democracia econômica- alternativas de gestão social- ladislau dowbor

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Democracia Econômica Alternativas de gestão social Ladislau Dowbor

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Democracia Econômica- Alternativas de Gestão Social- Ladislau Dowbor

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No horizonte das teorias econmicas

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Democracia Econmica Alternativas de gesto social Ladislau Dowbor

So Paulo, 25 de junho de 2007Democracia Econmica Alternativas de gesto social 5Introduo

121 Uma viso mais ampla

142 - Buscando resultados

163 - Medindo resultados

194 - Financeirizao da cincia econmica

235 - Da especulao ao investimento socialmente til

286 - Poder econmico e poder poltico

327 - A teoria do consumo

368 - O assdio comercial

449 - A infra-estrutura econmica e as economias externas

4810 - O Desenvolvimento local

5311 - A economia do conhecimento

6112 - A economia das reas sociais

6513 - A economia do tempo

7014 - A teoria econmica da sustentabilidade

7715 A poltica macroeconmica

8416 - A teoria da economia mundial

9317 O paradigma da colaborao

9818 A economia das organizaes da sociedade civil

10319 A tica na economia

11020 Democracia econmica

117Concluses

121Bibliografia

Nota tcnica: Este ensaio apoia-se essencialmente em literatura internacional. Em numerosas citaes no foi possvel localizar a traduo em portugus, e muitos trabalhos simplesmente no tm edies em portugus. De forma geral, as citaes de obras estrangeiras foram traduzidas por mim, e em vrios casos foi acrescentado em nota de rodap o texto original. (L.D.)Copyright - Ladislau Dowbor - http://dowbor.org

Saldo Negativo

Di muito mais arrancar um cabelo de um europeuque amputar uma perna, a frio, de um africano.Passa mais fome um francs com trs refeies por diaque um sudans com um rato por semana.

muito mais doente um alemo com gripeque um indiano com lepra.Sofre muito mais uma americana com caspaque uma iraquiana sem leite para os filhos.

mais perverso cancelar o carto de crdito de um belgaque roubar o po da boca de um tailands. muito mais grave jogar um papel ao cho na Suaque queimar uma floresta inteira no Brasil.

muito mais intolervel o xador de uma muulmanaque o drama de mil desempregados em Espanha. mais obscena a falta de papel higinico num lar suecoque a de gua potvel em dez aldeias do Sudo.

mais inconcebvel a escassez de gasolina na Holandaque a de insulina nas Honduras. mais revoltante um portugus sem celularque um moambicano sem livros para estudar.

mais triste uma laranjeira seca num kibutz hebreuque a demolio de um lar na Palestina.

Traumatiza mais a falta de uma Barbie de uma menina inglesaque a viso do assassnio dos pais de um menino ugands

e isto no so versos; isto so dbitosnuma conta sem proviso do Ocidente.Fernando Correia Pina, poeta portugus

www.diariogauche.zip.net

IntroduoNo h mais como negar, hoje, a amplitude dos desafios que enfrentamos. Um dos resultados indiretos das tecnologias da informao e da comunicao, aliadas expanso das pesquisas em todos os nveis, que emerge com clareza o tamanho dos impasses. No se trata de discursos acadmicos ou de empolamentos polticos. So dados, nus e crus, e j bastante confiveis, sobre processos que nos atingem a todos. Gradualmente, aquela atitude de lermos no jornal as desgraas do mundo, e de suspirar sobre coisas tristes mas distantes, vai sendo substituida pela compreenso de que trata de ns mesmos, dos nossos filhos, e que a responsabilidade de cada um de ns. Uma amostra dos relatrios internacionais mais recentes deixa as coisas claras.

Mudana climticaO aquecimento global est na ordem do dia. No h dvidas que a mdia frequentemente se apropria das notcias cientficas para um alarmismo mais centrado na venda da notcia e da publicidade do que propriamente para informar o cidado. Mas indo diretamente fonte, vemos no IV Relatrio do Painel Intergovernamental sobre Mudanas Climticas que o aquecimento do sistema climtico inequvoco, como se tornou agora evidente a partir de observaes do aumento das temperaturas mdias globais do ar e dos oceanos, derretimento generalizado da neve e do gelo, e a elevao global do nvel mdio do mar.

No o caso aqui de entrar em detalhes tcnicos. O aquecimento global, particularmente graas ampla divulgao do filme Uma verdade inconveniente de Al Gore, tornou-se presente pela primeira vez para a massa da populao razoavelmente informada. Os dados cientficos saem aos poucos dos laboratrios, penetram entre os formadores de opinio, e chegam finalmente ao nvel de quem toma decises nos governos e nas grandes empresas. Neste nvel, gera-se gradualmente uma tenso entre os que tomaram conscincia dos desafios, e os que se satisfazem com o chamado business as usual, expresso que entre ns pode ser traduzida com o popular empurrar com a barriga. Os dramas que se desenrolam em cmara lenta so os mais perigosos.

A conta ambientalA lentido na mudana de comportamentos no nvel das estruturas de poder tem seus custos. Nicholas Stern, que foi economista-chefe do Banco Mundial, e portanto pouco propenso a extremismos ecolgicos, foi encarregado pelo governo Blair de fazer as contas. As contas do Relatrio Stern referem-se aos dados climticos mais confiveis, que ele utiliza para avaliar o impacto propriamente econmico: o que acontecer, em termos de custos, ao se verificarem as projees climticas j razoavelmente seguras, calculando-se os impactos mais provveis, sem desconhecer o grau inevitvel de incerteza. Trata-se da primeira avaliao abrangente da conta climtica.

O Relatrio est tendo um grande impacto mundial, pois veio justamente preencher esta grande necessidade, por parte de pessoas de bom-senso e no especializadas, de entender os pontos centrais da questo. A anlise dos dados, segundo Stern, leva a uma concluso simples: os benefcios de uma ao forte e precoce ultrapassam consideravelmente os custos. As nossas aes nas prximas dcadas poderiam criar riscos de ampla desarticulao da atividade econmica e social, mais tarde neste sculo e no prximo, numa escala semelhante que est associada com as grandes guerras e a depresso econmica da primeira metade do sculo 20. E ser dificil ou impossvel reverter estas mudanas.

Os mecanismos de mercado so simplesmente insuficientes, pois em termos de mercado, sai mais barato gastar o petrleo que j est pronto no subsolo, queimar a cana no campo, encher as nossas cidades de carros. E os dois principais prejudicados do processo, a natureza e as prximas geraes, so interlocutores silenciosos. A viso sistmica e de longo prazo se impe, e isto implica mecanismos de deciso e de gesto que vo alm do interesse microeconmico imediato. Neste ponto, Stern direto nas suas afirmaes: A mudana climtica apresenta um desafio nico cincia econmica: trata-se da maior e mais abrangente falncia do mercado j vista. uma declarao forte, que marca a evoluo geral das opinies sobre os nossos processos decisrios por parte de especialistas que pertencem ao prprio sistema, e no mais apenas de crticos externos. A desordem socialHouve at recentemente uma srie de avaliaes sobre a dinmica social do capitalismo, sugerindo que a desigualdade realmente dramtica, mas que estaria melhorando. H um pouco menos de gente vivendo com menos de um dlar por dia, graas em particular aos avanos econmicos na China. Mas a situao voltou a piorar no conjunto do planeta, conforme mostra o balano que a ONU realizou, dez anos aps o Social Summit de Copenhague, sobre a situao social no planeta. A parte dos 10% mais ricos no produto do planeta continua subindo, chegando a quase 55%. O gap de renda entre os pases mais ricos e os mais pobres aumentou nas dcadas recentes. Como os ricos comprar propriedades, enquanto os pobres compram bens de sobrevivncia, o patrimnio familiar indica polarizao ainda mais forte. A riqueza familiar acumulada estimada em 125 trilhes de dlares para o ano 2000, equivalendo a 144 mil dlares por pessoa nos EUA, 181 mil no Japo, 1.100 dlares na ndia, 1.400 na Indonsia, o que d uma dimenso deste outro tipo de polarizao.

Curiosamente, quando se fala em distribuio de renda, em imposto sobre a fortuna, em imposto sobre herana, a mdia fala em populismo e demagogia. No ver os dramas que se avolumam com as dinmicas atuais ser perigosamente cego. Veremos estes dados com detalhe mais abaixo.

Podemos, claro, continuar a achar que sempre houve pobreza. O FMI apresenta em artigo sobre a sade no mundo um dado prosaico: os mortos da AIDS j so 25 milhes. Unicef apresenta dados sobre os 4 milhes de crianas que morreram em 2005 por no ter acesso a gua, parte dos 10 milhes que morrem de causas absurdas a cada ano. Business as usual?

A excluso produtivaO IFC (International Finance Corporation) do Banco Mundial analisa a concentrao da renda e da riqueza pelo prisma do potencial empresarial, e avalia a imensa massa dos mal inseridos no desenvolvimento econmico do planeta, buscando a forma de gerar oportunidades. Trata-se dos 4 bilhes de pessoas cuja renda per capita est abaixo de 3 mil dlares por ano, e que constituem um mercado de 5 trilhes de dlares. No se fala mais em tragdia social, fala-se em oportunidades econmicas.

Os 4 bilhes de pessoas na base da pirmide econmica (Base Of the Pyramid BOP), todos aqueles cuja renda inferior a 3 mil dlares em poder de compra local, vivem em relativa pobreza. A sua renda em dlares correntes dos EUA inferior a $3,35 por dia no Brasil, $2,11 na China, $1,89 no Ghana, e $1,56 na ndia. No entanto, juntos eles tm uma capacidade de compra significativa: a base da pirmide constitui um mercado consumidor de $5 trilhes.

O enfoque j gerou um entusiasmo passageiro com os estudos de De Soto sobre a capitalizao dos pobres dando-lhes ttulos de propriedade, e navega hoje nas vises de Prahalad sobre a possibilidade de se transformar os pobres se no em empresrios, pelo menos em consumidores.

