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O QUE ACONTECE COM O TRABALHO?

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  • Ladislau Dowbor

    O QUE ACONTECE COM O TRABALHO?

    So Paulo, Fevereiro 2002

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    O QUE ACONTECE COM O TRABALHO? .................................................................. 3 I O CONTEXTO DO TRABALHO: MACROTENDNCIAS..................................... 3

    1 O novo contexto .................................................................................................. 4 2 - As grandes simplificaes.................................................................................... 6 3 - O dimensionamento do problema ........................................................................ 7 4 - Dinmicas setoriais diferenciadas ........................................................................ 9 5 A hierarquizao do trabalho............................................................................. 13

    II O TRABALHO: EIXOS DE MUDANA............................................................... 17 6 Os vnculos de emprego .................................................................................... 17 7 A remunerao do trabalho................................................................................ 21 8 O tempo de trabalho .......................................................................................... 23 9 A subjetividade no trabalho............................................................................... 26 10 Trabalho e regulao social ............................................................................. 29 11 - Os impactos acumulados.................................................................................. 34

    III OS CAMINHOS...................................................................................................... 34 12 Empregabilidade.............................................................................................. 34 13 As polticas locais integradas .......................................................................... 36 14 As polticas pblicas........................................................................................ 38 15 O potencial das polticas sociais...................................................................... 40 16 O Terceiro Setor e as novas dinmicas organizacionais.................................. 43 17 Reviso do horizonte sindical.......................................................................... 47 18 As novas dinmicas polticas........................................................................... 49 CONCLUSES....................................................................................................... 51 CRONOLOGIA....................................................................................................... 54 GLOSSRIO........................................................................................................... 56 BIBLIOGRAFIA..................................................................................................... 58

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    O QUE ACONTECE COM O TRABALHO?1

    Na economia moderna, um fato ligeiramente bizarro, A produo agora mais necessria pelos empregos

    que oferece do que pelos bens e servios que proporciona. John Galbraith, A Sociedade Justa: uma Perspectiva Humana

    O incremento da eficincia tcnica tem avanado mais rapidamente do que a nossa capacidade de lidar

    com o problema de absoro do trabalho. John Maynard Keynes,

    Economic Possibilities for our Grandchildren, 1930

    I O CONTEXTO DO TRABALHO: MACROTENDNCIAS

    Os termos para designar o que est acontecendo com o trabalho revelam a profundidade das transformaes: Alvin Toffler acha que vamos para o trabalho intelectual, embalados na terceira onda, Domenico DeMasi nos acena com um agradvel cio ativo, Manuel Castells mostra as perspectivas do trabalho em rede, Pierre Lvy aponta para um universo coletivo de inteligncia compartilhada, Guy Aznar aponta para menos trabalho, Jeremy Rifkin para o seu fim. As Naes Unidas trabalham com o conceito de Jobless Growth, que designa o novo desemprego que surge no da falta de crescimento, mas do prprio crescimento. Podemos acrescentar o conceito de downsizing, que em geral constitui uma teoria delicada que explica porque estamos na rua, a reengenharia que cumpre funes semelhantes, mostrando que estamos desempregados por uma boa razo cientfica de management, ou ainda o conceito de lean and mean, literalmente enxuta e malvada, que resume a viso atual da empresa eficiente, e gera boa parte da angstia que o ser humano por acaso empregado hoje sente. No conjunto, o fato de tericos indiscutivelmente competentes nas suas reas abrirem um leque to amplo de perspectivas, mostra que a dvida e a insegurana sobre o futuro constituem a nica realidade palpvel.

    A abertura do leque aponta igualmente para o ritmo das transformaes, pois somente o deslocamento radical do tradicional universo do trabalho permitiria que autores que desenham o futuro com pinceladas to amplas sejam lidos como tericos srios. Os estudos empricos ajudam, mas no resolvem. H hoje um nmero muito significativo de pesquisas sobre emprego e desemprego, estudos de dinmicas econmicas setoriais e regionais, e nunca tivemos tantas cifras. Tambm nunca estivemos to confusos. Quando

    1 O presente estudo contou com o apoio da Universidade Metodista de So Paulo

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    as transformaes atingem um ritmo e uma profundidade de maiores propores, os prprios conceitos, as ferramentas de anlise de que dispomos, tendem a tornar-se inadequados, e o volume de nmeros no ajuda.

    H um interesse mais agudo, evidentemente, em torno aos problemas das relaes sociais do trabalho, e das formas de regulao do emprego. Ao lado das empresas tradicionais, surgem as holdings financeiras de diversos tipos, que s lidam com intangveis, com gesto, promoo, organizao, deixando a produo para empresas sub-contratadas. Outras empresas se concentram no core business, na atividade nuclear, terceirizando o resto. Gigantes comerciais buscam pulverizar os seus fornecedores, como a Souza Cruz com os produtores de fumo, e chama de mercado um sistema de dependncia quase total de um comprador s. O mercado, aqui, considerado muito bom, mas para os outros. H tambm empresas que inventam cooperativas pro forma, para fazer o mesmo sem enfrentar os direitos sociais, ou criam firmas de alocao de trabalho temporrio. Surge igualmente com fora a chamada economia solidria, onde aparecem sistemas de autogesto, cooperativas de nova gerao, produes conveniadas de diversos tipos.

    Como a angustia, frente aos dilemas da simples sobrevivncia econmica, se generaliza, natural que este aspecto das relaes de trabalho esteja atraindo particular interesse. No entanto, a prpria diversidade e a complexidade dos subsistemas que surgem, apontam para a necessidade de se entender as razes, e estas residem em grande parte na transformao dos processos produtivos, das relaes de poder, da cultura do trabalho. Neste sentido, consideramos que o aporte mais srio que poderamos fazer neste momento metodolgico, no sentido de tentar definir, ainda que parcialmente, os referenciais das mudanas em curso.

    1 O novo contexto O principal motor das transformaes seguramente a revoluo tecnolgica que vivemos. A revoluo atual no mais de infraestruturas como ferrovia ou telgrafo, ou de mquinas como o automvel e o torno, mas de sistemas de organizao do conhecimento. a prpria mquina de inventar e de renovar tecnologias que est sendo revolucionada. Isto gera um deslocamento acelerado das formas como nos vinculamos com o processo de mudar o mundo. Muda o prprio conceito de trabalho. A priori, fazer mais coisas com menos esforo no parece um problema, e sim uma soluo. No entanto, na ausncia das mudanas institucionais correspondentes, a tecnologia termina por privilegiar minorias, e gerar excluso e angstia na maioria.

    A mudana nas tecnologias muda as dimenses espaciais do trabalho, na medida em que as finanas, o comrcio, os diversos servios intangveis que hoje assumem tanta importncia, como publicidade, advocacia, gerenciamento a distncia, circulam nas ondas do novo sistema de informaes (TCI Tecnologias de Comunicao e Informao) em segundos, fazendo por exemplo uma secretria que trabalha em Washington perder o emprego para uma secretria que vai fazer o mesmo trabalho, via computador, a partir da ndia. Uma vez mais, como frente globalizao de uma parte

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    da economia no se desenvolveram as correspondentes capacidades mundiais de poltica econmica, setores inteiros da economia de um pas podem ficar inviabilizados por produtos importados incomparavelmente mais baratos, ou a poupana arduamente acumulada de uma sociedade pode evaporar sob o impacto de algumas iniciativas de especulao financeira. importante lembrar que o processo catico de globalizao que sofremos gera regras nicas para realidades desiguais, confrontando economias onde se trabalha 12 horas por 20 centavos a hora, com outras onde se trabalha 7 horas com remunerao de 20 dlares por hora, para mencionar s este fator.

    A insero desigual nos processos modernizados e globalizados de produo gerou o maior drama social que o planeta j enfrentou na sua histria. Hoje, enquanto ficamos falando da crise financeira, em todo o mundo 1,3 bilho de pessoas subsistem com menos de um dlar por dia; 3 bilhes vivem com menos de dois dlares por dia; 1,3 bilho no tem gua potvel; 3 bilhes carecem de servios de saneamento, e 2 bilhes no tm eletricidade. Discurso do Frum Social Mundial em Porto Alegre? No, discurso do presidente do Banco Mundial, J. Wolfensohn, frente Junta de Governadores da entidade.2 Esta fratura social mundial que nos desarticula no s em termos polticos e sociais, mas tambm em termos econmicos, est se tornando o problema central do planeta. Com isto, a prpria funo do emprego muda: de uma viso meramente produtivista, evolumos para uma compreenso melhor da funo de estruturao social que o trabalho assegura. No uma viso nova para ns, que clamamos h dcadas pela humanizao dos processos econmicos. O interessante aqui, a amplitude das esferas que comeam a tomar conscincia de que no se deixa impunemente mais da metade da populao mundial na privao e no desespero. A crise, a partir de um certo nvel, democrtica: atinge a todos.

    As oportunidades, mas tambm os imensos desequilbrios gerados, levaram a um gigantesco xodo rural mundial. Hoje mais da metade da populao j reside em cidades. O Brasil tinha dois teros de populao rural nos anos 1950, hoje tem 80% de populao urbana. Em termos institucionais, as decises continuam centralizadas nas capitais, como no tempo em que o interior do pas consistia em populaes rurais dispersas e desarticuladas. Em termos de emprego, a mesma dinmica que expulsou a mo-de-obra para as cidades, gerando as imensas periferias caticas e miserveis, hoje reduz a prpria base urbana de emprego. O pequeno avano que conseguimos com a Constituio de 1988, em termos de descentralizao e autonomia de gesto local, amplamente insuficiente: ainda no criamos as instituies que nos permitiro uma gesto local integrada e sustentvel, base da alocao racional e equilibrada dos recursos humanos.

    Com deslocamento inverso e simtrico, reas como as finanas, a comunicao e a informao se globalizam, como se globaliza a nova gerao de atividades nobres, o design, o marketing, a publicidade, a advocacia, o management e outros setores que hoje frequentente compem trs quartos do valor do produto que compramos. No plano global, as mega-empresas transnacionais, j chamadas de galxias econmicas pelas

    2 James D. Wolfensohn, La otra crisis, discurso ante a Junta dos Governadores do Grupo do Banco

    Mundial, 6 de outubro 1998.

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    Naes Unidas, constituem realmente galxias, pela amplitude do poder de suco e de rearticulao econmica mundial. Como no existe governo mundial, giram soltas e sem controle, articulam-se em reunies internacionais, criam ativamente uma viso positiva de si mesmas na mdia que atinge todos os cantos do planeta.

