com relação às questões individuais; e) as pretensões deduzidas pela “parte ideológica” devem ser típicas da classe; f) há necessidade de reconhecimento de efetiva representação adequada (não simplesmente potencial) dos interesses de toda a classe, pelo individuo presente na relação processual (o que envolve não somente a ausência de conflitos entre os membros da classe e os ausentes, como ainda a presença de advogado especializado, que tenha condições de lidar com a complexidade de questões que podem se apresentar no desenvolvimento do processo); g) a hipótese trazida a juízo se amoldar a uma das situações indicadas na Rule 23, i. é. se há risco de se ter regras individuais de conduta incompatíveis entre si, se há busca de uma injunção a favor ou contra a classe para que sejam respeitados direitos civis, ou, ainda, se é conveniente, por economia processual e segurança jurídica, a junção de centenas, milhares ou milhões de lides individuais (multiple litigation) para uma decisão vinculante, conjunta e uniforme, salvo hipótese de autoexclusão (LEONEL, 2011, p. 65). 162 As class actions norte-americanas podem ter a sua origem histórica traçada já no século XII, quando grupos sociais litigavam nos tribunais ingleses, representados pelos seus líderes. Trata-se da gênese do instituto da representatividade adequada considerado o fundamento regente ao entendimento do instituto das class actions a partir das proposições teóricas delineadas pelo direito norte-americano (GIDI, 2007, p. 40-57).

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b) Aquele que se pretende adequado representante deve ser membro atual

da classe. A condição de legitimado processual do representante

adequado perpassa pela demonstração de que é membro integrante da

classe que pretende representar.

c) A classe deve ser tão numerosa que a reunião de todos os membros

torna-se algo impraticável, ou seja, é necessário que o representante

adequado demonstre que o número excessivo de membros da classe

torne dificultoso (ou até inviável) o exercício regular da jurisdição.

d) As questões que deram ensejo ao litígio, sejam as de fato, sejam as de

direito, devem ser comuns a todos os membros da classe, ou seja, é

necessário demonstrar previamente o caráter coletivo da pretensão objeto

da ação de classe. É necessário esclarecer preliminarmente qual será o

objeto da ação coletiva a fim de delimitar previamente os possíveis limites

objetivos da coisa julgada.

e) A pretensão deduzida pelo autor da ação (representante adequado) deve

ser comprovadamente de caráter coletivo e nunca ter natureza

exclusivamente individual. Somente será possível a extensão dos efeitos

da decisão para todos os membros da classe se comprovadamente o

objeto da ação de classe for de natureza coletiva.

f) O representante adequado deverá efetivamente representar os interesses

de toda a classe, adotando todas as medidas jurídico-legais necessárias

para a defesa dos direitos de titularidade de todos os membros que

compõe a classe, não se omitindo e, tampouco, quedando-se inerte na

proteção dos direitos coletivos e difusos que integra a pretensão deduzida

em juízo.

g) Na proteção dos direitos de toda uma classe o Judiciário deve ser

cuidadoso no sentido de não violar regras que protegem condutas

individuais e, ao mesmo tempo, ser cauteloso para também não proteger

direitos individuais em detrimento dos direitos coletivos e difusos. A fim de

garantir a economia processual e a segurança jurídica o julgador deverá

conciliar, na medida do possível, todos os direitos de natureza individual e

coletiva no momento em que for julgar o mérito da pretensão deduzida em

juízo.

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A certificação163 (trata-se de uma fase crucial para o regime das ações

coletivas no direito norte-americano) consiste no término da fase preliminar em que o

julgador declara a regularidade processual para o prosseguimento do julgamento do

mérito da class action. Uma ação não certificada como ação de classe prosseguirá

como ação individual. A doutrina majoritária norte-americana, assim como o

entendimento sedimentado na Suprema Corte, sinalizam no sentido da

irrecorribilidade da decisão que reconhece ou não a possibilidade da ação proposta

seguir como uma class action. A doutrina que defende a recorribilidade da decisão

certificatória, chamada de Death Knell, foi derrubada quando do julgamento, pela

Suprema Corte, do caso Coopers and Lybrand versus Livesay (FRIEDENTHAL;

KANE; MILLER, 1985, p. 579).

A execução164 da decisão final condenatória proferida na class action deve

ser analisada sob duas perspectivas: deve-se averiguar o montante do dano sofrido

pela classe litigante e, por fim, distribuir (ou cobrar dos) membros da classe,

enquanto indivíduos que são, sua proporção exata na quantificação do dano. É por

isso que se faz necessária na fase de liquidação de sentença a constatação da

fragmentação ou da individualização dos danos sofridos pela classe como um todo e

também por cada sujeito ou membro que integra a respectiva classe. Para isso

inicialmente deve ser avaliado se existe a responsabilidade do réu e, se positiva, na

sequência será auferida especificamente a quantificação do dano. Uma vez fixada a

responsabilidade da parte demandada e a quantificação dos danos, a Corte

determina como deverá ser efetivada a sua distribuição (ou também sua cobrança)

entre os membros da classe.

A Corte deve ser precisa na distinção dos danos sofridos pela classe como

um todo frente aos danos causados pelo réu a cada membro integrante da classe

especificamente. Nas hipóteses em que o pagamento de todos os danos

individualmente sofridos não esgotar a responsabilidade do devedor tal como ficou

163 En lo que respecta AL procedimiento de las acciones de clase, el juez deberá decidir en primer lugar se acepta la acción como proceso de clase a través del acto de certificación. Esta orden será condicional y puede ser modificada em cualquier momento hasta la decisión sobre el fondo Del asunto (MAURINO; NINO; SIGAL, 2005, p. 38). 164 Si todos los prerrequisitos y los requisitos da la acción de clase han sido satisfechos, la decisión final tendrá efectos vinculantes para todos los miembros de la clase, hayan participado o no del proceso. Esta es una excepción a cierto principio general asumido em Estados Unidos según el cual una persona que no haya tenido su “dia em la Corte” no puede ser sometida a uma decisión judicial. Refleja um reconocimiento de que el sistema judicial debe ser capaz de evitar la demora y gastos que ocasionan múltiples litígio por uma misma cuestión (MAURINO, NINO; SIGAL, 2005, p. 40-41).

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decidido, existe a possibilidade da Corte se utilizar do fluid class recovery, que se

trata de um instituto cuja utilização é mais voltada para fornecer um beneficio geral

para toda a classe do que especificamente compensar cada um dos indivíduos que

a formam. Além disso, o respectivo instituto também se presta a garantir a reparação

dos danos para aquelas pessoas ou membros da classe que, sequer, tenham

conhecimento da ação e que, entretanto, não teriam direito a propositura de uma

ação individual para vindicar o quanto declarado na sentença, tendo em vista o

advento da coisa julgada165 e de seus efeitos jurídico-legais. O fuid class recovery é

um instituto freqüentemente utilizado com o propósito de assegurar que a

indenização reconhecida em uma class action beneficie todos os membros da classe

presentes ou ausentes, de forma individual e coletiva, sem qualquer exceção.

Outro tema correlato a toda problemática cientifica em questão diz respeito à

possibilidade de realização de acordo envolvendo o objeto das class actions. Na

sistemática jurídica adotada pelos Estados Unidos da América, toda proposta de

acordo visando o encerramento de uma ação coletiva, especificamente uma ação de

classe, deve ser submetido ao crivo da Corte, que é quem detém a legitimidade da

análise e da aprovação ou não do respectivo acordo, cuja produção dos efeitos

jurídico-legais somente será possível após a regular homologação pelo órgão

jurisdicional. A proposta de acordo apresentada pela parte demandada deve ser

conhecida integralmente pela parte autora, ou seja, conforme estabelece a Rule

23(e), nas hipóteses em que a classe já tenha sido certified, obrigatoriamente deverá

ser efetivada uma fair notice da proposta de acordo, garantindo-se, por conseguinte,

à representatividade adequada, ou seja, o direito de participar de forma direta do

debate de todas as questões de fato e de direito integrantes do acordo que se

pretende realizar.

A doutrina norte-americana se divide quanto à possibilidade de realização de

acordo antes de ter sido certificada a natureza jurídica de class action para a ação

165 No que atine ao binding efect, ou seja, limites subjetivos da coisa julgada, desde que considerada adequada a representação, e tendo os integrantes da classe recebido a notificação (fair notice) dando conta da propositura da demanda coletiva, a decisão, acobertada pelos efeitos da coisa julgada, vinculará todos os integrantes da classe tanto na hipótese de procedência como de improcedência da ação. A Regra 23 atribui certo poder discricionário ao juiz de delimitar a extensão dos efeitos subjetivos da res judicata. Ademais, assegura-se ao membro da classe regularmente notificado, nos casos de ação destinada à obtenção de indenização, a possibilidade de requerer a sua autoexclusão (right to opt out), e não ser atingido pelos efeitos da decisão, podendo a qualquer tempo ajuizar demanda individual com relação aos mesmos fundamentos de fato deduzidos na demanda coletiva (LEONEL, 2001, p. 73).

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proposta. Particularmente entende-se que o acordo de qualquer demanda, seja de

natureza individual ou coletiva, versa sobre questões de mérito que permeiam a

pretensão deduzida em juízo. Considerando-se que a análise do mérito da

pretensão das class actions é posterior à certificação, pugna-se pelo entendimento

de que a realização de acordo somente é juridicamente viável após a confirmação

da regularidade procedimental e processual da class action.

A participação direta dos autores da ação (representatividade adequada) é

conditio sine qua non para viabilizar a legitimidade jurídica do acordo a ser firmado

entre as partes e homologado pelo órgão julgador. Isso implica dizer que a Corte

não deteria legitimidade para, de ofício, firmar acordo sob a justificativa de proteção

dos interesses dos membros da classe. Nesse mesmo sentido sabe-se que o

representante adequado (autor da ação) não teria legitimidade para se recusar, de

forma infundada e injustificada, a realização de um acordo que venha a proteger

amplamente os interesses jurídicos de todos os membros da classe. Nessa situação

excepcional, de recusa injustificada do representante adequado em anuir com a

realização de um acordo que atenda aos interesses dos membros da classe, poderá

a Corte, de forma fundamentada, homologar o respectivo acordo.

Quanto à necessidade ou não de intimação pessoal dos membros da classe

para o debate envolvendo possível acordo na class action entende-se ser

dispensável a intimação pessoal, tendo em vista ser juridicamente viável que a

publicidade da realização do acordo poderá ocorrer mediante outros meios idôneos

e efetivos que venham a resguardar o direito de participação e de manifestação das

partes juridicamente interessadas. No ano de 1978, no caso Shelton, a Corte decidiu

pela desnecessidade de intimação pessoal dos membros da classe para a

realização do acordo porque, sem a prévia demonstração de que se tratava de ação

coletiva, não haveria que se falar em eventuais prejuízos para os membros ausentes

(EMANUEL, 1990, p. 264).

Outro tema polêmico e de bastante relevância jurídica se refere à

possibilidade de realização ou não de acordos envolvendo lides unitárias em ações

de classe, isto é, aquelas que não podem ser resolvidas de formas diversas para

cada interessado (devem ser decididas de forma idêntica para todos os membros da

classe). Considerando-se a indivisibilidade do objeto da ação coletiva, sabe-se que

em eventual acordo torna-se temerário pensar na proteção jurídica individualizada

dos interesses de cada membro da classe.

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O modelo de processo coletivo norte-americano foi construído basicamente a

partir do sistema das class actions166, regida essencialmente pelo sistema

representativo. Trata-se de um modelo de processo coletivo semelhante ao que

existe no Brasil: no Brasil terá legitimidade para a propositura de uma ação coletiva

todas aquelas pessoas e instituições previamente autorizadas pelo legislador a

atuarem na condição de legitimados extraordinários; nos Estados Unidos da América

uma pessoa ou um grupo de pessoas terá legitimidade para propor uma ação de

classe a fim de defender e vindicar em nome próprio direito próprio e direitos alheios

(número determinado, determinável ou indeterminado de pessoas titulares de

direitos comuns = direitos coletivos e direitos difusos).

Certamente trata-se de um modelo de processo coletivo incompatível com a

Constituição brasileira de 1988 que adotou o Estado Democrático de Direito,167

regido essencialmente pelos princípios da soberania popular e pela cidadania,

fundamentos jus-filosóficos hábeis a legitimar discursivamente a participação de

todos os interessados difusos e coletivos na construção participada do mérito

processual das ações coletivas.

3.3 O Sistema Representativo (a problemática jurídi ca da legitimidade processual nas ações coletivas) como fundamento reg ente da concepção de Processo Coletivo preconizada pela Esc ola Instrumentalista

As proposições teóricas que fundamentam o processo coletivo vigente no

Brasil são de natureza dogmática e construídas a partir da herança individualista e

autoritária do processo civil, cujo entendimento e compreensão advêm do exercício

da autoridade e do poder jurisdicional pelo julgador. Essa acepção autocrática,

166 Sintetizando o regramento da class action, podemos anotar que: a) quanto ao objeto da demanda, há necessidade de pluralidade de interessados determinados ou determináveis, cuja atuação conjunta se torna impraticável, sendo o objeto litigioso comum a todos; b) quanto à legitimação, há possibilidade de atuação de qualquer componente da classe, sem necessidade de autorização, desde que titular de uma posição jurídica similar à dos demais; c) quanto aos poderes do juiz, são amplos, tanto na condução do processo como na delimitação do seu objeto; d) resta assegurado o due processo of law através da adequacy of representation; e) quanto à extensão ultra partes dos limites subjetivos do julgado, ocorre indiscriminadamente, na medida em que tenha ocorrido regularmente a far notice a respeito da demanda, assegurando-se o direito de exclusão (right to opt out) (LEONEL, 2001, p. 73). 167 Pela ótica de que a cidadania, além de ser o fundamento da Democracia, é o comprometimento com os fundamentos da auto-existência e esta inclusão deve ser solicitada pelo processo (direito garantia de reivindicar e fiscalizar os direitos assegurados na Constituição (DEL NEGRI, 2008, p. 78).

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utilizada como ideologia regente no estudo do processo coletivo lhe retira qualquer

possibilidade de discussão e análise no plano da constitucionalidade democrática.

Ao contrário do sistema da Class Action168 adotado nos Estados Unidos da

América, em que o cidadão diretamente pode ser autor das ações coletivas, no

Brasil adotamos o sistema representativo, através do qual temos um rol taxativo de

legitimados para a propositura das ações coletivas. A limitação trazida por esse rol

taxativo é o fundamento da exclusão de todos os interessados difusos na construção

do provimento, pelo simples fato de não ter sido autorizado pelo legislador.

A reconstrução dos fundamentos teóricos do processo coletivo se faz

necessária para viabilizar a revisitação e a superação da visão privatística do

processo coletivo vigente no Brasil. Compreender o processo coletivo pelo viés do

processo civil é reconhecer a exclusão dos interessados difusos e coletivos na

construção do provimento estatal. Estudar o processo coletivo a partir da concepção

teórica preconizada pelos estudiosos do processo civil é o mesmo que reconhecer

um modelo de processo através do qual os legitimados processuais serão apenas

aqueles sujeitos ou aquelas instituições aleatoriamente escolhidos pelo legislador

como aptos à proteção dos direitos coletivos e difusos.

O estabelecimento do rol de legitimados, ou seja, a definição, pelo legislador,

de algumas instituições legitimadas à propositura das ações coletivas (ex. Ministério

Público) é considerada uma das demonstrações mais claras de que temos uma

vertente essencialmente autoritária para o entendimento do processo coletivo. Tal

afirmação se justifica inicialmente pelo fato do atual modelo de processo coletivo

adotado no Brasil ser distinto teoricamente daquele modelo de processo

preconizado e trazido pela Constituição brasileira de 1988.

A base de todo o processo coletivo brasileiro vigente encontra-se no Sistema

Representativo. Trata-se de um modelo de processo através do qual o legislador,

168 Outro padrão adotado é o dos Estados Unidos, Canadá, Austrália e outros países que admitem a class action. Nesse sistema há um alargamento do juízo para a discussão de um problema referente a uma classe ou categoria de pessoas. Aquele que propõe a ação (chamado de class actori) não precisa de prévia autorização através de lei especifica. Normalmente é uma associação que se apresenta em juízo como representante de uma classe. O ressarcimento do dano não fica limitado ao indivíduo prejudicado, alcançando toda a extensão do ato violador. O juiz deve exercer um importante papel de controle da admissibilidade da representação (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 139-140). Segundo Vigoriti (1979, p. 261), a “class actio” é oriunda do Bill of Peace do direito inglês, no século XVII, cujo desenvolvimento e importância somente foram alcançados com a Regra 23 das Federal Rule of Civil Procedure, de 1938. Nessa norma se reafirma que somente se pode recorrer à class action quando resulte praticamente impossível unir no mesmo processo todos os interessados (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 142)

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solitária e unilateralmente, é quem define os legitimados à propositura de uma ação

coletiva. O processo de construção e de sistematização da legislação que regerá o

processo coletivo brasileiro é desenvolvido por sujeitos considerados legitimados a

definir peremptoriamente quem serão os sujeitos legitimados a figurar como autores

de uma ação coletiva. O cidadão, além de não participar das discussões legislativas

acerca da elaboração da legislação que implementará sistematicamente o processo

coletivo no Brasil, é absolutamente excluído do rol de legitimados a propositura da

ação coletiva (ação civil pública).

A previsão do Sistema Representativo no processo coletivo brasileiro vigente

denota a adoção da ideologia perpetrada por uma cognominada assembléia de

especialistas, composta por pessoas presumidamente mais preparadas para

exercer, em nome dos demais interessados, os direitos coletivos e difusos. A

escolha de instituições ou de determinadas pessoas e a sua legitimação para

atuarem em nome de todos os interessados difusos e coletivos demonstra

claramente a inadequação e a incompatibilidade com o modelo de processo coletivo

adotado no Estado Democrático de Direito. Nesse sentido ressalta-se que “[...] com

o acesso das massas à justiça, grandes parcelas da população vêm participando do

processo, conquanto por intermédio dos legitimados à ação coletiva” (GRINOVER;

MENDES; WATANABE, 2007, p. 12-13).

A adoção do Sistema Representativo exterioriza a opção do legislador

brasileiro pela legitimidade extraordinária169 como fator regente de praticamente todo

o processo coletivo no Brasil. O artigo 5º da Lei 7.347/85170 traz como legitimados à

propositura da ação civil pública o Ministério Público, a Defensoria Publica, os entes

da Administração Pública Direta (União, Distrito Federal, Estados e Municípios), os

entes da Administração Pública Indireta (Autarquias, Fundações Pública, Empresas

169 [...] Os modelos de legitimação para agir que se seguiram, como veremos adiante, na verdade procura reduzir o fenômeno coletivo, difuso, a um sistema de representação no qual se reconheceria a “um” ente ou a uma pessoa qualidade para representar a vontade de todos. Como veremos, isso nada mais é do que a reprodução do modelo da legitimação para agir do processo individual, no qual um sujeito eleito pela norma como o detentor da legitimação representa todos os possíveis interessados e em nome deles atua como um representante adequado daqueles que suportam os efeitos do provimento (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 135). 170 Os legitimados para a ação civil pública são aqueles que integram o rol do art. 5º da Lei Federal nº 7347/85, ou então, aqueles constantes do rol do art. 82 da Lei Federal nº 8078/90, sempre lembrando que as disposições desse último diploma se aplicam não apenas às ações coletivas em que se tutelem os interesses transindividuais dos consumidores, mas também a quaisquer interesses difusos, coletivos, ou individuais homogêneos, diante da reciprocidade dos diplomas, criadas através do art. 21 da Lei de Ação Civil Pública e do art. 90 do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor (VIGLIAR, 1999, p. 74).

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Públicas e Sociedades de Economia Mista) e as associações constituídas há pelo

menos um ano nos termos da legislação civil brasileira e que inclua entre suas

finalidades institucionais a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem

econômica, à livre concorrência, ao patrimônio artístico, histórico, turístico, estético e

paisagístico.

Pela análise do texto legal que institui a ação civil pública resta claro que o

cidadão não é considerado parte legítima para figurar como autor da respectiva ação

coletiva, tendo em vista que o legislador optou expressamente pelo Sistema

Representativo como fator regente do modelo de processo coletivo adotado no

Brasil.

Em contrapartida, verifica-se que a Constituição brasileira de 1988 traz no seu

artigo 1º a soberania popular e a cidadania como um dos fundamentos do Estado

Democrático de Direito, ao instituir o principio da participação popular como o

parâmetro para o entendimento discursivo-constitucional-democrático do modelo de

processo coletivo que deve ser adotado no Brasil a partir de 1988.

A institucionalização do Estado Democrático de Direito como a forma de

Estado adotada pelo Brasil representa expressamente a intenção do legislador

constituinte revisitar e superar o modelo de processo coletivo desenvolvido

essencialmente a partir do Sistema Representativo. Pretendeu o legislador

constituinte implementar o Sistema Participativo como norte ao entendimento critico

do processo coletivo constitucional democrático.

O fato de o legislador constituinte estabelecer no parágrafo único do artigo 1º

da Constituição brasileira de 1988 o exercício da soberania popular através de

representantes eleitos, não pretendeu excluir a possibilidade de exercício direto da

soberania popular pelo povo. Importante ressaltar que o conceito de povo deve ser

lido sob a perspectiva do processo constitucional, ou seja, como cidadão, tendo em

vista que a cidadania no Estado Democrático de Direito implementar-se-á mediante

a oportunização de exercício efetivo dos Direitos Fundamentais e de construção

participada de todos os provimentos estatais por todos aqueles sujeitos

juridicamente interessados na construção participada do mérito processual.

O processo coletivo não pode mais ser reduzido a um mero instrumento para

o exercício da jurisdição, cujo rol de legitimados é aquele taxativamente estabelecido

pelo legislador. Pensar e discutir o processo coletivo a partir do sujeito, ou seja, sob

o prisma do Sistema Representativo, é reconhecer a sua incompatibilidade com o

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modelo de processo trazido pelo legislador constituinte, uma vez que o respectivo

sistema jurídico é excludente ao não viabilizar a participação de todos os

interessados na pretensão na construção do provimento.

A Constituição brasileira de 1988 trouxe um novo paradigma de compreensão

do direito pátrio ao instituir um modelo de processo cuja finalidade essencial é

assegurar amplamente o acesso ao Judiciário a todos os interessados na pretensão

deduzida em juízo. É nesse contexto teórico que o processo constitucional no

Estado Democrático de Direito passou a ser visto como uma instituição que possui

as seguintes finalidades: a) viabilizar a implementação dos Direitos Fundamentais

instituídos no plano constituinte pelo Devido Processo Legislativo; b) oportunizar a

construção participada do provimento estatal mediante a institucionalização de um

espaço processual em que todos os interessados difusos e coletivos terão

legitimidade no debate da pretensão deduzida em juízo e, por conseguinte, na

construção participada do mérito no contexto do processo coletivo.

A democratização do processo coletivo pressupõe a revisitação e a

superação teórica do Sistema Representativo que dará lugar ao Sistema

Participativo, para que todos os interessados difusos e coletivos tenham legitimidade

para intervir juridicamente no debate e na construção participada do mérito

processual nas ações coletivas.

A Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, de autoria do jurista

Vicente de Paula Maciel Junior, reconstrói teoricamente todo o processo coletivo ao

propor a superação do Sistema Representativo pelo Sistema Participativo. O

processo coletivo deixa de ser visto sob o enfoque do sujeito, ou seja, o legislador

não tem legitimidade para definir imperativamente quais serão as pessoas ou as

instituições legitimadas a propositura de uma ação coletiva de forma genérica e

abstrata. O legislador não poderá definir taxativamente o rol de legitimados à

propositura das ações coletivas, tendo em vista que deverá assegurar a todos os

sujeitos interessados na pretensão deduzida em juízo o direito de figurar como parte

na relação processual ora instituída.

Dessa forma, o processo coletivo171 passa a ser estudado e compreendido

especificamente a partir do objeto, tendo em vista que será a partir da pretensão

171 Pressupondo o processo como um instrumento democrático da racionalidade, ele necessariamente deverá permitir que dele participem todos os que afirmem um interesse e invoquem o prejuízo sofrido

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inicialmente deduzida é que teremos condições de auferir casuisticamente quem

serão as pessoas a figurarem como partes legitimamente interessadas a participar

da construção discursivo-democrática do mérito da ação coletiva. A legitimidade dos

interessados difusos e coletivos no debate processual do mérito é auferida na

medida em que a análise da pretensão denota que a demanda atinge “um fato e um

bem sobre a qual a tutela judicial vai incidir e poder envolver um grande numero de

interessados” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 173). Nesse mesmo sentido, Vicente de

Paula Maciel Junior afirma que “a definição judicial sobre o fato que atinge um

numero grande de interessados revela que a demanda é coletiva” (MACIEL JUNIOR,

2006, p. 173).

A constitucionalização do processo coletivo se deu no sentido de

democratizar o seu entendimento a partir da ampliação do rol de legitimados a

propositura da ação coletiva, tal como ocorre com a ação popular. Desde 1965, com

o advento da Lei 4717, o cidadão é parte legítima a propositura da ação popular com

a finalidade de buscar a anulação ou a nulidade de ato lesivo ao patrimônio público.

Segundo estabelece o respectivo dispositivo legal, a legitimidade processual ativa do

cidadão para fins de propositura da ação popular comprovava-se mediante a

demonstração da regularidade do exercício dos direitos políticos. Importante

ressaltar que o objeto da ação popular a partir da leitura da Lei 4717/65 era um tanto

restrito, tendo em vista que se delimitava apenas a possibilidade do cidadão buscar

o controle dos atos da administração publica no sentido de proteger o patrimônio e o

interesse público.

A Constituição brasileira de 1988, no artigo 5º, inciso LXXIII manteve o

instituto da ação popular como instrumento legítimo que poderá ser utilizado

gratuitamente por qualquer cidadão, no gozo de seus direitos políticos, com a

finalidade de buscar a anulação ou a declaração de nulidade de ato lesivo ao

patrimônio público, bem como a proteção da moralidade administrativa, do meio

ambiente e do patrimônio histórico e cultural. Comparativamente com a Lei 4717/65,

o instituto da ação popular trazido pela Constituição brasileira de 1988 estabeleceu

um objeto mais amplo, que vai além da mera possibilidade de controle dos atos

lesivos ao patrimônio público.

demandando uma solução hipoteticamente prevista na norma, no sistema jurídico (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 170).

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O disposto no inciso LXXIII do artigo 5º da Constituição brasileira de 1988 é a

confirmação de que o legislador constituinte adotou expressamente no ordenamento

jurídico brasileiro o Sistema Participativo (não o Sistema Representativo) como

parâmetro de estudo do processo coletivo. Ao garantir a possibilidade de propositura

da ação popular pelo cidadão pretendeu o legislador ampliar o rol dos legitimados e

retirar a legitimidade apenas daqueles sujeitos taxativamente autorizados pelo

legislador a propor as ações coletivas, tal como preconizado pela Lei 7347/85.

Pela interpretação sistemática da Constituição brasileira de 1988 é possível

auferir que a Lei da Ação Civil Pública não foi recepcionada na parte que estabelece

um rol taxativo dos legitimados a sua propositura, excluindo-se desse rol o cidadão.

A justificativa para fundamentar a tese da não recepção da Lei 7347/85 pela

Constituição de 1988 foi a opção do legislador infraconstitucional pelo Sistema

Representativo quanto ao rol taxativo de legitimados processuais ativos a

propositura da ação civil pública, contrariando o artigo 1º, parágrafo único da

Constituição brasileira de 1988, que instituiu o principio da soberania popular como

corolário ao exercício efetivo da cidadania e de implementação de Direitos

Fundamentais.

A partir dessas colocações iniciais pode-se afirmar que o modelo de processo

coletivo trabalhado pela Escola Instrumentalista é aquele ainda centrado na

sabedoria inata do julgador, considerado o legitimado para identificar a titularidade

dos direitos difusos e coletivos, e viabilizar a sua implementação sem qualquer

possível participação de pessoas juridicamente interessadas e que não foram

autorizadas pelo legislador. A condução de todo o processo coletivo, bem como a

definição de quem poderá participar do debate da pretensão coletiva em juízo, é

uma prerrogativa exclusiva do julgador. O legislador delimita as diretrizes do

processo coletivo, implementando o sistema representativo mediante a eleição dos

sujeitos legitimados à propositura das ações coletivas, enquanto o julgador

concentra em suas mãos todo o poder de decisão da pretensão coletiva sem

qualquer ingerência dos interessados difusos e coletivos. Nesse sentido se

manifesta Ada Pelegrini Grinover

E o modo de ser do processo, que, quando individual, obedece a esquemas rígidos de legitimação, difere do modo de ser do processo coletivo, que abre os esquemas da legitimação, prevendo a titularidade da ação por parte do denominado “representante adequado” , portador em juízo de interesses e

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direitos de grupos, categorias, classes de pessoas (2007, p. 12).(grifo nosso)

A adoção do sistema representativo no estudo do processo coletivo pela

escola paulista representa uma afronta aos princípios constitucionais do processo,

especialmente ao principio do contraditório, uma vez que retira dos interessados

difusos a igualdade de argumentação jurídica da pretensão e de construção

participada do mérito processual no contexto das ações coletivas. Assim, pode-se

afirmar que os estudiosos da escola paulista de processo passam a ter uma visão

distorcida do principio do contraditório, no momento em que admitem a possibilidade

de exercício do contraditório apenas por aquelas pessoas legitimada pelo legislador

(“representantes adequados”) à propositura de ações coletivas. É nesse contexto

que ressaltamos o entendimento preconizado pela professora Ada Pelegrini Grinover

Aliás, uma consideração deve ser feita que distingue a participação no processo, pelo contraditório, entre o processo individual e o processo coletivo. Enquanto no primeiro o contraditório é exercido diretamente, pelo sujeito da relação processual, no segundo – o processo coletivo – o contraditório cumpre-se pela atuação do portador, em juízo, dos interesses ou direitos difusos ou coletivos (transindividuais) ou individuais homogêneos. Há, assim, no processo coletivo, em comparação com o individual, uma participação maior pelo processo, e uma participação menor no processo: menor, por não ser exercida individualmente, mas a única possível num processo coletivo, onde o contraditório se exerce pelo chamado “representante adequado” (2007, p. 13).

A sistematização de uma Teoria Geral do Processo Coletivo compatível com o

modelo de processo preconizado pela Constituição brasileira de 1988 se faz

necessária para garantir a superação do sistema representativo, considerado o

parâmetro para o estudo do processo coletivo arraigado ainda em pressupostos de

natureza privada. Trata-se de um modelo excludente e autoritário de processo

coletivo pensado a partir do sujeito, e não a partir do objeto, conforme propõe a

Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, considerada compatível com o

Estado Democrático de Direito pelo fato de vislumbrar o processo coletivo como um

instituto que assegura o exercício da cidadania.

Considerando-se que a cidadania é fundamento do Estado Democrático de

Direito e que a noção de cidadania na concepção democrática é construída a partir

da implementação dos Direitos Fundamentais, especificamente o direito de

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participação no processo e o acesso amplo ao Judiciário172, a simples demonstração

da condição de interessado difuso garante a qualquer sujeito o direito a possibilidade

de imiscuir-se no debate jurídico da pretensão e na construção do mérito da

demanda coletiva. A exclusão do interessado difuso na construção do provimento

materializa a inviabilidade de exercício democrático da cidadania.

3.3.1 O Mérito Processual nas ações coletivas visto sob a perspectiva dos Anteprojetos de Código de Processo Coletivo

A partir da década de 80 e 90 inicia-se no Brasil a sistematização dos estudos

do direito e do processo coletivo, momento em que os pesquisadores como José

Carlos Barbosa Moreira, Vicente de Paula Maciel Junior, Ada Pelegrini Grinover,

Antonio Gidi, Nelson Nery Junior e Gregório Assagra passaram a esclarecer

cientificamente conceitos, institutos e a levantar inúmeras problemáticas de cunho

teórico-pragmático que permeia o objeto de análise do processo coletivo.

O advento da Lei 7.347/85 (Lei de Ação Civil Pública), da Constituição

brasileira de 1988 e do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) contribuiu,

sobremaneira, para a sedimentação do movimento de criação de um Código de

Processo Civil Coletivo. Por volta do ano de 2002 o jurista brasileiro Antônio Gidi

finalizou o que hoje se denomina de primeiro Anteprojeto de um Código de Processo

Civil Coletivo, ora denominado de Anteprojeto Original (iniciado em 1993 e finalizado

em 2002).

O segundo anteprojeto que temos é do Código Modelo de Processos

Coletivos do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual. Sabe-se que o

respectivo projeto começou a ser elaborado a partir de maio de 2002, quando no

encerramento de um seminário na cidade de Roma ficou estabelecido que o Centro

de Estudos Jurídicos Latino-americano e o Instituto Ibero-Americano de Direito

Processual elaborariam conjuntamente um projeto de um Código de Processo Civil

172 Conforme anteriormente mencionado, a Escola Instrumentalista de Processo compreende o acesso à justiça como o acesso a uma ordem jurídica justa. Nesse sentido: “[...] Na feliz expressão de Kazuo Watanabe, o acesso à justiça resulta no acesso a uma ordem jurídica justa. Um dos mais sensíveis estudiosos do acesso à justiça – Mauro Cappelletti – identificou três pontos sensíveis nesse tema, que denominou “ondas renovatórias do direito processual”: a) a assistência judiciária, que facilita o acesso à justiça do hipossuficiente; b) a tutela dos interesses difusos, permitindo que os grandes conflitos de massa sejam levados aos tribunais; c) o modo de ser do processo, cuja técnica processual deve utilizar mecanismos que levem à pacificação do conflito, com justiça (GRINOVER, 2007, p. 12).

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Coletivo Modelo. Finalizado e aprovado na cidade de Caracas em 28 de outubro de

2004 no ano de 2005, esse projeto teve como relatores Ada Pelegrini Grinover,

Kazuo Watanabe e Antonio Gidi do Brasil, assim como Roberto Berizonce da

Argentina e Angel Landoni Sosa do Uruguai.

O terceiro Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, elaborado

no ano de 2005, foi liderado pelo jurista Aluísio Gonçalves de Castro Mendes e

desenvolvido no programa de pós-graduação stricto sensu em Direito da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Estácio de Sá.

O quarto Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos teve sua

elaboração iniciada em 2003 e finalizada no ano de 2007, foi desenvolvido na

Universidade de São Paulo, sob a coordenação da professora e jurista Ada Pelegrini

Grinover.

Os quatro primeiros Anteprojetos foram elaborados com o a finalidade de

codificar o processo coletivo dentro de uma mesma linha teórica, qual seja, a

construção do processo coletivo a partir de concepções conceituais desenvolvidas

no âmbito do processo civil173, ou seja, trata-se de um modelo de processo coletivo

incompatível com aquele preconizado pela Constituição brasileira de 1988 por não

viabilizar a ampla participação de todos os interessados difusos e coletivos na

construção participada do provimento jurisdicional. Conforme preceitua o jurista

Gregório Assagra de Almeida “[...] não se observam nas exposições de motivos das

propostas de codificação estudadas o apontamento das diretrizes metodológicas e

principiológicas para a codificação pretendida” (2007, p. 4).

É necessário o amadurecimento das propostas legislativas de codificação do

direito processual coletivo mediante a realização de amplo debate nacional do tema,

o estabelecimento de uma metodologia e a sistematização teórica de princípios, de

conceitos e de institutos próprios a atender as tutelas coletivas e difusas. Nesse

mesmo sentido pontua Gregório Assagra de Almeida

A simples junção, em um mesmo diploma, do que já foi consagrado no sistema jurídico brasileiro, com pequenos avanços técnicos e pontuais, talvez não seja suficiente para justificar o projeto o projeto da nova codificação; até porque o microssistema formado pela Lei da Ação Civil Pública (art. 21) e pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 90) não foi

173 Além de não existir, nas propostas apresentadas a público, a disciplina de todos os institutos estruturais do direito processual coletivo, nota-se que essas propostas não rompem com as amarrar liberais individualistas do Código de Processo Civil (ALMEIDA, 2007, p. 4).

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devidamente assimilado por parte da doutrina e, especialmente, pela jurisprudência *2007, p. 4).

Pode-se afirmar que os autores dos Anteprojetos acima mencionados são

integrantes e representantes da Escola Paulista de Processo (também denominada

de Escola Instrumentalista de Processo174), para quem o processo é visto como um

instrumento para o exercício da jurisdição, enquanto a jurisdição é tida como um

poder assegurado ao juiz a fim de garantir a decisão mais justa para o caso

concreto, podendo se utilizar tanto de argumentos jurídicos, quanto de argumentos

de cunho metajurídicos (axiológicos; juízos de equidade) para fundamentar suas

decisões.

O que se verifica hoje é a teorização do processo coletivo a partir de ideais de

natureza individualistas e privados trabalhados no contexto do processo civil. Pensar

o processo coletivo a partir do processo civil é reproduzir equivocadamente a

ideologia do modelo de processo em que os sujeitos diretamente interessados na

pretensão estão excluídos de participar do debate jurídico que levará à construção

participada do mérito processual. Novamente o professor e jurista Gregório Assagra

de Almeida é pontual em suas críticas aos anteprojetos acima mencionados,

justificando coerentemente suas reflexões na necessidade de utilização da

hermenêutica constitucional democrática como critério de sedimentação teórica das

diretrizes metodológicas de entendimento do direito processual coletivo a partir dos

princípios e das regras interpretativas do direito constitucional, especialmente os

direitos e as garantias constitucionais fundamentais expressamente previstas no

texto da Constituição brasileira de 1988. “Um código sem as diretrizes metodológicas

e principiológicas necessárias poderá simbolizar, com pequenos avanços, uma mera

consolidação ou compilação de leis, apequenando a própria dimensão social e

constitucional do direito processual coletivo, que ainda deve ser desenvolvido e

compreendido” (ALMEIDA, 2007, p. 5).

A elaboração de um Anteprojeto de Código de Processo Coletivo pressupõe

inicialmente a construção de uma nova Teoria Geral do Processo Coletivo

compatível com o Estado Democrático de Direito. É exatamente isso que pretende a

174 Na fase instrumentalista, o direito processual passa a ser concebido como meio, como instrumento de realização da justiça por intermédio dos denominados escopos da jurisdição. A postura metódica, nesta fase instrumentalista do direito processual, que é a visão que hoje prevalece, é pluralista e se compõe de vários elementos (político, técnico-jurídico, social, sistemático, ético, econômico, histórico etc.) (ALMEIDA, 2007, p. 22-23).

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202

Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, de autoria do jurista mineiro

Vicente de Paula Maciel Junior, que busca reconstruir teoricamente todo o processo

coletivo para que o foco de análise científica deixe de estar centrado no sujeito e

passa a se focar no objeto. O processo coletivo deve ser visto como uma instituição

que oportunize efetivamente a participação direta do interessado difuso ou coletivo

na construção do provimento. “Quanto maior a participação dos interessados na

formação do mérito do processo maior será a possibilidade de que esse processo

represente o conflito coletivo de forma ampla” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 179).

Para o autor da Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas o

legislador não detém a legitimidade para estabelecer categoricamente, de forma

abstrata, quem serão os legitimados à propositura de uma ação coletiva. Qualquer

pessoa que demonstre interesse jurídico na pretensão tem legitimidade na

propositura de uma ação coletiva

Isso significa que as ações coletivas que tratem de interesses difusos devem ser “ações temáticas”, no sentido de que elas devem propor questões para discussão em um processo judicial onde os diversos interessados tenham seus interesses representados através de temas objeto da discussão como mérito da ação proposta (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 180).

A propositura de uma ação coletiva por um dos sujeitos juridicamente

interessados não exclui a possibilidade dos demais interessados difusos e coletivos

passarem a integrar a relação processual como legitimados ao debate fático-jurídico

da pretensão deduzida, desde que apresentem alegações coerentes e conexas ao

tema inicialmente posto e apresentado pelo autor da ação (qualquer sujeito

interessado tem legitimidade de levantar todas as questões ou temas que tenham

relação fática e/ou jurídica, direta ou indireta com a pretensão inicialmente

deduzida).

Isso significa dizer que, para a respectiva teoria, o objeto de uma ação

coletiva não se define com a simples propositura da ação e a apresentação da

defesa pelo demandado, tal como ocorre no processo civil vigente. A propositura da

ação coletiva é o momento em que o demandante delimita inicialmente o tema a ser

debatido, facultando-se a todos os interessados difusos apresentarem temas

correlatos, coerentes e conexos à pretensão deduzida. Isso evidencia que não será

o juiz nem apenas o demandante ou demandado os únicos legitimados a

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determinarem o objeto de uma ação coletiva, até porque, todo interessado difuso

terá a oportunidade de apresentar temas correlatos à pretensão deduzida até o

momento processual que antecede o despacho saneador. Não se pretende aqui

abandonar a sistemática das preclusões como norte para a construção de um

procedimento ou rito adotado nas ações coletivas como ações temáticas. O

estabelecimento de um momento temporal no processo para encerrar as

possibilidades dos interessados difusos apresentarem os temas correlatos à

pretensão deduzida é algo necessário para evitar que a demanda se torne infinita e,

assim, sejam estabelecidos os contornos dos efeitos jurídicos da coisa julgada.

Deslocar o foco de análise teórica do processo coletivo do sujeito para o

objeto é a maneira mais coerente de avançarmos o debate do tema rumo a

efetivamente uma autonomia cientifica do Processo Coletivo como ramo autônomo

da ciência do Direito. Retirar das mãos do julgador, do autor da ação e do

demandado a autonomia exclusiva de participação na construção do mérito da

pretensão é a metodologia mais adequada para democratizarmos

constitucionalmente a compreensão critica do processo coletivo e superarmos as

proposições teóricas herméticas até então preconizadas pelos estudiosos do

processo civil.

Faz-se necessário, nesse contexto, repensar teoricamente todo o direito

processual sob a égide dos direitos coletivos e difusos. O processo coletivo que se

pretende democrático não pode conviver harmonicamente com um rol taxativo de

legitimados a propositura das ações coletivas mediante a exclusão absoluta de

todos os demais interessados difusos e coletivos na pretensão deduzida.

Um interessado difuso ou coletivo não poderá sofrer os efeitos jurídicos da

coisa julgada em uma ação coletiva a qual não teve qualquer oportunidade

assegurada de exercício efetivo do contraditório, da ampla defesa e do devido

processo legal no que atine ao debate da pretensão.

O mérito processual não pode se limitar às questões de fato e de direito

trazidas pela parte autora e pela parte demandada e, por conseguinte, submetidas

ao crivo do julgador. O mérito processual nas ações coletivas como ações temáticas

deve produto da construção participada de todos os interessados difusos e coletivos

na pretensão, desde que lhes tenham sido asseguradas a oportunidade efetiva de

amplo debate no espaço processual a fim de que todos os argumentos de natureza

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fática e jurídica apresentados pelas partes sejam levados em consideração quando

da construção do provimento jurisdicional.

No ano de 2008 foi finalizado o Anteprojeto de Código de Processo Coletivo

Brasileiro, elaborado pelos alunos do curso de pós-graduação stricto sensu em

Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, sob a orientação e a

supervisão do jurista e professor Vicente de Paula Maciel Junior. Trata-se de uma

proposta de codificação do processo coletivo no Brasil desenvolvida essencialmente

a partir da Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, cujo fundamento

central para o seu entendimento encontra-se no princípio constitucional da soberania

popular, corolário do exercício efetivo da cidadania.

Antes de passarmos a análise detalhada dos cinco Anteprojetos de Lei

elaborados com o propósito de sistematizar a legislação atinente ao processo

coletivo, faz-se necessária uma breve reflexão acerca da codificação da legislação

em questão. O século XIX175 é considerado o grande momento histórico da

humanidade caracterizado pelas grandes codificações, especialmente da legislação

civil. Trata-se de legislações de cunho eminentemente positivista que constituíam

sistemas jurídicos impermeáveis às modificações econômicas e sociais, tendo em

vista que os textos legislativos eram rígidos, fechados, estáticos e totalizantes

(ALMEIDA, 2007, p. 2). “[...] o positivismo jurídico do século XIX tinha o sistema

jurídico como manifestação de uma unidade imanente, perfeita e acabada”

(ALMEIDA, 2007, p. 16).

Dessa forma, sabe-se que o sistema jurídico foi inicialmente concebido como

uma ordem jurídica fechada que se pautava ideologicamente na ausência de

lacunas. O silogismo foi o parâmetro para a construção do raciocínio jurídico ao

longo do século XIX, em que a premissa maior era a norma legal em abstrato

(genérica), a premissa menor era o caso concreto e a conclusão consistia na

175 Dentro de uma visão mais flexível, há quem identifique a origem remota do código na Antiguidade. Essa concepção considera como códigos obras como o Código Theodosiano (Codex Theodosianus) e o Corpus Iuris do Direito Romano. Dentro desse contexto, há quem faça a distinção entre codificações antigas e codificações modernas. Para tal doutrina, as codificações antigas possuíam um caráter geral e visavam ao direito em sua totalidade. As codificações modernas seriam especiais e disciplinavam um só ramo do direito. As antigas decorriam de simples compilações, já as modernas eram sistematizadas em sua forma. Os códigos antigos eram compostos pela reunião de leis, princípios jurídicos, doutrinas e os códigos modernos, compostos somente de preceitos legais enunciadores de regras ou de princípios. Os códigos antigos eram redigidos de forma difusa, diferentemente dos códigos modernos, que utilizavam forma breve e concisa. Entretanto, existem aqueles que, partindo de uma concepção mais restritiva, diretamente ligada à noção de sistema no campo do Direito, somente admitem a idéia de código, como sistemas de direito, a partir dos séculos XVIII e XIX, por força do iluminismo e do jusracionalismo (ALMEIDA, 2007, p. 7-8).

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adequação dos fatos mediante a aplicação da norma ao caso concreto. Nesse

período o direito vigente se pautou essencialmente na filosofia liberal-individualista e

foi constituído por meio de sistemas jurídicos codificados, rígidos, hermeticamente

fechados, auto-suficientes e em cima da idéia de completude do próprio sistema

jurídico. “Com a impermeabilidade e inflexibilidade dos grandes diplomas normativos

oitocentistas às mudanças e às transformações sociais, esses sistemas de

codificação fechada vieram a perder a legitimidade social [...]” (ALMEIDA, 2007, p.

19).

Em virtude do dinamismo e da complexidade das relações sociais ao longo da

história176 da humanidade os códigos oitocentistas177 deram lugar, a partir do século

XX, às codificações mais flexíveis e, em especialmente, àquelas desenhadas em

cima de conceitos indeterminados e cláusulas abertas. Rompe-se com o positivismo

centrado em interpretações essencialmente literais para iniciar um novo período em

que o direito passa a ser interpretado conforme o contexto histórico e social em que

o mesmo será aplicado. “É necessário que os códigos atuais sejam dotados de

mobilidade necessária que possam ser atualizados por intermédio de interpretação e

aplicação concreta. Para tanto, é fundamental que sejam dotados de cláusulas

gerais que lhes confiram a mobilidade necessária” (ALMEIDA, 2007, p. 19).

Não se pode confundir conceitualmente os conceitos de codificação e de

consolidação: “a consolidação é o mero recolhimento de normas já existentes, com

incidência especialmente nos momentos de exaustão legislativa, ao passo que o

código, formado por um corpo legislativo novo, é animado por um espírito inovador”

(ALMEIDA, 2007, p. 8). A primeira grande codificação ocorreu no ano de 1804 com o

176 Com o fenômeno denominado sociedade de massa e, especialmente, com sua manifestação social, a emergência cada vez mais intensa da sociedade de consumo, com o surgimento de novas relações jurídicas não regulamentadas por esses sistemas fechados, em que o consumidor passava a figurar cada dia mais intensamente como a parte mais fraca, esse sistema do direito civil, implantado por força do liberalismo, tornou-se obsoleto, totalmente inadequado para a regulamentação de situações jurídicas novas e especiais, o que passou a ser vivenciado já no final do século XIX e se intensificou radicalmente após a Segunda Guerra Mundial, com a eclosão da massificação social, geradora de intensa conflituosidade social (ALMEIDA, 2007, p. 27). 177 As codificações francesas, ao lado das codificações belga, prussiana, austríaca e ainda algumas codificações esparsas italianas no inicio do século XIX, representaram um fenômeno totalmente novo na conjuntura moderna. Diferentemente das codificações de outras eras, como a justiniana, a veda ou a mosaica, o que ocorreu no século XIX foi a efetivação de um novo método de aplicabilidade jurisdicional, caracterizado pela subsunção de casos concretos a dispositivos escritos e abstratos. Esse fenômeno tem características próprias – de certa forma, inéditas na história conhecida -, porque as demais codificações primaram-se pela sua natureza enciclopédica ou antológica, constituindo, de fato, compêndios e registros de um tempo ou de uma civilização (GONTIJO, 2011, p. 10).

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advento do Código Civil de Napoleão178, que em termos jurídicos e históricos

representa um marco no estudo e na compreensão do direito civil, sendo utilizado

como norte para o inicio de um movimento de codificação que se estendeu ao longo

de todo o século XIX e especialmente durante a primeira metade do século XX, com

reflexos diretos no direito brasileiro. Em 1812 temos o Código Civil austríaco,

embora o Código Civil alemão (BGB), do ano de 1896, é apontado como a segunda

grande codificação e reflexo do amadurecimento das proposições teórico-jurídicas

trazidas pelo Código Civil de Napoleão179. “Depois vieram as codificações

denominadas tardias, tais como o Código Civil Suíço de 1907, o grego de 1940, o

italiano de 1942 e o português de 1966, que mantiveram, em síntese, as principais

diretrizes das duas grandes codificações anteriores [...]” (ALMEIDA, 2007, p. 11).

Ao longo de todo o século XIX os estudiosos se debruçaram sobre o debate

acerca da autonomia cientifica do direito processual em face do direito material; ou

seja, buscava-se a superação do modelo imanentista, em que o direito material era

considerado o patamar e o fundamento para o entendimento do direito processual.

Historicamente o Código de Processo Civil francês no ano de 1806 representa o

marco legislativo da autonomia cientifica do direito processual frente ao direito

material, algo que veio se sedimentar mais tardiamente com a obra do alemão Oskar

vön Bulow no ano de 1868 (Teoria das Exceções e dos Pressupostos Processuais),

para quem o processo é visto como uma relação jurídica entre juiz, autor e réu e

também com a Ordenança Processual Civil alemã (ZPO) datada de 30 de janeiro de

178 Eis uma história do Code Napoleón (Código de Napoleão): o discurso político subversivo iluminista pregava a necessidade de criação de um corpo legal escrito, sob a justificativa de buscar clareza, simplicidade, objetividade e unidade. De todas essas pretensões, à idéia de unidade, em particular, dá-se maior importância, pois ela coaduna com as aspirações sistematizadoras, por influência das ciências naturais. A idéia de um ordenamento jurídico sistematizado e, portanto, unificado, tornou-se uma das estruturas metodológicas mais aceitas pelas escolas de direito nos tempos subseqüentes (GONTIJO, 2011, p. 11-12) 179 A aprovação final do Código Civil francês se deu por iniciativa do próprio Napoleão Bonaparte, que a partir de 1800 nomeou uma comissão de juristas coordenados pelo político liberal Jean Etienne Marie Portalis. Aqui se apresenta um segundo aspecto percebido na decorrência da construção do Código. Além do abandono definitivo da concepção humanista, de cunho iluminista. Napoleão, como Primeiro-Cônsul, portanto representante do Poder Executivo, invadiu o espaço do Poder Legislativo, no momento sob a nomenclatura de Conselho do Estado. Na verdade, o principio da tripartição do poder defendido por Montesquieu, por efeito francamente iluminista, estava sendo pisado. Bonaparte participou de 57 das 102 sessões para a discussão e votação do projeto. Ora, como o Código Civil regularia, segundo o convencimento da época, todas as dimensões sociais francesas? Napoleão, estando à frente desse empreendimento, se considerava estrategicamente responsável por este fulminante passo histórico. De sorte que atraia muita atenção política, sobretudo de grupos econômicos que lhe atribuíam mais poder. Dessa forma, Bonaparte colocava-se estrategicamente à frente da barganha política angariando-lhe maior gama de jogos de interesses, pois se entendia o direito civil como coluna dorsal de todo corpo jurídico (GONTIJO, 2011, p. 14).

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1977 (a ZPO, mesmo diante das diversas alterações sofridas ao longo da historia,

algumas até recentes, continua em vigor).

Em razão do seu rigor técnico e cientifico, a Ordenança Processual Civil alemã acabou por embasar a criação da Ordenança Processual Civil austríaca de 1895, além de influencia modernos códigos de processo civil da Hungria (1911), Bulgária (1922), Noruega (1912). Polônia (1933), Portugal (1939 e 1961), Brasil (1939 e 1973) e Itália (1940) (ALMEIDA, 2007, p. 26).

Os reflexos no Brasil desse movimento de codificação podem ser notados no

Código Civil de 1916, no Código de Processo Civil de 1939, no Código Penal de

1940, no Código de Processo Penal de 1941, no Código de Processo Civil de 1973 e

no recente Código Civil de 2002.

Além do movimento da codificação da nossa legislação, vivenciamos também

o advento de inúmeros microssistemas jurídicos, também denominados de códigos

setorizados, tais como o microssistema de tutela jurisdicional coletiva comum,

caracterizado essencialmente pela Lei 7.347/85 (lei da ação civil pública) e pela Lei

8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). Trata-se de legislações criadas

especialmente na tentativa de sistematizar um conjunto de normas de superdireito

processual coletivo comum que possuem ultra-eficácia imediata. Outro

microssistema jurídico é o da tutela jurisdicional coletiva especial, constituído pela

Lei 9.868/99 (que dispõe sobre o controle abstrato e concentrado de

constitucionalidade por meio do processamento e do julgamento da ação direta de

inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade) e também pela

Lei 9.882/99 (que disciplina o processamento e o julgamento da argüição de

descumprimento de preceito fundamental) (ALMEIDA, 2007, p. 3).

Os microssistemas jurídicos vêm responder aos anseios da sociedade de

massa a fim de regular as questões relacionadas com os direitos difusos e coletivos.

A preocupação com tais direitos ao longo do século XX é produto da superação do

liberalismo clássico, tipicamente do século XIX, centrado na ideologia da intervenção

estatal mínima que deu lugar à socialização dos direitos, produto de uma postura em

que o próprio Estado é convocado a fim de assumir um papel mais ativo em prol da

proteção dos direitos coletivos e difusos e da transformação social (advento do

Estado Social na primeira metade do século XX e também no inicio da segunda

metade do mesmo século). “Assume ele a função de coordenador das reformas

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socialmente exigidas, sendo como conseqüência ampliadas as suas tarefas”

(ALMEIDA, 2007, p. 30).

O advento dos microssistemas jurídicos veio a atender as necessidades de

uma sociedade dinâmica, pluralista e democrática, cujo foco de preocupação não

mais se concentra exclusivamente na regulação das relações jurídicas de natureza

essencialmente privada. O direito deixa de ser visto sob o prisma legal e passa a ser

estudado sob a égide da hermenêutica. A interpretação dos conceitos abertos a

partir das peculiaridades de cada caso concreto veio trazer maior dinamismo à letra

fria e abstrata da lei180.

Todo o debate da codificação e da sistematização legislativa das normas

atinentes ao direito processual coletivo deverá ser construído a partir teoria dos

Direitos Fundamentais, cuja interpretação tem como referencial o Estado

Democrático de Direito. O positivismo legalista arraigado à compreensão literal do

texto legal como critério de entendimento sobre o que é o Direito é superado pela

nova visão de que a ciência do Direito desenvolve-se por meio de métodos de

interpretação sistemática da legislação vigente a partir dos princípios e das diretrizes

fundamentais da ordem jurídico-constitucional democrática.

Não podemos deixar de ressaltar a complexidade da discussão acadêmico-

doutrinária que envolve a relação existente entre sistema jurídico e codificação,

ressaltando-se que “a idéia de sistema liga-se diretamente à de codificação,

agrupamento de normas jurídicas da mesma natureza em um corpo unitário e

homogêneo” (AMARAL, 2006, p. 122).

A problemática envolvendo a discussão acerca da Codificação do Direito

Processual Coletivo brasileiro perpassa pela definição inicial das diretrizes

metodológicas que nortearão a delimitação do objeto a ser regulamentado

legalmente. Para isso, torna-se necessário reconstruir teoricamente o direito

processual coletivo antes mesmo de regulamentá-lo no plano legislativo.

Isso denota a necessidade de esclarecimento conceitual e teórico dos

institutos fundamentais; a estruturação da principiologia regente; a definição de um

procedimento que regerá as ações e o processo coletivo nos ditames trazidos pela

180 [...] o modelo das codificações atuais são móveis, dinâmicos e até abertos, os quais devem permitir a mais adequada permeabilidade com o meio social. São modelos pautados por princípios e cláusulas gerais que permitem maior dinamismo e destacada mobilidade do sistema implantado. São modelos mais harmônicos e que se fundam no diálogo entre outras fontes legislativas, evitando-se conflitos de normas muitas vezes insolúveis e prejudiciais à sociedade (ALMEIDA, 2007, p. 35).

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constitucionalidade democrática; a ressemantização do dogma da coisa julgada e de

seus efeitos jurídico-legais com relação a todos os interessados difusos e coletivos

que integraram ou não a relação processual ora instituída; a revisitação do sistema

representativo de institucionalização prévia dos legitimados à propositura das ações

coletivas a partir do entendimento do principio da participação popular e do exercício

da cidadania como um dos pilares do Estado Democrático de Direito e, acima de

tudo, a reconstrução crítica de toda a estrutura proposta de um modelo de processo

coletivo que se estruturou e se desenvolve hoje no Brasil ainda preso aos

paradigmas liberais que orientaram a confecção da legislação processual civil

vigente.

“O objeto formal do direito processual coletivo é composto pelo conjunto de

princípios, garantias e regras processuais que disciplinam o exercício da ação

coletiva, jurisdição coletiva, do processo coletivo, da defesa do processo coletivo e

da coisa julgada coletiva” (ALMEIDA, 2007, p. 58). A autonomia cientifica do direito

coletivo e do direito processual coletivo, assim como a superação do liberalismo

individualista clássico181, considerado a base de todo o processo civil, representam

os primeiros passos para justificar fundamentadamente a possibilidade de

codificação do direito processual civil coletivo.

A codificação do direito processual coletivo tornará mais uniforme e claro o

objeto formal dessa área do Direito, que consiste, simultaneamente, na

regulamentação tanto do direito processual coletivo comum (visa a resolução de

conflitos coletivos no plano da concretude) como do direito processual coletivo

especial (voltado para o controle concentrado e abstrato de constitucionalidade)182.

Classicamente o processo coletivo é visualizado quando do estudo da ação popular,

da ação civil pública e do mandado de segurança coletivo, voltados para a

apreciação e a resolução de conflitos envolvendo direitos coletivos ou difusos no

plano concreto. Porém, não se pode deixar de ressaltar que nos processos em que

se discute abstratamente a constitucionalidade de leis, como é o caso da ação direta

181 [...] Os institutos clássicos do direito processual civil (legitimidade, estabilização da demanda, pedido e sua interpretação, coisa julgada etc.), conceituados e concebidos com base em uma técnica fundada no liberalismo individualista dos séculos XVIII e XIX, não se amoldam às diretrizes do direito processual massificado, de natureza coletiva constitucional (ALMEIDA, 2007, p. 58). 182 o jurista Gregório Assagra de Almeida subdivide o direito processual coletivo brasileiro em especial e comum. O direito processual coletivo especial destina-se ao controle concentrado e abstrato de constitucionalidade por meio da ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade e a argüição de descumprimento de preceito fundamental, ressaltando-se que o seu objeto material consiste na tutela de interesse coletivo objetivo legitimo.

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de inconstitucionalidade, da ação declaratória de constitucionalidade e da argüição

de descumprimento de preceito fundamental, é evidente a existência de pretensão

de natureza difusa ou coletiva (a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510 é um

exemplo recente de pretensão coletiva, quando se debateu no Supremo Tribunal

Federal abstratamente a constitucionalidade da lei de biossegurança no que tange a

utilização ou não de células tronco embrionárias em pesquisas cientificas em face do

Direito Fundamental à Vida).

Não pode esquecer-se de inserir nas propostas de codificação do direito

processual coletivo brasileiro as questões envolvendo o recurso extraordinário,

especificamente referente à repercussão geral de questão constitucional. A nova

sistemática trazida pela Emenda Constitucional 45, ao inserir o parágrafo terceiro no

artigo 102 da Constituição brasileira de 1988 instituiu a repercussão geral de

questão constitucional como requisito especifico de admissibilidade dos recursos

extraordinários. Dessa forma, pode-se afirmar que houve a coletivização da análise

do mérito da pretensão recursal no momento em que se estabeleceu que a

admissibilidade do recurso extraordinário fica condicionada à demonstração prévia

da relevância jurídica, social, econômica ou política da pretensão recursal, tal como

estabelece o disposto nos artigos 543-A e seguintes do Código de Processo Civil

vigente, alterados pela Lei 11.418 de 19 de dezembro de 2006.

Construir um projeto de codificação do direito processual coletivo brasileiro

significa considerar todos esses meandros das questões ora levantadas, ou seja,

não podemos pensar na sistematização legislativa focados apenas na ação popular,

na ação civil pública e no mandado de segurança coletivo. É preciso considerar as

questões atinentes ao recurso extraordinário (repercussão geral de questão

constitucional), a ação direta de inconstitucionalidade, a ação declaratória de

constitucionalidade, a argüição de descumprimento de preceito fundamental, ao

mandado de injunção e a todos os demais institutos disponíveis no ordenamento

jurídico brasileiro que viabilizem o debate processual de pretensões envolvendo os

direitos difusos e coletivos, tanto no âmbito judicial quanto no extrajudicial.