Para ns que buscamos a incluso produtiva desta imensa massa da populao mundial, no entanto, os dados apresentados, com a fora de penetrao das vises do Banco, no deixam de ser interessantes, ao explicitarem a constatao de que a imensa maioria da populao mundial est ficando fora do chamado progresso. Na realidade, o mundo corporativo est gerando muito mais do que pobreza, est reduzindo a capacidade desta populao de se apropriar do seu desenvolvimento. Trata-se da excluso econmica de mais de dois teros da populao mundial. Segundo o relatrio, the BOP population segments for the most part are not integrated into the global market economy and do not benefit from it(os segmentos de base da pirmide da populao na sua maior parte no esto integrados na economia de mercado global e dela no tiram proveito). Aparentemente, a ironia do fato de se qualificar 4 bilhes de pessoas de segmentos da populao, quando se trata de quase dois teros da populao mundial, escapou aos autores do relatrio. Mas o documento importante, pois mostra indiretamente o grau de tenses que o sistema est gerando no planeta, e a necessidade de processos alternativos. A idia de que um outro mundo possvel no se apoia apenas numa viso mais humana e em ideais sociais: trata-se cada vez mais de uma condio necessria da nossa viabilidade econmica. O esgotamento dos recursos

O modelo de consumo do planeta o dos ricos. Por que razo no teriam todos os chineses e todos os indianos direito a ter tambm cada um o seu carro? A presso coletiva que resulta desastrosa, simplesmente porque os ricos se dotaram de um perfil de consumo cuja generalizao invivel. Esta poltica se traduz numa presso sobre recursos no-renovveis que o planeta no pode suportar. Os dados sobre o esgotamento da vida nos mares, a eroso dos solos, a reduo das reservas de gua doce nos lenis freticos, a destruio acelerada da bio-diversidade, o desmatamento e outros processos esto hoje sendo acompanhados em detalhe, numa demonstrao impressionante do que podemos chamar de capacidade tcnica e impotncia poltica, pois todos vemos as coisas acontecer, e ficamos passivos, pois no h correspondncia entre os mecanismos polticos e a realidade que temos que enfrentar, entre a dimenso dos desafios e os mecanismos de gesto. As dinmicas atuais sobrevivem temporariamente apoiando-se numa matriz energtica que sabemos ser insustentvel. A nossa pequena espao-nave terra veio com tanques de combustvel, o petrleo, que se acumularam durante milhes de anos, e que teremos liquidado em menos de duzentos. Enquanto discutimos sobre se e quando acaba o petrleo fcil, achamos normal mobilizarmos um carro de duas toneladas para levar o nosso corpo de 70 quilos para postar no correio uma carta de 20 gramas. O homo economicus do sculo XXI joga nas nossas cidades modernas cerca de um quilo de produtos no lixo por dia, e ainda paga por sua remoo. No nos damos conta do desperdcio. Todos sabemos que vivemos um sistema insustentvel a prazo, conhecemos a dimenso dos impasses, e apenas esperamos que apaream tecnologias milagrosas que abram novos caminhos na ltima hora. E que alternativa resta ao cidado? Se no tiver carro, nas dinmicas ditas modernas, como sobrevive? E algum vai eleger um poltico que assume que vai aumentar o pro dos combustveis? Esta lgica vale tambm para as reservas de gua doce, a vida nos mares e assim por diante.

Dinmicas convergentes

Um ltimo enfoque que vale a pena citar nesta nossa apreciao fria e realista das dificuldades em que nos metemos, a anlise de como os dramas ambientais e sociais se articulam. O estudo de Thomas Homer-Dixon, cientista poltico canadense, organiza os diversos relatrios e informes setoriais, e apresenta uma viso de conjunto muito bem documentada. A idia forte que o autor demonstra com clareza, que as grandes ameaas estruturais convergem e se tornam sinrgicas.

A prosperidade artificial e o consumo predatrio que a concentrao de renda e de riqueza familiar permite no polo rico do planeta gera uma presso mundial por consumo e estilo de vida semelhantes. Homer-Dixon cruza os dados das polarizaes econmicas com a evoluo da presso demogrfica. Temos hoje 6,4 bilhes de pessoas no mundo, aumentando num ritmo de algo como 75 milhes a cada ano, e com um perfil de consumo crescentemente surrealista, nas duas pontas, na escassez e nos excessos, na desnutrio e na obesidade. Cerca de 2/3 do crescimento populacional se do na rea da misria. No estamos mais na era das populaes pobres e isoladas. O planeta um s, encolhendo dia-a-dia, e os pobres sabem que so pobres. No h desenvolvimento equilibrado possvel se os processos econmicos, que hoje dominam amplamente a poltica, so controlados por uns poucos, se a imensa maioria no participa dos resultados, e se ainda por cima os mecanismos econmicos travam as possibilidades das pessoas terem acesso ao que a OIT tem chamado simplesmente de trabalho decente. Pessimismo? No, apenas bom senso e informao organizada. Os desafios principais do planeta no consistem em inventar um chip mais veloz ou uma arma mais eficiente: consistem em nos dotarmos de formas de organizao social que permitam ao cidado ter impacto sobre o que realmente importa, em gerar processos de deciso mais racionais. Com a globalizao, o processo se agravou. As decises estratgicas sobre para onde caminhamos como sociedade passaram a pertencer a instncias distantes. As reunies dos que mandam, em Davos, lembram vagamente as reunies de prncipes brilhantes e inconscientes na Viena do sculo XIX. A ONU carrega uma herana surrealista, onde qualquer ilhota do pacfico com status de nao tem um voto, tal como a India que tem um sexto da populao mundial. As grandes empresas transnacionais tomam decises financeiras, fazem opes tecnolgicas ou provocam dinmicas de consumo que afetam a humanidade, sem que ningum tenha como influenci-las. A mo invisvel do mercado est cada vez mais invisvel. Democracia econmica ainda uma noo distante. Somos cidados, mas a realidade nos escapa. Pensar de maneira inovadora sobre os processos decisrios que regem o planeta e o nosso cotidiano no mais uma questo de estar esquerda e protestando, ou direita e satisfeito: uma questo de bom senso e de elementar inteligncia humana. E para os mais informados, uma questo de urgncia. J esteve na moda sentir-se desiludido. Mas temos um desafio pela frente: fazer este planeta funcionar. J experimentamos grandes simplificaes, seja na linha da estatizao geral, seja na linha do poder corporativo. A realidade que qualquer poder sem contrapesos se descontrola. E no mundo complexo que vivemos, no h solues simples. No se trata de gemer sobre os dramas, trata-se de construir solues, de identificar as esperanas. Escolhemos neste ensaio o caminho de sistematizar aportes dos que contribuem. E no custa adiantar a viso que se abre: no surge nem dos magos corporativos cujos livros lemos nos aeroportos, nem de super-lderes polticos ansiosos por nos redimir, e sim da apropriao democrtica dos processos e dos resultados econmicos. Nesta espao-nave, somos todos tripulantes. So Paulo, 25 de junho de 2007Democracia Econmica

A evoluo das estruturas de poder no capitalismo avanado escapa aos esquemas tericos que herdamos do passado - C. Furtado Em busca de novo modelo Paz e Terra, 2002, p. 9If economists could manage to get themselves thought of as humble, competent people, on a level with dentists, that would be splendid! Economic Possibilities for our Grandchildren, 1930 A realidade econmica e social est mudando profundamente. Com isso, natural que mude um instrumento importante da sua interpretao, a cincia econmica. Eram diferentes as regras do jogo nas sociedades agrrias, onde a referncia principal era o controle da terra, ou na sociedade industrial, onde o eixo de discusso era a propriedade dos meios de produo. E quando o conhecimento, os servios sociais e outros intangveis se tornam centrais na economia, podemos manter os mesmos referenciais de anlise? Lendo recentemente um livro pequeno mas extremamente rico de Celso Furtado, Em Busca de Novo Modelo, me dei conta a que ponto os referenciais mudaram, a que ponto precisamos de outros conceitos, de um olhar renovado. Veio-me ento a idia de fazer um tipo de reviso de literatura econmica internacional recente, buscando responder a uma pergunta bsica: haveria uma nova viso em construo? Estaria surgindo uma nova cincia econmica mais afinada com as problemticas atuais, mais prxima das necessidades da sociedade em geral?

No se trata, evidentemente, de navegar pelo imenso espectro da literatura econmica em geral. Os malabarismos tericos e economtricos que tentam justificar a fortuna dos ricos, desculpar a pobreza dos pobres, ou trivializar a tragdia ambiental que ronda o planeta simplesmente no interessam. Inclusive porque o seu esforo essencialmente cosmtico, tentando dourar uma plula cujo gosto amargo cada vez mais evidente. O que nos interessa aqui, so as propostas que buscam alternativas realistas e decentes ao escndalo econmico que a est.

Dialogando com algumas idias centrais de Celso Furtado, e revendo uma srie de estudos que tm surgido na literatua econmica internacional, achei interessante trabalhar com a hiptese de que algo novo est se desenhando no horizonte das teorias, uma viso que j no seria uma verso remendada de teorias de poder interpretativo declinante, e que responde de maneira mais realista a desafios histricos que so novos. Esta viso, no seu conjunto, pode ser resumida no conceito de democracia econmica. A democracia poltica, a idia de que o poder sobre a sociedade deve ser exercido de acordo com um pacto social e de forma democrtica, foi um avano impressionante, quando consideramos a relativa proximidade histrica de reis que exerciam poder por direito divino, dos imprios coloniais que datam ainda de poucas dcadas, ou das diversas formas de ditadura que subsistem. A democracia econmica nos parece ainda um conceito pouco familiar. Bertrand Russell, no entanto, descrevia nos anos 1940 um paradoxo: consideramos ultrapassado uma famlia real querer mandar em um pas, ou doar uma regio a um sobrinho, com habitantes e tudo, mas achamos normal uma famlia os bilionrios do planeta por exemplo disporem do poder econmico e poltico de que dispem, e comprarem ou venderem empresas com trabalhadores e tudo, como se fossem feudos pessoais. Hoje, com 435 familias no mundo manejando ao seu bel-prazer recursos superiores renda da metade mais pobre da populao mundial, e levando o planeta por caminhos cada vez mais irresponsveis, torna-se legtimo ampliar a intuio de Russell, e trazer para a discusso da cincia econmica um tema central: a economia precisa ser democratizada. 1 Uma viso mais amplaUm dos legados mais importantes de Celso Furtado o seu esforo por fazer a teoria econmica colar com a realidade. Tanto o evidencia a citao que abre o presente ensaio, como a sua avaliao direta do que aprende o estudante de economia: Haver lido de forma assistemtica muito material sobre desenvolvimento econmico, conquanto nem sempre tenha encontrado conexo clara entre essas leituras e a realidade. Esse nem sempre pura bondade do economista: todos sentimos a brecha crescente entre o que estudamos, ou ensinamos, e as dinmicas sociais. A teoria j no ilumina adequadamente o caminho, quanto a isto h poucas dvidas. No entanto, esto surgindo coisas novas, e respondendo ao desafio de Celso Furtado, optamos por sistematizar alguns aportes recentes, olhando de certa maneira o que est surgindo no horizonte das teorias econmicas em diversos pases, e concentrando-nos em autores que de certa forma tendem a fechar a brecha. Tnia Bacelar apresenta Celso Furtado como um keynesiano de gauche, Ricardo Bielschowsky avalia o seu mtodo como sendo histrico-estrutural. Ambas qualificaes so sem dvida corretas, mas no esgotam a viso deste homem que aliava preocupaes sociais, postura tica e uma abertura terica que o levaram a utilizar conceitos das mais variadas correntes e reas cientficas. O importante para ele era entender o mundo, e propor alternativas. Talvez um dos traos mais importantes de Celso Furtado, em termos da herana terica que nos deixa, esta recusa de forar a realidade para dentro de teorias preconcebidas. O foco est na realidade, com toda a sua riqueza e complexidade, vista sobre o pano de fundo dos valores bsicos de justia social, viabilidade econmica e, sobretudo nas obras mais recentes, sustentabilidade ambiental e riqueza cultural. A teoria, neste sentido, volta a ser um instrumento a servio do progresso humano, deixando para trs um arquiplago de refgios tericos acadmicos e de congelamentos ideolgicos. Trata-se de um processo permanente de reconstruo terica para acompanhar a evoluo da realidade.

