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PESQUISA EM FOCO: Educação e Filosofia V. 8 , ANO 8, ABRIL 2015 | ISSN: 19833946 Política e educação em Hannah Arendt Antônio Batista Fernandes 1 Antônio Iderlene Sabino Freitas 2 Maria Estefânia Sabino Freitas 3 RESUMO: O objetivo principal do presente artigo é analisar a relação entre política e educação no pensamento de Hannah Arendt. Para tanto, utilizamos como referencial teórico principal as obras A condição humana e Entre o passando e o futuro, esta última com mais importância, pois a autora dedicou um capítulo específicopara analisar A Crise da Educação nos Estados Unidos da América. Ao refletir sobre a questão da educação Hannah Arendt apresenta o conceitode natalidade, isto é, potencialidadeque todo homem tem desde seu nascimento de dar início a novos começos, como sendo a essência da educação. Por outro lado, destaca a importância da educação como fomentadora de uma postura de responsabilidade pelo mundo. Desse modo,defendemos que política e educação são termos correlatos na autora não podendo, portanto, ser pensados separadamente . PALAVRASCHAVE: Hannah Arendt; Natalidade; Política; Educação. ABSTRACT: The main objective of paper is to analyze the relationship between politics and education at the thought of Hannah Arendt. We used as the main theoretical framework books like ‘The human condition’ and ‘Between Past and Future’, this last one is more important because the author has devoted a chapter to analyze Education Crisis in the United States of America. In the reflection about education Hannah Arendt introduces the concept of natality, potential that every man has from birth to initiate new beginnings, as the essence of education. On the other hand, highlights the importance of education as a sponsor of a responsibility posture around the world. In this way we defend that politics and education are terms are related in the author and we can’t think about them as two different things. KEY WORDS: Hannah Arendt;Natality;Politics;Education. 1 Introdução 1 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) Ceará – Brasil. Professor do curso de Filosofia da Faculdade Católica Rainha do Sertão (FCRS) Ceará – Brasil. Email: [email protected]. 2 Graduada em Filosofia pela Faculdade Católica Rainha do Sertão (FCRS) Ceará – Brasil. Email: 3 Graduada em História pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) Ceará – Brasil. Email:

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PESQUISA EM FOCO: Educação e Filosofia ­ V. 8 , ANO 8, ABRIL 2015 | ISSN: 1983­3946

Política e educação em Hannah Arendt

Antônio Batista Fernandes 1

Antônio Iderlene Sabino Freitas 2

Maria Estefânia Sabino Freitas 3

RESUMO: O objetivo principal do presente artigo é analisar a relação entre política e educação no

pensamento de Hannah Arendt. Para tanto, utilizamos como referencial teórico principal as obras A

condição humana e Entre o passando e o futuro, esta última com mais importância, pois a autora

dedicou um capítulo específicopara analisar A Crise da Educação nos Estados Unidos da América. Ao

refletir sobre a questão da educação Hannah Arendt apresenta o conceitode natalidade, isto é,

potencialidadeque todo homem tem desde seu nascimento de dar início a novos começos, como sendo

a essência da educação. Por outro lado, destaca a importância da educação como fomentadora de uma

postura de responsabilidade pelo mundo. Desse modo,defendemos que política e educação são termos

correlatos na autora não podendo, portanto, ser pensados separadamente

.

PALAVRAS­CHAVE: Hannah Arendt; Natalidade; Política; Educação.

ABSTRACT: The main objective of paper is to analyze the relationship between politics and education at

the thought of Hannah Arendt. We used as the main theoretical framework books like ‘The human

condition’ and ‘Between Past and Future’, this last one is more important because the author has

devoted a chapter to analyze Education Crisis in the United States of America. In the reflection about

education Hannah Arendt introduces the concept of natality, potential that every man has from birth to

initiate new beginnings, as the essence of education. On the other hand, highlights the importance of

education as a sponsor of a responsibility posture around the world. In this way we defend that politics

and education are terms are related in the author and we can’t think about them as two different things.

