pomian, krzystof - história cultural, história dos semióforos

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* balão ou, pior ainda, a péssima antropo-história cujos estragos obser- vamos entre os menos bons - e não apenas os menos bons, corn efeito ... - dos nossos estudantes. Creio, simplesmente, que os jovens investigadores mais lúcidos compreenderão rapidamente a necessida- de de o seu campo de investigação ou, pelo menos, de cultura histórica. Estou, pois, profundamente consciente do que sinto como um perigo, ainda que o não sobrestime. Estou profundamente convencido da importância essencial da história social (também aqui, no sentido mais amplo, como é evidente) e ainda, sem jogar com as palavras, da prática social da história. Mas também não poderia esconder a minha certeza da felicidade de ser historiador, e que a maior dessas felici- dades é ser historiador da cultura 25 25 Devo agradecer a Faí'ích Roudaut e Yvon Tranvouez pela amável leitura crítica das primeiras versões deste texto. 70 HISTÓRIA CULTURAL, HISTÓRIA DOS SEMIÓFOROS Krzysztof Pomian A história como conhecimento universitário, no sentido que damos a esta expressão - não o comentário das obras de antigos historiado- res, mas o estudo, a explicação e a descrição do passado -, tem as suas origens em Goettingue na segunda metade do século XVIII. Os duzen- tos anos que de então nos separam são divididos em três grándes periodos. No primeiro, que durou até à segunda metade do século XIX, foi a história político-diplomática que teve o papel dirigente no con- junto de disciplinas históricas. No segundo, que terminou no decurso dos anos setenta do nosso século, esse papel competiu à história económica e social. A partir de então, pertence à história antropoló- gico-cultural. Na época da sua preeminência, cada uma destas disciplinas tenta tratar as outras duas como auxiliares ou fornecer-lhes os conceitos que supostamente lhes permitem pensar o passado que sondam, integrá- -lo numa totalidade inteligível. Mas, no essencial, cada uma privilegia um outro objectivo. A primeira, o Estado enquanto detentor da sobe- rania, promotor das leis cujo respeito por ele imposto assegura a no seu território, único agente legítimo das relações internacio- nais, habilitado para concluir os tratados e fazer a guerra. A segunda, as classes sociais diferenciadas pelo lugar que ocupam na produção ou repartição dos rendimentos e portadoras dos interesses e das aspuações opostas, até mesmo incompatíveis. A terceira, as obras os seus autores individuais ou colectivos e os comportamentos grupos humanos a que pertencem, que definem o carácter espe- d c1 desses grupos, todos contribuindo para criar o seu sentimento e Id ·d ' enh ade. E dela que trataremos de imediato. 71

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Texto de Krzystof Pomian - História Cultural, História dos Semióforos.

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    balo ou, pior ainda, a pssima antropo-histria cujos estragos obser-vamos entre os menos bons - e no apenas os menos bons, corn efeito ... - dos nossos estudantes. Creio, simplesmente, que os jovens investigadores mais lcidos compreendero rapidamente a necessida-de de a~argar o seu campo de investigao ou, pelo menos, de cultura histrica.

    Estou, pois, profundamente consciente do que sinto como um perigo, ainda que o no sobrestime. Estou profundamente convencido da importncia essencial da histria social (tambm aqui, no sentido mais amplo, como evidente) e ainda, sem jogar com as palavras, da prtica social da histria. Mas tambm no poderia esconder a minha certeza da felicidade de ser historiador, e que a maior dessas felici-dades ser historiador da cultura25

    25 Devo agradecer a Fa'ch Roudaut e Yvon Tranvouez pela amvel leitura crtica das primeiras verses deste texto.

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    HISTRIA CULTURAL, HISTRIA DOS SEMIFOROS

    Krzysztof Pomian

    A histria como conhecimento universitrio, no sentido que damos a esta expresso - no o comentrio das obras de antigos historiado-res, mas o estudo, a explicao e a descrio do passado -, tem as suas origens em Goettingue na segunda metade do sculo XVIII. Os duzen-tos anos que de ento nos separam so divididos em trs grndes periodos. No primeiro, que durou at segunda metade do sculo XIX, foi a histria poltico-diplomtica que teve o papel dirigente no con-junto de disciplinas histricas. No segundo, que terminou no decurso dos anos setenta do nosso sculo, esse papel competiu histria econmica e social. A partir de ento, pertence histria antropol-gico-cultural.

    Na poca da sua preeminncia, cada uma destas disciplinas tenta tratar as outras duas como auxiliares ou fornecer-lhes os conceitos que supostamente lhes permitem pensar o passado que sondam, integr--lo numa totalidade inteligvel. Mas, no essencial, cada uma privilegia um outro objectivo. A primeira, o Estado enquanto detentor da sobe-rania, promotor das leis cujo respeito por ele imposto assegura a

    or~em no seu territrio, nico agente legtimo das relaes internacio-nais, habilitado para concluir os tratados e fazer a guerra. A segunda, as classes sociais diferenciadas pelo lugar que ocupam na produo ou ~a repartio dos rendimentos e portadoras dos interesses e das aspuaes opostas, at mesmo incompatveis. A terceira, as obras

    ~orn os seus autores individuais ou colectivos e os comportamentos ~ grupos humanos a que pertencem, que definem o carcter espe-

    dc1 1~0 desses grupos, todos contribuindo para criar o seu sentimento

    e Id d ' enh ade. E dela que trataremos de imediato.

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    A abordagem semitica e a abordagem pragmtica

    Tomemos a ttulo de exemplo narrativas que habitualmente s atribuem literatura. E comparemos duas abordagens, de entre a~ quais uma as toma por obras literrias e a outra por livros. Suponha. mos que so aplicadas com conhecimento de causa e constncia e no como acontece frequentes vezes, misturadas uma na outra sem se dar por isso. Suponhamos tambm que nenhuma utiliza processos, no seu quadro, ilegtimos.

    Comeamos por verificar que a obra literria invisvel. Porque o que vemos sempre um livro, manuscrito ou impresso, e neste, pginas cobertas de manchas de tinta de formas diversas. Para passar destas pginas e destas manchas obra literria, necessrio dispor de uma capacidade que ultrapasse, e de longe, a de ver de forma correcta. preciso saber ler, isto , reconhecer essas manchas como signos de uma escrita, relacion-los com os sons de uma determinada lngua e compreender as associaes desses sons: relacion-los por sua vez com o que significam, com o que designam e com o que exprimem. , pois, necessrio possuir ao mesmo tempo a memria da lngua e a da escrita, preciso saber pensar, isto estabelecer entre as unidades lingusticas de diferentes nveis laos que constituam um todo, na ocorrncia, a obra literria. E estas so apenas as condies mnimas necessrias.

    A obra literria , pois, um objecto invisvel, e o livro um objecto visvel. Esta diferena de estatuto ontolgico tem por consequncia vrios outros. A obra literria invariante em relao s suas reali-zaes fsicas, se s existir entre elas uma correspondncia biunvoca; pode-se recit-la, escrev-la, imprimi-la, numer-la, continua a ser a mesma. invariante em relao s suas realizaes psquicas, e por isso que, sendo embora to numerosas como os leitores, estes podem, falando a seu respeito, falar de uma mesma obra, conquanto que disponham das competncias que lhes permitam compreend-la. E invariante finalmente em relao s suas realizaes lingusticas, 0 que torna possveis as tradues. Dito isto, no primeiro caso a obra no sofre qualquer deformao, ao passo que pode ser muitssimO deformada nas outras duas. Basta, porm, satisfazer certas condies para que a identidade da obra no seja afectada. Consegue-se mesmo

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    , la de forma a ser reconhecvel, quando ela transposta fora pres_erva-ge'm numa sequncia de imagens imveis, num espectculo da bngua ,

    trai ou num filme. tea "ntil demonstrar prolongadamente que nada disto se aplica ao .