Uma forma de enfrentar o desgarramento terico mencionado tentar sistematizar e avaliar a evoluo das diferentes correntes tericas tradicionais. o que faz, por exemplo, um nmero especial da publicao francesa Alternatives Economiques, que mostra a evoluo dos keynesianos para o neo-keynesianismo, dos liberais para o neo-liberalismo, da corrente da economia institucional para o neo-institucionalismo e assim por diante. A partcula neo constitui frequentemente o que de mais novo apresentam as digresses tericas. cmoda, pois permite fazer uma pequena ponte entre a teoria herdada e uma realidade que teima em seguir um caminho que a teoria no previu. Mas nos d igualmente um certo sentimento de estar usando remendos, onde talvez sejam necessrias vises novas. O fato que de neo em ps fomos construindo algo que se assemelha cada vez mais a uma colcha de retalhos, e os eixos tradiconais podem inclusive aprisionar o novo, pelo peso histrico que carregam.

Outra viso consiste em tentar nos voltar de cabea fresca para os dados bsicos da prpria realidade econmica e social, revalorizar o enfoque emprico, e tentar expor da maneira mais clara possvel as diversas transformaes que se manifestam, eixos de mudana como por exemplo a dominncia das dinmicas financeiras, deixando para mais tarde as teorizaes mais amplas e eventuais etiquetas.

No h dvida que nos sentimos todos um pouco rfos. No rfos de valores, pois a busca do que Paulo Freire chamava singelamente de uma sociedade menos malvada continua a nos mover a todos, ou pelo menos aos que no esqueceram. Mas rfos de uma gerao de pensadores que se foi, levando Celso Furtado, mas tambm o prprio Paulo Freire, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Milton Santos e outros gigantes que constituram os nossos referenciais. Na ausncia dos grandes mestres, e frente aos desafios cada vez mais dramticos que despontam, somos obrigados a prosseguir na permanente reconstruo da nossa capacidade de entender o mundo, e de viabilizar alternativas.No sculo XX as coisas pareciam mais simples. Fossemos de direita ou de esquerda, havia um caminho relativamente reto, avenidas tericas que bastava trilhar. Na esquerda, o caminho seria a estatizao dos meios de produo, o planejamento central e uma classe redentora, o proletariado. Na direita, outro caminho reto, com privatizao, mecanismos de mercado e outra classe redentora, a burguesia. Definiam-se assim, simetricamente, o marco institucional da propriedade, o mecanismo dominante de regulao e a base social do poder. Frente sociedade complexa que enfrentamos, estes modelos murcharam. O estatismo de esquerda saiu simplesmente do horizonte, ainda que o movimento pendular para a direita tenha fragilizado o Estado de maneira preocupante, gerando tendncias caticas crescentes. E a viso privatista da direita, resumida no equivalente capitalista do Pequeno Livro Vermelho, o Consenso de Washington, se mantm no por credibilidade terica, mas por servir interesses dominantes.

O fato que, com o aquecimento global, a eroso dos solos, a destruio da biodiversidade, a liquidao da vida nos mares, a polarizao generalizada entre ricos e pobres, e a progressiva perda da capacidade de governo e portanto da prpria capacidade de pr ordem nas coisas estamos rapidamente nos orientando para impasses estruturais dramticos, no sentido literal e no no sentido teatral da palavra. S os desinformados, os mentalmente confusos e os privilegiados pelo processo deixam de perceber o que est em jogo.

A viso que aqui sustentamos, que numerosas anlises pontuais de processos concretos de mudana esto contribuindo para o desenho de uma nova configurao terica; no se trata de uma macro-teoria como foi a de Marx para a segunda metade do sculo XIX, mas de um conjunto de estudos que partem do real, e que contribuem gradualmente para construir uma outra viso de mundo, ainda pouco definida, e cujas linhas mestras apenas comeam a aparecer. Trata-se sem dvida de teorias que surgem no segmento da esquerda tradicional que soube repensar as suas antigas simplificaes. Mas trata-se tambm de um nmero crescente de tericos do sistema, que esto deixando o barco que os carregou para o sucesso, ao se darem conta dos absurdos gerados no planeta. No se trata de mais um neo, mas de contribuies que, ainda que dispersas e pontuais, pertencem construo de uma arquitetura diferente. Cada um de ns tem o seu universo diferenciado de leituras. Ainda que sabendo que rigorosamente impossvel acompanhar toda a produo cientfica publicada mesmo em reas cientficas relativamente limitadas, tentamos aqui identificar novos pontos de referncia. Somos, de certa forma, condenados aqui a uma metodologia de esboos, ou de impressionismo: como numa pintura de Renoir, de perto vemos inmeros pontos sem sentido. Quando nos afastamos da pintura, no entanto, surge uma forma. A viso que a sustenta est apenas surgindo.

2 - Buscando resultadosNo nvel mais geral, h uma reabilitao a se fazer da cincia econmica como instrumento de orientao de polticas. Celso Furtado explicita isto de maneira muito clara: Impe-se formular a poltica de desenvolvimento com base numa explicitao dos fins substantivos que almejamos alcanar, e no com base na lgica dos meios imposta pelo processo de acumulao comandado pelas empresas transnacionais. Em termos metodolgicos, este ponto central. Ultimamente temos olhado para a economia apenas do ponto de vista do ritmo do crescimento, esquecendo-nos de pensar o que est crescendo, e para quem. Ou ento, proclamando uma falsa objetividade, nos limitamos a elaborar modelos que permitam prever se o dlar vai subir ou baixar, ou se a ltima bomba no Iraque vai afetar o preo do petrleo. Temos de resgatar aqui um ponto evidente: a economia um meio, que deve servir para o desenvolvimento equilibrado da humanidade, ajudando-nos, como cincia, a selecionar as solues mais positivas, a evitar os impasses mais perigosos.

Cabe aqui lembrar a importncia que foi o surgimento, em 1990, do Relatrio sobre o Desenvolvimento Humano, das Naes Unidas, que sugere uma frmula simples mas poderosa: temos de assegurar uma sociedade economicamente vivel, socialmente justa, e ambientalmente sustentvel. Na medida em que esta articulao de objetivos est se tornando aceita de forma generalizada, com a disponibilizao anual de um balano mundial que cruza os trs enfoques, e com todas as limitaes dos estudos gerais, temos a um norte de grande importncia. Na academia, ainda temos dificuldades, pois algumas reas cientficas estudam o social, outras o econmico, outras ainda o ambiental, quando as iniciativas tm de ser vistas simultneamente sob os trs ngulos. A segmentao est sendo cada vez mais claramente contestada, pois impede a viso sistmica do processo. O essencial, no entanto, ultrapassar uma falsa objetividade da cincia econmica, como se apenas se limitasse a fazer contas, a constatar: a economia parece to complicada porque diversas correntes servem simplesmente a interesses diferentes, e enfrentamos anlises contraditrias quando os interesses tambm o so. A Federao dos Bancos nos diz que o Brasil tem um sistema de intermediao financeira slido, a julgar pelos lucros. No diz que esta solidez se nutre da fragilizao dos tomadores de emprstimos, e em particular da rea produtiva da economia. O leitor frequentemente v um caos cientfico onde h simplesmente a defesa de interesses divergentes, cada uma das partes se apresentando como cientfica. Ao cientista econmico que no representa um grupo particular, cabe explicitar os interesses, e buscar o interesse social. Uma tima viso desta volta da cincia econmica a uma viso normativa, centrada na construo de objetivos que nos interessam como humanidade, o livro de Herman Daly e de John Cobb Jr., For the Common Good: redirecting the economy toward community, the environment and a sustainable future. Devemos, segundo os autores, reconhecer os limites dos mecanismos herdados: A mudana envolver correo e expanso, uma atitude mais emprica e histrica, menos pretenso de ser uma cincia, e a vontade de subordinar o mercado a objetivos que ele no est equipado para determinar. Esta mudana resultaria da perda, por parte do mercado, de sua capacidade bsica de alocar recursos escassos entre usos alternativos: Tres grandes categorias de problemas com o mercado foram identificadas pelos economistas: (1) a tendncia para a competio de ser auto-eliminadora (self-eliminating); (2) o efeito corrosivo do auto-interesse, que o mercado implica, sobre o contexto moral da comunidade, e (3) a existncia de bens pblicos e das externalidades.

Esta viso se materializa em recomendaes recentes de estudos das Naes Unidas: devemos nos concentrar em polticas explcitas para evitar tanto os efeitos negativos da globalizao sobre o desenvolvimento social como as novas ameaas colocadas por reformas centradas em mercados. Uma ao deliberada deve ser empreendida para garantir que as identidades e direitos culturais, religiosos e tnicos sejam explicitamente protegidos em acordos internacionais e em legislaes nacionais e locais, e que esta proteo se traduza num cdigo de conduta implementvel para as corporaes nacionais e transnacionais bem como os interesses privados que operam sob jurisdio nacional.

Quando falamos em ao deliberada, j no nos restringimos a obedecer a mecanismos. Em outros termos, no basta criar um ambiente favorvel ao mercado, preciso orientar a economia para o que dela a sociedade deseja. O bem comum parece uma boa definio do que queremos, pois compreendemos cada dia mais que direcionar a economia em funo das minorias dominantes, gera problemas para todos. Esta idia, de resgatar a cincia econmica como instrumento da construo do bem comum, por simples que seja, importante. Falta explicitar, naturalmente, o que entendemos por bem comum. 3 - Medindo resultados

Se quisermos orientar a economia, canalizando racionalmente os nossos esforos produtivos para resultados que nos interessem, devemos construir os instrumentos de avaliao destes resultados. Celso Furtado utiliza o conceito de rentabilidade social, conceito que diz o essencial, mas que pode nos levar a confundir a viso da produtividade macroeconmica com a produtividade dos setores que normalmente identificamos com o social, como educao, sade etc. Talvez seja mais explcito o conceito de produtividade sistmica.

A lgica bsica simples: quando um grande produtor de soja expulsa agricultores para as periferias urbanas da regio, podemos eventualmente dizer que aumentou a produo de gros por hectare, a produtividade da empresa rural. O empresrio dir que enriqueceu o municpio. No entanto, se calcularmos os custos gerados para a sociedade com as favelas criadas e com a poluio das guas, por exemplo, ou o prprio desconforto de famlias expulsas das suas terras, alm do desemprego, a conta diferente. Ao calcular o aumento de produo de soja, mas descontando os custos indiretos gerados para a sociedade, o balano sistmico ser mais completo, e tecnicamente correto. Ou seja, temos de evoluir para uma contabilidade que explicite o resultado em termos de qualidade de vida, de progresso social real. De forma semelhante, quando um pas vende os seus recursos naturais, isto aparece nas nossas contas como aumento do Pib, quando na realidade o pas est vendendo recursos naturais herdados, que no teve de produzir e que no vai poder repr, e portanto est se descapitalizando, aumentando a riqueza imediata s custas das dificuldades futuras.