É necessário pensar uma proposta legislativa que conclame a possibilidade

de todos os interessados difusos e coletivos participarem ativa e diretamente de todo

o debate das pretensões voltadas à construção participada dos provimentos. Isso

implica em abandonar o sistema representativo como critério lógico de compreensão

jurídica do direito processual coletivo brasileiro para legitimar o sistema participativo

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como o parâmetro legitimamente democrático183 à reflexão, à discussão, à

proposição teórica e à aplicação do direito e do processo coletivo tanto no plano

concreto quanto no plano abstrato. Vincenzo Vigoriti, citado por Vicente da Paula

Maciel Junior, afirma que “a importância da participação consiste em que o individuo

supera a idéia meramente privatista e passa a agir uti cives e não uti singuli”

(MACIEL JUNIOR, 2006, p. 120).

Ao discorrer sobre o principio participativo Vigoriti preconiza a participação no

sentido mais amplo do significado, a fim de legitimar todos os interessados difusos e

coletivos na utilização das ações coletivas como instrumentos de controle

participativo de todas as questões e direitos atinentes à coletividade. A

implementação do principio participativo implicará na reestruturação de todo o

processo coletivo, especificamente no que tange ao tema da legitimação para agir.

Certamente “o maior receio dos agentes políticos é que a ação coletiva adotada em

um modelo participativo amplo pudesse no fundo se transformar em um veiculo de

controle difuso do ato administrativo e da lei em tese, a ser exercido por qualquer

interessado” (MACIEL JUNIOR, 2006. p. 121).

A enunciação de todo o processo coletivo sob o viés da constitucionalidade

democrática184 deve decorrer do principio da soberania popular, até porque “[...] o

Estado Democrático tem sua dimensão e se estrutura constitucionalmente na

legitimidade do domínio político e na legitimação do poder pelo Estado assentadas

unicamente na soberania e na vontade do povo (artigo 1º, incisos I, II, parágrafo

único; artigo 14 e artigo 60n §4º, inciso II)” (DIAS, 2010, p. 63-64).

O redimensionamento de todas as proposições teóricas até então vigentes

perpassa pela leitura do processo coletivo pelo crivo do modelo constitucional de

processo desenvolvido na seara de uma sociedade democraticamente plural que

anseia pela legitimidade de participação ampla e livre no debate isonômico e jurídico

183 Em que pesem pequenas variações semânticas em torno desse núcleo essencial, entende-se como Estado Democrático de Direito a organização política em que o poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes, escolhidos em eleições livres e periódicas, mediante sufrágio universal e voto direto e secreto, para o exercício de mandatos periódicos, como proclama, entre outras, a Constituição brasileira. Mais ainda, já agora no plano das relações concretas entre o Poder e o indivíduo, considera-se democrático aquele Estado de Direito que se empenha em assegurar aos cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos civis e políticos, mas também e sobretudo dos direitos econômicos, sociais e culturais, sem os quais de nada valeria a solene proclamação daqueles direitos (MENDES, COELHO; BRANCO; 2008, p. 149). 184 O principio democrático, portanto, é a diretriz primária estrutural que deve orientar a construção de um código brasileiro de direito processual coletivo que corresponda aos verdadeiros anseios sociais às garantias constitucionais fundamentais do Estado Democrático de Direito consagrado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (ALMEIDA, 2007, p. 63).

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de todas as pretensões as quais se visualiza a existência de direitos não restritos

apenas ao plano da individualidade humana.

3.3.2 O mérito processual no Código de Processo Civ il Coletivo – Antônio Gidi O anteprojeto de Código de Processo Civil Coletivo, de autoria do jurista

Antonio Gidi, é considerado o primeiro dos inúmeros anteprojetos que se seguiram

e, por isso, é denominado Anteprojeto Original. No entendimento do autor, a

codificação processual coletiva brasileira começa com a promulgação da Lei da

Ação Civil Pública no ano de 1985, perpassa pelos avanços trazidos pela

Constituição brasileira de 1988 e se aprimora substancialmente com o advento do

Código de Defesa do Consumidor no ano de 1990. A elaboração do anteprojeto

original inicia-se no ano de 1993 e se encerra no ano de 2001 quando então Antônio

Gidi resolve compartilhar todas as suas idéias sobre a codificação do processo

coletivo com a então jurista Ada Pelegrini Grinover, que num primeiro momento

mostrou-se reticente e não convencida acerca da importância de realizar um código

de processo coletivo, porém, no mês de maio de 2002, em seminário realizado na

cidade de Roma ficou definido que o Centro de Estudos Jurídicos Latino-americanos

e o Instituto Ibero- americano de Direito Processual elaborariam conjuntamente uma

proposta de Código de Processo Civil Coletivo Modelo sob a relatoria dos juristas

Kazuo Watanabe, Ada Pelegrini Grinover e Antônio Gidi. No entendimento de

Antônio Gidi, Ada Pelegrini Grinover e Kazuo Watanabe entenderam que o

anteprojeto original estava demasiadamente americanizado e incompatível com a

realidade brasileira e, por isso, preferiram se utilizar da estrutura do direito

processual civil coletivo185 vigente no Brasil tendo adotado inúmeras inovações do

anteprojeto original de forma descontextualizada e desconexa (GIDI, 2008, p. 11-

15).

No ano de 2004, na XIX Jornadas Ibero-Americanas de Direito Processual

Civil, realizada na cidade de Caracas, foi aprovado o anteprojeto do Código Modelo

de Processos Coletivos do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual. A partir

desse momento inúmeras foram as críticas surgidas, tal como aquela feita pelo

185 A utilização freqüente pelos autores da escola paulista de processo da expressão “direito processual civil coletivo” denota claramente a ausência de superação do paradigma liberal-individualista como norte ao estudo e a compreensão jurídica do direito processual coletivo como ramo autônomo da ciência jurídica.

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jurista brasileiro Gregório Assagra de Almeida, para quem o respectivo anteprojeto

de codificação do direito processual coletivo tem pouco a servir de fonte de

inspiração ao sistema jurídico brasileiro, considerado bastante avançado no que

tange ao estudo do processo coletivo. Antônio Gidi afirma que o Código Modelo

Ibero-Americano, em sua primeira versão, “foi uma mera tradução para o espanhol

das leis brasileiras (LACP e CDC), aprimoradas com algumas inovações retiradas do

Anteprojeto Original e imposta insensivelmente aos colegas ibero-americanos” (GIDI,

2008, p. 20).

Em análise preliminar do anteprojeto original verifica-se que a intenção do

autor, ao propor a codificação, é inicialmente unificar as normas processuais

coletivas esparsas em um sistema ordenado; eliminar injustificadas diferenças

procedimentais em ações coletivas; estabelecer uma linguagem uniforme dos

institutos típicos e próprios do processo coletivo; acabar com as distinções

existentes quanto ao regime da coisa julgada nas ações coletivas brasileiras

conforme o tipo de pretensão envolvida; instituir que o valor da pretensão ou o tipo

de controvérsia também podem ser um motivo legítimo para algumas diferenças

procedimentais entre as ações coletivas e, finalmente, realizar inovações pontuais

com o propósito de aprimorar algumas regras, suprir lacunas e resolver possíveis

ambigüidades existentes no sistema jurídico vigente. Na exposição de motivos do

anteprojeto original observa-se que sua elaboração pautou-se basicamente no

direito processual coletivo brasileiro, norte-americano, canadense, francês, italiano e

escandinavo.

No artigo 1º do anteprojeto original verifica-se a preocupação do autor em

garantir a tutela jurídica de pretensões transindividuais de titularidade de um grupo

de pessoas, assim como das pretensões individuais de que sejam titulares os

membros de um grupo de pessoas. Verifica-se a clara distinção dos direitos

coletivos, dos direitos difusos e dos direitos individuais homogêneos, tal como

adotado no artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor.

Quanto à legitimidade processual ativa, o anteprojeto ainda fica adstrito ao

sistema representativo, ao excluir o interessado difuso ou coletivo da condição de

legitimado e propor um rol taxativo que confere claramente a legitimidade processual

ativa ao Ministério Público, aos entes da Administração Pública Direta e Indireta e às

associações sem fins lucrativos legalmente constituídas há pelo menos dois anos.

Não houve substanciais avanços e modificações quanto à legitimidade processual

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ativa se pegarmos como referência o disposto no artigo 5º da Lei 7347/85 (Lei de

Ação Civil Pública).

No item 2.1 o anteprojeto prevê a possibilidade do grupo como um todo e

seus membros serem partes no processo coletivo representados em juízo pelo

legitimado coletivo (GIDI, 2008, p. 447). Já no item 2.2 verifica-se que sempre que

possível “o grupo será representado em juízo por mais de um legitimado coletivo, de

forma a promover uma representação adequada dos direitos do grupo e de seus

membros (GIDI, 2008, p. 447).

Nos itens 2.1 e 2.2 estaria o autor do anteprojeto adotando o principio

participativo como critério de sistematização do processo coletivo brasileiro?

Certamente tal afirmação seria precipitada no sentido em que pela análise

sistemática do conteúdo de todo o anteprojeto verifica-se que a titularidade para a

propositura das ações coletivas concentra-se basicamente nas mãos de entidades

que representam os interesses de toda uma coletividade ou um grupo de pessoas.

Além do mais, o autor do anteprojeto não deixou claro que todo e qualquer

legitimado teria interesse e legitimidade processual quanto à propositura de uma

ação coletiva. A legitimidade foi conferida expressamente ao grupo de pessoas

titular de um direito comum ou a um representante desse grupo de pessoas

habilitado a pleitear em nome dos demais um determinado direito, tal como ocorre

no sistema das class actions. No momento em que há a limitação da participação

dos interessados difusos ou coletivos na propositura de uma ação coletiva não é

possível afirmar que houve a efetiva implementação do sistema participativo, até

porque, o que o autor do anteprojeto faz é autorizar a nomeação de um

representante adequado, tal como se verifica no sistema norte-americano das class

actions. Importante esclarecer que conferir legitimidade processual para o

representante adequado propor ação coletiva para tutelar direitos em nome de um

grupo de pessoas, não oportunizando a participação direta do titular da pretensão no

debate do mérito processual da demanda, não significa a ruptura com o sistema

representativo e a adoção do sistema participativo no contexto das ações coletivas.

No item 2.5 temos ainda um modelo de processo coletivo centrado

essencialmente na pessoa do julgador: “o juiz poderá dispensar o requisito da pré-

constituição e da pertinência temática ou atribuir legitimidade coletiva a membros do

grupo, quando não houver legitimado coletivo adequado interessado em representar

os interesses do grupo em juízo” (GIDI, 2008, p. 448).

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215

Na primeira parte do dispositivo 2.5 está expresso que é o julgador quem

detém a legitimidade de análise prévia a fim de averiguar se a pretensão deduzida

em juízo tem ou não natureza coletiva, tal como ocorre no sistema americano das

class actions, em que antes da análise do mérito da pretensão é feita, diretamente

pelo órgão julgador, a análise da natureza coletiva da pretensão que constitui a

demanda objeto da ação coletiva.

Na última parte do mesmo dispositivo encontramos a legitimidade atribuída ao

julgador de reconhecer ou não a possibilidade de um membro do grupo, titular do

direito comum objeto da demanda coletiva, ser reconhecido como representante

adequado na tutela dos direitos do grupo de pessoas em juízo. Importante ressaltar

que não é a simples demonstração de interesse jurídico na pretensão coletiva que

garante ao sujeito ou membro do grupo a condição de assumir o papel de

representante adequado na tutela dos direitos dos demais membros do grupo. A

decisão do julgador é fundamental para autorizar ou não um membro do grupo agir

como representante adequado dos demais, ressaltando-se que o projeto é omisso

quanto à eventual propositura de recurso em desfavor da decisão que não

reconhece a legitimidade de um membro do grupo assumir processualmente a

incumbência de representar processualmente os direitos dos demais membros.

O anteprojeto original foi elaborado essencialmente a partir do sistema

desenvolvido pelo direito norte-americano186, especificamente no que diz respeito às

186 Ao longo de todo o livro Rumo a um Código de Processo Civil Coletivo o jurista Antônio Gidi demonstrou que o norte de todas as suas reflexões voltadas a codificação do processo coletivo no Brasil pautou-se exclusivamente no direito norte americano, tal como a seguir exposto (GIDI, 2008): a)”Devemos buscar inspiração nós mesmos diretamente na fonte, sem o intermédio da doutrina italiana (p. 37); b) “Nas décadas de 80 e 90, os juristas brasileiros estudaram o instituto norte-americano, através da lente distorcida dos juristas italianos, para criar nossas leis (LACP e CDC) (p. 38); c) “ A Rule 54 (c), das Federal Rules of Civil Procedure norte-americanas, prescreve que exceto no caso de revelia, a sentença conterá o provimento que a parte tenha direito, mesmo que a parte não tenha feito pedido na petição inicial” (p. 46); d) “Trata-se de norma influenciada indiretamente pelo direito processual civil norte-americano, que possui um sistema muito mais flexível do que o brasileiro, permitindo que o processo se adapte às modificações da situação de fato e às expectativas das partes, que se alteram no decorrer do processo” (p. 46); e) “a norma do Anteprojeto Original, que autoriza o juiz a desmembrar o processo e a separar os pedidos ou as causas de pedir, tem origem no processo civil individual norte-americano” (p. 57); f) “A norma do Anteprojeto Original sobre a notificação coletiva adequada (adequate notice) ao grupo e seus membros tem origem na tradição das class actions norte-americanas” (p. 61); g) “O excesso de familiaridade com o direito norte-americano pode ter nos traído [...]” (p. 107); h) “[...] os critérios que construímos com a experiência das class actions norte-americanas [...]” (p. 107); i) “[...] décadas de experiência prática com processos coletivos nos Estados Unidos para servir de guia para a atuação das partes e do juiz brasileiros” (p. 110); j) “O estudo das class actions norte-americanas demonstra [...]” (p. 116); k)” O estudo do direito processual civil norte-americano demonstra [...]” (p. 125); l) “Uma prova de que a sentença genérica (ilíquida) não é exigência da natureza da demanda coletiva em tutela dos direitos individuais homogêneos é a realidade norte-americana” (p. 158).

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class actions; talvez seja por isso que a jurista Ada Pelegrini Grinover e o

pesquisador Kazuo Watanabe não tenham aceitado de imediato o anteprojeto

original como referencial à elaboração da proposta de um Código Modelo Ibero-

Americano por considerá-lo extremamente americanizado ao reproduzir, em muitos

pontos, o modelo de processo coletivo adotado no direito norte-americano. Antônio

Gidi certamente pretendeu implantar no Brasil o sistema das class actions187,

conforme análise atenta e detalhada da proposta legislativa abaixo (GIDI, 2008, p.

448-459):

a) Dentre os requisitos prévios de análise do mérito das ações coletivas188,

temos: a) a adequada representação do autor da ação, que deverá ser

membro do grupo; b) o advogado deverá demonstrar competência,

honestidade, capacidade, prestígio e experiência na proteção judicial e

extrajudicial dos interesses do grupo e, especialmente demonstrar ter

atuado profissionalmente em processos coletivos anteriores189; c) em

caso de pedido de desistência da ação ou de abandono da ação coletiva

187 Deve-se observar, ademais, que o “Código de Processo Civil coletivo” parte de uma visão monotemática do processo coletivo. Segue, exclusivamente, um único paradigma: o sistema das ações coletivas norte-americanas. Isso ficou demonstrado no livro Rumo a um Código de Processo Civil coletivo, uma vez que todas as observações feitas a respeito do processo coletivo brasileiro tomam como ponto de partida o modelo norte-americano; em toda a obra não há citação de jurisprudência brasileira. A referência jurisprudencial feita é toda baseada em decisões de tribunais americanos. Basta verificar que o trabalho critica ferrenhamente o disposto no artigo 28 do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos se valendo de decisões norte-americanas. Não foram sequer mencionados os inúmeros julgados do Superior Tribunal de Justiça a respeito do assunto. Claro que as class actions norte-americanas ocupam lugar de destaque na seara processual coletiva. Todavia, existem vários outros paradigmas a serem observados e estudados. Sem prejuízo da hegemonia dos Estados Unidos no cenário mundial, o fato é que existe vida fora dele. E vida jurídica. E vida processual coletiva (FERRARESI, 2011). 188 O estudo das class actions norte-americanas demonstra a utilidade prática de uma fase preliminar de certificação do processo coletivo, na qual o juiz analisará a presença dos requisitos processuais para o seu processamento na forma coletiva. No direito norte-americano, antes que uma ação possa ser considerada em sua forma coletiva, o juiz deverá verificar se todos os requisitos processuais estão presentes. Essa decisão, que autoriza e dá estrutura coletiva à ação proposta, é chamada “certificação” (certification). Trata-se de uma decisão fundamental dentro da sistemática processual coletiva norte-americana. Entre as questões mais importantes analisadas no momento da certificação de uma class action estão: a numerosidade, a questão comum, a tipicidade, a adequação da representação, as hipóteses de cabimento, a predominância, superioridade, administrabilidade, a definição do grupo e a notificação (GIDI, 2008, p. 116-117). 189 A advocacia no Brasil é constitucionalmente tratada com função essencial a justiça e o seu exercício deve ser livre e independente. A legitimidade para o controle do exercício legítimo da advocacia pelos seus profissionais cabe ao órgão de classe, qual seja, a Ordem dos Advogados do Brasil. O magistrado não tem legitimidade para controlar nem para valorar a qualidade do serviço prestado pelo profissional da advocacia. Por isso, manifesta-se no sentido de reconhecer como inconstitucional a respectiva proposta legislativa por limitar e deslegitimar o exercício livre e independente da advocacia tal como preconizado expressamente nos artigos 133 a 135 da Constituição brasileira de 1988.

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o juiz notificará o grupo para assumir a titularidade ativa e, na ausência de

legitimado adequado interessado, extinguirá o processo sem julgamento

do mérito; d) o representante adequado deve demonstrar capacidade

financeira para prosseguir na ação coletiva; d) quando o grupo de

pessoas for demasiadamente reduzido e seus membros facilmente

identificáveis, o juiz negará seguimento da ação na forma coletiva, mas

permitirá que os membros do grupo intervenham no processo e assumam

a titularidade da lide individual em litisconsórcio.

b) Antes do julgamento do mérito da pretensão coletiva o juiz deverá, em

observância do principio da publicidade, determinar a notificação ampla,

adequada190 e direcionada ao maior número possível de legitimados

coletivos, de forma econômica e eficiente, podendo, assim, se utilizar de

anúncios na imprensa e na Internet. Se a ação coletiva tiver obtido a

notoriedade adequada o juiz poderá, de forma fundamentada, dispensar a

notificação individual dos membros. O representante do grupo deverá

manter os membros do grupo constantemente informados sobre o

andamento processual.

c) Qualquer legitimado coletivo poderá intervir no processo coletivo em

qualquer tempo e grau de jurisdição para demonstrar a inadequação do

representante ou auxiliá-lo na tutela dos direitos do grupo.

d) Os membros do grupo poderão participar do processo coletivo como

informantes, trazendo provas, informações e argumentos novos.

e) O objeto do processo coletivo será o mais abrangente possível191,

abrangendo toda a controvérsia coletiva do grupo, a fim de incluir tanto as

190 [...] é importante não tornar esse procedimento financeiramente inviável ou um entrave burocrátizante para o processo coletivo. Por exemplo, as cartas poderiam ser enviadas apenas para as associações e entidades públicas mais ligadas ao tipo de controvérsia e, talvez, para alguns membros do grupo selecionados por amostragem; os demais membros poderiam ser notificados por técnicas menos custosas (Anteprojeto Original, art. 5.1). Tudo deve ser feito de forma simples, econômica e rápida. O art. 5.13 do Anteprojeto Original autoriza, quando cabível, que a notificação seja inserida na correspondência periódica que o réu envie aos membros do grupo (GIDI, 2008, p. 67). 191 A regra tradicional, que limita rigidamente o objeto do processo e proíbe o juiz de julgar além do que foi pedido pelo autor, que já é inútil e injusta no processo individual, passa a ser, não somente desnecessária, como altamente perigosa, se for transferida para o processo coletivo, no qual o autor não é o titular do direito levado a juízo. No processo coletivo, a necessidade de tutelar a controvérsia coletiva de forma completa e adequada é mais importante do que esse dogma do processo civil individual (GIDI, 2008, p. 47). O amadurecimento do Processo Civil brasileiro contemporâneo já comporta o repensar das vetustas normas de preclusão e do principio da eventualidade, fugindo de um sistema rígido para um sistema

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pretensões transindividuais de que seja titular o grupo como as

pretensões individuais de que sejam titulares os membros do grupo.

f) Na fase de saneamento o julgador demarcará o objeto do processo

coletivo da forma mais abrangente possível, devendo manter controle

direto sobre todo o andamento processual e tomar todas as medidas

adequadas ao seu célere, justo e eficiente andamento.

g) Fundado no principio da celeridade processual e a fim de facilitar a

condução do processo coletivo o juiz poderá, em decisão fundamentada,

separar os pedidos ou as causas de pedir em ações coletivas distintas192.

Além disso, nas ações coletivas o julgador poderá dividir o grupo em

subgrupos com direitos ou interesses semelhantes para melhor decisão e

condução do processo coletivo; havendo divergências substanciais entre

os membros do grupo quanto aos direitos a eles atinentes, o juiz poderá

nomear um representante e um advogado para cada subgrupo. Talvez um

dos pontos mais relevantes do anteprojeto original esteja na possibilidade

de controle judicial da representação adequada193.

h) O juiz poderá limitar o objeto da ação coletiva à parte da controvérsia que

possa ser julgada na forma coletiva, deixando as questões que não são

comuns ao grupo para serem decididas em ações individuais ou em uma

fase posterior do próprio processo coletivo.

i) O representante do grupo e autor da ação tem legitimidade para firmar

acordo com a parte contrária acerca do objeto da ação coletiva, devendo

o Ministério Público e os demais interessados ser resguardados quanto ao

direito de participarem da negociação do acordo coletivo. Antes de flexível de estabilização da demanda. No Anteprojeto Original, de acordo com os arts. 7 e 16, o objeto do processo coletivo será o mais abrangente possível, envolvendo toda a controvérsia coletiva entre o grupo e a parte contrária, independentemente de pedido, incluindo tanto as pretensões transindividuais, de que seja titular o grupo, como as pretensões transindividuais, de que seja titular o grupo, como as pretensões individuais, de que sejam titulares os membros do grupo, desde que não represente prejuízo injustificado para as partes e o contraditório seja preservado (GIDI, 2008, p. 48). 192 A norma do Anteprojeto Original, que autoriza o juiz a desmembrar o processo e a separar os pedidos ou as causas de pedir, tem origem no processo civil individual norte-americano. Essa norma deve ser compreendida em conexão com aquela do objeto amplo do processo, acima analisada. Como o Anteprojeto Original optou por delimitar o objeto do processo de forma tão abrangente, essa flexibilidade poderia causar complexidade desnecessária ao processo coletivo, a ponto de dificultar o seu andamento. Portanto, para facilitar a condução do processo, se faz necessário autorizar ao juiz desmembrar o conflito coletivo em partes menores (GIDI, 2008, p. 58). 193 A norma sobre o controle judicial da “representação” adequada tem origem na tradição das class actions norte-americanas. O seu objetivo é minimizar o risco de colusão entre as partes, incentivar uma conduta vigorosa pelo “representante” e pelo advogado na tutela dos interesses de todos os membros do grupo (GIDI, 2008, p. 76).

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homologação judicial da proposta de acordo o juiz notificará amplamente

o grupo e os seus membros sobre os termos do acordo a fim de realizar

uma audiência pública de aprovação, onde o juiz ouvirá todos os

interessados.

j) Nas ações coletivas envolvendo tutelas especificas de obrigação de fazer

ou não fazer o juiz determinará providências que assegurem o resultado

prático equivalente ao do adimplemento. Se o resultado da tutela

especifica tornar-se impossível haverá a conversão em perdas e danos. A

fim de potencializar o cumprimento da tutela especifica, o julgador

arbitrará astreintes (multa de natureza coercitiva com o propósito de

potencializar o cumprimento da tutela especifica nas ações coletivas)

independentemente da indenização por perdas e danos e da punição por

desobediência de ordem judicial.

k) A sentença julgará a controvérsia coletiva da forma mais ampla possível,

decidindo sobre as pretensões individuais e transindividuais,

declaratórias, constitutivas e condenatórias, independentemente de

pedido, desde que não represente prejuízo injustificado para as partes e o

contraditório seja preservado. Uma vez proferida a sentença, todo o grupo

deverá ser notificado a fim de tomar conhecimento acerca de seu

conteúdo.

l) A coisa julgada coletiva vinculará o grupo e seus membros

independentemente do resultado da demanda, salvo se o fundamento da

improcedência decorrer da representação inadequada dos direitos do

grupo ou por insuficiência de provas (se a ação coletiva for julgada

improcedente por insuficiência de provas qualquer legitimado coletivo

poderá propor a mesma ação coletiva valendo-se de nova prova)

m) A possibilidade de litispendência existe apenas entre ações coletivas

idênticas, tendo em vista que não induz litispendência para as

correspondentes ações individuais relacionadas à mesma controvérsia

coletiva.

n) O membro do grupo que propuser ação individual até a data da sentença

ou da homologação do acordo coletivo será excluído do grupo e não será

vinculado em sua esfera individual pela coisa julgada coletiva. Se o autor

da ação individual for notificado acerca da existência de correspondente

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ação coletiva, poderá requerer a suspensão do seu processo individual no

prazo de 60 dias, se quiser se vincular a coisa julgada coletiva (uma vez

vinculado à coisa julgada coletiva a ação individual será extinta). Na

ausência na notificação ora mencionada o autor da ação individual será

beneficiado mas não poderá ser prejudicado pelos efeitos da coisa

julgada coletiva. Se a ação coletiva for extinta sem julgamento do mérito

ou não houver a formação da coisa julgada coletiva, a ação individual que

estava suspensa poderá prosseguir.

o) Nas ações coletivas não é obrigatório o adiantamento das custas e de

demais despesas processuais por parte do grupo e, em caso de

improcedência dos pedidos da ação coletiva não haverá ônus

sucumbenciais ao representante do grupo e aos intervenientes, salvo

comprovada má fé, tal como ocorre no caso envolvendo as ações

populares.

p) Com incentivo à propositura de ações coletivas e ao ativo controle do

processo pelos legitimados coletivos, poderá o juiz atribuir uma

gratificação financeira ao representante e ao interveniente cuja atuação

foi relevante na tutela dos direitos do grupo e dos membros do grupo.

q) O juiz poderá dar prioridade ao processamento de uma ação coletiva,

quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou

característica do dano ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido.

r) Admite-se a propositura da ação rescisória a fim de desconstituir sentença

de mérito proferida em ação coletiva nos seguintes casos: a) quando

constatado que não foi possível, no momento da decisão ou do acordo,

uma análise adequada das conseqüências, da dimensão, da natureza e

das características do ilícito que ensejou a propositura da ação coletiva; b)

quando demonstrar que não foi possível, devido à complexidade das

questões postas em debate, efetivar uma análise adequada de todo o

material probatório trazido aos autos; c) quando a decisão ou o acordo,

nas relações continuativas, mostrarem-se manifestamente inadequadas

com o passar do tempo.

Certamente um dos pontos altos do anteprojeto original encontra-se no item

14.6, que prevê a obrigatoriedade do julgador determinar a realização de audiência

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pública mediante notificação prévia e participação dos interessados difusos e

coletivos em caso de acordo coletivo que se pretende firmar em juízo. Trata-se de

uma tímida tentativa do autor do anteprojeto original implementar o principio

participativo como vetor de entendimento do processo coletivo no Brasil. A

pertinência da crítica que aqui se faz justifica-se no sentido de que a oportunização

de ampla participação de todos os interessados difusos e coletivos na construção do

provimento jurisdicional não deverá ocorrer apenas em caso de realização de

eventual acordo. O processo coletivo para ser auto-intitulado democrático deverá ser

visto como uma forma de controle participativo e a ação coletiva ser entendida como

uma linguagem jurídica adequada à colocação em debate do discurso sobre

questões controvertidas na sociedade (MACIEL JUNIOR, 2007, p. 119).

Outra crítica pertinente ao anteprojeto original é que a proposição legislativa

foi sistematizada exclusivamente a partir da idéia de um processo coletivo voltado

para a resolução de conflitos coletivos de natureza concreta, ou seja, em momento

algum ao longo do anteprojeto foi apresentada uma proposta legislativa atinente às

pretensões coletivas voltadas ao debate da constitucionalidade de textos legislativos

por meio da ação direta de inconstitucionalidade, da ação declaratória de

constitucionalidade, da argüição de descumprimento de preceito fundamental e do

mandado de injunção194. Nesse mesmo sentido, ressalta-se a omissão quanto ao

debate da repercussão geral de questão constitucional como requisito especifico de

admissibilidade do recurso extraordinário a ensejar, na análise do mérito da

pretensão recursal, a relevância do debate de questões atinentes aos direitos

coletivos e difusos (a nova sistemática do recurso extraordinário com o advento da

Emenda Constitucional 45 e da Lei 11.418/2006 implementou no direito brasileiro a

coletivização das demandas como pressuposto lógico para o debate do mérito da

pretensão recursal).

Certamente o anteprojeto original contribuiu significativamente para o debate

sobre a proposta de codificação do direito processual coletivo, especialmente no que

atine aos seguintes pontos: a) a preocupação evidente com a observância do

principio da publicidade como corolário ao exercício do contraditório, da ampla 194 Gregório Assagra de Almeida divide o Direito Processual Coletivo em comum e especial. Segundo a classificação do autor, o processo coletivo comum destina-se à resolução dos conflitos coletivos subjetivos concretos através da ação civil pública, das demandas coletivas do CDC, do mandado de segurança coletivo etc. Já o processo coletivo especial destina-se ao controle concentrado e abstrato da constitucionalidade das leis, através da ação direta de inconstitucionalidade (por ação ou omissão), argüição de descumprimento de preceito fundamental etc (GIDI, 2008, p. 397).

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defesa e do devido processo legal mediante o esclarecimento a todos os

interessados do objeto da pretensão. A possibilidade de utilização da internet e da

imprensa, assim como a proposta de realização de audiências públicas são

elementos que enobrecem cientificamente o texto do anteprojeto original; b) a

preocupação com a amplitude do objeto da ação coletiva, para que o mesmo seja o

mais abrangente possível, denota a possibilidade, ao longo do procedimento, de

interessados difusos e coletivos apresentarem temas correlatos à pretensão

inicialmente deduzida, tal como propõe o jurista Vicente de Paula Maciel Junior ao

enunciar a Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas; c) a celeridade e a

efetividade processual não podem ser princípios utilizados como referenciais à

concentração de poderes nas mãos do julgador para, em contrapartida, sumarizar a

cognição e limitar o exercício do contraditório e da ampla defesa por aqueles sujeitos

juridicamente interessados na construção participada do mérito da ação coletiva; d)

a possibilidade de julgamento antecipado de parte da pretensão, a prioridade de

processamento e de julgamento da demanda coletiva, assim como o dever de

informação, no processo individual, sobre a existência de ação coletiva sobre o

mesmo fundamento são também considerados pontos até então não abordados na

legislação brasileira.

A notificação coletiva ampla e adequada ao grupo e aos seus membros é

aspecto fundamental para o resultado prático de uma demanda coletiva, tendo em

vista que assegura a fiscalização, a participação e o controle pelos interessados

quanto ao objeto da ação, trazendo transparência e publicidade ao debate da

pretensão195. “A notificação adequada ao grupo é uma questão constitucional de

respeito ao devido processo legal, tanto quanto a adequada representação (GIDI,

2008, p. 66). A tradição das class actions no direito norte americano demonstra que

as notificações são muito complexas e extremamente custosas, o que muitas vezes

torna inviável a ação de classe em virtude de obstáculos de natureza

essencialmente econômica, limitando, assim, o direito de amplo acesso ao

Judiciário, especificamente ao direito de debate e de construção participada do

mérito processual coletivo.

195 Uma adequada notificação é o mínimo que um processo coletivo adequado (ou “devido”) precisa proporcionar aos membros do grupo titular da pretensão. De nada adianta o direito de propor demanda individual de liquidação dos danos, de intervir no processo coletivo para auxiliar e controlar a adequação do representante, se o membro do grupo (e os demais legitimados coletivos) não têm informação adequada sobre a existência da demanda coletiva (GIDI, 2008, p. 65).

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No Brasil, o Diário Oficial seria considerado a fonte classicamente utilizada de

notificação do grupo e dos membros do grupo acerca da existência de uma

demanda coletiva proposta em seu nome e em seu beneficio. Considerando-se a

cultura e a tradição da população brasileira, que não tem o hábito de ler o conteúdo

periódico do Diário Oficial, sabe-se que se a notificação se efetivar por esse meio

possivelmente “[...] uma demanda coletiva poderá ser processada e julgada sem que

os membros do grupo e outros legitimados coletivos saibam sequer que há uma

demanda em curso [...]” (GIDI, 2008, p. 63). Assim ressalta-se

O direito brasileiro proporciona uma notificação insuficiente aos principais interessados no conflito objeto do processo coletivo, a ponto de poder ser considerada uma ausência total de notificação. Essa limitação do direito brasileiro enfraquece o poder político das demandas coletivas e o poder de mobilização social dos membros do grupo. A sociedade inteira sai perdendo (GIDI, 2008, p. 62).

O direito brasileiro precisa criar um meio através do qual a notificação seja

realizada de forma não excessivamente dispendiosa e também que atinja a sua

finalidade, qual seja, a operacionalização da participação e do envolvimento direto

dos interessados no debate do objeto da ação coletiva. “[...] É inadmissível que o

processo coletivo seja proposto, conduzido e julgado sem que nenhum interessado

dele tome conhecimento, como é a regra no direito brasileiro atual” (GIDI, 2008, p.

64). É de extrema relevância a menção do jurista Antônio Gidi, em sua obra “Rumo a

um Código de Processo Civil Coletivo – A codificação das ações coletivas no Brasil”,

da relevância da notificação adequada como instrumento efetivo de implementação

da Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas desenvolvida pelo jurista

Vicente de Paula Maciel Junior196. Certamente a utilização da internet, dos meios de

comunicação em geral, da imprensa e das redes de relacionamento (facebook,

skype, msn, Orkut dentre outros) são mecanismos não necessariamente

dispendiosos e que podem ser extremamente relevantes no resultado prático de

uma notificação adequada que atinja o maior número possível de pessoas

interessadas no debate da pretensão coletiva.

196 Com uma notificação adequada, somada à ampla possibilidade de intervenção (art. 6º) e ao amplo objeto do processo coletivo (art. 7º), o Anteprojeto Original dá aos processos coletivos, de certa forma, o caráter de “ação temática” propugnado por Vicente de Paula Maciel Junior (GIDI, 2008, p. 67).

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O artigo 3º do anteprojeto original traz a possibilidade do controle judicial da

representação adequada, que se materializa em uma proposta legislativa que

pretende conferir legitimidade ao juiz, e ao representante do Ministério Público e aos

demais interessados para controlar adequadamente as atividades desenvolvidas

pelo representante e pelo advogado do grupo. Uma vez constatada a ineficiência do

representante no que atine à proteção e à defesa dos direitos da coletividade ou o

despreparo do advogado enquanto profissional inabilitado ao exercício técnico do

contraditório e da ampla defesa no caso concreto poderá o juiz determinar a

substituição e, em situações excepcionais, proferir sentença de extinção do processo

sem resolução do mérito.

O controle judicial das atividades desenvolvidas pelo representante adequado

é corolário do principio do devido processo legal, no sentido de inviabilizar que

qualquer interessado na demanda coletiva venha a sofrer efeitos jurídicos de uma

decisão sem ao menos ter a oportunidade de debate e de construção discursiva do

mérito processual. Assim

Como o processo é conduzido por um terceiro e como os membros do grupo, por definição, não se encontram presentes no processo coletivo, é preciso assegurar, tanto quanto possível, que o resultado obtido com a demanda coletiva não seja substancialmente diverso daquele que seria obtido, se os membros do grupo pudessem defender pessoalmente os seus direitos em juízo. O “representante” obtém essa posição por manifestação da sua própria vontade, ao propor a demanda em beneficio de uma coletividade: o mínimo que esse estranho tipo de “representante” deve ser é adequado. Daí a imperatividade de que a sua atividade seja controlada pelo juiz (GIDI, 2008, p. 79).

A partir da proposta legislativa trazida pelo anteprojeto original o grupo e os

seus membros não sofrerão os efeitos da coisa julgada material caso o processo

coletivo não tenha sido conduzido adequadamente. Conforme estabelece o artigo 18

do anteprojeto original, em caso de sentença de mérito proferida em processo

coletivo inadequadamente conduzido pelo representante ou pelo advogado não há

necessidade de se promover uma ação rescisória para desconstituir a sentença

coletiva “pois ela simplesmente não faz coisa julgada, em caso de inadequação da

representação” (GIDI, 2008, p. 77).

Alguns autores, como Gregório Assagra de Almeida, debruçam-se sobre o

debate da terminologia mais adequada para a legislação que se pretende codificar,

argumentando tal jurista que a ação civil pública é a terminologia que deveria ser

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utilizada para designar as ações coletivas nos anteprojetos de codificação do

processo coletivo no Brasil, por se tratar de um instituto consagrado

constitucionalmente e de forte conotação política (GIDI, 2008, p. 382).

Particularmente entende-se que o instituto das ações coletivas é um gênero que tem

a ação civil pública como uma de suas espécies ao lado da ação popular, do

mandado de segurança coletivo, da ação direta de inconstitucionalidade, da

argüição de descumprimento de preceito fundamental, do mandado de injunção e da

ação declaratória de constitucionalidade. O instituto das ações coletivas presta-se a

garantir o exercício da cidadania mediante a ampliação do direito de acesso ao

Judiciário que se efetiva no momento em que o titular da pretensão se legitima no

debate e na construção participada do mérito processual.

Uma questão relevante que não foi abordada pelo anteprojeto original diz

respeito ao inquérito civil público e o termo de ajustamento de conduta, tal como

explicitado no artigo 8º da Lei 7347/85 (Lei da Ação Civil Pública). Estabelece nossa

legislação vigente que o Ministério Público tem legitimidade para instaurar o inquérito

civil público e firmar o termo de ajustamento de conduta, numa alusão explicita ao

sistema representativo. Concentra-se nas mãos da autoridade exercida pelo

representante do Ministério Público a legitimidade exclusiva para a atuação no

processo coletivo, a fim de tratar e debater pretensões de natureza coletiva ou difusa

sem permitir qualquer ingerência ou participação dos interessados na pretensão

coletiva.

O termo de ajustamento de conduta é a oportunidade que o Ministério Público

tem de realizar acordos ou resolver consensualmente, de forma inibitória

(preventiva) ou repressiva (cessação de ilegalidades já concretizadas com eventual

reparação por perdas e danos), demandas diretamente relacionadas aos direitos

coletivos e difusos, sem ao menos consultar ou informar os titulares do direito em

questão acerca do conteúdo ora posto em discussão. Repensar o instituto é admitir

a possibilidade dos interessados difusos e coletivos serem integrados no espaço

processual a fim de participar de forma efetiva do debate fático-jurídico das questões

que integram as particularidades do caso concreto. A realização de Audiências

Públicas, a utilização da internet e dos meios de comunicação para garantir a

publicidade do debate são alternativas hoje viáveis para democratizar o instituto em

questão no contexto do modelo constitucional de processo.

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226

O inquérito civil público materializa-se num procedimento que se desenvolve

com a finalidade de produzir antecipadamente provas necessárias e voltadas a

constatação da existência de eventuais condutas praticadas em desfavor dos

direitos coletivos e difusos. Considerando-se a dimensão teórico-pragmática de seu

objeto, bem como a extensão dos efeitos da conduta praticada com relação ao bem

jurídico tutelado, resta claro que, embora presidido pelo Ministério Público, o

inquérito civil público deverá se desenvolver a partir dos princípios do contraditório e

da ampla defesa com o intuito de resguardar a todos os destinatários dos

provimentos e interessados na pretensão o direito de se imiscuírem no debate

processual e na construção do mérito.

A codificação ou a sistematização legislativa do processo coletivo brasileiro

pressupõe repensar todos os institutos hoje trabalhados pelo modelo vigente,

especialmente aqueles institutos que concentram poderes exclusivos nas mãos do

juiz e do representante do Ministério Público a fim de deslegitimar a participação dos

interessados difusos e coletivos. O projeto de efetivação da cidadania, tal como

expresso no artigo 1º da Constituição brasileira de 1988, passa obrigatoriamente

pela reconstrução do processo coletivo como espaço para o debate e o controle dos

métodos e dos instrumentos de efetivação dos Direitos Fundamentais.

A apatia da sociedade e a ignorância da maioria da população brasileira que

desconhece inúmeros dos seus direitos de repercussão individual e coletiva não

pode ser utilizado como argumento a explicar a não concretização do projeto de

processo coletivo compatível com a constitucionalidade democrática e reafirmar o

modelo de processo coletivo vigente e centrado na representatividade de uma

minoria pseudo-legitimada a representar os interesses da maioria.

3.3.3 O MÉRITO PROCESSUAL NO CÓDIGO MODELO DE PROCESSOS COLETIVOS PARA IBERO-AMÉRICA.

O Código Modelo de Processo Civil para Ibero-América197 recepcionou o

tratamento jurídico brasileiro assegurado à tutela jurisdicional dos direitos difusos e

197 A primeira versão do Anteprojeto de Código Modelo previu a conceituação tripartida dos interesses e direitos coletivos lato sensu em conformidade com a legislação brasileira, subdividindo-os em difusos, coletivos e individuais homogêneos. Na segunda versão do Anteprojeto, que restou mantida no Código, procurou-se o consenso mediante uma divisão bipartida, fundada na dicotomia entre direitos, essencialmente coletivos, porque indivisíveis, e acidentalmente coletivos, na medida em que apenas a defesa é coletiva, tendo em vista a homogeneidade dos direitos individuais em jogo,

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coletivos, com algumas modificações substanciais com relação à legitimação

(passou a integrar qualquer interessado na demanda coletiva como legitimado ao

processo coletivo), ao controle sobre a representatividade adequada e com relação

à coisa julgada adotou o regime do efeito erga omnes, salvo a insuficiência de

provas. “[...] Apesar de terem sido analisadas a sistemática norte-americana das

class actions e a brasileira das ações coletivas, o Código Modelo constitui-se em um

modelo de sistema original que se afasta daqueles para se adequar à realidade dos

diversos países ibero-americanos” (ALMEIDA, 2007, p. 86). O objetivo foi

sistematizar uma legislação adequada aos países onde será aplicada:

O modelo ora apresentado inspira-se, em primeiro lugar, naquilo que já existe nos países da comunidade ibero-americana, complementando, aperfeiçoando e harmonizando as regras existentes, de modo a chegar a uma proposta que possa ser útil para todos. Evidentemente, foram analisadas a sistemática norte-americana das class actions e a brasileira das ações coletivas (aplicada há quase 20 anos), mas o código afasta-se em diversos pontos dos dois modelos, para criar um sistema original, adequado à realidade existente nos diversos países ibero-americanos. Tudo isto foi levado em conta para a preparação do Código,que acabou, por isso mesmo, perdendo as características de um modelo nacional, para adquirir efetivamente as de um verdadeiro sistema ibero-americano de processos coletivos, cioso das normas constitucionais e legais já existentes nos diversos países que compõem nossa comunidade (GRINOVER; MENDES; WATANABE, 2007, p. 123).

È bastante elogiável e relevante a iniciativa de criação de um Código Modelo

de Processo Coletivo para a Ibero-América, já que o presente código desempenha

importante papel no cenário jurídico dos países de cultura jurídica comum. Trata-se

de legislação criada para garantir o aperfeiçoamento da ordem jurídica interna de

cada país. Para o Brasil não podemos afirmar que tivemos significativas

contribuições em virtude da existência de avançada legislação que regula o

processo coletivo interno. Em contrapartida, a importância de tal legislação é

destacada para os países que ainda não sistematizaram no plano legislativo as

diretrizes do direito e do processo coletivo.

A idéia inicial do Código em questão surgiu de uma intervenção do jurista

Antônio Gidi, membro do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, no VII

decorrentes de uma origem comum. Na nova redação, não houve, contudo, uma ruptura total em relação à primeira versão do Anteprojeto. Os direitos e interesses antes denominados difusos e coletivos em sentido estrito foram, na verdade, agrupados e denominados de difusos, passando o novo inciso I a compreender conceito alargado e que correspondia anteriormente a incisos I e II da primeira versão do Anteprojeto (MENDES, 2006, p. 36).

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228

Seminário Internacional co-organizado pelo Centro di Studi Giuridici Latino Americani

da Università degli Studi di Roma – Tor Vergata, pelo Instituto Italo-Latino Americano

e pela Associazione di Studi Sociali Latino-Americani, realizado na cidade de Roma

no mês de maio de 2002.

Ainda em Roma, a Diretoria do Instituto Ibero-Americano amadureceu e

incorporou com entusiasmo a idéia de elaboração de um Código Modelo de

Processos Coletivos para Ibero-América a fim de inspirar reformas, de modo a tornar

mais homogêneo a defesa dos direitos difusos e coletivos nos países de cultura

jurídica comum. Incumbidos de redigir a proposta de codificação do direito

processual coletivo, Ada Pelegrini Grinover, Antônio Gidi e Kazuo Watanabe

apresentaram os resultados iniciais de seus trabalhos nas Jornadas Ibero-

Americanas de Direito Processual, realizada em Montevidéu, no mês de outubro de

2002, momento em que a proposta foi oficialmente transformada em anteprojeto.

Após revisão e extenso debate pela comunidade acadêmica o projeto foi publicado

pelo Editorial Porrúa sob o título “A tutela dos direitos difusos, coletivos e individuais

homogêneos – Rumo a um Código Modelo para Ibero-América e apresentado no XII

Congresso Mundial de Direito Processual, realizado na Cidade do México no período

de 22 a 26 de setembro de 2003 (GRINOVER; MENDES; WATANABE, 2007, p.

423). Após nova analise pela comissão revisora o anteprojeto converteu-se em

projeto, que foi aprovado pela Assembléia Geral do Instituto Ibero-Americano de

Direito Processual, realizado no mês de outubro de 2004, na cidade de Caracas,

durante as XIX Jornadas Ibero-Americanas de Direito Processual.

Estruturalmente o Código Modelo organiza-se da seguinte forma

(GRINOVER, 2006, p. 25-32):

a) inicialmente diferencia conceitualmente direitos difusos e individuais

homogêneos, enaltecendo a prevalência das questões comuns sobre as

questões individuais e da utilidade da tutela coletiva no caso concreto;

b) a legitimidade processual ativa é a mais aberta possível198, a fim de

atender todos os modelos já existentes de processos coletivos em Ibero-

198 O caminho trilhado pelo Código Modelo de Processos Coletivos para a Ibero-América foi no sentido de democratizar o acesso à Justiça, fortalecendo as ações coletivas, a partir da ampliação do rol de legitimados. A proposição rompe, portanto, com sistemas tradicionais, que procuram atribuir certa exclusividade a legitimidade ora para órgãos públicos, ora para associações e organizações não governamentais, como ocorre na Alemanha, ou principalmente para os indivíduos, como acontece

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América, ressaltando-se que a legitimação é concorrente e autônoma e

admitindo-se o litisconsórcio dos co-legitimados (GRINOVER; MENDES;

WATANABE, 2007, p. 424);

c) o foco do projeto é todo voltado para a idéia da efetividade do processo

coletivo, com o propósito de viabilizar uma resposta jurisdicional

realmente capaz de satisfazer os direitos difusos e coletivos violados ou

ameaçados. Para isso, encontra-se expressa uma sistemática de tutelas

processuais específicas, tais como a tutela antecipada; a condenação por

reparação de danos ao bem indivisivelmente considerado; a destinação

do produto das condenações para a recuperação do bem lesado e as

tutelas mandamentais acompanhadas das astreintes;

d) teoricamente voltado à proteção do bem jurídico coletivo de natureza

indisponível, o projeto volta-se para conferir ao juiz amplos poderes no

controle, na condução e na direção do processo coletivo;

e) instituíram-se também regras para regular a distribuição do ônus da

prova; o pagamento de custas, emolumentos e honorários; o incentivo

para as pessoas físicas, os sindicatos e as associações quanto à

propositura das ações coletiva; a interrupção do prazo de prescrição para

as pretensões individuais como conseqüência da propositura da ação

coletiva;

f) o recurso de apelação, via de regra, é recebido meramente no efeito

devolutivo, admitindo-se, portanto, a possibilidade de execução provisória;

g) temos a previsão da ação coletiva reparatória para proteger danos

individualmente sofridos, ressaltando-se que em caso de acolhimento do

nos Estados Unidos, com as class actions. Previu-se, assim, que são legitimados concorrentemente para a ação coletiva: 1- qualquer pessoa física, para a defesa dos interesses ou direitos difusos de que seja titular em grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas por circunstâncias de fato; II- o membro do grupo, categoria ou classe, para a defesa dos interesses ou direitos difusos de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base e para a defesa de interesses ou direitos individuais homogêneos; III- o Ministério Público, o Defensor do Povo e a Defensoria Publica; IV- as pessoas jurídicas de direito público interno; V- as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo Código; VI- as entidades sindicais, para a defesa dos interesses e direitos da categoria; VII- as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos no código, dispensada a autorização assemblear; VIII- os partidos políticos, para a defesa de direitos e interesses ligados a seus fins institucionais. Ressalte-se que tanto o Defensor Del Pueblo quanto as entidades sindicais foram incluídos na segunda versão do Anteprojeto, e ainda acrescentados, por proposta do autor deste artigo, na redação final, a Defensoria Pública e os Partidos Políticos (MENDES, 2006, p. 38-39).

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230

pedido, a sentença poderá ser genérica, declarando a existência do dano

geral e condenando o demandado à obrigação de indenizar todas as

vítimas, cabendo individualmente a cada interessado o dever de provar o

seu dano pessoal na fase de liquidação de sentença;

h) a instituição de um Fundo de Direitos Difusos e Individuais Homogêneos

tem regras especificas sobre a gestão e as atividades, cujo controle é

exercido diretamente pelo juiz;

i) existem regras próprias e muito claras que disciplinam os institutos da

conexão e da litispendência, incluindo as relações entre ações coletivas

ou entre uma ação coletiva e outras ações individuais de mesmo objeto.

Verifica-se, ainda, a possibilidade de conversão de várias ações

individuais numa única ação coletiva;

j) a coisa julgada envolvendo direitos difusos sempre será de eficácia erga

omnes, em caso de procedência ou de improcedência do pedido, salvo

quando a improcedência se der por insuficiência de provas, hipótese em

que a demanda poderá ser repetida, no prazo de 2 (dois) anos a contar

da descoberta de prova nova superveniente ao processo coletivo;

k) a coisa julgada com relação aos direitos individuais homogêneos será

secundum eventum litis, ou seja, terá efeito erga omnes se o pedido tiver

sido julgado procedente e o efeito será ultra partes, limitando-se às partes

do processo, se o pedido tiver sido julgado improcedente, hipótese em

que cada individuo prejudicado pela sentença poderá opor-se à coisa

julgada, ajuizando sua ação individual a fim de buscar a proteção de

direito próprio;

l) uma importante inovação trazida pelo Código Modelo de Processos

Coletivos para Ibero-América foi a possibilidade de ação coletiva passiva,

assim como a defendant class action do sistema norte-americano. A

presente ação não é proposta pela classe, mas sim, contra ela. O Código

exige que a ação coletiva passiva seja proposta em face de uma

coletividade organizada de pessoas e que o bem jurídico tutelado seja

coletivo e de relevância social.

m) Já no artigo 1º o projeto explicita que a ação coletiva será exercida para a

tutela de interesses ou direitos difusos (de natureza indivisível, titularidade

pertencente a um grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas por uma

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circunstância fática ou por uma relação jurídica base) e interesses ou

direitos individuais homogêneos (conjunto de direitos subjetivos

individuais decorrentes de origem comum de que sejam titulares membros

de um grupo, categoria ou classe). Verifica-se que os autores do projeto

de codificação Ibero-América não tiveram o cuidado necessário quanto à

distinção conceitual do direito e do interesse.

O jurista Vicente de Paula Maciel Junior é pontual no momento em que afirma

que interesse e direito não se confundem e a distinção entre ambos estaria no

momento em que ambos se efetivam e realizam (2006, p. 53). Interesse é um

conceito liberal, de natureza individualista, pertence à esfera psíquica do sujeito e se

materializa por meio da manifestação de uma pessoa em face de um bem. É por

isso que se torna equivocada a utilização da expressão “interesses difusos,

interesses coletivos, interesses metaindividuais ou transindividuais”. “Quando se fala

de interesse coletivo ou difuso a expressão, via de regra, é equívoca, porque o

interesse é sempre individual” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 54). O que podemos

considerar difuso ou coletivo é o número dos sujeitos que manifestam

individualmente interesses ligados pelas mesmas circunstâncias fáticas ou por uma

relação jurídica comum. É por isso que o mais adequado juridicamente seria a

utilização das expressões interessados difusos e coletivos e direitos difusos e

coletivos. “Não há interesse difuso, mas uma indeterminação difusa de interessados”

(MACIEL JUNIOR, 2006, p. 54).

Uma vez esclarecido juridicamente que o interesse “nasce e se exaure na

intenção do sujeito, em sua manifestação perante as outras pessoas, na sua esfera

privada” (MACIEL, 2006, p. 55), resta esclarecer que o direito199 é produto de um

processo de racionalização, de validação e de legitimação pelo Estado de condutas

decorrentes essencialmente a partir de interesses dos sujeitos manifestados tanto de

forma individual quanto de forma coletiva. Para Vicente de Paula Maciel Junior “[...] a

partir do momento em que há o reconhecimento social, o respeito às faculdades e

199 Os direitos nascem da aceitação, do consenso sobre as manifestações dos interesses dos sujeitos, ou do reconhecimento compulsório da validade do interesse manifestado pelo sujeito e admitido pelo juiz em uma sentença. Os interesses pertencem a uma fase pré-lógica, antecedente, e nunca se confundirão com os direitos, que exigem um processo de validação, de legitimação dos interesses da sociedade para que possam ser chamados de direitos (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 55).

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poderes exercidos pelo sujeito sobre o bem, estabelece-se o consenso de que

aquele é o titular legitimo de um direito” (2006, p. 55).

Toda proposta legislativa deve vir acompanhada do cuidado dos estudiosos

quanto à utilização adequada de institutos e de conceitos. Num primeiro momento

pode até parecer preciosismo a discussão cientifica que propõe a distinção teórica

entre os conceitos de direito e de interesse, mas tal debate se faz necessário e

relevante no presente contexto justamente para afastar definitivamente qualquer

herança liberal ou individualista do processo civil como patamar lógico ao estudo do

direito processual coletivo.

Com relação aos requisitos jurídico-legais a propositura de uma ação coletiva

o projeto do Código Ibero-América estabelece basicamente a representatividade

adequada do legitimado (auferida pela credibilidade, capacidade, prestígio e

experiência do legitimado no que tange à proteção dos direitos dos membros do

grupo ou classe, e a sua conduta em outros processos coletivos; o tempo de

instituição da associação e a representatividade desta ou da pessoa física perante o

grupo, categoria ou classe; a coincidência entre os interesses dos membros do

grupo, categoria ou classe e o objeto da demanda), a relevância e a extensão social

do objeto da demanda coletiva. No que tange aos direitos individuais homogêneos,

além dos requisitos ora mencionados ressalta-se a necessidade de aferição da

predominância das questões comuns sobre as individuais, assim como a utilidade da

tutela coletiva no caso concreto. Os requisitos da pré-constituição da ação coletiva

poderão ser dispensados pelo juiz quando houver manifesto interesse social

evidenciado pela dimensão do dano ou pela relevância do bem jurídico a ser

protegido, conforme preceitua o §1º, do artigo 3º do Código Modelo.

A opção pelo amplo controle pelo juiz (ope judicis) da representatividade

adequada (adequacy of representation) mediante a constatação da credibilidade, da

capacidade, do prestígio e da experiência do legitimado é algo incompatível com o

sistema constitucional brasileiro. Tal afirmação se justifica no sentido de que o

controle da representatividade adequada não é uma atribuição exclusiva do juiz.

Todos os legitimados e interessados difusos e coletivos tem legitimidade para

fiscalizar, controlar e auxiliar as atividades desenvolvidas pelo representante

adequado no contexto da relação processual que tem como objeto a pretensão

coletiva.

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233

No rol dos legitimados descritos no artigo 3º, os autores do Código Modelo

optaram pela legitimidade concorrente200 e incluíram, além dos sujeitos e das

instituições classicamente reconhecidas como partes legitimas a propositura de

ações coletivas (tal como expresso no artigo 5º da Lei 7.347/85), ocorreu uma

significativa inovação ao reconhecer a possibilidade de propositura de uma ação

coletiva por qualquer pessoa física, membro do grupo, da categoria ou da classe na

defesa de direitos difusos e dos direitos individuais homogêneos de que seja titular o

membro do grupo, o grupo, a categoria ou a classe de pessoas ligadas por

circunstâncias de fato.

Considerando-se a tradição legislativa brasileira, que sempre optou pelo

sistema representativo quanto à sistematização das normas jurídicas do processo

coletivo, pode-se afirmar que o reconhecimento de qualquer interessado difuso ou

coletivo como titular do direito de propor uma ação coletiva, certamente significa a

tentativa de inserção do sistema participativo no ordenamento jurídico brasileiro.

Trata-se de uma tímida iniciativa, até porque o conceito de participação no contexto

das ações coletivas não se limita apenas à possibilidade de serem autores da ação

proposta, mas, acima de tudo, de se reconhecer como parte legitimada à

participação ampla e isonômica do debate de todas as questões levantadas

processualmente. Trata-se da oportunidade de influir no julgamento da pretensão

coletiva e, assim, construir participadamente o mérito.

Admitir o Ministério Público como o único legitimado a propor as ações

coletivas é legitimar a violação do principio da isonomia processual, do contraditório,

da ampla defesa e do devido processo legal mediante a supressão da participação

de todos os interessados difusos e coletivos na construção participada do mérito

coletivo.

O artigo 4º foi criado com a finalidade de instituir a maior amplitude possível à

efetividade da tutela jurisdicional. Adotou-se o principio da máxima amplitude da

tutela jurisdicional, que estabelece que, a fim de assegurar a defesa e a ampla

proteção jurídica dos direitos coletivos e difusos são admissíveis todas as ações

capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela. Para Gregório de Assagra de

Almeida o respectivo princípio já se encontra consagrado na legislação brasileira nos

200 O primeiro ponto positivo é a previsão de legitimação ativa concorrente e pluralista (art. 3º), o que já estava consagrado no sistema jurídico brasileiro (arts. 129, §1º; 103; 125, §2º, todos da CF/88; art. 5C da Lei 7.347/85; art. 82 da Lei 8.078/90, entre outras disposições legais), que serviu de inspiração do dispositivo (ALMEIDA, 2007, p. 89).

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artigo 83 de Lei 8078/90, artigo 212 da Lei 8069/90 e artigo 82 da Lei 10.741/2003,

correspondente ao direito fundamental a uma tutela jurisdicional adequada (2007, p.

89).

Ao longo de todo o capitulo II os autores do Código Modelo discorrem sobre

as tutelas processuais especificas, ressaltando, inicialmente, a possibilidade de o

juiz conceder, a requerimento da parte, tutela antecipada reversível a fim de

resguardar imediatamente a proteção de bens jurídicos de natureza coletiva ou

difusa, podendo tal decisão ser, a qualquer tempo, revogada de forma

fundamentada. Temos, ainda, a possibilidade da concessão de tutela antecipada de

parte incontroversa da pretensão após a oportunização do contraditório, momento

em que teremos a coisa julgada da decisão que reconheceu a parte incontroversa

da pretensão e o prosseguimento da relação processual quanto aos demais pontos

ou as demais questões postas na demanda. Nesse ponto especifico do Código-

Modelo é importante refletir acerca da operacionalização da construção participada

do mérito processual, tendo como paradigma os princípios do contraditório e da

ampla defesa.

O julgamento antecipado do mérito da pretensão coletiva atinente a questões

incontroversas da demanda não poderá se dar de forma a cercear ou a limitar a

participação dos interessados quanto à construção do provimento. Mesmo diante de

um direito que reconhecidamente pertencente aos autores da ação e aos titulares da

pretensão deduzida, o contraditório e a oportunidade de debate e de construção

participada do mérito deve ser isonomicamente assegurada a todos os interessados.

Quanto às tutelas especificas de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz

deverá determinar todas as providências que assegurem o resultado prático

equivalente ao adimplemento, fixando multa diária em valor suficiente a potencializar

os efeitos práticos do provimento, podendo, caso seja necessário, modificar o valor

ou a periodicidade da multa se verificar que a mesma se tornou insuficiente ou

excessiva. Novamente é de suma importância esclarecer que o valor das astreintes

não poderá ser fixado por critérios aleatórios estabelecidos pelo julgador, até porque

todas as pessoas e os sujeitos hábeis a sofrer os efeitos jurídicos da multa diária

deverão ter a oportunidade de imiscuir-se no debate dos critérios utilizados para a

sua fixação, podendo-se argumentar jurídico-faticamente no sentido de avaliar se o

valor estabelecido realmente é suficiente a garantir a implementação do principio da

efetividade processual (resultado prático) quanto à tutela coletiva.

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È relevante esclarecer que a indenização por perdas e danos poderá ser

juridicamente reconhecida sem prejuízo da multa (astreintes), até porque ambas tem

naturezas jurídicas distintas: as astreintes são multas diárias de caráter coercitivo

que visa potencializar (não garantir) o cumprimento de uma obrigação de fazer ou de

não fazer; já a condenação por perdas e danos (danos materiais, danos morais e

lucros cessantes) tem no Brasil caráter compensatório-pedagógico (não punitivo),

tendo em vista que busca reestabelecer, ao máximo, os prejuízos advindos de

condutas praticadas em desfavor dos direitos coletivos e difusos.