    O universo do trabalho assim atingido por um movimento ssmico de transformaes estruturais. As tecnologias abrem um leque extremamente diversificado de reas de trabalho, o que confunde as nossas vises tradicionais de profisso e carreira. As empresas transnacionais que navegam no espao globalizado dispem hoje de um poder econmico, poltico e de mdia de tal porte, que as tradicionais formas de regulao dos mercados tornam-se inoperantes. As capacidades de investimento local de poupanas das comunidades vm-se drasticamente reduzidas pela fora do gigantesco aspirador de recursos financeiros que representa o chamado cassino global de especulao financeira. Sem poupana local, no h investimento local, e reduz-se a capacidade de criar polticas de emprego. A concentrao de renda no plano internacional, entre pases ricos e pobres, e no plano nacional dentro dos pases em desenvolvimento, gera uma imensa maioria de populao privada de recursos mnimos para escapar da pobreza. A ampliao da excluso econmica e social gera por sua vez novas dinmicas de emprego informal e ilegal, obrigando-nos a repensar o nosso conceito tradicional de emprego, com horrio, carteira, direitos e tambm, porque no, um futuro previsvel.

    2 - As grandes simplificaes Como todo movimento profundo e de longo alcance, a mudana no trabalho no instantnea, e algumas dimenses mudam rapidamente enquanto outras permanecem estagnadas. o caso por exemplo do emprego na nova economia, em confronto com a lentido das transformaes institucionais e jurdicas, e com a rigidez de cdigos e de culturas trabalhistas. Geram-se tenses generalizadas, entre segmentos tecnologicamente mais avanados que buscam transformaes mais rpidas, e amplas massas de trabalhadores inseguros, alm de quadros gerenciais de alta qualificao que se sentem ameaados com mudanas como a reduo do leque hierrquico.

    Frente s ameaas, todos buscam entender melhor o que est acontecendo, quais so as tendncias, e se debatem na ambgua relao de querer estar do lado do progresso, das tecnologias, do novo, mas ao mesmo tempo de querer um mnimo de garantias no processo de mudana. O grandioso futuro que nos prometido no longo prazo, ter pouco sentido se no sobrevivermos no modesto curto prazo.

    As vises dominantes sobre o problema esto centradas em simplificaes radicais. A primeira, a de que se trata de uma simples transio, em que o emprego no perdido, mas transformado, no quadro ao vasto movimento de evoluo para uma economia terciria, centrada nos servios. Antes de tudo, diga-se que o fato de se tratar de uma transio e sempre estamos em transio entre alguma coisa e alguma outra no resolve grande coisa. A transio da era agrcola para a era industrial envolveu tragdias planetrias, implicando desde a colonizao de grande parte do mundo em busca de matrias primas, at as gigantescas migraes da Europa para o Novo Mundo, a

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    expulso das populaes do campo, e relaes de trabalho que apresentavam como natural acorrentar crianas s mquinas, massacrar grevistas ou exigir jornadas de 16 horas de trabalho. Foi preciso quase um sculo de lutas e de construo de organizaes de trabalhadores, e o surgimento de alternativas concretas de expropriao generalizada dos proprietrios de meios de produo, para que o sistema evolusse para relaes mais humanas. Como negociar uma transio mais humana para a sociedade do conhecimento, se a nica regra do jogo a mo invisvel, e que vena o mais forte? Trata-se aqui, realmente, da crnica de uma tragdia anunciada.

    A segunda grande viso, em vez de minimizar o problema, o maximiza. Trata-se da eterna afirmao de que a tecnologia vai suprimir o emprego, excluindo os trabalhadores de maneira generalizada. Na linha de Jeremy Rifkin, a morte do emprego nos leva a uma viso de catstrofe, problemtica na medida em que nos recorda os inteis esforos de quebrar os teares, no sculo XIX, para salvar empregos. A fragilidade deste enfoque que no enfrenta a realidade de uma dinmica mais complexa: o emprego est efetivamente sendo em parte suprimido, mas tambm em parte substitudo, sofre igualmente deslocamentos diferenciados segundo os setores, regies, nveis de formao da mo de obra e outras variveis.3

    O prprio conceito de desemprego evolui, na medida em que s medidas clssicas de desemprego temos de acrescentar o desemprego por desalento, o trabalho temporrio, novas formas de vinculao com o emprego, a prpria perda de interesse e motivao segundo os nveis de remunerao, e segundo novas exigncias como a qualidade do trabalho. Colocam-se de maneira nova os problemas articulados da segurana do emprego, da satisfao com o trabalho, da distribuio dos ganhos.

    No h dvida que as simplificaes ideolgicas que herdamos do sculo XX nos levam facilmente a dizer que est tudo bem, ou que est tudo mal. A realidade, que temos uma ampla lio de casa a fazer, e consiste essencialmente em entender as dinmicas complexas e diferenciadas da modernidade.

    3 - O dimensionamento do problema O Brasil tem uma populao de 170 milhes de habitantes. Destes, 107 milhes so considerados populao em idade ativa (PIA), entre 16 e 64 anos. Como muita gente em idade ativa opta por no trabalhar e este optar representa uma dramtica simplificao estatstica a populao considerada economicamente ativa (PEA) da ordem de 79 milhes de pessoas. Trata-se das pessoas que esto trabalhando, e das pessoas que esto desempregadas e procuram. Na viso do IBGE, quem no est

    3 - Como exemplo, ver o estudo de Leonardo Ferreira Neves Jr., Lus Henrique Paiva e Marcos Maia

    Antunes Comportamento do Pib e Gerao de Emprego no Brasil: uma anlise para os anos recentes - Os autores constatam que enquanto o setor tercirio mantm relativa estabilidade do nvel de emprego formal, indstria e agropecuria demonstram forte reduo dos postos de trabalho formais (pouco acima de 20%). Ou seja, no se verifica uma compensao setorial quanto s variaes no emprego formal p. 130, in Conjuntura Social, v.11, n.2, Abr-Jun 2000. Braslia, Ministrio da Previdncia e da Assistncia Social.

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    procurando emprego na semana da pesquisa, no est desempregado, faz parte dos inativos, o que permite manter as estatsticas de desemprego em torno de 8%. Na viso do DIEESE, que inclui nos desempregados os que no esto procurando emprego porque cansaram de procurar desemprego por desalento os desempregados representam algo em torno de 18% da populao economicamente ativa.

    Se adotarmos o clculo do Dieese, indiscutivelmente mais realista para um pas em desenvolvimento, teremos 14 milhes de desempregados.4 Os critrios do Dieese no so exagerados. Na realidade, alm do desemprego por desalento, seria interessante acrescentar o desinteresse por trabalho causado pelo baixo nvel de remunerao: Uma pessoa que consegue um emprego de 200 reais, que desconta o quanto vai gastar com conduo e outros gastos extra fora de casa, chega facilmente concluso que fica mais barato ficar em casa e ajudar a cuidar das crianas.

    Os 8% de taxa de desemprego que o Ibge nos apresenta so sem dvida preocupantes, mas razoveis. No entanto, se compararmos os 72 milhes de economicamente ocupados, com os 107 milhes em idade ativa, estamos falando em 35 milhes de pessoas em idade de trabalho e que no exercem atividade econmica remunerada. No h dvida que encontramos a um grande nmero de mes que preferem ficar em casa cuidando dos filhos, ou pessoas incapacitadas por diversas razes. Em compensao, entre os 72 milhes efetivamente ocupados temos um slido 40% de trabalhadores que tm baixssima escolaridade, e um bom nmero de trabalhadores pouco produtivos por desnutrio e outros fenmenos caractersticos do subdesenvolvimento, outra forma absurda de sub-utilizao do potencial humano. No estamos aqui na esfera de cifras precisas, mas de ordens de grandeza. E a ordem de grandeza, por mais voltas que lhe demos, realmente assustadora. Na realidade, o que se apresenta de maneira bastante evidente, que a sub-utilizao da nossa fora de trabalho atinge dezenas de milhes de pessoas e constitui um dramtico desperdcio do principal recurso do pas, a sua mo de obra.

    Este pano de fundo nos permite dimensionar um pouco melhor o que representam opes de organizao econmica baseadas na maximizao da produtividade de uma minoria altamente tecnificada. Investir na produtividade dos empregos de ponta, e no ver o gigantesco descalabro poltico, social e econmico que est sendo gerado no conjunto da nao, constitui realmente uma poltica de avestruz. Numa perspectiva, avoluma-se uma problemtica social ameaadora. Mas pode-se tambm vislumbrar um imenso potencial de desenvolvimento, se soubermos aproveitar, segundo formas inovadoras de organizao, as massas privadas de participao efetiva nas transformaes sociais.

    4 - Com os critrios estreitos do IBGE, que s considera o desemprego aberto, temos uma populao

    ocupada da ordem de 72 milhes. Estamos aqui trabalhando com ordens de grandeza. difcil estimar, por exemplo, quanta gente gostaria de entrar no mercado de trabalho se os salrios fossem mais decentes. Os critrios do DIEESE, que incluem o desemprego por desalento e chegam a cifras de desemprego da ordem de 18% nas reas metropolitanas, tanto podem reduzir as nossas estimativas de populao ocupada como expandir as cifras de populao economicamente ativa. Estas diversas aproximaes estatsticas no influem sobre as grandes linhas de raciocnio que desenvolvemos neste trabalho, mas importante ter em mente o grau de aproximao com o qual trabalhamos.

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    4 - Dinmicas setoriais diferenciadas relativamente fcil apontar para um futuro centrado nos servios. O que o setor de servios? Na origem, tratava-se de diferenciar a atividade produtiva produo de sapatos por exemplo de um corte de cabelo, onde o servio prestado se encerra no prprio ato. O conceito foi sendo espichado para conter a prpria expanso, e tornou-se um conceito residual que engloba tudo que no envolve trabalho com a terra (primrio) ou com a mquina industrial (secundrio). Como os servios representam dois teros das atividades de uma economia moderna, temos uma definio residual, um outros que representa dois teros do universo estudado, o que cientificamente absurdo. Na realidade, a tecnificao da agricultura leva a que grande parte das atividades, como inseminao artificial, anlise de solo, adubao, silagem, servios de informao meteorolgica e outros passem a ser sub-contratados pela unidade produtiva rural, fazendo parecer que h menos atividade agrcola. O fato das atividades agrcolas, ou industriais, envolverem maior contedo de tecnologia e conhecimento significa que estas atividades pertencem a outro setor? Se a manuteno de uma empresa for terceirizada para uma empresa que presta servios de manuteno, isto significa uma reduo das atividades industriais, e aumento de atividades de servios? H uma evidente confuso terica entre o nvel de contedo tecnolgico de um setor, e o tipo de atividade a que pertence.