KEY WORDS: Hannah Arendt;Natality;Politics;Education.

1 Introdução

1 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) Ceará – Brasil. Professor do curso de Filosofia da Faculdade Católica Rainha do Sertão (FCRS) Ceará – Brasil. E­mail: [email protected]. 2 Graduada em Filosofia pela Faculdade Católica Rainha do Sertão (FCRS) Ceará – Brasil. E­mail: 3 Graduada em História pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) Ceará – Brasil. E­mail:

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O pensamento político de Hannah Arendt é sem sombra de dúvidas um dos

mais estudados na contemporaneidade, isto não por acaso, visto que uma das

principais propostas defendidas pela autora é a de compreender os principais

acontecimentos políticos de seu tempo, marcado pela ruptura com fio condutor da

tradução do pensamento político ocidental ,dando origem aos regimes totalitários do 4

nazismo e stalinismo . Hannah Arendt não se considerava uma filósofa, como ela 5

mesma respondeu em entrevista cedida a Günter Gaus, em 28 de outubro de 1964,

disse a autora: “Não pertenço ao círculo dos filósofos. Minha profissão, se é que se

pode chamar assim, é a teoria política. Não me sinto uma filósofa, nem creio ter sido

aceita no círculo de filósofos, como você tão gentilmente supõe” (2008b, p. 31).

Sobre sua trajetória é importante frisar que Hannah Arendt estudou em

Marburgo, Friburgo e Heidelberg, tendo sido aluna de Heidegger e Jaspers, que sem

dúvida estes tiveram forte influência sobre sua formação universitária. Contudo, foi

somente ao se deparar com os principais acontecimentos políticos de seu século

que a autora resolveu escrever sobre política. Para Hannah Arendt, seus escritos

sobre política são acima de tudo uma “oportunidade para tentar narrar e

compreender o que havia acontecido” (ARENDT, 2007b, p. 339). SegundoHubeny

(1993), a história deixou poucas escolhas possíveis a Hannah Arendt.

Em nosso artigo abordaremos sobre a perspectiva do pensamento

arendtiano, dois temas de grande importância para o presente, a saber: política e

educação. No primeiro momento analisaremos a teoria do pensamento político de

Hannah Arendt tendo por referencial teórico sua obra intituladaA condição humana.

Na sequência, nos deteremos ao ensaio A crise na educação, disponível na obra

Entre o passado e o futuro, onde a autora analisa a crise da educação na

modernidade detendo­se objetivamente as questões referentes aos Estados Unidos.

Embora Hannah Arendt aborde também o tema da educação em seu ensaio

4De acordo com Schio, essa ruptura com a tradição do pensamento político ocidental que começou desde Platão e Aristóteles, significa que não existe mais aquela tradição “que serve de suporte que seleciona e nomeia, que transmite e preserva, que indica os rumos a serem seguidos” (2006, p.31), tradição essa que se fazia presente ainda em todo o imperialismo. 5Para Hannah Arendt, “compreender não significa negar o ultrajante, subtrair o inaudito do que tem precedentes, ou explicar fenômenos por meio de analogias e generalidades tais que se deixa de sentir o impacto da realidade e o choque da experiência. Significa antes examinar e suportar conscientemente o fardo que os acontecimentos colocaram sobre nós – sem negar sua existência nem vergar humildemente a seu peso, como se tudo o que de fato aconteceu não pudesse ter acontecido de outra forma. Compreender significa, em suma, encarar a realidade, espontânea e atentamente, e resistir a ela – qualquer que seja, venha a ser ou possa ter sido”. (2007d, p. 21).

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Reflexões sobre Little Rock, presente na obra Responsabilidade e julgamento, nos

focaremos apenas ao primeiro ensaio, por entendermos que se trata de reflexões

feitas sobre perspectivas diferentes.