O que herdamos, em termos de metodologia, o sistema de contas nacionais elaborado ainda nos anos 1950 no quadro das Naes Unidas, com ajustes em 1993, e que nos fornece o famoso Pib, soma dos valores e custos de produo de bens e servios, restringida portanto rea de atividades mercants. No vamos aqui fazer mais uma descrio dos limites desta metodologia, hoje bastante bvios. O essencial que a partir de 1990, com as vises de Amartya Sen e a metodologia dos indicadores de desenvolvimento humano (IDH) houve uma inverso radical: o ser humano deixa de ser visto como um instrumento para servir s empresas na poca o Banco Mundial dizia que a educao era boa porque aumentaria a produtividade empresarial e passa a ser visto como o objetivo maior. Em outros termos, o social deixa de ser um meio para assegurar objetivos econmicos; pelo contrrio, o econmico passa a ser visto como um meio para melhorar a qualidade de vida das pessoas. Uma vida com sade, educao, cultura, lazer, segurana, o que queremos da vida. E a economia tem de se colocar a servio destes objetivos sociais, da prosaica qualidade de vida.

A qualidade de vida evidentemente mais difcil de medir do que o valor das vendas de uma empresa, ou o custo de funcionamento de uma escola pblica, sem falar da economia do voluntariado e do trabalho feminino domiciliar. Mas a realidade que enquanto no adotarmos formas aceitas e generalizadas de medir o valor final, os resultados, das nossas atividades, no teremos como avaliar nem polticas pblicas nem privadas. Hoje, aproveitando e indo alm das metodologias do IDH, j se avanou muito. O livro de Jean Gadrey e de Florence Jany-Catrice, Les nouveaux indicateurs de richesse (os novos indicadores de riqueza), apresenta uma sistematizao extremamente bem organizada do novo quadro conceitual das contas nacionais que est se desenhando. Assim, passa-se a diferenciar a contabilizao da produo (outputs), dos resultados efetivos em termos de valores sociais (outcomes); os indicadores econmicos, sociais e ambientais; os indicadores objetivos (taxa de mortalidade infantil, por exemplo) e os subjetivos (satisfao obtida); os resultados monetrios e no monetrios. Com isto foram sendo construidas vrias metodologias, hoje bastante bem embasadas, como o ndice de bem-estar econmico de Osberg e Sharpe, o indice de bem-estar econmico sustentvel (IBED), o indicador de progresso real (IPV), o indicador de poupana real (genuine savings) do Banco Mundial e outros. Particularmente interessante a metodologia adotada pelo Calvert-Henderson Quality of Life Indicators: a new tool for assessing national trends, um autntico balano das contas nacionais aplicado aos Estados Unidos. Em vez de ficar na soma do produto monetrio, distribui as contas em 12 reas, incluindo renda mas tambm direitos humanos, segurana pblica, qualidade do meio ambiente e assim por diante. O resultado que pela primeira vez os americanos tm um instrumento de avaliao de como e em que reas o pas est melhorando (ou piorando). O interessante que no foi preciso construir novos indicadores ou realizar novas pesquisas: partiram dos dados existentes, selecionaram os mais confiveis, e simplesmente os cruzaram de maneira inteligente segundo os grandes eixos de resultados prticos esperados pela populao. O prprio Banco Mundial est finalmente repensando as suas metodologias. No World Development Indicators 2003, no quadro 3.15 que avalia as poupanas, o Banco passou a contabilizar a extrao de madeira, por exemplo, no como cifra positiva (aumento do PIB), mas como descapitalizao do pas. Na mesma lgica, paises que exportam o petrleo passam a ser vistos como gastadores do seu capital natural, apresentando taxas de poupana negativas. Na prpria produo de automveis passou-se a deduzir, no clculo, os gastos adicionais com sade causados pela poluo. Como as metodologias do Banco Mundial tm um poder forte de induo, esta abertura bem-vinda, e vai influenciar contas nacionais em numerosos pases. Mas h igualmente solues criativas bastante prticas. Na regio de Cascavel (Paran), por exemplo, 22 municipios passaram a elaborar indicadores municipais de qualidade de vida. So 26 indicadores, relativamente simples, que conjugados permitem avaliar se a situao da populao est ou no melhorando, ano por ano. Assim as pessoas podem orientar o seu voto segundo resultados reais para as suas vidas, e no segundo quem distribuiu mais camisetas. A inovao no exigiu grandes clculos economtricos, pois os dados existem, mas significou uma mudana poltica extremanente importante: a informao organizada para a populao, e os dados levantados so os que mais interessam qualidade de vida da populao. Ou seja, a contabilidade econmica passa a ser um instrumento de cidadania, e as iniciativas dos diversos atores pblicos e privados sero avaliadas em termos de resultados finais para a sociedade, pelo menos no territrio mais prximo, onde as pessoas podem mais facilmente participar dos processos de deciso. De toda forma, o que estamos apontando, que a mudana do enfoque das contas econmicas essencial. Um banco que desvia as nossas poupanas para aplicaes financeiras especulativas, e apresenta lucros elevados, aumenta o Pib, mas reduz a nossa produtividade sistmica ao descapitalizar as comunidades, ao reduzir o uso produtivo das nossas poupanas. O sistema alemo de intermediao financeira, baseado em pequenas caixas econmicas municipais, no apresenta grandes lucros, mas canaliza as poupanas para investimentos socialmente teis, gerando melhores condies de vida para todos. O lucro, nesta viso, tem de ser social, e a produtividade tem de ser sistmica. O fato da cincia econmica evoluir para esta contabilidade integral, e no apenas micro-econmica, constitui um progresso importante. De forma geral, um avano importante para as cincias econmicas a mudana radical de como organizamos a informao sobre os resultados obtidos. Enquanto a medida se resumia soma do valor de produo das empresas e dos custos dos servios pblicos, naturalmente passvamos a achar que o progresso s se d atravs do lucro empresarial, e que inclusive os servios pblicos representam um nus. Quando passamos a avaliar de maneira sistmica os resultados para a sociedade no seu conjunto, podemos ter uma viso inteligente do progresso real obtido. A construo de sistemas mais realistas de avaliao do nosso progresso econmico e social vem corrigir uma deficincia estrutural da cincia econmica. Grande parte do nosso sentimento de impotncia frente s dinmicas econmicas vem do fato que simplesmente no temos instrumentos para saber qual a contribuio das diversas atividades para o nosso bem-estar. O clamor quase histrico da mdia por alguns pontos percentuais suplementares de crescimento do PIB age sobre a angstia generalizada do desemprego, e tira o nosso foco do objetivo principal que a qualidade de vida da sociedade, deixando as pessoas confusas e mal informadas. Pessoas desinformadas, naturalemente, no participam. No h democracia econmica sem informao adequada sobre as dinmicas e os resultados que realmente importam. A construo de novos indicadores de riqueza um eixo particularmente importante neste sentido. 4 - Financeirizao da cincia econmica

Outro eixo de anlises busca entender o que acontece com as intermediaes financeiras. As pesquisas tericas dominantes, curiosamente, no se preocupam em tornar as nossas poupanas mais produtivas, mas em gerar instrumentos mais avanados para se fazer dinheiro com aplicaes financeiras. Assim a rea das finanas passou a ser analisada de forma isolada das suas consequncias e utilidade econmica, e a especulao financeira adquiriu nas cincias econmicas um papel central.

Continua a ser muito atual nesta rea o livro de Joel Kurtzman, A Morte do Dinheiro. Como o dinheiro passou a ser uma notao eletrnica, que viaja na velocidade da luz nas ondas da virtualidade, o mundo se tornou um cassino global. Mais importante para ns, o lucro e o poder gerados pela especulao financeira fizeram com que a cincia econmica se concentrasse de maneira obsessiva nesta rea. A lista dos prmios Nobel de economia constitui essencialmente, com rarssimas excees como Amartya Sen, uma lista de especialistas em comportamento do mercado financeiro. A situao agravada pelo fato do Nobel de economia no ser realmente um prmio Nobel, mas um prmio do Banco da Sucia. Peter Nobel, neto de Alfred Nobel que instituiu o prmio, explicita a confuso voluntariamente criada por um segmento particular de economistas: Nunca na correspondncia de Alfred Nobel houve qualquer meno referente a um Prmio Nobel de economia. O Banco Real da Sucia depositou o seu ovo no ninho de um outro pssaro, muito respetivel, e infringe assim a marca registrada Nobel. Dois teros dos prmios do Banco da Sucia foram entregues a economistas americanos da escola de Chicago, cujos modelos matemticos servem para especular nos mercados de aes no sentido oposto s intenes de Alfred Nobel, que entendia melhorar a condio humana. Portanto, o dinheiro no vem do fundo Nobel, e os critrios de atribuio do prmio partem da prpria rea financeira, que se apropriou assim de uma respeitabilidade que no tem, atravs de um processo fraudulento.O fato da rea financeira ter conseguido que o prmio seja entregue na mesma cerimnia na Sucia, contribui para a confuso, mas no para a tica do processo. Outra demonstrao de fora deste segmento da economia, o poder das agncias de avaliao de risco. Todos os nossos jornais trazem com alarde a ltima cotao do risco Brasil. O muito conservador The Economist chega a se indignar com o peso que adquiriu este oligoplio de tres empresas Moodys, Standard & Poor (S&P) e Fitch que fazem face a crticas pesadas nos ltimos anos, por terem errado relativamente a crises como as da Enron, da WorldCom e da Parmalat. Estes erros, a importncia crescente das agncias, a falta de competio entre elas e a ausncia de escrutnio externo esto comeando a deixar algumas pessoas nervosas. The Economist argumenta tambm que as agncias de avaliao so pagas pelos que emitem ttulos, e no por investidores que utilizaro as avaliaes de risco, com evidentes conflitos de interesse. O resultado que a mais poderosa fora nos mercados de capital est desprovida de qualquer regulao significativa.

O essencial da especulao financeira, que consiste em acumular riqueza sem precisar produzir a riqueza correspondente. Em termos prticos, so pessoas que vivem do esforo dos outros, e o ganho de um corresponde perda de outro. Joseph Stiglitz entendeu isto, e escreveu um livro forte e de leitura simples, Globalization and its discontents, mostrando como os pases em dificuldade precisam de mais capital para se reequilibrar, e justamente o momento em que os capitais especulativos fogem, quebrando o pas. Stiglitz ilustra a sua viso do papel da liberalizao dos capitais com o caso do Sudeste Asitico, mas o mesmo raciocnio se aplica por exemplo Argentina no momento do corralito. A teoria oficial do Fundo Monetrio Internacional, amplamente dominante ainda que enfrente um ceticismo crescente, aparece como cnica frente a estas novas dinmicas: Os benefcios fundamentais da globalizao financeira so bem conhecidos: ao canalizar fundos para os seus usos mais produtivos, ela pode ajudar tanto os pases desenvolvidos como os em via de desenvolvimento a atingir nveis mais elevados de vida.