    Olhando-se com esta perspectiva, boa parte do que qualificamos hoje como servios continua pertencendo aos sistemas produtivos agrcola e industrial, e representa essencialmente uma intensificao tecnolgica de uma rea produtiva tradicional. Por simples que seja, esta metodologia ajuda, pois grande parte das terceirizaes e formas precrias de vinculao se deve ao desmembramento de segmentos de atividades que podem constituir unidades autnomas em termos tecnolgicos e organizacionais. Formam-se assim, em torno da montadora de automveis, por exemplo, as galxias de atividades satlites em torno de uma unidade central, atravs de diversas formas de dependncia, como sub-contratao, convnios tecnolgicos e outros. Crescentemente, a prpria atividade produtiva pode ser terceirizada, com a empresa nuclear evoluindo para as atividades ditas intangveis (intangibles) como design, marketing, relaes jurdicas, gesto estratgica, atividades que hoje representam, segundo Keinichi Ohmae, 75% do custo final dos produtos. Este tipo de cifra ainda necessita de estudos mais aprofundados, mas indica claramente um novo eixo de diviso entre core business, atividade nuclear, centrada nos intangveis e sob controle da empresa dominante, e empresas dependentes, cuja participao no produto termina sendo muito menor. Com este enfoque, passamos a entender melhor o remanejamento das relaes de produo no setor produtivo industrial, em vez de simplesmente jogarmos as novas realidades para o cesto geral de servios.

    Outra dimenso bastante diferente representam os servios que constituem o que chamamos de polticas sociais, fundamentalmente sade, esporte, educao, turismo e lazer, habitao, segurana e o conjunto hoje articulado de cultura, informao e comunicao. Quando trabalhamos a problemtica do emprego e das relaes sociais de

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    produo, curiosamente temos sempre em mente a indstria manufatureira, em particular a automobilstica, onde se acumularam os nossos avanos tericos em termos de gesto, como taylorismo, fordismo, toyotismo, just-in-time e semelhantes.

    Mas as polticas sociais, por exemplo, j ultrapassaram amplamente a dimenso somada da indstria e da agricultura, nos Estados Unidos. Que relaes sociais de produo esto surgindo nesta rea? A sade oscila entre esforos de privatizao que esto gerando no mais polticas de sade, mas uma indstria da doena, com controle assumido crescentemente por empresas financeiras da rea de seguros; outros segmentos buscam a racionalidade na descentralizao e municipalizao, com propostas como o SUS; outras propostas tentam viabilizar um sistema cooperativo; outras resgatam as mais antigas tradies com polticas como o mdico de famlia, e assim por diante. Terceirizaes de anlises ou at de intervenes cirrgicas j so normais. Na rea da educao surgem, ao lado das escolas pblicas e privadas tradicionais, os programas de formao a distncia, MBAs empresariais, terceirizaes da gesto escolar ou at de segmentos pedaggicos.

    A Pearson, grande multinacional da rea de finanas, dona do Financial Times, comprou a editora cientfica Simon & Schuster por 4,6 bilhes de dlares, e declara que o seu fil mignon passar a ser o controle de servios escolares. A fbrica de armas Taurus, participando do programa escolar Junior Achievement aproveita para distribuir a alunos de 14-15 anos material de publicidade sobre armas.5

    O nosso objetivo aqui no discutir se so acertadas ou no terceirizaes ou outros reordenamentos institucionais na rea das polticas sociais, mas mostrar que temos uma gigantesca rea emergente cujos paradigmas organizacionais oscilam entre estatismo, privatismo, e um conjunto de solues intermedirias, inclusive gesto por organizaes no-governamentais e movimentos comunitrios. A importncia desta rea resulta tambm do fato que ter uma vida com sade, educao, lazer, esporte, exatamente o que queremos da vida: as outras reas, fbricas, bancos, comrcios, so meios, e os fins so justamente as polticas sociais. E como administrar sistemas que so por definio diferenciados e capilares, devendo chegar a cada casa, a cada criana? Como pensar as relaes de trabalho de uma rea que est evoluindo num ambiente confuso, procura dos seus paradigmas de gesto? O mdico num plano de sade no s desvalorizado, humilhado pela relao mdico-paciente-minutos que tem de ser obedecida.

    Um terceiro eixo de servios resulta diretamente do processo dramaticamente acelerado de urbanizao que sofremos durante a segunda metade do sculo passado: trata-se dos servios de transporte, de energia, de gua, de esgotos, de recolha de lixo e outras grandes redes que articulam o tecido urbano. No campo, este tipo de servios praticamente no existe, na medida em que em geral cada famlia resolve individualmente estes problemas: a gua puxada do poo e assim por diante. Com a urbanizao dramtica que sofremos durante os ltimos 50 anos, a situao muda radicalmente. Na cidade, a casa tem de ser articulada com redes de eletricidade, telefonia, gua, esgoto, caladas, linhas de transporte e outros servios sem os quais a

    5 - Artigo de Elio Gaspari, A Taurus Errou a Pontaria, Folha de So Paulo, 22 de abril 2001, p. A 11

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    cidade vira rapidamente um caos. em boa parte a exploso da importncia destes produtos pblicos, de consumo coletivo, que responsvel pelo fato que hoje nos pases desenvolvidos o Estado responde em mdia por 50% do Pib. Nos pases em desenvolvimento, com urbanizao mais atrasada e servios urbanos deficientes, alm de outros fatores, o Estado responde em mdia por 25% do Pib.6 Do grande peso relativo dos servios urbanos, somado s polticas sociais, resulta o fato de um trabalhador em cada quatro, na Sucia, ser funcionrio pblico municipal.

    Os servios urbanos so notoriamente uma rea que recorre com freqncia terceirizao, a formas diversificadas (contratos de longo prazo, sub-contrataes, pagamentos por tarefa e outros) de relaes de trabalho, exigindo um estudo especfico para acompanhar as tendncias em curso. Do ponto de vista do consumidor, gera-se uma situao bastante complexa. Nos pases desenvolvidos estes servios so essencialmente pblicos. Quando privatizados, levam a sistemas instveis de regulao, pois trata-se de rea de oferta limitada, no havendo portanto escolha real por parte do usurio. No depende de nenhum de ns optar por que caminho dever levar o nosso lixo todo dia, ou que empresa cobrar a luz da nossa casa. E como se trata de servios essenciais, pagamos o que nos cobram. No h mercado no sentido de concorrncia entre vrios fornecedores. Opta-se ento por um sistema privatizado, mas regulado pelo prprio Estado, com agncias controladoras. A fora que confere o relativo monoplio sobre produtos que so essenciais leva a que as empresas se sintam muito vontade na negociaes das relaes de trabalho, fato que vai se refletir nas condies de trabalho freqentemente muito penosas dos recolhedores de lixo, motoristas e cobradores de nibus e outros.7 Tambm vai se refletir em condies de vida das camadas mais pobres da populao, na medida em que as grandes empresas de gua tm interesse em vender gua, o que lucrativo, mas no em investir em saneamento, que um custo. O resultado prtico a expanso de vetores de doena, com forte ressurgimento, por exemplo, do dengue, e a sobrecarga das administraes locais com gastos de sade. Na rea da energia eltrica, houve interesse das empresas privadas em vender energia (lucro), mas no em investir na manuteno e capacidade de gerao (custo), levando escassez e preos de escorchar, alm de expandir conexes ilegais e acidentes de diversos tipos.

    No o caso aqui de se refazer a classificao do setor de servios.8 Analisamos brevemente os subsistemas que o compem, para apontar a diversidade das dinmicas. Alm das trs reas mencionadas, dos servios de apoio produo, das polticas sociais e dos servios urbanos, assistimos tambm a profundas transformaes dos servios de intermediao comercial e financeira, com a tecnificao dos principais segmentos, resultando no enxugamento da mo de obra e na expanso de subsistemas informais. Na

    6 - Banco Mundial Relatrio sobre o Desenvolvimento Mundial 1977 New York, 1977

    7 - O impacto direto da terceirizao e privatizao de servios na rea da energia foi por exemplo

    constatado no caso da insuficincia de treinamento e segurana de atividades terceirizadas da Petrobrs, caso vinculado aos acidentes verificados em 2001. 8 - O desconforto com a classificao de servios geral. Anita Kon apresenta parte da discusso em curso

    em Service Industries and Service Economy, FGV/EAESP, Textos para Discusso, Dezembro 1996; Marcio Pochmann utiliza uma classificao em quatro subsetores: servios de distribuio, de produo, sociais e pessoais; ver tambm textos de Manuel Castells e outros.

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    rea do comrcio, em particular, as atividades informais hoje ocupam um imenso espao em praticamente todos os centros urbanos, com um tipo de trabalho autnomo sujeito s permanentes presses da semi-legalidade em que operam.9

    Alm das novas dinmicas bastante diferenciadas dos servios, preciso repensar o imenso setor agrcola, sempre colocado em segundo plano, e que no entanto ainda representa o maior segmento de emprego do pas, com cerca de 17 milhes de pessoas ocupadas. Esta outra rea com profundas mutaes internas: a linha de pesquisa de Jos Graziano da Silva, da Unicamp, constata a rpida evoluo do trabalho rural para uma diviso entre cidade e campo, no que tem sido chamado do novo rurbano.10 Segundo a pesquisa, aumenta de cerca de 6% ao ano a dimenso das atividades urbanas dos trabalhadores rurais. Este universo apresenta imensas diferenas regionais, tecnolgicas e de relaes de produo, e o peso numrico do emprego nesta rea contrasta com a insuficincia de estudos correspondentes de condies de trabalho. Hoje, com a exploso do uso de defensivos e de manipulaes genticas, bem como novas articulaes com as atividades urbanas, os questionamentos tornam-se mais prementes j no s em termos de remunerao, mas em termos de meio ambiente, de sade e de condies de trabalho em geral.

    Populao ocupada por setores, segundo PNADs 1992 e 1999 -------------------------------------------------------------------------------------------------

    1992 1999 Milhes % Milhes % -------------------------------------------------------------------------------------------------

    Agrcola 18,4 28,3 17,4 24,2 Ind. de transf. 8,3 12,8 8,4 11,6 Constr. Civil 4,0 6,2 4,8 6,6 Outras industriais 0,9 1,4 0,8 1,1 Comrcio 7,9 12,1 9,6 13,4 Prest. de servios 11,5 17,7 13,9 19,3 Outros servios 9,6 14,8 12,5 17,3 Adm. Pblica 3,0 4,6 3,3 4,6 Total populao ocupada 65,2 100 71,7 100 Fonte: IBGE Sntese de Indicadores Sociais 2000 A partir da tabela 4.14, pginas 157 a 160; A soma de 100% aproximada, por aproximaes da tabela. Note-se que a Sntese 2000 trabalha a partir das PNADs, e com uma PEA total de 79 milhes para 1999.