Assim sendo, nossa proposta nesse ensaioé apenas apresentar de forma

breve a relação existente entre política e educação no pensamento de Hannah

Arendt, relação essa que se tornou possível a partir do momento que na

modernidade a educação adentrou ao campo dos assuntos referentes à esfera

pública. Desse modo, mesmo não sendo nossa autora uma teórica da educação,

podemos perceber sua importante contribuição para o debate educacional na

modernidade.

2 Natalidade e ação política

Logo nas linhas iniciais do capítulo A crise na educação , texto central para 6

nosso artigo, Hannah Arendt afirma: “a essência da educação é a natalidade, o fato

de que os seres nascem para o mundo” (2007a, p.223). O conceito de natalidade,

fundamental dentro do pensamento de nossa autora, ganha um destaque especial

quando relacionado com o tema da educação . Desse modo, a educação torna­se a 7

responsável por introduzir os recém­chegados no mundo que já existia antes da sua

chegada e continuará existindo depois de sua partida. Segundo Almeida, “a

natalidade, portanto, diz respeito à dinâmica entre o mundo historicamente

constituído e a chegada de novos, que podem intervir nele” (2011, p. 21).

Entretanto, antes de relacionarmos natalidade e educação, vamos aprofundar

de modo mais detalhado esse conceito dentro do pensamento arendtiano fazendo

uma articulação inicial entre natalidade e ação política. Quando Hannah Arendt

cunha o conceito de natalidade ela não está fazendo referência a algo biológico,

mas, sobretudo, a algo estritamente político, fruto da espontaneidade e da

6 A versão portuguesa que temos do textoA crise da educação foi traduzido da versão em língua inglesa de 1961. O texto pode ser encontrado no livro Entre o passado e o futuro (Betweenpastand future), publicado pela editora Perspectiva. Nesse artigo utilizaremos a 6ª edição de 2007. 7 Segundo Correia (2010), o tema da natalidade já ocupava o pensamento de Hannah Arendt desde o início de sua filosofia. Em sua tese de doutorado intituladaO conceito de amor em Santo Agostinho, a autora sustenta que o homem por sua origem é capaz de agir como iniciador e mudar o curso da história da humanidade.

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capacidade que os homens têm por seu nascimento de dar início a novos começos.

Sobre essa temática afirma Correia,

[...] a natalidade não é idêntica ao nascimento, [...] a natalidade é uma possibilidade sempre presente de atualização, por meio da ação, a singularidade da qual o nascimento de cada individuo é uma promessa; a possibilidade de assumirmos a responsabilidade por termos nascidos e de nascermos, assim também, para o mundo; de que sejamos acolhidos no mundo por meio da revelação de quem somos mediante palavras e atos; de que nasçamos sempre de novo e nos firmemos natais, não mortais; a possibilidade, enfim, de que nos tornemos mundanos, amantes do mundo. (2010, p. 813).

O termo natalidade para a autora representa um segundo nascimento ou um

nascer para o mundo . Os que acabam de chegar no mundo são seres singulares e 8

representam um novidade para esse lugar, por isso podem transformá­lo pela

potencialidade que têm de iniciar algo novo. A cada nascimento surge uma nova

expectativa, pois todo ser humano traz consigo a esperança de iniciar uma nova

história diferente da já existente.A natalidade é, portanto, um convite à ação política.

Para Arendt, a ação “corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que

os homens e não o Homem, vivem na terra e habitam o mundo”. (2010, p. 8).

Ação política e natalidade são termos correlatos em Hannah Arendt. Para a

autora a ação “é a única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem

a mediação das coisas o da matéria” (2010, p. 8). É através da ação e da relação

com os outros homens que o milagre do novo tem espaço para surgir, tornando­se a

ação a via que possibilita que o milagre da natalidade aconteça; assim, segundo

Arendt, a ação também “corresponde ao fato do nascimento, se é a efetivação da

condição humana da natalidade” (2010, p. 222).

