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POLÍTICAS PÚBLICAS & GOVERNANÇA foto: amy elting | unsplash

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  • POLÍTICAS PÚBLICAS & GOVERNANÇA

    foto: amy elting | unsplash

  • O Observatório da Sociedade Pós-

    Pandêmica (OSPP) é fruto da

    parceria entre pesquisador@s da

    Universidade Federal da Bahia

    (UFBA), da Universidade de Brasília

    (UNB), da Universidade Federal de

    Viçosa (UFV) e da Universidade

    Federal do Triângulo Mineiro

    (UFTM) que, apesar do

    distanciamento social exigido pela

    pandemia de Covid-19, seguem

    buscando aproximações teóricas,

    práticas, valorativas e afetivas, a

    partir das quais seja possível: a)

    produzir e analisar evidências

    científicas capazes de tornar mais

    robustos e inteligíveis os processos

    de governança, de gestão e de

    políticas públicas; b) avaliar os

    prováveis e imaginados impactos

    sociais, econômicos, políticos e

    comunicacionais deste novo

    contexto que se apresenta; c)

    arriscar projeções sobre tendências

    no espectro político e gerencial,

    incluindo conjecturas de como a

    situação trazida pela pandemia e o

    modus operandi dos principais

    atores afetarão a visão do que cabe

    ao Estado; d) promover e divulgar

    conhecimentos sobre o que esperar

    do futuro que nos espera.

    Tudo isso porque entendemos que,

    dentre os diversos papeis que

    cabem às universidades públicas,

    está o de ajudar a sociedade a

    compreender e refletir sobre novos

    fatos, situações e experiências. Ao

    lançar luzes sobre os impactos

    futuros dos acontecimentos e

    escolhas presentes, o OSPP poderá

    apoiar cada ator social a se sentir

    menos passageiro e mais agente

    ativo do futuro que está e estará

    permanentemente em construção.

    [email protected]

    www.ospp.ufba.br

    Este é o 1º número da Série Boletins do

    Observatório da Sociedade Pós-Pandêmica –

    OSPP. A cada número, um pequeno conjunto de

    textos será disponibilizado e este tem o objetivo

    de reforçar a importância do debate sobre

    , no contexto

    da pandemia do Covid-19.Neste número,

    apresentamos três produções, com dados e

    reflexões que apontam para diferentes

    dimensões deste necessário debate. A primeira

    problematiza o papel da gestão no

    enfrentamento da pandemia e lança luz sobre a

    baixa capacidade de resposta de municípios

    vulneráveis, a partir de análises comparativas de

    três índices: o g100, o CAUC e a CAPAG. A

    segunda, recupera os resultados de uma

    pesquisa social produzida pelo OSPP em abril

    de 2020, e busca compreender qual seria a

    percepção política para cenários de expansão

    da pandemia (realidade projetada), com os

    alcances efetivos de tal percepção (realidade

    atual). A terceira problematiza o papel da

    Organização Mundial da Saúde (OMS) na

    governança global, neste contexto pandêmico,

    considerando-a como um ator relevante em

    políticas públicas. Somamo-nos, assim, aos

    inúmeros (e ainda insuficientes) esforços de

    pluralização e valorização da ciência, junto às

    universidades, centros/institutos de pesquisa,

    observatórios e grupos de pesquisadores. Em

    países democráticos, as tomadas de decisão

    pressupõem amplos e complexos processos de

    concertação, em que governos, mercados e

    atores da sociedade civil articulam-se no

    desenho e na proposição de soluções que

    realizem o acesso aos recursos públicos de

    forma desconcentrada e efetiva. Boa leitura e

    sigamos juntos aprendendo!

    UFBA | UnB | UFV | UFTM

  • reflexões

    sobre a capacidade de resposta dos

    municípios mais endividados do Brasil

    Rosana de Freitas Boullosa, Luciana Guedes da Silva,

    Lara Silva Laranja & Janaina Lopes Pereira Peres

    Horácio Nelson Hastenreiter Filho & Justina Tellechea

    análise das diretrizes e discursos sobre

    ciência e ética produzidos pela

    Organização Mundial de Saúde

    Ana Paula Antunes Martins

  • : BOULLOSA, Rosana de F.; SILVA, Luciana G. da; LARANJA, Lara S.; PERES, Janaina L. P. A expansão da Covid-19 no G100: reflexões sobre a capacidade de resposta dos municípios mais endividados do Brasil, pp. 03-16. In: OSPP.

    : Políticas Públicas & Governança, UFBA, UnB, UFV, UFTM, n. 1, jul. 2020.

    reflexões sobre a capacidade de resposta dos municípios mais endividados do Brasil

    Rosana de Freitas Boullosa Departamento de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de Brasília | UnB

    Luciana Guedes da Silva Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e

    Cooperação Internacional da Universidade de Brasília | UnB

    Lara Silva Laranja Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e

    Cooperação Internacional da Universidade de Brasília | UnB

    Janaina Lopes Pereira Peres Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e

    Cooperação Internacional da Universidade de Brasília | UnB

    Esta pesquisa parte da discordância acerca da perda progressiva de importância da gestão nos processos públicos e visa, como ponto de chegada, defender que a gestão é

    essencial na construção democrática dos fluxos de políticas públicas. Para isso, problematizamos o papel da gestão na capacidade de resposta municipal, buscamos

    demonstrar como a (falta de) gestão pode impactar nas curvas de mortalidade por Covid-19. Comparamos as curvas de mortalidade de dois grupos de municípios - o g100 e

    o não-g100 – e aprofundamos esta discussão, apoiando-nos em duas outras variáveis: o CAUC, representando a capacidade de celebração de instrumentos de transferência de

    recursos e a CAPAG, representando a capacidade de pagamento dos municípios.

  • n. 1 | 2020

    A pandemia de Covid-19 vem produzindo números cada vez mais alarmantes no Brasil, consolidando

    nossa posição de segundo país mais atingido do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Este

    indesejável e atual título, de ser um dos epicentros mundiais da pandemia, sustenta-se pela triste

    marca de 90.383 perdas de vidas humanas e mais de 2,56 milhões de cidadãos infectados

    (contabilizados até 30 de julho de 2020, pelo Consórcio de veículos de imprensa), números

    reforçados por uma acentuada curva evolutiva, que não vem deixando margens para projeções

    otimistas. A discussão sobre responsabilidades passa, cada vez mais, a ser atribuída a indivíduos,

    familiares e comunidades, afastando o papel da esfera pública no combate à pandemia, subtraindo

    sua competência e gerando uma contradição que aqui chamamos de desamparo público.

    Parte deste desamparo, entretanto, já se evidenciava nos primeiros movimentos de difusão da

    pandemia. Segundo informações do Ministério da Saúde, divulgadas pela Agência Brasil (VERDÉLIO,

    2020), a primeira perda humana devido à Sars-Cov-2, ao que se sabe até o momento, ocorreu em 12

    de março, na cidade de São Paulo e, mais especificamente, no Tatuapé, Zona Leste da cidade, no

    Hospital Municipal Doutor Cármino Caricchio. A vítima era uma mulher de 57 anos, internada

    apenas um dia antes de vir à óbito. Inicialmente diagnosticada com Síndrome Respiratória Aguda

    Grave (SRAG), a confirmação da causa por Sars-Cov-2 chegou com três meses e meio de atraso. Em

    negrito, destacamos informações que, de alguma forma, já apontavam para futuras relações entre os

    óbitos por Covid-19 e os principais problemas públicos do país: desigualdade socioeconômica,

    segregação socioespacial, pobreza, vulnerabilidade, risco social aumentado em função de

    determinados marcadores de diferença, etc. Somado a isso, no contexto mais específico das políticas

    públicas de saúde, a desmobilização dos programas de saúde da família, precarização dos hospitais

    públicos, desigualdade de acesso aos equipamentos de baixa e média complexidade, dentre tantos

    outros.

    Com os primeiros avanços dos números e com o problema ocupando as primeiras páginas dos

    jornais, governos, em seus diferentes níveis, preocuparam-se, em geral, muito mais em travar

    batalhas midiáticas e disputar narrativas que mais confundiam do que orientavam a população,

    como ilustra a oposição discursiva entre lockdown e "gripezinha". E os problemas, pré-existentes e

    novos, foram potencializados pelo ineditismo da situação, mas também pela desarticulação entre

    respostas governativas. Diante desta disputa pela imputação ou pela subtração de responsabilidades

    de importância e de esforços para combater uma pandemia que só se expande, assistimos atônitos

    às mudanças de titularidade do Ministério da Saúde - que, em tese, deveria se voltar quase que

    exclusivamente para a gestão deste problema. Depois de dois titulares, Henrique Mandetta e Nelson

    Teich, o Ministério encontra-se nas mãos de um interino desde 15 de maio, quando tínhamos pouco

    menos que 15.000 óbitos por Covid-19. Passados meses, assistimos também às idas e vindas

    discursivas de governadores e prefeitos das principais cidades do país.

    O desamparo público assume diferentes formas. O narrativo, talvez mais evidente, produz

    desinformação de proporções fatais, sobretudo para uma população empobrecida e sem condições

    suficientes para permanecer maciçamente em casa. Há, porém, outro desamparo que pode produzir

    danos ainda maiores: o desamparo de gestão. Trata-se de um desamparo profundamente articulado ao

    primeiro, porque se ancora em uma estrutura narrativa que naturaliza a baixa articulação (ou mesmo a

  • n. 1 | 2020

    desarticulação) entre as dimensões política e técnica nos processos de governo. No enfrentamento

    desta crise, as narrativas tentam conferir à gestão uma dimensão quase exclusivamente técnica, ao

    ponto de sequer incluí-la, francamente, no debate público. Mas, diversamente de tal compreensão,

    acreditamos que a gestão deve ser vista como um espaço de tensão valorativa e discursiva entre as

    dimensões políticas e técnicas dos fluxos multiatoriais em políticas públicas (BOULLOSA, 2019). E, como

    tal, ela não pode ter sua natureza “normalizada” ou “neutralizada”, uma vez que tensões/conflitos são

    fundamentais em processos democráticos de políticas públicas.