O §4º do artigo 6º do Código Modelo estabelece que a obrigação de fazer ou

não fazer somente poderá ser convertida em perdas e danos se por elas optar o

autor, se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático

correspondente. Para Gregório Assagra de Almeida tal previsão não é boa técnica,

além de configurar evidente hipótese de incompatibilidade com a principiologia que

rege o direito processual coletivo, tendo em vista que o autor da ação coletiva por

estar defendendo os direitos de toda uma coletividade de pessoa não teria

legitimidade para abrir mão da tutela especifica e, assim, optar pela conversão em

perdas e danos (ALMEIDA, 2007, p. 94). Trata-se de posicionamento coerente

juridicamente, mas que poderia ser repensado sob o ponto de vista democrático-

constitucional se houvesse uma efetiva notificação e publicidade adequada, ou a

realização de uma audiência pública em que os interessados difusos e coletivos

pudessem se manifestar acerca da possibilidade de conversão da tutela específica

em perdas e danos. Na realidade, o recomendável seria que tal conversão em

perdas e danos ocorresse somente quando fosse impossível a tutela especifica ou a

obtenção do resultado prático equivalente, e desde que todos os interessados

difusos e coletivos fossem inseridos no debate e na construção participada do

provimento. O artigo 84, §1º do Código de Defesa do Consumidor estabelece a

mesma possibilidade trazida pelo §4º do artigo 6º do Código Modelo.

O produto das indenizações voltadas a compensar os prejuízos provocados

ao bem juridicamente considerado será revertido ao Fundo dos Direitos Difusos e

Individuais Homogêneos, de cuja gestão participará o Ministério Publico, juízes e

representantes da comunidade. No §1º do artigo 8º do Código Modelo temos a

previsão de que o Fundo deverá ser notificado da propositura de toda ação coletiva,

podendo intervir no processo coletivo em qualquer tempo e grau de jurisdição para

demonstrar a inadequação do representante adequado ou auxiliá-lo na tutela dos

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direitos do grupo, categoria ou classe. Em situações pontuais, o juiz poderá

especificar, de forma fundamentada, a destinação da indenização e as providências

a serem tomadas para a reconstituição dos bens lesados, podendo indicar a

realização de atividades voltadas a minimizar a lesão ou a evitar que se repita.

A legitimidade de controle do debate processual, assim como da atividade do

representante adequado, pertence a todos os interessados difusos ou coletivos que

demonstrarem a possibilidade de sofrer os efeitos jurídicos do provimento estatal.

Esse mesmo raciocínio jurídico se estende à gestão do Fundo dos Direitos Difusos e

Individuais Homogêneos, que deve se desenvolver a partir do sistema participativo

(e não apenas sob a égide do sistema representativo, tal como pretende

ideologicamente os autores do Código-Modelo).

O artigo 10 dispõe sobre o pedido e a causa de pedir, estabelecendo que nas

ações coletivas serão interpretados extensivamente, permitindo-se a emenda da

inicial para alterar ou ampliar o objeto da demanda e também a alteração do objeto a

qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, desde que realizada de boa-fé,

que não apresente prejuízo injustificado para a parte contrária e o contraditório seja

preservado.

Certamente a finalidade do presente dispositivo é garantir a proteção jurídica

mais ampla possível no que tange aos direitos coletivos e difusos, porém, sob o

ponto de vista processual a sua aplicabilidade deve vir acompanhada da

observância dos princípios do contraditório, da ampla defesa, do devido processo

legal e, especialmente, da isonomia processual. Qualquer alteração do objeto do

debate processual da ação coletiva pressupõe assegurar a oportunidade efetiva de

manifestação de todos os interessados, que deverão ser adequadamente

notificados. Quando a análise do mérito da demanda tiver ensejado o julgamento

procedente do pedido inicial, eventual alteração ou ampliação do pedido ou da

causa de pedir poderá ocorrer desde que sejam preservados os bens jurídicos e os

direitos coletivos e difusos anteriormente reconhecidos em decisão judicial.

O artigo 11 do Código Modelo traz a audiência preliminar como uma das

fases do procedimento, cuja finalidade é a tentativa de conciliação, sem prejuízo de

sugerir outras formas adequadas de solução do conflito, como a mediação, a

arbitragem e a avaliação neutra de terceiro (a avaliação neutra de terceiro será

obtida em prazo fixado pelo juiz, é sigilosa, não vinculante e tem a finalidade

exclusiva de orientar as partes na tentativa de composição amigável do conflito).

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237

Preservada a indisponibilidade do bem jurídico coletivo, as partes poderão transigir

sobre o modo de cumprimento da obrigação.

A grande discussão jurídica que permeia a realização da conciliação em

ações coletivas diz respeito à legitimação exclusiva dos sujeitos (juiz, Ministério

Publico e representante adequado) quanto à resolução consensual do conflito

coletivo. A legitimidade da conciliação condiciona-se à participação dos interessados

no debate da pretensão. Para isso, torna-se necessária a notificação prévia dos

sujeitos interessados a fim de realizar uma audiência pública em que sejam

ponderadas e debatidas todas as questões relevantes à realização de uma possível

conciliação na ação coletiva. Realizar uma conciliação sem oportunizar

processualmente o debate das peculiaridades da pretensão é reproduzir um modelo

de processo coletivo incompatível com o Estado Democrático de Direito.

No §1º do artigo 12 foi adotada a teoria da distribuição dinâmica do ônus da

prova201, que atribui o ônus de provar à parte (qualquer interessado na pretensão

coletiva) que detiver conhecimentos técnicos ou informações especificas e

relevantes sobre os fatos ou maior facilidade em sua demonstração. Em virtude da

natureza coletiva da pretensão, todos os interessados têm o dever de colaborar com

a dinâmica da produção de provas. Mesmo que os interessados não tenham sido os

sujeitos que produziram as provas carreadas aos autos, não se pode excluir a sua

legitimidade quanto à análise e ao debate da coerência da prova produzida com o

conteúdo da pretensão coletiva deduzida.

O juiz tem autonomia para determinar o que necessário for para obter

elementos probatórios indispensáveis para a sentença de mérito, podendo requisitar

perícias à entidade pública cujo objeto estiver ligado à matéria em debate; se mesmo

assim a prova não puder ser obtida, o juiz poderá ordenar sua realização a cargo do

Fundo de Direitos Difusos e Individuais Homogêneos. Toda essa liberdade do

julgador no que tange à autonomia de condução da relação processual, a fim de

buscar a implementação do principio da efetividade (resultado prático do processo

coletivo), não poderá ser vista como instrumento para limitar a participação dos

sujeitos interessados na construção do provimento jurisdicional. O grande desafio do

201 A adoção da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova prevista no §1º do art. 12 do Código-Modelo, cuja orientação pauta-se no sentido de que incumbe à parte que detiver conhecimentos técnicos ou informações sobre os fatos, ou maior facilidade de demonstração, também é novidade sem precedente expresso na legislação brasileira, é ponto positivo que representa necessária mobilidade do sistema jurídico (ALMEIDA, 2007, p. 90).

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julgador é exercer suas atribuições de gestor do processo coletivo sem afastar ou

suprimir o direito do interessado difuso e coletivo ingerir-se no contexto do debate

amplo da pretensão.

Sabe-se que a finalidade da produção de provas é viabilizar a aplicabilidade

do principio da fundamentação das decisões judiciais, com possível conseqüência

de reconstituição dos fatos alegados em juízo. A possibilidade de atuação de oficio

do magistrado no contexto da produção probatória justifica-se pela relevância do

bem jurídico que se pretende proteger através do processo coletivo, porém, a

integração de todos os interessados na produção, na obtenção e na análise das

provas judiciais torna-se necessário para assegurar a legitimidade democrática de

construção participada do provimento.

Ao determinar a produção de oficio de uma prova o juiz obrigatoriamente

deverá garantir a observância do principio do contraditório, conforme preceitua o §3º

do artigo 12. Se durante a fase instrutória surgir significativa modificação de fato ou

de direito relevante para o julgamento da causa, o juiz poderá rever, em decisão

fundamentada, a distribuição do ônus da prova e, se necessário for, conceder novo

prazo para a produção de novas provas, observado o contraditório com relação à

parte contrária.

A dinâmica do processo coletivo no que atine à produção de provas traz

maior mobilidade de análise detalhada da pretensão deduzida ao permitir o

envolvimento de todas as pessoas possíveis e interessadas na construção do mérito

processual. Trata-se de dispositivo legal que vem corroborar no direito brasileiro com

o modelo de processo coletivo democrático-constitucionalizado.

Outra novidade trazida pelo Código Modelo encontra-se no artigo 13,

parágrafo único, que dispõe a possibilidade de julgamento antecipado do mérito de

parte da demanda quando não houver necessidade de produção de prova, sem que

isso importe em prejulgamento do litígio que continuar pendente de decisão,

prosseguindo-se a instrução processual com relação aos demais pedidos. O

principio da efetividade processual é o fundamento regente desse dispositivo,

voltado a trazer maior dinamicidade e resultado prático para o processo coletivo.

Ao reconhecer o julgamento antecipado de parte do mérito da lide certamente

o legislador também reconheceu a possibilidade de execução provisória da decisão,

a fim de garantir a produção de seus efeitos jurídicos em caso de resistência ou de

recusa injustificada da parte contrária quanto ao seu cumprimento.

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O artigo 14 traz a legitimação subsidiária de o Ministério Público requerer a

liquidação e a execução de sentença condenatória proferida em processo coletivo,

em caso de inércia da parte interessada. Importante esclarecer que qualquer parte

juridicamente afetada pela decisão tem legitimidade para pleitear a sua liquidação e

a sua execução provisória ou definitiva. Em caso de inércia por parte dos

interessados, o Ministério Público assumiria o dever de providenciar a liquidação e a

execução, em face da natureza jurídica coletiva do provimento e da indisponibilidade

do bem jurídico em questão, sem a exclusão definitiva de intervenção dos sujeitos

interessados a qualquer tempo e grau de jurisdição.

Com relação às custas e aos honorários advocatícios o Código Modelo, no

artigo 15, foi categórico ao prever a gratuidade de custas, emolumentos, honorários

periciais e quaisquer outras despesas, salvo comprovada má-fé, em que o autor da

ação e os demais responsáveis serão condenados ao pagamento das despesas

processuais, dos honorários advocatícios e do décuplo das custas processuais, sem

prejuízo da responsabilidade por perdas e danos.

Não podemos nos esquecer que a má-fé no direito é algo que precisa ser

claramente demonstrado, visto que nunca poderá ser presumida. No âmbito

processual a má-fé se comprova pela violação do principio da lealdade processual,

que se materializa no momento em que o processo é utilizado como instrumento de

violação de direitos, de prática de ilicitudes, de concretização de danos a terceiros e

de utilização de qualquer medida protelatória ou procrastinatória praticada no

sentido de obstaculizar o reconhecimento e o exercício de direitos pela parte

contrária.

A litigância de má-fé e o ato atentatório ao exercício da jurisdição somente

poderão ser reconhecidos processualmente no momento em que for demonstrado o

elemento volitivo do agente, ou seja, o dolo ou o querer intencional de se utilizar

indevida e ilegitimamente do processo como instrumento de violação de direitos.A

comprovação dos fatos condiciona-se a observância do contraditório e da ampla

defesa, princípios corolários da efetiva participação dos interessados na construção

do provimento estatal de natureza coletiva.

A pressuposição da má-fé processual, sem o devido cuidado com relação à

comprovação efetiva do alegado, poderá ser visto como uma estratégia utilizada a

fim de deslegitimar o exercício livre e constitucional do direito de ação e de amplo

acesso ao Judiciário, principalmente no que diz respeito com o direito de debate

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amplo do mérito processual por todos os interessados difusos e coletivos na

pretensão deduzida. O dogma da presunção da má-fé processual não pode ser

indiscriminadamente utilizado com a finalidade de limitar o amplo acesso que todos

os interessados têm ao poder Judiciário.

Considera-se um relativo avanço legislativo a previsão do artigo 16 do

Código-Modelo, que determina que o juiz deverá dar prioridade no processamento e

no julgamento das ações coletivas, quando haja manifesto interesse social

evidenciado pela dimensão do dano ou pela relevância do bem jurídico a ser

protegido. A primeira indagação que podemos levantar é a seguinte: a prioridade

seria para todas as ações coletivas, levando-se em consideração a pressuposição

da relevância jurídica de todos os bens que integram o objeto de qualquer ação

coletiva? Possivelmente podemos afirmar que todas as ações coletivas teriam

prioridade no processamento, em virtude da maior relevância do seu objeto se

comparado com as demais pretensões de cunho individual.

O simples fato de identificarmos a natureza coletiva da pretensão já é

suficiente para assegurar-lhe prioridade processual. Nesse mesmo sentido

manifesta-se Gregório Assagra de Almeida: “[...] a ação coletiva é de interesse social

e, assim, deve ter prioridade na tramitação independentemente da aferição de

manifesto interesse social evidenciado pela dimensão do dano ou pela relevância do

bem jurídico a ser protegido” (2007, p. 90).

Outro ponto relevante do anteprojeto original e do Código-Modelo é a

interrupção da prescrição das pretensões individuais e transindividuais conexas à

pretensão deduzida, a partir da citação válida ocorrida no processo coletivo. Trata-se

de um meio adequado de preservação do debate jurídico dos direitos conexos à

pretensão coletiva, caso os efeitos jurídicos da decisão final proferida na ação

coletiva não venham a atender as expectativas dos autores das ações individuais ou

de outras ações coletivas.

A previsão da execução provisória no artigo 18 vem atender as hipóteses de

julgamento antecipado de parte do mérito da pretensão (parte incontroversa) e de

recebimento de recursos apenas no efeito devolutivo. A execução provisória admite

a prática de atos que importem a alienação do domínio e o levantamento do

deposito em dinheiro, correrá por conta e risco do exeqüente, que responderá pelos

eventuais prejuízos causados ao executado, podendo o juiz suspendê-la quando

dela puder resultar lesão grave e de difícil reparação. A legitimidade democrática da

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execução de um título que materializa um direito coletivo ou difuso pressupõe o

respeito ao direito de qualquer sujeito juridicamente interessado debater o mérito

processual da pretensão executiva, ressaltando-se que o mérito processual nas

ações coletivas materializar-se-á por meio da participação dos interessados difusos

e coletivos na construção do provimento jurisdicional (estatal).

O artigo 20 regula o cabimento da ação coletiva de responsabilidade civil, ou

seja, trata-se de uma ação que poderá ser proposta por um ou mais legitimados, em

nome próprio e no interesse das vitimas ou seus sucessores, cuja finalidade é o

reconhecimento da responsabilidade civil do demandado por danos individualmente

sofridos.

A finalidade inicial da respectiva ação é apurar se existe ou não a

responsabilidade e o dever de indenizar do demandado, tendo em vista que será na

fase de liquidação de sentença que poderemos quantificar individualmente a

responsabilidade do condenado pelos danos sofridos por cada sujeito

especificamente (a liquidação e a execução da sentença poderão ser promovidas

pela vítima e seus sucessores, assim como pelos legitimados à ação coletiva).

Mesmo sendo a ação coletiva proposta por um sujeito individualmente ou por um

grupo de sujeitos juridicamente interessados não se pode excluir a possibilidade de

intervenção direta dos demais interessados em participar do debate jurídico da

pretensão coletiva deduzida em juízo.

O juiz ordenará a citação do réu e a publicação do edital oficial a fim de que

os interessados possam intervir no processo como assistentes ou coadjuvantes. Da

mesma forma, temos a notificação dos órgãos e das entidades de defesa dos

direitos difusos e coletivos, para informá-los da existência da demanda coletiva e de

seu trânsito em julgado. A ampla publicidade da existência da ação coletiva é

fundamental para garantir a participação dos interessados na construção do

provimento.

Sempre que tivermos uma decisão final que julgou procedente os pedidos,

certamente os seus efeitos jurídicos se estenderão para todas as pessoas que

demonstrarem possuir interesse na pretensão coletiva reconhecida judicialmente.

Em caso de procedência do pedido, a condenação poderá ser genérica, fixando a

responsabilidade do demandado pelos danos causados e o dever de indenizar

(sempre que possível, o juiz calculará o valor da indenização individual devida a

cada membro do grupo na própria ação coletiva). Quando o valor dos danos

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individuais sofridos pelos membros do grupo for uniforme, a sentença coletiva

indicará o valor ou a fórmula de cálculo da indenização individual (em caso de

insatisfação com o valor individual da indenização a parte interessada terá a

legitimidade de propositura de uma ação individual de liquidação).

Acontece que, em caso de improcedência do pedido de indenização numa

ação coletiva, os efeitos da decisão de mérito somente poderão se estender sobre

aquelas pessoas que efetivamente participaram da demanda ou tiveram a

oportunidade de exercer o contraditório e a ampla defesa. È por isso que a

observância do principio da publicidade, no presente caso, é corolário dos princípios

do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal. Somente será possível

auferir se os interessados poderão ou não sofrer os efeitos da decisão se tiver sido

amplamente divulgado o objeto da ação coletiva por meio de edital, notificações

adequadas, imprensa, internet e redes sociais (facebook, twitter, Orkut etc).

A realização de audiências públicas é uma excelente e barata alternativa para

garantir o debate amplo da pretensão (o uso das redes sociais é uma ferramenta

importante nos dias de hoje para assegurar ampla divulgação da data, do horário e

do local onde será realizada a audiência pública).

O §3º do artigo 21 estabelece que, em caso de ação coletiva de

responsabilidade civil, os intervenientes não poderão discutir suas pretensões

individuais no processo coletivo de conhecimento, desde que lhes tenham sido

assegurada a oportunidade de influir decisivamente na construção do provimento

final no que tange à existência ou não do dever legal do demandado indenizar.

Intervenções que não garantem o amplo debate da pretensão equiparam-se àquelas

pessoas que não tiveram ou não puderam participar do processo. Nesse caso, não

há que se falar em extensão dos efeitos da decisão judicial sobre aquelas pessoas

excluídas do espaço processual (a exclusão ocorrerá quando não for assegurado o

direito de participação ao interessado; quando os argumentos levantados pelo

interessado forem ignorados quando do julgamento do mérito da demanda, ou seja,

quando os princípios do contraditório e da ampla defesa não forem observados).

A liquidação da sentença proferida na ação coletiva de responsabilidade civil

poderá ser requerida no foro de domicilio do liquidante, a quem caberá provar a

extensão do dano, o nexo de causalidade e o montante da indenização. Trata-se de

prerrogativa voltada a implementar o principio da isonomia processual, ou seja, o

direito de igualdade do liquidante participar da liquidação (normalmente por artigos,

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em que a produção e a alegação de fatos novos torna-se imprescindível) a fim de

construir o provimento jurisdicional que quantificará o valor do dano devido pelo

demandado.

A execução poderá ser promovida de forma individual ou coletiva, conforme o

conteúdo da sentença condenatória. Já o pagamento das indenizações ou o

levantamento do depósito será feito pessoalmente aos beneficiários. A legitimidade

democrática do provimento jurisdicional decorrente da liquidação e da execução de

sentença coletiva fica adstrita a igual oportunidade de participação do

liquidante/liquidado e do exeqüente/executado quanto à construção do mérito

processual.

Admite-se a liquidação e a execução pelos danos globalmente causados

quando, decorrido o prazo de um ano sem a habilitação de interessados, poderão os

demais legitimados (Ministério Público, entes da Administração Pública Direta e

Indireta, grupos, categorias, classes ou associações) promover a liquidação e a

execução coletiva da indenização devida pelos danos causados. Todas as provas e

meios de provas lícitos e legitimamente admitidos serão idôneos o suficientes para

auferir o valor da indenização de acordo com o dano globalmente causado,

ressaltando-se que, em caso de impossibilidade de produção de provas, o valor da

indenização será fixado por arbitramento em razão da extensão ou da complexidade

do dano.

A fim de quantificar monetariamente o valor do dano reconhecido na ação

coletiva, o julgador deverá se utilizar de critérios objetivos (não subjetivos e

metajurídicos) e demais provas produzidas na fase cognitiva e que orientaram a

decisão fundamentada de condenação da parte demandada pela indenização por

perdas e danos.

Em caso de concurso de crédito o valor da indenização tem preferência no

pagamento, tal como preceitua o caput do artigo 28 do Código Modelo. O legislador

não esclareceu em qual ordem de preferência o crédito coletivo será colocado, tendo

em vista a existência de preferência de créditos tributários e trabalhistas na

legislação pátria vigente. Pode-se afirmar preliminarmente que, em virtude do caráter

e da natureza coletiva do conteúdo da decisão judicial, vislumbra-se a prioridade do

crédito a fim de resguardar a isonomia processual, qual seja, o atendimento

inicialmente dos direitos de uma coletividade para, somente posteriormente,

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vislumbrar-se a proteção dos direitos de cunho individual e dos interesses de

natureza essencialmente privado.

. Não obstante o Código-Modelo contribuir substancialmente para o debate

das principais questões que envolvem o processo coletivo no Brasil, é muito criticado

pelos estudiosos que afirmam não se tratar de um código de caráter inovador, tal

como preceitua Gregório Assagra de Almeida202.

A coisa julgada, a conexão e a litispendência são outros temas que possuem

relação direta com a problemática do mérito processual compreendido a partir do

sistema participativo. Em caso de conexão203 e de litispendência204 (a litispendência

no processo coletivo poderá ocorrer mesmo sendo diferente o legitimado ativo e a

causa de pedir) deverá ser assegurado amplamente a todos os interessados difusos

e coletivos (de todas as ações ora propostas e em andamento) o direito de participar

do amplo debate isonômico da pretensão, ou seja, não existe qualquer privilégio ou

prioridade do sujeito que inicialmente propôs a ação coletiva antes dos demais

interessados com relação ao debate e a construção participada do mérito.

202 [...] O Código-Modelo analisado não traz essa inovação em relação ao sistema jurídico brasileiro, que até serviu como base para sua elaboração. Para outros países, ele poderá realmente representar uma inovação, mas para o Brasil não. Os pontos positivos apontados antes, que podem ser facilmente extraídos da principiologia constitucional do direito processual coletivo, não são suficientes para eliminar os defeitos estruturais e pontos pontuais negativos, não obstante seja louvável a iniciativa. O problema estrutural vislumbrado decorre da tímida disposição-extensão do Código-Modelo, composto somente de 41 artigos, os quais são insuficientes para o tratamento adequado dessa área do Direito de tão grande impacto e importância social. Não que desejemos uma codificação com milhares de dispositivos. Não, o que entendemos como razoável é que seja dado tratamento adequado a todos os institutos relacionados com a projeção jurisdicional dos interesses ou direitos massificados, o que não ocorre no Código-Modelo. Na forma da sistematização em questão, o Código-Modelo não rompe com as amarras individualistas do direito processual civil, pois não disciplina todos os institutos estruturais do direito processual e ainda prevê a aplicação subsidiária do CPC e legislação especial pertinente sem dispor de regras interpretativas de controle e de limitação dessa aplicabilidade. Assim, não há, por exemplo, no Código-Modelo, disposição sobre a jurisdição coletiva, sobre a defesa no processo coletivo, sobre os pressupostos processuais, sobre a intervenção de terceiros etc. (ALMEIDA, 2007, p. 91). 203 Se houver conexão entre as causas coletivas, ficará prevento o juízo que conheceu da primeira ação, podendo ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar a reunião de todos os processos, mesmo que nestes não atuem integralmente os mesmos sujeitos processuais (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 431). 204 A primeira ação coletiva induz litispendência para as demais ações coletivas que tenham por objeto controvérsia sobre o mesmo bem jurídico, mesmo sendo diferente o legitimado ativo e a causa de pedir. A ação coletiva não induz litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada coletiva (art. 33) não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da ciência efetiva da ação coletiva. Cabe ao demandado informar o juízo da ação individual sobre a existência de ação coletiva com o mesmo fundamento, sob pena de, não o fazendo, o autor individual beneficiar-se da coisa julgada coletiva mesmo no caso da demanda individual ser rejeitada (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 431).

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O Código-Modelo é expresso ao afirmar que a ação coletiva não induz

litispendência para as ações individuais, ressaltando-se a obrigatoriedade de

suspensão da ação individual (no prazo de 30 dias a contar da ciência da ação

coletiva) para que os seus autores sejam beneficiados pelos efeitos da coisa julgada

coletiva. É dever do demandado na ação coletiva informar o juízo da ação individual

sobre a existência da ação coletiva com o mesmo fundamento; a sua inércia

oportunizará ao autor da ação individual o direito de se beneficiar dos efeitos da

coisa julgada coletiva, mesmo que a demanda individual seja rejeitada.

Verifica-se que os efeitos da coisa julgada coletiva não se estenderão para o

autor da ação individual somente se houver a formalização do pedido de suspensão

da ação individual, ressaltando-se que é dever do demandado na ação coletiva

formalizar a comunicação ao juízo da ação individual acerca da existência de ação

coletiva em andamento com o mesmo fundamento.

Depois da comunicação oficial do juízo da ação individual pelo demandado na

ação coletiva, o seu autor terá o prazo de 30 (trinta) dias para requerer a suspensão

da ação individual, ciente de que a inércia o impedirá de se beneficiar dos efeitos

jurídicos da coisa julgada coletiva. Caso o demandado na ação coletiva fique inerte e

não comunique o juízo da ação individual, o autora da ação individual terá o pleno

direito de se beneficiar dos efeitos da coisa julgada coletiva, tendo em vista que não

teve assegurada juridicamente a possibilidade de formalizar o pedido de suspensão

da ação.

Pela análise do projeto legislativo em questão a comunicação efetiva das

partes acerca do conteúdo dos atos processuais e do andamento do procedimento é

imprescindível para garantir a participação dos interessados quanto à construção

democrática do provimento jurisdicional. Isso está evidente quanto aos efeitos da

coisa julgada. A regra geral é que todos os interessados que tiveram a oportunidade

de participar da construção do mérito processual sofram os efeitos da coisa julgada

coletiva.

Aqueles interessados excluídos da construção participada do mérito

processual têm legitimidade de se oporem aos efeitos da coisa julgada coletiva,

especialmente em caso de improcedência do pedido inicial da ação coletiva por

insuficiência de provas, caso em que não teremos o efeito erga omnes por admitir

que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento e

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valendo-se de nova prova205. A legitimidade do efeito erga omnes da coisa julgada

coletiva está diretamente relacionada com a problemática da participação dos

interessados difusos e coletivos na construção do provimento jurisdicional.

Os legisladores são enfáticos ao afirmarem o efeito erga omnes da coisa

julgada coletiva em caso de procedência do pedido envolvendo direitos individuais

homogêneos, podendo os interessados difusos e coletivos proceder a liquidação e a

execução da sentença. Em se tratando de interessados que tenham sido excluídos

da construção do provimento que reconheceu o direito pretendido na fase cognitiva,

não se pode negar a possibilidade de debate dos fundamentos da decisão na fase

de liquidação (especialmente a liquidação por artigos), considerando-se a

necessidade de legitimação do ato decisório quanto aos efeitos jurídicos estendidos

com relação todos os sujeitos interessados. Isso implicará na possibilidade de

revisitação dos fundamentos fático-jurídicos da pretensão deduzida já na fase de

liquidação, o que não exclui a propositura de nova ação a fim de discutir pretensão

conexa àquela anteriormente decidida.

A coisa julgada não afeta decisões judiciais proferidas em relações jurídicas

continuativas, uma vez que se sobrevier modificação do estado de fato ou de direito,

a parte interessada poderá pedir a revisão do que foi estatuído por sentença. O

mérito processual construído numa determinada ação coletiva não vincula processos

coletivos vindouros quando houver a modificação da pretensão deduzida em juízo

(causa de pedir). O advento de uma nova pretensão coletiva viabiliza a possibilidade

de propositura de uma nova ação coletiva, sem que a coisa julgada anterior venha a

ser afetada. Isso demonstra claramente a legitimidade dos interessados participarem

do debate amplo das questões de fato e de direito que integram a nova pretensão

coletiva e, por conseguinte, construírem de forma participada o mérito processual

coletivo.

O Código-Modelo de Processos Coletivos do Instituto Ibero-Americano de

Direito Processual certamente trouxe questões relevantes à sistematização do direito

processual coletivo, porém, não esgotou e, tampouco, avançou substancialmente no 205 Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova. Mesmo na hipótese de improcedência fundada nas provas produzidas, qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, no prazo de (2) dois anos contados da descoberta de prova nova, superveniente, que não poderia ser produzida no processo, desde que idônea, por si só, para mudar seu resultado (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 431).

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estudo do tema ao se omitir especialmente sobre a criação de um procedimento que

viabilize a implementação do modelo democrático de processo coletivo. Dentre as

inúmeras questões omitidas no projeto podemos ressaltar: a) ausência de

regulamentação específica do exercício da jurisdição coletiva; b) faltou aprimorar os

mecanismos da participação popular dos sujeitos juridicamente interessados na

construção do provimento; c) houve omissão quanto ao procedimento das ações

coletivas que tem como objeto a discussão da constitucionalidade de lei, ou seja,

todo o Código-Modelo foi estruturado em cima de uma metodologia de processo

coletivo que se desenvolve casuisticamente; d) inexistem dispositivos específicos

regulamentando o procedimento de construção participada do mérito processual nas

ações coletivas; e) o legislador perdeu a oportunidade de estabelecer critérios

jurídico-legais que viabilizam a utilização das audiências publicas, sempre que for

necessária a instauração de um amplo debate de pretensões coletivas antes de ser

proferida definitivamente a decisão cujos efeitos jurídicos se estenderão de forma

erga omnes.

3.3.4 A ANÁLISE DO MÉRITO PROCESSUAL COLETIVO NO ANTEPROJETO DO CÓDIGO BRASILEIRO DE PROCESSOS COLETIVOS DA UERJ/UNESA E USP.

Neste tópico, será desenvolvido um estudo analítico do mérito processual em

dois Anteprojetos de Código Brasileiro de Processos Coletivos, quais sejam: a) o

primeiro foi coordenado pelo professor Aloísio Gonçalves de Castro Mendes e

elaborado no ano de 2005 em conjunto nos programas de pós-graduação stricto

sensu em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na

Universidade Estácio de Sá (UNESA); b) o segundo, atualmente em discussão no

Ministério da Justiça, foi coordenado por Ada Pelegrini Grinover e elaborado no

curso de pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da Universidade de

São Paulo, iniciado no ano de 2003 e finalizado em 2006.

Inicialmente é importante esclarecer que os anteprojetos em questão adotam,

em linhas gerais, a estrutura base e as orientações trazidas pelo anteprojeto original

(Antônio Gidi) e pelo Código-Modelo.

O debate do tema atinente ao processo coletivo no Estado Democrático de

Direito é relevante se verificarmos os desdobramentos de todo o estudo dos direitos

coletivos e difusos na Lei 7853 (que dispõe sobre a proteção das pessoas

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portadores de deficiência), na Lei 7913 (traz a proteção dos investidores em

mercados mobiliários), na Lei 8069 (Estatuto da Criança e do Adolescente), na Lei

8429 (regulamenta a moralidade administrativa através da punição da improbidade

administrativa), na Lei 8884 (regula a ordem econômica e a economia popular) e na

Lei 10741 (Estatuto do Idoso).

O anteprojeto formulado na UERJ/UNESA encontra-se estruturado em cinco

partes: I- Das ações coletivas em geral; II- Das ações coletivas para a defesa de

direitos ou interesses individuais homogêneos; III- Da ação coletiva passiva; IV- Dos

procedimentos especiais; V- Disposições Finais. Já o anteprojeto formulado pela

USP foi estruturado em seis capítulos: I- Das demandas coletivas; II- Da ação

coletiva ativa (subseção I – Disposições gerais; Subseção II – Da ação coletiva para

a defesa de interesses ou direitos individuais homogêneos) ; III- Da ação coletiva

passiva originária; IV- Do Mandado de Segurança Coletivo; V- Das ações populares

(Seção I – Da ação popular constitucional; Seção II – Da ação de improbidade

administrativa); VI- Disposições Finais.

3.3.4.1 Do Anteprojeto coordenado por Aluisio Gonça lves de Castro Mendes

O anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, produto de uma

parceria UERJ/UNESA206, representa mais uma tentativa de uniformização da

legislação processual coletiva brasileira a fim de garantir o aprimoramento do acesso

ao Judiciário, a melhoria no exercício da função jurisdicional e a maior efetividade

dos processos coletivos.

Certamente tal proposta legislativa avança no momento em que aprimora o

debate do tema ao admitir a pessoa natural como parte legítima para a defesa dos

direitos difusos, no momento em que estabelece que a competência territorial do

órgão julgador não representará limitação para a coisa julgada erga omnes e

também quando procura regulamentar a banalização da tramitação concomitantes

206 A idéia inicial, voltada para a apresentação de sugestões e propostas para a melhoria do anteprojeto formulado em São Paulo, acabou evoluindo para uma reestruturação mais ampla do texto original, com o intuito de se oferecer uma proposta coerente, clara e comprometida com o fortalecimento dos processos coletivos, culminando com a elaboração de um novo Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, que ora é trazido a lume e oferecido ao Instituto Brasileiro de Direito Processual, aos meios acadêmicos, aos estudiosos e operadores do Direito e à sociedade, como proposta para ser cotejada e discutida (MENDES, 2006, p. 281).

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de processos individuais e coletivos decorrentes de uma mesma circunstância fática

ou de uma mesma relação jurídica base (o ajuizamento de uma ação coletiva

acarretará a suspensão, por trinta dias, de processos individuais que versem sobre o

mesmo direito em questão; dentro do prazo de suspensão, os autores individuais

poderão requerer a continuação do processo individual, sob pena de extinção sem

julgamento do mérito). Os interessados difusos e coletivos que não tiverem ações

individuais em andamento e que não quiserem sofrer os efeitos da coisa julgada

coletiva poderão optar entre o requerimento de exclusão ou o ajuizamento de uma

ação individual no prazo assinalado, hipótese em que equivalerá à manifestação

expressa de exclusão.

Em busca da maior efetividade207 e celeridade processual a sentença

proferida no processo coletivo, sempre que possível, deverá ser líquida, ou seja, o

juiz deverá fixar na sentença do processo coletivo o valor da indenização individual

devida a cada membro do grupo, categoria ou classe. Trata-se de uma tentativa de

ruptura com a sistemática da condenação genérica no processo coletivo e as

subseqüentes liquidações e execuções individuais que acabam sendo bastante

complexas e demoradas. Apenas quando não for possível é que o juiz proferirá uma

sentença ilíquida.

Novamente temos a previsão da ação coletiva passiva, assim como ocorre no

Código-Modelo. Trata-se de ação em que no pólo passivo encontramos uma

coletividade ou um número indeterminado de interessados difusos ou coletivos

supostamente responsáveis pela eventual violação de direitos. Esclarece-se,

preliminarmente, que os efeitos jurídicos da coisa julgada decorrente das ações

coletivas passivas (assim como nas demais) somente atingirão os membros do

grupo, da categoria ou da classe a quem efetivamente foi assegurado o direito de

participação no debate e na construção do mérito processual da ação coletiva em

questão.

Na análise do artigo 1º encontramos expressamente evidenciada a intenção

de o legislador garantir a maior efetividade possível às tutelas processuais,

autorizando expressamente a possibilidade de utilização de todas as espécies de

207 Na esperança que o presente Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos possa representar uma efetiva contribuição para o aprimoramento do acesso à Justiça, para a melhoria na prestação jurisdicional e para a efetividade do processo, leva-se à lume a proposta formulada, submetendo-a aos estudiosos do assunto, aos profissionais do Direito e a toda a sociedade, para que possa ser amplamente analisada e debatida (MENDES, 2006, p. 285)

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ações e de provimentos coletivos capazes de propiciar sua adequada e efetiva

tutela. Novamente verifica-se o descuido do legislador quanto à distinção teórica

dos conceitos de “direito e interesse”, haja vista que temos a sua utilização como

palavras sinônimas ao designar os “interesses ou direitos difusos”, os “interesses ou

direitos coletivos” e os “interesses ou direitos individuais homogêneos”.

O parágrafo único do artigo 2º merece uma reflexão especial ao estabelecer:

“Não se admitirá ação coletiva que tenha como pedido a declaração de

inconstitucionalidade, mas esta poderá ser objeto de questão prejudicial, pela via do

controle difuso”. Inicialmente é importante esclarecer que são considerados espécies

de processos coletivos, em razão da natureza coletiva da pretensão, as ações direta

de inconstitucionalidade, declaratória de constitucionalidade e a argüição de

descumprimento de preceito fundamental. Por isso, a primeira parte do parágrafo

único do artigo 2º deve ser cuidadosamente interpretada, até porque, o próprio

objeto das ações ora mencionadas quase sempre é a discussão da

constitucionalidade em tese ou em abstrato de dispositivos legais que integram a

legislação infraconstitucional no Brasil.

A discussão da constitucionalidade de uma lei em sede de controle difuso ou

concentrado, por si só traz no seu âmago o caráter coletivo da pretensão, a ensejar

o direito de todos os interessados e sujeitos afetados pelos efeitos do provimento

poder participar da construção do mérito processual. Desvincular a ação direta de

inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade da natureza

coletiva da sua pretensão é descaracterizar todo o sistema jurídico do processo

coletivo a fim de reduzi-lo apenas para a noção casuística e concreta.

A prioridade no processamento e no julgamento208 do mérito processual das

ações coletivas é uma opção legislativa que condiz com a ordem constitucional

democrática brasileira, cujo foco de análise central é a proteção jurídica dos bens e

dos direitos pertencentes a toda uma coletividade de pessoas que anseiam pela

concretização dos Direitos Fundamentais previamente previstos no plano

constituinte.

A possibilidade de conexão entre ações coletivas é resolvida pelo critério da

prevenção, com o intuito de uniformizar os critérios e os fundamentos fático-jurídicos

do debate da pretensão deduzida num mesmo juízo competente para a análise do

208 Art. 4º. Prioridade de processamento – o juiz dará prioridade ao processamento da ação coletiva (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 438).

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mérito para, assim, alcançar a segurança jurídica no que tange à expectativa de

evitar decisões judiciais díspares e contraditórias para um mesmo caso concreto.

O artigo 7º traz o instituto da continência com a finalidade de ampliar a

matéria de mérito a ser debatida processualmente, uma vez que, sendo o objeto da

ação posteriormente proposta mais abrangente, o processo ulterior prosseguirá tão

somente para a apreciação do pedido não contido na primeira demanda, devendo

haver a reunião dos processos perante o juiz prevento em caso de conexão.

A representatividade adequada, assim como a relevância social da tutela

coletiva, caracterizada pela natureza do bem jurídico, pelas características da lesão

ou pelo elevado número de pessoas atingidas são requisitos formais e técnicos que

devem ser observados previamente como pressuposto para o adentramento ao

debate das questões meritórias que permeiam o cerne da demanda coletiva.

Houve maior amplitude quanto ao rol dos legitimados ativos à propositura das

ações coletivas, superando-se a clássica e absoluta concepção representativa que

impossibilitava o cidadão de individualmente acionar o Judiciário com o propósito de

buscar a proteção jurídica de um bem indivisível de natureza coletiva ou difusa. A

possibilidade de qualquer pessoa poder propor uma ação coletiva para a defesa de

direitos coletivos e difusos representa um significativo avanço no debate cientifico do

tema, porém, a adoção efetiva do sistema participativo no ordenamento jurídico

brasileiro ocorrerá somente quando, além de poder propor a ação coletiva, a todos

os interessados coletivos e difusos forem resguardado o direito de debate amplo e

isonômico de todas as questões de fato e de direito que integram e compõe a

pretensão coletiva levada ao Judiciário. A construção participada do mérito

processual e a possibilidade do interessado influir na decisão final é corolário do

sistema participativo que é parâmetro regente do modelo democrático-

constitucionalizante de processo coletivo.

Mesmo diante da tentativa de adotar o sistema participativo, restam evidente

nas proposições legislativas inúmeros resquícios do autoritário sistema

representativo como norte para o entendimento do processo coletivo. Manter a

legitimidade de instauração e a presidência do Inquérito Civil Público exclusivamente

nas mãos do Ministério Público, sem permitir a ingerência e a participação dos

interessados difusos, é reafirmar o modelo clássico de processo coletivo. Da mesma

forma pode-se dizer com relação à legitimidade do Ministério Público propor uma

ação coletiva, quando requerido pelo juiz que tomou conhecimento da existência de

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diversos processos individuais correndo contra um mesmo demandado com idêntico

fundamento quanto à pretensão coletiva.

A crítica cientifica referente à legitimidade exclusiva da instituição do

Ministério Público quanto à prática de atos referentes a determinadas questões

inerentes ao processo coletivo (tais como a realização do termo de ajustamento de

conduta e a condução do Inquérito Civil Público) justifica-se no fato da Constituição

brasileira de 1988 ter adotado o sistema participativo (não o sistema representativo)

como fundamento da democratização e da constitucionalização do processo

coletivo. O paradigma para o debate do tema mérito participado no processo coletivo

brasileiro é o modelo constitucional-democrático de processo, o que implica em

assegurar a todos os interessados na pretensão a possibilidade de discussão, no

âmbito do espaço processualizado pelos princípios institutivos (contraditório,

isonomia, ampla defesa, devido processo legal e direito ao advogado).

A postulação de uma pretensão por meio de uma ação coletiva é gratuita, ou

seja, na proposta legislativa em questão temos a dispensa do adiantamento das

custas e demais despesas processuais209. Tal medida visa assegurar maior

amplitude no acesso ao Judiciário, ressaltando-se que a utilização indevida da ação

coletiva e a comprovação (não presunção) da má fé ensejarão ao autor da ação

todos os ônus sucumbenciais (trata-se de hipótese de responsabilidade solidária de

todas as pessoas que comprovadamente tenham se utilizado maliciosamente da

ação coletiva). A fiscalização da legitimidade e da utilização adequada da ação

coletiva é uma prerrogativa assegurada a qualquer sujeito que demonstre interesse

jurídico na pretensão coletiva deduzida.

O juiz permitirá, até a decisão saneadora, a ampliação ou adaptação do

objeto do processo coletivo, desde que realizada de boa-fé e não represente

prejuízo injustificado à parte contrária, à celeridade e ao bom andamento do

209 Art. 13. Custas e honorários – Os autores da ação coletiva não adiantarão custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nem serão condenados, salvo comprovada má-fé, em honorários de advogados, custas e despesas processuais. §1º - Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença condenará o demandado, se vencido, nas custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, bem como em honorários de advogados. §2º. No cálculo dos honorários, o juiz levará em consideração a vantagem para o grupo, categoria ou classe, a quantidade e qualidade do trabalho desenvolvido pelo advogado e a complexidade da causa. §3º. Se o legitimado for pessoa física, sindicato ou associação, o juiz poderá fixar gratificação financeira quando sua atuação tiver sido relevante na condução e êxito da ação coletiva. §4º. O litigante de má fé e os responsáveis pelos respectivos atos serão solidariamente condenados ao pagamento das despesas processuais, em honorários advocatícios e até o décuplo das custas, sem prejuízo da responsabilidade por perdas e danos (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 440).

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processo e o contraditório seja preservado. O disposto no artigo 15 do anteprojeto

demonstra que nas ações coletivas o objeto da demanda não é definido com a

propositura da ação e a apresentação de defesa pela parte demandada, tal como

ocorre classicamente com o processo individual. No processo coletivo o julgador

deverá permitir até a fase saneadora que as partes tragam elementos e questões de

fato e de direito que integrarão a matéria de mérito a ser debatida discursivamente

no âmbito processual.

A construção do mérito processual nas ações coletivas efetivamente ocorrerá

apenas se for oportunizado às partes interessadas trazerem para o processo, até a

fase do saneamento, toda e qualquer questão conexa e vinculada à pretensão

inicialmente deduzida. A regulamentação procedimental e processual da construção

participada do mérito processual é algo necessário para evitar que os processos

coletivos tornem-se uma realidade interminável. A delimitação temporal e jurídica

das ações coletivas pressupõe a condução do procedimento pela sistemática das

preclusões, tal como ocorre no processo civil. A possibilidade de alteração do objeto

da ação coletiva a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição subverteria o

procedimento e certamente comprometeria a resolução e o julgamento célere e

efetivo da pretensão coletiva.

A observância do contraditório nas medidas antecipatórias é conditio sine qua

non da garantia de participação dos interessados difusos e coletivos na construção

de qualquer provimento jurisdicional relacionado com as tutelas processuais difusas

e coletivas. O mesmo ocorre na audiência preliminar, que em virtude

indisponibilidade do bem jurídico coletivo, a realização e a homologação judicial de

acordo por meio da conciliação fica condicionada à efetiva oportunidade dos

interessados construírem participadamente o provimento jurisdicional. É por isso que

se torna necessário dar publicidade a todos os interessados acerca da realização de

eventual conciliação envolvendo a pretensão coletiva, para que todos tenham a

oportunidade de opinar e discutir os fundamentos e a viabilidade ou não de

resolução consensual do mérito da ação coletiva (a audiência pública é uma medida

bastante adequada para tal finalidade).

A não realização de acordo na audiência preliminar acarretará o

prosseguimento do feito e, por isso, o julgador deverá decidir, de forma juridicamente

fundamentada, se a ação tem condições de prosseguir na forma coletiva, se haverá

ou não a necessidade de separar os pedidos em ações coletivas distintas, fixará os

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pontos controvertidos e esclarecerá os encargos das partes quanto à distribuição do

ônus da prova.

A distribuição dinâmica do ônus da prova também foi uma opção no

respectivo projeto de lei, até porque, o ônus da prova incumbirá à parte que detiver

conhecimentos técnicos ou informações especificas sobre os fatos alegados em

juízo. Mesmo tendo sido a prova produzida por uma pessoa, por uma instituição ou

por um grupo de pessoas específico não podemos excluir a possibilidade dos

demais interessados debaterem e analisarem a coerência, a relevância e a utilidade

das provas produzidas no contexto da ação coletiva em andamento. Negar a

possibilidade do debate das provas produzidas é deslegitimar democraticamente a

construção participada do mérito processual.

Nos ditames trazidos pelo principio da congruência210, motivação ou a

fundamentação jurídica de todas as decisões judiciais deverá ser reflexo da matéria

fática e das questões jurídicas suscitadas pelas partes no âmbito processual, ou

seja, a efetiva observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa como

parâmetros jurídicos e lógicos à realização do mérito participado no modelo

constitucional de processo coletivo pressupõe o dever do julgador se manifestar

fundamentadamente sobre todas as alegações, as teses e os temas trazidos pelas

partes no processo coletivo. A construção participada do mérito no processo coletivo

não se compatibiliza com a omissão do julgador em apreciar as teses e os

fundamentos trazidos pelos interessados. Isso não significa dizer que o juiz fica

obrigado a aderir a alguma tese ou argumento fático-jurídico trazido pelos

interessados no processo; caso o julgador venha se posicionar de forma diversa dos

interessados tem o dever legal de se manifestar de forma fundamentada sobre todas

as alegações das partes interessadas. André Cordeiro Leal é assertivo ao discorrer

210 A leitura que devemos fazer do principio da congruência no processo coletivo decorre do dever legal do julgador se manifestar sobre todas as questões fáticas e jurídicas trazidas pelos interessados difusos e coletivos até a fase saneadora, ou seja, é através do principio da congruência que é possível identificar o objeto que obrigatoriamente deverá ser analisado pelo juiz quando do julgamento e da construção participada do mérito processual. Ronaldo Bretas de Carvalho Dias disserta de maneira bastante clara e objetiva acerca do principio da congruência em sua obra intitulada “Processo Constitucional”, conforme a seguir: “O principio da fundamentação das decisões jurisdicionais ainda se perfaz pelo principio da congruência (ou principio da adstrição do juiz ao pedido), este significando correspondência entre o que foi pedido pelas partes e o que foi decidido, ou seja, deve existir correlação entre o objeto da ação ajuizada, que originou o processo, a pretensão, revelada no pedido formulado pela petição inicial, e o objeto da decisão jurisdicional nele proferida. O principio da congruência decorre do duplo dever do órgão julgador de se pronunciar sobre tudo o que as partes pediram e somente sobre o que foi por elas pedido” (DIAS, 2010, p. 134-135).

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sobre a relação existente entre o principio do contraditório e o principio da

fundamentação das decisões judiciais

[...] mais do que garantia de participação das partes em simétrica paridade, portanto, o contraditório deve ser efetivamente entrelaçado com o principio [...] da fundamentação das decisões, de forma a gerar bases argumentativas acerca dos fatos e do direito debatido, para a motivação das decisões [...] decisão que desconsidere, ao seu embasamento, os argumentos produzidos pelas partes no seu iter procedimental será inconstitucional e, a rigor, não será sequer pronunciamento jurisdicional, tendo em vista que lhe faltaria a necessária legitimidade (2002, p. 105).

A fundamentação jurídico-legal-constitucional do provimento jurisdicional a

partir do objeto da ação coletiva é considerada o substrato para o entendimento e a

visualização da construção participada do mérito no processo coletivo democrático.

Isso tudo causa reflexos diretos no entendimento do instituto da coisa julgada, haja

vista que os seus efeitos jurídicos erga omnes somente se estenderão sobre aquelas

pessoas que comprovadamente participaram da construção do provimento. Aquelas

pessoas excluídas do debate do mérito processual poderão sofrer os efeitos da

coisa julgada coletiva apenas se, pela análise do conteúdo da decisão, for possível

visualizar o reconhecimento de direitos e a proteção de bens jurídicos de natureza

indivisível. Não são aptas a sofrer os efeitos da coisa julgada coletiva aquelas

pessoas que não tiveram a oportunidade de participar discursivamente do debate e

da construção do mérito processual em que o pedido inicial foi julgado

improcedente.

Além disso, verifica-se pela análise sistemática do anteprojeto que, em caso

de pretensões envolvendo direitos individuais homogêneos, prevalece a regra

através da qual todos os interessados juridicamente na pretensão deduzida sofrerão

os efeitos da coisa julgada coletiva, salvo aqueles que expressamente tiverem se

manifestado no prazo legal quanto ao pedido de exclusão ou aqueles que

propuseram ou não desistiram de ações individuais anteriormente propostas à ação

coletiva211.

Os limites territoriais da coisa julgada também é uma questão relevante para

o debate do mérito participado no modelo de processo coletivo adotado pelo Estado

211 §3º, art. 22 – Na hipótese dos interesses ou direitos individuais homogêneos, apenas não estarão vinculados ao pronunciamento coletivo os titulares de interesses ou direitos que tiverem exercido tempestiva e regularmente o direito de ação ou exclusão (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 442).

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Democrático de Direito. Estabelece o §4º do artigo 22: “a competência territorial do

órgão julgador não representará limitação para a coisa julgada erga omnes”

(GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 442). Tal proposição legislativa foi

criada com o propósito de permitir os efeitos jurídicos do provimento jurisdicional

coletivo para todos os sujeitos afetados pelos fundamentos fático-jurídicos que

integram o debate do mérito processual, ou seja, limitar territorialmente os efeitos de

uma decisão judicial proferida em processo coletivo que reconhece direito ou

protege juridicamente bem de natureza indivisível, é legitimar tratamento jurídico

diferenciado aos diversos interessados difusos e coletivos em desconformidade com

o principio da isonomia processual.

A previsão das tutelas específicas determinando o cumprimento de

obrigações de fazer ou não fazer e a entrega de coisas certas ou incertas materializa

legislativamente a intenção de implementação do principio da efetividade

processual, no sentido de buscar um resultado prático do processo a fim de atender

amplamente os direitos coletivos e difusos pertencentes a toda uma coletividade. Foi

por isso que se instituiu a possibilidade de fixação das astreintes (multa diária), com

o propósito de potencializar o cumprimento de uma tutela específica, conferindo-se

ao juiz ampla autonomia para modificar o valor ou a periodicidade da multa, bem

como determinar a busca e a apreensão, a remoção de coisas e pessoas, o

desfazimento de obras, o impedimento de atividade nociva, a requisição de força

policial e todos os demais meios legítimos e suficientes a garantir o resultado prático

da tutela processual específica.

A possibilidade de conversão da obrigação de fazer ou não fazer em perdas e

danos não é uma prerrogativa exclusiva do autor da ação. Torna-se necessário

ampliar o debate processual e envolver todos os interessados na pretensão coletiva

deduzida em juízo a fim de legitimar a escolha de converter ou não o cumprimento

da obrigação de fazer ou não fazer (e demais tutelas processuais específicas) em

perdas e danos212. Admitir que o autor da ação tenha legitimidade de escolha no que

tange à conversão da tutela especifica em perdas e danos é reconhecer

juridicamente a deslegitimidade democrática da construção do mérito no processo

coletivo.

212 §4º, art. 23 – A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas optar o autor ou se impossível a tutela especifica ou a obtenção do resultado prático correspondente ((GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 442).

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A criação do Fundo213 dos Direitos Difusos, Coletivos e Individuais

Homogêneos, de natureza federal e estadual, justifica-se pela necessidade de

gestão dos recursos financeiros advindos do pagamento da reparação dos danos

fixados em sentença judicial, assim como as multas judiciais. Importante esclarecer

que a gestão do fundo deve ser participativa e democrática, ou seja, o Conselho

Gestor do Fundo tem que agir com clareza, impessoalidade e transparência na

proteção dos direitos coletivos e difusos. Todo interessado difuso e coletivo tem

legitimidade para controlar os atos de gestão do Fundo.

Mesmo na fase de liquidação e de execução da sentença coletiva torna-se

relevante o debate do processo coletivo no viés do sistema participativo, haja vista

que a legitimidade para o pedido de liquidação e de execução pertence a qualquer

pessoa física ou jurídica que demonstre interesse jurídico nos efeitos do provimento

jurisdicional. O controle de todo o procedimento realizado na fase de liquidação e de

execução poderá ser realizado a qualquer tempo pelos legitimados.

A criação e a institucionalização de uma política nacional de regulamentação

e de controle dos processos coletivos no Brasil também foi uma preocupação dos

autores do anteprojeto, com a finalidade de permitir que todos os órgãos do poder

Judiciário e todos os interessados tenham conhecimento da existência das ações

coletivas propostas e em andamento no Brasil, facilitando a sua publicidade e o

exercício do direito de exclusão214. Trata-se de medida realizada no sentido de

213 Art. 29. Fundo dos Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos – O fundo será administrado por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais, de que participarão necessariamente membros do Ministério Público, juízes e representantes da comunidade ,sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados ou, não sendo possível, à realização de atividades tendentes a minimizar a lesão ou a evitar que se repita, dentre outras que beneficiem o bem jurídico prejudicado. §1º. Além da indenização oriunda da sentença condenatória, nos termos do disposto no caput dói art. 25, constituem também receitas do Fundo o produto da arrecadação de multas judiciais e da indenização devida quando não for possível o cumprimento da obrigação pactuada em termo de ajustamento de conduta. §2º. O representante legal do Fundo, considerado servidor público para efeitos legais, responderá por sua atuação nas esferas administrativa, penal e civil. §3º. O Fundo será notificado da propositura de toda ação coletiva e da decisão final do processo. § 4º. O Fundo manterá e divulgará registros que especifiquem a origem e a destinação dos recursos e indicará a variedade dos bens jurídicos a serem tutelados e seu âmbito regional. § 5º. Semestralmente, o Fundo dará publicidade as suas demonstrações financeiras e entidades desenvolvidas (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 443). 214 Art. 28. Cadastro nacional de processos coletivos – O Conselho Nacional de Justiça organizará e manterá o cadastro nacional de processos coletivos, com a finalidade de permitir que todos os órgãos do Poder Judiciário e todos os interessados tenham conhecimento da existência das ações coletivas, facilitando a sua publicidade e o exercício do direito de exclusão. §1º. Os órgãos judiciários aos quais forem distribuídas ações coletivas remeterão, no prazo de dez dias, copia da petição inicial ao cadastro nacional de processos coletivos. § 2º. O Conselho Nacional de Justiça editará regulamento dispondo sobre o funcionamento do cadastro nacional de processos coletivos, em especial a forma de comunicação pelos juízos quanto à existência das ações coletivas e aos atos processuais mais

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democratizar e de ampliar ainda mais a participação no processo coletivo. Sabe-se

que a efetividade de tal política pública não depende apenas da estrutura oferecida

pelo Estado mas, acima de tudo, de uma mudança de mentalidade do cidadão

brasileiro, para que o mesmo consiga perceber a relevância e a importância do seu

envolvimento direto no debate de todas as pretensões coletivas e difusas levadas ao

Judiciário.

A coletivização das demandas judiciais é um fenômeno que deve vir

acompanhado da revisitação do paradigma clássico do processo coletivo, com o

propósito de instituir definitivamente o sistema participativo e garantir o amplo

controle e a ampla participação de todos os interessados difusos e coletivos215.

No artigo 2º, inciso III do anteprojeto temos a definição dos direitos individuais

homogêneos como sendo aqueles direitos subjetivos decorrentes de uma origem

comum, ou seja, trata-se de direitos que podem ser auferidos individualmente no

contexto de uma coletividade e em virtude da sua origem comum. A ação coletiva,

cujo objeto é um direito individual homogêneo, poderá ser proposta por qualquer

sujeito individualmente titular da pretensão e deverá assegurar a intervenção e a

participação de todos os legitimados na construção do mérito processual. Mesmo

que o sujeito não tenha participado diretamente do debate processual da pretensão,

será afetado pelos efeitos jurídicos da coisa julgada coletiva que reconhece direitos

e protege juridicamente bem de natureza coletiva (direito individual homogêneo,

para o presente caso). A coisa julgada coletiva constituída por meio de uma decisão

relevantes, como a concessão de antecipação de tutela, a sentença e o trânsito em julgado; disciplinará, ainda, sobre os meios adequados a viabilizar o acesso aos dados e o acompanhamento daquelas por qualquer interessado (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 443). 215 O acesso à Justiça desses conflitos de massa vem levando à releitura do trinômio jurisdição-ação-processo: a jurisdição , antes praticamente confinada à jurisdição singular (conflitos intersubjetivos, tipo Tício versus Caio), teve que ir se adaptando às novas exigências postas pelas ações de tipo coletivo, onde a inafastável expansão da coisa julgada faz com que o comando judicial ganhe em eficácia social, aumentando o grau de responsabilidade do julgador e levando o Judiciário a participar, numa certa medida, da co-gestão dos interesses gerais (como ocorre, por exemplo, na coerção à publicidade enganosa); o processo não mais fica limitado a uma relação jurídica entre os próprios e os diretos contraditores, passando a operar como um veiculo idôneo a conduzir ao Judiciário conflitos coletivos de largo espectro, como se verifica, por exemplo, nas demandas que contrapõem a classe de ex-fumantes e a indústria fumerígena; enfim, a ação deixou se ser uma singela representacao de demandas intersubjetivas, incompossíveis pelas vias suasórias, tendo que ir se adaptando às novas e amplas controvérsias, agora formuladas não mais por um determinado “titular” de um direito subjetivo, mas por uma sorte de condutor processual especialmente credenciado: o ideological plaintiff do processo norte-americano, as associations agréees, na França, o ente esponenziale, dos italianos, ou o representante adequado, de nossas ações de finalidade coletiva (art. 1º da Lei 4717/65; art. 5º da Lei 7347/85; art. 82 da Lei 8078/90), ocorrências que Nery e Nery, invocando a fórmula alemã, sintetizam numa “legitimação autônoma para a condução do processo ” (grifo nosso) (MANCUSO, 2006, p. 225). (grifo nosso)

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259

que julgou improcedente os pedidos não produzirá efeitos jurídico-legais com

relação àqueles sujeitos que não tiveram a oportunidade de participar efetivamente

da construção do mérito processual da demanda coletiva.

O direito de exclusão numa demanda coletiva, que tem como objeto um

direito individual homogêneo, deverá ser requerido de forma expressa, uma vez que,

via de regra, não poderá ser presumido. A oportunidade de exercício do direito de

exclusão somente será possível a partir do momento em que for publicizado o objeto

da ação coletiva por meio de instrumentos lícitos, idôneos e efetivos de comunicação

dos interessados acerca da propositura de uma determinada ação coletiva216.

Verifica-se novamente a preocupação dos autores do anteprojeto com relação à

ampla publicidade e divulgação do objeto da ação coletiva, a fim de estender, ao

máximo, a possibilidade de participação dos interessados na construção do

provimento.

Quem não se manifesta expressamente no sentido de requerer a exclusão de

uma ação coletiva, certamente será atingido pelos efeitos jurídico-legais do

provimento que julgou procedente o pedido. O pedido de exclusão poderá ser

presumido apenas em caso de propositura ou prosseguimento de uma ação

individual que verse sobre direito que esteja sendo objeto de ação coletiva. O

ajuizamento da ação coletiva acarretará a suspensão, por trinta dias, das ações

individuais que tenham o mesmo objeto, devendo os seus respectivos autores

manifestarem-se expressamente o interesse em permanecer ou não com a ação

individual; ressalta-se que, em caso de omissão do autor da ação individual, teremos

a extinção do processo sem julgamento do mérito. O interessado que, quando da

comunicação da propositura da ação coletiva, não tiver proposto ação individual,

para que não seja afetado pelos efeitos jurídicos de uma decisão judicial procedente,

216 Art. 32. Citação e notificações – Estando em termos a petição inicial, o juiz ordenará a citação do réu, a publicação de edital no órgão oficial e a comunicação dos interessados, titulares dos direitos ou interesses individuais homogêneos objeto da ação coletiva, para que possam exercer no prazo fixado seu direito de exclusão em relação ao processo coletivo, sem prejuízo da ampla divulgação pelos meios de comunicação social. § 1º. Não sendo fixado pelo juiz o prazo acima mencionado, o direito de exclusão poderá ser exercido até a publicação da sentença no processo coletivo. § 2º. A comunicação prevista no caput poderá ser feita pelo correio, por oficial de justiça, por edital ou por inserção em outro meio de comunicação ou informação, como contracheque, conta, fatura, extrato bancário e outros, sem obrigatoriedade de identificação nominal dos destinatários, que poderão ser caracterizados enquanto titulares dos mencionados interesses, fazendo-se referência à ação e às partes, bem como ao pedido e à causa de pedir, observado o critério da modicidade do custo (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 443-444).