Torna­se importante frisar também a relação entre ação e discurso e que

ambos tem centralidade no pensamento de Arendt, por tornarem a vida do homem

algo eminentemente humana na medida em que pode ser vivida entre os homens,

ao mesmo tempo em que são os locais de revelação do agente (Cf. AMIEL, 1996, p.

8 De acordo com Almeida (2011, p. 25), existe certa dificuldade em definir com clareza o que vem a ser mundo para Hannah Arendt. Em alguns momentos a autora trata o mundo como conjunto de objeto duráveis e em outros como aspecto relacionado ao espaço­entre. No entanto, reforçando a tese de Duarte (2001, p. 257), não podemos confundir mundo em Arendt com a terra ou com a natureza, mas como barreiras artificiais que os homens interpõem entre si e entre eles e a própria natureza.

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67). Segundo Arendt, é somente através das “palavras e atos que nos inserimos no

mundo humano, e essa inserção é como um segundo nascimento” (2010, p. 221). É,

portanto, por meio das palavras e atos que podemos confirmar nosso aparecimento

físico e nos colocarmos em um mundo humano, da mesma forma que é por meio

dessas palavras e atos que podemos dar início, começar algo novo, fazer surgir o

inesperado pela força de nossa ação. No entanto, para que o homem apareça e se

manifeste, ele necessita sempre de um espaço de pluralidade que favoreça tal

aparecimento, posto que nenhuma ação é possível no isolamento.

Dessa feita, é através da palavra falada, isto é, do discurso, que a ação se faz

possível e que o agente pode ser revelado em sua forma singular . O agir e o falar 9

são os responsáveis pelo aparecimento do homem no mundo, no entanto, para que

esse aparecimento se efetive de fato se faz necessário um espaço público, que cria

um espaço entre os homens, tornando possível o desvelamento do homem, isto é, o

aparecimento de um aos outros. Sem esse espaço público o desvelamento do

agente no ato não aconteceria e a ação tornar­se­ia apenas um meio para atingir um

fim determinado.

Para Arendt, “a ação e o discurso ocorrem entre os homens, uma vez que

eles são dirigidos, e conservam sua capacidade de revelar o agente

[agent­revealing]” (2010, p.228). Toda revelação ou mesmo desvelamento do “quem”

do agente só é realmente possível no espaço entre os homens, no falar e no agir de

uns com os outros, que nossa autora denomina de “teia” das relações humanas.

Segundo Amiel, o que Hannah Arendt está dizendo quando se refere a essa “teia

das relações”, é que “a ação insere­se sempre numa rede de outras ações, de

relações humanas, que fazem com que quase nunca atinja o seu objetivo” (1996, p.

68).

O que Hannah Arendt almeja esclarecer em sua teoria da ação, é que “a ação

jamais é possível no isolamento” (ARENDT, 2010, p. 235). A ação e o discurso

precisam da presença dos outros para que possa se efetivar de fato, necessita

sempre de um espaço de pluralidade humana, onde o agente que afeta é ao mesmo

tempo afetado pelos projetos dos outros, isto é, onde aquele que age é também o

9 Embora, segundo Canovan, nem toda ação envolva o discurso ( ex.: mergulho para salvar um vida) e nem toda fala possa ser considera uma ação (ex.: um bate­papo social). (Cf. 1992, p. 131).

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que sofre a ação, num processo de ação e reação que está sempre produzindo

novos processos, fazendo com que o homem não esteja nunca no controle total de

sua vida.

A ação é um milagre e ao mesmo tempo faz o mundo real. A história do

homem começa pela ação onde o milagre da natalidade acontece, seja nas escolas,

assembleias ou conferências. A ação é a atividade que possui a maior relação com o

nascimento. A essência do nascimento é a ação, que possibilita a maior relação

entre os homens, que mesmo sendo seres únicostornam se plurais entre os outros e

com os outros, fazemos surgir histórias singulares.