    Esta pesquisa parte da discordância acerca da perda progressiva de importância da gestão nos

    processos públicos de enfrentamento à pandemia e visa, como ponto de chegada, defender que a

    gestão é essencial na construção democrática dos fluxos de políticas públicas, particularmente no

    nível municipal de governo. Ligando este dois pontos, emergem dois desafios: o primeiro, discutir em

    que medida a gestão compõe o que poderíamos chamar de capacidade de resposta municipal à

    pandemia; o segundo, construir uma estratégia de problematização da gestão por dimensões que

    dessem conta dos seus instrumentos de planejamento e ação, mas sem descuidar de seus aspectos

    argumentativos e valorativos. Em nossas reflexões, problematizamos as dimensões do confronto

    valorativo, da composição multiatorial das ações de enfrentamento, da instrumentalização e das

    capacidades de mobilização de recursos, sejam eles políticos, tecnológicos, humanos, financeiros,

    orçamentários, etc. Neste texto, nos dedicaremos à análise desta última dimensão – a capacidade de

    mobilização de recursos –, a partir de alguns enquadramentos institucionais, escolhidos em função

    da disponibilidade de dados públicos relativos à totalidade de municípios brasileiros.

    Conscientes dos limites da análise proposta, objetivamos problematizar o “lugar” da gestão na

    capacidade de resposta municipal por mobilização de recursos por enquadramento institucional,

    demonstrando, de modo transversal, como a (falta de) gestão pode impactar nas curvas de

    mortalidade por Covid-19, comparando dois grupos de municípios: o g100 – considerado como de

    reconhecida vulnerabilidade em gestão, pela Frente Nacional de Prefeitos (FNP) – e o não-g100. Em

    seguida, aprofundamos esta discussão, apoiando-nos em duas variáveis que incidem ou explicam a

    dimensão da mobilização de recursos por enquadramento institucional na gestão, o CAUC e a

    CAPAG, índices escolhidos em função da disponibilidade de informações. Por fim, buscamos cruzar

    todos os dados obtidos, os quais confirmam a hipótese inicial sobre a importância da gestão no

    enfrentamento da pandemia e das suas consequências.

    Diante dos desamparos públicos – refletidos em cenários críticos, como os apontados no começo do

    texto –, a pandemia se expandiu pelas capitais do país e, em seguida, interiorizou-se, rapidamente,

    por transmissão de tipo comunitária. A figura abaixo mostra a evolução da Covid-19 no território

    brasileiro nos dias 14 e 29 de cada mês. Seguindo essa evolução, é possível observar alguns motores

    de expansão territorial, a partir de manchas que sugerem rodovias e hidrovias como percursos

    possíveis de disseminação do coronavírus. Um pouco depois do último quadro, em 30 de julho, a

    pandemia já atingia 5.427 (97%) municípios brasileiros (brasil.io), mas com distribuição e avanço

    bastante desiguais.

    http://brasil.io/

  • n. 1 | 2020

    fonte: elaborado pelas autoras, a partir das bases do CommonData (2020).

    Da mesma forma como as imagens mostram que o processo de interiorização da doença, no Brasil,

    não se deu de forma homogênea, as curvas de expansão dos números de casos e de óbitos também

    variam quando analisadas na escala municipal. Mesmo em municípios que tiveram seus marcos-zero

    em termos epidemiológicos em momentos parecidos, as curvas internas de expansão apresentaram

    desenvolvimentos diferentes. Hoje, enquanto a doença se encontra em momento de expansão em

    determinados municípios, em alguns alcança um platô de acomodação e, em outros, já começa a

    apresentar um sutil movimento de retração, com queda de registro diário de casos e de óbitos.

    Estas assimetrias são muito difíceis de serem explicadas com detalhes e precisão. Trata-se, certamente,

    de um problema multidimensional, resultante de condições próprias e prévias à situação de pandemia -

    como dimensões demográficas, situação de pobreza, infraestrutura de saúde, etc. -, mas resultantes,

    também, da capacidade dos municípios de atuar frente a uma situação de emergência pública de

    tamanha gravidade. Em alguns municípios, estes problemas se complementam negativamente, em

    diferentes situações de desamparo público municipal, e vêm produzindo uma mortalidade muito acima

    da média de outros grupos municipais brasileiros e de outros países.

    Definir ‘capacidade de resposta’, porém, não é tarefa fácil. Tais capacidades têm natureza

    multidimensional, relacionando-se, inclusive, com a falta de apoio e orientação nacional - que

    deveria ser oriunda da União, institucionalmente concretizada pelo Ministério da Saúde, cujos

    problemas de entrega e de coordenação vêm sendo reiteradamente confirmados pela academia e

    pela imprensa livre. Com o intuito de contribuir com este debate, nos deteremos, neste texto, à

    análise de uma das dimensões (mais facilmente mensuráveis) da gestão, que desmembramos em: (i)

    baixa receita per capita e alta vulnerabilidade socioeconômica (índice g100); (ii) capacidade de

    celebração de novos instrumentos de transferências de recursos do governo federal (medida pelo

    CAUC); e (iii) capacidade de pagamento (índice CAPAG).

  • n. 1 | 2020

    Para entendermos melhor este argumento e para avançarmos no debate sobre a importância da

    gestão pública municipal, na composição do que podemos chamar de ‘capacidade municipal de

    resposta’, compararemos a curva evolutiva de dois diferentes grupos de municípios: um primeiro - o

    g1001 -, mais vulnerável, com problemas graves de receita, educação, saúde e assistência social, com

    limitada capacidade de resposta e entregas governamentais, em termos de políticas públicas e

    geograficamente distribuídos segundo a ilustração abaixo; e um segundo grupo - o não-g100 -

    formado por 273 municípios com as mesmas características de dimensão populacional, mas com

    suposta melhor capacidade de gestão.

    fonte: elaborado pelas autoras.

    Em 2018, o g100 era formado por 108 municípios, com um PIB per capita médio de R$ 15.413,40 e

    um Índice de Desenvolvimento Humano - IDH médio de 0,681. Comparado às médias nacionais,

    encontra-se, respectivamente, 52,93% e 10,51% abaixo, o que mostra per se sua maior

    1 O g100 é um índice criado pela Frente Nacional de Prefeitos que abrange municípios populosos com baixa receita per capita e alta vulnerabilidade socioeconômica. A própria FNP é composta por municípios que contam com mais de 80.000 habitantes, reunindo um pouco mais dos 400 municípios mais populosos do Brasil. Neste sentido, o recorte utilizado para a criação do índice do g100 é populacional, incluindo apenas municípios com mais de 80.000 habitantes (com exceção do município de Senhor do Bonfim (BA), cuja população estimada em 2019 é de 79.015 habitantes, segundo o SIDRA-IBGE, consultado em 15 de julho de 2020). A respeito dos indicadores, são considerados quatro variáveis que entram na ponderação para a classificação do município no ranking: receita (R); educação (E); saúde (S) e assistência social (AS). 70% da ponderação do índice é receita, que é medida através da média de receita corrente per capita dos três anos anteriores ao ano da publicação do g100. 10% da nota é o indicador de educação, que mensura a proporção de crianças entre zero e 5 anos matriculadas em creches ou pré-escolas. O indicador de saúde corresponde a 10% da nota, medindo a proporção da população exclusivamente dependente do SUS, ou seja, aqueles que não possuem plano de saúde privado). Por fim, 10% da ponderação é o indicador de assistência social, que calcula a proporção da população vivendo abaixo da linha da pobreza, em outros termos, a parte da população que vive com menos de R$ 170,00 por mês (FNP, 2018). Na ponderação, temos: Indíce g100 = (índice R x 0,7) + (índice S x 0,1) + (índice E x 0,1) + (índice AS x 0,1). O g100 de 2018 é composto por 109 municípios: 10 na região Centro-Oeste; 53 na região Nordeste; 20 na região Norte; 18 na região Sudeste; e 08 na região Sul, totalizando 0,2% dos municípios brasileiros. Entre eles se encontra Macapá (AP), a única capital que faz parte do ranking.

  • n. 1 | 2020

    vulnerabilidade e seus problemas agravados de gestão, sobretudo em termos de entregas públicas

    (IBGE, 2019; UNDP, 2019). Juntos, os municípios do g100 representam menos de 2% dos municípios

    brasileiros, mas 10,2% da sua população2 e, em 14 de julho de 20203, já respondiam por 9.083 perdas

    humanas por Covid-19, o que equivalia a 12,38% do total (73.327). Fazendo uma conta simples,

    chega-se a uma média 39,48 óbitos/100 mil habitantes, 167,6% maior que média do país (14,75).

    Para analisar melhor estes números, porém, precisamos olhá-los evolutivamente e estabelecer recortes

    comparativos. Para isso, propomos uma comparação entre o g100 e o grupo doravante denominado

    “não-g100”, o conjunto com os 273 municípios que possuem mais de 80 mil habitantes, excluídas as

    capitais de estados, com a seguinte distribuição geográfica: 31 no norte, 25 no centro-oeste; 79 no

    nordeste; 65 no sul; e 179 no sudeste. Para tornar mais adequada a comparação, Macapá será retirada

    do g100 nas próximas análises, por se tratar de uma capital. Nos próximos gráficos que comparam g100

    e não-g100, foram retirados também os municípios de Sobral - CE (não g-100) e Maracapuru - AM

    (g100), por se tratarem de outliers quanto ao número de mortes - pontos extremamente fora da curva.

    A exclusão destes municípios justifica-se em termos analíticos, pois permite a melhor visualização da

    distribuição dos municípios nos gráficos. Chamamos atenção, porém, para a importância de novos

    estudos que se debrucem sobre os fatores que possam ter levado estes dois municípios a se comportar

    de forma tão diferente dos demais, diante da pandemia de Covid-19.

    Olhando para a evolução dos números de casos e óbitos no decurso do tempo, é possível perceber

    que o g100 vem se mostrando muito mais vulnerável a perdas humanas em relação ao não-g100.

    Abaixo, comparamos os dois macroconjuntos e demonstramos como se deu a evolução mensal (eixo

    x), de março a julho de 2020, de perdas humanas (eixo y) nos municípios com PIB per capita igual ou

    menor que R$31.083,02 (o maior PIB per capita entre os municípios do g100), resultando em um

    conjunto de 110 municípios. No gráfico, cada município é representado por um círculo, cuja

    dimensão é representativa de sua grandeza populacional.

    fonte: elaborado pelas autoras.