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260

deverá expressamente requerer a sua exclusão da ação coletiva ou, querendo,

ajuizar ação individual no prazo assinalado217.

Observa-se que a aplicabilidade de todas as proposições legislativas ora

analisadas condiciona-se a ampla publicidade a todos os interessados do objeto da

ação coletiva proposta, para que seja assegurada a efetiva participação de todos no

processo coletivo. Negar ou limitar a participação é suprimir ou comprometer

substancialmente a legitimidade democrática do processo coletivo democrático.

Nas pretensões envolvendo os direitos individuais homogêneos verifica-se a

expressa preocupação dos autores do anteprojeto quanto à liquidez da sentença

proferida pelo juiz. A sentença, sempre que possível, deverá ser líquida, ressaltando-

se que em caso de impossibilidade do julgador proferir uma decisão na qual

expresse individualmente a porção monetária do direito pertencente a cada

interessado, na liquidação de sentença (especialmente na liquidação por artigos)

deverá ser assegurado a cada titular ou interessado o direito de se imiscuir

diretamente no debate dos critérios fáticos e jurídicos de construção participada do

mérito e de definição do quantum indenizatório devido pela parte condenada a titulo

de reparação por perdas e danos aos liquidantes.

A necessidade de alegar e provar fatos novos no processo de liquidação de

sentença por artigos denota claramente a existência do debate de matéria de mérito

e, por conseguinte, da relevância de oportunizar condições reais de construção

participada do mérito processual.

Importante contribuição foi trazida pelos autores do anteprojeto ao

manifestarem interesse em regulamentar mais especificamente o processo coletivo

ao prever expressamente o instituto do mandado de segurança coletivo, o mandado

217 Art. 33. Relação entre ação coletiva e ações individuais – O ajuizamento ou prosseguimento da ação individual versando sobre direito ou interesse que esteja sendo objeto de ação coletiva pressupõe a exclusão tempestiva e regular desta. § 1º. O ajuizamento da ação coletiva ensejará a suspensão, por trinta dias, a contar da ciência efetiva desta, dos processos individuais em tramitação que versem sobre direito ou interesse que esteja sendo objeto no processo coletivo. § 2º. Dentro do prazo previsto no parágrafo anterior, os autores das ações individuais poderão requerer, nos autos do processo individual, sob pena de extinção sem julgamento do mérito, que os efeitos das decisões proferidas na ação coletiva não lhes sejam aplicáveis, optando, assim, pelo prosseguimento do processo individual. § 3º. Os interessados que, quando da comunicação, não possuírem ação individual ajuizada e não desejarem ser alcançados pelos efeitos das decisões proferidas na ação coletiva poderão optar entre o requerimento de exclusão ou o ajuizamento da ação individual no prazo assinalado, hipótese que equivalerá à manifestação expressa de exclusão. § 4º. Não tendo o juiz deliberado acerca da forma de exclusão, esta correrá mediante simples manifestação dirigida ao juiz do respectivo processo coletivo ou ao órgão incumbido de realizar a nível nacional o registro das ações coletivas, que poderão se utilizar eventualmente de sistema integrado de protocolo (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 444).

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de injunção coletivo, a ação popular e a ação de improbidade administrativa, porém,

foi omisso com relação à ação direta de inconstitucionalidade, à ação declaratória de

constitucionalidade e a argüição de descumprimento de preceito fundamental.

Não se pode reduzir o estudo do processo coletivo a questões casuísticas e

fáticas, até porque, se a proposta de todos os anteprojetos de codificação do

processo coletivo é a maior amplitude possível do objeto das ações coletivas, negar

a natureza coletiva da ação direta de inconstitucionalidade, da ação declaratória de

constitucionalidade e da argüição de descumprimento de preceito fundamental é,

certamente, filiar-se a uma concepção reducionista do processo coletivo, algo

incompatível com o Estado Democrático de Direito. Por isso, afirma-se que todos os

anteprojetos elaborados e discutidos até então foram omissos quanto ao tratamento

jurídico-legislativo do cognominado processo coletivo objetivo (trata-se de relações

processual que tem como objeto o debate de pretensões coletivas de natureza

abstrata, tal como o debate da constitucionalidade de uma norma

infraconstitucional). Todos foram enfáticos quanto à regulamentação do processo

coletivo que se desenvolve a partir de um caso prático de relevância coletiva e

difusa, ignorando o debate e a sistematização jurídica do processo, do

procedimento, da jurisdição e da ação coletiva quando a tutela coletiva não tiver

relação direta (nem indireta) com um caso concreto específico.

A legitimidade da construção participada do mérito processual se verifica em

todas as ações judiciais e extrajudiciais através das quais temos uma pretensão

coletiva. O pressuposto lógico para a instauração do amplo e do legitimo discurso

processual democrático a todos os interessados difusos está na coletivização das

demandas. É por isso que, o debate de um direito líquido e certo, e de natureza

coletiva, tem que ser amplo quando se tratar de mandado de segurança coletivo, por

exemplo.

Não basta apenas garantir no plano abstrato da legislação que todos têm

direito de participação na construção do provimento estatal. É necessário

procedimentalizar como ocorrerá processualmente essa participação isonômica de

todos os interessados. A grande falha da respectiva proposta legislativa foi não

sistematizar o procedimento que operacionalizará na prática a possibilidade de todos

os interessados se manifestarem no processo coletivo de forma organizada, para

que o julgador tenha condições de delimitar o objeto da demanda e, assim, julgar o

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mérito da pretensão de forma rigorosamente compatível com o principio da

efetividade processual.

Especificamente quanto ao mandado de injunção os autores do anteprojeto

foram pontuais quanto à delimitação do objeto218 a partir do conteúdo estabelecido

no texto constitucional, deixando clara a natureza coletiva da pretensão que constitui

o objeto da respectiva ação e estabelecido a obrigatoriedade do litisconsórcio

passivo219.

No artigo 51 do anteprojeto temos a previsão de que o juiz comunicará o

órgão competente para regulamentar infraconstitucionalmente a norma

constitucional, ressaltando a caracterização da mora legislativa e a fixação de prazo

a fim de que as providências sejam tomadas. O juiz também terá a legitimidade para

formular, com base na equidade, a norma regulamentadora que será aplicada ao

caso concreto, podendo, inclusive, fixar multa diária ao demandado que

eventualmente descumprir a norma regulamentadora aplicada ao caso concreto,

independentemente do pedido do autor.

Pelo conteúdo ora mencionado, resta claro que o legislador optou pela teoria

concretista, que é adotada em determinados casos que envolvem o processamento

e o julgamento do mandado de injunção e que autoriza o julgador a exercer

atipicamente a função legislativa, a fim de regulamentar a omissão que caracteriza o

caso concreto em questão. Particularmente entende-se que não se trata de

entendimento jurídico inadequado e incompatível com a ordem constitucional

democrática brasileira, até porque, a justificativa para sustentar a legitimidade de o

Judiciário exercer atipicamente a função legislativa encontra-se no dever do julgador

garantir a toda coletividade o efetivo exercício dos Direitos Fundamentais

expressamente previstos no plano constituinte.

Com relação à ação de improbidade administrativa os autores do anteprojeto

se limitaram a afirmar a aplicação da Lei 8.429/92, que disciplina o processamento e

218 Art. 47. Cabimento – Conceder-se-á mandado de injunção coletivo sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania, à cidadania, relativamente a direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 445). 219 Art. 49. Legitimação passiva – O mandado de injunção coletivo será impetrado, em litisconsórcio obrigatório, em face da autoridade ou órgão público competente para a edição da norma regulamentadora; e ainda da pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, que, por inexistência de norma regulamentadora, impossibilite o exercício dos direitos e liberdades constitucionais relativos a interesses ou direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 446).

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o julgamento da respectiva ação coletiva basicamente a partir da autoridade ou do

poder exercido exclusivamente pelos representantes do Ministério Público,

excluindo-se a participação direta dos interessados na construção participada do

mérito processual.

Embora o artigo 14 de Lei 8.429/92 ateste a legitimidade de qualquer pessoa

requerer que seja instaurada investigação para fins de apuração de prática de ato de

improbidade administrativa, verifica-se, pela análise e interpretação sistemática do

respectivo diploma legislativo, que o verdadeiro titular da legitimidade processual

ativa é o Ministério Público, que detêm o controle de todas as questões que serão

debatidas e postas em debate na ação de improbidade administrativa. Os demais

interessados difusos atuam como coadjuvantes do debate processual, haja vista que

não possuem a legitimidade de assumir conjuntamente com o Ministério Público a

titularidade ativa da presente ação coletiva, podendo participar isonomicamente da

construção dos fundamentos que integrarão o mérito processual.

Ao referenciar a Lei 8.429/92, os autores do anteprojeto de codificação

reproduziram o modelo de processo coletivo que não assegura a todos os

interessados difusos e coletivos o direito de participação e de debate amplo da

pretensão deduzida.

Mesmo reconhecendo a contribuição cientifica dos autores do anteprojeto de

codificação do direito processual coletivo, verifica-se que tais proposições ainda se

encontram presas e adstritas à ideologia liberal-individualista, que impossibilita a

adoção do modelo de processo coletivo democrático, cujo enfoque é voltado à

garantia de todos os interessados participarem amplamente do debate de todas as

pretensões de natureza coletiva.

3.3.4.2 O estudo do mérito processual no Anteprojet o de Código Brasileiro de Processos Coletivos – USP –

Sob a coordenação da professora e jurista Ada Pelegrini Grinover, o

anteprojeto de codificação do direito processual coletivo, desenvolvido junto ao

curso se pós-graduação stricto sensu em Direito da Universidade de São Paulo, foi

sistematizado com o propósito inicial de aperfeiçoamento das proposições

legislativas trazidas pelo Código-Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América

e de elaborar um verdadeiro Código de Processos Coletivos que pudesse revisitar

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os princípios processuais e a técnica processual220 (corresponde a essa

necessidade de flexibilização da técnica processual um aumento dos poderes do

juiz) por intermédio de normas mais abertas e flexíveis, que propiciassem maior

efetividade ao processo coletivo. A primeira versão do anteprojeto foi apresentada

pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual ao Ministério da Justiça no mês de

dezembro de 2005, e, após inúmeros debates e apresentação de novas propostas, o

mesmo anteprojeto foi reapresentado ao Ministério da Justiça, como versão final, no

mês de dezembro de 2006.

Buscou-se, assim, a sedimentação de uma Teoria Geral do Processo

Coletivo, até porque, os institutos da legitimação, da competência, dos poderes e

deveres do juiz e do Ministério Público, da conexão, da litispendência, da liquidação

e da execução da sentença, da coisa julgada, entre outros, têm feição própria nas

ações coletivas.

É inegável a existência de inúmeras outras questões atinentes ao processo

coletivo que não foram ainda enfrentadas e que devem ser resolvidas no contexto do

debate da codificação, dentre as quais se ressalta: a) a problemática da

competência concorrente e da natureza da competência territorial (absoluta ou

relativa); b) os efeitos jurídicos da coisa julgada coletiva no âmbito territorial; c) o

reconhecimento efetivo da legitimidade da Defensoria Pública, do cidadão e de

todos os interessados difusos e coletivos com relação à propositura das ações

coletivas, ao debate e a construção participada do mérito processual; d) a

sistemática jurídica e a legitimidade processual ativa para requerer o pedido de

liquidação e de execução de sentença coletiva, especialmente quando se tratar de

direitos individuais homogêneos; e) o debate acerca do controle difuso de

constitucionalidade em sede de ação civil pública; f) a questão envolvendo o instituto

da litispendência, quando é diversa a pessoa do legitimado processual ativo, assim

como o instituto da conexão, que se for rigidamente interpretado, levará à

220 Na revisitação da técnica processual, são pontos importantes do Anteprojeto a reformulação do sistema de preclusões – sempre na observância do contraditório -, a reestruturação dos conceitos de pedido e causa de pedir – a serem interpretados extensivamente- e de conexão, continência e litispendência – que devem levar em conta a identidade do bem jurídico a ser tutelado; o enriquecimento da coisa julgada, com a previsão do julgado secundum eventum probationis; a ampliação dos esquemas da legitimação, para garantir maior acesso à justiça, mas com a paralela observância de requisitos que configuram a denominada “representatividade adequada” e põem em realce o necessário aspecto social da tutela dos interesses e direitos coletivos, coletivos e individuais homogêneos, colocando a proteção dos direitos fundamentais de terceira geração a salvo de uma indesejada banalização (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 450).

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proliferação de ações coletivas e à multiplicação de decisões contraditórias; g) por

fim, ressalta-se toda a discussão existente em torno da possibilidade de se repetir a

demanda em face de prova superveniente e a de se intentar ação em que o grupo, a

categoria ou a classe figure no pólo passivo da demanda.

O primeiro I221 do anteprojeto enumera a principiologia geral da tutela

jurisdicional coletiva e regulamenta importantes questões intrínsecas ao direito

processual coletivo, tais como o pedido e a causa de pedir; a conexão e a

continência; a relação entre ação coletiva e ações individuais frente a problemática

dos processos individuais repetitivos; a interrupção da prescrição e a prioridade no

processamento e no julgamento das demandas coletivas em face das demandas

individuais; a utilização de meios eletrônicos para a prática de atos processuais; a

preferência pelo processamento e julgamento das demandas coletivas por juízos

especializados; a previsão de gratificação financeira para segmentos sociais que

atuem na condução do processo; a revisitação do ônus da prova por meio da teoria

da carga dinâmica da prova; a subtração do instituto do reexame necessário para

sentenças judiciais proferidas em processos coletivos e, com relação à coisa

julgada, verifica-se a possibilidade de propositura de nova ação no prazo de 2 anos,

a contar da descoberta de nova prova idônea a modificar o resultado do primeiro

processo e que neste não foi possível produzir.

No capítulo II222 os autores do anteprojeto admitem expressamente o

cabimento da ação civil pública como instrumento de controle difuso de

constitucionalidade223224, ressaltando-se o instituto da representatividade adequada,

que deverá ser comprovada por critérios objetivos, legais, para a grande maioria dos

legitimados, exceto a pessoa física. Verifica-se que temos institutos ainda presos ao 221 O Capítulo I, intitulado Das Demandas Coletivas, vai do art. 1º ao art. 17 e trata de assuntos variados, tais como: o exercício da tutela jurisdicional coletiva (art. 1º); o cabimento de todas as ações e provimentos capazes de propiciar a adequada e efetiva tutela dos interesses indicados no anteprojeto (art. 2º); o objeto da tutela coletiva com a classificação tripartite dos interesses ou direitos coletivos (art. 3º), reproduzindo o disposto no parágrafo único do art. 81 do CDC etc. (ALMEIDA, 2007, p. 101). 222 O Capítulo II, intitulado Da ação coletiva ativa, vai do art. 18 ao art. 35 e está dividido em duas seções: a Seção I contém disposições gerais e a Seção II traz a disciplina da ação coletiva para a defesa de interesses ou direitos individuais homogêneos (ALMEIDA, 2007, p. 101). 223 Parágrafo único do artigo 4º. A análise da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei ou ato normativo poderá ser objeto de questão prejudicial pela via do controle difuso (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 454). 224 O parágrafo único do art. 3º do Anteprojeto confirma a tese que hoje vem prevalecendo na doutrina e na jurisprudência no sentido que é possível o controle difuso e incidental da constitucionalidade na ação civil pública, ação popular, mandado de segurança coletivo e outras ações pertencentes ao que é denominado por um dos autores desse ensaio de direito processual coletivo comum (ALMEIDA, 2007, p. 105).

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modelo representativo de processo coletivo, a fim de obstaculizar (ou até mesmo

inviabilizar) a participação dos sujeitos juridicamente interessados na construção

discursivo-participada do provimento. Quanto ao tratamento jurídico assegurado à

competência territorial, temos a eliminação, em alguns casos, da competência

concorrente, com o propósito de evitar a proliferação de demandas e de decisões

contraditórias, buscando-se maior segurança jurídica quanto ao processamento e

julgamento das pretensões coletivas. As peças informativas obtidas no Inquérito Civil

somente poderão ser aproveitadas na ação coletiva se submetidas ao principio do

contraditório, ainda que diferido. O valor da causa é dispensado quando se tratar de

danos inestimáveis225 e o juiz é visto como um verdadeiro gestor do processo

coletivo, dando-se ênfase aos meios alternativos de solução de controvérsias. Na

seção II do Capítulo II verifica-se a inovação do regime das notificações nas ações

coletivas para a defesa de direitos individuais homogêneos, tendo em vista que o

desconhecimento da existência de liminares ou da sentença de procedência tem

impedido aos beneficiados a fruição de seus direitos.

No capítulo III226 destaca-se o regime jurídico da ação coletiva passiva

originaria, ou seja, a ação promovida não pelo, mas contra o grupo, categoria ou

classe de pessoas. O capítulo IV227 trata do mandado de segurança coletivo, o

capitulo V228 trata das ações populares e da ação de improbidade administrativa e,

225 Artigo 24, § 4º. Na hipótese de ser incomensurável ou inestimável o valor dos danos coletivos, fica dispensada a indicação do valor da causa na petição inicial, cabendo ao juiz fixá-lo em sentença(GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 458). 226 O Capítulo III, que vai do art. 36 ao art. 39, disciplina a denominada ação coletiva passiva, que, na verdade, é a possibilidade de ajuizamento de ações coletivas em face de grupo, categoria ou classe. Como já manifestamos anteriormente, não concordamos com a utilização da expressão ação coletiva passiva, nem também com o uso da expressão ação coletiva passiva, desprovida de boa técnica jurídica, pois o que define uma ação como coletiva não é propriamente sua legitimidade ativa ou passiva, mas seu objeto material, aferível na causa de pedir e no pedido (ALMEIDA, 2007, p. 101). 227 O Capítulo IV, que vai do art. 39 ao art. 41, dispõe, de modo bem tímido, sobre o mandado de segurança coletivo. Apesar de ampliar a legitimidade ativa para a impetração prevista no art. 5º, LXX, da CF/88, somente inclui o Ministério Público e a Defensoria Pública, o que contraria a própria magnitude do mandado de segurança como garantia constitucional fundamental e a orientação já prevista no art. 5º, da LACP, em sua combinação com os arts. 80 e 83 do CDC (ALMEIDA, 2007, p. 101). 228 O Capítulo V, que contém duas seções e dois artigos, traz a disciplina das ações populares. A Seção I dispõe sobre o que é denominado ação popular constitucional (art. 42) e não traz qualquer inovação, constando da redação simplesmente que são aplicáveis à ação popular constitucional as disposições do Capítulo I do anteprojeto e as da Lei 4.717/65. A Seção II trata da ação de improbidade administrativa, arrolada como espécie de ação popular contrariamente ao disposto nos arts. 37, §4º, e 129, III, da CF/88, constando do único dispositivo reservado ao tema que a ação de improbidade administrativa é regida pelas disposições do Capítulo I do anteprojeto e pelas disposições da Lei 8.429/92 (ALMEIDA, 2007, p. 101).

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finalmente, o capitulo VI traz as disposições referentes ao Cadastro Nacional de

Processos Coletivos a ser organizado e mantido pelo Conselho Nacional de Justiça.

Cumpre ressaltar que o anteprojeto de processo coletivo criado pelos

pesquisados da Universidade de São Paulo nada mais é do que o reflexo do

conteúdo trabalhado e desenvolvido pelos anteprojetos anteriores. Por isso, a fim de

evitar repetições, passaremos a análise de questões pontuais do anteprojeto em

questão que tenham relação direta ou indireta com a problemática jurídica do mérito

participado no modelo de processo coletivo no Brasil.

Novamente verifica-se a omissão legislativa quanto à regulamentação da

ação direta de inconstitucionalidade, da ação declaratória de constitucionalidade e

da argüição de descumprimento de preceito fundamental como espécies de ações

coletivas, cujos objetos são pretensões abstratamente deduzidas em juízo. O amplo

acesso à justiça, a ampla participação pelo processo e no processo, a economia

processual, a instrumentalidade das formas, o ativismo judicial, a dinâmica

distribuição do ônus da prova e a extensão subjetiva da coisa julgada secundum

eventum litis e secundum probationem são alguns dos inúmeros princípios regentes

da tutela jurisdicional coletiva.

A fim de garantir a efetividade processual, o juiz poderá determinar, quando

necessário for, a desconsideração da personalidade jurídica nas hipóteses previstas

no artigo 50 do Código Civil e no artigo 4º da Lei 9605/98, desde que sejam

asseguradas as partes o principio do contraditório e da ampla defesa no sentido de

viabilizar o direito de participação isonômica na construção do mérito processual da

ação coletiva.

O pedido e a causa de pedir deverão ser interpretados extensivamente e em

conformidade com o bem jurídico a ser protegido na ação coletiva, podendo a parte

interessada, até a prolação da sentença, requerer ao juiz que determine a alteração

do pedido e da causa de pedir, desde que seja assegurada a observância do

principio do contraditório229. Não se pode esquecer que o procedimento das ações

coletivas deve ser regido pela sistemática das preclusões, para que as demandas e 229 Art. 5º. Pedido e causa de pedir – Nas ações coletivas, a causa de pedir e o pedido serão interpretados extensivamente, em conformidade com o bem jurídico a ser protegido. Parágrafo único. A requerimento da parte interessada, até a prolação da sentença, o juiz permitirá a alteração do pedido ou da causa de pedir, desde que seja realizada de boa-fé, não represente prejuízo injustificado para a parte contrária e o contraditório seja preservado, mediante possibilidade de nova manifestação de quem figure no pólo passivo da demanda, no prazo de 10 (dez) dias, com possibilidade de prova complementar, observado o §3º do art. 10 (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 454).

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as pretensões não sejam infinitamente debatidas por qualquer interessado,

impedindo-se o deslinde do caso concreto. Importante ressaltar, ainda, que eventual

alteração do pedido ou da causa de pedir certamente causará reflexos na definição

da matéria de mérito, o que torna obrigatória a participação de todos os legitimados

a fim de assegurar a legitimidade democrática do provimento jurisdicional.

Não se pode falar em litispendência envolvendo uma ação coletiva e uma

ação individual em que sejam postulados os mesmo direitos, mas os efeitos da coisa

julgada coletiva poderão beneficiar e afetar o autor da ação individual se for

requerida a suspensão do andamento da ação individual no prazo de 30 (trinta) dias,

a contar da ciência efetiva da demanda coletiva nos autos da ação individual. O

requerimento da retomada do processo individual230 poderá ocorrer

independentemente da anuência do réu e a qualquer tempo, e caso venha a se

concretizar, o autor da ação individual deixará de se beneficiar dos efeitos jurídicos

da sentença coletiva.

O entendimento jurídico que preconiza pela impossibilidade de litispendência

entre demandas coletivas e individuais se justifica no fato da maior amplitude do

objeto da ação coletiva e, também, em virtude da maior extensão do debate jurídico

e fático da pretensão por todos os interessados no processo coletivo, algo que se

tornaria inviável em uma ação individual que discute pretensões individuais e

divisíveis decorrentes de origem comum e cujo interesse jurídico na construção do

mérito processual pertence essencialmente àquele sujeito diretamente titular do bem

jurídico em debate.

A coletivização das demandas é uma tendência do direito brasileiro

explicitada expressamente no artigo 8º do anteprojeto, dispositivo esse que legitima

o juiz a notificar o Ministério Público e outros legitimados acerca da existência de

inúmeros processos individuais correndo contra um mesmo demandado, com

identidade de fundamento jurídico231. O objetivo da norma é certamente viabilizar a

230 Uma inovação importante do art. 20.7 do Anteprojeto Original é a permissão, ao membro do grupo que requereu a suspensão da sua demanda individual, que mude de idéia e se desligue da demanda coletiva, ao requerer o prosseguimento da sua demanda individual. Essa norma tem origem em estudo que fizemos sobre a coisa julgada e litispendência em processos coletivos. A inovação do Anteprojeto Original foi adotada, com linguagem ligeiramente diferente, pelo Anteprojeto USP, em seu art. 7º, § 2º (GIDI, 2008, p. 303). 231 Art. 8º. Comunicação sobre processos repetitivos. O juiz, tendo conhecimento da existência de diversos processos individuais correndo contra o mesmo demandado, com identidade de fundamento jurídico, notificará o Ministério Público e, na medida do possível, outros legitimados, a fim de que proponham, querendo, demanda coletiva, ressalvada aos autores individuais a faculdade prevista no artigo anterior. Parágrafo único: Caso o Ministério Público não promova a demanda coletiva, no prazo

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conversão de pretensões individuais em uma demanda coletiva, através da qual é

possível alcançar maior segurança jurídica em virtude da uniformidade da decisão

proferida em um mesmo órgão jurisdicional competente.

A interpretação do respectivo dispositivo deve ocorrer essencialmente no

contexto do principio da publicidade e a sua aplicabilidade precisa viabilizar

amplamente a participação de todos os interessados no debate acerca da relevância

e dos efeitos da coletivização da demanda quanto aos seus direitos e aos bens

jurídicos de seus respectivos titulares. Concentrar a decisão da coletivização da

demanda exclusivamente nas mãos do juiz e do representante do Ministério Público,

sem condicioná-la obrigatoriamente à participação dos interessados, é subverter o

procedimento democrático de construção participada do mérito processual das

ações coletivas.

O artigo 10 deixa claro que o juiz deverá assegurar a prioridade no

processamento e no julgamento da demanda coletiva sobre as individuais, servindo-

se preferencialmente dos meios eletrônicos para a prática dos atos processuais, de

modo a assegurar a maior publicidade e participação possível de todos os

interessados, para que tomem conhecimento dos fundamentos da demanda coletiva,

a fim de se legitimarem efetivamente quanto à participação direta no discurso

democrático de construção do provimento jurisdicional de natureza meritória.

Ao mesmo tempo em que o anteprojeto pretende avançar no debate dos

fundamentos jurídico-democráticos da codificação do processo coletivo brasileiro,

ainda continua adstrito ao modelo de processo coletivo conduzido pelo juiz e

centralizado no sistema representativo, tal como temos no inciso I do artigo 20: “ são

legitimados concorrentemente à ação coletiva ativa qualquer pessoa física, para a

defesa dos interesses ou direitos difusos, desde que o juiz reconheça sua

representatividade adequada [...]” (grifo nosso) (GRINOVER; MENDES;

WATANABE; 2007, p. 456). Pela análise do dispositivo legal constata-se que não é

a demonstração do interesse jurídico na pretensão coletiva o fundamento do

reconhecimento da legitimidade processual ativa do sujeito quanto à propositura de

uma ação coletiva. Será a decisão judicial que reconhecerá ou não a condição de

legitimado ativo do sujeito no processo coletivo. Trata-se de uma opção legislativa

de 90 (noventa) dias, o juiz, se considerar relevante a tutela coletiva, fará remessa das peças dos processos individuais ao Conselho Superior do Ministério Público, que designará outro órgão do Ministério Público para ajuizar a demanda coletiva, ou insistirá, motivadamente, no não ajuizamento da ação, informando o juiz (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 454-455).

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incompatível com o modelo constitucional de processo coletivo pelo fato de limitar

substancialmente a participação dos interessados difusos e coletivos quanto ao

debate da pretensão no contexto processual.

Outra relevante constatação da opção legislativa pelo sistema representativo

está no artigo 21232, que estabelece a legitimidade do Ministério Público e dos

órgãos público legitimados para a realização do termo de ajustamento de conduta.

Novamente verifica-se a exclusão dos interessados quanto à participação no debate

da pretensão a ensejar a transação de direitos coletivos e difusos. As proposições

legislativas são falhas no sentido de não estabelecer as audiências públicas como o

espaço legítimo para a realização de todo o debate, assim como os autores do

anteprojeto não se voltaram para a regulamentação da utilização dos mais diversos

meios legítimos de comunicação (internet, redes sociais, imprensa escrita, falada e

televisionada) a fim de dar ampla publicidade e conhecimento a todos os

interessados quanto às discussões referentes aos direitos transindividuais. Essa

mesma discussão cientifica se repete quanto ao Inquérito Civil Público, cuja

instauração, condução e presidência é exercida direta e exclusivamente pelo

Ministério Público, sem a ingerência de qualquer interessado no provimento, tal

como estabelece o artigo 23.

Inúmeras são as criticas possíveis aos anteprojetos de codificação do

processo coletivo e, por isso, em 16 de setembro de 2005 o Procurador Geral de

Justiça do Ministério Público de Minas Gerais editou a Resolução 75, criando uma

comissão de estudos especialmente designada para analisar criticamente as

propostas de codificação do direito processual coletivo. Com relação ao anteprojeto

da USP, a comissão não concordou com a forma de codificação proposta, haja vista

que “não rompe com diretrizes individualistas do CPC ao não dispor sobre institutos

processuais fundamentais do direito processual coletivo, tais como: processos de

232 Art. 21. Do termo de ajustamento de conduta – Preservada a indisponibilidade do bem jurídico protegido, O Ministério Público e os órgãos públicos legitimados, ainda com critérios de equilíbrio e imparcialidade, poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de conduta à lei, mediante fixação de modalidades e prazos para o cumprimento das obrigações assumidas e de multas por seu descumprimento. §1º. Em caso de necessidade de outras diligências, os órgãos públicos legitimados poderão firmar compromisso preliminar de ajustamento de conduta. § 2º. Quando a cominação for pecuniária, seu valor deverá ser suficiente e necessário para coibir o descumprimento da medida pactuada e poderá ser executada imediatamente, sem prejuízo da execução específica. § 3º. O termo de ajustamento de conduta terá natureza jurídica de transação, com eficácia de titulo executivo extrajudicial, sem prejuízo da possibilidade de homologação judicial do compromisso, hipótese em que sua eficácia será de título executivo judicial (GRINOVER; MENDES; WATANABE; 2007, p. 457).

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execução para títulos executivos extrajudiciais (TAC); processo cautelar; intervenção

de terceiros; recursos, jurisdição coletiva; defesa no processo coletivo etc.

(ALMEIDA, 2007, p. 104).

Outro dispositivo bastante criticado é o artigo 51 do anteprojeto, que propõe a

revogação de dispositivos legais, tais como a Lei de Ação Civil Publica e o Código

de Defesa do Consumidor na parte atinente ao processo coletivo. Tal dispositivo do

anteprojeto representa um grande retrocesso em termos de discussão cientifica de

institutos jurídicos indispensáveis a uma reforma na sistematização legislativa do

direito processual coletivo no Brasil. Ao propor a revogação da Lei de Ação Civil

Pública o anteprojeto nada dispõe sobre a ação coletiva para a reparação de dano

moral coletivo; ao propor a revogação parcial do Código de Defesa do Consumidor o

anteprojeto nada dispôs sobre a vedação da denunciação da lide nas ações

consumeiristas (ALMEIDA, 2007, p. 104).

A partir das reflexões crítico-científicas ora propostas, constata-se que a

ideologia regente dos fundamentos da codificação em todos os anteprojetos até

então analisados é aquela que reproduz um modelo de processo coletivo ainda de

raízes individualistas e de cerne essencialmente patrimonialista, em que o foco do

debate é o sujeito individual, e não a coletividade.

Aliado a esses argumentos, sabemos que a gênese de todo o processo

coletivo até então teorizado encontra-se na idéia de representatividade adequada,

que se realiza partir do Ministério Público, dos entes da Administração Pública Direta

e Indireta, da Defensoria Pública e das demais entidades pressupostamente

habilitadas a gerir os direitos de toda uma coletividade. O próprio sujeito titular do

direito e diretamente interessado na pretensão coletiva, na maioria das vezes é

excluído do debate processual realizado no sentido de conhecer, de analisar e de

compreender as particularidades fáticas e jurídicas de todas as questões que

integram a matéria de mérito. Pensar que o titular do direito não é capaz de exercer

todas as suas faculdades no sentido de buscar a proteção jurídica de seus bens, é

reduzi-lo a condição de deslegitimado à participação na construção do mérito

processual das ações coletivas.

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3.3.4.3 Código de Processo Coletivo Brasileiro da P UCMINAS: uma proposta legislativa de teorização do mérito partic ipado.

Sob a coordenação e a orientação do professor e jurista Vicente de Paula

Maciel Junior, os alunos do curso de pós-graduação stricto sensu em Direito da

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais desenvolveram, no ano de 2008, a

elaboração de uma proposta de Código de Processo Coletivo brasileiro a partir da

Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas.

Fruto de muitas pesquisas e reflexões, os jovens pesquisadores233

procuraram sistematizar legislativamente uma proposta de codificação que

contemplasse o modelo participativo como referencial teórico, ao lado das

proposições decorrentes das ações temáticas, para o estudo crítico e

constitucionalizado de uma modelo de processo compatível e coerente com o

Estado Democrático de Direito.

A teorização do mérito participado perpassa diretamente pelo entendimento

sistemático e jurídico dos meandros da teoria que propõe o estudo das ações

coletivas na perspectiva das ações temáticas. Nesse ínterim sabe-se que o mérito

deve ser visto sob a égide da discursividade ampla da pretensão como patamar

inicial de compreensão do tema proposto. Reduzir a idéia do mérito processual à

matéria de fato e de direito é compreendê-lo dogmaticamente a partir do modelo

individualista de processo. O mérito no processo coletivo materializar-se-á por meio

da instauração de um espaço processualizado de debate amplo e isonômico da

pretensão coletiva por todos os sujeitos juridicamente interessados na argumentação

fático-jurídica decorrente da observância dos princípios do contraditório, da ampla

defesa e do devido processo legal.

A primeira grande e relevante constatação é que o anteprojeto de codificação

proposto pela Pucminas deixa de compreender o processo coletivo sob a ótica

subjetivista (ou seja, do sujeito que seria legitimado a propor uma ação coletiva) e

233 São autores do anteprojeto do Código de Processo Coletivo Brasileiro: professor Vicente de Paula Maciel Junior; Alessandra Macedo Pessoa; Ana Lúcia Ribeiro; André Bragança Brant Vilanova; Anna Carolina Marques Gontijo; Fabiana Carvalho Vieira; Francis Vanine de Andrade Reis; Joaquim Adelson Cabral de Souza; Joaquim Márcio; Joaquim Urbano Pacheco Resende; José dos Passos T. de Andrade; Josan Feres; Juliana Maria Matos Ferreira; Kelen Cristina Fonseca; Leonardo Martins Wykrota; Marcelo Baltar Bastos; Marius Fernando Cunha de Carvalho; Natália Chernicharo Guimarães; Priscila Aparecida Borges Camões; Roberto Apolinário de Castro Júnior; Soraia Mônica Fonseca Murta; Teresa Cristina da Silva; Wagner Mendonça Bosque; Wilce Paulo Léo Neto. Disponível: http://www.fmd.pucminas.br/. Acesso: 11 jan. 2012.

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passa a visualizá-lo essencialmente a partir do objeto, ou seja, da relevância social e

coletiva da demanda a ser apreciada judicialmente. É realmente essa a proposta

apresentada pelo pesquisador Vicente de Paula Maciel Junior ao teorizar as ações

coletivas como ações temáticas. Não será o legislador que terá legitimidade para

estabelecer previamente um rol taxativo de pessoas, entidades ou instituições que

poderão figurar como autoras de uma ação coletiva.

Toda pessoa ou entidade pública ou privada poderá ser parte autora de uma

ação coletiva ao demonstrar a sua condição de titularidade da pretensão coletiva. A

condição de legitimado processual nas ações coletivas como ações temáticas é

auferida pela aptidão demonstrada pelos interessados difusos e coletivos de sofrer

os efeitos jurídicos de um provimento jurisdicional proferido num processo coletivo.

Todas as vezes que um interessado demonstrar a possibilidade de sofrer os efeitos

jurídicos de um provimento terá legitimidade processual para participar

discursivamente da construção do mérito. Foi exatamente esse o posicionamento

adotado pelos autores do anteprojeto no artigo 2º, ao estabelecer que possuem

legitimação para propor a ação temática todos os interessados, considerando-se

parte juridicamente interessada na construção participada do provimento todos

aqueles que são atingidos por atos, fatos ou situações jurídicas que afetem suas

esferas de interesses.

Considera-se coletiva a demanda quando um ato, fato ou situação jurídica

atingir interessados que estejam organizados em associações, sindicatos e

entidades de classes para a defesa dos direitos da categoria ou classe, assim como

os indivíduos dispersos que possam sofrer os efeitos da decisão e também aqueles

que possam ser representados por entidades ou órgãos públicos incumbidos da

defesa coletiva em juízo. Os autores do anteprojeto foram cuidadosos quanto à não

utilização equivocada da expressão “interesses difusos e coletivos” como sinônimos

da expressão “direitos coletivos e difusos”, em virtude da forte carga privada e

individualista trazida na conceituação do interesse para a ciência do Direito. Da

mesma foram não definiram e nem pretenderam diferenciar teoricamente os

conceitos de direitos coletivos, direitos difusos e direitos individuais homogêneos. No

anteprojeto os pesquisadores se limitaram a esclarecer as diretrizes gerais para o

entendimento do que é uma demanda coletiva para, a partir das peculiaridades do

caso concreto, identificar ou não a relevância do caráter coletivo da pretensão

deduzida.

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274

A presença de inúmeros conceitos abertos e cláusulas indeterminadas são

consideradas a marca registrada do anteprojeto, haja vista que a teoria das ações

coletivas como ações temáticas é o fundamento regente para a interpretação e o

entendimento do conteúdo presente nas proposições legislativas.

A pretensão inicialmente deduzida em juízo poderá ser genérica sempre que

o interessado não puder individuar na exordial os bens demandados, assim como ,

quando não for possível determinar as conseqüências de ato ou fato ilícito ou

quando a determinação do valor da condenação depender de ato que deva ser

praticado pelo réu.

Inicialmente é de suma importância esclarecer que o objeto da demanda

judicial, ou seja, a formação da matéria fática e jurídica a ser discutida no processo e

o levantamento das questões de mérito não ocorrerá apenas quando da propositura

da ação coletiva pelo autor e da apresentação da defesa pelo demandado, assim

como propõe o processo civil de natureza eminentemente individualista. A

propositura da ação coletiva é o primeiro passo a ser dado ao longo de todo o

procedimento para se chegar a delimitação do objeto a ser debatido e julgado na

ação coletiva. A ampla publicidade da pretensão inicialmente deduzida é a

oportunidade que os interessados terão de apresentar temas correlatos e relevantes

a serem discutidos conjuntamente com o que foi alegado pelas partes demandante e

demandada. Todas aquelas pessoas que demonstrarem interesse jurídico na

pretensão deduzida terão legitimidade para apresentarem temas conexos e

correlatos àquilo que foi inicialmente levado pelo autor e pelo demandado na ação

coletiva a fim de amplamente debatido no âmbito processual.

A adoção da sistemática das preclusões torna-se necessária a fim de evitar

as denominadas demandas coletivas infinitas, ou seja, é importante que se

estabeleça o momento processual em que os temas correlatos a pretensão deduzida

poderão ser apresentados. Permitir a apresentação dos temas a qualquer tempo e

grau de jurisdição certamente é algo incompatível com o principio da efetividade

processual, especialmente com o resultado prático do processo. Embora os

interessados tenham a possibilidade de debaterem amplamente a pretensão

deduzida mediante a apresentação de novos temas ou alegações fático-jurídicas ora

conexas e coerentes, sabe-se que a argumentação e o debate da matéria de fato e

de direito e das questões de mérito trazidos pelas partes interessadas deverá

ocorrer num contexto cronologicamente preestabelecido, ou seja, deve haver o

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estabelecimento de prazos preclusivos a fim de demarcar temporalmente o momento

processual em que as partes poderão ampliar o objeto da demanda coletiva.

A demarcação cronológica do momento processual de apresentação e de

discussão de todos os temas correlatos à pretensão deduzida em juízo e trazidos

pelas partes interessadas, sob a ótica da sistemática da preclusão é algo

imprescindível à efetivação do principio do contraditório, da ampla defesa e do

devido processo legal.

O sistema processual coletivo brasileiro vigente estabelece que qualquer

tema ou questão suscitada por algum interessado difuso ou coletivo deverá ser

submetido ao debate processual por todos os demais interessados, para que cada

sujeito tenha a oportunidade de amplamente discutir e analisar os fundamentos de

cada alegação trazida ao processo. A implementação de um procedimento que

viabilize efetivamente a construção participada do mérito processual pressupõe

basicamente o direito dos interessados exercerem o contraditório e a ampla defesa

no que tange à isonômica oportunidade de discussão de todos os temas trazidos

pelas partes e que integram a matéria de mérito objeto da ação coletiva.

O despacho saneador é o momento processual em que o julgador, em

decisão fundamentada, fixará os pontos controvertidos para delimitar o objeto da

ação coletiva a partir de todas as questões suscitadas e levantadas pelos sujeitos

interessados na construção isonomicamente participada do provimento jurisdicional.

O critério básico para a formação da matéria de mérito é a comprovação

efetiva do caráter coletivo da pretensão, mediante a demonstração da sua relevância

social. Superada essa questão preliminar, deverá o julgador reconhecer como

matéria de mérito todas aquelas questões de fato e de direito trazidas pelos

interessados difusos e coletivos e que conduzirão o debate processual a ser

desenvolvido de forma mais especifica na fase instrutória.

O julgador não tem legitimidade para excluir da discussão do mérito

processual questões fáticas e jurídicas que foram levantadas por qualquer

interessado, que tenha relevância social e, acima de tudo, que tenha coerência e

relação direta ou indireta com a pretensão inicialmente deduzida pelo autor da ação

coletiva. A exclusão de qualquer questão fática e/ou jurídica ou tema que integra a

matéria de mérito e que foi coerentemente levantada por um interessado somente

poderá ocorrer se os próprios interessados atestarem, por meio de uma ampla

análise discursiva, pela desnecessidade no prosseguimento do debate. Caso

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contrário, o julgador não terá legitimidade democrática para deliberar individualmente

pela exclusão de qualquer tema alegado no sentido de definir a matéria de mérito da

ação coletiva.

Resta claro que o despacho saneador é o momento preclusivo que finalizará

a possibilidade dos interessados trazerem para o processo outros temas além

daqueles inicialmente alegados234. Eventual tema ou questão não suscitado pela

parte poderá ser alegado e discutido em outra relação processual a ser instaurada

por meio da propositura de uma nova ação coletiva. É importante ressaltar que, pela

Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, o despacho saneador tem a

finalidade de delimitar toda a matéria de mérito que integrará e regerá a instrução

processual, impossibilitando eventual alteração em momento processual posterior.

Dessa forma, pode-se afirmar que o delineamento de todos os critérios que

orientarão a construção participada e democrática do mérito na ação coletiva

ocorrerá na fase saneadora.

A fim de garantir a construção participada do provimento jurisdicional, o

julgador deverá se ater à matéria de mérito delimitada no despacho saneador, ou

seja, o julgamento do mérito da pretensão será desenvolvido basicamente a partir

dos temas levantados pelas partes interessadas ao longo do procedimento e até a

fase saneadora. Isso evidencia a possibilidade de participação direta e efetiva dos

interessados difusos e coletivos quanto à legitimidade na definição dos temas que

integrarão a matéria de mérito. Não é mais o autor da ação, o demandado e o

julgador que definirão solitariamente quais questões que integrarão o debate

meritório em uma ação coletiva. Considerando-se que o estudo do mérito perpassa

pelo redimensionamento de um espaço processualizado de debate amplo e

isonômico da pretensão, nada mais coerente do que reconhecer os próprios

interessados como os verdadeiros legitimados à construção do mérito processual.

A fundamentação da decisão judicial perpassa pelo enfrentamento e pela

análise discursiva a ser implementada pelo juiz quanto a todos os temas e todas as

234 O anteprojeto trabalha expressamente toda a discussão cientifica proposta. “Art. 9º. Encerrada a fase de formação participada do mérito, o juiz delimitará a proposta de objeto da ação temática, catalogando os pontos controvertidos, aglutinando os que tiverem idêntico sentido e separando os que formarem pontos diversos a serem debatidos na ação temática. A seguir decidirá sobre as provas necessárias e apreciará eventuais pedidos de antecipação de tutela, podendo designar audiência, a qual comparecerão os interessados e seus procuradores”. Na seqüência temos: “Art. 10. Findo o prazo para a manifestação dos interessados, o escrivão fará a conclusão dos autos para que o juiz no prazo de 10 (dez) dias determine, conforme o caso as providências preliminares e delimite o tema da ação proposta. Disponível: http://www.fmd.pucminas.br/. Acesso: 12 jan. 2012.

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questões levantadas pelas partes interessadas ao longo do procedimento. O

julgador não poderá ser omisso quanto à análise de algum tema suscitado pelas

partes, tendo em vista que sua inércia ou omissão é interpretada com ofensa direta

aos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal. O ato

de decidir no Estado Democrático de Direito implica em permitir a construção

participada do mérito processual mediante o enfrentamento jurídico-constitucional de

todas as questões e temas suscitados pelas partes no processo coletivo.

O espaço processual discursivo somente será instaurado quando o juiz, o

representante do Ministério Público e todo e qualquer interessado difuso ou coletivo

forem interlocutores no entendimento crítico e na análise dos fundamentos da

pretensão.

O discurso democrático realizado no âmbito processual é aquele em que os

sujeitos têm igual oportunidade de debate da pretensão coletiva e, no momento da

construção participada do provimento, todos os temas e alegações das partes

devem ser atentamente analisados pelo julgador. Isso significa dizer que o julgador

não poderá se omitir e, tampouco ignorar, qualquer tema levantado

processualmente. A observância efetiva do contraditório, da ampla defesa e do

devido processo legal decorre do direito que os interessados têm de não serem

surpreendidos por uma decisão que não contemple e nem analise os temas ora

alegados em juízo, por não constituir faculdade do julgador a participação no debate

jurídico e fático da pretensão coletiva ou difusa.

Toda decisão judicial proferida solitariamente pelo julgador que

desconsiderou, total ou parcialmente, o debate dos temas colocados pelas partes, é

juridicamente considerada nula, haja vista que, sendo o contraditório e a ampla

defesa princípios que caminham numa via de mão dupla, a sua efetivação ocorrerá

tão somente quando o julgador puder realizar uma análise sistemática das

alegações e de todos os temas trazidos para o processo coletivo.

A opção dos autores do anteprojeto pela possibilidade de qualquer

interessado difuso poder propor uma ação coletiva tem como finalidade assegurar

maior amplitude quanto ao acesso ao Judiciário. Importante ressaltar que ao

estabelecer o principio da inafastabilidade do controle jurisdicional, o legislador

constituinte pretendeu, no artigo 5º, inciso XXXV, ampliar as vias de acesso ao

Judiciário, que não deve ser visto apenas como o direito de propor uma ação

coletiva, mas, acima de tudo, o direito de discutir o mérito da pretensão coletiva

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deduzida em juízo. É por isso que se torna necessário esclarecer que no contexto

das ações coletivas como ações temáticas o direito de amplo acesso ao Judiciário,

assegurado a todos os interessados difusos e coletivos indistintamente, implica no

direito que cada qual tem de participar diretamente da construção do mérito

discursivo da ação coletiva.

Importante ressaltar que, em momento algum no anteprojeto apresentado

pela Pucminas, verifica-se o instituto do representante adequado, o que denota

claramente a superação do sistema representativo como norte ao entendimento

critico do modelo constitucional-democrático de processo coletivo, desenvolvido

essencialmente sob a ótica do principio participativo, previsto expressamente no

artigo 1º da Constituição brasileira de 1988.

Conforme anteriormente mencionado, qualquer interessado poderá manifestar

interesse na ação temática e formular pedido declaratório, constitutivo ou

condenatório que confirme, rejeite ou modifique o pedido inicial. Sabe-se que a

participação no debate do mérito processual da ação temática fica condicionada a

ampla publicidade do objeto da ação. Foi por isso que os autores do anteprojeto

foram enfáticos ao estabelecerem que o princípio da publicidade é corolário dos

princípios da ampla defesa e do contraditório, até porque, o direito de argumentação

jurídica da pretensão no espaço processual pressupõe inicialmente a ampla e efetiva

publicidade do objeto da ação temática. Foi por isso que se estabeleceu que a

citação do demandado será por carta, com aviso de recebimento, para aquelas

pessoas indicadas na exordial e que possuam endereço certo, sabendo-se que

também teremos a citação por edital, a fim de atender todos os demais interessados

em participar do processo.

Considerando-se que somente o edital não é medida efetiva para garantir a

ampla publicidade do objeto da ação temática no Brasil, haja vista que não faz parte

da cultura do povo brasileiro a leitura de editais de citação, o juiz deverá se utilizar

dos meios de comunicação mais eficazes na comarca, bem como a publicização

nos órgãos de comunicação oficial da União e Estados. Além disso, torna-se

necessária a utilização de veículos de imprensa escrita, falada e televisionada,

assim como a ferramenta da Internet e das redes sociais (Orkut, facebook, msn,

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skype, twitter) como instrumento legítimos a garantir publicidade, economia e

efetividade processual às ações coletivas235.

A ampla publicidade do objeto da ação coletiva é uma forma de convocação

das partes interessadas para participarem do debate, a fim de que cada interessado

ou grupo de pessoas interessadas possa apresentar uma visão própria ou um tema

especifico correlacionado com o conteúdo central da discussão que conduzirá a

construção do mérito. Sem o envolvimento direto dos interessados no debate dos

fundamentos da pretensão, torna-se comprometida o compartilhamento, entre as

partes, da legitimidade assegurada a cada sujeito individualmente de conseguir

intervir e influir de forma efetiva no conteúdo daquilo que foi decidido pelo julgador.

O principio participativo é pressuposto para o exercício, o entendimento e a

discussão científica da cidadania no Estado Democrático de Direito. Considera-se

cidadão, no contexto do processo coletivo, todo aquele sujeito que tem oportunidade

e legitimidade de participação no direcionamento e no desenvolvimento do discurso

instaurado, a fim de delinear a maneira mais adequada de resolver a pretensão em

conformidade com as expectativas e com os direitos da coletividade. A construção

do mérito participado na perspectiva dos princípios da isonomia processual, do

contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal é a forma mais legitima de

oportunizar o exercício da cidadania no contexto das ações temáticas.

A cidadanização de indivíduos somente será possível através do processo

constitucional, que se trata de um modelo de coletivização das demandas em que os

interessados difusos e coletivos buscam a implementação de Direitos Fundamentais,

cuja liquidez e certeza encontram-se previamente definidos no plano constituinte.

Não é possível pensar e compreender o exercício da cidadania desvinculado da

sistematicidade constitucional dos Direitos Fundamentais como normas jurídicas

auto-aplicáveis e regentes da democracia, ressaltando-se que a democratização do

235 Art. 8º. As ações para a tutela dos direitos difusos seguirão a forma procedimental a seguir delineada: [...] III- Ao receber a inicial o juiz determinará a citação por carta, com aviso de recebimento, daquelas pessoas indicadas na petição inicial e que possuam endereços certos e, por edital, com prazo mínimo de 30 (trinta) dias, para que qualquer interessado possa comparecer e participar do processo. IV- O juiz deverá dar ampla publicidade à ação temática nos meios de comunicação mais eficazes disponíveis na comarca, sendo obrigatória a publicação no órgão de comunicação oficial da União, Estados e Municípios, em local próprio e de fácil visualização. Deverá ainda ser publicado o edital pelo menos uma vez em jornal de grande circulação local, e divulgado em rede de rádio local pelo menos três vezes por semana, em horários diferentes do dia, até o término do prazo do edital. O jornal e rádio locais não poderão recusar a divulgação, sob pena de ser imposta multa diária pelo juiz até o cumprimento da ordem, sem prejuízo das sanções administrativas e penais cabíveis à espécie. Disponível: http://www.fmd.pucminas.br/. Acesso: 12 jan. 2012.

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processo coletivo perpassa essencialmente pela participação e pela argumentação

das partes interessadas com relação à demanda coletiva levada ao Judiciário.

A realização de audiência pública é uma forma bastante legitima para efetivar

a ampla participação dos sujeitos no processo coletivo. Trata-se de um momento

processual de extrema relevância, no sentido de permitir um diagnóstico mais

aprimorado a fim de clarear quais as demandas e os temas trazidos pelos sujeitos

interessados e, assim, especializar e amadurecer o debate democrático da

pretensão.

O momento processual mais adequado para a realização da audiência pública

é aquele que antecede a fase de saneamento, em virtude de oportunizar ao julgador

o levantamento do maior número de temas possíveis e relacionados com a demanda

inicial. Porém, na fase instrutória, a audiência pública teria a finalidade de debater os

temas ou as questões previamente definidas no despacho saneador, haja vista a

ocorrência da preclusão temporal quanto à possibilidade de apresentação de novos

temas. A finalidade da audiência pública ao longo da instrução processual é influir

diretamente na construção do mérito processual, mediante a participação de todos

os legitimados ao discurso democrático das peculiaridades da demanda.

A discursividade na produção probatória também é um tema relevante trazido

pelo anteprojeto, uma vez que temos o compartilhamento ou a distribuição dinâmica,

entre as partes, do ônus da prova, que não fica concentrado exclusivamente na

pessoa do autor da ação. Todos os sujeitos vinculados direta ou indiretamente com

a pretensão coletiva tem o dever legal de colaborar com o esclarecimento dos fatos

alegados, tendo em vista a indisponibilidade e o caráter não patrimonial típico dos

direitos coletivos, cuja titularidade transcende o nível da individualidade.

A determinação da inversão do ônus da prova236 ocorrerá quando o autor da

ação ou os demais interessados não puderem ou não conseguirem produzir uma

determinada prova que depende exclusivamente da iniciativa da parte demandada

ou de qualquer outra parte juridicamente interessada. Em face do dever legal de

cada sujeito colaborar processualmente com o esclarecimento objetivo da pretensão

é que o julgador terá a legitimidade para determinar coercitivamente a produção da

236 Art. 11, § 1º. O ônus da prova poderá ser invertido de acordo com a especificidade das provas que serão produzidas. Neste caso o juiz deverá sempre garantir o contraditório antes de apreciar o pedido de inversão e proferir decisão fundamentada na qual esclareça os pontos que motivaram em sua decisão.

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prova pretendida, a fim de garantir a aplicabilidade do principio da fundamentação

das decisões judiciais.

A construção participada do mérito processual nas ações temáticas

pressupõe a produção de todas as provas e meios de provas licitos e legitimamente

admitidos em direitos, assim como o seu debate, no contexto da pretensão coletiva,

realizado por todos os sujeitos que a produziram e que sofrerão os efeitos jurídicos

das provas produzidas nos autos. O amplo debate da pretensão coletiva a ensejar a

construção o mérito perpassa pela discussão analítica e precisa de todo acervo

probatório produzido pelas partes.

Outra preocupação dos autores do anteprojeto diz respeito a observância do

principio da lealdade processual e da não utilização do processo coletivo como uma

ferramenta de violação de direitos e de danos causados a terceiros de boa fé.

Buscou-se regulamentar a possibilidade de condenação da parte pela prática de

litigância de má fé em caso de comprovada intenção de agir com o propósito de

desvirtuar a finalidade legítima do processo coletivo, qual seja, oportunizar a

proteção jurídica de bens de natureza metaindividual. Estabelece o anteprojeto

conseqüências jurídicas para aqueles que agirem de forma processualmente

desleal, os obrigando a restituir o valor gasto pelo Fundo de Defesa dos Direitos

Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos na produção de provas237, assim como

o condenando a pagar multa não excedente a 10% (dez por cento) do valor da

causa238.

O dever das partes agirem com lealdade processual se justifica no contexto

da finalidade geral do processo coletivo, que busca, na sua inteireza, tão somente

proteger o mais amplamente possível os direitos de pessoas, não na sua

individualidade, mas no seu contexto geral e coletivo. A repressão da deslealdade

processual é uma forma estimular os interessados difusos a utilizarem as ações

temáticas como verdadeiros espaços de debate processual e de proteção jurídica de

237 Art. 14. Quando o ônus probatório for incumbência do interessado, cuja capacidade de produção de provas seja limitada por critérios econômico-financeiros demonstrado nos autos, o juiz determinará que o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos (FDD), arque com todas as despesas referentes à produção da prova. § 1º. Nas hipóteses em que ocorrer litigância de má-fé, nos termos dos arts. 16 e seguintes do CPC, o interessado fica obrigado a ressarcir todas as despesas adiantadas pelo FDD, sem prejuízo da multa do art. 18 do mesmo diploma legal, o que será declarado e executado nos próprios autos da ação temática. 238 Art. 24. Em caso de litigância de má-fé, nos termos dos artigos 16 a 18 do Código de Processo Civil, o vencido será condenado a pagar multa não excedente a 10% (dez por cento) do valor da causa, ressalvada a indenização da parte contrária pelos prejuízos sofridos em razão da conduta ilícita.

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seus direitos. O desvirtuamento dessa finalidade inicial preestabelecida traz reflexos

nefastos quanto à própria credibilidade da utilização das ações temáticas para

viabilizar a construção participada do mérito processual e o amparo dos direitos

coletivos e difusos.

Quanto à regulamentação da sentença e da coisa julgada o anteprojeto

confirma proposições legislativas de anteprojetos anteriores, tais como, a revogação

do reexame necessário das sentenças coletivas, a não limitação territorial para a

coisa julgada, o efeito erga omnes para as sentenças que julgaram procedente o

pedido inicial, salvo para os casos de improcedência decorrentes da insuficiência de

provas.

A grande contribuição dos autores desse anteprojeto diz respeito ao

esclarecimento jurídico de que a coisa julgada será constituída basicamente em

cima dos temas e das questões fáticas e jurídicas que integraram o mérito

processual da demanda. Todas aquelas questões ou todos aqueles temas que não

tenham sido eventualmente objeto de debate meritório da ação temática não se

submeterão à coisa julgada, constituindo fundamento para a propositura de uma

nova ação239. Assim, a imutabilidade e a indiscutibilidade como características

típicas do instituto da coisa julgada material no processo civil, serão relativizadas no

processo coletivo (ações temáticas) no momento em que se admite novo debate de

temas correlatos à construção participada do mérito em ação temática anterior e cuja

sentença já tenha se submetido à coisa julgada.

3.4 Síntese O atual e vigente modelo de processo coletivo adotado no Brasil tem raízes

no processo civil, é centrado numa visão individualista e se desenvolve mediante a

reprodução dos conceitos, dos institutos, do procedimento, da jurisdição, da ação e

de todos os demais elementos que lhes são inerentes, cuja teorização decorre,

239 Art. 26. Nas ações temáticas de que trata este Código, a sentença fará coisa julgada erga omnes e haverá a preclusão máxima das questões objeto da ação temática, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer interessado poderá intentar outra ação, com mesmo tema, valendo-se de nova prova. § 1º. Em qualquer hipótese que houver prova nova poderá ser ajuizada nova ação temática com o mesmo tema antes proposto, desde que constitua novo fundamento. § 2º. Os efeitos da coisa julgada nas ações temáticas, se procedente o pedido, beneficiarão os interessados e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos artigos dos Livros II e III deste Código. § 3º. A competência territorial do órgão julgador não representará limitação para a coisa julgada erga omnes.

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essencialmente, do direito privado e da vertente construída para a análise e a

resolução de conflitos de interesses individuais. A coletivização das demandas

judiciais exige que os estudiosos reestruturem o direito processual, a fim de superar

o modelo civilista de resolução de conflitos para, assim, estender as vias de acesso

ao Judiciário, de modo que todas as demandas de cunho transindividual sejam

apreciadas no sentido de viabilizar o amplo debate da pretensão pelos sujeitos

juridicamente interessados.

O resgate histórico do processo coletivo foi necessário para comprovar que a

construção de todos os seus fundamentos se deu a partir do processo civil, cujo foco

é a proteção jurídica do sujeito individual, e não no âmbito da sua coletividade. A

demonstração mais clara da presença da ideologia civilista e individualista de

processo encontra-se evidenciada na reprodução de um modelo de processo

coletivo em que os sujeitos diretamente interessados no seu objeto e na demanda

são excluídos do debate das questões meritórias. Além disso, podemos observar os

resquícios do liberalismo quando encontramos a utilização da denominação “direito

processual civil coletivo”, algo que denota, de forma muito clara, a ausência de uma

“Teoria Geral do Processo Coletivo”, com objeto e metodologia próprios, que tenha

sido desenvolvida especificamente para sistematizar teoricamente o estudo do

direito processual coletivo, com o enfoque voltado para a principiologia constitucional

(isonomia processual, contraditório, ampla defesa, devido processo legal, ampla

participação dos interessados difusos e coletivos na construção do mérito

processual, fundamentação das decisões judicial, direito ao advogado, amplo

acesso ao Judiciário como um direito fundamental de debate amplo do mérito da

pretensão) e para os Direitos Fundamentais.

A adoção do sistema representativo, como fundamento regente do modelo de

processo coletivo ainda adotado no Brasil, demonstra a opção do legislador pela

escolha de algumas instituições legitimadas a representar a coletividade na proteção

dos direitos de natureza transindividual, tal como ocorre com o Ministério Público e

os entes da Administração Pública Direta e Indireta. Não se pretende aqui

deslegitimar a atuação do Ministério Público, mas, tão somente, oportunizar a

atuação conjunta da instituição com todos os demais interessados na pretensão

coletiva, para que todos sejam resguardados quanto à observância do principio da

isonomia processual e tenham a mesma oportunidade de argumentação jurídica

quanto à construção discursivo-democrática do mérito do provimento jurisdicional.