O processo real inverso. Descapitaliza-se o setor produtivo, o Estado, as comunidades e o consumidor. A liberalizao dos fluxos de capital que deveria teoricamente canalizar fundos para os seus usos mais produtivos leva pelo contrrio drenagem dos recursos para fins especulativos, e fora as empresas a buscarem o autofinanciamento, gerando um feudalismo financeiro em que cada um busca a autosuficincia, perdendo-se justamente a capacidade das poupanas de uns irrigarem os investimentos de outros. O efeito rigorosamente inverso ao previsto, ou imaginado pelo Fundo, mas rigorosamente coerente com a economia realmente existente. O interessante para ns aqui que no se trata mais de mecanismos econmicos objetivos, do tipo reaes do mercado: trata-se da montagem consciente de um processo de desestabilizao econmica e financeira, que envolve gigantescas propinas e a articulao de uma rede de amigos no governo americano, em Wall Street, nas organizaes financeiras multilaterais e nas grandes empresas. Constituem processos decisrios que no obedecem aos fins declarados, e muito menos a mecanismos de mercado. Podemos naturalmente colocar nomes feios neste processo, chamar de imperialismo financeiro, por exemplo, mas na realidade trata-se de mecanismos de manipulao poltico-financeira que no se encontram nos compndios tradicionais, e que autores como os acima gradualmente desmontam, num tipo de engenharia reversa, explicitando como funciona um determinado segmento de atividades econmicas a partir de exemplos presenciados e vividos. impressionante a dimenso da desinformao sobre um fato to simples de que as aplicaes financeiras, que os banqueiros tanto gostam de chamar de investimentos, levam ao enriquecimento de intermedirios, sem gerar ativos novos, e que este enriquecimento sem produo correspondente portanto correspondendo apropriao da produo de terceiros se faz com o nosso dinheiro, e no com o dinheiro dos prprios intermedirios.

A cincia econmica que ensinamos no nos ensina o essencial, que de como construir os objetivos do desenvolvimento no novo contexto de mudana tecnolgica, desregulao e mudana institucional. Estas trs categorias de mudana fazem parte das anlises do FMI, que est comeando, depois das crticas contundentes recebidas, a ficar um pouco mais prudente nas suas certezas: Ainda que seja difcil ser categrico sobre qualquer coisa to complexa como o sistema financeiro moderno, possvel que estes desenvolvimentos estejam criando mais movimento procclicos que no passado. Podem igualmente estar criando uma probabilidade maior (mesmo que ainda pequena) de uma catstrofe (catastrophic meltdown) .

O cassino financeiro internacional (com a sua dimenso nacional) gera assim um processo de descapitalizao da economia, levando a uma subutilizao impressionante de um dos principais fatores de dinamizao econmica que so as nossas poupanas. E dizemos bem aqui nossas poupanas, pois o cassino joga com o dinheiro dos fundos de penso, das pequenas economias familiares, dos nossos depsitos. Na realidade, gerou-se uma cultura setorial. A rea dos cartes de crdito constituti uma ilustrao cuirosa de como ao mesmo tempo nos depenam e nos mostram como podemos parecer importantes ao pagar com um carto ouro o jantar com a namorada. Os olhares nas mensagens publicitrias deixam claro quem ser jantado, mas quem depenado com orgulho evidentemente o dono do carto. O carto permite simplesmente taxar todas as nossas transaes, cobrando tanto dos comerciantes como do consumidor atravs da taxa de uso, do crdito implcito e dos juros sobre atrazos, alm do aluguel dos equipamentos. A General Electric, por exemplo, j emitiu 68 milhes de cartes, 40% em pases em desenvolvimento. mais uma empresa que descobriu que se ganha mais brincando com o dinheiro dos outros do que enfrentando a dureza dos processos produtivos. O americano mdio ostenta orgulhosamente uma mdia de 8 cartes de crdito, e vive endividado.

The Economist, curiosamente, avalia que os brasileiros esto entre os poucos espertos: O nmero de cartes de crdito no Brasil, por exemplo, cresceu em mdia 17,3% ao ano entre 1999 e 2004, segundo Bain & Company, uma outra empresa de consultoria. Os brasileiros, no entanto, tendem a pagar as suas contas mensais, em parte porque as taxas de juros so altas (8-11% ao ms) mas tambm porque preferem usar os seus cartes como um meio conveniente de pagamento e no como uma forma de emprstimo. H outros crditos mais baratos disponveis, diz Rodolfo Spielman, do Bain. Isto pode explicar porque os gastos anuais dos brasileiros com cartes de crdito cairam 4,1% ao ano, descontada a inflao, entre 1999 e 2004.

Trata-se, como dizem na terra de Celso Furtado, de festa com chapu dos outros. Celso Furtado, alis, gosta de ser claro: J ningum ignora a fantstica concentrao de poder que hoje se manifesta nos chamados mercados financeiros, que so dominados por atividades especulativas cambiais.

Mas se ningum ignora isto, o fato que conhecemos todos como est estruturada a indstria automobilstica mundial, mas ignoramos como esto estruturados e como organizam o seu poder poltico e econmico os grupos que se apropriaram das poupanas. Temos pginas em todos os jornais com cotaes diversas, mas nada sobre como o processo manejado. Jogar na mesa do cassino permitido (cada um traz a sua poupana, ou aplica o dinheiro com investidores institucionais que vo jogar por ns), mas saber como as mesas so geridas, quais so as chances e quem ganha quanto com isto est fora do nosso alcance. uma rea impressionante da economia que precisa de luz. Inmeros nbeis (alguns preferem ignbeis) de economia elaboram frmulas para melhorar o nosso desempenho na roleta, mas raros so os que como Stiglitz, por exemplo, que levantou um cantinho do vu, se debruam sobre o processo de poder poltico-financeiro assim gerado. Um pouco de democracia, seno no controle, pelo menos na informao, no seria bem-vindo? 5 - Da especulao ao investimento socialmente tilA realidade patolgica da rea financeira vai curiosamente criando os seus antdotos. Enquanto a corrente terica dominante e o grosso dos recursos reforam as atividades especulativas e o financiamento das corporaes, vai se construindo uma outra corrente, que vem responder s prosaicas necessidades de financiamento da pequena e mdia empresa, da agricultura familiar, das organizaes da sociedade civil. Todos conhecem os trabalhos de Yunus no Bangladesh, mas vale a pena realar que muito dinheiro na mo de poucos gera o caos, enquanto pouco dinheiro na mo de muitos gera resultados impressionantes em termos de progresso econmico e social. Numa viso estritamente econmica, para quem no tem quase nada, um pouco de dinheiro faz uma imensa diferena, em termos de sade, de condies de estudo das crianas, de melhores condies de produo.A reorientao que se busca, de que os recursos financeiros possam prosaicamente servir ao nosso desenvolvimento. Stiglitz enfatiza corretamente o Community Reinvestment Act CRA - de 1977, nos Estados Unidos, que obriga as instituies de intermediao financeira a aplicarem parte pelo menos dos recursos no desenvolvimento das comunidades que afinal so proprietrias destes recursos. O Federal Register de 19 de julho de 2001 explicita o objetivo de se assegurar que as agncias financeiras cumpram obrigaes continuadas e afirmativas para ajudar a satisfazer as necessidades de crdito das comunidades locais onde esto autorizadas. Alm disso, o Congresso instruiu as agncias a avaliar o desempenho das instituies (financeiras) em responder s necessidades de crdito de toda a sua comunidade. Com esse tipo de obrigaes e aes afirmativas, estamos longe da liberdade dos intermedirios financeiros de apenas especular com recursos de terceiros. Trata-se de colocar os recursos da comunidade a servio da prpria comunidade. Estamos falando de uma lei em vigor nos Estados Unidos, que pregam a globalizao, mas sabem se defender. Stiglitz apresenta tambm a importncia do sistema da China: As cidades e vilas canalizaram os seus preciosos recursos para a gerao de riqueza, e havia forte competio pelo sucesso. Os habitantes das cidades e vilas podiam ver o que acontecia com os seus fundos. Sabiam se havia empregos sendo criados e se a renda aumentava. Apesar de talvez no haver democracia, havia responsabilizao. Novas indstrias na China foram localizadas em reas rurais. Isto ajudou a reduzir a tenso social que inevitavelmente acompanha a industrializao. Esta a China que lanou as fundaes de uma Nova Economia em cima das instituies existentes, mantendo e fortalecendo o seu capital social, enquanto na Russia era erodido.

A Alemanha oferece outro exemplo interessante, visto rapidamente acima. A gigantesca massa de poupanas familiares do pas no confiada aos chamados investidores institucionais para especularem. gerida por pequenas caixas de poupana que existem em cada cidade ou vila. O Economist informa que mais da metade da poupana alem gerida desta forma. A revista considera, naturalmente, que isto um fator de atrazo, pois o dinheiro seria aplicado de maneira mais dinmica se a poupana fosse administrada por alguns grupos financeiros internacionais. no ver a imensa gama de pequenas iniciativas que localidades bem capitalizadas podem tomar, gerando pequenas empresas, restaurantes tpicos, transformao dos produtos agrcolas locais nem tudo deve ir para o McDonald ou a rede de hipermercados num processo que no apenas econmico, cultural e associativo. Faz uma regio ser dona do seu territrio, com iniciativas prprias, criatividade. Nunca demais lembrar que 54% das empresas nos Estados Unidos empregam at 5 pessoas, e que o pas tem 26 milhes de micro e pequenas empresas. Trata-se aqui de um grande hiato na teoria econmica, que considera produtiva a pequena empresa apenas quando reduzida ao papel de subcontratada de um gigante corporativo. Se a teoria deixa em branco o esmagamento da iniciativa econmica individual e associativa no capitalismo globalizado, no plano da economia aplicada surgem coisas muito interessantes. O livro Les placements thiques, constitui um tipo de pequeno manual para quem quer fazer coisas teis com o seu dinheiro, em vez de coloc-lo no banco. Sem teorizar muito, o livro parte do princpio que as pessoas realmente existentes querem equilibrar vrios interesses, como ter uma razovel remunerao pelo seu dinheiro, mas tambm segurana, liquidez para o caso dele precisarem inesperadamente, e o sentimento do seu dinheiro estar sendo til. As aplicaes financeiras teis apresentadas no livro se referem concretamente Frana, mas abrem perspectivas gerais.