    Por outro lado, e de forma geral, importante notar que as mudanas intersetoriais no so to profundas como se tende a apresentar. A agricultura continua sendo o principal setor em termos de emprego, a indstria segue perdendo ritmo, mas muito menos se

    9 - Ver a este respeito o levantamento realizado por Hamilton Dngelo, Camel, Trabalho Informal e

    Sobrevivncia: levantamento, caracterizao e anlise no centro da cidade de So Paulo, PUC-SP, Cincias Sociais, 2000 Tese de Doutorado 10

    - Jos Graziano da Silva Caracterizao do novo rural brasileiro - IE/UNICAMP, Vol. Pesquisas, 153 p.

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    acrescentarmos os diversos servios tecnicamente avanadas que fazem parte da cadeia produtiva industrial, enquanto segmentos que continuamos pondo como que de lado, como o emprego domstico, continua imenso, desregulado e desprotegido. O prprio segmento da chamada nova economia ocupa imenso espao na mdia, mas pouco peso especfico prprio no universo de atividades econmicas. A Organizao Internacional do Trabalho caracteriza corretamente no seu relatrio o fato que enquanto grande ateno tem sido dada ao voltil novo mundo de ponto.com, isto uma distrao: o verdadeiro aporte das TIC (Tecnologias da Informao e Comunicao) como transformaro a velha economia.11

    5 A hierarquizao do trabalho A revoluo tecnolgica gera assim dinmicas extremamente desiguais. No se trata, como pareceria primeira vista, de um ncleo de atividades modernas que gradualmente se expandiria para o conjunto da economia. A viso da expanso linear das tendncias, alis, poluiu freqentemente as anlises cientficas, desde as vises de Rostow sobre a tendncias de todos os pases seguirem as mesmas etapas de desenvolvimento em direo a um modo de vida americano generalizado, at as anlises sobre as tendncias organizacionais e tecnolgicas das empresas transnacionais que se tornariam um tipo de referncia inevitvel para toda a economia mundial, na linha do benchmarking e outros conceitos. Na realidade, os processos so estruturalmente desequilibrados.

    No h dvida que as empresas transnacionais constituem hoje a locomotiva dos processos econmicos. Trata-se do gigantesco peso das mega-empresas produtivas, que controlam os chamados produtos mundiais; trata-se tambm das empresas financeiras de grande porte que canalizam as poupanas do planeta para os pases mais ricos, e em particular para os Estados Unidos; trata-se igualmente das empresas mundiais que controlam o sistema hoje articulado de informao, telecomunicao e televiso, e que constroem a imagem positiva das suas marcas e das suas vises do mundo atravs do controle da informao; trata-se enfim do poder tecnolgico e de controle do conhecimento que estas empresas adquirem atravs do controle mundial de cerca de 80 a 90% da pesquisa e desenvolvimento do planeta, poder este que se concretiza nos acordos Trips sobre a propriedade intelectual, no quadro da Organizao Mundial do Comrcio. O poder econmico, tecnolgico, poltico, e cultural deste ncleo central de transformaes do planeta bastante evidente. So cerca de 500 a 600 grandes empresas transnacionais que controlam este processo, articulam-se em reunies de diversos tipos, e definem, gostemos ou no, os nossos rumos em termos de produo, de emprego, de valores, de meio-ambiente.

    Esta tendncia hierarquiza os processos produtivos, definindo padres para um conjunto das atividades cruciais do planeta, como opes de transporte em qualquer parte do mundo, ou o tipo de filmes e mensagens que so vistas por crianas em qualquer domiclio do planeta. impressionante contribuirmos para lucros de uma empresa

    11 - While much attention has surrounded the volatile new world of the dot.coms, this is a distraction:

    the true portent of ICT is how it will tranform the old economy. ILO World Employment Report 2001- http://www.ilo.org

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    transnacional situada em pas rico ao comprarmos um litro de leite (Parmalat), uma aspirina (Bayer) ou uma vitamina C, como se o leite, o cido acetilsaliclico e o cido ascrbico tivessem sido por elas inventados. Na realidade, estas empresas sequer produzem realmente o que vendem: a sua atividade consiste no gerenciamento de um processo envolvendo design, marketing, financiamento, batalhas jurdicas e assim por diante.

    So estas atividades que podem realmente ser consideradas de ponta, onde os rendimentos so excepcionalmente altos, onde se emprega mo de obra qualificada, e onde os salrios so elevados. Aqui realmente constata-se a reduo do leque hierrquico, o uso amplo e democrtico do conhecimento (knowledge organization), e um confortvel sentimento de pertencer a uma elite. O problema que, realmente, trata-se de uma elite. E elites, por definio, so pequenas. Em termos gerais, a Organizao Internacional do Trabalho apresenta os seguintes dados de postos de trabalho nas corporaes transnacionais: so 73 milhes de empregos em 1995, dos quais 12 milhes nos pases em desenvolvimento. A OIT calcula que cada emprego destes gera outro emprego indireto, o que significaria, para os pases em desenvolvimento, 24 milhes de empregos, cerca de 1% da sua PEA.

    Os paises em desenvolvimento recebem uma parcela muito pequena deste emprego, mas recebem toda a carga dos produtos que hoje circulam no mercado mundial. Gera-se um efeito de desemprego muito amplo, e conseqente presso para a queda de salrios e recuo no respeito s normas de trabalho.

    No nosso caso, com forte presena de multinacionais dentro do pas, e crescente abertura para o exterior, acumulamos os lados negativos do progresso e do atraso, ao juntarmos a poltica retrgrada do monoplio de terras agrcolas, expulsando os produtores, com o efeito moderno do desemprego que hoje afeta os pases mais desenvolvidos. A populao pobre do pas, expulsa ontem do campo e hoje excluda do emprego urbano, gera a situao explosiva que constatamos nas cidades e no campo neste incio de sculo.

    Esta evoluo leva por sua vez ao surgimento de um conjunto de atitudes defensivas nos pases em desenvolvimento, que podemos chamar de estratgias familiares de sobrevivncia, que segmentam e desarticulam o universo do trabalho.

    Sem entrar no detalhe do processo, alguns exemplos permitem um dimensionamento preliminar. Na cidade de So Paulo so roubados diariamente algo como 420 automveis. Estimando um valor mdio de 5 mil reais por unidade, e multiplicando por 365 dias, chegamos a uma economia que fatura cerca de 700 milhes de reais por ano. Com estimativas grosseiras que acrescentam as drogas, a prostituio e jogos ilegais como o video-pquer, chegamos a uma ordem de grandeza de 3 bilhes, numa cidade onde a receita pblica para cuidar de sade, educao, infraestrutura urbana etc., da ordem de 6 bilhes. Se acrescentarmos os custos indiretos gerados por esta economia ilegal, os nmeros se avolumam rapidamente. Para o pas todo, Ib Teixeira estimou que as empresas gastam algo como 28 bilhes de dlares por ano em segurana, custo indireto que resulta da prpria expanso do setor ilegal. J no so cifras marginais,

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    excepcionais. Trata-se de atividades econmicas fortemente articuladas com o sistema formal de produo. E envolvem atividades to diversificadas como o comrcio ilegal de armas, a agricultura destinada fabricao de entorpecentes, os desmatamentos ilegais que devastam grandes regies, a sobre-pesca em reas fragilizadas, os loteamentos ilegais de especuladores imobilirios que jogam populaes miserveis em reas de mananciais, o comrcio internacional de prostitutas infantis, o trfico de rgos humanos para transplante e assim por diante.12

    Constatamos assim que o processo de avano tecnolgico sem as transformaes institucionais correspondentes, leva a uma nova hierarquizao do trabalho caracterstica do subdesenvolvimento tecnificado. No topo da pirmide, o emprego nobre no setor formal, com salrios relativamente elevados e normas de trabalho relativamente respeitadas, mas envolvendo um segmento minoritrio da populao, tanto em volume como em termos de distribuio por pases. Mais abaixo, o conjunto de atividades terceirizadas mais ou menos instveis, onde a precariedade leva a uma grande insegurana, e gera um volume elevado de pequenas e mdias empresas de elevadssima taxa de mortalidade. Em torno deste espao formal, desenvolve-se um amplo sistema de economia informal, que hoje ocupa frequentemente um tero da totalidade de mo de obra, e onde os nveis salariais, respeito a normas de trabalho e preservao ambiental so cada vez mais baixos. Finalmente, uma massa hoje muito significativa da mo de obra opta pela economia ilegal, ou subterrnea, desarticulando e desagregando rapidamente a sociedade, como tem sido constatado por exemplo desde as favelas do Rio de Janeiro at a produo popular de coca na Colmbia, ou as invases de empresas de gado na Amaznia.

    O elemento mais importante deste processo, que a hierarquizao no constitui um resqucio do passado, o resultado da modernidade no ter chegado ainda aos rinces atrasados. Pelo contrrio, a prpria incluso elitista que gera a excluso e formas precrias de sobrevivncia. Isto implica que as alternativas propostas no podem se resumir poltica de qualificao, por exemplo, para resgatar a empregabilidade individual. Cada nvel desta hierarquia constitui dinmicas coerentes e articuladas, e a reconstruo passa pela gerao de dinmicas integradas de insero econmica, social, cultural e poltica.

    Vimos nesta primeira parte algumas macro-tendncias que condicionam os rumos do trabalho. Um ponto importante que a dinmica tecnolgica, pela amplitude das transformaes, cria um novo referencial para o trabalho, mudando em profundidade as relaes tcnicas e sociais de produo. Neste sentido, tentar apenas frear o movimento

    12 - No plano internacional a economia ilegal foi estimada em um trilho de dlares por ano pelas Naes

    Unidas, equivalente ao PIB do conjunto dos paises de renda baixa do mundo, que representam mais de 3 bilhes de habitantes. Segundo estudo do professor Chossudovsky, da universidade de Ottawa, os progressos das tcnicas bancrias e das telecomunicaes oferecem amplas possibilidades de fazer rapidamente circular e desaparecer os lucros das transaes ilcitas. Participam do processo governos, grandes empresas transnacionais, os cerca de 55 parasos fiscais do planeta, e organizaes acima de qualquer susbpeita como os bancos suios ou a American Express. - Michel Chodussovsky, La corruption mondialise, Le Monde Diplomatique, Manire de Voir 33, Fvrier 1997

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    no ser suficiente, particularmente num pas em desenvolvimento, que tem poucas possibilidades de alterar o referencial externo. Mais do que tentar impedir as transformaes, trata-se de promov-las de maneira organizada.

    O processo de globalizao est inscrito nas dinmicas tecnolgicas, e a conectividade global do planeta no ser revertida. Isto implica numa mudana profunda dos ordenamentos espaciais dos processos produtivos, e na reduo do controle efetivo por parte dos estados nacionais. A globalizao sendo profundamente desigual segundo os setores, trata-se de investir nas reas onde as economias de localizao so mais fortes, e de estudar de forma geral as vantagens que podem ser tiradas do processo. Por exemplo, a rea onde o Brasil mais necessita investir, que no social, pouco globalizada, e abre-se um imenso espao de expanso que no exige entrar nas dinmicas de reengenharia, downsizing, terceirizao etc.