3 Educação e responsabilidade pelo mundo

Embora Hannah Arendt não seja uma profissional da Educação , a autora se 10

propõe no capítulo A Crise na Educação, presente no livro Entre o passado e o

futuro, a fazer uma análise sobre o problema da educação nos Estados Unidos da

América, tratando a questão apenas como um fenômeno local, mas sem

desconsiderar que esse fenômeno pode ser igualmente possível em qualquer outro

país, como ela própria ressalta: “pode­se admitir como regra geral neste século que

qualquer coisa que seja possível em um país, em futuro previsível, ser igualmente

possível em praticamente qualquer outro” (2007a, p. 222).

O fenômeno da crise representa, sobretudo, a possibilidade de encontrarmos

respostas para ela, sejam essas respostas novas ou velhas. A questão principal que

se apresenta é: como pensar a educação num mundo em crise? É possível, através

da educação, germinar nos homens um sentimento mutuo de responsabilidade pelo

mundo?Sem dúvidas, são somente em tempos de crise que podemos refletir e criar

condições para efetivação de nossa ação. A educação nos norteia e nos alimenta de

esperança, nos renova e encoraja a transformar o mundo em um espaço comum e

agradável. O passo primeiro para essa transformação é a mobilização educativa,

para que as pessoas possam se conscientizar sobre o que é comum entre elas e

realmente necessário.

10 Arendt frisa no texto A crise na Educação ser uma leiga em questões referentes ao tema, “não sou uma educadora profissional” (2007a, p. 222), contudo, se propõe a jogar uma luz sobre o assunto por trata­se de uma situação problemática.

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Arendt é enfática ao afirmar: “em toda crise, é destruída uma parte do mundo,

alguma coisa comum a nós. A falência do bom senso aponta, como uma vara

mágica, o lugar em que ocorreu o desmoronamento.” (ARENDT, 2007a, p.227). Foi

somente após algumas décadas da presença do sistema moderno educacional, em

nossa sociedade, que pudemos perceber que as transformações prometidas e

esperadas não se efetivaram. Desse modo, podemos afirmar que a crise

contemporânea está relacionada a incapacidade da escola e da educação em

desempenhar sua função, sua incapacidade em motivar o homem contemporâneo

para cuidar, conservar e transformar o mundo.

Educar não é uma tarefa fácil, pois significa assumir a responsabilidade pela

capacidade humana de conservar e transformar o mundo e proteger o

desenvolvimento da criança contra as pressões do próprio mundo. Hannah Arendt

aponta para a crise que assolam as relações entre pais e filhos e professores e

alunos: em ambos os casos, o que se observa é a perda de responsabilidade pelo

mundo, tanto no sentido das garantias de sua conservação, quanto no sentido das

condições para a sua efetiva transformação política. Nesse sentido, nossa autora é

precisa ao afirmar: “qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade

coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi­la de tomar parte em

sua educação” (ARENDT, 2007a, p. 239).

Para Arendt, a questãoda educação é um problema político de primeira

grandeza e não pertence somente a esfera educacional. Ela alude ao problema da

perda do espaço público no mundo contemporâneo, o qual traz consigo uma perda

de responsabilidade para com o mundo e, assim, também uma crise generalizada da

educação.Não é possível falar em crise na educação e na modernidade sem falar

em autoridade, autoridade para os gregos era sinônimo de responsabilidade e

cuidado. Tal responsabilidade pelo mundo torna­se problemática na ausência de

relações de autoridade, como acontece atualmente, de modo que ninguém mais

parece apto a assumir responsabilidade pelo mundo diante das crianças. Entretanto,

Todas as pessoas presentes em determinado momento nesse mundo, o planeta terra, e em particular aquele vivendo no mundo desafiador do presente, estão convocada a “reconhecê­lo”, vale dizer, compreender o que vai nele, responder pelo que ocorre nele. Numa palavra, a se comprometer com ele. (...)Nesse sentido, todos os cidadãos, do mundo teriam o dever de

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usar seu pensamento e julgamento para tratar dos assuntos da vida comum. (FRANCISCO, 2012. p.382).