Em termos prticos, trata-se de um pequeno manual onde em cada pgina aparece um fundo tico, com indicaes da taxa mdia de remunerao da aplicao, a liquidez (alguns fundos exigem um determinado tempo de aplicao), a segurana (h desde aplicaes garantidas pelo Estado at aplicaes de risco como no mercado de aes) e a mais-valia tica que descreve em detalhe que tipo de atividade socialmente ou ambientalmente til est envolvida. O processo tambm se firmou na Frana porque alm do interesse da populao os bancos locais, comunitrios ou do Estado passaram a garantir as aplicaes feitas em iniciativas de economia solidria, gerando um processo perfeitamente seguro em termos financeiros e de elevada produtividade sistmica. As aplicaes envolvem tipicamente empresas de economia solidria por exemplo o seu dinheiro ser aplicado numa pequena empresa que organizou o transporte para pessoas deficientes na cidade, iniciativa demasiado pontual para interessar grupos empresariais tradicionais ou empresas tradicionais que passam pelo crivo de uma srie de critrios como o respeito s normas trabalhistas, respeito ao consumidor e assim por diante. H fundos que alm disso excluem um conjunto de empresas notoriamente anti-sociais como as que produzem armas, fumo ou bebidas alcolicas.

Isto implica por sua vez um conjunto de critrios de avaliao de atividades empresariais que vo muito alm do lucro, e com isto surgiram diversas instituies que fazem um seguimento sistemtico de diversos setores de atividades e de empresas, de maneira que a pessoa que aplica num fundo possa conhecer efetivamente o uso final do seu dinheiro. Estamos todos acostumados ao indicador de risco Brasil, que apresenta o risco que um determinado pas ou empresa representa para os aplicadores financeiros, mas quase no aparecem os indicadores de utilidade social das empresas, e nunca do risco para o Brasil, por exemplo, das atividades especulativas. Para ns, este conceito de grande importncia, pois contrariamente aos Estados Unidos ou Alemanha, onde predominam pequenos bancos municipais e a populao pode razoavelmente seguir o que se faz com o seu dinheiro, ns normalmente no temos a mnima idia do que acontece, no privado menos ainda que no pblico.

O sistema montado na Frana maduro e bastante sofisticado. Envolve legislao que permite que certas aplicaes financeiras sejam tratadas de maneira diferenciada pelo fisco, um sistema de notao das empresas pelas instituies de avaliao, uma forte participao de organizaes da sociedade civil, de sindicatos e de poderes locais, e envolve um sistema regular de informao ao acionista ou aplicador financeiro. O sistema est se expandindo num ritmo de 20% ao ano. H organizaes da sociedade civil que j administram mais de 800 milhes de euros, cerca de 2 bilhes de reais.Em termos tericos, o sucesso das experincias deste tipo sumamente importante, pois implica que afinal as pessoas no querem apenas maximizao de retorno e segurana do seu dinheiro. As pessoas querem sim fazer coisas socialmente teis se tiverem a oportunidade, e esta oportunidade se organiza. Uma nota introdutria de Henri Rouill dOrfeuil, d o tom: Os objetivos so claros. Trata-se de introduzir solidariedade, ou seja uma preocupao com o bem comum, no corao mesmo da economia, para que o crescimento leve ao progresso social e ao desenvolvimento sustentvel, para que as empresas se tornem socialmente e ecologicamente responsveis. Este eixo alternativo da intermediao financeira est sendo alvo de ataques dos grandes grupos especulativos, e se v ridicularizado pelo mainstream da cincia econmica. No entanto, quando Hazel Henderson e outros criaram o ethical market place, literalmente mercado de aplicaes ticas, descobriram imenso interesse social, que est se materializando num fluxo impressionante de recursos. Hoje os prprios grupos financeiros especulativos e grandes bancos esto abrindo nichos de atividades socialmente responsveis, nem que seja para melhorar a imagem.

interessante, para todos ns, ver que enquanto os mecanismos de mercado esto sendo engessados pelos gigantes transnacionais ou nacionais que monopolizam amplos setores econmicos, manipulam os fluxos e restringem o acesso s informaes, esto surgindo formas alternativas de regulao econmica baseadas em valores e participao direta do cidado.Fazer poltica sempre foi visto por ns como atividade muito centrada no voto, no partido, no governo. Mais recentemente, surgiram atividades em que a sociedade civil organizada arregaa as mangas e assume ela mesma uma srie de atividades. Est tomando forma cada vez mais clara e significativa a atividade econmica guiada por valores, por vises polticas no sentido mais amplo. As pessoas esto descobrindo que podem votar com o seu dinheiro. Outras atividades surgiram no Brasil, com a ajuda entre outros de Paul Singer, na linha da Economia Solidria. J no se contam as iniciativas de microcrdito, de crdito solidrio, de ONGs de garantia de crdito.

Tata-se de uma rea onde surgiram excelentes estudos descritivos na linha do como funciona, sem que haja muita teorizao econmica. Surge igualmente nesta rea uma prtica generalizada de seminrios e conferncias, onde as pessoas que administram estas novas formas de gesto das nossas poupanas cruzam com cientstas sociais, e constroem novas vises. Uma pequena digresso importante aqui. A nossa viso da economia ainda est centrada na viso fabril do sculo XX. Mas os setores emergentes da economia no so fbricas, so redes de sade, sistemas articulados de educao, pesquisa e organizao do conhecimento, atividades culturais e assim por diante. As pessoas se espantam com o fato das atividades industriais representarem nos Estados Unidos 14% do PIB e 10% do emprego, e declinando rapidamente, enquanto a sade j representa 15% do PIB. Se somarmos a educao, a cultura, a segurana, vamos para mais de 40% do PIB. A economia est cada vez menos baseada em capital fixo (mquinas, equipamentos, construes) e cada vez mais em organizao e conhecimento. Ou seja, a economia que surge no necessita do gigantismo para ser eficiente, pelo contrrio. Na realidade, o gigantismo nestas rea gera deseconomias de escala, pela burocratizao e monopolizao do controle de acesso a servios essenciais.

Ou seja, h uma convergncia a se construir entre o surgimento de novos setores de atividades, e as formas de financiamento que exigem. Quando as atividades econmicas de rea social, como sade, educao, cultura e outros, tornam-se dominantes no nosso modo de produo, o conceito de financiamento tambm muda. O sistema concentrador de financiamento pode trabalhar bem com gigantescas empresas de planos de sade: neste caso temos uma absurda aliana de interesses especulativos com a indstria da doena. Mas se para fazer uma poltica social que tenha resultados em termos de qualidade de vida, as inovaes da gesto financeira, na linha das diversas formas de crdito que surgem, mostram-se perfeitamente coerentes e economicamente muito mais produtivas. So atividades capilares que se ajustam bem a sistemas de financiamento em rede. O que estamos sugerindo aqui, que h uma nova teoria econmica em construo, sem que talvez nos apercebamos disto, de tanto estarmos ocupados em refutar os marginalistas ou a lei das vantagens comparadas de Ricardo. No se trata de uma dinmica socialmente caridosa e economicamente marginal. um espao importante a ser ocupado. No precisamos esperar um governo que nos agrade para tirar o nosso dinheiro do banco e aplicar as nossas poupanas em coisas teis. O resgate do controle das nossas poupanas emerge como eixo estruturador das dinmicas sociais, e o direito a controlarmos o nosso prprio dinheiro, e de exigir prestao de contas na rea, perfeitamente democrtico. 6 - Poder econmico e poder poltico

Vai-se assim construindo uma viso. A economia no uma cincia que deve fornecer instrumentos mais sofisticados de anlise de conjuntura para orientar especuladores: tem de voltar a se concentrar nos resultados os fins substantivos que queremos construir, em particular de uma sociedade vivel no s em termos econmicos, como sociais e ambientais; o norte definido por estes objetivos deve por sua vez refundar a contabilidade econmica, a forma como calculamos os resultados; para estes resultados, por sua vez, que devem voltar a ser canalizados os recursos gerados pelas poupanas das populaes, proprietrias destas poupanas, mas cuja utilizao lhes foi expropriada. Esta expropriao, sobra dizer, resulta de estruturas de poder econmico que tambm esto mudando.

Voltemos ao texto de Celso Furtado: Impe-se formular a poltica de desenvolvimento com base numa explicitao dos fins substantivos que almejamos alcanar, e no com base na lgica dos meios imposta pelo processo de acumulao comandado pelas empresas transnacionais. Mais longe, Furtado comenta que a atuao da empresa de mbito planetrio constitui mutao maior na evoluo do sistema capitalista, pois desloca para posio subalterna as foras sociais que estavam em asceno e modifica substanciamente o papel do Estado nacional.

Ou seja, a empresa transnacional define os seus prprios fins, - o maior lucro no prazo mais curto, mas tambm estruturas de poder que o consolidem e torna-se o instrumento, junto com os processos de especulao financeira, do desvio relativamente aos fins substantivos. David Korten provavelmente hoje quem melhor fez a lio de casa em termos de explicitar como se organiza e articula o poder das grandes corporaes. Autor do livro Quando as corporaes regem o mundo, este pacato servidor da Usaid, depois de anos de trabalho social na sia, decidiu que o conflito entre os objetivos declarados promover o bem-estar das populaes e as prticas das empresas, tinha chegado ao limite, tornando inclusive pouco significativo o esforo de promoo social que realizava. E decidiu explicitar como este poder funciona.

O livro tornou-se um clssico. Em parte pelo excelente trabalho de sistematizao de informaes e capacidade de anlise, em parte por evidenciar o impressionante hiato que se criou entre a importncia que as empresas transnacionais assumiram na gesto econmica e crescentemente poltica da sociedade, e o pouco que temos de informaes sobre como funcionam. O nico ncleo efetivo de pesquisa sobre as empresas transnacionais, que funcionava nas Naes Unidas sob o nome de United Nations Center for Transnational Corporations UNCTC, foi desmantelado nos anos 1990. Esta opacidade programada foi reforada pelo mecanismo que sustenta a mdia no mundo. Hoje, a conta publicitria faz parte do preo que pagamos pelos produtos. Este imposto privado nos custa, na avaliao do PNUD de 1998, cerca de 430 bilhes de dlares, e na avaliao de Lawrence Lessig de 2001 cerca de 1 trilho de dlares. Como esta publicidade financiada essencialmente por grandes corporaes, e constitui a base da sobrevivncia econmica dos meios de informao de que dispomos, estes tendem a apresentar apenas imagens simpticas de quem compra o seu espao publicitrio. O resultado que quando estouram escndalos como da Enron, da WorldCom, da Parmalat ou outros, ficamos espantados.