    2 Total da população brasileira em 2019 segundo o SIDRA-IBGE: 210.147.125. Todos os dados populacionais deste boletim utilizam esta base. 3 Os bancos sobre Covid deste texto foram retirados do portal brasil.io em 15/07/2020.

  • n. 1 | 2020

    É possível observar que, entre 14 de março e 14 de abril, os grupos g100 e não-g100 apresentam

    condições muito similares, ambos com nenhuma ou com poucas mortes por Covid-19. No dia 14 de

    abril, 87 municípios do g100 já tinham confirmado pelo menos um caso de contaminação por

    coronavírus e, na mesma data, 39 destes 87 municípios já haviam registrado um conjunto, em

    números absolutos, de menos de 100 mortes (em média, 2,56 mortes por município). No grupo não-

    g100, 255 municípios somavam 297 óbitos (em média, 1,6 mortes por município) e, um mês depois,

    76,8% municípios do g100 já haviam registrado perdas humanas, sendo que em oito deles mais de 50

    pessoas já tinham perdido suas vidas, como em Jaboatão dos Guararapes (PE), que nesta data

    registrou 149 mortes; Olinda (PE), 97; e Nova Iguaçu (RJ), 84. Enquanto isso, no grupo de municípios

    não-g100, os números de vidas perdidas seguiam menores, com deslocamentos verticais mais

    contidos, como Vila Velha (ES) e Praia Grande (SP), que registraram o maior número absoluto de

    mortes deste conjunto (42); Campina Grande (PB), com 4; e Imperatriz (MA), com 35. Caminhando

    adiante na linha do tempo, observa-se, nas colunas referentes aos meses de maio, junho e julho, um

    maior deslocamento vertical do g100.

    A doença se alastrou e as perdas humanas aumentaram, o que é representado pelo alongamento

    vertical da linha de municípios. Naquele momento, 15 municípios já haviam superado a triste marca

    de cem perdas humanas, enquanto no não-g100 apenas 8 se encontravam em tal situação. O que é

    muito importante notar é que, um mês depois, o gap havia aumentado ainda mais, com novos

    deslocamentos verticais, sobretudo, no grupo do g100. Em 14 de julho, eram 25 os municípios do

    g100 (23,14%) com mais de cem perdas humanas, enquanto que, no não-g100, o aumento dos óbitos

    permanecia mais contido, com apenas 13 municípios (11,8% do total dos 110) acima de tal marca, o

    que é um indicativo de que estes municípios conseguiam conter melhor os avanços de doença, em

    que pesem, claro, outras características e circunstâncias.

    Estes dados, representados no gráfico acima, indicam relação positiva entre o alastramento da

    doença e o número aumentado de perdas humanas e a situação de vulnerabilidade dos municípios,

    em termos de capacidade de resposta municipal. Aprofundar esta relação, porém, não é tarefa

    simples, sobretudo porque uma das dimensões da capacidade de resposta é justamente a gestão dos

    recursos municipais, incluindo os próprios recursos de governo, tais como finanças, equipamentos e

    pessoal, mas também outras dimensões menos evidentes e mais difíceis de serem mensuradas, tais

    como coordenação, comunicação e criatividade. Colocar tudo isso em movimento, em um sistema

    complexo e inovador de resposta à pandemia, é um desafio que ainda está longe de ser precisado.

    Apesar do desafio, buscaremos, agora, discutir tal relação a partir de dois dados públicos

    importantes que, de alguma forma, nos ajudam a mensurar, ainda que de modo incerto e

    incompleto, a capacidade de gestão municipal. São eles o Serviço Auxiliar de Informações para

    Transferências Voluntárias (CAUC) e a Capacidade de Pagamento (CAPAG), disponibilizados pelo

    Tesouro Nacional e considerados importantes para a ativação da capacidade de entrega e de

    resposta da gestão municipal, para situações acentuadas de crise.

  • n. 1 | 2020

    Comecemos com o CAUC, apelido que o Serviço Auxiliar de Informações para Transferências

    Voluntárias herdou do seu antecessor, o Cadastro Único de Convênio. Trata-se de uma das

    ramificações da Lei de Responsabilidade Fiscal, criado pelo Decreto nº 6.170/20074, e funciona como

    elemento comprovador de que o ente (município, estado, DF ou Organização da Sociedade Civil)

    cumpriu com os requisitos fiscais necessários, para celebrar novos instrumentos de transferências de

    recursos do governo federal, unificando as informações de diversos órgãos financeiros e fiscais.

    Ele aborda quatro aspectos: obrigação de adimplência financeira; adimplemento na prestação de contas de convênios; obrigações de transparência e adimplemento de obrigações constitucionais ou legais. Reunindo essas informações, estabelece-se o status do município como adimplente ou inadimplente.

    Como as informações possuem data de validade diferentes, em diferentes momentos do ano

    podemos ter extratos ou condições diferentes para um mesmo município. Para nossas análises,

    assumimos os dados do dia 25 de maio de 2020. Em tal data, a situação geral dos municípios junto

    ao CAUC era de uma inadimplência alta, pois 3.551 municípios encontravam-se em tal condição,

    contra 2.018 que se encontram na situação de adimplentes, além de um município sem informação

    (STN, 2020). Quando comparados os grupos g100 e não-g100, o primeiro alcança uma situação geral

    de inadimplência ainda mais alta que a média nacional, já alta, alcançando 73,4% do seu universo.

    Como demonstra o gráfico abaixo, de óbitos acumulados, há pouca distinção entre as curvas de

    óbitos dos municípios adimplentes e inadimplentes no grupo não-g100. Entretanto, entre os

    municípios do g100, a situação de inadimplência possui relação direta com a evolução das perdas

    humanas por Covid-19. É interessante notar que, nos dois grupos, os municípios adimplentes

    registraram o primeiro óbito mais tardiamente e que, com o decurso do tempo, a curva de óbitos dos

    municípios inadimplentes do g100 se acelera, afastando-se, cada vez mais, da curva que representa

    os municípios adimplentes.

    4 As normas de execução do Decreto são dispostas pela Portaria Interministerial nº 424, de 2016, que revogou a regulação anterior (Portaria Interministerial nº 507, de 2011).

    fonte: elaborado pelas autoras (2020).

  • n. 1 | 2020

    fonte: elaborado pelas autoras.

    A inadimplência agrava a desigualdade, estabelecendo uma curva de óbitos bem mais acentuada em

    relação àquela dos adimplentes, uma condição que se agrava nos municípios do g-100. Diante disso,

    percebe-se a situação de adimplência como um ativo importante na gestão da crise pandêmica, pois

    possibilita celebrar novos instrumentos de transferências de recursos do governo federal, bem como

    facilita o acesso a determinadas linhas de crédito de bancos públicos. Não obstante as suas limitações

    analíticas, o CAUC, para efeitos comparativos, oferece uma visão panorâmica das contas municipais em

    relação ao cumprimento das suas obrigações financeiras (dentre as quais os pagamentos que o

    município precisa realizar; o depósito do FGTS dos servidores municipais e as contribuições

    previdenciárias; etc.), das prestações de contas de convênios, das obrigações constituições ou legais,

    bem como das chamadas obrigações de transparência. E a saída da inadimplência não se resolve sem

    planejamento, técnica, vontade e articulação política, sobretudo dentro do próprio município, além de

    paciência e perseverança. A inadimplência generalizada vem impedindo esforços de modernização das

    máquinas públicas municipais e produzindo um círculo vicioso de alta entropia, que levam Miotta,

    Boullosa e Machado (2020) a atribuir a tal problema o status de problema público, fortemente

    vinculado aos limites do nosso atual federalismo.

    A segunda variável que pode nos ajudar a compreender a capacidade de gestão é a Classificação da

    Capacidade de Pagamento (CAPAG), que avalia estados, municípios e o Distrito Federal, com

    regulamentação e metodologia previstas pela Portaria nº 501, de 2017, do Ministério da Fazenda. O

    cálculo é feito pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN) e é utilizado nos pleitos de operações de

    crédito, tanto internas quanto externas, em que se necessita o aval ou a garantia da União (exigência

    do Senado). O índice CAPAG baseia-se em três diferentes indicadores: o Indicador de Endividamento

  • n. 1 | 2020

    (DC), da relação entre a dívida consolidada bruta e a receita corrente líquida; o Indicador de

    poupança corrente (PC), da relação entre despesas correntes e receitas correntes ajustadas; e o

    Indicador de Liquidez (IL), da relação entre as obrigações financeiras e a disponibilidade bruta em

    caixa. E a nota CAPAG (A, B ou C) é atribuída a partir da ponderação das notas que foram obtidas em

    cada indicador. Para receber nota A, o ente precisa tirar nota A nos três indicadores. Para receber

    nota B, o ente deve tirar nota A no IL e pelo menos nota B no PC. As demais combinações atribuem

    nota C ao ente avaliado, e a rara combinação C + C + C gera nota D. Para Pellegrini (2017), o indicador

    de liquidez é o mais importante, o que justifica que tenha maior peso na formação da nota.

    fonte: elaborado pelas autoras (2020)

    Nem todos os municípios brasileiros estão com os dados atualizados, para receberem suas notas de

    classificação, mas, na grande maioria dos casos, isto quer dizer que estão muito mais próximos de

    uma situação de nota C do que das anteriores B e A. Em 25/05/2020, dos 5700 municípios brasileiros,

    distribuídos conforme a ilustração abaixo, somente 1391 (24,4%) foram classificados como A ou B.

    Esta distribuição desigual se mantém entre os grupos g100 e não-g100, embora o primeiro contenha

    uma concentração um pouco menor de municípios com notas A e B (22%). Vistos em perspectiva,

    estas diferenças se tornam mais acentuadas. A situação, em 30 de março, era bastante diferente, pois

    coincidiam diferentes obrigações para os municípios. Naquela data, quase 100% dos municípios do grupo g100

    estava classificado com nota C, mas, nos meses sucessivos, os percentuais voltaram à normalidade negativa.

    Contrariamente, o grupo não-g100 apresenta piora progressiva na distribuição de notas, com o estrato C

    alcançando seu maior valor em 30 de junho.