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A presença constante do representante adequado dos direitos dos integrantes

de uma classe de pessoas é o que caracteriza basicamente o modelo das class

actions no sistema norte-americano que, embora seja prestigiado e festejado por

inúmeros juristas em todo o mundo, não abandona o modelo representativo e, por

isso, não se compatibiliza com a constitucionalidade democrática, cujo modelo de

processo se estrutura e se desenvolve pelo princípio participativo. A impossibilidade

dos interessados acompanharem o debate das questões de mérito ao longo de todo

o procedimento desenvolvido nas class actions torna inviável efetivar a construção

participada do provimento jurisdicional, uma vez que o juiz é considerado o gestor do

processo coletivo e o habilitado a decidir, muitas vezes de forma solitária, haja vista

que é o detentor da legitimidade para a sua condução da forma mais efetiva

possível.

A eclosão do movimento da codificação do direito processual coletivo vem

atender a necessidade de sistematização legislativa dos direitos metaindividuais.

Conforme exposto ao longo de todo o debate cientifico apresentado, podemos

concluir inicialmente que a elaboração de um código de processos coletivos deverá

vir posteriormente à teorização dessa área da ciência do Direito, ou seja, hoje a

necessidade que temos é de aprimorar as pesquisas voltadas ao estudo dos direitos

difusos e coletivos, a fim de compreender criticamente os fundamentos jurídico-

constitucionais que poderão ser utilizados como norte para uma eventual codificação

dessa área do conhecimento.

Particularmente entende-se que existe certa precipitação entre os

pesquisadores quanto à codificação, facilmente constatada quando se visualiza que

a grande maioria das proposições legislativas analisadas no presente trabalho de

pesquisa simplesmente reproduzem um modelo de processo coletivo já superado

com o advento do Estado Democrático da Direito. Talvez uma análise inicial dos

anteprojetos da USP, UERJ, anteprojeto original e o Código-Modelo nos leva

concluir, precipitadamente, que o foco legislativo seria a ampliação da participação

dos interessados no processo coletivo, porém, somente no anteprojeto desenvolvido

na Pucminas que se consegue visualizar uma proposta legislativa de sistematização

do direito processual coletivo a partir da Teoria das Ações Coletivas como Ações

Temáticas.

Dos anteprojetos analisados, o único que atende ao principio participativo é o

proposto pela Pucminas, uma vez que rompe com a concepção teórica de estudo e

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de análise do direito processual coletivo sob o foco exclusivo do sujeito legitimado

ativo às ações coletivas, tal como propõe os demais anteprojetos. O Brasil hoje

adota, sob o ponto de vista legislativo e teórico, um modelo de processo coletivo que

foi construído à margem da discursividade democratizante, uma vez que, pela

análise da Lei de Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor os

sujeitos que serão diretamente afetados pelo provimento estão excluídos de

participarem de sua construção e do debate das questões que integram a matéria de

mérito. O que as ações coletivas como ações temáticas propõe é justamente

viabilizar a implementação do principio participativo como o substrato teórico de todo

o modelo de processo coletivo que se desenha basicamente a partir do objeto, e não

mais do sujeito.

Dessa forma sabe-se que, a construção do conceito de legitimidade dos

interessados difusos e coletivos não decorrerá exclusivamente da vontade do

legislador em escolher quem pode e quem não pode propor uma ação coletiva. Pela

Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, a ação poderá ser proposta por

qualquer sujeito juridicamente interessado no debate processual da matéria de

mérito, permitindo-se que outros sujeitos, ao longo do procedimento, tragam para o

espaço processualizado outros temas correlatos à pretensão inicialmente deduzida,

para, assim, publicizar e ampliar ao máximo, no contexto do contraditório e da ampla

defesa, o objeto da ação coletiva.

Pretende-se, com isso, superar a noção preconizada pelo processo civil de

que o objeto se define quando da propositura da ação e da apresentação da defesa

pela parte demandada (assim como pela utilização da reconvenção e do pedido

contraposto). No processo coletivo, visto e compreendido sob a égide das ações

temáticas, a exordial é o primeiro momento processual de definição do objeto da

ação coletiva, uma vez que, ao longo de todo o procedimento, e até a fase

saneadora, os interessados poderão imiscuir-se diretamente na delimitação de toda

a matéria de mérito que regerá e orientará todo o debate processual na fase

instrutória. Essa é a base e o fundamento central para o entendimento preliminar da

construção participada do mérito processual no contexto das ações temáticas, que

deve ser visto como o fundamento legitimante do provimento jurisdicional no Estado

Democrático, proposições teóricas essas que serão trazidas no capitulo

subseqüente.

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4 PROCESSO COLETIVO E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO O Estado Democrático de Direito trouxe para o direito processual substanciais

alterações paradigmáticas, especialmente no sentido de compreender o processo, a

jurisdição e a ação sob o enfoque constitucional. Nessa seara, o processo passa a

ser visto como uma garantia constitucional que viabiliza o exercício da cidadania por

meio da concretização dos Direitos Fundamentais expressamente previstos no plano

constituinte. A superação do modelo autocrático de jurisdição, centrado

essencialmente no poder conferido aos julgadores de decidir unilateralmente as

pretensões a eles submetidas, ocorreu com o advento da co-participação de todos

interessados na construção do provimento jurisdicional. A revisitação teórica das

condições da ação permitiu aos estudiosos inseri-las no contexto das questões

meritórias, a fim de assegurar o amplo acesso ao Judiciário e, especialmente, o

direito de todos os legitimados serem inseridos no espaço processual de discussão

analítica da pretensão deduzida.

Os reflexos dessas proposições são visíveis quando se verificam inúmeras

críticas ao clássico modelo de processo coletivo, constituído basicamente a partir de

ideais liberais e individualistas, preconizado pelo processo civil brasileiro vigente. A

teoria das ações coletivas como ações temáticas foi proposta no sentido de

democratizar o entendimento constitucionalizado do processo coletivo, não o

compreendendo mais a partir do sujeito, mas sim, a partir do objeto da ação coletiva

proposta. Assim, Vicente de Paula Maciel Júnior, ao criticar o rol taxativo de

legitimados à ação civil pública e às demais ações coletivas, propõe a ampliação da

participação no processo coletivo, estendo a todos os sujeitos juridicamente

interessados no provimento.

Será a partir dessas considerações iniciais que se pretende discutir a

problemática envolvendo o mérito processual participado nas ações coletivas, a fim

de superar a delimitação do número de sujeitos legitimados, ampliando a

possibilidade dos interessados, em geral, apresentarem tempestivamente temas

correlatos à pretensão inicialmente deduzida em juízo e, assim, terem a

possibilidade de influir diretamente no conteúdo meritório da decisão judicial. Assim,

tanto as questões de mérito, quanto o próprio mérito processual nas ações

temáticas, decorrem basicamente da releitura democrático-constitucionalizada do

processo coletivo.

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4.1 A constitucionalização do processo e da jurisdi ção no Estado Democrático de Direito

A democratização do processo coletivo perpassa pela superação do modelo

técnico-autocrático do processo e da jurisdição como recintos da perpetuação da

vontade exclusiva do julgador e pelo advento do entendimento crítico-

constitucionalizado do modelo de processo, que se materializa por meio de um

espaço procedimental-legitimante, em que o provimento jurisdicional é reflexo do

debate isonômico e incessante das questões meritórias por todos os sujeitos que

poderão ser atingidos pelos efeitos jurídicos do conteúdo decisório.

Os estudos do processo como instituição constitucionalizada apta a reger, em

contraditório, ampla defesa e isonomia, o procedimento, como direito-garantia

fundamental, desponta inicialmente na obra do jurista mineiro José Alfredo de

Oliveira Baracho (LEAL, 2009, p. 84). O movimento de constitucionalização do

processo e da jurisdição coincide com a desconstrução teórica da ideologia que

sedimentou uma hermenêutica que se desenvolveu basicamente a partir da

sabedoria inata do julgador, dando lugar à hermenêutica constitucional e

democrática dos Direitos Fundamentais, centrada em critérios objetivamente

jurídicos e utilizados como parâmetro ao discurso processualizado e à aplicabilidade

do principio da fundamentação das decisões judiciais, como reflexos do devido

processo legal (ressalta-se que o devido processo legal deve ser compreendido

como o prolongamento do processo constitucional e de suas extensões

procedimentais).

Nesse ínterim, o processo deixa de ser visto como mero instrumento240 para o

exercício da jurisdição e de proclamação da vontade do julgador como o único

240 Quando Cândido Rangel Dinamarco proclama, ao se contrapor a Fazzalari, que a diferença entre ambos “é que o professor de Roma põe o Processo ao centro do sistema” enquanto a proposta é que “ali se ponha a jurisdição”, conclui-se facilmente que o insigne professor paulista e seus inúmeros discípulos, em todo o Brasil e no mundo, ainda não fizeram opção pelo estudo do direito democrático, pensando ainda ser o plano da DECISÃO exclusivo do decididor (juiz) e não um espaço procedimental de argumentos e fundamentos processualmente assegurados até mesmo para discutir a legitimidade da força do direito e dos critérios jurídicos de sua produção, aplicação e recriação. Em face da teoria constitucional legalmente adotada na Constituição brasileira de 1988, o momento decisório não é mais a oportunidade de o juiz fazer justiça ou tornar o direito eficiente e prestante, mas é o instante de uma DECISÃO a ser construída como resultante vinculada à estrutura procedimental regida pelo PROCESSO constitucionalizado. Nessa perspectiva, que é de direito democrático, o processo não é instrumento da jurisdição ou mera relação jurídica entre partes e juiz, porque é instituição-eixo do principio do existir do sistema (aberto) normativo constitucional-democrático e que legitima o exercício normativo da jurisdicionalidade em

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legitimado a decidir, e passa a redesenhar sua finalidade na perspectiva em que o

compartilhamento do centro das decisões passou a legitimar todos os interessados

difusos e coletivos na construção discursivo-democrática do conteúdo que integrará

o mérito do provimento jurisdicional. Buscou-se, com isso, instituir o discurso

democrático como o referencial teórico para o estabelecimento de critérios jurídicos

da decisão judicial compartilhada. A teoria neo-institucionalista do processo241, de

autoria do jurista mineiro Rosemiro Pereira Leal, de cunho dialógico-popular, propõe

o estudo do processo como uma instituição constitucionalizada hábil a assegurar

irrestritamente o controle dos procedimentos político-jurídicos, num espaço

discursivo-processualizado que legitima o exercício da cidadania.

O processo na Teoria do direito democrático deve ser visto como um sistema

de institucionalização do discurso que oportunizará a legitimação do provimento pela

participação das partes juridicamente interessadas na argumentação da pretensão

deduzida. As proposições que teorizarão o direito democrático são produto da

instauração do discurso no plano instituinte e constituinte, uma vez que “a

positivação do direito democrático não parte de uma ontologia ínsita à norma

(nomogênese), como preconizam os jusnaturalistas, os fenomenologistas e os

realistas, em suas múltiplas e engenhosas vertentes conjecturais, mas é elaborado

no recinto discursivo de juridificação procedimental definidora dos critérios de

produção, aplicação e garantia de direitos” (LEAL, 2002, p. 75-76).

Os reflexos do direito democrático na seara do processo coletivo são

exteriorizados pelo exercício da cidadania242, que é um conceito que não deve ficar

adstrito à participação dos interessados no processo. A leitura mais adequada da

cidadania, sob a égide do modelo constitucional de processo, é aquela que se todas as esferas de atuação do Estado que, por sua vez, também se legitima pelas bases processuais institutivas de sua existência constitucional (LEAL, 2002, p. 68-69). 241 [...] o que se busca com uma teoria neo-institucionalista do processo é a fixação constitucional do conceito do que seja juridicamente processo, tendo como base produtiva de seus conteúdos a estrutura de um discurso advindo do exercício permanente da cidadania pela plebiscitarização continuada no espaço processual das temáticas fundamentais à construção efetiva de uma Sociedade Jurídico-Política de Direito Democrático (LEAL, 2009, p. 89) (grifo nosso). 242 É que, quando escrevemos, em direito democrático, sobre cidadania como conteúdo de processualização ensejadora da legitimidade decisória, o que se sobreleva é o nivelamento de todos os componentes da comunidade jurídica para, individual ou grupalmente, instaurarem procedimentos processualizados à correição (fiscalização) intercorrente da produção e atuação do direito positivado como modo de auto-inclusão do legislador-político-originário (o cidadão legitimado ao devido processo legal) na dinâmica testificadora da validade, eficácia, criação e recriação do ordenamento jurídico caracterizador e concretizador do tipo teórico de estabilidade constitucionalizada. Em direito democrático, o processo abre, por seus princípios institutivos (isonomia, ampla defesa, contraditório) um espaço jurídico-discursivo de auto-inclusão do legitimado processual na comunidade jurídica para a construção conjunta da sociedade jurídico-política. [...] (LEAL, 2002, p. 150).

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constrói pela legitimidade de ampla fiscalidade do sujeito quanto à validade, a

eficácia, a criação, a aplicação e a interpretação do direito e da norma jurídica

utilizados como critérios e fundamentos da decisão.

Ser cidadão, no contexto da processualidade democrática, é ter a

possibilidade de influenciar diretamente no conteúdo da decisão a partir do direito

legitimo de discussão do conteúdo meritório da demanda. Outro ponto relevante a

ser ressaltado é que, tanto a participação no processo quanto o direito de amplo

controle do conteúdo de todos os provimentos estatais somente serão corolários do

exercício pleno da cidadania se os sujeitos estiverem isonomicamente no mesmo

plano processual de argumentação fático-jurídica da pretensão. O mérito processual

será democraticamente construído se a participação dos interessados difusos e

coletivos for livremente exercida e desenvolvida no sentido de efetivar a ampla

fiscalização da atividade do julgador no ato de decidir.

Cidadão é todo o sujeito de direito com oportunidade de legitimar o

provimento democrático pelo amplo controle dos atos ensejadores ao exercício da

função jurisdicional, ressaltando-se que tal fiscalização é continuada, ou seja, desde

o ponto decisório de criação até o momento de aplicação do direito. A atividade

fiscalizatória é exercida por quem detém a titularidade do direito de ação, que deve

ser visto como um direito incondicionado e irrestrito em que os próprios destinatários

do provimento podem se reconhecer como co-autores da normatividade vigorante. A

cidadania é conseqüência da processualização constitucionalizada do conceito de

“povo”, uma vez que a noção de soberania popular deve ser vista na perspectiva de

um sujeito, cujo exercício da cidadania, perpassa pela condição de protagonista do

discurso ora instaurado no espaço processual democratizado pela argumentação.

Nesse contexto torna-se necessário esclarecer que os fundamentos teóricos

do Estado Democrático de Direito encontram-se na explicação de que a democracia

é o regime político capaz de garantir formal e materialmente o exercício dos direitos

fundamentais, cuja legitimidade perpassa pela participação dos seus destinatários

na construção das normas jurídicas, dos provimentos estatais e do mérito

participado no modelo constitucional de processo coletivo a partir da teoria do

discurso, conforme entendimento preconizado por Habermas:

Neste ponto, é possível enfeixar as diferentes linhas de argumentação, a fim de fundamentar um sistema dos direitos que faça jus à autonomia privada e pública dos cidadãos. Esse sistema deve contemplar os direitos

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fundamentais que os cidadãos são obrigados a se atribuir mutuamente, caso queiram regular sua convivência com os meios legítimos do direito positivo (2003, p. 154).

Nesse mesmo sentido se manifesta Habermas: “A idéia da autolegislação de

civis exige que os que estão submetidos ao direito, na qualidade de destinatários,

possam entender-se também enquanto autores do direito” (2003, p. 157). A

teorização da legitimidade democrática dos provimentos decorre essencialmente da

interpretação sistemático-constitucionalizada do principio da soberania popular como

corolário a justificar a impossibilidade do legislador estabelecer peremptoriamente

um rol taxativo de legitimados à propositura das ações coletiva que não contemple o

cidadão. Busca-se fundamento em Habermas para o entendimento da gênese da

democracia por se tratar inegavelmente de um dos primeiros pesquisadores a

desenvolver estudos sistematizados do tema no âmbito da teoria do discurso,

mediante o reconhecimento da autonomia dos sujeitos atuarem como efetivos

cidadãos habilitados à influir decisivamente no mérito da demanda.

Para Vicente de Paula Maciel Junior, citando Habermas, constata-se o Estado

sempre teve um fundamento ou alguma razão que o justificasse, de modo a haver o

reconhecimento de seu poder (por exemplo, no Estado Teocrático o que legitimava o

exercício do poder era Deus). No momento em que o Estado perde esse referencial

que o legitima ao exercício do poder vê-se na necessidade de reestruturar sua auto-

organização jurídica, a fim de compartilhar o seu centro decisório. É nesse contexto

que se verifica a sedimentação do principio participativo, visto que o Estado passa a

ser visto com um dos interlocutores, juntamente com os diversos segmentos da

sociedade, a estabelecer um processo de participação dos sujeitos quanto às

diversas pretensões existentes dentro dessa sociedade. Assim, “[...] o poder do

Estado Democrático de Direito, que seja formado por cidadãos livres e iguais, deve

pressupor a participação dos diversos segmentos da sociedade e suas instituições

através de processos de linguagem que estabeleçam as discussões sobre as

diversas pretensões de validade dos sujeitos participantes [...]” (MACIEL JUNIOR,

2006, p. 49).

A superação da filosofia da consciência (cujo foco da reflexão filosófica

encontrava-se na ontologia e na essência das coisas) pelo advento da filosofia da

linguagem permitiu a reconstrução de todo o pensamento filosófico, uma vez que o

discurso democrático passa a ser visto como a condição para a produção do

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conhecimento, ou seja, a linguagem passa a ser vista como “o objeto da reflexão

filosófica para a esfera dos fundamentos de todo o pensar” (ALMEIDA, 2005, p. 40).

Nessa seara sabe-se que o direito, a partir do processo constitucional, assume a

função de estabilizar a linguagem, com o propósito de assegurar iguais

oportunidades de participação dos sujeitos no discurso democrático243. A criação de

um espaço processualizado que legitima isonomicamente todos os interessados a

debaterem amplamente a pretensão sob a perspectiva jurídica e fática deve ser vista

como conditio sine qua non ao entendimento crítico do mérito processual participado

nas ações temáticas.

O estudo do processo no Estado Democrático de Direito somente é possível a

partir da Constituição, tendo em vista que o processo deve ser visto como garantia

constitucional, a jurisdição244 como um Direito Fundamental e a ação como um

direito incondicionado de discutir o mérito das pretensões mediante o amplo e efetivo

acesso ao Judiciário. A construção da noção constitucionalizada de processo, como

instituição voltada para a efetivação dos Direitos Fundamentais previstos no plano

constituinte, decorre da necessidade dos estudiosos em superar a concepção

técnica de um modelo de processo visto como mero instrumento para o exercício da

jurisdição, através do qual a gestão e a condução de toda a relação processual são

exercidas exclusivamente pelo julgador, sem permitir qualquer ingerência das partes

interessadas quanto ao objeto discutido processualmente.

O advento de estudos voltados à sistematização crítica de uma concepção de

processo que contemple o exercício da cidadania a partir do principio da

participação permite o redimensionamento de toda a teoria clássica do processo

coletivo, cuja democratização pressupõe, inicialmente, a observância do principio da

supremacia da constituição e do devido processo legal, tal como explicita, de forma

muito clara e objetiva, o jurista Ronaldo Bretas de Carvalho Dias:

243 Nas sociedades complexas, devido à pluralidade de interesses e ao alto grau de insatisfação, a linguagem é frágil e por isso instável, para sozinha tornar previsível as decisões. Então, o direito assume a função de estabilizar a linguagem, ou seja, institucionaliza, atribui validade às pretensões de verdade (proposições), o que faz Habermas mais tarde transpor o agir comunicativo para o agir discursivo mediado pelo direito, vindo a construir a teoria discursiva do direito, momento em que irá contrapor a visão liberal de democracia à visão republicana, para elaborar uma compreensão procedimentalista da democracia e introduzir uma proposta procedural do discurso para a compreensão da emancipação humana (ALMEIDA, 2005, p. 41). 244 [...] a jurisdição, sob ângulos de jurisdiciariedade ou jurisdicionalidade geral, é a atividade e instrumento do Estado, submetidos à principiologia do processo como pressuposto inarredável de garantia máxima de direitos fundamentais na Sociedade Democrática de Direito (LEAL, 2009, p. 65).(grifo nosso).

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Em síntese, mais uma vez escudado na doutrina de Baracho, podemos dizer que a teoria constitucionalista do processo toma por base a idéia primeira da supremacia das normas da Constituição sobre as normas processuais. Considera o processo uma importante garantia constitucional, daí a razão pela qual surge consolidada nos textos das Constituições do moderno Estado Democrático de Direito, sufragando o direito das pessoas obterem a função jurisdicional do Estado, segundo a metodologia normativa do processo constitucional. A viga-mestra do processo constitucional é o devido processo legal, cuja concepção é desenvolvida tomando-se por base os pontos estruturais adiante enumerados, que formatam o devido processo constitucional ou modelo constitucional de processo: a) o direito de ação (direito de postular a jurisdição); b) o direito de ampla defesa; c) o direito ao advogado ou ao defensor público; d) o direito ao procedimento desenvolvido em contraditório; e) o direito à produção da prova; f) o direito ao processo sem dilações indevidas; g) o direito a uma decisão proferida por órgão jurisdicional previamente definido no texto constitucional (juízo natural ou juízo constitucional) e fundamentada no ordenamento jurídico vigente (reserva legal); h) o direito aos recursos (DIAS, 2010, p. 92-93).

O processo constitucional245 deverá ser visto como um recinto que oportuniza

o debate da pretensão por todos os interlocutores e interessados na produção do

provimento estatal. Importante ressaltar, que a participação no processo será regida

pelos princípios constitucionais que legitimarão o discurso democrático de

construção do provimento, a fim de assegurar:

a) a igualdade jurídica de argumentação a todos os sujeitos do processo;

b) o direito dos interessados livremente produzirem provas e se utilizarem dos

meios de provas licita e legitimamente admitidos em direito;

c) a garantia de que as partes não serão surpreendidas por uma decisão

unilateralmente imposta pelo julgador que não permite a co-autoria dos

destinatários do provimento;

d) o direito a uma decisão judicial juridicamente fundamentada e produto da

análise, pelo julgador, de todos os temas, as questões e as alegações

trazidas pelas partes para o processo; ou seja, a validade e a

constitucionalidade de uma decisão judicial pressupõe o dever do julgador

245 O processo lastreado em um modelo constitucional (Andolina, Vignera) constitui a base e o mecanismo de aplicação e controle de um direito democrático. Processo democrático não é aquele instrumento formal que aplica o direito com rapidez máxima, mas, sim, aquela estrutura normativa constitucionalizada que é dimensionada por todos os princípios constitucionais dinâmicos, como o contraditório, a ampla defesa, o devido processo constitucional, a celeridade, o direito ao recurso, a fundamentação racional das decisões, o juízo natural e a inafastabilidade do controle jurisdicional. Todos esses princípios serão aplicados em perspectiva democrática se garantirem uma adequada fruição de direitos fundamentais em visão normativa, além de uma ampla comparticipação e problematização, na ótica policêntrica do sistema, de todos os argumentos relevantes para os interessados (DIAS, 2010, p. 92 apud NUNES, 2008, p. 247-250).

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se manifestar, de forma fundamentada, sobre todas as questões postas

pelas partes e que integram a matéria de mérito objeto da demanda;

e) a efetividade processual é corolário dos princípios da celeridade processual

e da duração razoável do processo, cuja leitura deve ser feita sob a ótica

do tempo do processo e não do tempo cronológico, ou seja, um processo

regularmente efetivo é aquele em que não existem dilações indevidas, as

partes tem o direito de argumentação ampla (sem a supressão ou a

limitação do direito ao debate da pretensão por questões atinentes ao

tempo cronológico), as partes não praticam a litigância de má-fé ou

qualquer outro ato condizente a violação do principio da lealdade

processual. A realidade é que o principio da efetividade processual não

pode ser utilizado como pressuposto ao cerceamento de defesa e à

sumarização da cognição;

f) o exercício da cidadania, considerada um dos fundamentos do Estado

Democrático de Direito, somente será possível através do processo

constitucional, visto como uma garantia assegurada a todos os

jurisdicionados e legitimados de influir substancialmente nos fundamentos

que integrarão o conteúdo decisório do provimento de mérito.

A teorização do estudo do processo no modelo constitucional se justifica na

busca da superação do decisionismo judicial decorrente das percepções

metajurídicas246 do juiz com relação ao julgamento do caso concreto. “O juiz ou o

decididor, nas democracias, não é livre intérprete da lei, mas o aplicador da lei como

intérprete das articulações lógico-jurídicas produzidas pelas partes construtoras da

estrutura procedimental” (LEAL, 2009, p. 63). A atividade construtora do provimento

não deve decorrer de atos, de posturas ou de condutas solitárias dos juízes, visto

que, precisa ser compartilhada entre todos os interlocutores e interessados na

246 Se colocado o problema de acerto da decisão sob crivos principiológicos assistemáticos, como se as sentenças fossem atos isolados dos juízes, afasta-se também, nesse contexto, a conquista jurídico-teórica do processo (devido processo constitucional) como instituição regente da estruturação dos procedimentos pelo contraditório, ampla defesa, isonomia das partes, direito ao advogado e à movimentação incondicional da jurisdição. Com efeito, a hermenêutica desenvolvida no procedimento processualizado, nas democracias plenas, não se ergue como técnica interpretativa do juízo de aplicação vertical (absolutista) do direito, mas como exercício democrático de discussão horizontal de direitos pelas partes no espaço-tempo construtivo da estrutura procedimental fixadora dos argumentos encaminhadores (preparadores) do provimento (sentença) que há de ser “a conclusão” das alegações das partes e não um ato eloqüente e solitário de realização de justiça (LEAL, 2009, p. 57).(grifo nosso).

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elaboração do provimento. A isonomia discursiva é requisito à observância dos

princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, visto que a

legitimidade democrática da decisão perpassa pela possibilidade das partes

interessadas não serem surpreendidas com o conteúdo e os fundamentos do

julgado, muitas vezes desconexos e contrários àqueles argumentos e questões que

orientaram todo o debate do objeto da ação temática.

O devido processo legal é um principio cuja compreensão não pode ser

reduzida aos princípios do contraditório e da ampla defesa247, uma vez que a sua

observância no contexto da constitucionalidade democrática é pressuposto da

legitimação do conteúdo da matéria de mérito discutida processualmente. O Devido

Processo Constitucional não é o exercício da jurisdição (autoritária), como atividade

ou poder pessoal do juiz, quanto à análise do mérito processual, mas a garantia de

esgotamento do debate e de testificação dos argumentos que integram o cerne da

pretensão. Não é o julgador quem define unilateralmente as questões de mérito,

sem antes consultar as partes interessadas. A observância do principio do devido

processo legal somente ocorrerá quando houver o compartilhamento da atividade do

juiz e das partes interessadas quanto à definição das questões de mérito que

nortearão todo o discurso processual248.

“O contraditório deixa de ser um mero atributo do processo e passa à

condição de principio (norma) determinativo de usa própria inserção na estruturação

de todos os procedimentos preparatórios dos atos jurisdicionais (LEAL, 2002, p. 88).

Trata-se de principio que traduz a dialogicidade necessária entre os interlocutores,

oportunizando o amplo debate, exercendo a liberdade de dizer, contradizer e

silenciar-se quanto ao conteúdo do processo. Não podemos restringir o

entendimento do contraditório à idéia de bilateralidade, pois o que se busca é a

dialeticidade entre os sujeitos legitimados ao processo, não apenas entre o autor e o

247 [...] o instituto do devido processo legal define-se pela coexistência dos princípios da ampla defesa (necessariamente aqui incluído o direito ao advogado) e do contraditório, acrescentando-se o da isonomia à configuração constitucional da instituição do processo. (LEAL, 2009, p. 65). 248 A parte já constitucionalmente legitimada é o agente do dever-ser normativo (devido processo legal ) que se concretiza na procedimentalidade (efeito expansivo) para criação (legiferação) ou definição (judicação) do direito. O espaço-político (isegoria) de criação do direito só será continente democrático se já assegurados os conteúdos processuais dialógicos da isonomia – que são isotopia, isomenia e isocrítica - , em que haja, portanto, em sua base decisória, igualdade de todos perante a lei (isotopia ), igualdade de todos de interpretar a lei (isomenia ) e igualdade de todos de fazer, alterar ou substituir a lei (isocrítica ). Essa situação jurídico-processual devida é que permitirá a enunciação das democracias como governo de uma nova totalidade social concreta, isto é: povo concretizador e criador da sua própria igualdade jurídica pelo devido processo constitucional (LEAL, 2009, p. 61).(grifo nosso).

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demandado na relação processual. A argumentação desenvolvida por meio do

contraditório é corolário da legitimação do espaço discursivo-processual, haja vista

que não é possível estabelecer condições ou impor restrições ao exercício do direito

de debate do mérito processual da demanda. No exercício da atividade jurisdicional

o julgador é o gestor do processo e quem legitimamente controlará e deverá garantir

a todos os interessados o exercício do contraditório.

A efetivação do contraditório no modelo constitucional do processo não ocorre

apenas com a oportunidade das partes interessadas debaterem a pretensão

deduzida. O enfrentamento, pelo juiz, de todas as alegações perpetradas

judicialmente pelas partes deve ser vista como a essência do principio em questão.

O cerceamento de defesa se configura em dois momentos: a) quando o julgador

deixa de oportunizar o direito de diálogo e de debate da pretensão pela parte

interessada; b) sempre que o julgador se esquivar do dever de análise jurídica das

questões processuais e meritórias suscitadas pelas partes, comprometendo-se, por

conseqüência, a aplicabilidade do principio do dever de fundamentação jurídico-legal

e constitucional das decisões e dos provimentos jurisdicionais. O contraditório é um

principio que foi instituído como norma jurídica regente do processo constitucional

para evitar que os sujeitos legitimados ao processo sejam surpreendidos com

decisões as quais não tiveram a oportunidade de interferir e de participar da

construção discursiva.

A participação do processo garantida pela efetividade do contraditório

materializa o direito das partes interessadas sustentar teses e alegações com o

propósito de convencer o órgão julgador, tal como sustenta Luiz Guilherme Marinoni

e Daniel Mitidiero:

Partindo-se da compreensão do direito fundamental ao contraditório como direito à participação, como direito a convencer o órgão jurisdicional (art. 5º, Constituição da Republica Federativa do Brasil), a completude da motivação só pode ser aferida em função dos fundamentos argüidos pelas partes, na medida em que o direito fundamental ao contraditório impõe o dever de o órgão jurisdicional considerar seriamente as razões apresentadas pelas partes em seus arrazoados (Supremo Tribunal Federal, Pleno, Mandado de Segurança 25.787/DF, relator Ministro Gilmar Mendes, julgamento em 8/11/2006, Diário de Justiça de 14/09/2007, p. 32) (2010, p. 554).

A dialogicidade como pressuposto lógico do contraditório deve ser uma

garantia estendida não apenas à parte autora e à parte demandada, tendo em vista

que o julgador, o Ministério Público e qualquer outro interessado na construção do

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provimento têm autonomia de interagir processualmente e debater, de forma livre e

independente, os fundamentos da demanda. Não estender o contraditório a todo

legitimado ao processo (individual e coletivo) é acarretar a nulidade do cerne do

provimento, uma vez que tal decisão não poderá ser reconhecida e legitimada pelo

ordenamento jurídico-constitucional e democrático brasileiro pelo fato de violar as

diretrizes legais de construção discursivamente isonômica do mérito processual.

A ampla defesa é um principio considerado coextensão da igual oportunidade

de argumentação jurídica da pretensão por todos os legitimados ao processo. A

amplitude na defesa deve ser garantida através, não apenas, do direito de diálogo

da pretensão, mas, acima de tudo, da possibilidade das partes produzirem provas

legitimamente adequadas ao caso concreto e com o fim de fundamentar e de

justificar suas alegações. O exercício das prerrogativas atinentes à defesa da parte

também devem ser asseguradas e extensíveis igualmente a todos os demais

sujeitos interessados. É por isso que o direito de produzir provas não é assegurado

de forma exclusiva ao autor ou ao demandado na ação proposta; a legitimidade do

julgador determinar, de ofício, a produção de provas, com o propósito de enriquecer

o debate dos fundamentos da pretensão, bem como a possibilidade de qualquer

interessado requerer a produção de qualquer prova legitimamente admitida em

direito são bons exemplos para ilustrar a dimensão teórica do principio da ampla

defesa.

O exaurimento dos argumentos e das provas possíveis e necessariamente

produzidas não pode ser suprimido cronologicamente pelo dogma da celeridade, da

economia e da efetividade processual. Isso significa dizer que uma possível

sumarização da cognição, concretizada pela limitação da ampla defesa e do

contraditório, terá como conseqüência a nulidade do provimento. Não se pretende

aqui sustentar a realização de demandas coletivas intermináveis; pelo contrário, é

nítida a necessidade de estabelecimento de prazos preclusivos para regulamentar o

exercício da ampla defesa e do contraditório nas ações temáticas. Entretanto,

enquanto não ocorrer o advento da preclusão temporal e do momento em que o

julgador fixará os pontos controvertidos na fase saneadora do procedimento, as

partes interessadas terão legitimidade para levantar qualquer argumento, produzir

todas as provas necessárias ao esclarecimento objetivo da pretensão e se utilizar de

todos os meios lícitos e legítimos, admitidos em direito, para assegurar a amplitude

adequada à construção do mérito processual.

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O estudo da jurisdição e a sua releitura crítica são fundamentais para o

entendimento da problemática cientifica proposta na presente pesquisa, qual seja,

os critérios e os fundamentos jurídico-constituicional-democráticos de construção

participada do mérito processual nas ações temáticas.

A jurisdição no Estado Democrático de Direito não pode ser vista e

compreendida como uma atividade pessoal do juiz ou o poder de julgar de forma

justa, tendo em vista que se trata de uma “atividade estatal subordinada aos

princípios e fins do processo” (LEAL, 2009, p. 66), ou seja, não devemos

compreender a jurisdição como uma atividade jurídico-resolutiva e pessoal do juiz,

mas o próprio conteúdo da lei conduzido pelos agentes indicados na lei democrática

(LEAL, 2009, p. 63). Nesse mesmo sentido critico se manifesta pontualmente

Rosemiro Pereira Leal

Já, por muitas vezes, falamos da polissemia exalada pela palavra “justiça” prodigamente utilizada pelos juristas que colocam a jurisdição como módulo central do sistema teórico e normativo do Direito Processual, a exemplo de Cândido Rangel Dinamarco, dizendo que o “processo é permeável aos influxos axiológicos da sociedade, devendo o modo de ser do processo estar presente no espírito do juiz no momento do julgamento”. Evidente que, a aceitar sem reservas tais colocações, o processo se transfigura em estranha ritualística de judicância carismática, num retrocesso desalentador que chega às raias do hermetismo, porque só plenamente operável por uma sensibilidade superior e imanente ao bom juiz, como donativo da divindade (LEAL, 2009, p. 66).(grifo nosso)

O estudo sistemático da jurisdição constitucional perpassa pela revisitação

dos seus aspectos teóricos primordiais, quais sejam, a noção de que o exercício da

atividade jurisdicional decorre da legitimidade do julgador dizer, de forma livre, o

direito mais adequado ao caso concreto, podendo, assim, se utilizar de critérios e

parâmetros jurídicos e metajurídicos249 (juízos axiologizantes, juízos de equidade)

249 É certo que o juízo do bem e do mal das condutas humanas é feito em primeiro lugar pelo legislador e depositado no texto da lei, mas também ninguém desconhece que esta, uma vez posta, se destaca das intenções de quem a elaborou e passa a ter o seu próprio espírito; a mens legis corresponde, assim, ao juízo axiológico que razoavelmente se pode considerar como instalado no texto legal. Ao juiz cabe esse trabalho de descoberta. Mesmo não sendo legislador ou a ele equiparado, mesmo negando-se que o juiz seja substancialmente criador de direitos e obrigações (repúdio à Teoria Unitária do ordenamento jurídico), mesmo desconsiderando-se a influência que emana do direito jurisprudencial (Richterrecht), ainda assim sempre é preciso reconhecer que o momento da decisão de cada caso concreto é sempre um momento valorativo. Como todo intérprete, incumbe ao juiz postar-se como canal de comunicação entre a carga axiológica atual da sociedade em que vive e os textos, de modo que estes fiquem iluminados pelos valores reconhecidos e assim possa transparecer a realidade de norma que contém no momento presente. O juiz que não assuma essa postura perde a noção dos fins de sua própria atividade, a qual poderá ser exercida até de modo bem mais cômodo, mas não corresponderá às exigências da justiça. Para o adequado cumprimento

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para a criação, a interpretação e a aplicação do direito mais adequado ao caso

concreto. Os reflexos desse entendimento quanto ao estudo do mérito é que a

legitimidade para a definição das questões relevantes a integrar a matéria de mérito

é uma prerrogativa exclusiva do julgador. Não são as partes que direcionam o

debate do mérito, mas sim, será a autoridade do juiz quem conduzirá toda a

apreciação, a análise e a interpretação de quaisquer alegações de fato e de direito

que integrarão a decisão meritória solitariamente proferida pelo decididor.

Submeter o tema jurisdição à reflexão cientifica na seara da

constitucionalidade democratizante é perceber que se trata de uma atividade

exercida pela principiologia regente do processo (contraditório, ampla defesa, devido

processo legal, isonomia processual) e de forma compartilhada pelo julgador e todos

os demais sujeitos legitimados ao debate processual da pretensão deduzida.

Inspirado nesses fundamentos que Ronaldo Bretas de Carvalho Dias entende que a

jurisdição constitucional deve ser vista como um Direito Fundamental

[...] no Estado Democrático de Direito, a jurisdição é direito fundamental das pessoas naturais e jurídicas, sejam estas de direito público ou de direito privado, porque positivado ou expresso no texto da Constituição Federal de 1988 (art. 5º, inciso XXXV). Exatamente por isto, se é direito fundamental do povo, em contrapartida, é atividade-dever do Estado, prestada pelos seus órgãos competentes, indicados no texto da própria Constituição, somente possível de ser exercida sob petição daquele que a invoca (direito de ação) e mediante a indispensável garantia fundamental do devido processo constitucional (art. 5º, incisos LIII, LIV e LV) (2010, p. 74-75).

Partindo-se da pressuposição de que a jurisdição é um Direito Fundamental,

cuja titularidade pertence a toda pessoa física ou jurídica que demonstre interesse

com relação a uma determinada pretensão, sabe-se que o exercício das atribuições

legais do julgador deve condizer com a iniciativa de viabilizar a constituição de um

espaço processual de debate e de testificação dos fundamentos inerentes ao objeto

da ação temática. No âmbito do processo coletivo a jurisdição constitucional deverá

da função jurisdicional, é indispensável boa dose de sensibilidade do juiz aos valores sociais e às mutações sociológicas de sua sociedade. O juiz há de estar comprometido com esta e com as suas preferências. Repudia-se o juiz indiferente o que corresponde a repudiar também o pensamento do processo como instrumento meramente técnico. Ele é instrumento político, de muita conotação ética, e o juiz precisa estar consciente disso. As leis envelhecem e também podem ter sido mal feitas. Em ambas as hipóteses carecem de legitimidade as decisões que as considerem isoladamente e imponham o comando emergente da mera interpretação gramatical. Nunca é dispensável a interpretação dos textos legais no sistema da própria ordem jurídica positiva em consonância com os princípios e garantias constitucionais (interpretação sistemática) e sobretudo à luz dos valores aceitos (interpretação sociológica, axiológica) (grifo nosso) (DINAMARCO, 1996, p. 294-295).

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ser exteriorizada mediante postura adotada pelo julgador no sentido de assegurar

amplamente a ingerência e a participação de qualquer interessado difuso e coletivo

na construção do mérito processual, tal como ocorre, por exemplo, no caso da ação

direta de inconstitucionalidade, cuja natureza coletiva da pretensão deduzida

acarretará a institucionalização de um espaço processual em que os julgadores são

vistos como um dos sujeitos legitimados ao amplo debate das peculiaridades fáticas

e jurídicas das questões que integram a matéria de mérito.

A jurisdição constitucional não é sinônimo de autoridade ou poder do julgador

no ato de decidir solitariamente de forma constitucionalizada e, por isso, não pode

ser vista e compreendida como a autonomia conferida a Tribunais Estaduais e

Superiores de julgar unilateralmente pretensões a ele submetidas, sem permitir

qualquer interferência dos legitimados ao provimento. A constitucionalização da

jurisdição, agora vista como um Direito Fundamental corolário da cidadania, viabiliza

a qualquer interessado o direito de construção participada de toda e qualquer

decisão judicial cujos efeitos jurídicos poderão afetá-lo.

Constitui dever de o julgador conduzir o procedimento, a fim de dar

publicidade quanto à existência desse espaço processual, demonstrar a relevância

da participação no processo e convocar todos os interessados, para que haja amplo

envolvimento na discussão das questões postas e levadas a juízo. O juiz, enquanto

gestor do processo tem que adotar uma postura pró-ativa quanto à condução

participada e discursiva do procedimento, visando compartilhar a legitimidade da

atribuição legal de decidir. Certamente essa postura assumida pelo julgador refletirá

na efetividade processual, no amplo acesso ao Judiciário e, por conseguinte, na

construção isonomicamente discursiva do mérito processual.

Todo o debate jurídico desenvolvido até então se volta para a reflexão de que

o processo e a jurisdição, compreendidos sob o patamar da constitucionalidade

democrática, prestam-se à revisitação de toda a dogmática jurídica que norteou o

entendimento do direito processual, especialmente até a primeira metade do século

XX.

Verifica-se a ruptura paradigmática e a tendência de superação de um modelo

de processo voltado à resolução de conflitos de interesses individuais, diretamente

pela experiência, pela maturidade e pelo notável conhecimento jurídico do julgador.

O modelo constitucional de processo busca retirar das mãos do julgador a

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300

legitimidade exclusiva do ato de decidir, a fim de oportunizar o compartilhamento do

centro das decisões entre todos os sujeitos interessados no provimento.

A ressemantização da jurisdição pela hermenêutica constitucional traduz-se

na superação dos critérios subjetivos e metajurídicos utilizados pelos julgadores no

ato de decidir, em virtude do advento de fundamentos de natureza constitucional que

nortearão os juízes a se utilizarem do processo como uma instituição legitimada ao

reconhecimento dos Direitos Fundamentais.

Os reflexos de todas essas proposições teóricas, no contexto do processo

coletivo, coincidem com a necessidade de elaboração de uma teoria geral do

processo coletivo que contemple o modelo de processo constitucional no Estado

Democrático de Direito e que se estruture na proposta de criação e de utilização do

espaço processual como o lócus jurídico garantidor da argumentação, da

dialogicidade e da dialética instaurada entre os sujeitos legitimados ao debate da

pretensão. O exercício da cidadania, a partir do principio participativo, passa a ser

visto como a prioridade do processo coletivo democrático, que se volta,

essencialmente, para a busca de um maior controle da atividade jurisdicional, pelos

interessados no provimento. É nesse sentido que Vicente de Paula Maciel Junior

afirma que o processo coletivo é “uma forma de participação difusa dos sujeitos na

fiscalização da legalidade de atos praticados e que podem ser anulados pelo Poder

Judiciário, com evidentes repercussões na vida dos indivíduos” (2006, p. 119).

O fato das demandas coletivas afetarem um número indeterminado de

pessoas, inclusive o próprio Estado, é que se torna necessária a observância do

principio democrático como norma jurídica regente do processo coletivo, a fim de

assegurar a todos a maior amplitude possível de controle dos critérios norteadores

do debate fático-jurídico a ensejar a construção participada do mérito processual no

contexto das ações temáticas.

O processo coletivo democrático é uma instituição constitucionalizada que

reconhece o direito de qualquer interessado acionar o Judiciário através do direito de

petição e, a partir disso, ingressar como legitimado direto ao debate da pretensão

coletiva. Os adeptos do sistema representativo, como referencial teórico de um

modelo de processo coletivo que não se compatibiliza com a ordem constitucional

democrática, afirmam que o exercício do direito de ação dar-se-á por meio de órgãos

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301

intermediários250 (como o Ministério Público), dotados de uma legitimidade

pressuposta para representar os interesses da coletividade. Tal entendimento limita

o acesso ao Judiciário, no momento em que obstaculiza o direito de participação dos

interessados difusos e coletivos no debate processual de construção do mérito da

demanda. O argumento comumente utilizado pelos teóricos que propugnam pela

representatividade como norte definidor da legitimidade processual ativa nas ações

coletivas é que, uma possível ampliação do rol de legitimados, a fim de assegurar a

participação de todos os interessados, poderia estender demasiadamente o

resultado final da decisão no processo coletivo.

4.2 O sistema participativo e a Teoria do Discurso como fundamentos regentes do Processo Coletivo Democrático

A Democracia é um paradigma de Estado cujo entendimento perpassa pelo

exercício amplo das liberdades dos cidadãos orientarem-se por meio da participação

nos processos deliberativos dos quais resultam decisões que poderão afetar toda a

coletividade. O constitucionalismo contemporâneo voltou-se para a sistematização

da coletivização dos Direitos Fundamentais, que deixam de ser vistos e

compreendidos na sua essência apenas sob o prisma individual para, assim, passar

a ser pensado no contexto da transindividualidade. A autodeterminação democrática

é corolário do exercício da cidadania pelo principio participativo.

Os espaços de interlocução são vistos como lócus de formação de opiniões

dos cidadãos por meio de redes de discussões que visam construir o consenso

coletivo e a gestão dos dissensos, oferecendo subsídios, conteúdos e critérios para

deliberações participadamente tomadas e que venham a atender o interesse da

coletividade. Além do principio da participação ser visto como a viga mestra do

Estado Democrático de Direito, sabe-se que os fundamentos genuínos de uma

250 Como conseqüência e reação a essa força participativa que pode surgir dos direitos coletivos e difusos, e das ações coletivas para a sua tutela, os agentes políticos tendem a criar ou atribuir competências aos chamados órgãos “intermediários” (Ministério Público, associações, Órgão de Defesa do Consumidor, Delegacias de Ordem Econômica, ombudsman) e que em muitos casos pertencem ao próprio governo. Sob o argumento de que com isso viabilizam a tutela dos direitos, esses agentes políticos encaminham projetos de lei no sentido de restringir a legitimação para agir somente a esses entes intermediários, excluindo o indivíduo da possibilidade de demandar para a tutela de outros interessados. Some-se a isso que os argumentos utilizados para justificar essa posição são extraídos exatamente do direito processual civil individual, no sentido de afirmar inclusive que a viabilidade da demanda coletiva estaria comprometida se a legitimação fosse estendida a todos os indivíduos, porque não seria identificado o “sujeito” da ação (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 120).

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302

democracia encontram-se na legitimidade de controle dos cidadãos dos atos

praticados pelo Estado e que versam direta ou indiretamente sobre os direitos da

coletividade. Trata-se de um exercício difuso e continuo praticado pelos sujeitos

legitimados ao processo coletivo, e não por um mecanismo de escolha dos

representantes municiados de legitimidade para levantar demandas e apresentar

propostas de soluções que versam sobre direitos metaindividuais.

A delegação de representatividade dos cidadãos àqueles sujeitos

majoritariamente eleitos para a gestão da coletividade deve ser vista

democraticamente como um sistema através do qual todos os cidadãos mantêm

intacta a legitimidade de amplo controle e de fiscalização irrestrita dos atos

praticados por todos os sujeitos ou agentes com atribuições legais na gestão

pública. A redefinição dos critérios jus-filosóficos para o estudo crítico da democracia

nas sociedades contemporâneas e plurais funda-se no direito de participação de

todos os legitimados em processos deliberativos, cujo objeto é a proteção jurídica

dos direitos difusos e coletivos. O Estado não deve ser visto como o gestor solitário

e legitimado a deliberar unilateralmente sobre questões inerentes à

metaindividualidade. No lócus social da construção participada dos provimentos o

Estado é mais um sujeito legitimado isonomicamente ao debate das pretensões

coletivas, não podendo impor e sobrepor seu entendimento em detrimento daquele

posicionamento preconizado pela maioria dos interessados.

O Judiciário, o Executivo e o Legislativo, enquanto funções estatais

democráticas passam a ser os legitimados, juntamente com todos os interessados

difusos e coletivos, à gestão e a proteção discursiva dos Direitos Fundamentais, de

uma forma em que todos os provimentos sejam construídos com o propósito de

atender tanto os interesses individuais, quanto os direitos da coletividade. A

integração popular é a forma mais viável e eficiente de instauração do discurso

democrático no lócus processual, a fim de possibilitar a fiscalidade ampla dos

fundamentos jurídicos ensejadores das decisões e das deliberações estatais.

A superação da filosofia da consciência, cujo foco da reflexão cientifica

encontrava-se na cosmologia e na metafísica, pelo advento da filosofia da

linguagem, que passou a utilizar o discurso democrático e a linguagem como

referenciais para a reflexão filosófica, representam a mola propulsora para a

reconstrução do pensamento filosófico com o advento das proposições teóricas de

Jurgen Habermas. A revisitação do direito iniciou-se pela reflexão critica da

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concepção positivista até então vigente, uma vez que a produção legislativa, a

interpretação e a aplicação das normas jurídicas passaram a ser vistas como

produto de um processo de formação coletiva da opinião e da vontade, “processo

este que se dá sob o esteio de uma cidadania ativa, tendo como pressuposto a

equiprimordialidade entre a autonomia pública e a autonomia privada (MATTOS,

2011, p. 4).

O processo coletivo deve ser resultado da compreensão procedimental e

discursiva dos direitos coletivos e difusos, no contexto da participação dos sujeitos

interessados como agentes da formação da vontade democrática. A guinada

lingüística exteriorizou um paradigma de direito construído pelo processo de

racionalização da linguagem. A intersubjetividade das relações sociais desenvolvida

sob a ótica do modelo constitucional de processo é considerada o fundamento

regente da legitimidade dos provimentos e do mérito processual.

A formação democrática da vontade decorre da convergência dos melhores

argumentos apresentados ao debate no processo deliberativo. É por isso que se

pode afirmar que Habermas “abandona o idealismo kantiano, para construir sua

teoria em torno da teoria da linguagem, da valorização da formação de consensos

sobre pretensões de validade existentes na sociedade e na construção democrática

do direito, tendo por fulcro o agir comunicativo de diversos sujeitos (MACIEL

JUNIOR, 2006, p. 50). A linguagem como realidade fundante de todo o processo

discursivo foi submetida a racionalização cientifica, a fim de estabelecer critérios

objetivos para nortear o que é melhor para a coletividade. No espaço processual

onde se desenvolverá o discurso democrático da pretensão coletiva nunca deverá

prevalecer vontades individuais em detrimento dos direitos transindividuais. A própria

finalidade e utilidade do discurso democrático é o amadurecimento das questões de

mérito que conduzirão todo o debate instaurado entre os legitimados ao provimento.

Integrante da segunda fase da Escola de Frankfurt, Jürgen Habermas

desenvolveu o eixo de suas proposições teóricas essencialmente a partir da crítica

ao tecnicismo, ao cientificismo e ao modelo das ciências empíricas, que limitavam o

campo da reflexão àquele conhecimento que fosse objetivo e prático. Dentre as

inúmeras proposições criticas destaca-se àquela em que Habermas afirma ser

insuficiente a visão marxista que atrela “o desenvolvimento das instituições sociais

ao modelo econômico e a tendência em tratar indistintamente ciências humanas e

ciências da natureza (MATTOS, 2011, p. 123). A linguagem assume importante

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papel na teoria habermasiana no momento em passa a ser utilizada como referencial

de critica à filosofia da consciência pelo racionalismo cientifico.

A emancipação do homem pela comunicação ampla, livre, autônoma e

desvinculada de qualquer condição ou coação foi a forma utilizada por Habermas

para buscar a superação da razão instrumental pela razão comunicativa,

considerada uma nova fundamentação para o paradigma da racionalidade do

conhecimento cientifico. O resultado de tudo isso foi a reviravolta lingüística, em que

a linguagem é utilizada como uma forma de expressar a racionalidade. Assim, pode-

se afirmar que “um outro motivo pelo qual Habermas teria optado pela linguagem

como paradigma da razão teria sido a busca de outra forma de racionalidade que

fugisse da unilateralidade da dimensão cognitiva e permitisse estabelecer um

conceito mais amplo de razão” (ARAGÃO, 2002, p. 106).

A contraposição à linguagem tradicional e de cunho estritamente técnico-

descritivo foi um dos principais referenciais para Habermas construir sua teoria do

agir comunicativo. A igualdade de oportunidade de fala assegurada a todos os

sujeitos envolvidos na discussão, a não sobreposição ou prevalência dos interesses

individuais, a exclusão de qualquer medida de coação que venha a limitar a

participação dos sujeitos e a liberdade ampla de argumentação são considerados os

pilares da teoria do agir comunicativo desenvolvida por Habermas. É por isso que o

presente autor “assegura que o discurso, caracterizado como uma forma especial de

comunicação, pressupõe a situação ideal de fala” (MATTOS, 2011, p. 126).

Para Manfredo Araujo de Oliveira, Habermas articula sua teoria da

competência comunicativa em analogia com a teoria lingüística da competência

lingüística de Chomsky; a tarefa específica da teoria da competência comunicativa

“consiste na reconstrução do sistema de regras segundo o qual produzimos ou

geramos, enquanto tal, situações de possíveis fala” (2006, p. 294-296). Nesse

mesmo sentido afirma que “uma teoria da competência comunicativa tem como

tarefa explicar o trabalho realizado pelo falante e pelo ouvinte com o auxilio de

universais pragmáticos, quando eles transformam sentenças em proferimentos.

Parte-se do fato de que o falante e ouvinte usam sentenças em seus proferimentos,

para entrar em entendimento a respeito de estados de coisa” (OLIVEIRA, 2006, p.

297).

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Foi a partir dessas discussões filosóficas ora apresentadas e da reflexão

crítica da relação existente entre direito e moral251 que Habermas desenvolveu a

teoria discursiva do direito como referencial do Estado Democrático de Direito.

Compete destacar que não constitui objeto da presente pesquisa realizar um estudo

pormenorizado da teoria discursiva do direito e da democracia proposta por

Habermas, em virtude da riqueza da obra do autor. O que se busca, no presente

caso, é analisar os reflexos das proposições teóricas no debate da participação dos

sujeitos legitimados aos provimentos coletivos e, especialmente, no entendimento e

na análise do mérito processual nas ações temáticas.

O desencantamento do mundo pelo advento do racionalismo científico refletiu

substancialmente no entendimento do discurso democrático como parâmetro

legitimante dos provimentos estatais. Houve, especialmente ao longo do século XX,

a superação daquela concepção de que a legitimidade dos atos praticados pelo

Estado era pressuposta, ou muitas vezes decorrente de elementos mítico-

transcendentais e cosmológicos. O que a teoria do discurso desenvolvida por

Habermas pretendeu foi utilizar-se da linguagem como referencial lógico para a

construção de um novo conceito de legitimidade do direito, ou seja, aquele que não

advém do poder ou da autoridade exercidos por um sujeito individualmente, mas sim

produto de uma construção discursivo-filosófica diretamente desenvolvida pelos 251 Andréia Alves de Almeida é pontual ao esclarecer a relação entre o direito e a moral na obra de Habermas: “Constatamos que o Habermas da primeira fase (teoria da ação comunicativa) ainda herdeiro da Filosofia do Direito de Kant, pressupondo (imperativo categórico) um poder unificador inerente à razão comunicativa, imagina para as sociedades complexas uma relação de complementariedade entre Direito e Moral, que opera com uma normatividade imediata da razão prático-moral. Assim, até então Habermas não consegue romper com o positivismo sociológico, que entende o direito como mera expressão da realidade encontrada, deixada pela tradição. Somente a partir do momento em que Habermas passa a teorizar a moral na contemporaneidade como resultante de um procedimento argumentativo é que foi possível desvendar e obstruir elementos transcendentais de nossa epocalidade. Pôde finalmente contribuir para o estudo do direito também como agente transformador da realidade e teorizar o direito e a moral como co-originários, rompendo pioneiramente com o positivismo sociológico, que entende que o direito está submetido à norma moral (Gráfico 1, p. 45). Ele consegue prestar tal contribuição sem recair na redoma de isolamento colocada pela racionalidade formal weberiana e logo após pelo normativismo de Kelsen (Gráfico 2, p. 46) entre o direito e a moral, nem no hibridismo do pragmatismo jurídico contemporâneo (Gráfico 3, p. 34). O Habermas maduro (1992) compreende que a moral e o direito se complementam reciprocamente sem se tornarem dependentes, influenciando a reflexão do direito na sociologia jurídica e na filosofia política como um sistema de ação, que passa a ser discutido como agente transformador da realidade pelo médium da processualidade, colocando a Teoria do Processo no centro de estudo quanto à validade, à legitimidade e à operacionalização do direito nas democracias. Em sociedades pós-metafísicas (cultura da técnica para eliminação dos mistérios), a moral assume a feição de um procedimento argumentativo e o requisito fundamental da moralidade passa a ser a universalidade (moral racional, sistema de saber). A moral não obtém obrigatoriedade institucional e não realiza integração social se não apelar para a relação com o direito. Falta eficácia no procedimento moral, que sozinho não realiza integração social” (ALMEIDA, 2005, p. 43-44)

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destinatários do provimento estatal. Além disso, pretendeu-se (re) construir o

conceito de cidadania no prisma da coletivização do debate desenvolvido entre

todos aqueles sujeitos que demonstrem a titularidade da pretensão deduzida.

Para desenvolver sua teoria discursiva Habermas inicialmente enalteceu a

existência e a importância do sistema de direitos, que “deve conter precisamente os

direitos que os cidadãos são obrigados a atribuir-se reciprocamente, caso queiram

regular legitimamente a sua convivência com os meios de direito positivo”

(HABERMAS, 2003, p. 158-159). Esse sistema de direitos compõe-se de direitos

básicos e fundamentais, cuja finalidade é assegurar a autonomia pública e privada

dos cidadãos, a fim de que os mesmos possam livre e igualmente deliberar sobre as

questões objeto do discurso. A problemática da co-originariedade da autonomia

pública e privada é o ponto nevrálgico do discurso democrático, tendo em vista que

o maior desafio certamente é construir um fundamento que justifique, de forma

coerente, qual argumento (individual ou coletivo) deverá prevalecer quando

submetido a um discurso. “O sistema dos direitos possui como tarefa a mediação da

tensão entre as autonomias pública e privada (MATTOS, 2011, p. 134).

Importante esclarecer que não podemos estabelecer, num juízo a priori, qual

o melhor argumento apresentado no âmbito da discursividade democrática; torna-se

necessária a instauração do discurso, com o amadurecimento do debate de todas as

questões postas e trazidas pelas partes para, somente assim, identificar

casuisticamente qual argumento é considerado legitimamente mais adequado para o

caso concreto. Mesmo diante da relevância de uma pretensão coletiva não podemos

hierarquizar direitos e abstratamente sobrepor os direitos coletivos e difusos em

detrimento da proteção jurídica de direitos individuais.

O discurso democrático252, desenvolvido a partir da soberania popular, tem

seus critérios regidos pela teoria dos Direitos Fundamentais, ou seja, embora os

sujeitos legitimados ao discurso tenham legitimidade para debater amplamente a

pretensão deduzida, é de suma importância esclarecer que tal legitimidade é

regrada e disciplinada pela observância e pela proteção dos Direitos Fundamentais.

É o modelo constitucional de processo que assegura a legitimidade democrática da 252 A Teoria do Discurso reconhece o aporte de cada uma dessas tradições para o pensamento político contemporâneo; a teoria republicana nos ensina que o processo de autoconsciência é feito por meio da solidariedade obedecendo a estruturas de comunicação pública e ao diálogo envolvendo questões de valor; seu legado é, pois, a discursividade. A tradição liberal nos mostra uma característica fundamental do direito moderno que é a formalização e a procedimentalização (REPOLÊS, 2002, p. 92).

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teoria do discurso proposta por Habermas, tendo em vista a obrigatoriedade da

isonomia processual, do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal e,

acima de tudo, da proteção ampla e integral da ordem constitucional democrática

como um todo. O exercício da autonomia discursiva no âmbito processual é regido

pela teoria do processo constitucional.

Ao desenvolver sua teoria Habermas faz severas criticas a Kant, por entender

que no seu pensamento o direito se justifica a partir de um padrão de moralidade

pressuposta, e também a Rousseau, por demonstrar que os padrões éticos são os

parâmetros regentes ao entendimento do direito. Ambos os autores, ao contrário de

Habermas, não estuda o direito sob o enfoque da sua legitimidade democrática, até

porque preconizam um conceito de legitimidade pressupostamente justificada por

padrões morais e éticos, e não propriamente a partir da linguagem e do discurso

democratizante. O que propõe Habermas é a construção do direito em bases

legitimamente democráticas, em que os próprios destinatários da norma são seus

co-autores253 (MATTOS, 2011, p. 132-134).