Trata-se, no entanto, de procedimentos correntes, em que grandes executivos, quando flagrados em algum descuido que se torna pblico, apenas do de ombros e comentam que todo mundo faz. John Perkins mostra, no seu Confessions of an Economic Hitman, como se monta literalmente o endividamento de pases politicamente frgeis. Economista principal na empresa Main (Chas. T. Main Inc., empresa de consultoria que trabalha na linha de infraestruturas como a Enron, a Bechtel, a Halliburton e outras famosas), ele assina uma previso sabidamente exagerada de crescimento econmico caso um pas o mecanismo foi aplicado na Arabia Saudita, Equador e muitos outros invista grandes somas em infraestruturas. Com este relatrio, e frente s previses fraudulentas de crescimento que tornam plausvel o pagamento posterior dos emprstimos, as empresas negociam com o Banco Mundial e outros financiadores os emprstimos correspondentes, e os contratos de execuo vo naturalmente para as empresas que ajudam a pressionar pelo emprstimo, como as mencionadas acima. As empresas enriquecem com os contratos, o crescimento no ocorre (no h milagre), e o pas ultrapassa a sua capacidade de endividamento. Entra ento o segundo mecanismo, que a renegociao de contratos de explorao de petrleo e outras riquezas, aproveitando a fragilidade financeira gerada. O mecanismo normalmente apresentado como ajuda aos pases pobres, e estes em geral no tm a liberdade de recusar o abrao amigo.

Outro estudo muito interessante nos vem de Joel Bakan, The Corporation: the pathological pursuit of profit and power. O autor parte de uma coisa evidente mas esquecida: a lei que cria a pessoa jurdica se destinava a proteger pessoas, mas foi ampliada para empresas, que passaram a gozar de direitos como se fossem seres humanos. Naturalmente, como diz o autor, enquanto uma pessoa fsica pode ser colocada atrs das grades, isto no acontece com uma pessoa jurdica. E uma pessoa jurdica, com muito dinheiro, inmeros advogados, controle de mdia e o autofinanciamento permanente do exerccio do poder atravs do que pagamos ao comprar os seus produtos, pagar os seus juros ou utilizar os seus softwares adquire gradualmente um grande poder. Mas enquanto uma pessoa fsica tem diversas facetas, interesses diversificados, preocupaes ticas, por lei a corporao tem como obrigao apenas maximizar lucros, satisfazendo assim os seus acionistas.

Gera-se assim uma pseudo-pessoa, com zero de escrpulos, e imenso poder. As formas como as corporaes passam as nos dominar so examinadas com os mesmos critrios que a sade utiliza para classificar psicopatas: desinteresse pela sociedade, ausncia de sentimentos ticos e assim por diante. Um grupo de pessoas teve a idia de fazer deste livro um filme, que constitui uma inovao metodolgica interessante: em vez de lermos no livro, em pargrafos entre aspas, o que Peter Drucker tem a dizer sobre determinado problema, a citao passa a ser audiovisual, e vemos Peter Drucker explicar a sua opinio na tela. O conjunto de opinies, agrupado por captulos cinematogrficos, termina por constituir um excelente documento cientfico sobre o comportamento das corporaes. Os argumentos se contam por imagens e falas, e no por pginas. O resultado extremamente convincente, so as pessoas que esto al falando, e aponta para uma forma mais dinmica e viva de escrevermos as nossas pesadas obras de cincia econmica. Apesar do permanente assdio publicitrio das grandes corporaes, a dimenso ilegal das atividades corporativas est gradualmente vindo tona. Uma leitura interessante nesta linha A economia cidad, de Henri Rouill DOrfeuil: Parasos fiscais que desmpenham o duplo papel de econderijo legal para os capitais que procuram se subtrair s obrigaes fiscais e sociais e de interface com a economia do crime, cujo produto anual bruto avaliado em 1 trilho de dlares pelo FMI, de 2 a 5% do PIB do planeta as avaliaes so difceis passam assim pelos lavadores, que limpam o dinheiro sujo. Franois-Xavier Vershave, que estudou alguns desses circuitos, gosta de declarar que logo apenas os pobres e os imbecis pagaro impostos...O magistrado Jean de Maillard faz tambm um julgamento claro e lmpido: Esta mundializao da economia criminosa acompanha-se de uma criminalizao da economia mundial, e as duas tendncias tendem agora a uma lgica comun. A fuso entre a economia legal e a economia criminosa parece, portanto, atualmente realizada.

David Korten, Joel Bakan, John Perkins entre tantos outros so autores que estudam o poder das empresas transnacionais mas no elaboram teorias gerais: antes estudam o que acontece, e de que forma. Gradualmente, no entanto, aparecem regularidades, contradies e tendncias. Desenham-se assim esboos de teorias, que tero de ser confrontadas com outros estudos empricos, outras anlises setoriais.

As vises, uma vez mais, sero contraditrias: capites da corporao apontaro para as tecnologias, a eficincia, o poder criativo. Outros apontaro para os desastres ambientais, a concentrao de renda, o desemprego, a manipulao informativa, o poder destrutivo. A contradio no se resolve de dentro da esfera econmica, mas introduzindo a viso mais ampla: qualquer poder sem controle tende a degenerar. A cincia econmica tem de se ver como uma pedra a mais de um mosaico que s se torna compreensvel na sua dimenso mais ampla. O argumento bsico, no conjunto, claro: surge um amplo poder poltico, mas com cara econmica, e portanto no submetido a controles polticos, pois seria controlado pelas foras do mercado. Na realidade, no controlado por fora nenhuma.

7 - A teoria do consumo Voltemas ao eixo metodolgico que estamos seguindo neste pequeno ensaio. No se trata de uma reviso terica no sentido de analisar as grandes escolas de pensamento, e de ver como a realidade nelas ainda encontra potencial explicativo. Trata-se de partir dos eixos de maior impacto estrutural, como o poder das empresas transnacionais, ou a financeirizao das economias e assim por diante para, seguindo de forma solta idias que nos sugeriram leituras de Celso Furtado, e particularmente o seu ensaio Em busca de novo modelo, identificar os eixos de anlise que correspondem s tendncias que se desenham na literatura econmica.

No se trata de subestimar os clssicos. Estes merecem ser estudados, mas no quadro de referncia que viveram, o que exige um bom conhecimento histrico da realidade que buscaram explicar. Puxar citaes de grandes mestres, sem se dar ao trabalho de demonstrar a que ponto uma idia continua vlida no contexto atual, constitui apenas um emprstimo de autoridade. Como o comportamento das variveis econmicas depende em grande medida desses parmetros (no-econmicos), que se definem e evoluem num contexto histrico, no possvel isolar o estudo dos fenmenos econmicos de seu quadro histrico.

A cincia econmica, num contexto que se transforma, tem de se transformar. O valor do trabalho de um economista, como de resto de qualquer pesquisador, escreve Celso Furtado, resulta da combinao de dois ingredientes: imaginao e coragem para arriscar na busca do incerto. Afastando-se assim do consenso, o economista perceber que os caminhos j trilhados por outros so de pouca valia, e perder em pouco tempo a reverncia diante do que est estabelecido e compendiado.

Este ponto clarificado, queremos aqui abordar outro eixo da realidade, que o consumo. Ao consumidor, nos diz Furtado, cabe um papel essencialmente passivo. Sua racionalidade consiste em responder corretamente a cada estmulo a que submetido...O indivduo pode reunir em torno de si uma mirade de objetos sem ter em nada contribudo para a criao dos mesmos. A inveno de tais objetos est subordinada ao processo de acumulao, que encontra na homogeneizao dos padres de consumo uma poderosa alavanca. O resultado que o homem deixa de ser sujeito do processo; no quadro da racionalidade instrumental, o homem a identificado como objeto susceptvel de ser analisado e programado.

O anti-texto ideal neste ponto evidentemente o trabalho de Milton Friedman, da escola de Chicago, que com a ousadia de quem no tem contas a prestar realidade, mas corporao, escreveu, com a amvel colaborao da esposa Rose, o clssico Free to Chose, um tributo liberdade de escolher do sistema. Sempre achei que Friedman deve a sua fama e o seu pseudo-nobel muito pouco coerncia do seu pensamento, e muito mais ao fato de divulgar idias que defendem o sistema. O sistema pode ser generoso. John K. Galbraith, seguramente, no do sistema. Alm disto, escreve magistralmente. Antigamente, este magistralmente implicaria em frases complexas e expresses rebuscadas. No deserto estilstico da cincia econmica contempornea, implica sobretudo escrever de maneira simples e direta. Ao ler A Economia das Fraudes Inocentes, sentimos na leitura o prazer que Galbraith claramente teve ao escrever. o prazer de deixar as idias bem arrumadas, como contemplamos com gosto um trabalho bem feito.

O poder corporativo se veste de maneira respeitvel. A corporao deixa de ser um monoplio ou oligoplio capitalista, passa a chamar-se mercado. A verso oficial que se contruiu em torno deste mercado, segundo Galbraith, cabe em um pargrafo: No sistema de mercado, sustenta-se que o poder de ltma instncia, repetimos, est na mo daqueles que compram ou decidem no comprar; assim, com algumas qualificaes, o poder de ltima instncia o do consumidor. A escolha do consumidor d forma curva da demanda. Tal como o voto d autoridade ao cidado, assim na vida econmica a curva da demanda confere autoridade ao consumidor. O mecanismo fica bem claro, mas tem o defeito de no corresponder realidade.

A realidade o que Galbraith chama de sistema corporativo, que se apoia no monoplio ou no oligoplio, e centraliza drasticamente o poder econmico no mundo da grande empresa, corroendo o espao da concorrncia, deixando o consumidor sem opes. Por outro lado, o gigantesco sistema de manipulao do consumidor atravs da publicidade leva a que seja o prprio sistema corporativo que define o perfil da demanda. Dentro da corporao, por sua vez, o poder no mais diluido entre um grande nmero de acionistas, mas concentrado na burocracia corporativa, evidenciada entre outros pelas remuneraes astronmicas que atribuem uns aos outros. Como a oligopolizao permite manipular os preos, incorpora-se neles os custos de construo de marca e de imagem corporativa, fechando o crculo. O mecanismo de mercado foi substituido por um mecanismo de poder. Em outro estudo, Galbraith ainda mais explcito, comentando que o conceito de capitalismo saiu de moda: A referncia aprovada agora o sistema de mercado. Em vez de proprietrios de capital, temos o personagem admiravelmente impessoal chamado de foras do mercado. Seria difcil pensar numa mudana de terminologia mais coincidente com os interesses daqueles a quem o dinheiro d poder. Eles agora passam a dispor de um anonimato funcional.