    Quando analisamos, contudo, a relação entre óbitos por Covid-19 e nota CAPAG, percebemos

    diferenças significativas entre o g100 e o não-g100. Em 14 de março, ambos concentravam-se

    próximos do eixo x (zero mortes), tanto no gráfico de óbitos acumulados (superior), quanto no de

    óbitos/100.000 habitantes (inferior). Ao longo do tempo, é possível observar nos gráficos a ascensão

    dos círculos (que representam os municípios). Tais deslocamentos são muito mais evidentes nos

    municípios representados pelos círculos de cor amarela e vermelha, que são aqueles com notas B e

    C, respectivamente. À medida que aumenta o número de óbitos, torna-se ainda mais evidente esta

    tendência, com a concentração de municípios nota A, em verde, nos estratos de menor número de

    óbitos. Tal tendência é válida para ambos os grupos, mas, para o g100 parece ser ainda mais

    acentuada, como mostra o gráfico abaixo.

  • n. 1 | 2020

    fonte: elaborado pelas autoras.

    Em 14 de junho, o g100 alcançava a triste marca de 5.475 óbitos, distribuídos no conjunto de seus

    1085 municípios, sendo que apenas 1,62% dos óbitos concentrados nos 12 municípios6 do g100 com

    nota A na CAPAG. Um mês depois, em 14 de julho, já eram, infelizmente, 9.083 óbitos acumulados,

    com 7,99% concentrados no extrato A. Se pegássemos o estrato C, nos respectivos intervalos

    temporais, teríamos 45,47% e 41,58% do total de óbitos. Comparando estes percentuais de

    distribuição com os do grupo não-g100, em 14 de junho, eram 8.382 óbitos distribuídos pelos seus

    273 municípios, com 20,53% concentrados no extrato A e 30,1% no estrato C. Um mês depois, estes

    percentuais se alteravam para 20,35% e 33,73% respectivamente, evidenciando que nos dois grupos,

    a concentração de óbitos é maior entre os municípios de nota C e que, no grupo do g100, a diferença

    de concentração de óbitos entre os estratos A e C é muito mais acentuada.

    Para evidenciar a correlação existente entre a classificação dos municípios tanto no CAUC quanto na

    CAPAG, criamos dois novos grupos, que são comparados no gráfico abaixo. No primeiro grupo (azul)

    estão municípios de mais de 80.000 habitantes, classificados (simultaneamente) como adimplentes

    no CAUC e como nota A no índice CAPAG; no segundo grupo (vermelho) estão municípios de mais de

    80.000 habitantes classificados (simultaneamente) como inadimplentes no CAUC e com nota C no

    índice CAPAG. Nesta comparação, evidencia-se a relação positiva entre inadimplência, baixa

    classificação CAPAG e nº de óbitos (até 14 de julho).

    5 Incluindo a cidade de Macapá, onde se concentravam 3,56% dos óbitos. 6 Apenas 12 municípios do g100 possuem nota A no índice CAPAG, dos quais 05 estão localizados na região Sul do país; 01 no Centro-Oeste; 02 no Sudeste; 02 no Nordeste e 02 no Norte. São eles: Almirante Tamandaré (PR), Alvorada (RS), Aparecida de Goiânia (GO), Carapicuíba (SP), Francisco Morato (SP), Guarapuava (PR), Iguatu (CE), Ji-Paraná (RO), Piraquara (PR), Santarém (PA), Sarandi (PR) e Vitória de Santo Antão (PE).

  • n. 1 | 2020

    fonte: elaborado pelas autoras (2020).

    O índice CAPAG, não obstante suas limitações, é como uma espécie de prévia fiscal. Indica a saúde

    fiscal dos municípios, cobrindo, basicamente, endividamento, poupança corrente e índice de liquidez,

    e, por extensão, oferecendo alguma percepção sobre a capacidade de gestão dos municípios. Assim

    como acontece no CAUC, a migração para estratos superiores de notas no CAPAG requer maior

    capacidade de gestão. Quanto pior a nota do CAPAG, menor as chances de mobilização de recursos

    para sair de tal condição. Um paradoxo extremado em situações de enfrentamento de crises

    complexas e exógenas, como é o caso do avanço da pandemia por Covid-19.

    A expansão e o agravamento da pandemia de Covid-19 pelos municípios brasileiros, embora muito

    difícil de ser explicada com precisão, pode ser vista como resultante de, pelo menos, três grandes

    conjuntos de variáveis ou situações: (i) condições objetivas e não objetivas próprias de cada

    município e preexistentes à situação de pandemia; (ii) capacidades dos municípios em fazer frente a

    essa situação de emergência pública; e (iii) falta de orientação e/ou articulação por parte da União,

    institucionalmente concretizada pelo Ministério da Saúde e pela Presidência da República. Todos

    estes três conjuntos, porém, possuem em comum uma dimensão importante, de difícil apreensão e

    mensuração: a dimensão da gestão.

    Neste texto, buscamos revelar sua presença e problematizar sua importância, a partir da análise

    comparativa das curvas de óbitos por Covid-19 (em números absolutos e relativos), de dois grupos

    diferentes de municípios brasileiros: o g100, proposto pela FNP, e o não-g100 - um grupo de controle

    criado por nós, para fins analíticos. Como primeiro resultado, ficou evidente a acentuação das curvas

  • n. 1 | 2020

    do g100, o grupo mais vulnerável em termos de gestão. Em seguida, nas comparações entre CAUC e

    a CAPAG, foram observadas relações também positivas entre a vulnerabilidade e as mortes por

    Covid-19: quanto pior a colocação do município com relação a esses dois índices, mais

    íngremes/acentuadas são as curvas de óbitos e maiores, também, são as taxas de mortes por 100 mil

    habitantes. Quando cruzamos estes dados, comparando os municípios, simultaneamente, mais

    vulneráveis do CAUC (os inadimplentes) e mais vulneráveis da CAPAG (nota C) com os municípios

    localizados nos estratos mais altos (adimplentes e nota A), as diferenças no número de óbitos

    acumulados tornou-se ainda mais evidente, o que indica que, de fato, a capacidade de gestão

    importa.

    Nesse sentido, a pandemia de Covid-19, além de trazer um novo desafio (sanitário) a ser resolvido,

    vem evidenciar uma série de outros problemas, dentre os quais destacamos a necessidade de

    repensar a gestão municipal, inclusive em termos de capacidade de gestão de riscos e tragédias. Com

    a chegada do coronavírus ao Brasil e com sua difusão desigual pelo território brasileiro, nosso Pacto

    federativo foi colocado à prova em diferentes dimensões: por um lado, mesmo com todos os seus

    limites e com todos os cortes orçamentários, o Sistema Único de Saúde (SUS) foi um dos principais

    responsáveis por evitar uma tragédia maior; por outro lado, a pandemia revelou não apenas a

    fragilidade das relações intergovernamentais, como também evidenciou as imensas dificuldades de

    gestão enfrentadas no âmbito municipal. Tendo comprovado que a gestão desempenha um papel

    importante na construção das capacidades municipais de enfrentamento à pandemia de Covid-19,

    concluímos chamando atenção para a necessidade de políticas públicas coordenadas e transversais,

    que sejam capazes de articular os diferentes entes federados e que sejam capazes de fazer frente ao

    desamparo público que, no contexto pandêmico, provou-se literalmente fatal.

  • n. 1 | 2020

    BOULLOSA, Rosana de Freitas. Mirando ao revés as políticas públicas: os desenvolvimentos de uma

    abordagem crítica e reflexiva para o estudo das políticas públicas. Publicações Escola da AGU, v. 11,

    n. 4, pp. 89-105, 2019.

    FNP. Frente Nacional de Prefeitos. G100: municípios populosos com baixa receita per capita e alta

    vulnerabilidade socioeconômica. Brasília: FNP, 2018.

    IBGE. PIB cresce 1,1% em 2018 e fecha ano em R$ 6,8 trilhões. Agência IBGE Notícias. Editoria

    Estatísticas Econômicas, 28 de fevereiro de 2019. Disponível em:

    https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-

    noticias/releases/23886-pib-cresce-1-1-em-2018-e-fecha-ano-em-r-6-8-trilhoes. Acesso em: 28 de

    julho de 2020.

    MIOTTA, Paulo; BOULLOSA, Rosana e MACHADO, Patrícia. Por dentro do CAUC - Serviço Auxiliar de

    Informações para Transferências Voluntárias: experiências, desafios e soluções para as Prefeituras

    Brasileiras, no contexto do anacronismo do Federalismo Brasileiro. Cartilha. Brasília: Frente Nacional

    de Prefeitos e União Europeia, 11 de janeiro de 2020.

    PELLEGRINI, Josué Alfredo. A nova metodologia de cálculo da capacidade de pagamento dos

    estados e municípios. Nota técnica nº 13. Instituição Fiscal Independente. 19 de dezembro de 2017.

    UNDP. Human Development Indicators. Brazil. [site]. Disponível em:

    http://hdr.undp.org/en/countries/profiles/BRA. Acesso em: 28 de julho de 2020.

    VERDÉLIO, Andreia. Primeira morte por Covid-19 no Brasil aconteceu em 12 de março. EBC: Agência

    Brasil, 28 de junho de 2020. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-

    06/primeira-morte-por-covid-19-no-brasil-aconteceu-em-12-de-marco. Acesso em 16/jul 2020.

    https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/23886-pib-cresce-1-1-em-2018-e-fecha-ano-em-r-6-8-trilhoeshttps://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/23886-pib-cresce-1-1-em-2018-e-fecha-ano-em-r-6-8-trilhoeshttp://hdr.undp.org/en/countries/profiles/BRAhttps://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-06/primeira-morte-por-covid-19-no-brasil-aconteceu-em-12-de-marcohttps://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-06/primeira-morte-por-covid-19-no-brasil-aconteceu-em-12-de-marco

  • Horácio Nelson Hastenreiter Filho

    Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia | UFBA

    Justina Tellechea

    Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia | UFBA

    Este artigo recupera os resultados da pesquisa social produzida no âmbito do

    Observatório da Sociedade Pós-Pandêmica, em abril de 2020, e busca compreender qual seria a percepção política dos respondentes, dos diferentes

    estratos sociais, para cenários de expansão da pandemia (realidade projetada), confrontando tais perspectivas – vislumbradas, três meses atrás, para a avaliação

    presidencial – com os alcances efetivos de tal percepção (realidade atual).

    : HASTENREITER FILHO, Horácio Nelson; TELLECHEA, Justina. Impactos políticos da gestão da pandemia, pp. 17-27. In: OSPP.