    1 inseparvel da sua forma fsica; da os problemas jurdicos e

    trvro, b"bl" ' d" I' fi ceiros que hoje levanta aos 1 wtecanos, e 1tores e 1vre1ros a managao das tcnicas informticas de registo. Estaremos provavel-

    prop A d , d nte de acordo que uma sequenc1a e numeros reg1sta a numa

    : uette e lida por uma mquina no inteiramente um livro. Mesmo u!do parece realizar uma ou outra obra literria e at quando, uma ~ez a mquina ligada a uma impressora, permite produzir um livro,

    diferencia-se dele no seu princpio, porque um livro, por definio, deve poder ser lido sem a mediao de uma mquina. Noutros termos, um livro oferece-se percepo na qualidade de livro na medida em que 0 distinguimos, a olho nu, de um conjunto de folhas de papel brancas ou cobertas de manchas sem. qualquer significado. O que no acontece no caso de uma disquette, da qual no sabemos se virgem ou se contm um registo antes de a termos introduzido numa mquina a que adaptada. Sob este ponto de vista, as microformas no so livros: embora vejamos a olho nu que esto cobertas de signos, no podemos l-los sem um leitor apropriado. Porm, um rolo de papiro ou um cdice em pergaminho so formas diferentes do livro.

    Ao inventrio das diferenas entre o livro e a obra literria, pode-mos agora acrescentar algumas mais. A obra literria existe fora do tempo e do espao, pois, sempre e em toda a parte, ela conserva-se idntica a si mesma. Neste sentido uma entidade ideal. O livro, como objecto visvel, mas tambm tctil, existe evidentemente no tempo e no espao: ocupa lugar, pesa, muda. A obra literria , em cada caso, nica: s existe uma Madame Bovary e no mais que uma I!ivina .:omdia. A cada obra literria correspondem porm vrios hvros. E verdade que acontece as obras conservarem-se num nico manuscrito ou num nico exemplar impresso. Mas esses casos, sem-pre excepcionais, so cada vez mais raros.

    Na qualidade de entidade ideal, a obra literria s requer duas pessoas: o narrador que a cria e o leitor a quem dirigida e que apenas um leitor virtual. Um e outro tm uma existncia to ideal como a prpria obra, e unicamente a obra que permite encontr-los.

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    O livro, esse, pe a trabalhar indstrias completas, que produzem 0 papel, as tintas, o material de imprensa; exige tambm impresso energia, transporte, publicidade. Mobiliza, alm disso, toda uma co~ lectividade: o autor como pessoa fsica e papel social, o editor com a sua equipa, o pessoal de imprensa, o distribuidor e os seus servios, os transportadores, os livreiros, os leitores, que devem dispor no s das competncias apropriadas mas tambm do poder de compra que lhes permita adquirir o livro ou, na sua falta, da possibilidade de ler numa biblioteca. Requer capitais e normas que regulem as relaes entre os diferentes agentes do mercado, no qual d lugar a todo um conjunto de transaces. Necessita, pois, em pano de fundo, do di-reito, da justia e do Estado.

    A histria das obras literrias est organizada atravs de relaes puramente formais; similitudes, oposies, emprstimos, transforma-es. Falando de um modo estrito, no tanto uma histria mas uma combinatria imperfeita, considerando a sucesso temporal. Quanto geografia, sociologia ou economia das obras literrias, estas esto excludas por definio, dado estas ltimas serem entidades ideais. Passa-se de outro modo com o livro. Estuda-se a sua histria, dese-nham-se mapas da propagao de certos ttulos, das imprensas, das livrarias, das bibliotecas; investiga-se sobre a leitura em funo do sexo, da idade, dos rendimentos, das profisses exercidas, do nvel de educao, do tempo que se lhe dedica, da preferncia por certos gneros de escrita, por certos assuntos, por certos autores; analisam-se os custos da produo e da distribuio, os preos, os encargos fiscais.

    Todas estas coisas, no entanto perfeitamente conhecidas, s foram aqui recordadas para destacar, da maneira mais flagrante, o contraste entre duas abordagens dos escritos atribudos literatura, derivando uma de diferentes teorias, principalmente fenomenolgicas e estrutu-ralistas, da obra literria, da literatura e dos gneros literrios, e sendo a outra representada pelo conjunto de investigaes sobre o livro, os peridicos e as bibliotecas. Estas duas abordagens - falaremos tam-bm de tratamentos ou perspectivas- excluem-se reciprocamente, no sentido em que uma no deixa qualquer lugar outra; alis, cada uma coloca questes diferentes, desdobrando-se em realidades diferentes. A primeira, entre signos, significados e estruturas; a segunda, entre as coisas, as aces e as sries temporais. A primeira ser designada, a

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    ir de agora, como abordagem semitica; a segunda, como abor-part ragmtica. Uma e outra encontram-se presentes, desde os tJagem p 1 - , d 1" , .

    . . s decnios do scu o XX, nao so nos estu os Iterarws, mas Pnmeiro d , . d . A h b em quase todos os om1mos as Ciencias umanas. tam m d 1' . . 1 . Temos assim, no estudo as artes p asti~as,. a Ic?no og1a, que ~e

    a Prloritariamente pelo que se mantem mvanante em relaao jnteress ssagem da escrita e, portanto, da linguagem usual a traos de

    pa 1 - d 1d d d 1"' de pincel ou tesoura, CUJa ass1m1 aao a uma mo a 1 a e a llpiS, lh 1. . linguagem autoriza uma leitura das o?ras de -~e ~ara . e e:p I Citar as significaes. No plo op~sto, existem varias mvestlgao~s, q~e tratam principal, seno exclusivamente, das obras enquanto VISIVeis ou observveis: produzidas, em cada caso, pela mo e pela vista de certo indivduo; conjuntos de certos materiais de determinadas dimen-ses; aplicaes de diferentes tcnicas; objectos da parte dos indiv-duos ou dos grupos desta ou de uma outra recepo, atestada pelos preos pagos por eles, os lugares em que se expem, as maneiras de os expor e os comentrios feitos a seu respeito. No estudo das crenas mgicas, religiosas ou ideolgicas, ou das doutrinas filosficas, teo-lgicas, polticas, jurdicas, sociais, econmicas, etc., deparamos com a histria das ideias unicamente interessada, sobretudo em alguns dos seus adeptos, por entidades invariantes em ateno s suas rea-lizaes, sejam elas quais forem, e livres de qualquer ligao a um tempo ou um espao; numa palavra, por entidades ideais e portanto designadas justamente por um nome de ressonncias platnicas. Opem-se-lhe investigaes que colocam os discursos proferidos oral-mente ou por escrito entre os comportamentos visveis, ou que o foram, dos indivduos, dos grupos, das organizaes e das instituies situadas num tempo histrico e ao mesmo tempo num espao fsico e social. E que tentam estabelecer no que so as ideias que se supe veicularem imperturbavelmente uma ou outra narrativa, a qual presu-mivelmente o historiador pe em evidncia, mas como esse escrito foi c~mpreendido pelos seus leitores em pocas sucessivas da sua recep-ao, que reaces suscitou, que mal entendidos causou, que contro-vrsias desencadeou. Acontece o mesmo com o estudo da cincia em que queles que a tratam como ideal, em todos os sentidos do termo, e que portanto assemelham a sua histria a uma sucesso de teorias, Produtos de puro trabalho intelectual dos indivduos desinteressados,

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    consignados em escritos, se opem aqueles que insistem no papel da experimentao e, portanto, dos instrumentos que se manipulam, em todos os sentidos do termo, bem como na dimenso social e material da investigao, com os seus conflitos e as suas rivalidades em redor de objectivos como o poder, o dinheiro ou o prestgio.