Outro eixo de raciocnio de Galbraith, ou outra fraude, se d na interpretao da conjuntura macro-econmica. A falsa e favorvel reputao do FED (banco central americano) tem slidos fundamentos: h o poder e o prestgio dos bancos e dos banqueiros, e o poder mgico que se atribui moeda. Estes esto juntos e apoiam o Federal Reserve e os seus membros ou seja, os bancos que lhe pertencem. No caso de recesso a taxa de juros reduzida pelo banco central, os bancos que so membros devem repassar a taxa reduzida para os seus clientes, encorajando-os assim a pedir emprstimos. Os produtores ento produziro bens e servios, vo poder agora comprar plantas industriais e maquinaria, com os quais ganharo dinheiro, e o consumo financiado por emprstimos mais baratos aumentar. A economia responder, a recesso acabar. Se ento se produz um boom com ameaa de inflao, um custo maior do crdito tambm promovido pelo Federal Reserve e imposto aos bancos membros elevar as taxas de juro. Isso restringir o investimento empresarial e o emprstimo para consumo, reduzir o otimismo excessivo, equilibrar os pros, protegendo-nos da inflao. A dificuldade, nos diz Galbraith, que este processo altamente plausvel, e com o qual se concorda amplamente, existe apenas na crena econmica bem estabelecida, e no na vida real.

Na realidade, nos diz o autor, as taxas de juros so um detalhe quando as vendas so ms. Empresas no pedem emprstimos nem expandem uma produo que no tem como ser vendida...O que fica um fato: quando os tempos so bons, taxas mais elevadas de juros no reduzem o investimento empresarial. No importam muito; a perspectiva de um lucro maior o que conta. E na recesso ou na depresso, o fator de controle uma perspectiva de lucros baixos. Segundo Galbraith, o nico remdio totalmente confivel para a recesso um slido fluxo de demanda de consumidor. E a melhor maneira de assegurar este fluxo, no reduzir os impostos dos ricos, que poupam e especulam, mas aumentar a renda dos mais pobres, que consomem.

Vivemos assim no reino da fantasia cientfica: A cincia econmica e os sistemas econmicos e polticos mais amplos cultivam a sua prpria verso da verdade. Esta ltima no tem necessariamente relao com a realidade.

O que resta da teoria do consumo, central na viso tradicional da cincia econmica, se as empresas no precisam competir por preos cada vez mais administrados por oligoplios, se o consumidor no tem informao ou demasiado bombardeado por mensagens publicitrias para ter uma opo de consumo racional, e se a capacidade reguladora do Estado se torna irrelevante frente ao processo de globalizao? Pouca coisa, naturalmente, e o fato vai se refletir na deformao absurda das prioridades do desenvolvimento econmico. O Relatrio sobre o Desenvolvimento Humano 1998 examina os problemas do consumo sob a tica das necessidades das pessoas, o que constitui uma inovao ousada. A viso essencialmente uma chamada para a realidade: O mundo tem recursos mais do que suficientes para acelerar o desenvolvimento humano para todos e para erradicar as piores formas de pobreza do planeta. Fazer avanar o desenvolvimento humano no uma tarefa exorbitante. Por exemplo, estimou-se que o total adicional de investimento anual necessrio para atingir acesso universal aos servios sociais bsicos seria de aproximadamente $40 bilhes, 0,1% da renda mundial, pouco mais do que um arredondamento estatstico. Isto cobre a conta da educao bsica, sade, nutrio, sade reprodutiva, planejamento familiar e acesso a gua e saneamento para todos. Sob o ttulo de As prioridades do mundo?, e a ttulo ilustrativo, o Relatrio compara necessidades no cobertas por falta de recursos, e recursos de prioridade duvidosa. Por exemplo, o investimento anual suplementar para assegurar educao bsica para todos seria de $6 bilhes, que no se conseguem, enquanto se gastam $8 bilhes em cosmticos nos EUA; para assegurar gua segura e saneamento para todos, seriam necessrios $9 bilhes, e se gastam na Europa $11 bilhes em sorvete; sade reprodutiva universalizada exigiria 12 bilhes suplementares por ano, o mesmo que se gasta em pefumes na Europa e nos EUA; sade e nutrio bsicas para todos exigiria $13 bilhes suplementares por ano, e se gastam $17 em rao para animais de estimao na Europa e EstadosUnidos. Alm disso, gasta-se $35 bilhes em entretenimento para executivos no Japo, $50 bilhes em cigarros na Europa, $105 bilhes em bebida alcolica na Europa, $400 bilhes em narcticos no mundo, e $780 bilhes em despesas militares no mundo. Assim a simultnea degradao da capacidade reguladora do mercado e reduo do papel do Estado, levam a uma deformao do consumo. E quando o interesse final do consumidor no mais determinante, os processos produtivos se deformam. O mundo que herdamos deste processo cada vez mais surrealista. O que est acontecendo, na realidade, que estamos aplicando a uma realidade nova sistemas de regulao ultrapassados. Explica-se por mecanismos de mercado, teoricamente objetivos e democrticos, dinmicas que pertencem a mecanismos articulados de poder, que geram por sua vez uma cultura surrealista de comportamento econmico que tem muito pouco a ver com o que queremos da nossa vida.

Os nossos gastos so cada vez menos de compra de um produto e cada vez mais de adeso a um direito de acesso, como no plano de sade, na telefonia, na TV a cabo, no condomnio e tantos outros sistemas de consumo onde a nossa escolha extremamente limitada. A urbanizao levou a uma expanso do consumo coletivo que tambm envolve poucas opes. Somos clientes de um banco porque a nossa empresa fez um acordo de lhe fornecer determinado nmero de contas de funcionrios, e no porque o escolhemos, e a cartelizao torna inclusive as opes pouco diferenciadas. O conhecimento constitui uma mercadoria entre aspas, pois s se torna fonte de lucro se uma empresa puder limitar o acesso e cobrar pedgio sobre o seu uso. So novas realidades. E o que o capitalismo quando o elemento regulador principal que seria a demanda final deixou de exercer este papel? medida que os mercados no sentido original de mecanismo regulador democrtico de inmeros agentes econmicos deixam de operar, o sistema evolui para subsistemas diferenciados de articulao organizada de interesses, variando segundo os setores, as regies e culturas econmicas herdadas. E para entender estes subsistemas, precisamos de estudos empricos inovadores. O mercado apropriado pelos grandes grupos cada vez menos democrtico, e na realidade cada vez menos mercado. Na era das corporaes, quando a economia deixa de ser regida por leis de concorrncia de mercado, e tampouco regida pelas leis da poltica, gera-se um espao desgovernado. A democracia econmica torna-se uma necessidade. 8 - O assdio comercialNa ausncia de sistemas adequados de regulao, e em particular com a eroso da capacidade reguladora do mercado, passa a imperar o vale tudo onde quem ganha quem tem simplesmente maior tamanho, maior capacidade de compra de tempo de publicidade, um bolso mais fundo para enfrentar a guerra. Sempre nos ensinaram que a competio boa. H uma condio tcita, por trs do argumento, segundo a qual as empresas estariam competindo para nos servir melhor. Pensar que as empresas competem para melhor se servir no seria correto?A simples guerra entre empresas no necessariamente feita para o nosso bem. Cada vez mais nos perguntamos qual o papel real que desempenhamos no processo. Quando depois de meia hora gasta no telefone tentando chegar a um ser humano que nos atenda e resolva o nosso problema, o telefone de repente d ocupado, ficamos apenas com uma frase decorada, de tanto ouvida: A sua ligao muito importante para ns. E como as pessoas so levadas frequentemente a abusos escabrosos de linguagem quando uma empresa terceirizada finalmente nos atende, um aviso antecede o atendimento personalizado: Para a sua segurana, esta ligao est sendo gravada. Para a nossa segurana, naturalmente. O nosso relacionamento dirio envolve contatos com empresas ou pessoas com quem no temos interesses pessoais, mas interesses econmicos. Trata-se das pequenas negociaes do nosso cotidiano. Mas crescentemente, nos sentimos como guerrilheiros de estilingue na mo, enfrentando os canhes de gigantes empresariais que tm frotas de atendentes terceirizados e poderosas empresas de advocacia. As novas tecnologias permitem que faamos coisas distncia: a comunicao traz e leva os problemas instantaneamente, quando antigamente tinhamos que nos deslocar junto com os papis e as informaes. Esta nova cultura extremamente positiva, e est penetrando rapidamente nos procedimentos burocrticos, No entanto, quando sistemas oligopolizados como bancos, telefonia ou outros se apropriam do processo, o prprio consumidor que passa a ser terceirizado. Em artigo divertido, o muito conservador The Economist comenta: Muitas pessoas se queixam de empresas que terceirizam o trabalho para paises de baixos salrios: mas quantos notam que as empresas esto crescentemente terceirizando o trabalho para os seus prprios consumidores?...Quem j no se viu pego em sries interminveis de menus numricos? isto pode deixar clientes furiosos e alien-los. No seu desejo de cortar custos, muitas empresas dificultam deliberadamente o acesso a um operador humano. A linha cai quando voc est quase chegando at quem poderia resolver o seu problema.

Temos escolha? O artigo do The Economist constata que medida que todos os bancos adotam o sistema, o consumidor no tem como votar com os ps indo para outro banco. E as diversas instituies esto crescentemente penalizando o acesso personalizado, mesmo via telefone. No h notcias de bancos reduzirem as tarifas. Passamos a pagar por um servio que ns mesmos fazemos. Segundo a revista, voc talvez no o tenha notado, mas voc agora est trabalhando tambm para o seu banco ou companhia telefnica. No exemplo apresentado, o auto-servio online pode reduzir o custo de uma transao at um mnimo $0,10, comparado com $7 para fazer a mesma transao num call centre.

As frias com a publicidade no solicitada nos nossos computadores refletem igualmente o sentimento de impotncia crescente que sentimos. Nos Estados Unidos, esto introduzindo leis para limitar o junk faxing, publicidade enviada para os nossos aparelhos de fax, e impressas no papel e com o toner que compramos. As empresas de publicidade acham que sai mais barato. As ruas da nossa cidade vo gradualmente sendo cobertas de out-doors, massacrando-nos com imagens no solicitadas. H algum limite tico? Outro artigo de The Economist relata a guerra da Coca-Cola, Pepsi e outros contra a gua e o leite nas escolas: em troca da instalao de mquinas de venda de refrigerantes, as escolas ganham bolsas, software, equipamento de esporte e mais.

interessante ver outra dimenso deste cruzamento do poder econmico centralizado da corporao com a capilaridade das novas tecnologias. Quando o computador de uma empresa pode enviar, praticamente sem custos, 10 milhes de mensagens que chegam ao nosso domiclio ou escritrio, as relaes econmicas mudam. Inclusive, o mesmo mecanismo permite, por exemplo, acrescentar uma pequena taxa ao que estamos pagando, sem que o notemos. A revista americana Business Week, ao fazer um relatrio especial sobre o assunto, concluiu que os Estados Unidos, que eram Land of the Free, esto se tornando rapidamente Land of the Fee, terra das cobranas enrustidas (hidden charges).

O artigo mostra por exemplo como a empresa AT&T, ao acrescentar uma mdica taxa de avaliao regulatria de 99 centvos por ms na conta dos seus clientes de chamadas distncia, levantou algo como 475 mihes de dlares. Cobranas discretas aos consumidores que pagam as suas contas online trazem aos bancos lucros estimados em US$2 bilhes. Segundo o artigo, as empresas no podem elevar os preos sem perder negcios, ento elas esto enterra