    : Políticas Públicas & Governança, UFBA,

    UnB, UFV, UFTM, n. 1, jul. 2020.

  • n. 1 | 2020

    Entre os dias 11 e 15 de abril de 2020, o Observatório da Sociedade Pós-Pandêmica (OSPP), fruto de

    parceria entre a Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal de Viçosa (UFV) e

    Universidade de Brasília (UnB) realizou uma pesquisa, através de um questionário via web, a partir da

    qual se estabeleceu uma visão inicial em relação aos possíveis impactos sociais, econômicos,

    comunicacionais e políticos da COVID-19.

    Utilizaram-se as redes sociais dos pesquisadores de modo a disseminar o link da pesquisa que fez uso

    da plataforma Google Forms para a coleta dos dados. O processo de difusão adotado, no entanto,

    criou algumas especificidades, refletidas no perfil dos 1020 respondentes. Sendo estes,

    essencialmente, membros das redes de contato dos participantes do OSPP, a pesquisa apresentou

    perfis de renda familiar, escolaridade, posicionamento político e compreensão do papel do Estado

    não representativos da população do país, de modo que algumas questões, sobretudo as de viés

    político, foram analisadas por estratos.

    O objetivo do presente artigo é justamente analisar as respostas obtidas nos diferentes estratos,

    relativas à expectativa de impacto da pandemia, no cenário político. Para tal, serão confrontadas as

    perspectivas vislumbradas para a avaliação presidencial a partir dos distintos cenários e, uma vez que

    o cenário, em relação às variáveis mais relevantes, encontra-se atualmente mais definido que na

    época da pesquisa, serão confrontadas a realidade atual e a realidade projetada pela pesquisa

    realizada três meses atrás.

    Para atingimento do seu objetivo principal, o texto é construído com uma breve visão do perfil geral

    dos respondentes, com destaque para o perfil político, seguido da apresentação da projeção da

    relação da capacidade de controle da pandemia (avaliada em número de óbitos) e de redução de

    danos econômicos com as perspectivas de apoio ao presidente Jair Bolsonaro. Em seguida, serão

    atualizados os números de apoio ao presidente, os quais serão confrontados com as projeções

    apresentadas. Finalmente, são realizadas conjecturas futuras para a popularidade presencial,

    determinadas a partir das dinâmicas projetadas para a saúde e a economia nos próximos meses.

    O perfil dos 1020 respondentes foi determinado a partir de cinco questões: sexo, renda familiar,

    escolaridade, posicionamento em relação ao espectro político e compreensão do papel do Estado.

    O sexo feminino mostrou-se predominante entre os respondentes, atingindo um percentual superior

    a 62%. Mais de 37% dos respondentes são do sexo masculino e 0,22% não se sentem representados

    nesses dois grupos. Em relação à renda familiar, observa-se que a amostra apresenta um rendimento

    médio bastante superior à renda média familiar dos brasileiros (55% pertencem a famílias com renda

    superior a sete salários mínimos). A amostra apresentou-se ainda mais peculiar em relação à

    escolaridade: 63% dos respondentes possuem pós-graduação e 21% graduação completa, números

    bem distantes dos dados populacionais de escolaridade, uma vez que o acesso a nível superior no

    Brasil ainda se situa abaixo dos padrões internacionais. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de

    Domicílios Contínua (PNAD) divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em

    2018, mais da metade da população adulta (52,6%), com 25 anos ou mais, sequer havia completado

    o ensino médio (GAZETA DO POVO, 2019).

  • n. 1 | 2020

    Em relação ao posicionamento no espectro político, observou-se que a amostra é fortemente

    enviesada à esquerda. 61,7% se posicionaram como esquerda ou extrema esquerda, 10,3% da

    amostra se definiu como direita ou extrema direita e outros 27,9% se definem de centro. A

    correlação entre o posicionamento no espectro político e o papel do Estado na Economia se

    apresenta como bastante relevante (teste t1 =-11,2 e significância muito próxima de zero). Verifica-se

    claramente que os que se posicionam mais à esquerda no espectro político desejam uma maior

    participação do Estado na economia, enquanto que os que se posicionam mais à direita anseiam por

    um papel bastante reduzido para o Estado. Entre os respondentes, 67,6% desejam um papel

    significativo ou muito significativo para o Estado na Economia enquanto que apenas 9,2%

    vislumbram um papel Restrito ou Mínimo Possível, números muito próximos aos da

    representatividade dos grupos que se definem como de esquerda e de direita.

    Para a avaliação do efeito do número de óbitos e da variação do PIB na popularidade do presidente

    Jair Bolsonaro, os números totais são pouco significativos, diante do forte viés à esquerda da amostra

    em relação à população do país. Daí que a análise aqui apresentada é associada ao posicionamento

    no espectro político.

    Obviamente, não seria possível perguntar qual o número de mortes que passaria a abalar a

    popularidade do presidente. Primeiro, porque determinar qualquer número de mortes como

    aceitável causaria enorme desconforto aos respondentes. Segundo, porque a avaliação do que é o

    sucesso em termos de combate ao Coronavírus guarda enorme relação com a situação da pandemia

    no nível mundial. Desse modo, o sucesso no seu combate no país deve ser relativizado em função

    dos números proporcionais à população observados nos demais países. O pressuposto, à época da

    pesquisa, era de que um número proporcionalmente reduzido de mortes poderia favorecer a postura

    presidencial de minimizar os riscos potenciais da pandemia, podendo, inclusive, afetar positivamente

    a avaliação do presidente.

    Desse modo, os efeitos na popularidade do presidente foram observados a partir de cinco gráficos

    (Gráficos 01 a 05), os quais apresentam, para cada uma das cinco posições no espectro político, os

    impactos estimados para diferentes faixas de óbitos (menos de 10.000, de 10.000 a 50.000, de

    50.000 a 100.000 e mais de 100.000). Os gráficos evidenciam uma fortíssima correlação entre

    posição no espectro político e avaliação do efeito dos óbitos na popularidade do presidente,

    independente da faixa. Em todas elas, se aceita a correlação com níveis de significância muito

    próximos de zero.

    Fica claro, em todos os grupos, que há um crescimento da opção “Muito Negativamente” à medida que

    há um aumento do número de óbitos. No entanto, a prevalência da opção “Muito Negativamente”

    1 É um teste de hipótese que usa conceitos estatísticos para rejeitar ou não uma hipótese nula quando a estatística de teste

    (t) segue uma distribuição t de Student. Nesse caso, a hipótese testada é a da existência de correlação entre as variáveis (LOPES, LEINIOSKI e CECCON, 2015).

  • n. 1 | 2020

    para a Extrema Esquerda independe da faixa de óbitos. Para os respondentes de Esquerda e Centro,

    caso ocorressem até 10.000 óbitos, a opção “Não Iria Afetar” é a que prevalece. Para as outras três

    faixas (10.000 a 50.000, 50.000 a 100.000 e mais de 100.000 óbitos) prevalece a opção “Muito

    Negativamente”. Para os respondentes que se autodeclaram como Direita, a opção “Não Iria Afetar”

    prevalece para as duas primeiras faixas (Até 10.000 e entre 10.000 e 50.000 óbitos) e para as faixas

    superiores de óbitos passa a prevalecer a opção “Muito Negativamente”. Finalmente, para os

    candidatos que se autodeclaram como de Extrema Direita a posição que prevalece é “Muito

    Positivamente”, independente da faixa de óbitos.

    Resumidamente, as extremas esquerda e direita acreditavam que a popularidade do presidente iria

    variar muito negativa e positivamente, respectivamente, independentemente do número de óbitos,

    enquanto que para os de esquerda e centro, essa só afetaria negativamente o presidente a partir da

    segunda faixa (10.000 a 50.000 óbitos). Finalmente, para os respondentes de Direita, o impacto na

    popularidade do presidente seria muito negativo somente a partir da terceira faixa (50.000 a 100.000

    óbitos). As posições mais extremadas do espectro político demonstram maior passionalidade

    associada ao juízo de valor já previamente formado sobre o presidente. A questão, no entanto, não

    deveria refletir uma posição pessoal em relação ao apoio ao presidente, mas sim a percepção de

    como o agregado da sociedade seria impactado em termos de avaliação do presidente pelo tamanho

    da tragédia sanitária e econômica relacionadas à pandemia.

    Impactos na Popularidade do Presidente para as Diferentes Faixas de Óbitos para Respondentes que se Autodeclaram de Extrema Esquerda

    fonte: elaborado pelos autores (2020)

    Impactos na Popularidade do Presidente para as Diferentes Faixas de Óbitos para Respondentes que se Autodeclaram de Esquerda

    fonte: elaborado pelos autores (2020)

    0

    20

    40

    60

    80

    MuitoNegativamente

    Negativamente Não iria afetar Positivamente MuitoPositivamente

    Menos de 10.000 Óbitos

    De 10.000 a 50.000 Óbitos

    De 50.000 a 100.000 Óbitos

    Mais de 100.000 Óbitos

    0

    100

    200

    300

    400

    500

    MuitoNegativamente

    Negativamente Não iria afetar Positivamente MuitoPositivamente

    Menos de 10.000 Óbitos

    De 10.000 a 50.000 Óbitos

    De 50.000 a 100.000 Óbitos

    Mais de 100.000 Óbitos

  • n. 1 | 2020

    Impactos na Popularidade do Presidente para as Diferentes Faixas de Óbitos para Respondentes que se Autodeclaram de Centro

    fonte: elaborado pelos autores (2020)

    Impactos na Popularidade do Presidente para as Diferentes Faixas de Óbitos para Respondentes que se Autodeclaram de Direita

    fonte: elaborado pelos autores (2020)

    Impactos na Popularidade do Presidente para as Diferentes Faixas de Óbitos para Respondentes que se Autodeclaram de Extrema Direita

    fonte: elaborado pelos autores (2020)

    0

    50

    100

    150

    200

    250

    MuitoNegativamente

    Negativamente Não iria afetar Positivamente MuitoPositivamente

    Menos de 10.000 Óbitos

    De 10.000 a 50.000 Óbitos

    De 50.000 a 100.000 Óbitos

    Mais de 100.000 Óbitos

    0

    10

    20

    30

    40

    MuitoNegativamente

    Negativamente Não iria afetar Positivamente MuitoPositivamente

    Menos de 10.000 Óbitos

    De 10.000 a 50.000 Óbitos

    De 50.000 a 100.000 Óbitos

    Mais de 100.000 Óbitos

    0

    5

    10

    15

    MuitoNegativamente

    Negativamente Não iria afetar Positivamente MuitoPositivamente

    Menos de 10.000 Óbitos

    De 10.000 a 50.000 Óbitos

    De 50.000 a 100.000 Óbitos

    Mais de 100.000 Óbitos

  • n. 1 | 2020

    Na avaliação da percepção do impacto da desaceleração econômica na popularidade do presidente,

    observou-se novamente uma forte correlação com as posições no espectro político. Desse modo, nessa

    análise, essas serão novamente referências para a apresentação dos resultados (Gráficos 06 a 10).