    Em outros termos, temos de avanar para polticas diferenciadas, e afinadas com condies especficas dos diversos setores e dos diversos patamares tecnolgicos de produo. As grandes simplificaes, que minimizam o problema sugerindo uma simples transio, ou consideram que haver uma destruio generalizada dos empregos, no nos ajudam a construir uma agenda realista para o futuro do trabalho.

    A compreenso do processo de urbanizao essencial. O Brasil sofreu uma urbanizao extremamente acelerada, e que se deu mais por expulso do campo, durante o tempo dos militares em particular, do que por atrao urbana. O resultado o afluxo de uma grande massa de pobres, sem que houvesse nas cidades uma expanso correspondente de empregos. A existncia de uma grande massa de excludos, praticamente nas periferias de todas as cidades do pas, pesar de maneira permanente e poderosa em qualquer negociao de condies de trabalho, de modificao das relaes do trabalho.

    A sub-utilizao dos nossos recursos humanos portanto estrutural, e constitui o fator dominante da baixa produtividade econmica do pas, alm do drama social e cultural que representa. provvel, inclusive, que as tenses atuais levem finalmente a que se abra espao para uma reforma em profundidade das relaes de trabalho absurdas que casam o atraso poltico do estilo Casa Grande Senzala, com os impactos negativos das tecnologias mais avanadas. O nosso processo, at hoje, caracteriza-se por esta herana do pior dos dois mundos: de um lado, os privilgios, corrupo e truculncia poltica dos grupos dominantes, com a concentrao da renda e o imenso desemprego; por outro lado, as tendncias desarticuladoras das tecnologias modernas, do enxugamento, da nova concentrao de renda.

    Em termos das dinmicas setoriais, o ponto chave que no devemos tanto nos concentrar nas dinmicas da nova economia, tentando por exemplo salvar empregos nos setores de ponta, como no impacto que estas tecnologias geram, de maneira diferenciada, nos setores tradicionais. o conjunto do quadro que est mudando.13

    13 Ver IBGE, Sntese de Indicadores Sociais 2000, IBGE, Rio de Janeiro 2000: Com respeito populao

    ocupada por ramos de atividade, observa-se (no perodo 1992-1999) que a indstria de transformao e

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    Finalmente, geram-se, no quadro da hierarquizao do trabalho, subsistemas scio-econmicos profundamente diferenciados, o que torna muito difcil buscar solues-padro. diferente a dinmica de proteo para os trabalhadores do setor de ponta, das reas de trabalho precrio, do setor informal, ou ainda do amplo segmento de atividades ilegais que surge.

    A prpria multiplicidade dos eixos de mudana torna obsoletas as grandes proclamaes ideolgicas simplificadoras. Nos pontos que seguem, procuraremos organizar estas dinmicas diferenciadas, mais no sentido de sistematizar os pontos chave do que de buscar respostas imediatas.

    II O TRABALHO: EIXOS DE MUDANA

    No conjunto, observa-se uma grande distncia entre a rapidez e profundidade das transformaes do trabalho, e a relativamente frgil dinmica de reorganizao de polticas nos sindicatos, nas reas de pesquisa, na legislao, nos prprios partidos polticos.

    6 Os vnculos de emprego importante lembrar antes de tudo que o vnculo formal salarial nunca se firmou como dominante no Brasil. Isto aparente na prpria participao dos salrios no Pib, que baixou de 45% do Pib no incio dos anos 1990, para 37% no ano 2000. Como nos pases desenvolvidos os salrios se aproximam de 2/3 a do Pib, a diferena imensa. Simplesmente, o trabalho assalariado no a forma dominante de se ganhar a vida no Brasil, e a sua importncia decresce rapidamente. No total de 72 milhes de pessoas que compem a populao ocupada do pas (PEA menos desocupados, seguindo o critrio estreito do IBGE) temos apenas 37 milhes de empregados, 51% do total. Destes, 61%, ou 19,6 milhes, so formalmente registrados atravs da carteira de trabalho.14

    O segundo ponto relativo aos vnculos de trabalho a diversidade e mutabilidade das situaes. Estamos acostumados, em geral, pelo prprio foco das pesquisas e das estatsticas, a olhar o segmento de ponta do mundo do trabalho, os formalmente registrados. A pesquisa sobre o informal urbano do Ibge, de 1997, aponta para um

    outras atividades industriais mantiveram sua participao na PEA. O comportamento ocupacional na Construo Civil, tambm no apresentou grandes alteraes. Comrcio, Prestao de Servios e Outros Servios apresentaram ligeiro crescimento. P. 117 14

    - Ver dados completos na PNAD, Sntese de Indicadores 1999, IBGE, Rio de Janeiro 2000, p. 101; os dados no incluem aqui os empregados domsticos, que so 5,3 milhes, dos quais 4 milhes sem carteira assinada. A distribuio percentual da populao ocupada por tipo de vnculo, apresentada na pgina 110 da Sntese a seguinte: Empregados, 51,4%; Trabalhadores domsticos, 7,4%; Conta-prpria, 23,2%; Empregador, 4,1%; No-remunerado, 9,3%; Trabalhador para prprio consumo, 4,5%; Trabalhador na construo para prprio uso, 0,2%.

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    universo de 12,9 milhes de trabalhadores, dos quais 86% autnomos, que trabalham com pequena produo e prestao de servios de manuteno domstica e semelhantes. Se utilizarmos como referncia uma Pea de 79 milhes, e com o desemprego calculado pelo IBGE, teremos um universo de ocupados da ordem de 72 milhes de pessoas. Tirando 17 milhes ocupados na agricultura, so 65 milhes: o universo do trabalho informal urbano analisado pelo IBGE, com 13 milhes de trabalhadores, representaria assim mais de um quinto da mo de obra, enfrentando problemas de organizao, de seguridade, de condies de trabalho, de sade e outros muito especficos.15

    Este universo extremamente diferenciado, exigindo tratamentos especficos. Um levantamento dos motoboys, por exemplo, hoje classificados mais nobremente como mensageiros, apresentou na grande So Paulo um nmero de 150 mil trabalhadores, na categoria de vnculos precrios, vivendo em condies de extremo perigo, dada a cultura de trnsito da cidade, sofrendo um impacto dramtico da poluio, dos acidentes, da tenso dos enfrentamentos agressivos no trnsito. impressionante esta regresso a comportamentos violentos e a um trabalho totalmente desprotegido, e que resulta diretamente da prpria riqueza da cidade, que se enche de automveis, sem investir no transporte coletivo. Como a cidade se paralisa, surgem os motoqueiros que ocupam os ltimos espaos da rua, os estreitos corredores entre os carros.

    Outro universo diferenciado em termos de vnculo de trabalho o dos empregados domsticos. O IBGE, na Sntese de Indicadores Sociais 2001, considera que no caso da categoria dos trabalhadores domsticos, a posse da carteira de trabalho aumentou, alcanando 25% da categoria em 1999, enquanto, em 1992, no chegava a 18%. Estes resultados so bastante diferenciados pelo pas. No Norte, apenas 6,8% destes trabalhadores tm posse de carteira, contrastando cm o Sudeste onde a proporo de 32,1%.16

    O mesmo relatrio nota a situao particular dos idosos. Trata-se de um segmento da populao em rpido crescimento, com 11,4 milhes de pessoas com mais de 60 anos em 1992, e 14,5 milhes em 1999. Em 1999, segundo a Sntese, mais de um tero dos idosos ainda se encontrava no mercado de trabalho...Este contingente representa 4,5 milhes de pessoas sendo que 3 milhes destes so aposentados ou pensionistas. Na categoria dos aposentados e pensionistas encontravam-se 77% dos idosos do pas.17

    A mesma ausncia do Estado, de planejamento e de distribuio de renda, leva ao surgimento de uma imensa rea, tambm profundamente diversificada, da chamada segurana. Na hierarquizao que vimos acima, temos polcias e seguranas formais,

    15 A Pesquisa do IBGE, O Informal Urbano 1997, publicada em 1999, cobre segmento de delimitao

    precria. Muitos dos empregos referem-se simplesmente a micro-empresas. Ainda assim, permite ter uma ordem de grandeza da distribuio das ocupaes informais. Para a populao ocupada na agricultura, veja PNAD, Sntese de Indicadores 1999, p. 101 16

    IBGE, Sntese de Indicadores Sociais 2001, IBGE, Rio de Janeiro 2001, p. 116 e 117 17

    idem, p. 272 importante notar que apenas 26,9% dos idosos possuem planos de sade, porcentagem que baixa para 13% no Nordeste; Marcio Pochman, em Emprego na Globalizao, apresenta a cifra de 5,3 milhes de aposentados e pensionistas que trabalham em 1998. Segundo a PNAD 1999, os idosos (mais de 60 anos) representam, com 4,6 milhes de trabalhadores, 6,4% da populao ocupada.

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    sub-contratados precrios, um imenso segmento informal que presta uma ajuda em cada quarteiro, que nos ajuda a estacionar, alm dos francamente ilegais que nos extorquem. A confuso aumenta com o cruzamento destas atividades: muitos policiais formais fazem uma segunda jornada em qualquer um destes sub-sistemas, tanto em atividades formais privadas como em informais e ilegais.18

    Os prprios sistemas de terceirizao se diversificam. Alm dos tradicionais segmentos de limpeza, estacionamento, transporte, segurana, ressurgem sistemas de trabalho a domiclio. Na rea txtil, por exemplo, surge o faonismo: O capitalismo contemporneo vem se utilizando crescentemente das formas pretritas e arcaicas de trabalhos externos ao cho produtivo, de que exemplo o faonismo, individualizando e precarizando crescentemente o trabalho neste setor, por meio de vrias formas de contrato de trabalho por pea, a domiclio, temporrio etc.19 O Estudo de Juliana Coli avalia corretamente a dinmica econmica que preside ao processo: trata-se no s de flexibilizar a produo, mas de transferir para terceiros o risco que o mercado oferece.20

    muito importante acompanhar na agricultura uma forma semelhante de externalizao da produo, nas relaes com grandes empresas agro-industriais como a Batavo, a Parmalat, a Sadia, a Souza Cruz, a Cica e outras. Basicamente, trata-se de fomentar a produo de pequenos produtores que trabalharo segundo especificaes tcnicas extremamente rigorosas da empresa que comanda a cadeia tcnica numa regio e fornece freqentemente a prpria matria prima. Apesar de representarem um monopsnio em termos comprador nico, sem alternativas para o pequeno produtor, estas empresas cantam loas aos mecanismos de mercado, forando os pequenos produtores a competirem entre si. O resultado prtico uma forma de proletarizao de um produtor proprietrio dos seus meios de produo. Dados esparsos que nos chegam mostram que um produtor de leite recebe menos de 10 centvos por litro produzido de leite, que o produtor do fumo recebe o valor de menos de meio cigarro de cada mao que se vende e assim por diante. Aqui, qualquer queda do mercado no gera acmulo de estoques no produtor final, mas reduo das encomendas junto aos pequenos produtores, que arcaro com o impacto da crise. Gera-se assim um capital de risco acoplado a um poderoso mecanismo de transferncia do risco ao prprio trabalhador.