    Evidentemente que isto no esgota a pluralidade de abordagens manifestadas nas publicaes respeitantes aos domnios passados ra-pidamente em revista, pois acontece durarem sem modificao desde o sculo passado, assunto a que voltaremos. Subsiste que, nas cincias humanas contemporneas, a linha divisria principal ope o tratamen-to semitica ao tratamento pragmtico. Todavia, essa dualidade faz a tal ponto parte da paisagem que j nem se d por isso. Se, entre os anos vinte e os anos cinquenta, os promotores do tratamento semitica lutavam por lhe assegurar, em primeiro lugar, o direito de cidadania e, depois, uma posio dominante, mesmo exclusiva, multiplicando as polmicas, os manifestos e os programas, h cerca de trs decnios que reina nas cincias humanas uma coexistncia pacfica. Uns enca-ram os objectos que estudam numa perspectiva semitica, outros, numa perspectiva pragmtica, uns terceiros agem de forma ligeira, pois, inconscientemente, conjugam uma e outra como se no fossem incompatveis. Outros ainda tentam, por vezes com xito, encontrar uma perspectiva unitria; como a maior parte das vezes no a justi-ficam atravs de consideraes tericas, no se distinguem dos que ilegitimamente misturam as duas. S aqueles que contestam as cin-cias humanas no seu prprio princpio poderiam introduzir um pouco de dissenso, argumentando que elas s produzem fices e que os dados apresentados para justificar as afirmaes ali enunciadas so processos retricos utilizados para impor ao pblico opinies irreme-diavelmente arbitrrias. Mas eles s raramente avanam de rosto descoberto.

    Os semiforos entre outros objectos visveis

    Voltemos obra literria e ao livro, mas olhando-os agora de outra forma, para observar que no temos geralmente experincia nem do significado puro nem do objecto visvel. Temo-lo de um livro como

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    rte da obra literria; mais exactamente, como unio de signos que supocrevem essa obra - por exemplo, letras do alfabeto latino reuni-tr~ . d de acordo com as regras de uma determmada hngua ou de as d . gens a preto e branco ou a cores - e de um suporte esses s1gnos: tma . folhas de papel coladas ou cosidas sob a mesma capa. Folhas 1mpres-

    s coladas ou cosidas numa determinada ordem, para que algum as sa , leia pela ordem que prescrevem. Por outras palavras, para programar 0 comportamento de um destinatrio e fazer dele um leitor.

    Visto sob este ngulo, o livro j no s um objecto visvel: remete para um destinatrio que lhe exterior ou para um significado invisvel que se supe poder ser extrado por aquele ao l-lo. Mas a obra literria, por seu lado, no s uma entidade ideal, pois existe realiter no intelecto do leitor: quando ele l um livro e o compreende, este programa, numa certa medida, que depende do seu contedo e das circunstncias, o seu modo de ser interior e por vezes at os seus comportamentos. Nesta perspectiva, o livro um semiforo: um ob-jecto visvel investido de significado.

    Mas no o de uma vez por todas. Ser semiforo uma funo que o livro s conserva quando se adopta face a ele uma das atitudes programadas pela sua prpria forma: quando o lemos ou o folheamos ou, pelo menos, quando o colocamos nas prateleiras da nossa biblio-teca, de uma livraria, de uma loja de alfarrabista. Trata-o tambm como semiforo aquele que o preserva por ver nele um livro, sem no entanto estar disposto a l-lo, ou que s v nele um objecto estranho ou precioso que, por essa razo, resolve guardar. E aquele que o manda queimar, convencido de que pode exercer uma influncia nociva sobre os leitores ou por querer destruir as produes escritas de um grupo, com o fim de destruir esse mesmo grupo. Mas quando se cala com um livro um mvel que abana ou quando se utiliza um livro para alimentar o lume, ele deixa de ser um semiforo e toma-se uma coisa, noo que se explicar mais tarde. verdade que a prpria aparncia de um livro sugere que foi produzido para ser lido ou olhado. Mas isso no basta para ser actualmente um semiforo, se ningum for capaz de lhe reconhecer capacidade de exercer essa funo.

    Abandonemos aqui o exemplo do livro. E para clarificar a noo de semiforo e mostrar o seu alcance em toda a sua generalidade, procedamos a uma classificao do conjunto de objectos visveis

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  • (deixaremos portanto de lado todos os objectos percebidos pelos outros sentidos que no a vista). Tal classificao exaustiva de objectos visveis composta de um pequeno nmero de rubricas, em virtude da sua extrema heterogeneidade, parece antecipadamente condenada ao fracasso. Assim seria, de facto, se ficssemos reduzidos classifica-o dos objectos apenas segundo as suas formas e os seus materiais. O nosso projecto seria no entanto fcil de realizar, se classificssemos os objectos, segundo a sua gnese, em produes naturais e produes humanas. Torna-se um pouco mais difcil, mas continua a ser reali-zvel, quando apelamos a funes dos objectos identificados, por cada um, ao destino que lhe confere o produtor, individual ou colectivo, e ao emprego que dele fazem os utilizadores, e tentamos por conseguin-te dividir o conjunto de objectos visveis nalgumas classes funcionais.

    Neste ponto, no deixaro de nos retorquir que existem tantos destinos conferidos aos objectos como tipos de objectos e que, por-tanto, o critrio funcional no permite evitar a multiplicidade quase ilimitada em que nos encerram os critrios morfolgico e material. Mas no assim. Porque, de modo diferente das formas que, como todos os materiais, so qualitativamente irredutveis umas nas outras, as funes, por mais especficas e precisas que sejam, so tratadas como casos particulares das funes mais gerais, o que ilustra a his-tria das ferramentas, por exemplo, marcada pela sua diferenciao progressiva. A nossa inteno pois determinar as funes mais gerais que permitissem dividir o conjunto de objectos em algumas classes, no interior das quais se pudesse ento proceder a especificaes to afianadas quanto se deseje.

    Apresenta-se tambm uma outra objeco segundo a qual, regra geral, o destino de um objecto no coincide com o seu emprego ou empregos. Veremos mais tarde exemplos. Como se pode ento com-parar a funo de um objecto com o seu destino e o seu emprego? Para responder, observemos primeiro que o destino fixado para um objecto pelo seu produtor, individual ou colectivo, dita a escolha dos materiais utilizados para o fabricar e a forma que lhe ser imposta. A funo de um objecto est pois inscrita na sua aparncia e por esta tornada visvel. Quanto ao emprego ou empregos, deixam em geral vestgios, que modificam em graus variveis estes ou outros aspectos da aparn-cia original. Inscrito na aparncia visvel do objecto, o seu destino

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    L

    inicial determina o leque dos seus empregos mais provveis. Mas os empregos reais do objecto podem por vezes distanciar-se muito. Entre um e outros desenvolve-se toda a histria do objecto nas mos do homem: consequncia das variaes da sua funo no tempo e no espao e das mudanas que por esse facto sofre a sua aparncia visvel.