    Observou-se que, para um recuo do PIB de até 2%, a opção “Não Iria Afetar” é majoritária em quatro

    dos cinco grupos. Mesmo na extrema esquerda, para quem a opção “Muito Negativamente” é

    majoritária (31 respostas), a opção Não Iria Afetar (30 respostas) atinge valores bastante próximos.

    No caso de um recuo de 2 a 10% a opção “Não Iria Afetar” é predominante na Direita e na Extrema

    Direita, a opção “Negativamente” se torna majoritária para a esquerda e “Muito Negativamente” se

    torna a opção majoritária para o Centro, além da Extrema Esquerda. Finalmente, no caso de um

    recuo do PIB superior a 10% apenas para os respondentes de direita (Direita e Extrema Direita)

    predomina a opção “Não Iria Afetar”, enquanto que, nos outros três grupos, a opção “Muito

    Negativamente” aparece como majoritária.

    Quando se retiram as posições mais extremadas (Extrema Esquerda e Extrema Direita), percebe-se

    que recuos de até 10% no PIB já estão assimilados e esperados pelos respondentes, os quais

    parecem não associar impactos muito significativos na popularidade do presidente. Apenas quando o

    recuo é superior a 10%, há uma predominância mais clara de um impacto muito negativo na

    popularidade do presidente.

    Observa-se ainda que, para a Extrema Direita, não há relação significativa entre os diferentes recuos

    no PIB e o impacto na imagem do presidente. Observa-se, paradoxalmente, no Gráfico 10, que à

    medida que aumenta o recuo no PIB (quanto mais o PIB decresce) mais são os respondentes que

    preveem um impacto muito positivo na popularidade presencial. A interpretação possível, nesse

    caso, estaria na defesa do isolamento vertical por parte do presidente, o que o eximiria, para esse

    grupo, de eventuais catástrofes econômicas.

    Impacto na Popularidade do Presidente para as Diferentes Faixas

    de Recuo do PIB para Respondentes que se Autodeclaram de Extrema Esquerda

    fonte: elaborado pelos autores (2020)

    31 24

    30

    3 3

    0

    10

    20

    30

    40

    50

    60

    MuitoNegativamente

    Negativamente Não iria afetar Positivamente MuitoPositivamente

    Recuo de Até 2% no PIB

    Recuo entre 2% e 10% no PIB

    Recuo de Mais de 10% no PIB

  • n. 1 | 2020

    Impactos na Popularidade do Presidente para as Diferentes Faixas

    de Recuo do PIB para Respondentes que se Autodeclaram de Esquerda

    fonte: elaborado pelos autores (2020)

    Impactos na Popularidade do Presidente para as Diferentes Faixas

    de Recuo do PIB para Respondentes que se Autodeclaram de Centro

    fonte: elaborado pelos autores (2020)

    Impactos na Popularidade do Presidente para as Diferentes Faixas

    de Recuo do PIB para Respondentes que se Autodeclaram de Direita

    fonte: elaborado pelos autores (2020)

    0

    50

    100

    150

    200

    250

    300

    350

    MuitoNegativamente

    Negativamente Não iria afetar Positivamente MuitoPositivamente

    Recuo de Até 2% no PIB

    Recuo entre 2% e 10% no PIB

    Recuo de Mais de 10% no PIB

    0

    50

    100

    150

    200

    MuitoNegativamente

    Negativamente Não iria afetar Positivamente MuitoPositivamente

    Recuo de Até 2% no PIB

    Recuo entre 2% e 10% no PIB

    Recuo de Mais de 10% no PIB

    0

    10

    20

    30

    40

    50

    MuitoNegativamente

    Negativamente Não iria afetar Positivamente MuitoPositivamente

    Recuo de Até 2% no PIB

    Recuo entre 2% e 10% no PIB

    Recuo de Mais de 10% no PIB

  • n. 1 | 2020

    Impactos na Popularidade do Presidente para as Diferentes Faixas

    de Recuo do PIB para Respondentes que se Autodeclaram de Extrema Direita

    fonte: elaborado pelos autores (2020)

    O Gráfico 11, a seguir, traz a evolução da avaliação do presidente desde o período da pesquisa

    realizada pelo OSPP. Observa-se, inclusive, que o marco referencial do início da série (13 a 15 de

    abril) coincide com a data da pesquisa apresentada no item anterior (11 a 15 de abril). Verifica-se

    que na primeira pesquisa da série o percentual de “Ótimo/Bom” ainda era superior ao

    “Ruim/Péssimo”. Nesse momento (dia 15 de abril), o país contava com 25.758 contaminados e 1557

    óbitos. A partir da pesquisa seguinte, a avaliação do presidente começou a cair até a pesquisa

    realizada no período de 25 a 27 de maio, quanto passou a oscilar dentro da margem de erro,

    atingindo o valor máximo de 48% de avaliações “Ruim/Péssimo” em 22 a 24 de junho e reduzindo a

    avaliação negativa para 46% na última pesquisa da série.

    Evolução da Avaliação do Presidente Desde a Realização da Pesquisa

    fonte: adaptado pelos autores de Data Poder 360 (2020)

    O Gráfico 12, referente ao número acumulado de óbitos no país pela COVID 19 entre os meses de

    abril e junho de 2020, mostra com clareza que o período de meado de abril até o final de maio é o

    que registra a maior variação na taxa de óbitos (inclinação da curva). A partir daí a curva tem um

    comportamento quase que linear. Justamente, nesse período a avaliação do presidente é mais

    0

    5

    10

    15

    MuitoNegativamente

    Negativamente Não iria afetar Positivamente MuitoPositivamente

    Recuo de Até 2% no PIB

    Recuo entre 2% e 10% no PIB

    Recuo de Mais de 10% no PIB

    36

    29 30 28 28 29 29

    33

    40 39 44

    47 48 46

    0

    10

    20

    30

    40

    50

    60

    13-15 Abr 27-29 Abr 11-13 Mai25-27 Mai 08-10 Jun 22-24 Jun 06-08 Jul

    Ótimo/Bom

    Ruim/Péssimo

  • n. 1 | 2020

    impactada, com o crescimento de 11 pontos nas avaliações “Ruim/Péssimo” e a perda de 8 pontos

    nas avaliações “Ótimo/Bom”. A partir do final de maio, a média diária de óbitos diária manteve-se

    próxima a 1.000. No período de final de maio a início de julho a avaliação presidencial oscilou dois

    pontos para cima em relação às avaliações Ruim/Péssimo e um ponto para cima nas avaliações

    Ótimo/Bom. É importante constatar que desde o final de maio já se projetava um cenário de saúde

    muito negativo para a pandemia no Brasil.

    As projeções econômicas também pioraram bastante nos últimos meses. A última projeção do FMI

    (Gráfico 13) é de que o PIB brasileiro deverá cair mais de 9% em 2020, quase o dobro da perda média

    projetada para a economia global (GOPINATH, 2020).

    Deve se observar, no entanto, que os meses de abril e maio marcam também as conturbadas saídas

    do ministro Sérgio Moro da pasta da justiça e dos ministros da saúde, as quais certamente

    contribuíram para algum nível de desgaste na imagem presidencial.

    Um confronto do Gráfico 11 com os gráficos de 01 a 10 nos traz alguns achados importantes.

    Primeiramente, verifica-se que os estratos de posição política são de fato muito importantes para se

    analisar a relação entre a ação (ou não ação) do governo e os impactos na sua popularidade. Para a

    imensa maioria dos eleitores definidos como de esquerda ou centro-esquerda, muito provavelmente

    a avaliação presidencial já era negativa no mês de abril. A impressão dos eleitores de extrema-direita

    de que o impacto da pandemia medido em óbitos e a retração econômica não afetariam a imagem

    do presidente, traduzem-se em posições pessoais que ajudam a explicar a relativa estabilidade do

    presidente, mesmo após a obtenção do status de país com o segundo maior número de mortes e as

    divulgações de projeções preocupantes de retração econômica, acima da retração econômica

    projetada para o mundo.

    - Evolução do Número de Óbitos por coronavírus no Brasil (até 18/6)

    fonte: editoria de Arte/G1 (2020)

  • n. 1 | 2020

    Projeções de perda do PIB do Brasil 2020

    fonte: adaptado pelos autores de Gopinath (2020) in FMI.

    A perda de popularidade, verificada nos meses de abril e maio, muito provavelmente, traduzem uma

    mudança na tendência de apoio dos grupos que na pesquisa se mostraram mais sensíveis aos efeitos da

    pandemia na saúde e na economia, muitos deles também apoiadores do ministro Moro e da Lava Jato.

    O impacto futuro da pandemia, em termos de saúde, na avaliação presidencial não deverá ser muito

    significativo. Além da solidez do apoio mantido até o presente momento, as projeções do número de

    óbitos já são de conhecimento público e não parecem afetar a opinião dos que mantêm o apoio, os

    quais parecem não vincular o presidente à tragédia dos números, mesmo diante da ausência de um

    plano governamental para combater e reduzir os efeitos da pandemia e das trocas e até ausência de

    ministro da saúde, afetando a gestão do sistema de saúde e deixando a população ainda mais

    vulnerável em um momento de tantas incertezas.

    Mais importante será a questão econômica, uma vez que o auxílio emergencial fornecido pelo

    governo o tem ajudado a sustentar parte do apoio nas classes menos favorecidas (as pesquisas

    retratam que apesar da manutenção da proporção final de apoiadores, houve algumas alterações na

    sua composição). Há de se acompanhar como ficará o apoio quando a assistência financeira cessar e

    as medidas de isolamento forem mais relaxadas, refletindo-se em crescimento massivo de pessoas

    procurando empregos.