O principio do discurso se desenvolve basicamente a partir do principio da

democracia e do principio da moral254, haja vista que para Habermas “são válidas as

normas de ação as quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu

assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais (2003, p. 142). O 253 [...] Habermas afirma que o desejado nexo interno entre autonomia pública e autonomia privada só será estabelecido quando for possível construir um sistema de direitos que institucionalize juridicamente as formas de comunicação. [...] Portanto, a co-originariedade da autonomia pública e da autonomia privada pressupõe uma ordem jurídica identificada como produto da deliberação entre cidadãos livres e iguais que se enxerguem simultaneamente como autores e destinatários das normas que regem seu convívio, baseados, pois, no modelo de autolegislação (MATTOS, 2011, p. 134). 254 Do principio do Discurso decorrem outros princípios relacionados aos discursos práticos: o principio da democracia (principio d) e o principio moral (principio U). o principio moral funciona como regra de argumentação para uma formação racional de questões morais. Ele trabalha com normas de ação que só se justificam ao levar em conta o interesse simétrico de todos. Por outro lado, o principio da democracia trabalha com normas de ação que derivam da forma do Direito e podem ser justificadas sob três aspectos: morais, éticos e pragmáticos. Portanto, é de se afirmar que o principio da democracia, ao recepcionar argumentos pragmáticos, ético-políticos e morais, diferentemente do principio moral, trabalha não apenas com o auxilio de normas morais. O principio do Discurso, na medida em que seja institucionalizado juridicamente, transmuda-se em principio da democracia. Habermas afirma, com isso, que o principio da democracia exige um procedimento de normatização legítima do Direito, ou seja, as leis só conseguem adquirir legitimidade se contarem com o assentimento de todos os afetados pelo Direito por meio de um processo discursivo de formação da vontade. Isto porque o principio da democracia viabiliza a possibilidade de se justificar / fundamentar o sentido de uma prática de autodeterminação em que os membros do Direito possam se reconhecer como livres e iguais. Habermas afirma que o principio moral trabalha como regra de argumentação para a decisão racional de questões morais exatamente pelo fato de que só podem ser justificadas levando-se em conta o interesse simétrico de todos, transformando-se numa espécie de regulador de argumentos. (MATTOS, 2011, p. 135-136).

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conceito de validade não decorre de concepções técnico-herméticas, visto que

norma válida, na perspectiva habermasiana, é toda aquela que materializa a

possibilidade de satisfação discursiva das pretensões pelos seus verdadeiros

destinatários. “Discursos racionais denotam qualquer tentativa de se estabelecer um

entendimento sobre pretensões de validade problemáticas que possibilitam a livre

movimentação de informações, contribuições e argumentos no âmbito de um espaço

público pautado por obrigações ilocucionárias” (MATTOS, 2011, p. 135).

O principio básico da democracia é o direito de simétrica participação dos

interessados nos processos de formação da vontade e da opinião. É necessário

oferecer a todos os interessados iguais condições de participação na construção do

provimento. O processo de formação da vontade coletiva deverá ser produto da

vontade comum, discursivamente construída pela autonomia argumentativa de cada

sujeito interessado na pretensão ou no objeto do debate.

Os Direitos Fundamentais devem ser interpretados como o fundamento

regente, o substrato e o limite da argumentação desenvolvida no âmbito

participativo, ou seja, devem ser vistos como condição e conseqüência do

procedimento discursivo. O respeito à autonomia privada e à autonomia pública dos

cidadãos são primordiais à legitimidade do discurso democrático, que se desenvolve

constitucionalmente no âmbito do processo e cuja finalidade é assegurar aos

cidadãos liberdade e igualdade em suas deliberações, para que se sintam autores e

destinatários das normas e de todos os provimentos que regulam a sua convivência.

A institucionalização jurídica do principio do discurso pelo modelo

constitucional de processo ensejou a sistematização de inúmeros Direitos

Fundamentais hábeis a legitimar democraticamente o espaço discursivo de debate

da pretensão, quais sejam: a) o direito de ação, exteriorizado como o direito de

petição, traz no seu bojo a possibilidade de qualquer legitimado requerer a

instauração de um lócus (espaço) de argumentação e de debate fático-jurídico da

pretensão; b) a autonomia assegurada a qualquer interessado individual, coletivo ou

difuso, de postular judicial e extrajudicialmente, a proteção jurídica de um

determinado bem de sua titularidade; c) a igualdade jurídica de argumentação

assegurada a todos os legitimados ao provimento, sem qualquer distinção que

possa vir a ensejar a limitação, a restrição ou a supressão de todo ou de parte do

espaço processual de argumentação jurídica; d) o direito estendido a qualquer

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interessado de não ser surpreendido com qualquer provimento que não tenha sido

submetido ao procedimento discursivo.

A processualização constitucionalizada do discurso democrático é o médium

lingüístico para garantir a legitimidade dos provimentos fora de uma realidade nua,

ou seja, o discurso jurídico não pode ter como conseqüência a prevalência de

determinados argumentos construídos pelo juízo da autoridade, pela imposição do

dogma do melhor argumento, pela sobreposição de direitos coletivos sobre direitos

individuais, assim como se ressalta a vedação a todo tipo de conduta praticada no

sentido de delimitar ou de restringir o espaço de argumentação processual.

A compatibilização dos interesses individuais com os direitos de natureza

transindividual é considerada um dos grandes desafios enfrentados pela sociedade

contemporânea. Importante esclarecer inicialmente que a legitimidade do processo

coletivo democrático não poderá ser construída em cima de uma falsa ideologia que

prega abstratamente a supremacia dos direitos coletivos e difusos com relação aos

direitos de natureza individual. A pertinência da critica ora realizada se justifica em

face da evidente distinção envolvendo as pretensões coletivas e as pretensões

individuais. Mesmo assim, caso haja alguma pretensão envolvendo o debate

simultâneo de pretensões coletivas e individuais, ressalta-se que a resolução dessa

questão passará pelo amadurecimento do debate sistemático dos fundamentos

fáticos e jurídicos que ensejarão a construção participada do mérito processual no

contexto da constitucionalidade democratizante dos Direitos Fundamentais.

O paradigma procedimentalista de Habermas “assegura a cada cidadão o

direito de tomar parte nas decisões políticas e jurídicas que lhe circundam”

(MATTOS, 2011, p. 143). Assim, o cidadão deterá a legitimidade para atuar, de

forma decisiva, em todos os debates ocorridos na sociedade civil, envolvendo

particulares, associações, o próprio Estado e qualquer outra pessoa interessada no

provimento, de tal forma a decidir e a deliberar sobre questões envolvendo direitos

aos quais são titulares.

A racionalização do discurso pelo processo assegura aos indivíduos

condições jurídicas de exercício pleno da cidadania. “Para Habermas, os cidadãos

são, necessariamente, pessoas morais, possuidoras de um senso de justiça e,

conseqüentemente, de uma concepção própria do que seja o bem” (MATTOS, 2011,

p. 146). Sob o prisma do processo coletivo, a implementação da cidadania no

Estado Democrático de Direito somente ocorrerá quando a definição da matéria e

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das questões de mérito for uma prerrogativa exclusivamente assegurada aos

interessados, cabendo ao julgador analisar a coerência, a legitimidade e os

fundamentos das pretensões levantadas por qualquer interessado difuso ou coletivo.

Habermas, ao discorrer sobre o paradigma procedimentalista, procurou estabelecer

e garantir a todos os membros da comunidade jurídica condições necessárias para

deliberar, interpretar, efetivar e aplicar os ditames trazidos pela Constituição vigente,

através de processos deliberativos que assegurem a concretização dos Direitos

Fundamentais previstos no plano constituinte.

Nas denominadas sociedades de massa, marcadas pela diversidade e pela

pluralidade de direitos de natureza individual e coletiva, o modelo constitucional de

processo é visto como a única possibilidade de garantir a legitimidade do direito

mediante a observância do principio participativo255 como norma jurídica regente do

principio do discurso e da legitimidade dos provimentos.

O principio do discurso, enquanto principio regente da linguagem256 e do

processo de criação democrática do Direito, deve ser aplicado tanto no plano da

criação, da produção, da aplicação das normas, quanto no plano legislativo,

jurisdicional e administrativo. A justificativa de tal afirmação encontra-se na

adequada interpretação extensiva do processo constitucional como um modelo

adequado a atender não somente as pretensões individuais, mas, acima de tudo,

para garantir a proteção jurídica dos bens cuja titularidade pertence à coletividade.

É nesse contexto todo que se insere a problemática cientifica da presente

pesquisa. Busca-se, ao longo de todo debate cientifico, demonstrar que o modelo

constitucional de processo é o adequado para garantir o entendimento do processo

255 É nesta idéia de poder comunicativo mobilizado que Habermas ancora o conceito de comunidade de intérpretes proposto por Haberle, especialmente porque os princípios e o sistema de direitos fundamentais abstratamente configurados na Constituição ganham densidade e corporificação apenas através de um processo hermenêutico do qual todos devem participar (CITTADINO, 2000, p. 211). 256 A linguagem está sempre encerrada num determinado contexto social e participa da consciência dos comunicantes para efetivar-se. Toda comunicação é permeada por uma dimensão intencional e reside aí, naquilo que revela, oculta ou recria. Em outras palavras e segundo a orientação da lingüista Villaça Koch, da UNICAMP, a linguagem deve ser “encarada como forma de ação, ação sobre o mundo e dotada de intencionalidade, veiculadora de ideologia, caracterizando-se, portanto, pela argumentatividade”. A autora dispõe ainda, em complemento a esta idéia supra citada – que compõe, até certo ponto, o objetivo maior de suas proposições no campo da argumentação – que a linguagem deve ser analisada como capacidade de refletir de maneira critica sobre o mundo e em especial sobre a utilização da língua como instrumento de interação social. Se pensarmos as relações do direito com o mundo a partir desta teoria, ou seja, a filosofia analítica, podemos, enfim, compreender como o sistema jurídico pode ter um fechamento operacional, e também pode, ao mesmo tempo, abrir-se para o mundo externo, interagindo com este, completando-o e sendo completado (GONTIJO, 2011, p. 142).

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coletivo democrático sob a ótica da Teoria das Ações Coletivas como Ações

Temáticas. A partir dessa teoria todo o processo coletivo no Brasil é revisitado por

meio de novas proposições desenvolvidas no patamar da constitucionalidade

democrática. O aprofundamento no debate científico referente à construção do

mérito processual somente é possível mediante o entendimento sistemático das

ações temáticas enquanto lócus de sedimentação do amplo debate democrático de

todas as particularidades de ordem fática e jurídica envolvendo, direta ou

indiretamente, a pretensão coletiva ou difusa levada ao Judiciário. No próximo item

será desenvolvido um estudo especifico com o propósito de explicitar e explicar os

pilares teóricos utilizados para o entendimento crítico das ações temáticas.

4.3 Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas : o processo coletivo

visto sob a ótica do objeto (não do sujeito) As proposições científicas desenvolvidas pelo jurista Vicente de Paula Maciel

Júnior, autor da Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, refletem a

tentativa de reconstrução do modelo clássico de processo coletivo proposto pela

Escola Paulista de Processo, cujo foco de análise concentra-se no sistema

representativo e parte de pressuposições teóricas trazidas do processo civil como

norte ao entendimento da legitimidade para agir nos direitos coletivos. Muitos

autores, como Ephraim de Campos Junior257, ressaltam que um dos maiores

257 Vicente de Paula Maciel Junior, ao discorrer sobre o tema, expõe: “Ephraim de Campos Jr. (1985, p. 86-96) admite grandes dificuldades enfrentadas na questão da legitimação quando se trata dos interessados difusos e coletivos em face de haver um declínio da concepção individualista do processo, normalmente centradas nas relações intersubjetivas, para a adoção de uma nova perspectiva, hoje direcionada para a solução de conflitos metaindividuais. Para o autor, a solução da legitimidade nessas categorias de interesses poderia ser encontrada com a admissão da substituição processual, adotando-se a legitimação extraordinária concorrente dos diversos co-interessados, o que viabilizaria uma tutela efetiva com o fornecimento de todos os substituídos em virtude da atividade do substituto. Existe a tendência, segundo informa, de se adotar a substituição processual através dos corpos intermediários, como associações, sindicatos, devendo, no entanto, haver limites para se evitarem abusos. A seguir enumera várias hipóteses que considera representativas da substituição processual, quais sejam: o art. 513, a da CLT; Lei 6.708/79, que confere a legitimidade ao sindicato para agir na qualidade de substituto processual para obter os reajustes deferidos nesta Lei; a Lei 1.134/50, que defere às associações de classe a representação perante às autoridades administrativas e a Justiça ordinária; Lei 4.215/63, que confere à Ordem dos Advogados do Brasil o poder de representação dos interesses gerais da classe dos advogados e os individuais da profissão (atual Lei 8.906/94, art. 44, inciso II); Lei 6.766/79, que confere às associações comunitárias, ao Ministério Publico, e ao vizinho, a qualidade de parte legitima para agir no sentido de impedir a construção em desacordo com restrições e posturas legais e contratuais. E conclui que a enumeração das vantagens de se adotar a substituição como mecanismo hábil para a defesa dos interesses difusos e coletivos, ressaltando os

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desafios enfrentados pelos estudiosos do processo coletivo diz respeito à

legitimação para agir e, por isso, propõe o sistema representativo como alternativa

viável a assegurar a proteção jurídica dos direitos da coletividade ou de um grupo de

pessoas devidamente representado. Trata-se de um meio através do qual os

interessados difusos e coletivos se sentem representados, tem os seus direitos

protegidos e, acima de tudo, podem exercer o contraditório por meio ou por

intermédio do seu representante, que poderá ser uma instituição, como as

associações e os sindicatos.

A análise científica da legitimação para agir emergiu como o grande foco do

debate do processo coletivo, uma vez que a tendência dos estudiosos atualmente é

adotar para as ações coletivas o modelo de legitimação anteriormente desenvolvido

no processo civil individual. O que o atual modelo de processo coletivo propõe é a

escolha dos sujeitos legitimados feita diretamente pelo legislador, ou seja,

abstratamente se define quem serão os sujeitos legitimados a propositura de uma

ação coletiva. O respectivo modelo é falho no momento em que se verifica ser

impossível analisar de forma prévia e abstrata quem serão os sujeitos legitimados à

demanda coletiva.

A noção prévia que podemos construir teoricamente para compreender a

legitimidade é que o legitimado processual a uma ação coletiva, tanto no pólo ativo

quanto no pólo passivo, deve ser todo aquele sujeito com aptidão a sofrer os efeitos

jurídicos do provimento, ressaltando-se que tal constatação não é possível no plano

abstrato, haja vista que se condiciona à existência e à análise detalhada de um caso

concreto. Por se tratar de pretensões coletivas não é possível auferir

preliminarmente quem serão os afetados por eventual decisão judicial, uma vez que

somente mediante estudo perfunctório dos meandros e das especificidades da

demanda coletiva é que poderemos visualizar a extensão e os efeitos jurídicos de

eventual provimento jurisdicional.

Ao contrário do processo civil, que estabelece a titularidade individual da

pretensão deduzida, no processo coletivo sempre quem propõe a ação não será o

único interessado na demanda coletiva. Além disso, existem casos em que o próprio seguintes aspectos: não haver para o interessado ausente, que é representado no processo, a ofensa ao principio do contraditório; poder ser formada com relação ao substituído a coisa julgada ultra partes; haver a congregação de ações relativas a interesses econômicos relativamente pequenos, os quais, se levados a cabo individualmente, teriam pouco estimulo ao demandante; a substituição processual serve como adequação a uma fase de transição da visão individualista do processo para a concepção social de direitos (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 133-134).

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313

autor da ação detém a capacidade postulatória sem, portanto, ser um dos titulares

da pretensão coletiva, como é o caso do Ministério Público e da Defensoria Pública,

que atuam na condição de legitimado extraordinário.

A capacidade postulatória não pode ser confundida com a condição de

legitimado processual à demanda coletiva. A legitimidade das partes ao processo

coletivo se materializa no momento em que são resguardadas no direito de participar

da construção e da análise das questões que integram o mérito da pretensão. O fato

de o legitimado extraordinário deter a capacidade postulatória e poder participar do

debate das questões meritórias não excluirá o direito dos demais interessados

difusos e coletivos participarem do processo. A institucionalização jurídica da

legitimidade processual extraordinária no processo coletivo não pode ser vista como

instrumento de supressão, limitação ou extinção do direito dos interessados

participarem do debate processual do objeto da demanda coletiva.

Considerando-se que o processo coletivo democrático é o lócus do debate

jurídico e amplo da pretensão, serão legitimados ao provimento todos aqueles

sujeitos que demonstrarem interesse em participar do discurso jurídico da pretensão.

A partir da análise critica do principio democrático no contexto das ações temáticas,

o rol de legitimados processuais à propositura de uma ação coletiva sempre deverá

ser exemplificativo, ou seja, não se admite e não se reconhece jurídico-

constitucionalmente o rol taxativo de legitimados, haja vista que essa é uma forma

ilegítima de exclusão dos interessados do debate processual das questões

meritórias que integram o objeto da demanda. Por isso, é importante esclarecer que

o atual modelo de processo adotado pelo Brasil e produto das contribuições

cientificas de estudos desenvolvidos pelos representantes da Escola Paulista de

Processo (Ada Pelegrini Grinover, Kazuo Watanabe, Cândido Rangel Dinamarco),

não é compatível com o Estado Democrático de Direito em virtude de adotar um rol

taxativo de legitimados dotados de uma pseudo-legitimidade jurídica de

representação dos sujeitos titulares de direitos metaindividuais, excluindo-se, desse

rol proposto, o próprio cidadão e titular individual de direitos coletivos e difusos de

ser autor de uma ação coletiva.

A instauração regular do principio do contraditório no processo coletivo

democrático ocorrerá quando for conferida “a possibilidade de titulares de situações

subjetivas diversas participarem da demanda ao lado do legitimado ordinário”

(MACIEL JUNIOR, 2006, p. 132). Considerando-se que o contraditório é um principio

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constitucional cuja interpretação deverá ser sistemática e extensiva (nunca

restritiva), conclui-se que sua efetividade e aplicação somente será possível quando

todos os interessados e legitimados puderem ser inseridos como sujeitos do debate

processual. Para os defensores de um modelo de processo coletivo centrado em

bases representativas o contraditório seria exercido por meio ou por intermédio do

representante que, em nome do (s) representado (s) teria legitimidade para a

argumentação. A principal critica que podemos fazer quando se analisa essa

problemática cientifica é que o exercício do contraditório por um representante do

grupo, da classe ou de toda a coletividade certamente impedirá o esgotamento das

questões e dos fundamentos postos em debate causando, por conseqüência, o

esvaziamento do discurso democrático em virtude da limitação e da restrição das

diretrizes e dos pilares estruturais do principio democrático da participação no

processo coletivo.

O que se observa é os pesquisadores que trabalham e defendem o modelo

de processo coletivo a partir da legitimação de um representante do grupo ou da

coletividade argumenta a questão no sentido de demonstrar que se trata de um meio

vantajoso para os interessados, tendo em vista que não teriam o dever de se

manifestar diretamente no processo sobre o objeto posto em debate, uma vez que

gozariam da prerrogativa de um representante adequado, presumidamente

habilitado e disposto a exercer o papel de sujeito do processo em nome da maioria

dos legitimados. Essa concepção vigente no Brasil é reflexo de um modelo de

processo que se desenvolveu e se instituiu em cima da ideologia de que a abertura

para a participação de todos os interessados poderia tornar a relação processual

excessivamente morosa e em descompasso com os princípios da celeridade e da

economia processual.

É temerário reconhecer como legitimo tal entendimento, visto que argumentos

ideológicos construídos a partir de uma visão cronológica e temporal do processo

não podem ser considerados democraticamente legítimos, haja vista que são

instrumentos de sumarização da cognição e de limitação substancial do espaço

processual de debate jurídico e fático do cerne do objeto da ação coletiva.

Reduzir a compreensão do principio do contraditório à representação dos

direitos da coletividade por um representante adequado é retirar dos interessados

difusos e coletivos o direito de influir na formação do provimento jurisdicional, uma

vez que a legitimação para agir no processo coletivo deve ser entendida como a

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legitimidade de todos os protagonistas do processo que sofrerão os efeitos da

decisão. Foi por isso que Fazzalari reconstruiu o conceito de parte em suas

proposições teóricas, ao afirmar que parte não é aquele que propõe ou em desfavor

de quem se propõe uma determinada ação; considera-se como parte no processo

todo aquele sujeito de direito destinatário do provimento. É nesse sentido que se

afirma que “o eixo referencial da legitimação para agir, segundo Fazzalari, situa-se

no provimento, que permitirá com base na situação legitimante, que se identifique

quem será o sujeito que, dentre os participantes do processo (as partes, o juiz,

auxiliares do juízo, Ministério Público quando exigido), poderá ou deverá cumprir

certo ato processual” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 134).

É nesse contexto do debate cientifico que podemos afirmar que a legitimidade

extraordinária no processo coletivo não poderá excluir a participação daqueles

sujeitos que serão afetados pelo provimento. O representante adequado é aquele

sujeito que atua em nome próprio na defesa dos direitos dos demais interessados e,

por isso, poderia ser enquadrado no conceito de legitimado extraordinário. Isso

significa dizer que aqueles sujeitos que sofrerão os efeitos jurídicos da coisa julgada

coletiva não foram incluídos no processo de construção participada do mérito, uma

vez que se verifica a transferência ou a delegação da legitimidade dos interessados

difusos e coletivos para a pessoa do representante adequado.

O instituto do representante adequado retira qualquer possibilidade de

construção participada do mérito processual nas ações coletivas, tendo em vista que

é uma forma de retirar ou de excluir a participação dos legitimados à construção do

provimento e ao exercício do contraditório. É daí que decorre a incompatibilidade do

modelo de processo coletivo vigente no Brasil com o paradigma do Estado

Democrático de Direito. O fenômeno da coletivização das demandas judiciais não

pode ser reduzido “a um sistema de representação no qual se reconheceria a um

ente ou a uma pessoa a qualidade para representar a vontade de todos” (MACIEL

JUNIOR, 2006, p. 135).

Vincenzo Vigoritti (1979, p. 3) afirma que a instituição da democracia

representativa, expressão do pensamento jurídico liberal, vivencia uma expressiva

crise de natureza irreversível, uma vez que seus fundamentos não são mais

suficientes para viabilizar a construção do entendimento democrático-

constitucionalizado do modelo de processo coletivo que efetivamente assegure a

participação popular. Enaltece em sua obra a insuficiência das construções teóricas

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sobre o interesse de agir no processo civil como critério regente ao entendimento da

legitimidade de agir no processo coletivo. Ao discorrer sobre o instituto da

legitimidade de agir no processo coletivo Vigoriti propõe dois modelos alternativos de

atribuição da legitimidade de agir na tutela dos direitos coletivos:

[...] No primeiro resta fixada a legitimação de qualquer titular (das posições de vantagem que confluem no coletivo) que poderão deduzir em juízo o interesse substancial (seu e conjuntamente a outros). Mas são estabelecidos mecanismos capazes de assegurar a reu nião em um único procedimento das iniciativas processuais cont emporaneamente assumidas por vários legitimados , garantindo conjuntamente a conformidade de efeitos do acertamento jurisdicional no confronto de todos os sujeitos titulares das posições de vantagem que gravitam em torno do coletivo. O modelo alternativo a esse, segundo Vigoriti é aquele de atribuir o trabalho de deduzir em juízo o interesse coletivo somente a alguns dos titulares das posições de vantagem que o compõe. Nesses casos não se limitariam o controle e coordenação das possíveis iniciativas dos co-interessados, mas negar-se-ia a alguns a legitimação a deduzir em juízo um interesse que é individual e coletivo ao mesmo tempo , submetendo todos os cointeressados aos resultados do processo (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 136-137 apud VIGORITI, 1979, p. 105).(grifo nosso)

Pela análise das proposições trazidas verifica-se que Vigoriti trabalha

distintamente o instituto da legitimidade processual nas ações coletivas quando o

direito é coletivo e quando é de natureza individual homogênea (pretensões

individuais decorrentes de direitos metaindividuais ou coletivos de origem comum). A

indivisibilidade e a indisponibilidade, inerentes aos direitos coletivos, na concepção

proposta por Vigoriti permite reunir num único procedimento (relação processual)

todos os legitimados ao debate da pretensão, a fim de assegurar isonomicamente o

direito de influir na construção do mérito. “Para Vigoriti (1979, p. 104) o interesse

coletivo designa uma relação organizada entre uma pluralidade de posições de

vantagem autônomas, iguais e orientadas a um mesmo resultado” (MACIEL

JUNIOR, 2006, p. 151).

O fato de Vigoriti afirmar que o interesse coletivo se materializa nas

“necessidades que possam e que devam ser satisfeitas em um único bem” (MACIEL

JUNIOR, p. 151) demonstra claramente o descuido teórico em diferenciar

cientificamente os conceitos de direito e de interesse258. Fica muito evidente em sua

258 Interesse é a manifestação de um sujeito em face de um bem para suprir suas necessidades. Vontade Individual é a expressão do interesse individual. Vontade Coletiva é a expressão, representação do interesse atribuído a um grupo, depois de o mesmo haver deliberado segundo o

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obra a utilização de fundamentos do direito civil e do processo civil como parâmetros

de suas conclusões científicas acerca do processo e do direito coletivo. Muitas vezes

se percebe que o autor visualiza o direito coletivo como uma mera junção dos

interesses individuais, uma vez que a vontade coletiva seria produto da limitação das

liberdades individuais, tal como proposto por Jean Jacques Rousseau ao discorrer

sobre o contrato social. A vontade coletiva seria vista como a confluência e a

conjunção de posições individuais que dizem respeito à coletividade. “A

conseqüência processual dessa renúncia que ocorre de cada individuo em prol do

coletivo é a atribuição da legitimação para agir a um ente ou pessoa, que vai exercer

a representação de todos os interessados, agindo e vinculando todos eles” (MACIEL

JUNIOR, 2006, p. 151-152).

É por isso que para Vigoriti é dispensável a presença de todos os titulares e

legitimados no processo coletivo, haja vista deixar claro em sua obra que a

representatividade adequada dos interesses da coletividade por um sujeito

individualmente é suficiente para garantir a justiça e a eficácia da decisão

(VIGORITI, 1979, p. 101-102). “[...] é absolutamente natural que os legitimados a

agir em juízo possam ser também somente alguns dos muitos titulares dos

interesses entre eles correlatos de maneira coletiva” (MACIEL JUNIOR, 2006, p.

150).

Reduzir o conceito de direito coletivo à ideologia de junção, de produto ou de

colusão de interesses individuais comuns, assim como sustentar que o fenômeno de

coletivização das demandas decorre da renúncia parcial de direitos e de liberdades

individuais para garantir a convivência no espaço público e a preservação (proteção

jurídica) da coletividade certamente é uma forma muito simplória de explicar a

complexidade das pretensões que emergem das relações sociais constituídas

contemporaneamente em sociedades plurais, marcadas pela diversidade dos

direitos e dos interesses das pessoas. A sistematização teórica do direito coletivo e

do processo coletivo se justifica a partir da tentativa de compreender cientificamente

os meandros das relações jurídicas constituídas tanto no âmbito das

individualidades, quanto no contexto das transindividualidades.

Torna-se necessário repensar a teoria geral do direito privado a fim de

constituir uma teoria geral do direito e do processo coletivo, para que se possa

processo de escolha e legitimação do interesse prevalente dentre os diversos interesses dos membros do grupo, segundo a lei vigente (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 154).

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contemplar uma visão mais crítica, coerente e sistematizada da socialização dos

direitos. A proteção jurídica das demandas coletivas não pode ser vista como uma

forma de limitar ou restringir as liberdades individuais, até porque os bens de

natureza individual são absolutamente distintos daqueles de cunho metaindividual,

motivo esse que justifica o cuidado e a habilidade dos estudiosos ao sistematizar

sua proteção jurídica no Estado Democrático de Direito. As ações temáticas são

construções teóricas propostas justamente com o intuito de viabilizar a

ressemantização de todo o processo coletivo, a partir de uma concepção

democrático-constitucionalizada, cujo fundamento regente se encontra no direito de

participação processual de todos os interessados difusos e coletivos quanto à

construção discursiva do mérito processual.

O processo de formação da vontade coletiva decorre de deliberações dos

interessados e de um sério e profundo debate em que todas as questões atreladas

ao objeto central sejam submetidas à testificação. É por isso que no processo

coletivo, compreendido sob o enfoque das ações temáticas, as decisões judiciais

não são proferidas exclusivamente a partir do entendimento do julgador. A formação

de uma decisão judicial deve ser reflexo e conseqüência de tudo o que foi posto em

discussão pelas partes. É certo que a vontade da maioria não reflete e nem

representa o interesse de todos os titulares do direito debatido. O provimento

jurisdicional coletivo será considerado legitimamente democrático quando todas as

questões postas em debate forem levadas em consideração no momento do juiz

decidir. Mesmo que o julgador não concorde ou não acate as teses e as alegações

suscitadas pelas partes, sabe-se que o contraditório somente se efetivará quando

houver manifestação judicial fundamentada acerca de tudo o que foi submetido ao

principio do discurso. “Somente por processos reconhecidos válidos pelos indivíduos

ou pela lei é que será possível chegar a um consenso que exprima a vontade

coletiva” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 154).

A validação e a legitimidade democrática vontade coletiva deve ser vista

como a expressão do consenso decorrente das inúmeras manifestações de

interesses individuais acerca de uma determinada questão de relevância coletiva.

Torna-se necessário ampliar, estender e esgotar o debate coletivo da pretensão,

com a finalidade de assegurar efetivamente o direito de todos os interessados se

sentirem co-autores do provimento.

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É inadequada a utilização das expressões interesse coletivo, interesse difuso

e interesse individual homogêneo, uma vez que a gênese do conceito interesse

encontra-se no liberalismo clássico com conotações essencialmente individuais259.

Quando nos referimos às pretensões metaindividuais recomenda-se a utilização da

expressão direitos, e não interesses. Os direitos difusos visam a tutela de bens que

afetam um número indeterminado de pessoas. Os titulares dos direitos difusos

denominam-se interessados difusos, “que são todos aqueles que manifestam um

interesse em face do bem tutelado genericamente pela lei” (MACIEL JUNIOR, 2006,

p. 155).

A tutela normativa dos direitos difusos e coletivos, sob a ótica do modelo

constitucional de processo, deverá decorrer da instauração de um procedimento

através do qual as questões coletivas e difusas são submetidas ao debate antes

mesmo de serem deliberadas e legalmente regulamentadas. Isso evidencia que a

constitucionalização do processo coletivo não se limita ao âmbito jurisdicional,

estendendo-se também ao campo do processo legislativo e do processo

administrativo, em face da natureza transindividual das questões e das pretensões

levadas ao debate. Na seara legislativa o devido processo constitucional deverá

reger todo o procedimento de produção de normas jurídicas, enquanto que a

constitucionalização do processo administrativo perpassa pela legitimidade dos

interessados controlarem a legalidade dos atos praticados pelos agentes e pela

Administração Pública.

Tais colocações evidenciam a amplitude do objeto de estudo do processo

coletivo democrático, que sob o viés da constitucionalidade e dos Direitos

Fundamentais abarca todas as pretensões que ultrapassam a esfera individual e que

são submetidas à análise do processo jurisdicional, legislativo e administrativo.

Assim, resta esclarecer que a aplicabilidade da teoria das ações coletivas como

ações temáticas, bem como a discussão da construção participada do mérito

processual é um estudo que se volta para a garantia da legitimidade dos

259 O interesse é sempre individual. Enquanto no direito coletivo stricto sensu temos um bem comum e sobre ele haverá a manifestação de uma série de interessados para que, segundo os estatutos e a lei seja extraída a vontade comum, esse processo não existe no direito difuso. O direito difuso não é organizado, não tem assembléia, nem deliberação para estabelecer a vontade da maioria. O direito difuso se expressa na norma que tutela bens que afetam muitas pessoas e serão legitimadas naturais a uma ação todas as pessoas que manifestem seu interesse individual em relação ao bem (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 155).

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interessados de controlar a licitude, a constitucionalidade e a discursividade do

modelo constitucional de processo.

É certo que no processo legislativo e no processo administrativo sempre

conviveremos com o fenômeno da coletivização das demandas, haja vista que a

finalidade dos respectivos ramos do direito processual é viabilizar a proteção jurídica

dos direitos da coletividade. Especificamente no processo administrativo, os direitos

da coletividade estarão sempre em evidência como centro dos debates meritórios. A

construção do devido processo legislativo é conseqüência do principio do discurso

no Estado Democrático de Direito, uma vez que a legislação a ser aplicada a todos

os seus destinatários deverá ter como conseqüente a co-autoria processualizada de

todos os seus legitimados.

O estudo do mérito participado ganha evidência no processo legislativo e no

processo administrativo em virtude do seu objeto. A aprovação de qualquer lei, a

edição de resoluções, portarias e medidas provisórias, a prática de atos

administrativos (vinculados e discricionários), a desapropriação de bens, os

processos licitatórios, a aplicação de penalidades pelo executivo e outras tantas

questões atinentes ao exercício das funções legislativas e executivas devem se

submeter ao controle amplo e a testificação pelos seus interessados através do

devido processo coletivo democrático-constitucionalizado. A construção do mérito

deverá ser participada em todas as situações processuais (jurisdicional, legislativo e

executivo) que evidenciam a natureza coletiva da pretensão, trazendo para o lócus

da discursividade todos os interessados difusos e coletivos.

Por isso, verifica-se que no Brasil adotamos também o sistema representativo

quando se trata de processo legislativo, uma vez que os grandes debates

envolvendo questões de ordem coletiva e difusa são realizados apenas entre os

representantes da maioria (deputados, vereadores, senadores), sem qualquer

abertura para a participação dos destinatários da norma. Considerando-se que toda

produção legislativa é palaciana, ou seja, é realizada por uma assembléia de

especialistas dotada de uma sabedoria e legitimidade inata para deliberar

solitariamente sobre as questões de ordem coletiva e difusa, o mérito processual do

provimento coletivo não se desenvolve de forma participada pelo fato de decorrer

peremptoriamente de escolhas muitas vezes aleatórias e que não atendem

efetivamente as expectativas da coletividade. O controle da atividade legislativa

pelos interessados difusos e coletivos é imprescindível para salvaguardar a

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legitimidade democrática do provimento, ressaltando-se que o respectivo controle

somente é possível por meio do paradigma processual fundado no sistema

participativo. O afastamento do cidadão no controle das atividades legislativas no

Brasil deslegitima democraticamente o procedimento e, conseqüentemente, a

construção do provimento estatal.

O controle do exercício da atividade executiva pelo cidadão funda-se

essencialmente na legitimidade que lhe é assegurada pelo processo coletivo

democrático. O reconhecimento da legitimidade do cidadão individualmente poder

propor uma ação popular, com o propósito de viabilizar o controle da moralidade

administrativa, representa uma tentativa do Brasil adotar o principio participativo

como referencial do entendimento democratizante do modelo constitucional de

processo coletivo. A pertinência de tal crítica se justifica pelo fato de não ser

garantido aos cidadãos, de forma efetiva, o direito de controle dos atos executivos a

partir da testificação e do debate amplo dos fundamentos inerentes à lisura e a

observância da legalidade na gestão da coisa pública. Em virtude da grande

relevância atribuída à instituição do Ministério Público muitas vezes o próprio autor

da ação fica para segundo plano no campo do debate jurídico da pretensão

deduzida. Além do mais, a conferência da legitimidade de um cidadão em especifico

poder propor a ação popular não poderá excluir a possibilidade de outros

interessados passarem a integrar a relação processual como sujeitos legitimados ao

debate e à discussão do mérito processual260.

O agente público não poderá blindar a prática de seus atos por meio da fé

pública, ou seja, da presunção iuris tantum de veracidade e de validade da conduta

por ele praticada. O fato de o cidadão ter legitimidade para controlar a licitude e a

constitucionalidade dos atos praticados pela Administração Pública denota a

natureza coletiva da pretensão, tendo em vista que ao pretender analisar e submeter

um determinado ato administrativo ao controle de legalidade o cidadão

individualmente atua como representante dos demais interessados na proteção

jurídica dos direitos da coletividade, sem excluir a possibilidade dos demais

legitimados intervirem no discurso processualmente instaurado entre as partes.

260 Ocorre que a decisão sobre o mérito do processo que envolve o bem jurídico coletivo interessa a um número indeterminado de interessados. Quando ocorre isso estamos perante uma ação coletiva para tutela de direitos difusos e a sentença, afetando o destino dado ao bem objeto do litígio, necessariamente afetará aos demais interessados, tenham ou não participado do processo (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 155).

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O controle da legalidade das atividades legislativas, executivas e jurisdicionais

é uma prerrogativa inerente ao exercício da cidadania no Estado Democrático de

Direito261, em virtude do caráter público e coletivo das pretensões. Nesse contexto, a

construção isonômica e participada do mérito passa a ser vista como o pressuposto

da legitimidade democrática de todo provimento, cuja produção decorre basicamente

interferência direta dos interessados no conteúdo decisório, ressaltando-se que o

provimento estatal (jurisdicional, executivo e/ou legislativo) não poderá ser produto

de elucubrações solitárias do julgador, do legislador ou do chefe do executivo.

A finalidade central das ações coletivas como ações temáticas é oportunizar a

instauração de um espaço processualizado em que os interessados poderão

controlar os critérios, os fundamentos e as alegações que direcionarão o debate

democrático e a construção participada do mérito coletivo. A possibilidade de cada

legitimado contribuir para o amadurecimento do debate processual da pretensão

pode ser visualizada na legitimidade de apresentação e de levantamento de temas

correlacionados com o que foi inicialmente colocado em debate. “Mas muitas

questões que poderiam ampliar o objeto da ação não são trazidas à discussão,

porque as partes (os indivíduos interessados) não possuem a legitimação para a

ação” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 157).

O foco de análise das ações temáticas é a compreensão das ações coletivas

sob a perspectiva da maior amplitude possível do objeto da ação, sem qualquer

medida restritiva de acesso dos legitimados ao debate da pretensão. No direito

difuso a legitimidade processual ativa é definida pelo bem que se pretende tutelar262,

ou seja, a previsão legislativa e abstrata de um rol taxativo de legitimados a

propositura de uma ação coletiva é algo absolutamente incompatível com o modelo

de processo coletivo democrático proposto pelas ações temáticas. A possibilidade

de uma tutela ampla e multifacetada é fundamental para garantir uma abordagem

completa sobre o bem objeto de tutela em face de um numero indeterminado de

261 Mas, pressupondo o Estado Democrático de Direito como modelo de Estado vigente, como no caso brasileiro, é ínsito aos sistemas democráticos que possam demandar aqueles que demonstrem interesse. E nos sistemas que adotam o direito de acesso à Justiça para a tutela da lesão e ameaça de direito, é esperado que se restaure e interprete ampliativamente a extensão da legitimação para agir a qualquer um dos interessados naturais atingidos pelo bem (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 156). 262 No direito difuso a legitimação será definida a partir do bem que se pretende tutelar. Se a decisão for sobre um bem objeto da ação que vá afetar um número indeterminado de pessoas, temos interessados difusos e a ação coletiva terá efeitos coletivos, difusos. Nas ações coletivas para a tutela de direitos difusos é fundamental que haja o reconhecimento da legitimação para agir aos interessados difusos, porque eles na verdade são os destinatários do provimento que vão deliberar sobre o bem que diz respeito a todos ( MACIEL JUNIOR, 2006, p. 158)

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interessados (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 159). A expectativa de que a decisão

judicial venha a afetar juridicamente um número indeterminado de pessoas é

questão de extrema relevância para o entendimento de que todos os possíveis

interessados no provimento terão legitimidade263 de participar do debate critico das

questões meritórias ora levantadas264.

A teoria das ações coletivas como ações temáticas, compreendida sob o

prisma do principio da inafastabilidade do controle jurisdicional (artigo 5º, inciso

XXXV da Constituição brasileira de 1988), foi elaborada com o propósito de garantir

maior ampliação das vias de acesso ao Judiciário, especialmente no que atine a

extensão do espaço processual de debate e de pronunciamento judicial sobre o

mérito. “Todo cidadão brasileiro tem direito a uma decisão sobre o mérito, para

verificar a ocorrência ou não de uma lesão ou uma ameaça a um direito” (grifo

nosso) (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 164). A institucionalização das condições da

ação no plano infraconstitucional é uma previsão que contraria o artigo 5º, inciso

XXXV da Constituição brasileira de 1988 por limitar substancialmente as vias de

acesso ao poder Judiciário e sumarizar a cognição (espaço processual que legitima

o amplo debate jurídico da pretensão coletiva pelos interessados)265.

O marco teórico para o estudo e a construção do mérito processual no

processo coletivo democrático é a teoria das ações temáticas, por desenvolver e por 263 O fato, o bem ou a situação jurídica em que se afirme o direito lesado ou ameaçado que atinge um número indeterminado de pessoas são, portanto, o eixo na interpretação desse fenômeno processual da legitimação para agir no processo coletivo (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 176). 264 A exclusão dessas pessoas da legitimação para agir, impõe o fechamento a uma série de possíveis interessados que poderiam, com grande proficiência, mover uma demanda coletiva na tutela do meio ambiente, mas que restaram excluídos dessa possibilidade. [...] se a legitimação é do tipo “aberto”, qualquer interessado pode tanto em nível preventivo, quanto corretivo, ajuizar a demanda coletiva. A legitimação para agir concorrente, na qual se permita a qualquer interessado individual, bem como a órgãos e associações, o acesso à Justiça para a defesa de direitos difusos é a forma ideal de estruturação da legitimação para agir em tema de tutela coletiva (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 160-161). 265 A ação, principalmente nos modelos constitucionais que asseguram o livre acesso à Justiça não deve ter condicionantes, mas sim evoluir para um sistema que estabeleça responsabilidades decorrentes dos atos abusivos e ilícitos oriundos dos excessos no uso do direito de ação. Saber se há ou não legitimação para agir é questão que envolve o julgamento a luz das provas dos autos e da verificação ou não se o interesse afirmado pela parte corresponde a um direito que o autor invoca para sim. Dizer que a parte não é legítima significa o mesmo que afirmar a inexistência do direito em face do interesse manifestado pela parte. Saber se alguém é parte para invocar a aplicação de lei a um interesse manifestado é questão que envolve o próprio mérito da demanda e conduz à procedência ou improcedência do pedido. Se alguém não é reconhecido pelo processo judicial como titular de um interesse manifestado não terá por conseqüência o objeto de sua pretensão. O pedido será improcedente. É improcedente porque, após o processo, restou comprovado que o direito objetivo invocado pela parte não corresponde ou pode ser aplicado à situação jurídica relatada. A manifestação do interesse da parte não encontra suporte normativo (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 164-165).

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324

sistematizar o entendimento dos direitos coletivos e difusos como uma vertente do

principio do discurso.

4.4 O mérito participado visto sob a perspectiva da Teoria das Ações

Coletivas com Ações Temáticas As ações coletivas como ações temáticas permitem “a participação dos

legitimados na formação do provimento, resgatando às partes (interessados difusos),

o direito de participação em contraditório no processo decisório que os afetará”

(MACIEL JUNIOR, 2006, p. 185). Nesse ínterim sabe-se que uma ação coletiva deve

ser vista como toda demanda judicial, administrativa ou legislativa que discute

temas, fatos, circunstâncias, situações jurídicas e questões que afetam direta ou

indiretamente o universo de um grande número determinado ou indeterminado de

pessoas. Os temas objetos das ações coletivas são discussões que ultrapassam a

esfera das individualidades e ingressa na seara da metaindividualidade, por atingir

toda a coletividade. O papel e a relevância social das ações temáticas é algo

translúcido no cenário do processo coletivo democrático, haja vista que o seu papel

é viabilizar a discursividade de problemas, divergências e pretensões naturais e de

extrema relevância à sociedade atual, em virtude da complexidade das relações

sociais e da colisão de interesses individuais no espaço público.

O papel assumido pelo juiz (magistrado), pelos representantes do legislativo e

pelo executivo no Estado Democrático de Direito é de gestor dos direitos coletivos e

difusos, de tal forma a garantir à coletividade a proteção jurídica dos bens

considerados de relevância transindividual. A construção ou a reforma de uma praça

pública, a manutenção ou não de outdoors no espaço público, a realização ou não

de festas populares, a construção ou não de bens e obras que atendam toda a

coletividade, a instalação de uma determinada indústria, a duplicação de rodovias, a

regulamentação jurídico-legal das uniões homoafetivas, a possibilidade de utilização

de células tronco-embrionárias em pesquisa científica, a institucionalização de cotas

para negros em universidades públicas e outras tantas demandas típicas da

sociedade democrática, marcada pelo pluralismo e pela diversidade de interesses,

são alguns dos inúmeros temas que obrigatoriamente devem ser submetidos ao

discurso desenvolvido no âmbito processualidade. “Essas divergências são naturais

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e fundamentais em nossa sociedade complexa e que se pretende democrática e

devem ser trazidas para a discussão na demanda coletiva (MACIEL JUNIOR, 2006,

p. 178). A legitimidade de qualquer deliberação dos temas ora mencionados deverá

passar obrigatoriamente pela intervenção e pela participação dos interessados

difusos, uma vez que a regulamentação e a decisão não poderão decorrer de atos e

de condutas solitariamente adotadas pelos gestores dos direitos difusos e coletivos

(Judiciário, Executivo, Legislativo e Ministério Público).

A diversidade de posições, de entendimentos e de alegações entre os

interessados difusos e coletivos é o que viabiliza o amadurecimento e o

enriquecimento de todo o debate e a discussão democrática dos fundamentos da

pretensão e que “constrói o conteúdo do processo coletivo em torno de um fato ou

situação jurídica” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 178). As ações coletivas devem ser e

materializar espaços processualizados que se propõe a apresentação de temas,

tendo em vista que a definição do próprio conteúdo e do mérito do processo coletivo

ocorrerá de forma participativa. A fase inicial do procedimento consiste na

apresentação do objeto que orientará a formação da matéria de mérito pelos

legitimados ao provimento.

O mérito processual nas ações temáticas é construído dentro de um espaço

processualizado que oportuniza o debate amplo da pretensão pelos interessados e

também num determinado período de tempo fixado na lei, permitindo a todos os

legitimados comparecerem em juízo para formularem seus pedidos ou para

apresentarem seus temas correlatos àquilo que foi inicialmente alegado pelo autor

da ação. É de suma importância a delimitação temporal da participação e da

apresentação de temas nas ações coletivas, uma vez que a finalidade é justamente

evitar a ocorrência de demandas coletivas intermináveis. O sistema das preclusões

temporais é o que regerá cronologicamente a legitimidade dos interessados

poderem apresentar temas e formular pedidos até o momento processual que

antecede o despacho saneador. Será na fase saneadora que o julgador, em decisão

fundamentada, conseguirá delimitar a matéria e as questões de mérito que

integrarão todo o espaço processual na fase instrutória. O término do prazo de

manifestação dos interessados na formação e no conteúdo do processo é o

momento em que se define a matéria de mérito da ação temática.

Importante esclarecer que não podemos confundir matéria de mérito com o

mérito processual. Considera-se matéria de mérito numa ação temática todos os

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pedidos, as alegações, as questões e os temas correlatos e que exteriorizarão a

amplitude do debate da pretensão deduzida. A matéria de mérito deve ser vista

como o objeto da demanda coletiva; as proposições que nortearão todo o discurso

democrático ao longo do procedimento. Por isso poderemos ter como parte

integrante da matéria de mérito situações jurídica, fatos, provas e qualquer tema que

venha refletir substancialmente no debate crítico dos meandros da pretensão. A

formação do mérito processual inicia-se com a matéria de mérito, mas a ela não se

limita. O mérito processual pode ser definido como o direito de ampla argumentação

fático-jurídica da pretensão por todos os interessados em contraditório, ou seja,

trata-se do direito assegurado a cada sujeito ou grupo de sujeitos de influir nos

critérios utilizados pelo julgador no momento da decisão. Tudo isso somente é

possível em virtude da abrangência e da amplitude do objeto da ação coletiva, assim

como a possibilidade de todos os interessados manifestarem suas vontades, muitas

vezes distintas e contraditórias:

As ações coletivas não devem ser rígidas quanto à formação do mérito porque se o fato abrange um número indeterminado de interessados, é natural que dentre eles existam manifestações de vontade em sentidos diferentes e muitas vezes contraditórios. A ação dos diversos interessados difusos deve conduzir a uma possibilidade de ampliação flexível do mérito no processo coletivo. Se assim não for, corre-se o risco de se transformar a decisão judicial do processo coletivo em uma visão unilateral e representativa apenas de uma parcela dos interessados difusos na questão litigiosa (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 179-180).(grifo nosso)

As ações temáticas deverão propor o debate em processo judicial de todas as

questões atinentes aos interessados difusos, para que cada sujeito ou interessado

tenham seus interesses representados por meio de temas objeto da discussão como

mérito da ação proposta (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 180). Nas ações temáticas não

é necessário que todos os interessados se manifestem diretamente no processo

sobre as questões ora debatidas. A proposta do jurista Vicente de Paula Maciel

Junior é que todos os interessados difusos sejam representados a partir dos temas

levados a juízo, ou seja, com a publicidade do objeto da ação temática todos os

interessados poderão participar da definição da matéria de mérito e da construção

participada do mérito processual mediante a vinculação a um dos temas levantados

e correlatos ao objeto inicial da demanda. Dessa forma, não seria necessário que

todos os interessados se manifestassem individualmente, a ponto de tornar inviável

o processo coletivo. Cada interessado difuso teria a legitimidade de se vincular a um

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dos temas suscitados e ser representado quanto aos seus interesses mediante a

vinculação à proposta temática apresentada por um grupo de pessoas.

A construção participada do mérito processual no modelo de processo

coletivo desenhado a partir das ações temáticas depende de uma postura ativa do

julgador em dar a maior publicidade possível do objeto da demanda coletiva a todos

os interessados difusos. Por isso, é importante ressaltar que o edital; a utilização dos

veículos de imprensa falados, ouvidos e escritos; o instrumento das redes

sociais(facebook, twitter, Orkut, msn dentre outras) são meios legítimos hoje para a

construção da democracia em virtude da maior facilidade da comunicação entre as

pessoas. Ao receber a petição inicial de uma ação temática o julgador inicialmente

deverá analisar a natureza jurídica da pretensão. Tratando-se de pretensão coletiva

ou difuso o julgador obrigatoriamente deverá dar ampla publicidade a fim de

oportunizar a todos os legitimados o direito de apresentar temas, levantar questões e

fazer pedidos correlatos àquilo que foi inicialmente posto em debate. Para isso,

torna-se necessário estabelecer a publicação de edital e a abertura de prazo para

manifestações dos interessados.

Além do edital, é importante que o julgador determine a publicidade em

rádios, jornais locais e outros tantos meios legítimos, informando sucintamente o

objeto da ação coletiva e estabelecendo prazo para manifestações das partes.

Quanto maior for a divulgação do objeto da ação temática maior será a participação

dos sujeitos interessados e também maior será o grau de legitimidade democrática

do provimento jurisdicional. O grau de legitimidade de qualquer provimento

construído no Estado Democrático de Direito está diretamente relacionado com a

extensão da participação dos interessados difusos.

Pelo exposto resta claro que a participação no processo coletivo está

intrinsecamente relacionada com a publicização do objeto da demanda. Na medida

em que ampliamos a publicidade da demanda, consequentemente amplia-se

também o próprio objeto da ação mediante a apresentação de temas, questões e

pedidos que gradativamente passam a integrar o foco de debate das questões de

mérito das ações coletivas. Isso evidencia também que antes de falarmos em

construção participada do mérito processual, torna necessário esclarecer a

participação dos sujeitos na formação da matéria e das questões que integrarão o

debate meritório a ser desenvolvido no processo.

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A formação da matéria do mérito é algo que ocorre na primeira fase do

procedimento da ação coletiva, ou seja, na etapa que antecede a fase saneadora.

Trata-se do momento processual em que os sujeitos interessados no bem jurídico

coletivo ou difuso se inserem no contexto processual com a finalidade de cada qual

dar a sua contribuição para a definição da matéria de mérito. Fica claro então que a

etapa do procedimento que antecede a fase de saneamento presta-se para definir a

matéria de mérito, uma vez que o debate e a construção participada do mérito

ocorrerá principalmente na fase instrutória, momento processual em que os

interessados poderão debater de forma fundamentada e apresentar argumentos

fático-jurídicos com relação àquelas questões anteriormente definidas por eles na

fase pré-saneamento e no despacho saneador.

A partir dessas colocações iniciais começa-se a delinear o formato do

procedimento e dos atos processuais a serem praticados ao longo das ações

temáticas. Podemos dividir o procedimento das ações temáticas em três grandes

eixos: 1) Fase Técnica ou Preliminar; 2) Fase Saneadora; 3) Fase Instrutória.

A primeira fase presta-se a uma análise técnica e preliminar do julgador

acerca da natureza jurídica da pretensão deduzida. Trata-se do momento em que o

juiz averiguará, de forma fundamentada, se a pretensão deduzida tem ou não

natureza metaindividual (coletiva e difusa). O juízo de análise pelo julgador nessa

primeira etapa deve se pautar numa constatação pré-meritória, uma vez que fica

adstrito a avaliar os possíveis efeitos jurídicos ou a extensão de um provimento

jurisdicional que aprecie o objeto da demanda.

A fase de saneamento é o momento em que o julgador auferirá e analisará a

coerência dos temas trazidos pelos interessados ao longo de todo o procedimento.

Importante ressaltar que a definição da matéria de mérito a ser discutida na fase

instrutória somente ocorrerá se houver a ampla publicidade da propositura e do

objeto da ação temática na fase preliminar ao saneamento, a fim de assegurar

indistintamente a todos os interessados o direito de imiscuir-se no profundo debate

das questões relevantes à análise discursiva da pretensão coletiva.

A decisão judicial proferida no saneamento do processo coletivo deverá ser

fundamentada e o juiz não está obrigado a acolher todos os temas suscitados pelas

partes como matéria que integrará o mérito da pretensão. Aqueles temas que

eventualmente não forem reconhecidos como matéria relevante a ser suscitada na

ação temática poderão ser questionados por meio de recurso proposto por qualquer

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interessado que tenha argumento fático-jurídico suficientemente coerente para

justificar a permanência do tema alegado como uma das matérias que integram o

mérito da pretensão. O recurso cabível é o agravo, que será de instrumento se o

recorrente demonstrar a possibilidade de dano coletivo, caso o tema ou a matéria

suscitada sejam retirados do foco de debate da pretensão coletiva deduzida,

admitindo-se, nesse caso específico o efeito devolutivo e suspensivo.

A fase instrutória é marcada pela aplicabilidade imediata do princípio do

discurso e pela possibilidade de todos os interessados nos temas suscitados

poderem discuti-los livremente e, assim, construir o provimento de forma a proteger

os direitos da coletividade. O mérito participado é reflexo de um modelo de processo

coletivo cuja decisão é construída pelos interessados, ao contrário do processo civil,

quando normalmente a decisão é conseqüência da percepção e do convencimento

do julgador acerca daquilo que foi alegado pelas partes.

A participação no processo coletivo é também garantida através das

audiências públicas, cuja realização poderá ocorrer em qualquer fase do

procedimento. Recomenda-se inicialmente a realização da audiência pública na

primeira fase do procedimento, a fim de estimular maior publicidade do objeto da

ação coletiva e também permitir que qualquer interessado participe de todo o debate

envolvendo questões atinentes à tutela de direitos coletivos. É o momento das

partes interessadas apresentarem suas propostas, seus temas e suas alegações,

procurando demonstrar coerência e relevância em seus argumentos. Trata-se de um

momento que pode ser utilizado pelo juiz para enriquecer os elementos descritivos

da pretensão inicialmente deduzida, além de permitir maior esclarecimento e

proximidade do julgador com relação a tudo aquilo alegado, conversado, pretendido

ou questionado pelos interessados. A audiência pública é uma forma de o juiz

potencializar e garantir efetivamente o exercício da cidadania, aproximando-se dos

interessados, a fim de ouvir mais de perto suas expectativas com relação à demanda

coletiva e, ao mesmo tempo, amadurecer o debate e a interpretação de todas as

questões e temas trazidos para o processo coletivo.

Na realidade a audiência pública é a materialização do momento em que o

juiz amplia as vias de acesso ao Judiciário, indo até o jurisdicionado e incentivando

que o jurisdicionado seja inserido no debate de questões de natureza difusa ou

coletiva. É considerada a forma mais legitima de integração dos interessados no

provimento de natureza metaindividual, ressaltando-se que a participação na

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audiência pública deverá ser assegurada a todos os interessados, sem qualquer

limitação decorrente do estabelecimento de condições que venham a obstaculizar o

acesso dos legitimados ao debate democrático.

Na fase instrutória a realização da audiência pública é de extrema importância

quanto ao enfrentamento do debate de toda a matéria de mérito levantada pelos

interessados e reconhecida pelo juiz no despacho saneador. É a oportunidade que

resguarda a todos de ter o direito de igual (isonomia processual) argumentação

fático-jurídica da pretensão (contraditório), o direito de produção de provas e de

utilização de todos os meios de provas licita e legitimamente admitidos em direito

(ampla defesa), o direito de não ser surpreendido por uma decisão judicial a qual

não teve a oportunidade de ser seu co-autor (devido processo legal), o direito se ser

parte integrante da construção participada do mérito processual.

4.4.1 A procedimentalização da construção participa da do mérito no

processo coletivo democrático A criação de um procedimento específico para as ações temáticas é algo

indispensável na conjuntura da construção participada do mérito processual e,

especialmente, no estabelecimento dos limites da demanda266. Portanto, é natural

que o processo coletivo viabilize meios legítimos para garantir a oportunidade de

ingresso e de participação dos interessados difusos no lócus processual,

disciplinando até que momento poderão participar da demanda. Nesse contexto,

torna-se necessário estabelecer uma fase no procedimento até quando será

possível a modificação, a alteração, a complementação ou a ampliação da matéria

de mérito objeto da demanda proposta.

É de grande importância para a técnica processual a sistematização do

procedimento a ser adotado no processo coletivo voltado para a formação

participada do mérito. A codificação do processo coletivo é a oportunidade de criar

um procedimento próprio e específico, que venha contemplar a ampla participação

266 O que será fundamental para estabelecer os limites da demanda e, por conseguinte, da extensão dos futuros efeitos da coisa julgada nas ações coletivas será uma clara definição sobre o mérito ou o conteúdo da demanda, que não será formado apenas pelo objeto do pedido constante na petição inicial, mas pela efetiva oportunidade de ingresso na ação do maior numero de interessados difusos que tenham teses diferentes dos já existentes no processo. Isso necessariamente provoca a possibilidade de alteração ou ampliação do mérito da ação proposta, o que é de admissão restritíssima dentro do processo civil individual (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 180).

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dos interessados e, ao mesmo tempo, permitir a superação ideológica daquele

entendimento já solidificado no processo civil de que o mérito processual limita-se às

matérias alegadas pelo autor na exordial e pelo demandado na sua defesa. O mérito

processual nas ações temáticas não fica adstrito àquilo que foi alegado na exordial,

até porque, o conteúdo da petição inicial é apenas o ponto de partida utilizado como

critério por todos os interessados para orientar a definição da matéria de mérito que

permeará todo o discurso democrático. “Deve haver uma fase até quando os

diversos interessados difusos possam manifestar seus interesses e alterar o mérito

da ação coletiva, com o agrupamento das posições comuns e o destaque daquelas

várias questões conflituosas que deverão ser objeto do julgamento (MACIEM

JUNIOR, 2006, p. 181).

Adotar nas ações temáticas a sistemática de formação do mérito no processo

civil é o mesmo que legitimar a limitação do espaço processual do debate jurídico da

pretensão coletiva, excluindo um grande número de interessados que não teriam a

oportunidade de submeter suas questões levantadas ao discurso e, ao mesmo

tempo restringindo o objeto da demanda. Isso, de certa forma, poderia estimular a

proliferação das ações individuais em razão da não publicidade efetiva que pudesse

suficientemente oportunizar o direito de todos os legitimados trazerem suas

pretensões para o processo coletivo.

Ampliar o objeto da ação temática através da utilização de meios legítimos

que venham a garantir a publicização de seu objeto é o mesmo que assegurar a

celeridade e a economia processual, uma vez que assim estaria evitando o

demandismo individualizado que visa buscar a proteção jurídica de direitos de

natureza coletiva e difusa. A proposta das ações temáticas é justamente essa: evitar

a proliferação de demandas individuais para discutir pretensões coletivas, podendo

vir a comprometer a segurança jurídica, a celeridade e a efetividade processual.

O objeto da presente pesquisa cientifica no respectivo momento é

sistematizar uma proposta de procedimento compatível com as ações temáticas. A

seguir encontraremos essa proposta de procedimento:

a) Fase Técnica: é o momento em que o julgador fará uma análise preliminar

(pré-meritória) da pretensão deduzida pelo autor da ação, com a finalidade

de avaliar a sua dimensão coletiva e difusa.