    Observemos agora que existem com toda a evidncia objectos visveis, dos quais uns no tm qualquer destino, por no terem sido produzidos pelos homens, e os outros sem qualquer emprego, o que traduz a sua eliminao do espao em que vivem. Uns e outros pa-recem levantar o problema de uma classificao funcional dos objec-tos visveis. De facto, eles trazem-lhe uma confirmao. Antes de terem sido transformados pelos homens, as matrias-primas, as plan-tas e os animais selvagens, elementos tais como a gua, a terra, o ar e o fogo, ateado pelo sol, pelo raio ou pelos vulces, o prprio corpo humano, enfim, no tm nenhum destino original. Tm, no entanto, empregos, dos quais os mais provveis so determinados pelas suas aparncias visveis ou pelas propriedades que se lhes observam. o que os constitui numa classe funcional parte que rene tudo o que os homens encontram sua volta; os objectos que dela fazem parte recebem o nome de corpos. Passemos aos que no tm qualquer emprego. Os sinais que apresentam mostram que, diferentemente dos corpos, tiveram todos um destino e empregos a que j no se prestam, quer por causa das mudanas sofridas na sua aparncia visvel ou nas suas proprie?ades observveis, quer porque os seus prprios utilizadores m~daram. E o que os constitui numa classe funcional parte que reune tudo o que os homens abandonam, eliminam ou destroem; os objectos que fazem parte deste grupo recebem o nome de restos.

    Entre os corpos e os restos que, evidentemente, se deixam uns e outros dividir em numerosas rubricas, para ns no pertinentes, repar-tem-se outras classes de objectos. Tomemos os objectos destinados a t~ansformar a aparncia visvel ou as propriedades observveis, ou ~Inda ~modificar a localizao de outros objectos, quer sejam corpos, Inclusive o corpo humano, quer sejam provenientes de uma transfor-ma , d

    o previa os corpos, mesmo de uma cadeia, frequentemente muito longa, de tais transformaes. Destinados tambm a permitir aos homens proteger-se ou protegerem outros objectos contra as ameaas

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  • externas, quer se trate de variaes do meio ou de agresses; desti-nados, finalmente, a serem directamente consumidos ou transforma-

    . dos a fim de se prestarem ao consumo. Todos os objectos que fazem parte desta classe recebem o nome de coisas. So as mquinas, as ferramentas, os instrumentos, os meios de transporte, as habitaes, o vesturio e as armas, a alimentao e os medicamentos. So tambm as coisas no necessariamente inanimadas, as plantas cultivadas e os animais criados com a finalidade de se lhes atribuir um dos empregos que se acabam de enumerar. E so ainda os homens quando os seus corpos so sujeitos a semelhante tratamento.

    classe seguinte pertencem os objectos destinados a substituir, completar ou prolongar uma troca de palavras, ou a conservar-lhe o vestgio, tornando visvel e estvel o que de outra forma ficaria evanescente e acessvel unicamente ao ouvido. Recebem o nome de semiforos. J estudmos um destes espcimes e voltaremos a encon-trar vrios outros quando propusefQ10S a sua classificao. Entretanto, destacamos os traos que lhes so comuns, pois resultam da sua pr-pria funo. O primeiro serem compostos, cada um, de um suporte e de signos que, sem formar sempre uma linguagem, servem todavia de linguagem.

    Cada semiforo inserido numa troca entre dois ou mais parceiros e entre o visvel e o invisvel, pois cada um remete prioritariamente para alguma coisa actualmente invisvel e que no poderia, portanto, ser designada por um gesto, mas unicamente evocada pela palavra; somente de uma maneira derivada e secundria acontece os semiforos remeterem para alguma coisa presente aqui e agora. Na medida em que substitui alguma coisa invisvel, a mostra, a indica, a recorda ou conserva dela vestgio, um semiforo feito para ser olhado, quando no examinado nos seus mnimos pormenores. Para impor aos seus destinatrios a atitude dos espectadores. Da a escolha dos materiais e das formas susceptveis de atrair e fixar o olhar, que, para produ-zirem este efeito, devem destacar-se do meio ambiente, devendo ain-da, comparados aos componentes deste, ser raros. Donde, e em segui-da, os semiforos formarem uma hierarquia consoante a raridade dos seus materiais e das suas formas. Donde, finalmente, a importncia atribuda aos caracteres da sua aparncia que manifestam o invisvel e que so portanto signos: isso leva a rode-los de uml). proteco,

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    proporcional posio de cada tipo de semiforos na hierarquia, para lhes poupar a usura que sofrem as coisas que, transformando os cor-os ou outras coisas, se transformam inevitavelmente elas prprias ao

    ponto de se tomarem irreconhecveis e, portanto, inutilizveis. p A par das coisas e dos semiforos, existe finalmente uma classe de objectos que, aparentados em diversos graus com umas e outros, se distinguem todavia pelas suas funes. So destinados, com efeito, a produzir semiforos. Fazem parte da classe de objectos visveis como selos, sinais, pincis, punes, buris, lpis, esferogrficas, mquinas de escrever e de imprimir, aparelhos fotogrficos, microfo-nes, magnetofones, cmaras, emissores com as suas antenas, recepto-res de rdio e TV, fotocopiadoras, telex, magnetoscpios, computado-res, com os seus discos, disquetes, cassetes e filmes. Dela fazem tambm parte relgios, balanas, rguas graduadas, bssolas e todos os instrumentos de observao e medida. So todos semiforos, pois cada um composto de um suporte e de signos. Mas isto secundrio no seu caso, como secundrio para uma mquina o facto de ter uma marca de fbrica e que a toma acessoriamente um semiforo. Tam-bm secundrio que alguns, semelhana das coisas, transformem a aparncia visvel dos corpos ou de outras coisas para neles fazerem surgir signos e, deste modo, eles prprios se transformem, sofrendo o desgaste. Porque a primeira funo de todos estes objectos no a de serem investidos de significados nem a de fabricarem coisas, mas a de produzirem ou transmitirem os signos com os seus suportes visveis ou observveis, isto os semiforos. Concordemos em dar--lhes a partir de agora o nome de media.

    O conjunto de objectos visveis pode assim dividir-se, de maneira aparentemente exaustiva, em cinco classes funcionais: os corpos, os reAsto!, .as coisas, os semiforos e os media. V-se primeira que os tre.s ulhmos correspondem a patamares de uma sucesso histrica: as COisas so bem . . . , + -be . mais antigas que os semiOtoros, que sao por sua vez d. ~ mais antigos que os media, no tendo comeado estes ltimos a

    ~stmguir-se ao mesmo tempo de uns e de outros seno a partir do 71ulo XVI. Por outro lado, um objecto no fica ligado definitivamente c asse a que pe t . . - . r ence na ongem, quanto mais nao seJa porque cada

    um corr po e

    0 nsco de passar a ser cedo ou tarde um resto. Nada probe, r outro lad .

    o, que os obJectos mudem de funo no decurso da sua

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  • histria: veremos mais tarde que isso acontece mais frequentemente do que se pensa. Em especial, a degradao de um objecto entre os restos no necessariamente definitiva, pois conhecemos os casos de reconverso dos restos e especialmente da sua promoo ao nvel de semiforos. A prpria irreversibilidade do percurso conduz os corpos a outras classes de objectos.