    Mais recentemente tm surgido as pseudo-cooperativas, que consistem em formas disfaradas de terceirizao: um elo da cadeia produtiva de uma empresa

    18 - Uma metodologia interessante que acompanhamos na frica, de se estudar a estratgia familiar de

    sobrevivncia: a pesquisa por unidade familiar permite entender bastante melhor como se monta a arquitetura de atividades que permite combinar diversos vnculos, todos contribuindo para a mesma unidade. 19

    Ricardo Antunes, no prefcio ao estudo de Juliana Coli, A Trama da Terceirizao, ed. Unicamp, Campinas 2000. A autora estuda o setor txtil de Americana. A relao de subordinao, escreve a autora, se manifesta pela via da caracterizao do prprio tipo de relao estabelecida entre as empresas e os faonistas. O controle por parte da empresa do fornecimento da matria prima, da quantidade e da qualidade do trabalho e, principalmente, do preo por metro torna inexistente qualquer tipo de autonomia ou independncia do faonista em relao sua produo. P. 12 20

    idem, p. 56

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    desmembrado, e confia-se a sua produo a um grupo de trabalhadores, que perdem a sua relao empregatcia e os direitos sociais, e passam a ser fornecedores autnomos da mesma empresa. importante notar que neste vnculo no se constri nenhuma das formas ricas de capital social que o cooperativismo pode gerar, quando obedece a uma viso de solidariedade social e a uma cultura de colaborao.

    A facilidade de realizar trabalho a distncia, por sua vez, tem levado as empresas a agrupar tarefas por pacotes, que so entregues a diversos tipos de profissionais que passam a trabalhar por tarefa, em casa ou no escritrio, funcionando de certa maneira como consultores, sem vnculo formal com as empresas. uma frmula que tem se desenvolvido em particular em certas reas avanadas, como servios informticos, e no representam necessariamente uma evoluo negativa, pois poder comprar horas de servios especializados pode ser interessante para uma pequena empresa que no tem como sustentar, e s vezes nem tem a necessidade, de um tcnico permanente muito especializado.

    preciso prestar ateno, tambm aos novos vnculos de profissionais liberais. Um mdico, por exemplo, raramente consegue hoje se sustentar se no pertencer a um plano de sade. Os pagamentos so absurdamente baixos, e o ritmo de trabalho nos leva de volta aos filmes de Charlie Chaplin, com a diferena que no lugar dos parafusos esto os pacientes. A remunerao se d por pontos, e os pontos no esto ligados sade do paciente. Em outros termos, o mdico remunerado por sua eficincia financeira, ao contratar ou recusar de contratar determinados servios, anlises etc., e no pela sua capacidade efetiva de melhorar a sade do paciente. Este novo taylorismo sanitrio tem resultados desastrosos no s para o paciente, como para o prprio mdico, que se sente humilhado na relao de trabalho, e intil em termos de realizao profissional.

    Deve-se ainda mencionar um outro sub-produto dos avanos tecnolgicos, que a locao de mo de obra. Hoje uma empresa como Manpower tem um plantel de mais de 400 mil trabalhadores, e os seus cadastros informatizados permitem mover trabalhadores de uma tarefa a outra, sem nenhum vnculo de relaes profissionais, de sociabilidade ou de afetividade com uma comunidade profissional, com um bairro, com colegas. Os trabalhadores so simplesmente empurrados de um casulo de trabalho para outro, perdem gradualmente qualquer interesse com o ambiente onde efetivamente trabalham, e o seu vnculo apenas com o cadastro da empresa de aluguel.

    De forma geral, estamos indiscutivelmente assistindo a uma imensa flexibilizao dos vnculos de trabalho, flexibilizao que adota formas muito diversificadas, e que surgem com tal ritmo, que de maneira geral tornou-se extremamente difcil acompanhar os diversos subsistemas que esto se formando. A precarizao parece ser um denominador comum do processo, ainda que nem todas as formas ou tendncias sejam negativas. Todos nos ressentimos da grande necessidade de realizar estudos setoriais que permitam evidenciar estas novas tendncias, e analis-las adequadamente.

    essencial entender que os sistemas de proteo tradicionais buscam regulamentar uma realidade antiga, cujo peso especfico no mundo do trabalho ainda significativo, mas est declinando rapidamente. O universo de trabalhadores desprotegidos, com isto,

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    aumenta fortemente, exigindo a definio dos sistemas de apoio mais amplos, com referenciais novos de cobertura.21

    7 A remunerao do trabalho A flexibilizao dos vnculos reflete-se nas remuneraes do trabalhador. Um primeiro ponto de referncia, j visto acima, a baixa participao dos salrios no Pib, atualmente da ordem de 37%, quando atinge dois teros do Pib, como ordem de grandeza, nos pases em desenvolvimento. Muito se escreveu sobre o peso dos encargos sociais no Brasil, e a cifra que sempre mencionada a de 100% de encargos. Um pequeno raciocnio de Mrcio Pochmann nos traz de volta realidade: 100% de encargos sobre um salrio industrial de 2,9 dlares por hora, representa um custo total da mo de obra de 5,8 dlares. Os Estados Unidos tero um encargo menor em porcentagem, mas incidindo sobre um salrio de 14 dlares, o que significa um custo total da mo de obra incomparavelmente maior. Isto sem mencionar os custos da Alemanha, da ordem de 30 dlares. 22

    baixa remunerao salarial de forma geral, preciso acrescentar a desigualdade na remunerao. A dimenso do problema pode ser vista nesta avaliao do Banco Mundial: Os ganhos de engenheiros em Frankfurt, na Alemanha, so 56 vezes maiores que os ganhos de mulheres no qualificadas na indstria txtil em Nairobi, no Kenya. Parte desta diferena resulta da estrutura de remunerao das ocupaes dentro de cada economia a relao do salrio de engenheiro e da trabalhadora no qualificada no setor txtil de 8 para 1 em Nairobi, e 3 para 1 em Frankfurt. E outra parte resulta das diferenas internacionais de pagamentos por trabalho semelhante a relao salarial entre um engenheiro alemo e o seu colega kenyano de 7 pra 1, enquanto a relao salarial de duas trabalhadoras do setor txtil, na Alemanha e no Kenya, de 18 para 1.23

    O Banco Mundial no otimista quanto ao futuro: No h uma tendncia mundial para uma convergncia entre trabalhadores ricos e pobres. Na realidade, h riscos que os

    21 - O problema, no Brasil, mais grave, mas se manifesta tambm, por exemplo, nos Estados Unidos:

    Est se tornando claro para muitos que, como eu tenho discutido, as leis que colocam responsabilidades sobre empregadores, referentes a salrios, horrios, condies de trabalho, negociao coletiva e outros aspectos do emprego pouco ajudam o nmero crescente de trabalhadores sob contrato, trabalhadores contingenciais, free-lancers, e-lancers, vendedores por comisso, trabalhadores profissionais e de gesto, e todos os que vendem os seus servios diretamente na nova economia. Em muitas partes da economia, est se tornando difcil at de determinar quem o empregador e quem o empregado. Robert Reich, The Future of Success, Alfred Knopf, New York, 2001, p. 238 22

    Pases como Alemanha, Noruega, Blgica tm o custo horrio da mo de obra na indstria acima de US$20, enquanto Dinamarca, Sucia, Japo, Frana e Estados Unidos apresentam custos superiores a US$15 a hora. Na Espanha, seguida pela Nova Zelndia e pelos chamados Tigres Asiticos (Taiwan, Cingapura, Coria do Sul), o custo situa-se na faixa de US$4 a US$ 10. No Brasil, este custo situa-se na faixa de US$3, custo semelhante ao do Mxico e da mdia dos pases da Amrica Latina, porm superior aos custos de pases como China, Rssia e outros. Anselmo Luis dos Santos e Marcio Pochmann O custo do Trabalho e a Competitividade Internacional pgina 206 e ss., citando o trabalho de A. L. Santos, Encargos Sociais e Custo do Trabalho no Brasil, Campinas, IE/Unicamp, mimeo 23

    Banco Mundial, World Development Report1995, Washington , p. 11

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    trabalhadores nos pases mais pobres caiam ainda mais para trs, na medida em que os investimentos e avanos educacionais se tornam mais dispares.

    A desigualdade nas remuneraes salariais uma caracterstica tambm do Brasil. Em relao qualificao profissional, observa-se que no Brasil o nvel mdio das remuneraes no setor administrativo quase dez vezes superior ao do operrio. Nos pases industrializados selecionados, a diferena entre o nvel de remunerao do setor administrativo e do operrio no alcana trs vezes. As diferenas entre os nveis mdios de remunerao por tempo de servio e por tamanho de estabelecimento no setor industrial brasileiro superam significativamente as dos pases industrializados selecionados. A magnitude das desigualdades de remunerao est associada tanto ao padro de uso da fora de trabalho quanto ao modo com que os salrios so determinados em cada pas (atuao sindical, funcionamento do mercado de trabalho, estatuto do trabalho, entre outros).24

    Um desnvel importante pode tambm ser encontrado entre salrios de homem e de mulher: para funes iguais, a mulher recebe 60% do salrio que receberia o homem. Este ponto pode ter impactos dramticos, pela elevada incidncia de mulheres que sustentam a famlia sozinhas.

    Uma avaliao das remuneraes, apresentada na Sntese dos Indicadores Sociais 2000, do IBGE, indica que o rendimento mdio dos ocupados com remunerao cresceu substancialmente de 1992 para 1999, de R$ 402,45 para R$ 525,10, com flutuaes durante o perodo. No conjunto, o nvel de remunerao continua extremamente baixo. Outra caracterstica a desigualdade regional: A regio Sudeste continua, em 1999, apresentando o maior valor de rendimento mdio dos ocupados: R$ 631,20 enquanto o Nordeste apresentou o menor, R$ 314,70. Uma terceira caracterstica, a desigualdade entre altos e baixos rendimentos: Quando se analisa o rendimento mdio dos 10% mais ricos da distribuio da renda (medida em salrios mnimos) verifica-se um crescimento substancial no perodo, passando de 13,33 salrios mnimos a 17,63 salrios mnimos, enquanto aqueles que se encontram nos 40% mais pobres no chegaram a ultrapassar sequer 1 salrio mnimo de rendimento mdio (0,94 salrio mnimo), em 1999, embora em 1992 tivessem apenas 0,70 salrio mnimo.