    O Observatório prevê uma nova pesquisa nos próximos meses, dessa vez, analisando de forma mais

    ampla a avaliação presidencial, de modo que, seja possível obter um olhar menos contaminado pelo

    efeito cruzado entre os diferentes fatores que circundam o contexto pandêmico. O mais importante

    será verificar em que medida a estratégia do governo federal de repassar os impactos da saúde para

    os estados e municípios, pelo protagonismo destes no combate à pandemia, e de se eximir do

    impacto econômico, se apresentando como voto vencido em relação ao relaxamento precoce do

    isolamento, está sendo bem sucedida.

    -3,4

    -7,4

    -5,3

    -9,1 -10

    -8

    -6

    -4

    -2

    0

    Março Abril Maio Junho

    Goldman Sachs

    FMI

  • n. 1 | 2020

    FOLHA DE SÃO PAULO (ed.). Eleitores de Bolsonaro e Haddad têm comportamento diferente na

    pandemia, aponta Datafolha: Bolsonaristas mudaram menos os hábitos e estimam duração menor

    para crise do coronavírus. São Paulo: Folha de São Paulo, 30 mar. 2020. Disponível em:

    https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/eleitores-de-bolsonaro-e-haddad-tem-

    comportamento-diferente-na-pandemia-aponta-datafolha.shtml. Acesso em: 29 jul. 2020.

    EDITORIA DE ARTE/G1. Brasil tem 1.204 mortes por coronavírus em 24 horas, mostra consórcio de

    veículos de imprensa; são 47.869 no total. [S. l.]: Editoria de Arte/G1, 18 jun. 2020. Disponível em:

    https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/06/18/brasil-tem-1204-mortes-por-

    coronavirus-em-24-horas-mostra-consorcio-de-veiculos-de-imprensa-sao-47869-no-total.ghtml.

    Acesso em: 28 jul. 2020.

    GAZETA DO POVO (ed.). No Brasil, mais da metade da população adulta não tem ensino médio. [S.

    l.], 16 jun. 2019. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/no-brasil-mais-da-

    metade-da-populacao-adulta-nao-tem-ensino-medio/. Acesso em: 28 jul. 2020.

    GOPINATH, Gita. Reabertura do grande bloqueio: recuperação desigual e incerta. [S. l.]: Fundo

    Monetário Internacional (FMI), 24 jun. 2020. Disponível em:

    https://blogs.imf.org/2020/06/24/reopening-from-the-great-lockdown-uneven-and-uncertain-

    recovery/. Acesso em: 28 jul. 2020.

    LOPES, Aline Cristina Berbet; LEINIOSKI, Amanda da Cruz; CECCON, Larissa. Testes t para comparação

    de médias de dois grupos independentes. Universidade Federal do Paraná – UFPR, 2015. Disponível

    em:http://www.leg.ufpr.br/lib/exe/fetch.php/disciplinas:ce001:bioestatistica_testes_t_para_comparacao_de

    _medias_de_dois.pdf. Acesso em: 28 jul. 2020.

    MENDONÇA, Heloísa. Empatia ou pragmatismo, o dilema de empresas entre o respeito a vidas e a

    retomada da economia: Restrições a atividades econômicas durante a crise do coronavírus podem

    levar a prejuízo de mais de 320 bilhões. Fenafisco propõe choque de tributação nas altas rendas e

    grandes patrimônios. São Paulo: EL PAÍS, 27 mar. 2020. Disponível em:

    https://brasil.elpais.com/economia/2020-03-27/empatia-ou-pragmatismo-o-dilema-de-empresas-

    entre-o-respeito-a-vidas-e-a-retomada-da-economia.html. Acesso em: 28 jul. 2020.

    PODER 360. 30% avaliam governo Bolsonaro como bom ou ótimo, aponta XP. Disponível em

    https://www.poder360.com.br/pesquisas/30-avaliam-governo-bolsonaro-como-bom-ou-otimo-

    aponta-xp/. Acesso em: 28 jul. 2020.

    https://www.poder360.com.br/pesquisas/30-avaliam-governo-bolsonaro-como-bom-ou-otimo-aponta-xp/https://www.poder360.com.br/pesquisas/30-avaliam-governo-bolsonaro-como-bom-ou-otimo-aponta-xp/

  • análise das diretrizes e discursos sobre ciência e ética produzidos pela Organização Mundial de Saúde

    Ana Paula Antunes Martins

    Departamento de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de Brasília | UnB)

    Consultora da Organização Pan-Americana de Saúde | OPAS/OMS

    Este texto debruça-se sobre as diretrizes e discursos sobre ciência e ética, produzidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), com o objetivo de reconhecer a importância de outros atores, além dos governamentais, na

    definição de um problema público – como é a pandemia de Covid-19 – e de problematizar o papel de organismos internacionais como a OMS na governança

    global e na promoção de políticas públicas, especialmente diante de condições em que os governos nacionais apresentam baixa capacidade de resposta na adoção de medidas de enfrentamento ou erradicação de um dado problema

    : MARTINS, Ana Paula Antunes. Governança global da pesquisa científica no contexto da pandemia de Covid-19: análise das diretrizes e discursos sobre ciência e ética

    produzidos pela Organização Mundial de Saúde, pp. 28-37. In: OSPP. : Políticas Públicas

    & Governança, UFBA, UnB, UFV, UFTM, n. 1, jul. 2020.

  • n. 1 | 2020

    A pandemia de Covid-19 gerou uma ampla movimentação no campo científico e de saúde global.

    Desde que a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou o estado de pandemia, em 11 de março

    de 2020, houve intensa mobilização de atores para a produção de conhecimentos que pudessem

    fazer frente a este que é um dos maiores desafios sanitários da história da humanidade. A promoção

    de políticas públicas de ciência e tecnologia está implicada nesse processo, e sua condução possui

    uma dimensão axiológica, ou seja, permeada por valores e princípios éticos, ainda que implícitos.

    Analisar a dimensão axiológica subjacente à produção de um problema público é fundamental para

    compreendermos a emergência de políticas públicas a partir do reconhecimento de outros atores,

    além dos governamentais, para a definição do que é relevante e/ou precisa ser preservado como um

    bem público (BOULLOSA, 2013; FISCHER, 2016).

    Nesse período de pandemia, há evidente expansão ou fortalecimento do campo científico na esfera

    global. Governos, agências internacionais, sistemas de saúde e centros de pesquisa ampliam seu

    envolvimento na condução, promoção e incentivo de estudos voltados para o manejo, o tratamento

    e a erradicação das condições que geram a situação de emergência sanitária. Do conjunto de

    critérios e valores a serem observados nesse contexto, destacam-se a promoção de investigações

    que expressem o comprometimento dos estados com ações efetivas e o desenvolvimento de

    metodologias conduzidas por padrões éticos.

    No processo de definição da pandemia enquanto um problema global de alta relevância e

    complexidade, observou-se o protagonismo desempenhado pela Organização Mundial de Saúde

    diante do fenômeno. Os organismos internacionais, considerados atores de políticas públicas,

    ampliam seu protagonismo em situações de ameaça internacional, especialmente diante de

    condições em que os governos nacionais apresentam baixa capacidade de resposta na adoção de

    medidas de enfrentamento ou erradicação de um dado problema.

    O papel desempenhado pelos organismos internacionais na promoção de políticas públicas tem sido

    amplamente reconhecido na literatura tanto do campo das políticas públicas como das relações

    internacionais. Há, portanto, uma multiplicidade de atores de políticas públicas, internos e externos

    ao Estado (HOWLETT, RAMESH, PERL, 2013), o que remete aos estudos baseados em uma

    abordagem multicêntrica, que percebe a existência de uma rede de políticas públicas, em que atores

    governamentais, não governamentais, organismos multilaterais e do setor privado estão implicados

    nos processos de formulação, implementação, execução de avaliação de políticas públicas (OLIVEIRA,

    2019). Esse desenho, muito embora remeta ao ciclo de políticas públicas (contemporaneamente

    considerado limitado para a análise e a avaliação dos processos de tomada de decisão, tendo em

    conta sua visão linear e circundada a etapas pré-definidas que não se confirmam nas realidades

    apreendidas pelos estudos empíricos), enfatiza um olhar não tecnocrático e interpretativo que

    sobrepõe o problema público à personalidade jurídica do ator que se dispõe a enfrentá-lo.

    Legitimidades, nesse processo, se produzem contextualmente, nas relações de poder e linguagem, e

    se observam por meio dos percursos argumentativos. Nesses percursos estão presentes diferentes

    visões sobre a forma de interpretar e lidar com problemas sociais, o que forma a existência de uma

    comunidade política interdependente e também conflitiva, cujas linguagens concorrentes precisam

  • n. 1 | 2020

    ser conhecidas e analisadas para a formação de um arcabouço metodológico que expresse a

    complexidade do processo democrático (FISCHER, 2016).

    Afirmar que organismos internacionais participam da definição dos problemas que figuram entre as

    principais prioridades nas agendas dos estados nacionais, significa reconhecer que comunidades

    políticas extrapolam as fronteiras nacionais e não se reduzem a perspectivas normativas baseadas na

    jurisdição. Uma das abordagens teóricas que se dispõe a compreender esse fenômeno é a da

    "governança global”. Estabelecida em contextos não hierárquicos ou desprovidos de capacidade

    impositiva, é promovida por atores e agendas do sistema internacional, ampliados e diversificados na

    segunda metade do séc. XX, especialmente após a dissolução da Guerra Fria.

    A crescente relevância dos atores que compõem esse sistema internacional identifica-se ou coincide

    com a ampliação da agenda neoliberal nos estados nacionais, e requer novas categorias

    interpretativas das transformações nos processos de tomada de decisão. Foi assim que, de acordo

    com a narrativa de Mauad (2016) o conceito de governança global assinalou a existência de uma

    “governança sem governo”1, que implica a definição de objetivos comuns e a proposição de ações ou

    esforços transnacionais, não amparados pelo poder de polícia no processo de formação do

    consentimento (ROSENAU, 2000). O aprofundamento dos fluxos comunicativos e das relações globais

    amplia a mobilização de redes internacionais de atores públicos e privados, favorecendo a

    governança global. Trata-se de um cenário indubitavelmente difuso, mas com efeitos nas relações de

    poder que subjazem a definição de um problema público e o espectro decisório. Essa acepção

    decorre, dentre outros estudos, dos resultados do encontro da Comissão sobre Governança Global,

    realizado em 1992 com o apoio das Nações Unidas2.