    A diversidade de semiforos

    Voltemos agora ao livro por ser cmodo escolh-lo para ponto de partida de um estudo mais aprofundado dos semiforos, pois j muito falmos dele. Comecemos portanto por aqueles que, como o livro, so produtos para serem lidos e que, por conseguinte, so como ele com-postos cada um de um suporte e de signos de escrita. So as publi-caes peridicas, jornais, impressos oficiais, folhas soltas, cartazes, manuscritos e escritos mquina, partituras, quadros numricos, ins-cries, placas com nomes de rua ou de instituio, dsticos juntos a quadros ou a outros objectos expostos, marcas de fbrica, rtulos, tabuletas. Dar-se-lhes- a partir de agora o nome de textos. Eles cons-tituem ao mesmo tempo uma classe funcional e uma classe morfolgica; esta ltima porque os signos de escrita que contm so os elementos constitutivos da sua aparncia visvel. Mas, sob outros aspectos, so muito heterclitos. Assim, entre os suportes dos signos, encontram--se, a par do papel, os metais, a pedra, os tecidos, o vidro ou as matrias plsticas. De igual modo, no interior da funo que faz deles semiforos e que consiste, recordemo-lo, em substituir, prolongar ou completar uma troca das palavras ou conservar os seus vestgios, eles tm, como vamos ver, funes especficas muito diferentes.

    Sempre a partir do livro, que pode destinar-se no s a ser lido, mas, prioritariamente, a ser visto, passemos s imagens. E, em primeiro lugar, aos quadros, pintados, tecidos, bordados, desenhados, gravados, reunidos com diversos materiais, compostos de homens e de objectos como em espectculos, que se deixem ver directamente ou por inter-mdio de um registo, compostos tambm de plantas e de bosquezinhoS em jardins de recreio, ou ainda de imveis, em certas paisagens ur-banas onde lugares com vistas so expressamente preparados para

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    permitir fix-los como quadros. Reunamos os desenhos, as estampas, s fotografias, os mapas, os planos, as maquetas, os modelos, as

    :sculturas, as instalaes. Exactamente como os textos, as imagens forrnam uma classe ao mesmo tempo funcional e morfolgica. Mas, comparadas com os textos, distinguem-se principalmente pelo carc-ter dos signos que contm e que j no so, no seu caso, idnticos aos signos da escrita. So mesclas do preto e do branco, cores, linhas, manchas, superfcies, volumes, mmicas e gestos - e as relaes que se estabelecem entre eles. So, alm disso, acidentes da feitura, o polido ou a rugosidade, o brilho ou o mate, a transparncia ou a opacidade. Por vezes, so tambm dimenses. Concordemos em dar a estes elementos das imagens o nome de signos icnicos.

    Vrios traos os distinguem dos signos de escrita. Estes so inseparveis da linguagem, cujos sons representam como as letras do alfabeto, ou como os conceitos relativamente aos ideogramas. Os outros s tm com a linguagem um lao extremamente subtil. Tomados cada um parte, nada representam, necessrio conjugar vrios e separar o conjunto assim criado do exterior para que possam eventual-mente representar alguma coisa. Os signos de escrita, para serem reconhecveis, devem conformar-se com um modelo. Os signos icnicos dependem totalmente daquele que os traa. Os primeiros s podem ser combinados segundo certas regras. Os segundos deixam-se combinar livremente, sendo cada combinao apreciada consoante o efeito que produz no espectador. Os primeiros so autnomos em relao aos seus suportes. Os segundos podem no dispor, em relao a estes ltimos, de qualquer autonomia e, quando a tm, ela em geral muito limitada.

    Os textos descrevem todas as modalidades do invisvel. As ima-g~ns podem mostrar somente algumas, as que pertencem ao passado, amda que as situemos na realidade transcendente. O futuro no pode

    ~er mostrado, pois no poderia ser visto antes de se ter realizado; as Imagens que pretensamente o do a ver s veiculam vises. Conhe-cen:os todavia semiforos que remetem para o futuro e que, por essa razao con t"t . . d"t ' sI uem uma classe funciOnal, embora tendo formas mmto

    i~'er~ntes. So as notas de banco e as moedas, cujo significado enhco ao seu poder de compra, isto , o conjunto de mercadorias

    contra d~ as qums se poder troc-las chegado o momento. Com os herent . es mstrumentos de crdito, pertencem a uma classe distinta de

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    A-... j

  • semiforos que, falta de melhor, ser designada como a dos substi-tutos dos bens e de que faziam parte, noutras sociedades, os lingotes de ouro ou prata, as conchas, o gado, alguns tecidos, algumas cer-micas, etc.

    Outros semiforos remetem tambm para o futuro, no por repre-sentarem objectos contra os quais se possam efectuar trocas, mas por regerem os futuros comportamentos dos homens. As luzes da sinali-zao nas estradas e os numerosos ideogramas que prescrevem a feitura disto ou daquilo, probem a eqtrada em tal porta, indicam o local de tal servio, ou ainda os cones sobre os quais necessrio carregar para obter a resposta desejada do computador, fornecem outros tantos exemplos desta classe de comandos, em plena expanso. Tam-bm neste caso, depara-se-nos uma classe exclusivamente funcional, pois, atendendo ao critrio morfolgico, os seus elementos so muito heterogneos: textos, imagens, cores, luzes contnuas ou intermiten-tes, linhas ininterruptas ou entrecortadas.

    Colocadas sobre os edifcios, o vesturio ou as coisas, mesmo direc-tamente sobre o corpo humano, o que acontece no caso dos uniformes, adereos, jias, tatuagens, escarificaes e mutilaes rituais, mudan-as cosmticas, modificaes do estado natural da cabeleira, as insg-nias utilizam signos icnicos e mesmo imagens, mas acontece apela-rem tambm a textos. No entanto, no remetem nem para o passado nem para o futuro; manifestam caracteres presentes mas invisveis do indivduo cujo corpo fornece o suporte: a sua insero num grupo tnico, confessional ou profissional, o seu lugar na hierarquia social, por vezes certos traos da sua personalidade. Manifestam tambm caracteres invisveis do objecto sobre o qual se aplicam: a natureza da instituio que se encontra em certo edifcio, o nvel da pessoa que usa determinado vesturio, o facto de certa coisa pertencer a determi-nada pessoa ou grupo. Notemos de passagem que os objectos inani-mados no so os nicos a ser semiforos. Acontece tambm com plantas ou animais, quando os fazemos usar esta ou aquela insgnia. Quanto aos homens, so sempre semiforos; mesmo quando no tra-zem nenhuma, os traos dos seus rostos, as suas atitudes, o aspecto das suas mos, a maneira de falar e de se moverem so apreendidos como manifestaes do lugar a que pertencem e da sua classe.

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    J nos afastmos muitssimo dos livros. Mas os semiforos de que , agora tratmos continuam, sob certos aspectos, aparentados com

    ate d . . , . lh I s pois todos os signos que acabmos e menciOnar, vtstvets a o o e e ' A d b. d l"b d o transformaes fsicas da aparenc1a os o Jectos, e 1 era a-nu, s

    nte produzidas para atrair a ateno do espectador para alguma me . .

    isa invisvel e assim programar os seus modos de ser mtenores ou ~~ seus comportamentos. Existem todavia objectos visveis que so semiforos, no por terem sofrido determinada transformao, mas por terem sido investidos dessa funo por outros me.i?s. .