    Na avaliao do IBGE, As consequncias dessa desigualdade podem ser melhor apreciadas quando se comparam alguns indicadores sobre a populao inserida nestes estratos da distribuio de renda. Nos 10% mais ricos, cerca de 80,1% de domiclios tinham saneamento bsico adequado, enquanto nos 40% mais pobres a proporo era de apenas 32,3%. Tambm, o percentual de estudantes de nvel superior muito desigual: nos 10% mais ricos, verificou-se um percentual de 21,0,% dos estudantes de nvel superior de 20 a 24 anos, enquanto nos 40% mais pobres a proporo era insignificante, 2,6%.25

    24 ver Anselmo Luis dos Santos e Marcio Pochmann O custo do Trabalho e a Competitividade

    Internacional pgina 201 e ss. ; in Carlos Alonso de Oliveira e Jorge Eduardo Levi Mattoso (Orgs) Crise e Trabalho no Brasil - Ed. Scritta, So Paulo, 1996 25

    IBGE, Sntese de Indicadores Sociais 2000, IBGE, Rio de Janeiro 2001, p. 117 e 118

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    A tendncia geral, portanto, continua no sentido da hierarquizao do trabalho, da fragilizao dos vnculos, e da crescente desigualdade da remunerao. Na continuidade do processo, o que temos pela frente uma fratura social cada vez mais profunda. A partir de um certo nvel, as desigualdades generalizam um clima de insegurana, e passam a tornar a prpria economia ineficiente, transformando-se num crculo vicioso de desorganizao social. No existe nenhuma tendncia espontnea no sentido do reequilibramento social. Os segmentos mais frgeis da sociedade so empurrados para uma situao cada vez mais catastrfica, enquanto segmentos minoritrios optam por diversos tipos de corporativismo, que pode ser encontrado na classe dos advogados, dos economistas, dos jornalistas, dos polticos, formando casulos inseguros mas confortveis. Com a excluso de grandes massas numa ponta, e a formao de rgidas defesas corporativas na outra, a sociedade perde simplesmente a capacidade de mudana, que o que mais se necessita frente s transformaes em curso. Assim as mudanas tecnolgicas ficam cada vez mais divorciadas dos processos polticos e sociais.

    8 O tempo de trabalho O tempo de trabalho est aflorando como problema central. Na medida em que as tecnologias permitem uma produtividade mais elevada, aparece cada vez mais como absurda uma situao onde por um lado h gente que se torna neurtica por excesso de trabalho, desarticulando inclusive a vida social e a vida familiar, e por outro lado uma imensa maioria que se sente excluda do processo, por no ter acesso ao emprego, ou por se ver obrigada a inventar formas de sobrevivncia cada vez mais surrealistas. Quando o planeta produz 5 mil dlares de bens e servios por pessoa e por ano, preciso constatar que o essencial no produzir mais, mas produzir melhor, coisas mais teis, e de uma forma que no nos impea de viver. O motto de uma recente conferncia de economistas, resume bem a nova conscincia que aflora: crescer por crescer a lgica da clula cancerosa.

    O tempo, nico recurso efetivamente no renovvel, constitui um elemento essencial da nossa qualidade de vida, e a jornada de trabalho volta hoje tona, depois de algumas dcadas de relativa calma neste aspecto. Guy Aznar, Andr Gorz e outros trazem com fora o fato da produtividade crescente exigir uma redistribuio mais racional do estoque de empregos, sobretudo considerando o problema do desemprego.

    Mas h outros fatores que concorrem. A urbanizao e o peso das metrpoles, em particular, transformaram o transporte at o local do trabalho num martrio para muita gente, sendo freqentes deslocamentos dirios de vrias horas. Longe de ser secundrio, este elemento de estresse e de esgotamento tem forte impacto sobre a produtividade do trabalho, e priva o trabalhador de uma fatia importante do seu tempo de vida.

    Um outro fator significativo a crescente contradio entre o que se exige do trabalhador nos setores mais avanados, em termos de conhecimento, competncia e criatividade, e a jornada exaustiva. Na era do knowledge organization, kan-ban, kaizen,

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    qualidade total e outras exigncias da modernidade, as condies fsicas e mentais da criatividade precisam ser repensadas.

    Numa viso mais ampla, adquire grande importncia o prprio deslocamento dos eixos dinmicos da economia, com cada vez mais atividades de hotelaria, de restaurantes, de turismo, lazer, cultura e outras que tm em comum o fato de exigirem tempo disponvel por parte da populao. interessante ter sido reeditado no Brasil o livro de Paul Lafargue, O Direito Preguia, de 1880, e que ganha nova atualidade. Segundo Lafargue, a reduo da jornada teria como objetivo fazer com que os operrios comecem a praticar as virtudes da preguia, que seriam: o prazer da vida boa (festas, danas, msica, sexo, ocupao com as crianas, lazer e descanso) e o tempo para pensar e desfrutar da cultura, das cincias e das artes.26 O comentrio de Marilena Chau, na introduo do livro, diz tudo: Longe, portanto, de o direito preguia ter sido superado pelos acontecimentos, ele que, numa sociedade que j no precisa de explorao mortal da fora de trabalho, pode resgatar a dignidade e o auto-respeito dos trabalhadores.

    A experincia da Frana, que a partir de 1999 passou a adotar a semana de 35 horas, constitui um passo muito significativo. Apesar das numerosas crticas de quem via na medida uma interveno indevida do Estado, o fato que a Frana conheceu uma reduo drstica do desemprego, e um forte aumento de produtividade, levando o pas a assumir o papel de locomotiva da economia europia, no lugar da Alemanha. A Lei Aubry, que institui os novos horrios, permite tambm visualizar dificuldades e resistncias. Mas o essencial, que a equao funciona em termos macroeconmicos, pois ao se aumentar o nvel de emprego, reduzem-se as contribuies do Estado para sustentar desempregados, e os recursos economizados podem ser redistribudos sob forma de isenes para empresas, ou subvenes para os trabalhadores. Um novo equilbrio encontrado, com os trabalhadores trabalhando menos horas, e mais gente trabalhando. a essncia da proposta de Guy Aznar, Trabalhar Menos para Trabalharem Todos.27

    No entanto, um novo arranjo teve de ser negociado e ainda est sendo em boa parte negociado entre os trs personagens, o Estado, os trabalhadores e os empresrios. Muitos trabalhadores querem manter a totalidade de vencimentos, e buscam horas

    26 Ver artigo de Antnio Rangel, O tempo livre para viver, Debate Sindical maro-maio 2001;

    interessante notar que em 1930 Keynes fazia uma sugesto muito semelhante, pensando no fim do sculo: Vamos ter de compartilhar o trabalho da maneira mais ampla possvel. Turnos de trs horas ou uma semana de quinze horas podero adiar o problema por um longo perodo. Pois trs horas por dia so mais do que suficientes para satisfazer o Ado em cada um de ns. John M. Keynes, Economic Possibilities for our Grandchildren, Essays in Persuasion, 1930, London, Norton & Company, 1963; Bertrand Russel, no texto In Praise of Idleness, j escrevia em 1935 que quatro horas de trabalho dirio de todos os indivduos adultos seriam suficientes para produzir todo o conforto material que pesoas razoveis poderiam desejar. Hoje, porm, devido motivao do lucro, o lazer no pode ser distribudo de maneira uniforme: alguns ficam sobrecarregados de trabalho, outros sem trabalho nenhum. Ver o texto completo na excelente publicao de Domenico de Masi, A Economia do cio, que rene os textos do prprio De Masi, de Bertrand Russel e de Paul Lafargue, ed. Sextante, Rio de Janeiro 2001, [email protected] 27

    Guy Aznar, Trabalhar Menos para Trabalharem Todos, Editora Scritta, So Paulo 1995

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    extras, que passam a ser contadas a partir de 35 horas semanais. O Estado transforma o dinheiro que usava para sustentar desempregados em apoio s empresas que contratem mais empregados. As empresas negociam diretamente com os sindicatos a nova distribuio de tempo e remunerao: negocia-se o aumento de empregos, o banco de horas que transforma excesso de horas trabalhadas em crdito para perodo de descanso e assim por diante. O resultado no apenas positivo: a maior fora de negociao empresarial pode aproveitar a brecha de flexibilizao para buscar vantagens.

    No conjunto, trata-se de um novo patamar de negociao onde o Estado consegue dinamizar a economia, os trabalhadores passam a ter mais empregos, e os empresrios conseguem maior produtividade e mais mercados. Esta viso importante, pois grande parte das dificuldades de se adaptar as relaes de trabalho s novas relaes tcnicas de produo vm do fato dos atores sociais se agarrarem a vantagens adquiridas, movidos mais pela insegurana do que pela construo dos novos equilbrios necessrios. A filosofia do Win-Win, de Hazel Henderson, (traduzido no Brasil como Construindo um Mundo onde Todos Ganham), aqui essencial, pois as tentativas empresariais de arrancar vantagens a qualquer preo simplesmente imobilizam o sistema. 28

    Enquanto as novas tecnologias no do lugar a reformulaes mais amplas de relaes sociais de trabalho, e com a insuficiente fora poltica e sindical de criar esta plataforma de negociao, multiplicam-se micro-experincias de forma catica. Assim que, por exemplo, a informtica permite o controle individualizado dos trabalhadores com rigorosa eficincia. Robert Kuttner traz o exemplo de uma grande empresa onde atendentes de relaes pblicas respondem por telefone a reclamaes de clientes: o computador controla os intervalos, e o empregado tem direito a dois segundos entre uma chamada e outra. o avano tecnolgico servindo a regresso aos ritmos de incio do sculo XX. Grande parte das empresas norte-americanas hoje exigem que os trabalhadores usem um localizador eletrnico no pescoo, e o computador registra ausncias, locais ou colegas visitados durante o trabalho, gerando um ambiente perfeito de Big Brother.29

    importante notar que estas mesmas tecnologias abrem perspectivas menos sinistras. Usada com bom-senso, a nova conectividade via computador ou celular deveria permitir muito mais flexibilidade no uso do tempo, sem prejudicar os processos produtivos. Sem nenhuma tecnologia, muitas empresas instalam hoje salas de sesta, pois constataram que a produtividade tarde muito baixa, e que quarenta minutos de descanso, incluindo uma boa soneca, renovam uma pessoa. O trabalho domiciliar pode constituir um fator reapropriao de horrios e de ritmos pelo trabalhador, mas pode tambm constituir um

    28 Hazel Henderson, Construindo um Mundo onde Todos Ganham, ed. Cultrix 1996; sobre a experincia

    francesa, ver a boa anlise de Andria Galvo, 35 horas de trabalho: a experincia francesa em questo - Debate Sindical, Maro-Maio 2001, So Paulo (11) 289-1496 29

    A tecnologia a mesma que permite que um bracelete eletrnico, colocado no pulso de um condenado sob liberdade condicional, alerte a polcia se a pessoa sai dos espaos que lhe foram determinados. Um excelente dossi sobre estas novas tecnologias e o seu uso para controle das pessoas encontra-se em Socits sous Controle, Manire de Voir n56, Mars-Avril 2001, Le Monde Diplomatique, www.diplo.com.br

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    fator de explorao ou de informalizao, alm de levar desarticulao da vida das pessoas.30

    No conjunto, as tecnologias evoluem rapidamente, e as adaptaes da organizao social s novas condies tcnicas se do de maneira catica e perversa. As pessoas esto trabalhando mais, sentindo-se mais inseguras e estressadas, e sentem sobretudo uma perda generalizada do controle sobre as suas vidas.