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b) Em decisão fundamentada o julgador se manifestará sobre a natureza da

pretensão deduzida. Caso entenda se tratar de pretensão metaindividual, o

procedimento prosseguirá normalmente. Se vier a entender que a

pretensão deduzida é de natureza individual, intimará o autor da ação

sobre o conteúdo de sua decisão, para que a parte se manifeste no prazo

de 10 (dez) dias em querer prosseguir a relação processual como ação

individual (não como ação coletiva). A inércia ou a recusa da parte autora

da ação legitimará o julgador a proferir uma sentença terminativa, passível

de recurso nos termos dispostos no Código de Processo Civil vigente.

c) Uma vez reconhecida a natureza coletiva ou difusa da pretensão deduzida,

o magistrado determinará a citação da parte demandada e a expedição de

edital com a finalidade de dar publicidade do objeto da demanda e

estabelecer prazo para que os interessados possam se manifestar e

apresentar temas, alegações, pedidos e todas as demais questões que

tenham relação direta ou indireta com a pretensão inicialmente deduzida.

d) Além do edital, o juiz deverá determinar a publicidade do objeto da ação

coletiva e do prazo de manifestações dos interessados em rádios,

televisão, jornais impressos e falados e internet. Em situações especificas

poderá, de forma fundamentada, determinar a utilização de outros meios

de comunicação e de publicidade considerados idôneos a garantir a

participação mais ampla possível de todos os interessados difusos e

coletivos.

e) O julgador deverá receber todas as alegações apresentadas pelos

interessados difusos, cadastrá-los e intimá-los de todos os atos

processuais praticados pelas partes a partir de então.

f) O juiz deverá intimar os interessados que se manifestaram e apresentaram

temas no processo coletivo democrático (ação temática) a constituir

advogado para representá-lo em juízo e preferencialmente com

conhecimento específico dos direitos coletivos e difusos e da sistemática

do processo coletivo. Caso a parte interessada não tenha condições de

contratar um advogado, deverá ser nomeado defensor dativo ou, caso seja

possível e necessário, nomear a Defensoria Publica para atuar no feito.

g) Caso o Ministério Publico tenha sido o autor da ação o magistrado deverá

adotar o mesmo procedimento anteriormente mencionado, a fim de dar

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ampla publicidade e oportunidade de todos os interessados difusos e

coletivos de passarem a integrar a relação processual e apresentarem

temas, alegações e levantar questões inerentes àquilo que foi inicialmente

alegado pelo autor da ação coletivo (ação temática).

h) Se o autor da ação for um interessado difuso ou coletivo, o Ministério

Público será intimado para atuar como parte no processo (não como mero

fiscal da lei). Importante ressaltar que a atuação do Ministério Público como

parte no processo garantirá que todos os interessados difusos e coletivos e

a própria instituição do Ministério Público o direito de igualdade (isonomia

processual) na participação no processo coletivo mediante o levantamento

de questões, alegações e argumentos coerentes com aquilo que tenha sido

inicialmente alegado pelo autor da ação.

i) Considerando-se a natureza democrática e constitucionalizada do processo

coletivo ressalta-se que o juiz deve ser visto como um dos sujeitos do

processo legitimados ao à participar da formação do objeto e do debate da

pretensão coletiva deduzida em juízo. Isso evidencia uma postura mais

ativa e independente do julgador, que terá autonomia para atuar de oficio

no debate e na formação do mérito processual, ressaltando-se que tal

legitimidade não se confunde com poder de julgar unilateralmente o objeto

da demanda, desconsiderando o que todos os demais interessados

apresentaram e alegaram anteriormente.

j) Encerrado prazo previamente estabelecido para que os interessados

apresentassem suas manifestações ou temas que integrarão o objeto da

ação temática, inicia-se, então a Fase de Saneamento267.

k) O saneamento do processo é o momento em que o julgador analisará a

pertinência, a coerência e a relevância de todos os temas, as alegações, as

questões e os argumentos fático-jurídicos apresentados pelas partes. Tal

análise é necessária para que o julgador decida, de forma fundamentada,

267 Entendemos que a lei deve fixar um prazo razoável e um amplo meio de divulgação em espaço público e privado nos meios de comunicação, a fim de que os interessados possam vir participar da formação do mérito e, portanto, do conteúdo do provimento final da ação coletiva. A importância da ação coletiva fundada em direito difuso ser temática é que ela trará para o seu bojo um conjunto maior de questões para serem discutidas e terá maiores condições de abranger o conflito pelos diversos ângulos que ele possua. Isso será fundamental para que se possa estabelecer uma política legislativa sobre a preclusão das questões referentes ao processo coletivo, afetando diretamente o tema da coisa julgada (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 181).

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quais serão os temas que integrarão a matéria de mérito que direcionará o

debate na fase instrutória.

l) Importante esclarecer que o principio do discurso e da participação devem

ser efetivamente observados nas duas principais fases do procedimento

das ações temáticas: a) na primeira etapa a ampla publicidade do objeto da

ação coletiva proposta é o que garantirá aos interessados a oportunidade

de manifestações no sentido de apresentarem temas e alegações que

integrarão a matéria de mérito; b) na segunda etapa, ou seja, na fase

instrutória, o julgador é responsável por estabelecer a criação de um

espaço processual em que todas as partes interessadas terão legitimidade

de debater a matéria e as questões de mérito definidas na fase de

saneamento.

m) A fase instrutória somente será iniciada após o término da fase de

saneamento e de definição da matéria e das questões de mérito.

n) Encerrado o prazo estabelecido no edital e publicizado para que os

interessados trouxessem aos autos suas manifestações e temas, torna-se

expressamente proibido que qualquer interessado venha a apresentar

posteriormente um tema correlato ao objeto inicialmente deduzido em juízo.

Caso queira apresentar um outro tema correlato àquilo que foi alegado pelo

autor da ação poderá fazê-lo por meio de uma nova ação judicial.

o) Os princípios do contraditório, da ampla defesa, da isonomia processual e

do devido processo legal serão efetivamente observados na primeira etapa

do procedimento somente se a todos tiver sido dada a oportunidade de

apresentação de temas e alegações, ou seja, é por isso que se torna

imprescindível a maior amplitude possível da publicidade da propositura e

do objeto da ação temática. A legitimidade da primeira fase do

procedimento está diretamente condicionada à observância estrita do

principio da publicidade. Qualquer comprovação posterior de que não se

observou o principio da ampla publicidade da propositura e do objeto da

ação coletiva acarretará a nulidade de todo o processo coletivo. Torna-se

necessário demonstrar que a ausência de publicidade impediu

interessados difusos e coletivos de participarem da formação da matéria de

mérito.

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335

p) Em decisão fundamentada proferida na fase de saneamento268 o juiz

acatará os temas, as alegações e os argumentos que entende coerentes,

lógicos e coletivamente relevantes à demanda judicial. O não acolhimento

de qualquer tema ou alegação apresentado por qualquer interessado difuso

ou coletivo ensejará a possibilidade de propositura de recurso de agravo de

instrumento, desde que seja demonstrada a relevância do tema ou da

temática não acolhida no que tange à proteção dos direitos da coletividade.

Caso se comprove a possibilidade de dano em virtude do não acolhimento

de um determinado tema suscitado por algum interessado o recurso de

agravo de instrumento será recebido nos efeitos devolutivo e suspensivo.

q) O encerramento da fase de saneamento viabiliza o inicio da fase

instrutória. A Fase de Instrução Processual é aquele em que serão

debatidas todas as questões e os temas que integram a matéria de mérito.

O julgador deverá estender ao máximo o espaço processual a fim de

assegurar que todos os interessados sejam preservados quanto a sua

legitimidade de argumentar, discutir e debater todas as peculiaridades

fáticas e jurídicas da pretensão coletiva ou difusa.

r) A realização da Audiência Pública é uma estratégia extremamente

relevante para assegurar a legitimidade democrática do provimento e a

participação ampla dos interessados no processo coletivo. Além de garantir

a participação dos legitimados nas ações temáticas, a finalidade da

audiência pública poderá variar de acordo com o momento processual em

que a mesma será realizada: a) a realização da Audiência Pública na

primeira etapa do procedimento da ação temática tem a finalidade de

divulgar amplamente o objeto da ação, para que os interessados possam

trazer para o processo todas as questões possíveis e pertinentes àquilo

que foi inicialmente alegado. O propósito central é a formação mais ampla

268 Recebida a defesa e os eventuais aditamentos à inicial, deveria haver um despacho saneador no qual o juiz obrigatoriamente fixasse os pontos controvertidos e o objeto da prova e resolvesse as demais questões do processo. Contra essa decisão poderia ser prevista uma impugnação em prazo razoável (mais ou menos 10 dias), no sentido de permitir a ampliação do objeto da lide ou revisitar qualquer equivoco na fixação dos pontos controvertidos. Em seqüência à decisão sobre o objeto daquele processo, que não poderia a partir de então ser alterado, a não ser na hipótese de reunião de processos coletivos por conexão com o bem a envolver ambas as demandas e desde que estejam as causas em um mesmo momento processual (ambas em 1º grau e antes de colhidas provas nos autos) (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 183-184).

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336

possível da matéria de mérito; b) uma Audiência Pública realizada na fase

instrutória tem como propósito instituir o princípio do discurso democrático,

estimular o debate da matéria de mérito e viabilizar a direta intervenção dos

interessados na construção dialógica de um provimento jurisdicional cujos

efeitos se estenderão a todos aqueles que tiveram a oportunidade de

participar

s) A construção participada do mérito processual nas ações temáticas é

conseqüência da participação efetiva dos interessados em todas as fases

do procedimento, especialmente na fase que antecede o saneamento

processual e na fase instrutória. O mérito participado deve ser reflexo das

seguintes questões: a) a participação dos interessados na definição da

matéria de mérito (conseqüência da ampla publicidade da propositura e do

objeto da ação temática); b) a ingerência e a participação dos interessados

na construção da decisão judicial proferida na fase de saneamento,

momento em que o julgador define, de forma fundamentada, a matéria de

mérito que norteará toda a instrução processual; c) a participação dos

interessados no discurso de todas as questões inerentes à matéria de

mérito e a possibilidade de influírem diretamente na construção do

provimento final.

t) A decisão proferida ao final da ação temática deverá ser reflexo de uma

estrutura procedimental em que os interessados difusos e coletivos

puderam participar da construção de todos os atos processuais, podendo

se manifestar, opinar, deliberar e interferir no conteúdo das decisões

proferidas pelo julgador.

u) Os efeitos jurídicos erga omnes da coisa julgada coletiva serão

implementados pela comprovação do mérito participado enquanto o

parâmetro regente da legitimidade democrática do provimento.

O grande desafio enfrentado pelos estudiosos que pretendem sistematizar

um procedimento que assegure aos interessados o direito de participação no

processo coletivo é identificar como fazer isso na prática sem tornar a demanda

coletiva excessivamente demorada. Possivelmente a idéia de permitir que todos os

interessados se manifestem individualmente no processo, obrigando o julgador a

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intimar cada qual acerca dos atos processuais praticados em juízo ocasionaria

grandes dificuldades de resolução do mérito processual da ação coletiva.

O que propõe as ações temáticas é que todos os interessados possam

participar do processo coletivo vinculando-se a um dos temas levantados pelas

partes e que será submetido ao debate. Dessa forma, ao dar publicidade do objeto

inicial da ação temática, o juiz estabeleceria um prazo razoável para que as pessoas

interessadas se reunissem e discutissem quais temas seriam apresentados no

processo. Esse debate processual, em bases extrajudiciais, poderia ocorrer por meio

de audiências publicas, que seriam vistas como o momento em que os próprios

interessados poderiam discutir entre si quais os temas por eles considerados

relevantes e que poderiam ser levados a juízo. Além disso, sabe-se que a audiência

pública é uma forma dos interessados na pretensão amadurecerem os fundamentos

do debate para, assim, conseguirem identificar com maior coerência e clareza quais

os temas e as alegações mais pertinentes para o caso concreto.

Após extenso debate extrajudicial pelos interessados, os temas, as alegações

e os pedidos seriam levados ao processo, sem ter a necessidade de cada

interessado ser intimado para se manifestar individualmente acerca dos atos

processuais praticados ao longo do procedimento. Para cada tema apresentado na

ação temática teríamos um representante do grupo de pessoas vinculado a esse

tema específico. Sempre que foi proferida uma decisão referente à ação temática

quem será intimado é o representante de cada grupo de pessoas, que ficará

incumbido de promover a reunião dos interessados com o propósito de discutir entre

si os fundamentos da decisão judicial. Somente após essa deliberação conduzida

pelo representante que ficou responsável de instaurar o discurso entre todos os

interessados é que será possível e legitima a manifestação do representante em

juízo.

A proposta das ações temáticas não se confunde com a figura do

representante adequado, utilizada no sistema norte-americano das class actions.

Nos Estados Unidos da América, primeiro coletam-se todas as assinaturas dos

interessados a propositura da ação de classe, para depois disso, propô-la. Uma vez

proposta e admitida a ação de classe, o representante adequado adquire certa

autonomia para agir, decidir e deliberar em favor dos membros da classe sem ter o

dever de se submeter a todas as questões surgidas ao longo do procedimento a um

novo debate entre os interessados. O que o representante adequado faz é buscar o

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reconhecimento como legitimado para propor e deliberar autonomamente sobre as

questões coletivas surgidas ao longo do procedimento, dispensando-se novas

consultas e discussões com os interessados acerca das questões que forem

surgindo ao longo do procedimento. Na realidade, a condição de representante

adequado no sistema das class actions condiz com uma ampla autonomia conferida

ao representante de poder agir com liberdade na defesa e na proteção jurídica dos

direitos dos integrantes da classe, sem ter que se dirigir constantemente aos

mesmos, como pressuposto da legitimação de seus atos.

Em contrapartida, nas ações temáticas os representantes dos grupos

temáticos não possuem ampla autonomia para deliberar sobre as questões atinentes

ao processo coletivo sem antes consultar e avaliar a viabilidade de uma decisão

perante os próprios interessados difusos e coletivos. Isso demonstra que o principio

do discurso deverá ser constantemente observado ao longo de todo o procedimento

adotado nas ações temáticas, uma vez que a condição de representante de um

grupo de interessados em um determinado tema apresentado ao debate judicial não

dispensa o representante do dever de sempre consultar os demais interessados.

Dessa forma, a autonomia conferida ao representante condiciona-se à legitimidade

conferida pelos interessados difusos e coletivos quanto à prática de todo e qualquer

ato processual ao longo do procedimento.

As teses apresentadas com o objetivo de integrar a matéria de mérito devem

ser reflexo de intenso e de efetivo debate instaurado entre todos os interessados. O

papel do represente de cada grupo temático é conduzir o debate, levantar e

sistematizar as conclusões obtidas pelo grupo e, ao final, levar para o processo

coletivo o resultado de todo esse debate. Observa-se que o represente de cada

grupo temático não tem autonomia para deliberar de forma individual e solitária o

que seria melhor para o seu grupo, até porque suas decisões e posicionamentos

devem ser reflexos daquilo que foi deliberado pela maioria. Admitir que o

representante do grupo temático teria essa legitimidade é reconhecer a fragilidade

da concepção democrática do modelo de processo coletivo em razão da limitação da

participação efetiva de todos os membros e interessados na pretensão.

O que o representante deve fazer é estimular o debate da pretensão, nunca

limitando ou suprimindo a condição de sujeito reconhecida a cada interessado. O

representante que, por ventura, venha a retirar a condição de o interessado

participar do debate crítico e da testificação da pretensão coletiva certamente agirá

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de uma forma incompatível com a constitucionalidade e com a processualidade

democrática. “Ou seja, as teses defendidas por cada interessado poderiam

apresentar-se parcial ou totalmente diferentes umas das outras, entretanto, os

efeitos pretendidos envolveriam o mesmo bem objeto da pretensão de todos”

(MACIEL JUNIOR, 2006, p. 182).

O objeto do processo não pode ser instituído ou modificado unilateralmente

pelo juiz, e tampouco pela vontade exclusiva do representante da coletividade. A

noção de contraditório que se pretende propor no processo coletivo democrático é

aquela que permite o envolvimento de todos os interessados na definição do objeto

da demanda e na construção da matéria de mérito. Portanto, toda decisão judicial

que define o objeto de uma demanda sem considerar as manifestações dos

legitimados ao provimento é nula de pleno direito, até porque o objeto de uma ação

temática não é pressupostamente definido por uma pessoa ou por um grupo de

pessoas escolhido para representar os interesses da coletividade, mas sim,

construído discursivamente no lócus processual que permite o amplo debate pelos

interessados dos fundamentos fático-jurídicos que integrarão o cerne da pretensão

coletiva.

Considerando-se que a definição da matéria de mérito (pretensão inicialmente

deduzida, temas, alegações e pedidos apresentados pelos interessados com o

propósito de ampliar o objeto da ação temática) ocorre na fase preliminar do

procedimento, e que no despacho saneador o juiz analisa a pertinência, a coerência

e a relevância social, coletiva e difusa da pretensão inicialmente deduzida e dos

temas trazidos pelos interessados para complementar o objeto da ação temática,

pode-se concluir preliminarmente que a inobservância do principio do discurso

tornaria impossível tudo isso. A processualidade democrática desenvolvida no

âmbito da discursividade é o que fundamenta e orienta a construção participada do

mérito nas ações temáticas.

O mérito processual nas ações temáticas é reflexo e conseqüência do

entendimento e da aplicabilidade do modelo constitucional do processo no Estado

Democrático de Direito, cuja referência encontra-se nos Direitos Fundamentais e na

principiologia constitucional do processo (ampla defesa, contraditório, isonomia

processual, devido processo legal e amplo acesso ao Judiciário). A construção

meritória do provimento estatal ocorre ao longo de todo o procedimento da ação

temática e não se concentra em um ato isolado. Desde a propositura da ação até a

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decisão final verificam-se etapas específicas e relevantes ao compartilhamento da

construção do mérito.

A constatação da natureza coletiva da demanda, a publicidade do conteúdo e

da pretensão coletiva inicialmente deduzida (expedição de editais, utilização da

imprensa escrita, falada, a divulgação em rádios, utilização das redes sociais) , a

oportunidade de todos os interessados trazerem para o processo coletivo temas

correlatos ao objeto inicialmente alegado pela parte e o reconhecimento jurídico pelo

juiz, no despacho saneador, de quais questões, alegações e pedidos integrarão a

matéria de mérito, é o que caracteriza o encerramento da primeira e importante

etapa de co-participação dos interessados difusos e coletivos na definição dos

critérios que orientarão e fundamentarão o provimento final. A realização da

audiência pública é uma importante ferramenta para garantir maior amplitude e

amadurecimento do debate das questões e dos temas levantados pelas partes.

“Proposta uma ação cuja decisão envolva um bem que afete um numero

indeterminado de pessoas, o ideal seria que a lei fixasse uma fase de divulgação

para que os interessados difusos tomassem ciência e pudessem intervir no

processo” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 183).

Uma vez delimitado o objeto da ação temática por meio do despacho

saneador, o julgador fundamentará de forma muito minuciosa sua decisão, a fim de

explicitar e justificar quais temas e questões integrarão a matéria de mérito, não se

esquecendo também de justificar e fundamentar, apresentando os motivos, do não

acolhimento de alguns temas, pedidos ou argumentações trazidas pelas partes na

primeira etapa do procedimento, ressaltando-se o direito de recorrer da parte

juridicamente interessada, caso algum tema apresentado por um grupo de

interessados não tenha sido admitido em juízo pelo fato do julgador não considerá-lo

relevante e pertinente socialmente.

Encerrada a fase saneadora e iniciada a instrução processual prossegue-se o

debate, agora centrado na matéria de mérito previamente definida. A

institucionalização de um amplo espaço de debate é o que permitirá aos

interessados manifestarem seus argumentos, interpretações e reflexões acerca

daquela matéria de mérito levantada pelas partes na primeira etapa do

procedimento. Nesse momento já temos definido os critérios que delimitarão o objeto

da discussão e, consequentemente, da construção participada do mérito processual.

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A realização de uma audiência pública na fase instrutória é de extrema

relevância no sentido de assegurar o mais amplo debate possível das questões

meritórias, para que os legitimados consigam analisá-las atentamente, a ponto de

concluir o que é melhor para a coletividade. Trata-se de uma tentativa de

amadurecimento de tudo que foi colocado em debate, ressaltando-se a importância

de todos os destinatários do provimento ter a noção exata do direcionamento que o

debate vem tomando, a fim de poder influir decisivamente no conteúdo decisório

que integrará o provimento. Uma eventual decisão judicial proferida sem que se

oportunize a discursividade da pretensão, certamente poderá causar prejuízos e

graves conseqüências jurídicas para os titulares do bem jurídico de natureza

transindividual. A audiência pública é um dos meios legítimos de institucionalizar a

construção participada do mérito processual nas ações temáticas, de tal modo a

resguardar aos destinatários do provimento a certeza de que não serão

surpreendidos por uma decisão a qual foram excluídos do espaço argumentativo.

4.5 Análise crítica da participação dos legitimados no processo coletivo O pressuposto básico da participação no processo coletivo é que os

interessados no provimento não tragam para o debate pretensões individualizantes,

ou seja, o primeiro passo para implementar o modelo democrático de processo

coletivo é a revisitação do pensamento dos cidadãos, para que deixem de raciocinar

de forma individualizada e passe a compreender a dimensão do processo coletivo

com o foco voltado ao atendimento e a proteção jurídica da coletividade.

Tal discussão é de extrema relevância no presente contexto, uma vez que se

qualquer interessado difuso pretender participar do processo coletivo com o

propósito de proteger essencialmente os seus interesses, certamente a participação

dos demais interessados ficará comprometida. A manifestação individual de

qualquer sujeito de direito deve ser no sentido de atender não apenas os seus

interesses individuais, mas, acima de tudo, buscar a ampla proteção jurídica dos

direitos que integram o patrimônio de toda a coletividade.

A implantação do modelo de processo coletivo democrático não depende

apenas da alteração legislativa ou da codificação das normas jurídicas atinentes ao

direito coletivo e ao processo coletivo. Colocar em prática as ações temáticas,

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considerada o modelo democrático-participativo de processo coletivo, depende da

mudança de mentalidade das pessoas quanto ao exercício da cidadania, uma vez

que, ser cidadão é buscar a proteção jurídica de interesses individuais, mas, acima

de tudo, dos direitos coletivos e difusos, ou seja, a proteção jurídica da

metaindividualidade. O exercício da cidadania perpassa pela oportunização da

participação de todos os sujeitos na definição da matéria de mérito, na construção

participada do provimento jurisdicional e também na discursividade democratizante

que terá como conseqüência lógica a construção participada (não a imposição

unilateral e solitária) do mérito processual.

A construção do mérito processual nas ações coletivas fica profundamente

comprometida quando se verifica a reprodução reiterada da ideologia individualista

preconizada por um ou por alguns poucos interessados dispostos a proteger apenas

os direitos seus, sem se importar com os direitos dos demais titulares.É por isso que

se torna relevante esclarecer a incompatibilidade do processo civil, de raízes

individualistas e patrimonialistas, com o modelo de processo coletivo proposto pelo

Estado Democrático de Direito.

Torna-se extremamente relevante a fiscalização da publicidade do objeto da

ação coletiva, a fim de averiguar se os instrumentos utilizados para divulgar a

propositura e o objeto da ação temática estão sendo eficientes a ponto de atingir

todos os potenciais interessados em participar da formação da matéria de mérito e

da construção do mérito processual.

Esse controle da utilização dos meios de publicidade e de divulgação do

objeto da demanda poderá ser feito por qualquer sujeito que demonstre a aptidão de

sofrer os efeitos jurídicos do provimento. Qualquer constatação de limitação da

publicidade do objeto da demanda coletiva acarretará o cerceamento de defesa,

tendo em vista que o interessado que não foi regularmente comunicado ou

informado a respeito da ação coletiva não teve a oportunidade de exercer o

contraditório (direito de argumentação fático-jurídica da pretensão), a ampla defesa

(direito de produzir provas e meios de provas licita e legitimamente admitidos em

direito) e o devido processo legal (aptidão do sujeito ser surpreendido por uma

decisão a qual não lhe foi oportunizado o direito de participação na construção do

provimento).

Não é possível reconhecer como legitimo um provimento que decorreu da

pseudo-participação dos interessados no provimento, assim como não é possível

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presumir que a participação tenha ocorrido. A legitimidade democrática do

provimento fica adstrita à demonstração de que o sujeito interessado efetivamente

participou, que foi comprovadamente comunicado acerca do objeto da ação e que

resolveu, expressa ou tacitamente, não se inserir no espaço processual de

discussão.

Toda discussão proposta no presente item do trabalho é para demonstrar que

a participação no processo coletivo deve ser efetiva (não formal) a fim de assegurar

a legitimidade do ato decisório. Isso somente será possível se os destinatários dos

provimentos forem seus co-autores e se o conteúdo decisório não decorrer apenas

do posicionamento do magistrado e do representante do Ministério Público sobre um

determinado caso concreto. Ao invés de concentrar em suas mãos as prerrogativas

de opinar e de requerer solitariamente ao longo do procedimento de uma ação

coletiva, cabe ao Ministério Público o dever de compartilhar suas decisões com

todos aqueles sujeitos afetados pelo resultado final da demanda. Enquanto

instituição que detém atribuição constitucional para zelar pelos Direitos

Fundamentais, o Ministério Público tem o dever de garantir a todos, indistinta e

isonomicamente, o direito de participação no processo coletivo, responsabilizando-

se pelo controle dessa participação, bem como pelo exercício do contraditório e da

ampla defesa por todos aqueles sujeitos interessados na demanda.

A visão dicotômica de autor e réu, demandante e demandado, típica do

processo civil, deve ser superada no estudo do processo coletivo, uma vez que sob

o ponto de vista democrático, somente é possível identificar quem realmente tem

interesse na demanda coletiva após a sua divulgação e a ampla publicização do seu

objeto.

Isso implica dizer que quem propõe a ação e contra quem se propõe a ação

não são os únicos interessados no objeto da ação coletiva. Da mesma forma, é

possível identificar casos excepcionais em que o próprio autor da ação não é

considerado o interessado difuso que sofrerá os efeitos jurídicos do provimento, tal

como ocorre com o Ministério Público quando propõe uma ação coletiva – por mais

que o Ministério Público detenha a o direito de postular em juízo, não é considerado

parte no conceito stricto sensu da palavra, haja vista que atua na condição de

legitimado extraordinário e não possui qualquer aptidão para sofrer os efeitos

jurídicos da decisão judicial final.

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No processo coletivo democrático considera-se parte toda aquela pessoa

(física ou jurídica) que possa influir na construção do provimento e ao mesmo tempo

sofrer os efeitos jurídicos da decisão. Por isso, nesse conceito podemos incluir não

apenas aquelas pessoas que foram comunicadas do objeto da ação e se

manifestaram no processo, mas, também, todas aquelas pessoas que, mesmo

informadas acerca do objeto da demanda optaram por não se manifestar nos autos,

quedando-se inertes ao processo de argumentação jurídica da pretensão e de

construção participada do mérito, por mera opção. Essas últimas pessoas

interessadas também são incluídas no conceito de parte pelo fato de sofrerem

diretamente os efeitos jurídicos da decisão final, haja vista que o exercício do

contraditório e da ampla defesa lhes foi concedido.

Outra constatação importante diz respeito a determinadas ações coletivas em

que o objeto é um direito difuso. Em tais ações normalmente a parte demandada é

aquele sujeito ou grupo de pessoas que, por meio de uma conduta omissiva ou

comissiva, praticou alguma ilicitude ou está prestes de praticá-la. Porém, há casos

em que nessas ações não temos uma parte demandada que tenha especificamente

praticado uma ilicitude ou se encontra prestes a violar um determinado direito, como

é o caso de uma ação coletiva cujo objeto é o debate acerca do tombamento de uma

determinada praça pública. Considerando-se que a titularidade do bem a ser

tombado pertence à coletividade, sendo o município mero gestor da coisa pública,

não poderíamos dizer que existe uma parte especificamente demandada para esse

tipo de ação, considerando-se o conceito clássico de parte demandada a partir da

prática de ilicitudes acima mencionada.

A partir da proposta apresentada pelas ações temáticas, sabe-se que esse

tipo de demanda deveria ser levado ao Judiciário, que ficaria incumbido de dar

ampla publicidade acerca do objeto, a fim de oportunizar a todos os interessados

difusos o direito de apresentar temas relevantes à discussão da viabilidade ou não

de tombamento da respectiva praça pública.

Não teríamos, no presente caso, aquela clássica proposta dicotômica advinda

das ações individuais, em que de um lado temos o autor da ação (demandante ou

requerente) e do outro lado teremos o réu da ação (demandado ou requerido). A

justificativa de tal crítica se encontra na revisitação do conceito de parte pelo modelo

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de processo coletivo democrático, uma vez que parte269 deve ser vista como

interessado no provimento e legitimado a sofrer ou a ser atingido pelos seus efeitos

jurídico-legais.

É necessário atentar, orientar e preparar todo interessado difuso a realizar um

rigoroso controle da atividade judicial, com o intuito de averiguar se o espaço

processual de participação de todos os demais legitimados foi instaurado e se os

temas suscitados estão sendo utilizados como referencial pelo juiz no ato de decidir.

Nada adiantará se os temas e as alegações das partes forem desconsiderados pelo

julgador no ato de decidir. A efetiva realização do discurso processual democrático

ocorrerá quando todos os temas levantados pelas partes forem enfrentados e

analisados de forma fundamentada pelo juiz.

Nesse contexto, o mérito processual participado, ou seja, o provimento

meritório deverá ser resultado da análise perfunctória, detalhada e juridicamente

fundamentada pelo juiz de todos os temas levados pelas partes interessadas ao

processo coletivo. A decisão judicial não pode ser vista como mera conseqüência de

um entendimento e da análise individualizada do juiz acerca das questões que

envolvem o direito difuso e coletivo, pois deverá refletir o contexto discursivo

instaurado processualmente, a fim de sepultar, pela teoria das ações temáticas, o

modelo de processo liberal de cunho individualista e adotar como referencial o

compartilhamento das decisões pelo principio participativo-democrático.

O representante do grupo e responsável pela apresentação dos temas, das

propostas e das questões que integrarão a matéria de mérito nas ações temáticas

concentrará a legitimidade para a causa em suas mãos, mas não poderá retirar dos

demais interessados o direito de integrar a relação processual, a fim de participar

ativamente do discurso e da dialogicidade do objeto da demanda coletiva. A

consistência do procedimento proposto para as ações temáticas decorre da

sistemática da preclusão temporal, uma vez que deve ser estabelecido previamente

até que momento processual é possível que os interessados apresentem temas que

poderão integrar a matéria de mérito, ressaltando-se que somente integrará o objeto 269 A adoção do formato das ações coletivas como ações temáticas elimina a importância dada pela doutrina ao problema da legitimação passiva nas demandas que discutam direitos difusos. Isso ocorre porque há uma fase em que todos os interessados difusos serão convocados a comparecer para participar da demanda coletiva e comporem o mérito. Mesmo que a ação tenha sido proposta por uma empresa, por exemplo, para pleitear o reconhecimento da legalidade da derrubada de uma mata para construção de prédios, todos os interessados difusos poderão participar da demanda na defesa de tese oposta ou que tenha efeito modificativo no pedido inicial (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 184)

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da ação temática aquelas questões estritamente relevantes sob o ponto de vista

coletivo e social.

O grande desafio a ser enfrentado pelas ações temáticas ocorre quando

temos o conflito de dois ou mais direitos difusos, de extrema relevância social. Será

que é possível afirmarmos peremptoriamente a existência de eventual conflito

envolvendo dois ou mais direitos difusos e coletivos? Não seria o caso de

reconhecermos pelo principio do discurso o direito difuso ou coletivo mais adequado

ao caso concreto? Importante esclarecer que abstratamente não podemos falar em

uma possível hierarquia envolvendo direitos difusos e coletivos, uma vez que se

trata de afirmação precipitada e que somente a análise detalhada do caso concreto,

mediante a possibilidade de participação de todos os interessados no debate das

questões meritórias levantadas, é que nos permitirá identificar o direito mais

adequado a um determinado caso concreto. Isso será produto de ampla deliberação

pelas partes interessadas, e não mero produto de conjecturas individualizadas e

muitas vezes impostas pelo julgador, pelo legislador ou pelo chefe do executivo.

Essa problemática pode ser claramente visualizada em situações nas quais

temos de um lado interessados difusos buscando a proteção do meio ambiente e de

outro lado pessoas legitimadas a sustentar o crescimento econômico do país dentro

de uma perspectiva de desenvolvimento sustentável. Esse é o cerne do debate

instaurado entre ruralistas e ambientalistas recentemente no Brasil com relação à

aprovação do novo Código Florestal. A primeira constatação relevante é que a

legitimidade democrática do provimento legislativo, envolvendo direito difuso no

presente caso concreto, não será alcançada enquanto todo o debate das questões

suscitadas ficarem adstritos aos limites do Congresso Nacional.

Por se tratar de um tema tipicamente de natureza difusa, a aprovação ou não

do Novo Código Florestal somente seria possível após a instauração do devido

processo legislativo e de natureza coletivo-democrática através das ações temáticas

consideradas o meio mais adequado de alcançar a legitimidade democrática do

provimento legislativo por meio da participação de todos os interessados difusos.

Por isso, torna-se necessário inicialmente dar publicidade acerca do conteúdo

e das principais questões que permeiam toda a problemática que envolve a

aprovação do respectivo projeto de lei. O recomendável seria o agendamento de

inúmeras audiências públicas ao longo de todo o território nacional com a finalidade

de apresentar a proposta inicial e recolher temas, sugestões, propostas, questões e

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contestações dos legitimados, que serão devidamente estudadas e analisadas para,

ao final, elaborar um relatório devidamente fundamentado que norteará o

prosseguimento dos debates.

Ressalta-se que antes de aprovar ou não o projeto de lei todas as questões,

todos os temas e todas as propostas apresentadas deverão ser enfrentados pelo

legislativo, que tem o dever (não a mera faculdade) de se manifestar

FUNDAMENTADAMENTE acerca do todos os temas propostos e sugeridos pelos

interessados difusos. A legitimidade democrática do provimento ficaria

absolutamente comprometida se nossos legisladores ignorarem, omitirem ou não

enfrentarem de forma fundamentada os argumentos e os temas propostos pelos

interessados. A realização de audiências públicas com o propósito de apenas colher

sugestões, sem vincular e obrigar que nossos legisladores analisem

fundamentadamente as questões suscitadas é pretender dar uma aparência de

legitimidade democrática ao provimento estatal, visto que o principio participativo

não se efetivou em virtude da ausência da multilateralidade (não mera bilateralidade)

dos argumentos apresentados pelas partes. O discurso pró forma não é democrático

por não garantir a implementação do contraditório e da ampla defesa pela

participatividade de todos os interessados no provimento estatal. Por conseguinte,

sempre que inexistir participação dos interessados fica comprometida qualquer

discussão referente ao mérito participado no processo legislativo-coletivo no Estado

Democrático de Direito.

O mesmo vem acontecendo com relação ao anteprojeto do Novo Código de

Processo Civil, que reproduz a ideologia das audiências públicas como pseudo-

instrumentos de legitimação do provimento. Desde o ano de 2010 vem sendo

realizadas audiências públicas em todo o Brasil com a finalidade inicial de

apresentar a proposta trazida pelo anteprojeto do Novo Código de Processo Civil

para, na seqüência, recolher propostas, sugestões e temas correlatos ao objeto

central da discussão.

Considerando-se a amplitude de aplicabilidade da teoria das ações temáticas

no plano jurisdicional, legislativo e administrativo, resta claro que a sua observância

ao longo de todo o procedimento de discursividade do anteprojeto do Novo Código

de Processo Civil certamente asseguraria a legitimidade democrática do provimento

legislativo, uma vez que todos os argumentos, os temas e as questões suscitadas

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pelas partes interessadas seriam enfrentadas pelos legisladores antes mesmo de

aprovar o texto de lei.

A atual sistemática de coletar propostas via audiências públicas e

posteriormente ignorá-las no momento da construção do provimento é uma forma de

construir uma ideologia com a finalidade de falsamente demonstrar que o provimento

estatal é legitimo no Estado Democrático de Direito.

Todas essas ponderações realizadas ao longo desse item da pesquisa

justificam-se no sentido de demonstrar que a participação dos interessados difusos

no processo coletivo democrático deve ser efetiva, e não pro forma, uma vez que o

provimento deverá ser conseqüência de tudo que foi submetido ao debate, e não

reflexo de meras conjecturas trabalhadas pelo julgador, pelo legislador ou pelo

administrador.

4.5.1 O instituto do Amicus Curiae e a participação dos legitimados no

processo coletivo brasileiro: historicidade e previ são legislativa Instituído no sistema common law, o instituto do amicus curiae advém do

direito norte-americano e foi concebido dentro de uma sistemática de controle difuso

de constitucionalidade, razão essa que causa uma certa complexidade, sob o ponto

de vista teórico e pragmático, quando se pretende compreendê-lo e aplicá-lo no

sistema concentrado de constitucionalidade no Brasil. O seu estudo no contexto da

proposta dessa pesquisa cientifica volta-se inicialmente para averiguar a dimensão

da figura do amicus curiae quanto à participação no processo coletivo, com vistas ao

entendimento do mérito processual. Ou seja, busca-se analisar criticamente até que

ponto é possível visualizar uma efetiva construção participada do mérito processual

por intermédio do amicus curiae e, assim, saber se o respectivo instituto pode ser

considerado um instrumento típico e efetivo de democratização do processo coletivo

ou, se na realidade, é um mero reflexo da ideologia individualista e liberal que

permeia todo o processo civil através de uma pessoa (representante - amicus curiae)

legitimado a representar em juízo os direitos da coletividade.

O cognominado “amigo da corte” é considerado uma parte convidada pelo

julgador a integrar a relação processual, com interesse na boa solução da causa,

ressaltando-se que sua admissão se pauta essencialmente na necessidade do juiz

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349

buscar maior precisão e legitimidade no ato de decidir, em virtude da relevância

social e do alto grau de expressividade da pretensão coletiva. Na realidade, pode-se

afirmar que o estudo crítico do instituto do amicus curiae denota claramente a

expressão do sistema representativo como fundamento regente do processo

coletivo, visto que se estrutura e se desenvolve a partir de uma escolha do julgador

de uma, de algumas pessoas ou de um grupo de pessoas legitimados a representar

os direitos da coletividade, muitas vezes afastando, limitando ou suprimindo a

participação direta dos demais legitimados na construção participada do mérito

processual. É por isso que preliminarmente afirma-se que o processo coletivo

democrático, desenvolvido sob a égide das ações temáticas, não se compatibiliza

com a atual sistemática jurídica brasileira proposta para garantir a aplicação do

amicus curiae, conforme será oportunamente debatido de forma mais especifica e

aprofundada.

No Brasil, quando se analisa criticamente o conteúdo das Leis 9.868/99 e

9.882/99, verifica-se expressamente a presença do amicus curiae, razão essa que

leva alguns estudiosos a afirmarem que a sua intervenção nos processos de controle

de constitucionalidade proporciona o exercício da cidadania e a democratização do

controle concentrado de normas270. Sabe-se que tal afirmação é bastante

precipitada, tendo em vista que o respectivo instituto não garante a ampla e irrestrita

participação e fiscalidade por todos os interessados na construção discursivo-

democrática do provimento estatal. O que certamente pretendeu o legislador

brasileiro ao instituir o amicus curiae como sujeito legitimado nos processos de

controle concentrado de constitucionalidade foi dar certa aparência de

democratização e de participação na construção da decisão. A legislação pátria

limita essa participação, mediante a legitimação do julgador poder escolher quem

atuará na condição de amicus curiae, excluindo os demais interessados que não

tenham sido unilateralmente escolhidos pelo decididor. Isso evidencia

expressamente a incompatibilidade da atual sistemática jurídica brasileira, que

estabelece o instituto do amicus curiae, com a ordem constitucional e democrática.

270 Assim, talvez numa tentativa de democratizar o controle concentrado brasileiro de normas, principalmente, tendo em vista a avaria do controle difuso de constitucionalidade aqui prevalecente, além de, também, fazer sobressair o papel do Supremo Tribunal Federal, não como o guardião de uma ordem concreta de valores, mas, sim, como o protetor do processo de criação democrática do Direito, cumprindo-lhe proteger um sistema de direitos que torne factível a incidência simultânea da autonomia privada e da autonomia pública, celebra-se a adoção do instituto do Amicus Curiae no sistema jurídico brasileiro (MATTOS, 2011, p. 3).

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350

É importante esclarecer que a figura do amicus curiae271 não contribui para

amenizar o déficit de legitimidade democrática dos provimentos estatais proferidos

nas ações de controle concentrado de constitucionalidade, uma vez que na atual

conjuntura não se vislumbra a ampla participação dos interessados na construção

discursiva do mérito processual. Não se pode negar a natureza jurídica coletiva da

ação direta de inconstitucionalidade, da ação declaratória de constitucionalidade e

da argüição de descumprimento de preceito fundamental, tendo em vista que a

própria dimensão metaindividual da pretensão denota a obrigatoriedade de

intervenção de todos os sujeitos interessados no espaço processual de debate que

autoriza amplamente a discussão fática e jurídica da pretensão.

Equivocadamente alguns estudiosos têm afirmado que o amicus curiae é um

instituto que assegura a participação no processo coletivo272, possivelmente por

desconhecer os fundamentos jus-filosóficos utilizados como parâmetro ao

entendimento crítico do modelo constitucional de processo no Estado Democrático

de Direito. Afirmar que a participação no processo coletivo é garantida a partir do

amicus curiae é no mínimo um entendimento precipitado.

Nessa seara, torna-se relevante o levantamento do seguinte questionamento:

qual seria atualmente a função ou a finalidade do amicus curiae no ordenamento

jurídico brasileiro? Certamente é visto como um terceiro, cujo objetivo é auxiliar as

partes no processo, com o intuito de trazer informações ricas e indispensáveis ao

Judiciário. Assim, pode-se afirmar que o amicus curiae é uma espécie de

colaborador do juiz, uma vez que através dele não se vislumbra a possibilidade de

implementar efetivamente a participação de todos os interessados na construção do

provimento jurisdicional no âmbito das ações temáticas. Reconhecer o amicus curiae

como um instituto que seria compatível com o processo coletivo democrático é,

certamente, desconsiderar as ações temáticas como um modelo de processo em

que todos os interessados têm legitimidade para apresentar temas, fazer alegações

271 Terminologia latina para designar a pessoa que a jurisdição civil pode ouvir sem formalidades com o objetivo de buscar elementos próprios para facilitar sua informação. Por exemplo, para conhecer os termos de usos e costumes locais ou uma regra profissional não escrita. O amicus curiae não é nem uma testemunha, nem um perito, e nem se submete às regras da recusa de oitiva pelas partes (AGUIAR, 2005, p. 4). 272 De toda sorte, percebe-se, pelos contornos de tal instituto, que a participação do amigo no processo se justifica como instrumento de efetivação da democracia deliberativa e participativa, que possibilita a setores da sociedade a ampliação do debate acerca de temas relevantes, o que se traduz em decisões com maior efetividade e legitimação social (AGUIAR, 2005, p. 13)

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351

e influir de forma direta e significativa no debate da matéria de mérito e na

construção do mérito processual.

4.5.1.1 Resgate histórico-legislativo do instituto do Amicus Curiae É controversa a origem histórica do instituto do amicus curiae273, levando

alguns estudiosos a divergirem sobre o fato de sua gênese se encontrar no direito

romano ou no direito penal inglês. “Não são poucos os autores que demonstram as

origens da figura do amicus curiae ao Direito Romano, mas, independentemente de

uma certeza ou exatidão quanto à origem, é consente ter sido no Direito norte-

americano que o instituto se desenvolveu, aprimorou-se e atingiu visibilidade no

cenário internacional (MATTOS, 2011, p. 15). O certo é que, independentemente da

origem histórica do instituto, foi nos Estados Unidos da América que ocorreu a

sistematização e o aprimoramento da compreensão que temos hoje acerca da figura

do amigo da corte.

Para Giovanni Criscuoli, citado por Cássio Scarpinella Bueno (2008, p. 88-90)

o amicus curiae teria derivado do consilliarius romano, que era uma espécie de

colaborador neutro dos magistrados, com a finalidade de atuar naqueles casos em

que a resolução envolvia questões não estritamente jurídicas, além de atuar no

sentido de evitar que os juízes cometessem erros de julgamento. A intervenção do

consilliarius no processo dependia da convocação do magistrado e seu auxilio era

prestado de acordo com o seu próprio e livre convencimento, observando-se os

princípios do direito e, ao mesmo tempo, sendo extremamente leal aos juízes. A

sedimentação do instituto no período da Idade Média ocorreu basicamente nas mais

remotas origens do direito inglês, uma vez que o amicus curiae poderia comparecer

espontaneamente perante o juízo a fim de eventualmente fornecer elementos úteis

273 A figura do amicus curiae já é antiga no direito. Há notícia de que suas raízes se encontram no direito romano, mas certamente em uma conformação bastante distinta daquela que chegou até nossos dias. De forma mais precisa, podemos apontar sua ascendência no direito inglês medieval, pois que, de certa forma, sua previsão já se encontrava nos chamados Year Books, nos séculos XIV a XVI. (grifo nosso) O amicus curiae, nesse período, participava do processo apontando precedentes jurisprudenciais não mencionados pelas partes ou ignorados pelo julgador, atuando em benefício de menores, chamando a atenção do juízo para certos fatos, como o erro manifesto, a morte de uma das partes, o descumprimento do procedimento correto ou a existência de norma especifica regulando a matéria. Cumpria um papel meramente informativo e supletivo, mas de clara importância para a corte (DEL PRÁ, 2008, p. 25).

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para a vitória de um dos sujeitos integrantes da relação processual, ressaltando-se

que o juiz poderia, antes de proferir uma sentença, pedir a opinião de um ou de mais

sábios de direito (consilium sapientis) como critério norteador de sua decisão.

A incorporação do amicus curiae no direito americano se deve ao

desenvolvimento e a sistematização teórica da dimensão da aplicabilidade e da

utilização do instituto no direito inglês. No direito antigo inglês o amicus curiae

comparecia perante as cortes em causas que não envolviam os interesses

governamentais e sua função era atualizar os juízes com relação a eventuais

precedentes ou leis que se supunham desconhecer. Importante ressaltar que no

direito inglês medieval os Tribunais possuíam ampla liberdade para admitir ou não a

participação do amicus curiae, estabelecendo os limites e as possibilidades de sua

atuação concreta. O aprimoramento no respectivo instituto se deve muito a uma

peculiaridade do direito inglês, qual seja, o adversary system274, que é a previsão

legal da ampla liberdade conferida aos litigantes para conduzir os processos dos

quais são partes longe da interferência de estranhos (a delimitação da atuação do

amicus curiae no processo começou a ocorrer especialmente a partir desse

momento, uma vez que a sua atuação passou a ser cada vez mais justificada a partir

da demonstração da existência de questões que transcendiam o conhecimento dos

julgadores). Atualmente no direito inglês o amicus curiae atua restritamente em juízo

naqueles casos que envolvem interesses públicos ou a tutela dos interesses da

Coroa Inglesa, desde que haja autorização expressa do juiz permitindo sua atuação

(BUENO, 2008, p. 90-92).

Historicamente não se sabe ao certo quando efetivamente o amicus curiae foi

instituído no direito norte-americano. Muitos autores afirmam que no ano de 1812 se

verificou a aparição do amicus curiae nos Estados Unidos, quando foi admitido para

274 Nesse sentido, talvez o mais significativo e importante alargamento da função do amicus curiae foi uma solução parcial para um dos mais sérios problemas do sistema legal conhecido como adeversarial (ou adversary) system (ou adversary proceedin). Esse sistema caracteriza-se pela “primazia reconhecida às partes não só na iniciativa de instaurar o processo e de fixar-lhe o objeto – traço comum à generalidade dos sistemas jurídicos ocidentais -, senão também na determinação da marcha do feito (e do respectivo ritmo) em suas etapas iniciais, e na colheita das provas em que se há de fundar o julgamento da causa. Havia, portanto, natural resistência à interferência de terceiros no processo, que se realizava sob a égide do principio do Trial by duel. Entretanto, essas características do adversary system acabavam por dar espaços a intentos pouco legítimos das partes, como os processos movidos com propósitos colusivos. E foi exatamente nesse ponto que a função do amicus curiae passou a ganhar maior importância para a própria administração da justiça. O terceiro comparecia em juízo para apontar a intenção fraudulenta e colusiva das partes, não raramente em casos nos quais ele próprio detinha interesse na demanda, muito embora não participasse formalmente do processo (DEL PRÁ, 2008, p. 26).

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que emitisse sua opinião sobre matéria posta para julgamento, que dizia respeito a

questões relativas à marinha. Outro caso bastante referido pelos autores norte

americanos ocorreu em 1823, quando um terceiro atuou sob as vestes de amicus

curiae e demonstrou que a demanda era fraudulenta. Inicialmente o instituto do

amicus curiae foi utilizado nos casos em que a Administração Federal ou outro ente

federado apresentava-se em juízo em detrimento de interesses privados, e a sua

função era exatamente se manifestar acerca de qual lei, federal ou estadual, deveria

ser aplicada ao caso concreto (nesse caso era o interesse publico que legitimava a

atuação do amicus curiae) (BUENO, 2008, p. 93-94).

Gradativamente a partir do inicio do século XX a jurisprudência norte-

americana passou a admitir a intervenção de dois grandes grupos de amicus curiae:

os amici governamentais e os amici privados ou particulares. Enquanto os amici

governamentais pleiteiam sua intervenção judicial em busca da proteção do

interesse público e dos direitos da coletividade, os amici privados tendem a ingressar

em juízo para a tutela dos seus próprios interesses (BUENO, 2008, p. 95).

Todo amicus curiae deverá se conduzir sempre a partir das indicações e

desígnios dos litigantes. Quanto aos amici privados a doutrina norte-americana

passou a compreendê-los como terceiros que buscam em juízo muito mais a tutela

de um direito seu do que, propriamente, a defesa de um direito neutro ou público no

sentido mais tradicional.

No direito inglês o amicus curiae assume um papel de sujeito que passa a

integrar a relação processual numa condição de neutralidade, sem assumir uma

posição específica a favor ou contra a uma das partes envolvidas no litígio. Ao

contrário disso, os amici privados do direito norte-americano não atuam de forma

imparcial ou neutra no processo, tendo em vista que ingressam na relação

processual com a finalidade de buscar a tutela de um direito ou interesse seu.

A evolucionariedade do instituto do amicus curiae no direito americano teve

como conseqüência o redimensionamento da sua finalidade, uma vez que passou a

ser visto como um representante dos direitos da coletividade. O “instituto passou a

cobrir aquelas situações em que se trata de um interesse posto em juízo mas que

não está adequada ou suficientemente representado (tutelado) pelas partes

envolvidas diretamente no litígio” (BUENO, 2008, p. 98). Por isso, vale ressaltar que

na transposição do amicus curiae do direito inglês para o direito americano, verifica-

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se que o instituto perdeu uma de suas características mais importantes, qual seja, a

neutralidade de sua manifestação em juízo.

Enquanto o amicus curiae no direito inglês era um sujeito imparcial e que se

limitava a auxiliar o juiz lhe fornecer, quando solicitado, todas as informações

necessárias ao julgamento da demanda, no direito americano o amicus assume uma

postura mais pró-ativa, uma vez que passa a ser visto como um ente interessado na

solução da causa, com a possibilidade de participar do julgamento, discutir

amplamente as estratégias processuais e, inclusive, elaborar peças processuais.

Em virtude da redefinição das atribuições e da finalidade da atuação do

amicus curiae no processo, a Suprema Corte americana acabou por alterar a Regra

37 de suas próprias Rules e indicar a necessidade de alteração da Regra 29, do

Federal Rules of Appelate Procedure, algo que se concretizou no ano de 1998. Tais

alterações se justificam de forma mais clara porque “a admissão do amicus privado

deve depender do maior numero possível de informações que revelem, de forma

clara e precisa, a razão pela qual ele pretende ingressar em juízo” (BUENO, 2008, p.

100). Além disso, tal alteração se justifica no sentido de conferir maior Legitimidade

à Suprema Corte na análise objetiva do verdadeiro interesse do amicus.

A expectativa que o Judiciário americano tem com relação à atuação do

amicus curiae é que ele traga conhecimento de novas questões, considerações e

alegações que não foram suficientemente discutidas pelas partes, ressaltando-se

que caso não venha a demonstrar efetivamente sua eventual contribuição para o

processo poderá ter sua intervenção indeferida.

No direito americano o ingresso dos amici privados na relação processual

condiciona-se à anuência escrita das partes, ao requerimento expresso do próprio

tribunal e a demonstração do interesse que justifica a sua intervenção. Uma vez

admitido no processo por meio do consentimento das partes ou por determinação do

próprio tribunal serão estabelecidos os limites de atuação dos amici privados e

também esclarecida a medida que efetivamente poderão auxiliar a corte. Já com

relação à Rule 29, os amici governamentais não precisam do consentimento das

partes ou autorização do tribunal para atuar, devendo descrever em sua petição qual

é o seu interesse a justificar a conveniência do seu ingresso em juízo (BUENO,

2008, p. 103). No sistema americano o objetivo da atuação do amicus curiae,

independentemente se for privado ou público, é a possibilidade de manifestação no

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sentido de trazer novos elementos para o debate judicial da pretensão, além

daqueles já apresentados pelas partes.

A construção de toda a discussão e debate acerca do tema amicus curiae

desenvolveu-se a partir da possibilidade de um terceiro representar processualmente

os interesses e os direitos cuja titularidade pertence a uma coletividade. Nesse

sentido, “[...] o fundamento ou a justificativa da figura do amicus curiae está em

permitir a manifestação de terceiros, ainda que sem um interesse direto na causa,

quando a demanda versar sobre questão que possa afetar toda a sociedade ou, ao

menos, uma parcela significativa da população” (MATTOS, 2011, p. 19).

Não se pode pensar num rol taxativo de situações que admitem a intervenção

do amicus curiae, haja vista que será a relevância do caso concreto o indicativo da

necessidade e da oportunidade de atuação e de intervenção. Resta evidente pela

exposição até então feita que o amicus curiae é o reflexo puro do sistema

representativo adotado no modelo de processo coletivo, até porque, o amigo da

corte é um sujeito que normalmente intervém no processo com a finalidade de

representar um grupo, uma classe ou toda a coletividade, excluindo-se, portanto,

qualquer possibilidade de participação direta dos demais interessados no debate e

na construção do mérito processual. Além disso, ressaltam-se que no Brasil, assim

como nos Estados Unidos da América, poderá atuar como amicus curiae apenas

aquelas pessoas autorizadas pelo juiz, e desde que demonstre a relevância do seu

ingresso na relação processual ora instaurada. Dessa forma torna-se inviável

compatibilizar o modelo de processo coletivo democrático com o instituto do amicus

curiae.

Há referências do instituto do amicus curiae em outros países, tais como

Canadá275, Austrália276, Hong Kong277, França278, Itália279, Argentina280.

275 No Canadá, a possibilidade de intervenção do amicus curiae é expressamente prevista na Rule 92 das Rules of the Supreme Court of Canadá. De acordo com a regra, The Court or a judge may appoint na amicus curiae in an appeal” (BUENO, 2008, p, 108). 276 Segundo Antonio do Passo Cabral, a aplicação do instituto na Austrália dá-se pela praxe judiciária, mas ainda não há sistematização legal sobre o assunto. O autor, contudo, faz menção expressa à Order 11 Rule 22 e à Order 17 Rule 1, que tratariam do tema (BUENO, 2008, p. 109). 277 Em Hong Kong, segundo nos dá notícia Johannes Chan, a prática judiciária segue, basicamente, a inglesa. Não obstante, é bastante reduzido o número de amicus curiae. De 1942 a 1997, apenas 31 caso de amicus são relatados, enquanto, no mesmo período, 874 casos se verificaram na Inglaterra (BUENO, 2008, p. 109) 278 [...] a jurisprudência francesa tem, mais recentemente, admitido a intervenção de terceiros na qualidade de amicus curiae, distinguindo sua participação em juízo daquela desempenhada por testemunhas ou peritos. Cita, em nota, para dar fundamento a seu entendimento, duas decisões

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No Brasil não existe nenhuma referência legislativa federal expressa que

utilize a expressão amicus curiae, salvo o artigo 23, §1º da Resolução nº 390/2004

do Conselho da Justiça Federal, porém diversas são as fontes que descrevem

situações jurídicas que podem ser identificadas como casos de amicus curiae.

Muita discussão cientifica gira em torno da sua natureza jurídica, levando a

diversas conclusões acerca do que seria o amicus curiae no direito brasileiro:

hipótese de intervenção de terceiro? Seria uma espécie de assistente litisconsorcial?

Poderia o amicus curiae ser considerado parte no processo? Tanto a doutrina

quanto a legislação brasileira são dissonantes acerca da natureza jurídica do

instituto, mas sob o ponto de vista crítico pode-se afirmar que no modelo

constitucional de processo coletivo o amicus curiae não pode ser o único sujeito a

participar do processo coletivo, limitando ou excluindo a possibilidade dos demais

interessados inserirem-se no espaço processual da discursividade democrática.

Dessa forma, torna-se irrelevante a discussão cientifica acerca da natureza jurídica

do instituto do amicus curiae, considerando-se que pela proposta trazida pelas

ações temáticas nenhum interessado difuso ou coletivo poderá ficar de fora do

processo coletivo e impossibilitado de apresentar temas correlatos à pretensão

inicialmente deduzida em juízo no prazo legal. Excluir qualquer interessado difuso de

participar do processo coletivo através da representatividade do amicus curiae é

ratificar o cerceamento de defesa.

É de suma importância ressaltar na legislação brasileira as hipóteses de

manifestação do Amicus Curiae, com o propósito de demonstrar a sua existência já

proferidas pela Corte de Apelação de Paris nos anos de 1988 e 1989, seguidas do entendimento, no mesmo sentido, da Corte de Cassação no ano de 1991 (BUENO, 2008, p. 110). 279 [...] à falta de lei expressa no direito italiano, a intervenção do amicus curiae pode ser determinada, analogicamente, à possibilidade que o juiz italiano tem, em processo do trabalho, de determinar, de ofício ou a requerimento das partes, que os sindicatos prestem determinadas informações em juízo, nos termos do art. 421, comma 2º, e art. 425, ambos do Código de Processo Civil Italiano. Para evitar a pouca aplicabilidade do instituto, no entanto, a autora sugere que não deve haver prévia fixação de quais entidades podem intervir na qualidade de amicus, ao mesmo tempo em que se deve admitir a possibilidade de as entidades, voluntariamente, ingressarem em juízo, mesmo que sua efetiva participação fique na dependência da concordância das partes e de uma expressa autorização do juiz (BUENO, 2008, p. 113). 280 De acordo com Miguel Algel Ekmekdjian, entretanto, é possível falar implicitamente do amicus naquele ordenamento, derivando-o do amplo art. 33 da Constituição daquele país, segundo o qual “las declaraciones, derechos y garantias que enumera La Constitución, no serán entendidos como negación de otros derechos y garantias no enumerados, pero que nacen del principio de la soberania del pueblo y de La forma republicana de gobierno”. Segundo o autor argentino, a figura do amicus curiae, que pode ser assumida por qualquer pessoa, particular ou não, nada mais é do que o fornecimento ao tribunal, voluntariamente ou a pedido dele próprio, de informações, opiniões, ou indicando a existência de alguma questão jurídica que tenha escapado de sua consideração (BUENO, 2008, p. 116).

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a algum tempo no direito pátrio. Nesse sentido ressalta-se inicialmente o disposto no

artigo 31 da Lei 6385/76, que disciplina o mercado de valores imobiliários, com

redação dada pela Lei 6.616/78:

Art. 31 - Nos processos judiciários que tenham por objetivo m atéria incluída na competência da Comissão de Valores Mobi liários, será esta sempre intimada para, querendo, oferecer parec er ou prestar esclarecimentos, no prazo de quinze dias a contar d a intimação. (Incluído pela Lei nº 6.616, de 16.12.1978). § 1º - A intimação far-se-á, logo após a contestação, por mandado ou por carta com aviso de recebimento, conforme a Comissão tenha, ou não, sede ou representação na comarca em que tenha sido proposta a ação. (Incluído pela Lei nº 6.616, de 16.12.1978). § 2º - Se a Comissão oferecer parecer ou prestar esclarecimentos, será intimada de todos os atos processuais subseqüentes, pelo jornal oficial que publica expedientes forense ou por carta com aviso de recebimento, nos termos do parágrafo anterior. (Incluído pela Lei nº 6.616, de 16.12.1978). § 3º - A comissão é atribuída legitimidade para interpor recursos, quando as part es não o fizeram . (Incluído pela Lei nº 6.616, de 16.12.1978). § 4º - O prazo para os efeitos do parágrafo anterior começará a correr, independentemente de nova intimação, no dia imediato aquele em que findar o das partes. (Incluído pela Lei nº 6.616, de 16.12.1978) (grifo nosso) (BRASIL).(grifo nosso)

A partir do disposto na legislação em questão verifica-se a obrigatoriedade de

intimação da Comissão de Valores Imobiliários sempre que for objeto de discussão

judicial matéria de sua competência. É de suma importância ressaltar que o direito

de participação do Amicus Curiae, no presente caso, inclui também o direito de

recorrer, ou seja, o amplo direito de argumentação jurídica da pretensão deduzida

em juízo quando evidente o interesse jurídico em questão.

Na perspectiva da crítica cientifica é de suma importância analisar que nesse

caso a Comissão de Valores Imobiliários não atuaria na condição de terceiro

juridicamente interessado, mas sim na condição de parte interessada do provimento,

assim como qualquer outro sujeito que eventualmente venha a demonstrar interesse

jurídico da pretensão coletiva deduzida em juízo. Tal dispositivo não pode ser

interpretado restritivamente, a fim de concentrar a participação no processo nas

mãos da Comissão de Valores Imobiliários e, assim, excluir a ingerência dos demais

interessados na relação processual.

Outra legislação brasileira em que é possível averiguar a figura do Amicus

Curiae é a Lei 8.884/94, que disciplina o Conselho Administrativo de Defesa

Econômica, e em seu artigo 89 estabelece: “Os processos judiciais em que se

discuta a aplicação desta lei, o CADE deverá ser intimado para, querendo, intervir no

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feito na qualidade de assistente” (DEL PRÁ, 2008, p. 62). Cabe-nos, nesse contexto,

indagar o seguinte: o CADE atuará na qualidade de assistente simples, de

assistente litisconsorcial ou de parte na relação processual em questão?

Possivelmente a intenção do legislador foi estabelecer a intimação do CADE com a

finalidade de prestar esclarecimentos técnicos, caso seja necessário, para

possibilitar ao julgador condições para o seu livre convencimento de julgamento do

feito. Resta esclarecer que a legislação não estabelece a possibilidade ampla e

efetiva de exercício do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal e do

duplo grau de jurisdição, uma vez que o legislador não foi expresso no que tange à

possibilidade jurídica do CADE propor recursos. Mesmo assim, sabendo-se que o

legislador foi omisso quanto aos princípios constitucionais ora mencionados, a sua

inobservância acarretaria o cerceamento de defesa.