    Quando tentamos pr em ordem a profuso de semwforos, venfi-camos com efeito que se encontram entre eles os representantes de todas as classes de objectos visveis, corpos, coisas, media e restos, que passaram a semiforos depois de sujeitos a um duplo tratamento, que consistia em extra-los da natureza ou do uso e em mudar entre-tanto a sua funo, para serem colocados depois de maneira a pode-rem ser vistos, sendo rodeados ao mesmo tempo de cuidados e de proteco, a fim de afrouxar tanto quanto possvel a aco corrosiva dos factores fsico-qumicos e de impedir o roubo e as depredaes. Por outras palavras, qualquer objecto se transforma em semiforo em consequncia da descontextualizao e da exposio. E -o durante tanto tempo quanto estiver exposto.

    assim porque colocar um objecto, seja ele qual for, numa vitrina, num lbum, num herbrio, sobre um pedestal, suspend-lo da parede ou do tecto, separ-lo com uma barreira, um cordo, uma rede ou simplesmente com uma linha desenhada que no deve ser transposta, mand-lo vigiar por um guarda ou colocar-lhe ao lado uma inscrio com proibio de se aproximar e sobretudo de lhe tocar, tudo isto vai impor s pessoas que se encontram volta a atitude de espectadores, vai incit-las a virar-se para o objecto e a deter nele o olhar. O que contribui para chamar a ateno sobre o objecto e para mostrar que a contemplao modifica aquele que o fixa, pois traz-lhe alguma coisa de que de outro modo ficaria desprovido.

    A prova a decorao do edifcio ou do interior onde o objecto se encontra, do mvel em que est exposto, da moldura que b rodeia ou do pedestal em que assenta. So tambm prova disso os comen-trios orais ou escritos que lhe so dedicados. E, sobretudo, a protec-

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  • b

    o que o envolve, embora sendo absolutamente intil, pois s so teis os objectos que circulam entre os homens e aos quais eles con.

    ferem prstimo. Esta proteco uma manifestao visvel do alto valor de que o objecto investido. Como no poderia dev-lo sua relao com outros objectos visveis, precisamente porque est isola-do deles, ela s pode vir dos seus laos com o invisvel. Assim, ern virtude da descontextualizao e da exposio, qualquer objecto, seja ele qual for, v-se investido de significado, e as suas propriedades visveis passam a ser signos, mesmo quando no resultam de urna interveno deliberada do homem. Passam a s-lo com tanto mais facilidade quanto distinguem esse objecto, so excepcionais, surpre-endentes, extraordinrias, admirveis e contribuem, por essa razo, para o separar dos outros. Os semiforos que pertencem a esta cate-goria sero designados pelo nome de expsitos. A transfigurao da qual eles so o efeito realiza-se, na nossa sociedade, sobretudo nas coleces e nos museus. Noutros lados, passava-se o mesmo nos tmulos, nos santurios, tesouros e palcios.

    V-se agora, pelo menos o que esperamos, que a noo de semiforo no foi introduzida apenas pelo prazer de alongar a lista dos neologismos. Pois quando reflectimos no que comum a objectos to diferentes como o so os textos, as imagens, os substitutos dos bens, os comandos, as insgnias e os expsitos, chegamos concluso que cada um composto de um suporte e de signos, que cada um possui um lado material e um lado significante, em suma, que so todos objectos visveis investidos de significados. A palavra semiforo ten~a reunir precisamente o que todos os objectos tm em comum, mostra -los como realizaes diferentes de uma mesma funo e dar a esta um nome, o que nos obrigou a descrever tambm outras funes que podem exercer objectos visveis e introduzir para esse efeito toda um~ terminologia. Mas no se trata seno de palavras. Porque o que aqui se prope, com todas estas inovaes terminolgicas, uma nova abordagem dos objectos visveis e, em especial, daqueles a que .se chamou sem.iforos e pelos quais se interessa prioritariamente a hl~tria culfural, como os nossos exemplos demonstram; pode-se alar~a-la sem dificuldade a objectos descobertos por outros sentidos alerJI da viso. Uma abordagem unitria que rena ao mesmo tempo os

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    . . e os seus suportes nas suas relaes recprocas e que permita stnaJ.S ar com a prpria oposio entre a perspectiva semitica e a u}trapass ' , . , 'I I , . d perspectiva pragmatlca, o caracter um atera propno e uma e outra.

    A controvrsia sobre a noo de cultura

    At meados do sculo XIX, a cultura foi identificada com a cultura s iritual, ao conjunto de produtos do esprito humano ou do psiquismo ~:mano. As duas noes no so sinnimas, mas comear a diferenci-

    -las aqui afastar-nos-ia do assunto. No obstante, as duas perspectivas, a espiritualista e a psicologista, admitem em conjunto que cada pro-duto do esprito e do psiquismo humano uma obra com o seu autor individual e que, justamente como ele, nica. Alm do seu Caicter desinteressado, caracteriza-a a ausncia de qualquer utilidade. Final-mente, como realizao de um projecto livremente concebido pelo seu autor, a negao de qualquer determinismo externo, e o autor surge pois como um verdadeiro criador; a sua personalidade excepcional, que lhe permite produzir algo de radicalmente original, confere-lhe por essa razo uma estatura herica.

    A forma visvel conferida obra , nesta perspectiva, secundria; o essencial o projecto que ela encarna. Para a compreender, pois necessrio cotej-la com o projecto do seu autor. O leitor, o especta-dor ou o ouvinte acede a essa compreenso quando consegue intro-duzir, por assim dizer, em si prprio, os traos da personalidade do autor expressos na sua obra, quando consegue elevar-se desse modo sua altura, na medida do possvel, e recriar em si prprio o projecto que era o seu. Um tal mtodo de estudo da cultura, o nico vlido, recebe o nome de hermenutica. Os objectos que privilegia, dado que a forma visvel das obras parece ser ali o menos importante, so textos, sobretudo literrios e filosficos. Um historiador de cultura exemplar sobretudo, seno exclusivamente, um fillogo.

    Depois da segunda metade do sculo passado, esta posio con-testada pelo tratamento pragmtico da cultura, que a identifica com a cultura material, embora esta mesma expresso s tenha aparecido nos anos vinte do nosso sculo. A cultura material engloba todos os produtos do trabalho manual, fabricados pelas massas e escala de

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  • , massa, para satisfazer as necessidades corporais. Produtos que expri-mem que o homem pertence natureza e, portanto, a sua submisso a um determinismo, cujo substrato , como o seu domnio, objecto de debate. Esta perspectiva orienta a ateno para a forma visvel dos produtos humanos, para a sua diferenciao, para a sua distribuio espacial e temporal, para o trabalho que os modela, os usos que deles se fazem e o mercado onde circulam.

    Tudo isto deve ser explicado: reconduzido aos caracteres do meio ambiente, segundo uns, do equipamento biolgico, segundo outros, do regime social, segundo terceiros, ou ainda aos modos e condies de produo com as regras da troca e da apropriao dos bens materiais que lhes esto ligadas. Como a cultura releva do repetitivo, o nico mtodo correcto de a estudar a estatstica, que permite pr em evidncia a regularidade por detrs de aparentes flutuaes; da o interesse pelos recenseamentos e pelas concluses que lhe advm. Os domnios privilegiados da cultura so, nesta perspectiva, a economia e a tcnica. E um historiador da cultura exemplar pratica a arqueologia pr-histrica ou tnica- diferente da arqueologia clssica, prxima da filologia - ou a antropologia, como estudo do equipamento somtico e material das sociedades primitivas, ou ainda a histria econmica, que acompanha os progressos da agricultura, da indstria, do comr-cio, das invenes e descobertas.