    Tópico destacado na agenda da Organização Mundial de Saúde diante da pandemia tem sido a

    produção de conhecimentos e estratégias de enfrentamento à Covid-19, o que consubstancia uma

    agenda de políticas públicas de ciência e tecnologia. Diante disso, são relevantes e necessárias as

    compreensões sobre o funcionamento do campo científico e as potencialidades de interpretá-lo a

    partir da noção de governança global.

    As relações sociais em contextos de alta diferenciação social, o que é típico das sociedades

    modernas, desenvolvem-se no interior de cosmos regidos por leis próprias, cujo sistema de

    atribuição de valor é definido pelos atores que nele convivem. Isso significa que nossas sociedades

    são caracterizadas por significativa e crescente heterogeneidade, de modo que “um campo é um

    microcosmo incluído no macrocosmo constituído pelo espaço social global (nacional ou, mais

    raramente, internacional)” (LAHIRE, 2017). Distintos microcosmos obedecem a lógicas diferentes.

    Estas definições, amplamente difundidas pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, contribuíram para

    estabelecer uma relação não excludente entre estrutura e ação social. Campos são “microcosmos

    relativamente autônomos”. Quanto mais autônomo um campo, mais seu funcionamento se dá

    conforme leis próprias e independentes das relações de poder alheias ao capital que está em jogo no

    1 Em 1992, Rosenau e Czempiel publicam a obra Governance without government: order and chance in world politics,

    considerada um ponto de inflexão nos estudos que interpretavam os sistemas internacionais como inerentemente anárquicos ou desprovidos de ordem. Na sequência, os mesmos autores publicam Global changes and theoretical challenges: approaches to world politics for the 1990s (1989). 2 O relatório “Our Global Neighborhood” (1995) sintetiza as discussões de especialistas sobre a governança global,

    enfatizando que a governança “é um processo contínuo por meio do qual conflitos e divergências de interesses podem ser acomodados e ações cooperativas podem ser tomadas” (MAUAD, 2016).

  • n. 1 | 2020

    seu interior. Um campo também pode ser definido, na acepção de Bourdieu, como um lugar de luta

    concorrencial em que está em jogo o monopólio por determinado capital.

    Logo, como interpretar as dinâmicas dos campos, marcados por alta diferenciação, notadamente do

    campo científico, no contexto da governança global da pesquisa? A governança global influencia no

    sistema ou no espaço estruturado de posições e de lutas do campo científico? Os capitais que estão

    em disputa são redefinidos pela atuação da rede de políticas públicas? Qual o potencial da

    governança global na definição de interesses e na próprio alargamento das fronteiras, ou na

    ampliação de sua porosidade? A autonomia relativa do campo científico torna-se ainda mais relativa

    ou mais regida por lógicas de outros campos, como o campo político transnacional? Nem todas essas

    questões podem ser respondidas diante do escopo metodológico deste ensaio, voltado mais para a

    emissão das mensagens do que para a recepção ou para os efeitos dos discursos. Compreender que

    o discurso estabelece-se ele mesmo no interior de relações de poder e que envolve não apenas uma

    tradução literal das falas dos agentes, mas seu caráter persuasivo, é fundamental para realizar

    análises interpretativas da formação de um problema público. O discurso produz efeitos entre seus

    interlocutores, e é preciso considerar que "o contexto interpretativo em que se encontra o discurso é

    eminentemente conflitivo, competitivo, em que diferentes ideias, concepções e olhares da realidade

    estão em jogo para mantê-la ou transformá-la” (MARTINS, 2007, p. 62).

    A atenção para os conflitos de interesse porventura existentes em determinada pesquisa consiste em

    um reconhecimento de que a autonomia do campo científico pode estar ausente ou que as lutas

    podem estar se dando a partir de regras exógenas ao seu funcionamento. Impor critérios para evitar

    os conflitos de interesse consiste em um mecanismo para reduzir a permeabilidade do campo e de

    garantir que os resultados obedeçam a critérios diferenciados e especializados. Não se trata de

    chancelar a “illusio”, ou seja, a crença científica no interesse desinteressado, que nos levaria a

    acreditar que a ciência se desenvolve meramente a partir da definição de objetos interessantes e

    capazes de merecer um investimento, mas de observar a incidência de interesses dissonantes ou

    exógenos ao campo científico.

    Diante desse quadro complexo em que a formação do problema público, notadamente a pandemia

    de Covid-19, se realiza mediante a diversificação de atores e agendas e se estabelece, dentre outros

    fluxos, a partir da governança global, propõe-se o seguinte conjunto de reflexões: De que forma a

    OMS define o problema público? Como se dirige aos atores que compõem o campo científico para a

    produção de soluções? Que mensagens profere ou envia para os governos e para os pesquisadores e

    profissionais de saúde atuantes nas investigações de enfrentamento ao coronavírus? Quais sentidos

    de ciência podem ser atribuídos a esses discursos e diretrizes no contexto da pandemia? Há, nesses

    textos, a presença de visões interdisciplinares que considerem a pandemia como fenômeno de

    natureza biomédica, social, econômica e política? Como as Ciências Humanas e Sociais são abordadas

    nesses discursos e diretrizes? De que forma participantes de pesquisa são considerados nesse

    processo? Há uma orientação ou diretriz global para a participação social de atores da sociedade

    civil? Qual o discurso de legitimação produzido pela OMS na configuração da governança global?

    Para tanto, sistematizou-se, segundo dadas categorias de análise, o discurso inaugural da OMS,

    proferido pelo diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus,

    no ato da declaração da pandemia de Covid-19, em 11 de março de 2020, e amplamente divulgado

    no mundo. Os discursos da OMS são informações públicas transcritas e disponíveis no site da

  • n. 1 | 2020

    Organização Mundial de Saúde. As análises apoiam-se na categorização prévia do discurso, definida

    conforme os interesses e problemas da pesquisa, e constituídas a partir da literatura sobre políticas

    públicas, governança global e campo científico.

    Em documento oficial publicado antes da pandemia3, a OMS define um conjunto de padrões para a

    qualidade da pesquisa científica e a integridade ética. Para tanto, avoca sua legitimidade para

    desenhar agendas de pesquisa e estimular a geração, a tradução e a disseminação de conhecimento

    válido. Para tanto, define como uma de suas funções estabelecer critérios para a promoção de

    pesquisas eticamente orientadas, baseadas em evidências e balizadas pelos direitos humanos. Essas

    diretrizes são definidas na forma da divulgação de boas práticas, em que o comportamento ético e a

    responsabilidade são padrões a serem atingidos por pesquisas clínicas e não clínicas, o que envolve

    tanto as áreas biomédicas como as de ciências humanas e sociais. Os princípios éticos estabelecidos

    pela Organização Mundial de Saúde são: integridade, accountability (prestação de contas pública),

    independência ou imparcialidade e comprometimento profissional.

    A OMS, ao estabelecer diretrizes para o desenvolvimento de pesquisas científicas, desenvolve um

    protagonismo típico de instituições que exercem a governança, uma vez que define padrões para

    orientar as pessoas que trabalham em todas as pesquisas associadas ou em conformidade com a

    OMS, incluindo pesquisas não clínicas. No estabelecimento do código, a OMS ampara-se nas normas

    comumente estabelecidas pelas comunidades científicas. Nesse quesito, menciona o Conselho de

    Organizações Internacionais de Ciências Médicas. A ênfase, além da definição de boas práticas, está

    na inexistência dos conflitos de interesse, na propriedade intelectual, na publicação e nas

    irregularidades da pesquisa. Todos os colaboradores, em espírito em princípios, bem como o staff da

    OMS, estão no escopo do código. Óbices éticos são identificados quando há desenvolvimento

    inapropriado de protocolos de pesquisa, conflitos de interesses, falsificação, plágio, deturpação

    deliberada ou outras práticas que desviem das normas aceitas pelas comunidades científicas para

    propor, conduzir ou revisar pesquisas ou para reportar resultados de pesquisas.

    3 World Health Organization. Code of conduct for responsible research. Disponível em: https://www.who.int/about/ethics

    https://www.who.int/about/ethics

  • n. 1 | 2020

    Categorias de análise do discurso do diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, em 11 de março de 2020

    4.291 mortos por Covid-19

    118 mil casos no mundo

    - Não é apenas uma crise de saúde pública;

    - Testar, tratar, isolar, rastrear, mobilizar para evitar transmissão

    comunitária;

    - Descrever o fenômeno como pandemia não altera o que os países

    devem fazer;

    - Pedimos todos os dias para que governos tomem medidas urgentes e

    agressivas;

    - Todos os países ainda podem mudar o curso dessa pandemia;

    - Alguns países estão lutando com a falta de capacidade, de recursos, de

    resolução;

    - A OMS está lidando com os níveis alarmantes (…) da falta de ação;

    - Todos os países devem encontrar um bom equilíbrio entre proteger a

    saúde, minimizar as disrupções econômicas e sociais e respeitar os

    direitos humanos;

    - O mandato da OMS é a saúde pública. Mas estamos trabalhando com

    muitos parceiros em todos os setores para mitigar as consequências

    sociais e econômicas dessa pandemia;

    - Abordagem de todo o governo e sociedade;

    - indivíduos devem estar envolvidos;

    - Estamos juntos para fazer a coisa certa, com calma, e proteger os

    cidadãos do mundo. É possível;

    - Preocupação com níveis alarmantes de disseminação da Covid-19;

    - Gravidade com os níveis alarmantes de falta de ação;

    - Situação nova (é a primeira pandemia causada por um coronavírus);

    - Crise que vai afetar todos os setores;

    - A OMS está avaliando o surto 24h por dia

    - Nós estamos profundamente preocupados com os níveis alarmantes de

    disseminação

    - OMS está em modo de resposta completa desde os primeiros casos;

    - A OMS tocou a "campainha do alarme alta e clara”

    - O mandato da OMS é a saúde pública. Mas estamos trabalhando com

    muitos parceiros em todos os setores para mitigar as consequências

    sociais e econômicas dessa pandemia;

    fonte: elaboração da autora (2020), com base no discurso da OMS. Disponível em: https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19---11-march-2020

  • n. 1 | 2020