Outra critica pertinente à legislação referente ao CADE e à Comissão de

Valores Mobiliários é que o legislador optou pelo sistema representativo, não

garantindo amplamente aos cidadãos, de forma geral, o direito de atuar na condição

de Amicus Curiae e, conseqüentemente, participar da construção democrática do

provimento jurisdicional. Novamente fica evidente a limitação na participação e a

incompatibilidade do instituto com a Teoria das Ações Coletivas como ações

temáticas.

A Lei 8.906/94, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos

Advogados do Brasil, em seu artigo 49 estabelece a legitimidade dos Presidentes

dos Conselhos e das Subseções atuarem como amicus curiae, nos casos em que

são questionados em juízo as prerrogativas profissionais do advogado281. Trata-se, o

presente caso, de direito coletivo de uma classe de profissionais, o que legitimaria,

na perspectiva das ações temáticas, não apenas os representantes da instituição a

atuarem com partes no processo de natureza coletiva (visto que seu objeto é

281 A Ordem dos Advogados do Brasil, mercê de suas amplíssimas finalidades institucionais, deve ser aceita para atuar na qualidade de amicus em outras situações, que não estejam circunscritas à questão especificamente prevista naquele dispositivo. Com efeito, de acordo com o inciso I do art. 44 da precitada lei, a OAB também tem por finalidade “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas. [...] Nessas condições, a OAB pode atuar como amicus curiae para a tutela de todos aqueles bens jurídicos, que dizem respeito, intimamente, à própria conformação do Estado brasileiro à ordem jurídica e seu desenvolvimento. Tal iniciativa só pode ser obstada naqueles casos em que a OAB, ela mesma, tome a iniciativa, com base no mesmo dispositivo legal, de tutelá-los na qualidade de autor, o que é amplamente aceito no ambiente do processo civil coletivo ” (BUENO, 2008, p. 349) (grifo nosso).

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coletivo, por versar sobre as prerrogativas de toda uma classe de profissionais), uma

vez que todos os demais legitimados (profissionais da advocacia) também devem

ser vistos como sujeitos juridicamente interessados na construção participada e

discursiva do mérito processual, pelo fato de serem direta ou indiretamente afetados

pelos efeitos do provimento final.

A Lei 9.279/96, que regula os direitos e as obrigações relativos à propriedade

industrial, estabelece, em seu artigo 57: “A ação de nulidade de patente será

ajuizada no foro da Justiça Federal e o INPI, quando não for autor, intervirá no feito.

§ 1º O prazo para resposta do réu titular da patente será de 60 (sessenta) dias. § 2º

Transitada em julgado a decisão da ação de nulidade, o INPI publicará anotação,

para ciência de terceiros (grifo nosso) (BRASIL)”. Tal dispositivo legal é repetido no

artigo 175 da respectiva lei. Entende-se, a partir da discussão cientifica proposta e

construída até o presente momento que o Instituto Nacional de Propriedade

Industrial atuará na condição de Amicus Curiae todas as vezes em que a pretensão

deduzida versar sobre o pedido de nulidade de patente. Diante do exposto

questiona-se: e nas demais pretensões em que a discussão versar sobre matéria de

competência do INPI, haverá a obrigatoriedade de sua intimação para figurar como

parte na relação processual? O legislador não foi claro quanto à questão levantada,

novamente demonstrando se tratar de uma legislação construída sob a égide do

sistema representativo, o que inviabiliza, conseqüentemente, a participação ampla

do cidadão na construção do mérito coletivo da pretensão deduzida em juízo. Além

disso, a obrigatoriedade de intimação do INPI não exterioriza o direito de ampla

participação na construção do provimento jurisdicional, uma vez que não há a

previsão expressa do direito de recorrer nem da obrigatoriedade do magistrado se

manifestar acerca das alegações e argumentações levantadas pelo INPI.

A Lei 9.868/99, ao regulamentar o procedimento da Ação Direta de

Inconstitucionalidade, estabeleceu, em seu artigo 7º, §2º: “considerando a relevância

da matéria e a representatividade dos postulantes pode admitir, por despacho

irrecorrível a manifestação de outros órgão ou entidades” (DEL PRÁ, 2008, p. 83).

Observa-se que a intervenção do Amicus Curiae está condicionada ao arbítrio do

julgador, ou seja, somente será oportunizado o direito de participação na construção

do mérito coletivo da pretensão caso os julgadores assim autorizem.

A primeira critica que se faz é que a intervenção não pode ser vista como um

direito incondicionado e exclusivo do Amicus Curiae, mediante a demonstração

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prévia de interesse jurídico no feito, uma vez que tal direito, conforme dispõe a Lei

9.868/99, fica adstrito ao interesse do julgador em viabilizar a participação como

instrumento hábil ao seu convencimento. Trata-se da demonstração mais clara

possível de um modelo de processo coletivo através do qual a condução do

procedimento é uma prerrogativa exclusiva do julgador, que é a pessoa que detém a

autoridade e a prerrogativa de autorizar ou não a participação do amicus curiae no

âmbito da ação coletiva. Verifica-se que, para a respectiva legislação, o direito de

participação no processo é limitado e restrito apenas à pessoa do amicus curiae, não

admitindo amplamente a intervenção dos demais sujeitos que demonstrem interesse

jurídico na pretensão coletiva deduzida em juízo.

Outra discussão coerente à questão posta é que a intervenção da parte na

condição de Amicus Curiae não vincula os julgadores à apreciação das questões

suscitadas em juízo, tal como se verificou na ADIN 3510, cujo objeto foi a discussão

da constitucionalidade da utilização de células tronco embrionárias em pesquisa

cientifica, e nos votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, especificamente

no voto da Ministra Ellen Gracie282, que fica evidente o absoluto descompasso com

as discussões apresentadas pela comunidade cientifica e pela Igreja Católica:

simplesmente os ministros do Supremo Tribunal Federal desconsideraram ou

ignoraram as teses apresentadas e debatidas e proferiram solitariamente seus votos.

A própria Lei 9.868/99, ao disciplinar o procedimento da Ação Declaratória de

Inconstitucionalidade, estabelece em seu artigo 20:

Art. 20. Vencido o prazo do artigo anterior, o relator lançará o relatório, com cópia a todos os Ministros, e pedirá dia para julgamento.

282 Em seu voto a Ministra Ellen Gracie explicitou o entendimento acerca da inexistência de um momento inicial da vida humana e deixou claro não ser papel do Supremo estabelecer conceitos que não estejam previstos explicita ou implicitamente na Constituição de 1988. Ao final de seu voto manifesta-se pela improcedência da ADIN sob o argumento de que o embrião humano é formado 14 dias após a fecundação, uma vez que antes do termino dessa etapa o que se tem é uma massa de células indiferenciadas geradas pela fertilização do óvulo. Dessa forma o que temos são pré-embriões in vitro e congelados, com uma remota possibilidade de serem aproveitados nos procedimentos médicos de reprodução assistida. Em virtude disso, entende a Ministra que ficou clara a opção legislativa de dar destinação nobre a esses embriões excedentários com remotas possibilidades de se tornarem um feto. Por isso manifesta-se no sentido da utilização apenas dos embriões humanos inviáveis aos procedimentos médicos de reprodução assistida. Ressalta, ainda, a obrigatoriedade do consentimento dos genitores e a participação efetiva dos Comitês de Ética em Pesquisa na análise da utilização dos embriões humanos em pesquisas cientificas. Tipificou como delito penal a utilização de embriões humanos em pesquisas de clonagem. Ao final conclui que não configura violação do principio da dignidade humana a utilização de embriões humanos inviáveis e congelados em pesquisas cientifica, tendo em vista que não teriam outro destino senão o descarte.

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§ 1o Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência d as informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar i nformações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão ou fixar data para, em audi ência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e auto ridade na matéria. § 2o O relator poderá solicitar, ainda, informações aos Tribunais Superiores, aos Tribunais federais e aos Tribunais estaduais acerca da aplicação da norma questionada no âmbito de sua jurisdição. § 3o As informações, perícias e audiências a que se referem os parágrafos anteriores serão realizadas no prazo de trinta dias, contado da solicitação do relator (BRASIL).(grifo nosso)

Nesse mesmo sentido temos o disposto no artigo 6º, §1º da Lei 9.882/99, que

dispõe sobre o processamento, julgamento e procedimento da Ação de Argüição de

Descumprimento de Preceito Fundamental:

Art. 6o Apreciado o pedido de liminar, o relator solicitará as informações às autoridades responsáveis pela prática do ato questionado, no prazo de dez dias. § 1o Se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública , de pessoas com experiência e autoridade na matéria (BRASIL).(grifo nosso)

Tais dispositivos legais evidenciam novamente a previsão do Amicus Curiae

no direito pátrio, porém novamente a participação encontra-se condicionada à

conveniência do julgador em viabilizar ou não a intervenção processual,

desobrigando-se de proferir sua decisão a partir das alegações e dos argumentos

suscitados em juízo. As Audiências Públicas devem ser vistas no Estado

Democrático de Direito como a oportunidade de efetivamente todos os interessados

difusos e coletivos participarem diretamente da construção do mérito processual,

mas, na atual conjuntura, a audiência pública acaba sendo vista pragmaticamente

como mero instrumento processual para dar uma aparência de participação e de

democratização do processo coletivo, tendo em vista que o julgamento do feito ainda

continua centrado na autoridade do julgador, que é quem dá a palavra final de

acordo com o seu livre convencimento.

Pela leitura e interpretação da Lei 9.868/99 e da Lei 9.882/99, verifica-se que

a participação nas ações coletivas é pro forma, uma vez que é restrita àqueles

sujeitos autorizados e “convidados” a atuarem como amicus curiae, em detrimento

do Direito Fundamental de Participação constitucionalmente assegurado a todos os

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demais cidadãos e interessados no provimento. É nesse sentido que se desenvolve

a crítica à sistemática e a aplicação do respectivo instituto: o amicus curiae é visto

no direito brasileiro como um instituto importado do direito americano e adequado ao

modelo de processo coletivo de natureza representativa, fato esse que justifica a sua

incompatibilidade com o modelo de processo coletivo democrático, que se

desenvolve a partir do principio participativo.

A supressão ou a aparência de participação do destinatário do provimento

jurisdicional enseja a violação dos princípios constitucionais do processo,

especificamente o da fundamentação das decisões judiciais, do contraditório, da

ampla defesa e do devido processo legal, uma vez que restringe discursivamente o

direito de argumentação fático-jurídica da pretensão coletiva a um número muito

reduzido de sujeitos interessados.

É crível a natureza jurídica coletiva da ação direita de inconstitucionalidade,

ação declaratória de constitucionalidade e a argüição de descumprimento de

preceito fundamental, razão essa que justifica a ampliação das vias de controle e de

participação na construção dos provimentos pelos sujeitos legitimados. Mesmo

assim, há estudiosos que insistem em se posicionar no sentido de restringir ou

impedir tal participação, sob o argumento da impossibilidade de utilização do amicus

curiae como um terceiro que passa a integrar a relação processual283. É de suma

importância esclarecer que democraticamente e sob o ponto de vista do modelo

constitucional do processo, o amicus curiae não pode ser visto como mero terceiro

interessado na demanda, haja vista que a ele deve ser reconhecida a condição de

parte no processo, assim como deve ocorrer com os demais interessados difusos e

coletivos, que devem ser vistos processualmente como partes juridicamente

interessadas na construção discursiva e participada do mérito do provimento

jurisdicional.

Cabe-nos, agora, analisar o tema historicamente na atualidade e sob a

perspectiva pragmática, ou seja, como o vem sendo discutida a participação do

Amicus Curiae junto aos tribunais pátrios. Segundo entendimento do Tribunal 283 A questão quanto ao ingresso do amicus curiae, de qualquer sorte, está superada na atualidade. A Lei 9.868/99, também já fizemos referência a essa circunstância, veda expressamente a intervenção de terceiros na ação direta de inconstitucionalidade, no que é inequívoco o caput de seu art. 7º “Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade,”. Ao mesmo tempo, entretanto, o §2º do dispositivo não pode ser entendido senão como forma clara quanto à possibilidade de determinadas entidades, sob algumas condições, serem chamadas a se manifestarem em juízo e, nesse sentido, serem “terceiros intervenientes” (BUENO, 2008, p. 132).

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Regional Federal da 1ª Região, a figura do Amicus Curiae somente é admitida se a

matéria tratada for de índole constitucional, não permitindo a formulação de

requerimentos, senão a apresentação de memoriais e sustentação oral na sessão

de julgamento. Novamente verifica-se a limitação na atuação do amicus curiae, cuja

participação na construção do provimento jurisdicional se condiciona à autoridade do

julgador, que é quem detém a legitimidade de permitir ou não a sua intervenção no

processo, ressaltando-se que o julgador poderá ou não levar em consideração os

argumentos fático-jurídicos apresentados em juízo no momento em que for decidir,

ou seja, no momento de julgar o juiz não tem o dever de se manifestar e, tampouco,

de acolher qualquer dos argumentos e das alegações trazidas aos autos pelo

amicus curiae. Nesse sentido temos:

TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL - "AMICUS CURIAE " - OBRIGAÇÕES AO PORTADOR DA ELETROBRÁS: RESGATE - DECADÊNCIA. 1. A figura do "amicus curiae " somente é admitida no ordenamento jurídico brasileiro quando a matéria tratada for de índole constitucional e não permite a formulação de requerimentos, senão que a apresentação de memoriais e sustentação oral na sessão de julgamentos. 2. As obrigações ao portador da ELETROBRÁS, tomadas pelos consumidores de energia elétrica em ressarcimento ao Imposto Único sobre Energia Elétrica (empréstimo compulsório), nos termos da Lei nº 4.156/62, Lei nº 5.073/66 e Lei nº 5.824/72, possuíam prazo de vinte anos para seu resgate, nos termos do parágrafo único do art. 2º, da Lei nº 5.073/1966. 3. Exigível o título, o prazo para reclamar o seu não pagamento é de cinco anos, nos termos do Decreto-Lei nº 644, de 22 JUN 1969. 4. Decorridos mais de cinco anos do vencimento do título, aplicável a decadência. 5. Pedidos formulados por ÉDISON FREITAS DE SIQUEIRA ADVOGADOS ASSOCIADOS e outros de que não se conhece: petição desentranhada. Apelação não provida. 6. Peças liberadas pelo Relator, em 06/05/2008, para publicação do acórdão. (TRF 1ª Região; Relator: Desembargador Federal Luciano Tolentino Amaral; Apelação Cível: 200534000253854) (BRASIL) (grifo nosso)

É oportuna a demonstração do entendimento do Superior Tribunal de Justiça,

que embora autorize a intervenção do Amicus Curiae nos processos cujo objeto é a

discussão da constitucionalidade de leis, em contrapartida, limita a participação do

Amicus Curiae no debate jurídico do caso concreto mediante a impossibilidade de

propositura de recurso. A principal crítica a ser feita nesse momento diz respeito às

condicionantes e às limitações de argumentação jurídica e fática do Amicus Curiae

no processo coletivo, cuja participação fica mitigada mediante a supressão dos

princípios do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal, do duplo grau

de jurisdição e da isonomia processual. Nesse sentido temos:

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EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL. MANDADO SEGURANÇA. EXPOSIÇÃO DE TRABALHADORES AO AMIANTO. DECRETO Nº 2.350/97. SUSPENSÃO DOS EFEITOS DE PORTARIA MINISTERIAL. INTERVENÇÃO DE TERCEIRO. LITISCONSORTE NECESSÁRIO. ASSISTENTE. AMICUS CURIAE . OMISSÃO. OBSCURIDADE. CONTRADIÇÃO. INEXISTÊNCIA. EFEITOS INFRINGENTES. ART 535 DO CPC. IMPOSSIBILIDADE. 1. Os embargos de declaração não se revelam como meio adequado para o reexame de matéria decidida pelo órgão julgador, mormente quando se denota o objetivo de reformar o julgado em vista da não concordância com os fundamentos presentes na decisão recorrida. 2. A regra disposta no art. 535 do CPC é absolutamente clara sobre o cabimento de embargos declaratórios, e estes só tem aceitação para emprestar efeito modificativo à decisão em raríssimas exceções. 3. A figura do amicus curiae, tão conhecida no direito norte-americano, chegou ao ordenamento positivo brasileiro por meio da Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, que dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, inaugurando importante inovação em nosso Direito. 4. O amicus curiae poderá atuar na esfera infraconstitucional, objetivando a uniformização de interpretação de lei federal. 5. O escopo da edição da norma legal viabilizadora da intervenção do "amicus curiae " é o de permitir ao julgador maiores elementos para a solução do conflito, que envolve, de regra, a defesa de matéria considerada de relevante interesse social. 6. Intervenção especial de terceiros no processo, para além das clássicas conhecidas, a presença do amicus curiae no feito não diz tanto respeito às causas ou aos interesses eventuais de partes em jogo em determinada lide, mas, sim, ao próprio exercício da cidadania e à preservação dos princípios e, muito particularmente, à ordem constitucional. 7. "[...] Entidades que participam na qualidade de amicus curiae dos processos objetivos de controle de constitucionalidade, não possuem legitimidade para recorrer , ainda que aportem aos autos informações relevantes ou dados técnicos." (STF, ADI-ED 2591 / DF, Rel. Ministro EROS GRAU, DJ 13-04-2007 PP-00083) 8. Embargos de declaração rejeitados. (BRASIL) (grifo nosso)

Pela análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça verifica-se que

se trata tipicamente de um direito coletivo, cuja titularidade pertence a todos os

trabalhadores com exposição ao amianto. Em virtude disso, e sob a ótica das ações

temáticas, constata-se que não será apenas o amicus curiae e a instituição do

Ministério Público os únicos legitimados a se manifestarem nesse processo coletivo,

uma vez que todos os sujeitos que trabalham com amianto possuem legitimidade

processual para intervir e participar de todo o procedimento instaurado com a

finalidade de debater analiticamente a pretensão de natureza coletiva.

Passaremos agora a análise crítica do instituto do amicus curiae no direito

brasileiro, utilizando-se como parâmetro e referencial dessa análise a teoria das

ações coletivas como ações temáticas.

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4.5.2 O AMICUS CURIAE COMO HERANÇA DO SISTEMA REPRESENTATIVO NO PROCESSO COLETIVO VIGENTE E A SUA PSEUDO -PARTICIPAÇÃO NA CONSTRUÇÃO DO MÉRITO PROCESSUAL .

No Brasil o amicus curiae é compreendido como um terceiro que intervém no

processo, por iniciativa própria, por requerimento ou de oficio pelo julgador, com a

finalidade de fornecer ao juízo elementos considerados relevantes e indispensáveis

ao julgamento do mérito processual. Importante esclarecer que sempre quem

autorizará ou não o ingresso do amicus curiae na relação processual é o juiz, que

em decisão fundamentada se manifestará no sentido de reconhecer ou não a

necessidade de sua intervenção. Tal entendimento é considerado, no mínimo,

incompatível com o modelo constitucional de processo coletivo democrático, tendo

em vista que não será o juiz o legitimado a autorizar ou não a participação de um

interessado numa determinada ação temática. Será a demonstração da titularidade

do bem jurídico de relevância coletiva que definirá quem detém ou não a

legitimidade de participar da ação temática, participação essa que não poderá ficar

adstrita ao amicus curiae.

A atual sistemática jurídica do amicus curiae no Brasil encontra-se na

contramão da proposta trazida pelas ações temáticas, pelo fato de limitar, restringir

ou suprimir o direito dos demais legitimados ao provimento participarem da

construção do mérito processual.

A primeira e relevante consideração a ser feita para justificar cientificamente

as colocações apresentadas anteriormente é que o amicus curiae não pode ser visto

processualmente como um terceiro ou mero assistente284. Assim como os demais

284 Um dos pontos mais complexos que tangenciam o instituto do amicus curiae se encontra na complexidade que envolve a discussão acerca da natureza jurídica dessa figura. Dentre as classificações encontradas na doutrina jurídica brasileira, é possível apontar algumas, tais como aquela que classifica o amicus curiae como hipótese de intervenção de terceiros ou aquela que admite tratar-se de intervenção atípica de terceiros, terceiro especial, assistência e, por fim, auxiliar da justiça. Em um primeiro momento, é possível verificar uma tendência do Supremo em inserir o amicus curiae na modalidade de intervenção de terceiros, tal como se depreende de trecho do despacho do rel. Ministro Joaquim Barbosa Gomes na ADI nº 3.311-DF (MATTOS, 2011, p. 167-168). De outro lado, e em interpretação diametralmente oposta a essa acima esposada, é possível identificar em outro processo, também de Ação Direta de Inconstitucionalidade, que a classificação feita pelo Supremo Tribunal Federal nega a hipótese de configuração de intervenção de terceiros para o amicus curiae, admitindo-o, portanto, como um terceiro especial. Trata-se da ADI nº 2.548-PN, cujo relator foi o Ministro Gilmar Ferreira Mendes (MATTOS, 2011, p. 169). De outra monta, o nosso Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que a pessoa jurídica de Direito Público que atua nos termos da Lei 9.469/1997, bem como o CADE, nos termos da

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interessados no provimento, o amicus curiae deve ser considerado como parte no

processo coletivo, legitimado a influir diretamente na discussão e na construção do

mérito processual, embora não possa ser visto e compreendido como o único

legitimado. Todos aqueles aptos a sofrerem os efeitos jurídicos do provimento tem

legitimidade para agirem como partes no processo coletivo e, nesse ínterim,

podemos incluir o amicus curiae. Contrário a esse entendimento, Cássio Scarpinella

Bueno afirma que o amicus curiae não pode ser considerado juridicamente parte no

processo, uma vez que deve ser visto como um terceiro autorizado a atuar no

processo alheio, ainda que não seja autor ou réu e mesmo que o objeto litigioso não

lhes diga respeito nem direta, nem indiretamente (2008, p. 427).

A doutrina diverge quanto ao tema referente à natureza jurídica do amicus

curiae. Para Dirley da Cunha Júnior “o amicus curiae é um terceiro especial que

pode intervir no feito para auxiliar a Corte, desde que demonstre um interesse

objetivo relativamente à questão jurídico-constitucional em discussão (CUNHA

JUNIOR, 2004, p. 157). Mirela de Carvalho Aguiar afirma que “afigura-se claramente

absurda a atribuição de outra natureza jurídica ao instituto que não a de auxiliar do

juízo” (AGUIAR, 2005, p. 58). Leonardo Jose Carneiro Cunha se posiciona no

sentido de que “o amicus curiae desponta como auxiliar da justiça, criado para

contribuir com o aprimoramento técnico da decisão judicial” (CUNHA, 2004, p. 582-

623). Já para Antônio Carlos Aguiar o “amicus curiae é tido como um autêntico

auxiliar do juízo. Ele não funciona no processo como terceiro diretamente

interessado, como nas hipóteses legais de intervenção de terceiros, até porque

como já vimos há proibição legal nesse sentido” (AGUIAR, 2004, p. 160).

Outro ponto nevrálgico no debate do tema proposto diz respeito àqueles

entendimentos teóricos que propugnam que o amicus curiae é visto como uma

expressão do principio democrático de participação cidadã no processo. Na

realidade, pode-se afirmar que o amicus curiae é um instituto utilizado como

instrumento de mitigação da participação dos interessados no processo coletivo, a

Lei nº 8.884/1994, já tratado acima, figurariam na qualidade de amicus curiae e se enquadrariam na hipótese de assistentes (MATTOS, 2011, p. 169). Há quem classifique o amicus curiae mais especificamente como sendo uma modalidade de assistência. Quem assim o considera admite o assistente como coadjuvante de uma das partes, visando a um desfecho que seja bem sucedido entre elas. Essa é a opinião de Edgard Silveira Bueno Filho, para quem o amicus curiae influirá de forma positiva na lide em questão, no sentido de concorrer para que uma das partes se favoreça da decisão (MATTOS, 2011, p. 171).

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partir da proposição ideológica de representatividade dos direitos da coletividade por

intermédio da autoridade de um sujeito individualmente.

Trata-se de um instrumento que caminha na contramão da concepção

constitucional e processualizada do Estado Democrático de Direito. Enquanto

instituto advindo do sistema common law, o amicus curiae é uma maneira

encontrada pelos estudiosos e pelo legislador brasileiro para divulgar

equivocadamente a idéia de participação dos sujeitos no processo por meio da

representatividade, tal como ocorre no rol dos legitimados da ação civil pública e da

ação direta de inconstitucionalidade285, que traz uma aparência de participação no

processo, ao mesmo tempo que exclui o exercício da cidadania e a interferência dos

demais interessados na construção do provimento.

Oportunizar que os legitimados, mediante previsão legal, intervenham no

processo coletivo, não é garantia efetiva de participação dos interessados difusos na

construção participada do mérito no processo coletivo. Conforme visto, tanto no

direito pátrio como no direito estrangeiro, o instituto do Amicus Curiae encontra o seu

fundamento jurídico no sistema representativo, o que, por sua vez, legitima o

exercício ilegítimo da jurisdição, ao permitir que o julgador decida quem realmente

pode participar do processo.

A finalidade do Amicus Curiae, no processo coletivo, é oferecer ao magistrado

condições de justificar aparentemente que o processo coletivo é um lócus de

participação dos interessados, por intermédio do cognominado amigo da É nesse

contexto que se pode afirmar ser o Amicus Curiae um instituto antidemocrático e que

não se coaduna com a Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas.

285 [...] todos aqueles integrantes do rol do art. 103, da Constituição Federal de 1988, isto é, os legitimados ativos a proporem a ADI e a ADC, são, também, automaticamente, pré-qualificados a atuarem no papel de amicus curiae, já que quem conta com legitimidade para propositura daquelas ações conta, pois, com a representatividade exigida para atuar em juízo. Assim, essas pessoas/entes já se encontram previamente qualificados a participarem no processo como amicus curiae, restando apenas a necessidade de comprovação do interesse para adentrar no litígio. A despeito disso, não estão outras pessoas, órgãos ou entidades afastados da possibilidade de atuar no processo como amicus curiae, como o próprio dispositivo legal referente ao temo dispõe ao falar da “manifestação de outros órgãos ou entidades”. Portanto, têm legitimidade para atuar na qualidade de amicus curiae tanto os legitimados ativos previstos no art. 103, CF/88, quanto outros órgãos ou entidades, desde que demonstrem, através de manifestação no processo, como poderão contribuir para ampliar o debate e proporcionar, com isso, uma maior interação (e integração) com a sociedade civil. Afinal, embora não sejam destinatários diretos/imediatos da decisão proferida, a participação do amicus curiae pode trazer ao feito elementos informativos e razões constitucionais fundamentais ao processo, além de fazer alcançar um patamar mais elevado de legitimidade nas deliberações do Tribunal Constitucional, já que este será formalmente obrigado a apreciar as interpretações oriundas de diversos setores da sociedade e, com isso, estará prestando contas à sociedade de uma maneira geral (MATTOS, 2011, p. 179-180).

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Não é possível democratizar a participação dos destinatários do provimento

jurisdicional no processo coletivo se ainda continuarmos raciocinando as ações

coletivas a partir do sistema representativo. A efetiva participação na construção do

provimento perpassa, necessariamente, pela ruptura com o sistema representativo e

a construção de um modelo de processo coletivo democrático pelo sistema

participativo.

Por isso, o magistrado, no momento em que for proferir o julgamento, deverá

observar os princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal,

a fim de assegurar a participação de todos os interessados na ação temática, e, ao

mesmo tempo, se manifestar, de forma expressa, acerca das alegações fáticas e

jurídicas apresentadas pelas partes ao longo do procedimento. Não se efetivará a

construção democrática e participada do provimento estatal se os julgamentos forem

realizados de forma unilateral, e centrado na onisciência do julgador. O requisito

para a legitimidade democrática do provimento estatal é que a participação dos

destinatários efetivamente ocorra.

A discussão cientifica do amicus curiae trazida pelos estudiosos na atualidade

encontra-se superada, no que diz respeito ao processo coletivo democrático-

constitucionalizado. Reconhecer a legitimidade processual do instituto é ratificar o

entendimento teórico, já sedimentado, de que o processo coletivo não é um espaço

que garante efetivamente a participação de todos os interessados. Se a discussão

jurídica concentra-se ainda na figura do amicus curiae, é a demonstração clara de

que o estudo do processo coletivo no Brasil está adstrito ao modelo individual e

liberal preconizado pelo processo civil. Para avançar criticamente a reflexão

cientifica das ações coletivas no Brasil é necessário compreender o processo como

um lócus de debate amplo da pretensão por todos os legitimados, assim como

propõe as ações temáticas.

O instituto do amicus curiae limita a possibilidade de controle do objeto da

ação coletiva pelos interessados, uma vez que a sua previsão jurídico-legal

materializa o direito de apenas alguns sujeitos inserirem-se no espaço processual,

excluindo-se o direito de participação dos demais na construção do mérito

processual. Além disso, pode-se afirmar que no momento em que o legislador pátrio

fez a opção pelo instituto do amicus curiae, como forma de participação no processo

coletivo, certamente buscou restringir o rol de legitimados ao debate da pretensão.

Dessa forma, verifica-se que o exercício da cidadania fica comprometido, no

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369

momento em que a representatividade exercida pelo amicus curiae suprime

diretamente o devido processo legal.

A utilização do amicus curiae como forma ilegítima de garantir a exclusão dos

demais interessados difusos e coletivos na construção do provimento impossibilita o

debate amplo da pretensão, viabilizando a extensão dos efeitos jurídicos da

respectiva decisão sobre aquelas pessoas que efetivamente foram excluídas do

processo. Surpreender uma pessoa com os efeitos jurídicos de uma decisão, a qual

não teve a oportunidade de se inserir no contexto jurídico de debate da pretensão, é

o mesmo que reconhecer a ausência ou a inobservância do modelo constitucional

de processo.

Dessa forma, o instituto do amicus curiae é visto como o meio mais utilizado

de violação do modelo constitucional de processo no Estado Democrático de Direito,

haja vista que, por meio de sua utilização, temos a violação do Direito Fundamental

de acesso amplo ao judiciário por meio da participação no processo. Assim, o mérito

processual, nas ações coletivas em que o amicus curiae figura como sujeito do

processo, tem a sua construção participada sobremaneira comprometida, uma vez

que o amigo da corte retira dos demais sujeitos do processo o direito de exercício da

cidadania por meio da participação.

O fato de os julgadores não se vincularem, e, tampouco, terem o dever de se

manifestar acerca dos argumentos trazidos pelo amicus curiae no processo coletivo,

é a evidência mais clara de que inexiste a participação na construção do mérito

processual. A participação no processo coletivo somente se efetivará quando todos

os interessados tiverem a oportunidade de se manifestarem tempestivamente acerca

da pretensão deduzida em juízo e, ao mesmo tempo, o julgador obrigatoriamente se

manifestar, de forma fundamentada, sobre todas as alegações fático-jurídicas

trazidas pelas partes. No momento em que é oportunizado ao amicus curiae

representar os demais interessados, sabendo-se que suas alegações não vinculam

a decisão judicial, é certo afirmar que nesse caso a participação no processo coletivo

não existe.

É nesse contexto que se sustenta a pseudo-participação do amicus curiae

como instrumento de exercício da cidadania pelo processo coletivo. Na realidade, os

argumentos jurídicos viáveis a justificar que o amicus curiae não garante aos

interessados a participação no processo são os seguintes:

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370

a) O amicus curiae é considerado no direito brasileiro atual um representante

dos direitos dos demais interessados coletivos e difusos. Trata-se de um

instituto que materializa expressamente a adoção do sistema

representativo, como fundamento regente do modelo de processo coletivo

vigente no Brasil.

b) O amicus curiae não é juridicamente considerado parte no modelo de

processo coletivo atual, uma vez que é visto como um terceiro colaborador,

cuja finalidade é auxiliar o juiz no ato de julgar, ressaltando-se que sua

participação no processo é como mero coadjuvante, uma vez que não tem

legitimidade de influir, de forma direta, no conteúdo decisório.

c) Ao contrário do que ocorria no direito inglês, o sistema americano, adotado

pelo direito pátrio, estabelece que o amicus curiae não deve ser imparcial,

uma vez que atuará processualmente em favor e na defesa dos direitos de

determinados interessados difusos e coletivos.

d) Os argumentos e as alegações suscitados por intermédio do amicus curiae

não vinculam a decisão do juiz, que não fica adstrito e obrigado a se

manifestar acerca das proposições fáticas e jurídicas trazidas para o

processo.

e) O direito de recorrer não é uma prerrogativa assegurada ao amicus curiae,

pelo fato de não ser considerado parte no processo coletivo.

f) Sob a ótica do modelo constitucional de processo coletivo, o instituto do

amicus curiae deve ser visto como uma, dentre tantas outras partes,

juridicamente interessadas na pretensão deduzida, e legitimada a participar

diretamente na construção do mérito processual na ação coletiva.

g) O amicus curiae retira o direito dos demais interessados difusos e coletivos

participarem da construção do provimento jurisdicional, caracterizando

expressamente a violação ou o abandono do modelo constitucional de

processo, cuja finalidade é assegurar a legitimidade democrática do

provimento estatal e a concretização dos Direitos Fundamentais

expressamente previstos no plano constituinte.

h) O exercício pleno da cidadania no Estado Democrático de Direito torna-se

possível àqueles interessados difusos e coletivos que tiveram a efetiva a

oportunidade de discursivamente construir o mérito processual, de forma

participada, algo que se torna inviável nas ações coletivas em que o

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371

amicus curiae figura como terceiro habilitado a representar os direitos dos

demais interessados.

i) A previsão legal do amicus curiae no direito brasileiro foi uma forma

encontrada pelo legislador de instituir um rol taxativo de legitimados a

propositura das ações coletivas, com o propósito de excluir o direito dos

demais interessados serem inseridos como sujeitos habilitados ao debate

amplo das peculiaridades fáticas e jurídicas que integram a pretensão

deduzida.

j) A adoção do sistema representativo, como referencial do processo coletivo

no Brasil, é algo incompatível com a processualidade democrática e,

especialmente, com a teoria das ações coletivas como ações temáticas.

O sistema participativo é o instrumento legitimo para assegurar a maior

amplitude possível de todos os interessados difusos e coletivos poderem

se inserir no lócus processual de construção participada do mérito.

k) Para viabilizar a construção participada do mérito processual torna-se

necessário abdicar do instituto do amicus curiae no ordenamento jurídico

brasileiro, por ser considerado um meio que deslegitima democraticamente

o provimento jurisdicional, mediante a utilização de medidas voltadas a

exclusão do maior número possível de interessados difusos e coletivos.

Assim, torna-se comprometida toda forma de controle, pelos interessados,

da atividade jurisdicional.

l) A proibição legal do direito do amicus curiae propor recursos das decisões

proferidas nos processos coletivos em que atuou como terceiro interessado

é a forma mais legitima de demonstrar a violação dos princípios

constitucionais do duplo grau de jurisdição, do devido processo legal, do

contraditório, da ampla defesa e da isonomia processual. Se o objetivo do

legislador fosse realmente assegurar ao amicus curiae o direito de

participação democrática no processo coletivo, certamente ser-lhe-ia

garantida a possibilidade de influir substancialmente no conteúdo da

decisão de mérito, podendo, em caso de insatisfação ou inconformismo, se

utilizar dos recursos disponíveis em nossa legislação.

m) O próprio amicus curiae tem sua participação cerceada ou suprimida no

processo coletivo, assim como os demais interessados difusos e coletivos,

que estão proibidos legalmente de atuarem como parte nas ações

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372

coletivas. É por isso que se fala em pseudo-participação, haja vista que a

utilização do sistema representativo pelo legislador foi a forma encontrada

de induzir precipitadamente o pesquisador do direito a acreditar que o

instituto em questão pode ser visto como uma forma de participação

democrática no processo coletivo.

4.5.3 Um estudo crítico da ADIN 3510 sob a perspect iva da participação do Amicus Curiae na construção do mérito processual

Em 31 de maio de 2005, foi proposta pelo então Procurador Geral da

República, Cláudio Fonteles, Ação Direta de Inconstitucionalidade, cujo objeto foi o

artigo 5º e seus parágrafos da Lei 11.105, de 24 de março de 2005, que autoriza

pesquisas cientificas com células tronco embrionárias, conforme citação abaixo:

Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a uti lização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados nos respectivos procedimentos, atendidas as seguintes condições: I – sejam embriões inviáveis ; ou II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais , na data de publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da dat a de congelamento. § 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores . § 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisas ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética e pesquisa . § 3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997 (BRASIL). (grifo nosso)

Todo debate jurídico pautou-se estritamente na discussão acerca da

interpretação a ser dada ao Direito Fundamental à Vida, ou seja, buscou-se

esclarecer, a partir das alegações do Procurador Geral da República se a vida,

enquanto Direito Fundamental, deve ou não ser interpretada extensivamente, assim

como os demais Direito Fundamentais no Estado Democrático de Direito.

Participou diretamente do presente debate jurídico, na condição de amicus

curiae, a CONECTAS DIREITOS HUMANOS; CENTRO DE DIREITO HUMANOS –

CDH; MOVIMENTO EM PROL DA VIDA – MOVITAE; INSTITUTO DE BIOÉTICA,

DIREITOS HUMANOS E GÊNERO – ANIS, além da CONFEDERAÇÃO NACIONAL

DOS BISPOS DO BRASIL – CNBB.

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373

Com fundamento no §1º do artigo 9º da Lei 9868/99, foi determinada a

realização de Audiência Pública, experiência considerada inédita na história do

Supremo Tribunal Federal. Vinte e duas, das mais acatadas autoridades cientificas

brasileiras, subiram à Tribuna para discorrer sobre o objeto da presente ADIN. Do

presente debate jurídico construído a partir da Audiência Publica, verifica-se a

existência de duas correntes muito bem delineadas: a) a pautada na Teoria

Concepcionista cuja interpretação do Direito Fundamental à Vida deve ser

obrigatoriamente extensiva; b) A segunda teoria preza pelo progresso da ciência,

mediante o desenvolvimento de pesquisas cientificas com embriões humanos. Para

os defensores da tese de que não existe vida humana em um embrião congelado, a

utilização de embriões humanos em pesquisa cientifica não representaria a prática

do aborto. Em sentido absolutamente contrário, temos o posicionamento que

preconiza que a vida humana começa com a fecundação, razão essa que justificaria

a impossibilidade de utilização de embriões humanos congelados em pesquisa

cientifica.

É indiscutível que se trata de momento histórico relevante a realização de

audiência pública no julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade pelo

Supremo Tribunal Federal. A possibilidade de interlocução com interessados na

pretensão deve ser vista como o primeiro passo, mas não o único, a fim de

assegurar a legitimidade democrática do provimento estatal. Tal colocação se

justifica no seguinte sentido: as entidades que atuaram na condição de amicus

curiae não são as únicas pessoas consideradas interessadas na construção do

provimento jurisdicional. A realização de audiências públicas certamente assegura

maior democraticidade ao provimento, desde que não se restrinja o número de

pessoas que participarão do debate jurídico da pretensão ocorrido no lócus

processual.

A primeira crítica pertinente ao procedimento adotado na AÇÃO DIRETA DE

INCONSTITUCIONALIDADE nº 3510 diz respeito à limitação do número de pessoas

que participaram da audiência pública, Não houve a ampla publicidade do objeto da

ação coletiva, a fim de assegurar a todo interessado difuso e coletivo o direito de se

inserir no contexto fático e jurídico da discursividade processual da pretensão

coletiva. Os ministros do Supremo Tribunal Federal se colocaram no direito de

escolher aqueles sujeitos que estariam habilitados a participarem da audiência

pública na condição de amicus curiae. Não houve maior abertura para que outras

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374

pessoas, além daquelas acima mencionadas, pudessem participar da audiência

pública, razão essa que compromete, sobremaneira, a legitimidade democrática do

provimento. Certamente, muitos outros temas que poderiam ter sido levantados por

outros interessados não os foram em virtude da impossibilidade de se inserirem

como sujeitos legitimados ao debate processual da pretensão.

O procedimento adotado na AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

nº 3510 desenvolveu-se em absoluta desconformidade com a teoria das ações

coletivas como ações temática, haja vista que a participação dos sujeitos no

processo coletivo não foi definida pelo objeto da ação proposta, mas sim, por

escolhas unilaterais realizadas pelos julgadores, que conferiram pressupostamente

legitimidade àquelas entidades consideradas habilitadas a debaterem, de forma

exclusiva e solitária, a pretensão coletiva no âmbito judicial. Novamente verifica-se

no Brasil a reprodução de um modelo de processo coletivo que se desenvolve a

partir do sujeito, e não a partir da natureza coletiva do objeto da ação proposta.

Possivelmente o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal se

deve ao fato de não reconhecerem juridicamente a natureza metaindividual da

pretensão trazida pela AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE nº 3510.

Não somente nessa ação, mas em todas as ações direta de inconstitucionalidade, a

participação dos interessados difusos e coletivos deve ser amplamente assegurada,

a fim de que o debate da pretensão não fique adstrito aos ministros do Supremo

Tribunal Federal e a poucos sujeitos escolhidos a participarem de eventual audiência

pública realizada esporadicamente. No Brasil adota-se a ideologia de que a

legitimidade das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal decorre de uma

pressuposta licenciosidade que os ministros têm de decidirem as pretensões

coletivas em nome de todos os interessados, sem ter o dever de consultá-los

previamente e, também, de inseri-los no debate da pretensão.

Torna-se necessário repensar criticamente a legitimidade dos ministros do

Supremo Tribunal Federal quanto ao procedimento adotado nas ações e nas

pretensões que envolvem direitos de cunho transindividual. A aplicabilidade da teoria

das ações temáticas deve ser vista como a alternativa mais viável a garantir maior

legitimidade democrática aos provimentos jurisdicionais emanados pelos ministros

da mais alta corte judiciária do Brasil, mediante a possibilidade dos interessados

difusos trazerem tempestivamente todos os temas, as alegações e argumentações,

de cunho fático e jurídico, que tenham relação direta ou indireta com a pretensão

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375

deduzida, e que sejam socialmente relevantes. Hoje, com o advento e o

aprimoramento dos meios de comunicação, especialmente os meios eletrônicos

(redes sociais), tornou-se plenamente possível dar ampla publicidade de cada

pretensão coletiva levada ao Supremo Tribunal Federal, de tal forma que aos

interessados difusos e coletivos seja garantido o direito de discussão das

peculiaridades que integram a pretensão.

A possibilidade de democratizar a construção participada do mérito

processual nas ações de natureza metaindividual que tramitam no Supremo Tribunal

Federal, condiciona-se a aplicabilidade da teoria das ações temáticas. O espaço

processual deve ser visto como um recinto de participação não apenas dos ministros

e dos amici curiae pressupostamente escolhidos pelos julgadores. A fim de

democratizar a construção do provimento, torna-se necessário oportunizar que todos

os interessados sejam resguardados no seu direito de alegar, de participar e de

construir diretamente o provimento jurisdicional. A implementação do procedimento

que assegure a ampla participação dos interessados na ação direta de

inconstitucionalidade condiciona-se à observância do procedimento proposto nesse

trabalho (item 3.4.1), que se refere às ações temáticas como o instituto que viabiliza

a democratização do ato decisório.

Outra crítica viável à AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE nº 3510

diz respeito à postura adotada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal que, em

sua maioria, não enfrentou todos os argumentos trazidos em audiência pública pelos

amici curiae, manifestando-se sobre cada um de forma fundamentada, antes de

proferir sua decisão. A impressão que se tem é que a realização da audiência

pública foi pro forma, haja vista que não houve o cuidado dos julgadores quanto à

análise pormenorizada de todas as questões, os temas e as alegações trazidas

pelas partes no processo. No momento em que o decididor julga sem se manifestar

fundamentadamente sobre as questões postas e trazidas pelas partes, há evidente

violação do principio do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal e

da isonomia processual. O principio da fundamentação das decisões judiciais deve

ser reflexo da aplicabilidade do principio da congruência, que determina o dever do

julgador se posicionar jurídico-legalmente sobre todas as questões de mérito que

permearam o discurso processual. Não foi isso que se observou no objeto da

respectiva ação direta de inconstitucionalidade.

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376

4.6 Síntese

A sedimentação teórica do modelo constitucional de processo vem atender a

necessidade de reconstrução das proposições cientificas, já ultrapassadas, que

propugnam por uma noção de processo visto como mero instrumento da jurisdição.

A superação da concepção instrumentalista de processo pressupõe a revisitação do

modelo proposto, sob a ótica da processualidade democratizante. Constitucionalizar

o processo e a jurisdição é uma forma de compreendê-los sob a ótica do Estado

Democrático de Direito, cuja finalidade é assegurar a implementação dos Direitos

Fundamentais previstos no plano constituinte. A aplicação, a interpretação e a

criação do direito democrático somente são possíveis através do processo

constitucional, considerado a garantia de exercício da cidadania por meio da

participação de todos os destinatários do provimento na construção discursiva do

mérito processual.

Nesse contexto teórico, o processo passa a ser visto como um instituto

jurídico cuja finalidade é garantir a constituição de um espaço (lócus) processual de

construção do provimento, ressaltando-se que o mérito processual é o resultado do

desenvolvimento procedimental de toda essa discursividade da pretensão que se

realiza por meio da ampla e isonômica participação de todos os interessados difusos

e coletivos. A definição das questões de mérito deixa de ser uma prerrogativa

exclusiva do juiz, da parte autora e da parte demandada, passando-se a se vista

como um Direito Fundamental de participação no processo coletivo, considerado

corolário do exercício pleno da cidadania.

A constitucionalização do processo causou reflexos diretos no entendimento

democrático das ações coletivas, que não devem mais ser propostas apenas pelas

pessoas pressupostamente autorizadas pelo legislador brasileiro. O advento da

teoria das ações coletiva como ações temáticas veio permitir a abertura e a

interpretação sistemático-extensiva do rol meramente exemplificativo de

interessados na propositura de uma ação coletiva. Isso decorre do fato do processo

coletivo democrático passar a ser compreendido a partir do objeto, não mais a partir

do sujeito, ou seja, será a extensão dos efeitos jurídicos do objeto da ação coletiva

que servirá de parâmetro para a definição dos legitimados à propositura de uma

ação coletiva. O que as ações temáticas garantem aos cidadãos é o direito

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fundamental de ampla participação processual na definição das questões meritórias,

bem como na construção discursiva do mérito da demanda coletiva.

Sob o ponto de vista crítico, foi possível constatar a incompatibilidade jurídica

da atual sistemática do amicus curiae com a teoria das ações temáticas, uma vez

que é regulada pelo sistema representativo, que dispõe que o amigo da corte detém

legitimidade para, em nome dos interessados difusos e coletivos, se manifestar em

juízo.

Considerado juridicamente um terceiro na relação processual, o amicus curiae

foi inserido em nossa legislação com o propósito de assegurar uma aparente

participação dos interessados no provimento, tendo em vista que os julgadores não

ficam vinculados, nem obrigados, a se manifestarem sobre as suas alegações, e

também pelo fato de ser privado do direito de propor recurso. Além disso, a

possibilidade do julgador autorizar ou não a realização de audiência pública, bem

como, escolher aqueles que poderão atuar na condição de amigo da corte, são

fatores que deslegitimam democraticamente o provimento jurisdicional, em virtude

de impossibilitar a participação dos demais interessados difusos no processo

coletivo, tal como ocorreu na Ação Direita de Inconstitucionalidade 3.510.

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378

5. CONCLUSÃO

A formação participada do mérito processual pressupõe inicialmente

compreender, analisar e construir reflexões críiticas acerca do conceito de mérito

adotado no processo civil, que se limita, muitas vezes, à matéria ou às questões de

mérito e a própria noção de lide. O que se constata é que não existe, por parte da

doutrina consultada, o cuidado necessário para diferenciar o mérito processual de

outros institutos a ele correlatos, tais como, a pretensão, a demanda, a lide, a causa

de pedir (próxima e remota) e a própria noção sobre o que são as questões de

mérito no contexto do direito processual civil.

No primeiro capitulo pretendeu-se demonstrar que a noção inicial sobre o

mérito processual relaciona-se com as questões fáticas e jurídicas alegadas pelas

partes ao longo de todo o procedimento. O julgamento do mérito processual

pressupõe o enfrentamento e a análise, pelo magistrado, de todas essas questões

de fato e de direito trazidas pelas partes ao longo do processo. A delimitação das

questões do mérito no processo civil ocorre com a propositura da ação (na exordial

pelas alegações do demandante) e com a apresentação da defesa pelo demandado,

momento em que se define o objeto da lide. É de suma importância observar que o

conceito de mérito processual trabalhado no âmbito do processo civil é adstrito às

questões fáticas e jurídicas propostas e alegadas pelo autor da ação e pelo

demandado, no momento da apresentação da defesa.

Toda teorização do mérito no contexto do processo civil decorre de uma visão

individual e liberal do próprio direito processual, haja vista que a decisão ou o

julgamento do mérito da pretensão pelo magistrado deverá ocorrer nos limites

daquilo que as partes (demandante e demandado) alegaram e provaram ao longo do

processo. A maior demonstração de que o mérito no processo civil se confunde com

as questões de mérito encontra-se no entendimento já sedimentado de que quando

o juiz julga o mérito da pretensão deduzida certamente analisará todos os pedido e

as questões de fato e de direito trazidas pelas partes ao processo. O conceito de

sentença extra e ultra petita ilustra claramente a noção de que o mérito no processo

civil limita-se aos pedidos e às questões de fato e de direito alegadas pelas partes

(demandante e demandado) ao longo de todo o processo.

Uma das principais críticas construídas ao longo do primeiro capítulo funda-se

no conceito e no entendimento dogmático sobre o que é o mérito processual, haja

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vista que a noção de mérito no processo civil limita-se aos pedidos e às questões

postas e trazidas pelas partes no processo. A primeira contribuição científica do

presente trabalho de pesquisa consiste na demonstração de que a noção de mérito

processual não pode ficar adstrita ao pedido, à matéria ou às questões de mérito.

Isso não significa dizer que os pedidos, a matéria ou as questões de mérito não

integram o próprio conceito de mérito. Nesse contexto afirma-se que o mérito

processual deve ser visto como um procedimento bifásico, em que na primeira fase

do procedimento todas as partes legitimadas e interessadas na pretensão

inicialmente deduzida em juízo têm a possibilidade de participar da definição da

matéria de mérito, apresentando todas as questões consideradas relevantes e

conexas ao que foi inicialmente alegado pelo autor da ação.

Na segunda fase do procedimento todas as partes interessadas, inclusive o

magistrado, terão a legitimidade de discutirem amplamente todas as questões e as

matérias de mérito suscitadas na primeira etapa do procedimento. Não se pretende

aqui excluir a participação do magistrado na formação do mérito processual. O que é

demonstrado ao longo de toda a pesquisa é que a construção do próprio conceito de

mérito e do julgamento do mérito não é um tema que fica adstrito à manifestação

exclusiva e unilateral do magistrado, até porque todos os sujeitos juridicamente

interessados na pretensão inicialmente deduzida em juízo detêm a legitimidade de

participar da definição, da análise e da discussão de todas as questões de mérito

propostas.

Nesse contexto, pode-se afirmar que o mérito processual seria resultado de

um procedimento bifásico em que num primeiro momento as partes interessadas

definem livremente as questões de mérito para, num segundo momento, poderem

debater e discutir amplamente todas essas questões, juntamente com o julgador. Ao

magistrado cabe o direito de participar ativamente dessas duas fases do

procedimento, manifestando-se, sempre de forma fundamentada, quanto à definição

e a análise das questões de mérito trazidas aos autos. Isso implica dizer que ao juiz

cabe o dever de analisar, apreciar, discutir, se posicionar e esclarecer, de forma

juridicamente fundamentada, quais serão as questões de mérito relevantes para o

caso concreto e como essas questões de mérito consideradas relevantes ao caso

concreto deverão ser decididas.

Todo julgamento de mérito deve ser reflexo não apenas das percepções

unilaterais do julgador, haja vista que a proposta dessa pesquisa é justamente

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demonstrar que a formação participada do mérito processual decorre exatamente do

compartilhamento entre todas as partes legitimadas no que tange à definição, ao

debate e a resolução das questões de mérito propostas e trazidas em juízo.

Todas as vezes que o magistrado se omite, ignora, desconsidera ou deixa de

analisar e de se posicionar quanto às questões de mérito suscitadas pelas partes

interessadas estará negando a prestação da jurisdição, considerada um Direito

Fundamental corolário ao exercício da cidadania, além de ocasionar às partes

interessadas evidente cerceamento de defesa, decorrente da violação dos princípios

do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal e da isonomia

processual. O papel e a relevância do primeiro capitulo da presente pesquisa foi

justamente demonstrar que o conceito de mérito desenvolvido e proposto pelos

estudiosos do processo civil é justamente aquele incompatível com a noção de

formação participada do mérito, tendo em vista que é poder legitimo do julgador

(magistrado) decidir e formar suas convicções mediante a análise e a apreciação

solitária das questões de mérito trazidas restritamente pelas partes ao longo do

processo.

Outra finalidade do primeiro capítulo foi a de demonstrar que a própria noção

de mérito construída no processo coletivo brasileiro vigente é aquela decorrente do

modelo individual de processo. Ao longo de todo o segundo capítulo pretendeu-se

demonstrar que o atual e vigente modelo de processo coletivo brasileiro funda-se no

sistema representativo, o que o torna incompatível com o Estado Democrático de

Direito, que adota como referencial teórico do processo coletivo o princípio da

participação ampla de todos os legitimados na formação do mérito.

No Brasil atualmente temos um modelo de processo coletivo centrado no

sistema representativo, que é aquele que autoriza e legitima o legislador a definir, de

forma abstrata e peremptória, quem são os sujeitos legitimados à propositura de

uma ação coletiva. Na realidade o próprio sistema representativo é reflexo da

ideologia através da qual o Estado se auto-legitima a criar instituições para

representar os interesses da coletividade, tal como ocorre com o Ministério Público

no Brasil, considerado democraticamente o responsável por viabilizar a

implementação dos Direitos Fundamentais expressamente previstos no plano

constituinte. É de suma importância esclarecer que não constituiu objetivo da

presente pesquisa excluir ou limitar a participação dessas instituições nas ações

coletivas, tal como ocorre com o Ministério Público. O que se buscou demonstrar ao

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longo de toda produção cientifica é que não apenas essas instituições, assim como

todos os interessados difusos e coletivos, detêm a legitimidade de propor uma ação

coletiva e também de participar amplamente da definição e do debate de todas as

questões de mérito suscitadas, relevantes e conexas com a pretensão inicialmente

deduzida.

No momento em que o legislador brasileiro proibiu o cidadão de propor uma

ação civil pública, restringindo o rol dos legitimados processuais ativos, instituiu o

sistema representativo e reproduziu o conceito de mérito processual proposto pelo

processo civil e amplamente discutido no primeiro capitulo. As ações coletivas

brasileiras e o modelo de processo coletivo adotado pelo Brasil atualmente reproduz

o conceito dogmático, hermético, restritivo e autocrático de mérito processual, haja

vista que não são todos os sujeito legitimamente interessados (todos os

interessados difusos e coletivos) que estão autorizados a participar da definição, da

análise e do amplo debate das questões de mérito. Toda discussão referente às

questões de mérito das ações coletivas no Brasil encontram-se concentradas nas

mãos do magistrado e dos demais sujeitos considerados legitimados previamente

pelo legislador a propor as respectivas ações coletivas. Isso evidencia a opção do

direito brasileiro pela adoção do sistema representativo como referencial a gerir o

entendimento do processo e das ações coletivas.

Considerando-se a opção do Brasil pelo sistema representativo, pode-se

afirmar que o modelo de processo coletivo vigente é autocrático e incompatível com

o Estado Democrático de Direito, que propõe como norte de estudo o princípio

participativo, corolário da soberania popular e da liberdade de participação do

cidadão no controle de todas as questões atinentes aos direitos coletivos e difusos.

Legitimar o sistema representativo é deixar claro que ainda no Brasil não fizemos a

opção pela implementação efetiva do modelo constitucional e democrático de

processo coletivo.

No que tange especificamente ao tema objeto da pesquisa, fica evidente que

o desenvolvimento do segundo capitulo foi fundamental para demonstrar a

incompatibilidade das discussões teóricas dos autores que preconizam e defendem

o sistema representativo em face do tema-problema proposto, qual seja, a formação

participada do mérito processual nas ações coletivas como reflexo de um

procedimento bifásico instituído pelo devido processo legal, isonomia processual,

contraditório e ampla defesa, em que todas as partes juridicamente interessadas na

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pretensão inicialmente deduzida podem participar da definição, discussão, análise,

profundo, amplo e isonômico debate de todas as questões que permeiam o mérito

processual.

A finalidade do terceiro e último capítulo foi justamente propor o

aprimoramento na compreensão teórica do mérito processual nas ações coletivas a

partir da teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, buscando-se

desconstruir o conceito de mérito do processo individual e, assim, trabalhar a noção

de mérito processual na perspectiva das ações coletivas, desvinculando-se do

modelo individualista e liberal de processo coletivo centrado no sistema participativo.

O mérito processual nas ações temáticas deve ser resultado da interação e

da participação efetiva de todos os interessados difusos e coletivos na apresentação

de temas correlatos à pretensão inicialmente deduzida em juízo, na definição das

questões de mérito e, por conseguinte, no amplo debate e na discursividade da

pretensão no âmbito da processualidade democrática.

Ao contrário do processo civil, onde o mérito é resultado das alegações do

autor na exordial, do requerido na sua peça de defesa e das questões consideradas

relevantes pelo juiz, no processo coletivo os provimentos meritórios devem ser

reflexos do procedimento democrático instaurado e desenvolvido a partir da

observância dos princípios do contraditório, da ampla defesa, da isonomia

processual, do devido processo legal, da congruência, da obrigatoriedade de

fundamentação das decisões judicial e da inafastabilidade do controle jurisdicional.

As ações temáticas propõem a abertura do rol de legitimados ativos das

ações coletivas, a partir do princípio participativo, que estabelece a possibilidade de

qualquer interessado difuso ou coletivo apresentar temas, alegações ou argumentos

fático-jurídicos coerentes à pretensão inicialmente deduzida. Trata-se de meio

adequadamente utilizado para assegurar a legitimidade democrática do provimento

jurisdicional, mediante a inclusão de todos os legitimados com protagonistas da

discussão da pretensão e, com isso, influir substancialmente no conteúdo meritório

da decisão.

O mérito processual deverá refletir todo esse debate processual realizado

entre os interessados e os legitimados ao provimento, obrigando o julgador a se

manifestar, de forma juridicamente fundamentada, sobre todas as proposições e os

questionamentos propostos pelas partes ao longo do procedimento.

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A viabilidade prática de implementação das ações temáticas no Brasil se

condiciona à adoção de um procedimento que venha a assegurar efetivamente a

inserção dos argumentos de todos os interessados no processo. Isso não significa

dizer que todos os interessados difusos deverão se manifestar individualmente no

processo. O que propõe as ações temáticas é justamente o seguinte: assegurar a

ampla publicidade da pretensão inicialmente deduzida (através de editais, da

imprensa falada, escrita, televisionada e de meios eletrônicos, tais como as redes

sociais na internet), a fim de estimular o debate entre os interessados difusos e

coletivos; o resultado de toda essa discussão será materializado em temas, que

serão trazidos para o processo coletivo por intermédio do representante de cada

grupo de interessados. Essa foi a forma encontrada de evitar a ocorrência de ações

coletivas intermináveis, em decorrência da obrigatoriedade de intimação e de

manifestação individual de cada interessado coletivo ou difuso.

Nesse contexto, o mérito processual nas ações coletivas no Estado

Democrático de Direito não deverá refletir apenas o entendimento do julgador acerca

das questões que considera relevantes para o processo, uma vez que o conteúdo

meritório da decisão ora proferida será conseqüência de todo esse debate

processual instaurado entre as partes interessadas, a fim de garantir a legitimidade

jurídico-constitucional do provimento.

A construção participada do mérito processual nas ações temáticas deve ser

vista como uma forma legitima de exercício da cidadania, mediante a ampliação das

vias de acesso ao Judiciário e de participação dos interessados na definição e no

debate de todas as questões de mérito que integram a pretensão. Trata-se do meio

mais adequado para superar teoricamente a ideologia individualista de análise e de

entendimento do processo coletivo sob a égide do processo civil.

Qualquer medida utilizada para limitar, suprimir ou restringir a participação

dos interessados na construção discursiva do mérito processual representa a

deslegitimação democratizante do provimento, uma vez que reproduz um modelo

autocrático de processo, cujo exercício da jurisdição e a definição das questões de

mérito ficam adstritas à autoridade do julgador, por ser considerada exclusivamente

sua prerrogativa.

O estudo analítico do mérito participado no modelo de processo coletivo

democrático não fica adstrito ao processo jurisdicional, haja vista que também no

processo administrativo e no processo legislativo os interessados difusos e coletivos

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devem ser inseridos no lócus processual de discursividade da pretensão e na

construção do objeto da ação coletiva.

A contribuição científica do presente trabalho de pesquisa foi demonstrar

exatamente que o mérito processual pode ser definido como um procedimento, e

não ficar adstrito às questões fáticas e jurídicas propostas pelas partes juridicamente

interessadas. Trata-se de um procedimento democrático desenvolvido mediante a

observância dos princípios do contraditório, da ampla defesa, do devido processo

legal e, especialmente, do principio participativo, considerado o corolário do

exercício da cidadania e da implementação dos Direitos Fundamentais. A

implantação desse procedimento no âmbito do processo e das ações coletivas é

considerado o parâmetro para a viabilização da formação participada do mérito,

mediante a compreensão das ações coletivas a partir do objeto, e não do sujeito,

assim como se torna necessário superar o sistema representativo como

conseqüência lógica do modelo individualista e liberal de processo.

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