    Evidentemente que no faltaram tentativas de contestar a aborda-gem espiritualista ou psicologista no seu prprio terreno, mostrando que a literatura, a arte ou a filosofia esto, tambm elas, sujeitas ao determinismo e devem, por conseguinte, ser estudadas pelas cincias sociais com os seus mtodos estatsticos. Nem faltaram tentativas opostas de contestar a abordagem pragmtica, mostrando que a tcnica, e mesmo a economia, depende dos fenmenos espirituais ou da psi-cologia individual ou que as toma objectos legtimos das cincias huma-nas- ou melhor, das cincias do esprito (Geisteswissenschaften) -, isto , da hermenutica. Mas estas controvrsias no conseguiram invalidar as oposies conceptuais incorporadas na prpria base das perspectivas incompatveis que so a perspectiva espiritualista e psicologista, e a perspectiva pragmtica. Isto s termina com o apa-recimento da perspectiva semitica, nos anos vinte do nosso sculo.

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    Esta rejeita primeiramente o pressuposto segundo o qual a diviso dos fenmenos em espirituais (ou psquicos) e corporais (ou fsicos), implicitamente integrada na oposio entre a cultura espiritual e a cultura material, ao mesmo tempo exaustiva e disjuntiva, ou seja, consoante cada fenmeno pertena ou a um ou a outro destes dom-nios. A abordagem semitica pretende, com efeito, ter demonstrado que a linguagem , ao mesmo tempo, intelectual e sensvel, psquica e fsica, e que estes dois aspectos so to inseparveis como o rosto e 0 verso de uma folha de papel. Rejeita tambm o pressuposto se-gundo o qual seria exaustiva e disjuntiva a diviso dos fenmenos em individuais e colectivos (ou sociais), pois pretende ter demonstrado que, na linguagem, estes dois aspectos tambm j no se deixam separar. Mais ainda, a abordagem semitica rejeita o pressuposto se-gundo o qual exaustiva e disjuntiva a diviso de tudo o que possa ser objecto de conhecimento em fenmenos acessveis a uma intuio sensorial, por um lado, e, por outro, em coisas em si fora do seu alcance, que escapam ao intelecto humano, incapaz de o inferir direc-tamente, e por esse facto razo terica. Pretende com efeito ter demonstrado que a lngua [Zangue], ao contrrio da palavra [parole], no nem um nem outro, mas que constitui um sistema de signos em que cada um une uma face intelectual e uma face sensorial num todo tal que as componentes no se deixam separar de outro modo que no seja em pensamento.

    A cultura surge, nesta perspectiva, imagem e semelh

  • p

    tericos destes ou daqueles sistemas de signos. Com a abordagem semitica as cincias humanas descobrem com efeito a teoria, que, como toda a teoria, deve em primeiro lugar ser no contraditria; da o apelo s matemticas, as nicas capazes de satisfazer esta exigncia. E elas desviam-se da histria. Todas as tentativas de integrao na perspectiva semitica de uma diacronia saldaram-se at hoje por fra-cassos, se certo terem sido declaraes de inteno no seguidas de efeitos.

    A histria da cultura surge como a nica forma legtima do saber de cultura somente numa perspectiva espiritualista, pois esta resulta da assimilao da humanidade a um indivduo, que se desenvolve da nascena at maturidade; mas a um indivduo imortal, infinito, cuja maturidade durar eternamente e cujo desenvolvimento nunca se deter, pois ele aspira insaciavelmente perfeio. Tal a mais simples definio do esprito, de que a humanidade suposto ser a encarnao e que ao mesmo tempo o substrato e o criador da histria. Substrato, porque os indivduos e as colectividades empricas cujos actos e obras a preenchem so apenas as suas exteriorizaes, as suas manifestaes visveis. Criador, porque a sua produo sucessiva no se faz de um modo qualquer, mas numa ordem que resulta da sua orientao teleolgica, do seu desejo de realizar, na sua plenitude, o verdadeiro, o bem e o belo.

    O psicologismo radical e o tambm radical materialismo- variante extrema da atitude pragmtica - eram obrigados, evidentemente, a rejeitar a identificao da humanidade a um indivduo, com todas as suas consequncias. Consideravam a humanidade, um e outro, como dividida numa pluralidade de grupos dispersos na superfcie da terra e diversificados em funo dos meios que ocupavam. O espao era para eles no menos importante, seno mais importante, que o tempo. A convico de que a histria a nica forma possvel de saber sobre a cultura - ou a nica a par da psicologia - podia, no entanto, ser justificada num tal quadro pela ideia de evoluo das espcies biol-gicas e, portanto, da espcie humana.

    O substrato da histria , neste caso, identificado com a vida de que os indivduos e as colectividades empricas representam as ma-nifestaes visveis, e a prpria histria a obra da tendncia, inerente vida, para fazer triunfar os indivduos ou os grupos melhor adapta-

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    r dos s ex1gencias desta, capazes de ganhar a luta pelos bens que permitem a sobrevivncia e dominar os outros. Verses, mais mode-radas porque menos rigorosas, da abordagem psicologista ou materia-lista tomavam do espiritualismo a ideia da humanidade una, para alm da sua diversidade, recusando a tal humanidade uma orientao teleolgica. Do seu ponto de vista, a direco da histria a resultante dos conflitos, das rivalidades, dos esforos dos indivduos e dos gru-pos para se apoderarem do melhor lugar, segundo as necessidades da vida ou as leis da natureza. Bastaria isto para estabelecer a convico de que a histria ser a nica forma concebvel de saber sobre a cultura ou que ela divide esse privilgio com a psicologia.

    Concluindo, tanto para os que defendem a abordagem espiritualista como para os que escolheram a abordagem pragmtica, a primeira pergunta que se deve fazer a um objecto que se estuda- um aconte-cimento, uma pessoa, uma instituio - incide sobre a sua gnese: por um lado, sobre os factores de que o produto e sobre os meios que o trouxeram existncia; por outro, sobre o seu lugar na histria, sobre a sua pertena a um ou outro estdio da histria da humanidade. A perspectiva semitica impe um outro questionrio, pois ela no conhece nenhum substrato das mudanas, tais como o esprito, a vida, a humanidade ou os seus equivalentes. Na medida em que para ela s existem signos, reduz a realidade a relaes, sendo um signo idntico ao conjunto de diferenas entre ele e os outros signos. A questo da gnese perde ento a primazia, quando no a pertinncia, em proveito da questo de estrutura, isto do sistema de relaes imanentes ao objecto estudado. E substitui-se a histria pela teoria.

    Ora a concentrao na estrutura leva tambm a marginalizar e mesmo a eliminar a problemtica das relaes entre os sinais e os seus suportes. Ela estava no entanto presente na lingustica sob a forma da questo que incidia sobre as relaes entre os fonemas e os sons. Mas a perspectiva geral no lhe reserva qualquer lugar, pois eles no existem para os suportes dos signos numa ontologia semitica, que s conhece as relaes e os seus sistemas. Da, o carcter limitado e incompleto da abordagem semitica quando depara com um objecto que no se deixa reduzir aos signos que contm, e que se v obrigada a fazer entrar pela porta de servio os suportes dos signos expulsos pela porta de entrada, como acontece no caso das obras de arte plsticas e de

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  • -~-

    arquitectura e de todos os semiforos em que o papel de suporte pertence ao corpo humano. Da tambm o privilgio concedido ~ linguagem e aos textos, pois neste caso o problema do suporte e considerado sem razo como no pertinente, o que assemelha a abor-dagem semitica abordagem espiritualista e a ope, na esteira desta, abordagem pragmtica. Uma ocupa-se dos signos sem suportes. A outra, dos suportes sem signos. o que ilustra o contraste esboado no incio entre a obra literria e o livro.