    Keynes escreveu em 1930 um curto ensaio extremamente interessante, prevendo como seria o mundo no fim do sculo: Assim, pela primeira vez desde a sua criao, o homem dever enfrentar o seu problema permanente como utilizar a sua liberao da presso das preocupaes econmicas, como ocupar o seu lazer que a cincia e os juros acumulados tero ganho para ele, para viver com sabedoria, agradavelmente e bem. A realidade que temos todo o potencial tecnolgico e econmico para viver agradavelmente e bem. Falta-nos a sabedoria, a capacidade de organizao poltica e social.

    9 A subjetividade no trabalho De forma geral, o debate tem se centrado bastante nas dimenses materiais do trabalho, que apresentam realmente aspectos dramticos, mas insuficientemente sobre as dimenses psicolgicas, sobre como as pessoas se sentem no trabalho, ou fora dele, no clima geral de insegurana criado. Outro fator que tem dificultado a compreenso dos processos, a segmentao excessiva dos diversos aspectos do trabalho, prejudicando a viso de conjunto, e a compreenso da transformao extremamente ampla, tecnolgica, institucional, social, cultural e poltica que est ocorrendo. Estamos passando por uma transformao em profundidade de todo o universo do trabalho.

    O desafio sistmico. Keynes j se espantava, em 1930, com a imensa anomalia do desemprego num mundo cheio de necessidades. Todos sentimos os absurdos desta situao. Hazel Henderson traz um comentrio interessante de pequenos empresrios: Ser que no h nada alm da infindvel competio, como ratos, nesta competio econmica global (global economic rat race). Ser que os resultados continuaro a ir para os que jogam mais rpido, com a fora de trabalho mais barata, os que se importam menos com direitos humanos, comunidade, e valores ambientais? 31

    30 A funo de tampo exercida pelo trabalho temporrio fica bem evidenciada nesta avaliao

    apresentada pelo Business Week: Os temporrios foram um fator importante no esforo das empresas de acompanhar a demanda nos anos 90, e sua contratao custou menos do que a dos permanentes, j que poucos receberam benefcios. por isso que os trabalhadores temporrios dobraram entre 1992 e 2000, somando mais de 3,8 milhes de empregos no ano passado. Agora, com a reduo da demanda, os temporrios so os primeiros empregos a sumir. Os empregos de empresas de agncias de emprego temporrio caram em mais de 279 mil desde setembro ltimo. Business Week, 23 April 2001, p. 16 31

    Hazel Henderson, Building a Win-win World: Life Beyond Global Economic Warfare, Berrret-Koehler Publishers, San Francisco 1996, p. 219. O Livro de Hazel Henderson foi editado no Brasil, com o ttulo Construindo um mundo onde todos ganham, Editora Cultrix 1996

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    O sentimento difuso, mas profundo. Vrias geraes viveram com um sentimento de que basta ser srio, dedicado, ou at sacrificado, para que o sucesso seja alcanado. Ou seja, uma pessoa honesta e trabalhadora teria o seu lugar na sociedade. A eroso deste sonho gera um sentimento amplo de insegurana, e mais, de perda de referenciais. De certa forma, no apenas o problema de ter ou no ter dinheiro para sobreviver, mas das prprias atividades terem ou no terem sentido. A crise , neste sentido, de civilizao.

    O estudo de Robert Reich, The future of sucess, inteiramente centrado neste dilema: Estou escrevendo aqui sobre como ganhar a vida e sobre como viver (making a living and making a life) e sobre porque conseguir ambos no somente parece, mas mais difcil. Montanhas de papel e oceanos de tinta foram gastos para detalhar a exuberncia estonteante da economia que emerge. No entanto, quase no h discusso sobre o que isto significa para ns como pessoas, ou sobre as escolhas que esto nossa frente para os diversos tipos de vidas que queremos levar. As angstias mais profundas desta poca de prosperidade concernem eroso das nossas famlias, fragmentao das nossas comunidades, e ao desafio de mantermos intacta a nossa integridade Estas angstias fazem parte integral da economia emergente, tanto quanto os seus enormes benefcios: a riqueza, a inovao, as novas oportunidades e escolhas. O meu objetivo aqui convidar para um debate que mais amplo do que a recomendao reduza a velocidade e viva. Ver esta luta por um melhor equilbrio entre trabalho pago e o resto da vida somente como uma luta pessoal, travada privadamente, consiste em ignorar as tendncias mais amplas que desequilibram a balana. Trata-se tambm da questo de como o trabalho e de como deveria ser organizado e recompensado. uma questo de uma sociedade equilibrada.32

    Alm de perder os sentidos, este universo torna-se opaco. A imensa maioria das pessoas simplesmente sente-se impotente frente a uma dinmica cada vez menos incompreensvel. E o desconhecido um poderoso gerador de angstia. Ortega Y Gasset exprimiu este sentimento de maneira profunda: No sabemos o que est acontecendo, e exatamente isto que est acontecendo.

    A crise tambm perversa. A humanidade produz amplamente o suficiente para a sobrevivncia digna de todos os habitantes do planeta. O prprio Brasil, com uma renda per capita da ordem de 6 mil reais, poderia, houvesse um mnimo de decncia nos processos redistributivos, assegurar uma vida confortvel para todos os seus habitantes. Todas as imagens de televiso nos mostram famlias de sucesso, crianas consumindo produtos de luxo, quando no exibem como ridculas pessoas simples, ou simplesmente necessitadas. No ter sucesso, emprego, dinheiro, passa a significar perder dignidade humana, direito de convvio social.

    Uma anlise de lvaro Gomes, sobre a situao dos bancrios na Bahia, transmite bem a dimenso extremamente concreta destes dramas sociais: A precarizao das relaes de trabalho compromete o sentimento primordial de estabilidade. O fenmeno de desemprego estrutural se apresenta como uma ameaa constante e permanente da

    32 - Robert B. Reich The Future of Success Alfred A. Knopf, New York 2001, p. 4; Reich foi ministro

    do trabalho do governo Clinton, nos EUA

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    possibilidade de excluso, agudizando o sofrimento psquico... evidente que os desempregados, aqueles ameaados de perder o emprego, os que no conseguiram ainda se inserir no mercado de trabalho, sofrem bastante, porque so atacados os alicerces da sua identidade. No caso das demisses em massa ocorridas as ameaas de desemprego e a implementao do projeto de qualidade total nos bancos, especialmente nos Bancos do Brasil e Baneb, resultaram num sofrimento mental incalculvel, chegando ao ponto da ocorrncia de vrios suicdios durante esse processo. No Banco do Brasil foram 22 em um ano, entre 1995 e 1996, no Baneb foram quatro em um ano e seis meses...No Baneb, o aumento dos procedimentos mdicos um indicativo do grau de sofrimento dos bancrios e dos familiares. Para ilustrar essa situao, pegamos o nmero de atendimentos psicoteraputicos de 1990, 5.233, com 6.428 funcionrios para compararmos com o nmero de 1999, 10.995, com apenas 2.750 funcionrios. Se a situao foi to grave para os trabalhadores, imagine a situao dos 3.678 desempregados, no perodo de 1990 a 1999.33

    No plano mais geral, o problema atinge em particular os jovens. Nas palavras de Claude Lvy-Leboyer, os papis profissionais representam um elemento capital do desenvolvimento da personalidade adulta e da socializao do indivduo.(...)Os mais atingidos so os jovens que procuram um primeiro trabalho, exatamente aqueles que, sob o plano psicolgico, tambm esto procura da sua identidade.34 A autora, como outros pesquisadores do trabalho, insistem na importncia do sentimento de impotncia e de incompreenso dos processos de mudana em curso: Os trabalhadores percebem o ambiente econmico, o mercado de emprego e a sua prpria carreira como dominados por foras que lhes escapam. Por isso, seu destino profissional pessoal lhes parece fora do seu controle.

    Gera-se assim uma mudana profunda. Cansados de se sentir uma cortia que bia ao sabor das guas, muitos procuram no setor informal, em atividades sociais mas motivadoras, ou at em segmentos de economia ilegal, formas menos tradicionais de reconstruo da sua relao com o trabalho. Hamilton dAngelo, em pesquisa de doutorado sobre o camel de So Paulo, reala a que ponto as pessoas podem freqentemente encontrar melhor remunerao, mas sobre tudo ter mais controle sobre as suas atividades, serem donas de si. Lvy-Leboyer apresenta um estudo ingls de vida e uso do tempo de onze desempregados bem adaptados: Todos souberam criar para si uma atividade (poltica, social, religiosa ou artstica) que os ocupa em tempo integral e lhes d, ao mesmo tempo, o sentimento de desenvolver suas capacidades e de serem teis sociedade mais que antes. Nenhum deles desejava voltar atrs.35 A viso geral que no basta denunciar a flexibilizao: h sem dvida uma desvalorizao relativa do emprego tradicional, e h novos caminhos em construo.

    33 - lvaro Gomes - Trabalho, Desemprego e Sofrimento Mental, apresentado na coletnea O Trabalho

    no Sculo XXI: Consideraes para o Futuro do Trabalho, lvaro Gomes (org.), Editora Anita Garibaldi, So Paulo, 2001 [email protected] 34

    Claude Lvy-Leboyer, A Crise das Motivaes, Ed. Atlas, So Paulo, 1994. 35

    - ibidem, p. 83

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    O grande desafio, compreender a generalizao da angstia criada, e construir um sistema de seguridade social que gere um mnimo de confiana quanto ao futuro. E a reao s mudanas no necessariamente negativa. Como analisava Karl Polanyi, as lutas do sculo XIX na Inglaterra, retardando alguns aspectos da revoluo industrial, asseguraram um maior tempo de transio e contriburam para reduzir os dramas sociais. O eixo central no est em evitar as mudanas, pois as transformaes tecnolgicas, e os seus impactos sobre as relaes de trabalho, co