    No tas finais

    Introduzirei aqui uma nota pessoal. A descoberta, nas obras de Saussure, de Trubetzkoi, de Jakobson e sobretudo de Lvi-Strauss, da abordagem semitica da cultura ou, como na poca se dizia, do estruturalismo, foi na minha vida intelectual, como na de vrias pes-soas da minha gerao, um dos acontecimentos mais importantes. No meu caso, a sua influncia foi duradoura. Continuo a pensar que o aparecimento desta abordagem abriu uma nova poca na histria das cincias humanas e que todos os retornos a abordagens anteriores e sua problemtica so apenas regresses e nada mais. Mas os trinta e cinco anos decorridos desde os tempos de uma assimilao entu-siasta das regras da abordagem semitica apenas reforaram a convic-o que j nessa poca germinava, sem que eu soubesse ento expri-mi-lo claramente, e segundo a qual o estudo da cultura s poderia tomar inteligveis os objectos tal como os percebemos na experincia, na condio de ultrapassar a oposio entre a abordagem semitica e a abordagem pragmtica.

    o que hoje se faz na prtica da histria cultural: na histria do livro, na histria das coleces, na nova histria poltica, em certos trabalhos de histria de arte. E foi o que tentei teorizar aqui, introdu-zindo a noo de semiforo, que me parece caracterizar, de forma tpica, o tipo de objectos privilegiados pela histria cultural de hoje: nem entidades ideais, nem coisas materiais; objectos cuja aparncia, a localizao ou ambas mostram que esto investidos de significados. Ao mesmo tempo, foi necessrio esboar toda uma ontologia do mundo

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    r

    visvel, para libertar as grandes articulaes e situar os semiforos entre os outros objectos.

    A promoo dos semiforos ao nvel de objectos privilegiados da histria cultural traz vrias consequncias. Modifica em especial a importncia respectiva da leitura e do olhar. Durante muito tempo, os historiadores s se interessavam pelo escrito. A tentativa de os fazer sair para o exterior e de os fazer ver as paisagens, empreendida por Vidal de La Blache e pelos seus continuadores, entre os quais Bloch e Febvre, s produziu efeitos limitados. Ora hoje assistimos a uma nova tentativa nesse sentido, embora tenha lugar num terreno diferen-te. A histria cultural volta-se com efeito para os objectos e as ima-gens, mesmo nos domnios em que at h pouco s se estudavam os textos. Da um reequilbrio das relaes entre a leitura e o olhar, com benefcio para este ltimo, o que leva a propor algumas regras sim-ples. Primeiro o visvel, depois o invisvel. Primeiro a forma, depois a funo. Primeiro o presente, depois o passado. No reclamo a limi-tao das leituras; por muitas que sejam, so sempre insuficientes. Mas o que prioritariamente deve saber quem hoje pratica a histria cultural ver e descrever o que v.

    Portanto, em primeiro lugar, a descrio e, s depois, a teoria e a histria. teoria pertence em primeiro lugar o problema geral das relaes entre a dimenso significante e a dimenso material, que se condicionam reciprocamente numa certa medida, diferente nas dife-rentes classes de semiforos. Tambm pertence teoria o problema do lugar dos semiforos no conjunto dos objectos visveis e das suas relaes com as categorias diferentes destes. Vem depois toda a pro-blemtica das relaes entre os destinos e os empregos, entre os produtores e os utilizadores, entre os significados virtuais e os que foram actualizados pela recepo. Notemos de passagem que do que acaba de ser dito resulta ser esta que a histria cultural deve privile-giar e no a sua gnese, na trajectria temporal dos objectos em geral e em especial dos semiforos. Menciona-se, por fim, a problemtica das relaes entre os semiforos e o invisvel, que, por falta de lugar, no pde ser aqui tratada e que no entanto essencial, pois o reconhecimento do lao entre um objecto e o invisvel que faz desse objecto um semiforo, sendo a definio do invisvel, para o qual remete, que lhe confere este ou outro significado.

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  • r ,I I

    Mas os semiforos diferem dos sistemas de signos especialmente quando no seu caso a histria o complemento necessrio da teoria. No porque remetam para um substrato metafisico de continuidade, mas porque sendo visveis e portanto considerveis e temporalizados, transformam-se, subvertem-se, mudam de lugar e de significado, mantendo-se semiforos, ou perdem a sua funo, deixam de circular e comeam a ser utilizados como coisas, quando no so abandonados como restos. Cada um deles tem a sua trajectria temporal, por vezes tambm espacial, que, na medida em que lhe modifica a aparncia e deixa vestgios na memria dos homens ou noutros semiforos, codetermina o seu significado. por isso que quando tratamos o significado de um semiforo como se fssemos os primeiros a expli-cit-lo, descurando todo o seu passado, criamos uma fico, a menos que se trate de algo absolutamente novo, o que raro.

    A historicidade caracteriza no s cada semiforo tomado parte mas tambm classes inteiras, tais como os textos, as imagens, os substitutos dos bens, os comandos, as insgnias e os expsitos. Com efeito, a composio de cada uma muda, assim como os significados de que esto investidas, os critrios de hierarquizao dos seus com-ponentes e os lugares que cada uma ocupa na hierarquia. Muda tam-bm o prprio nmero de classes, pois enquanto umas se formam, outras desaparecem. Mudam as relaes entre umas e outras, as suas dependncias recprocas e os lugares que ocupam numa hierarquia que formam em conjunto e que tambm muda.

    A historicidade por fim inerente ao conjunto dos semiforos, s suas relaes com os corpos, as coisas, os media e os restos, ao seu papel de intermedirios entre os homens e o invisvel por um lado e, por outro, entre as diferentes modalidades do invisvel, ao seu lugar na produo, na troca, no consumo, e tambm no conhecimento, na adorao, no sacrifcio. Ela tambm inerente aos corpos, coisas, media e restos, aos quais se aplica tudo o que acaba de ser dito sobre os semiforos. Cada objecto visvel percorre a sua trajectria no tempo, e cada classe de determinados objectos muda exactamente como a hierarquia que todas em conjunto compem.

    Basta fazer um corte sincrnico no conjunto de objectos visveis presentes na nossa sociedade para verificar que, ao mesmo tempo,

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    muitas vezes num mesmo espao, coexistem objectos que no pude-ram aparecer simultaneamente; a prova a sua aparncia exterior, a sua frequncia, os lugares onde se encontram, os papis que os faze-mos desempenhar. A imagem patenteada atravs de tal operao pois comparvel a um perfil geolgico, mostrando os estratos prove-nientes, cada um, de uma outra poca. No entanto, a sua sobreposio, que faz com que em geral quanto mais um estrato profundo mais antigo seja, aqui substituda por uma distribuio horizontal: quanto mais nos afastamos de certos lugares, mais se encontram objectos que j prescreveram, que mudaram de funo ou de significado, ou se tomaram mesmo restos. A histria est pois inscrita no presente, exactamente como ela o na aparncia de cada objecto.

    Da definio dos objectos, no em termos substanciais, mas em termos funcionais, segue-se que nenhum est ligado definitivamente classe a que pertence em virtude da sua gnese. Embora a passagem de uma classe a outra no seja totalmente arbitrria, pois nenhum objecto pode passar a ser um corpo e a funo de media s pode ser assumida mediante certas propriedades fsicas, qualquer objecto vis-vel pode tomar-se um semiforo, e quase todos podem passar a ser uma coisa. por isso que, legitimamente, no se podem encarar os objectos independentemente dos homens, que, ao servirem-se deles, lhes conferem funes e, no caso dos semiforos, significados. Mas pela mesma razo os homens e os seus comportamentos no poderiam ser encarados sem os objectos de que se servem e que co-determinam o seu lugar na hierarquia social, os seus papis e as suas identidades.

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