Deste modo, podemos mais uma vez perceber que a educação das crianças

ocupa posição central nas análises de Arendt, sendode suma importância à boa

formação do ser humano, este adulto que cuidará ou não do mundo. A fase infantil é

a primeira etapa da vida humana, esse lidar com a criança vai influenciar a vida do

indivíduo, assim como toda a constituição da sociedade.

Logo, precisamos tratar da relevância de termos bons

professores,comprometidos em mostrar a importância da responsabilidade pelo o

mundo. Segundo Arendt,

Na educação, essa responsabilidade pelo mundo assume a forma de autoridade. A autoridade do educador e as qualidades do professor não são a mesma coisa. A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros a cerca deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo. (2007a, p.239)

Importante destacar que Hannah Arendt não está defendendo uma postura de

autoritarismo, como muitos equivocadamente supõem sobre seu pensamento, mas

ressaltando a importância da autoridade como necessária para o reconhecimento da

responsabilidade que o educador tem diante do mundo. Mais adiante, no texto A

crise na Educação, nossa filósofa endossa essa ideia: “Sempre que a autoridade

legítima existiu ela esteve associada com a responsabilidade pelo curso das coisas

no mundo” (ARENDT, 2007a, p.240). A criança é instigada durante o seu

desenvolvimento, pela força do exemplo, a se tornar um adulto responsável pelo

mundo.

Como certificou Hannah Arendt: “A função da escola é ensinar às crianças

como o mundo é, não instruí­las na arte de viver” (2007a, p. 246). O melhor modo de

ensinar às crianças a cuidar e amar este mundo, é dando o exemplo. As crianças e

os jovens de hoje serão no futuro os responsáveis por apresentar o mundo a outras

crianças, a manter a responsabilidade que estes aprenderam a ter e que também

compartilharão com outras gerações.

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Nesse sentido, podemos destacar o que,a nosso ver, seria a síntese da tese

da filósofa sobre a educação. Afirma Arendt,

A educação é ó ponto que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá­lo da ruína que seriainevitável se não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá­las de nosso mundo e abandoná­las a seus próprios recursos, tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando­as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum. (2007a, p.247)

Os adultos, como os únicos capazes de se responsabilizarem plenamente

pelo mundo, por meio de seus próprios recursos, são historicamente os agentes

transformadores, e não as crianças, pois estas não podem ser responsabilizadas

nesta fase da vida, pelos problemas causados pelos homens ao longo do tempo ou

pelas mudanças que o mundo necessita. Em sua fase inicial da vida o ser humano

precisa de um referencial, alguém que lhe oriente e lhe ajude a amadurecer, de um

modo que ajude a florescer novas ideias, apresentando o mundo não como algo

pronto, acabado, sem a necessidade de ser explorado e modificado.

O desânimo para com o mundo, a descrença na autoridade e a falta da

responsabilidade são, nitidamente, opostos ao desejo de “uma nova ordem” onde as

pessoas não se sintam sozinhas e perdidas entre a multidão e não tenham medo do

futuro, pois por intermédio de sua própria ação tornam­se potencialmente

transformadores do mundo que está por vim. Nesse sentido reforma Neto,

O homem só conseguirá ser de seu próprio tempo até o ponto em que for capaz de não se conformar a ele, recuando da linearidade contínua e ininterrupta do devir ordinário, tendo em vista reinterpretar o presente como atualização de uma potência disruptiva a partir da qual aquilo que foi traz à tona encobrimento e impensados que conectam o que é com o de suas potencialidades futuras. (2012, p. 24).

Para que possamos escrever um futuro melhor em um mundo multifacetado, é

fundamental transformar a educação, enfrentando os desafios da educação

contemporânea. É mister também, haver um conjunto de reformas nas estruturas

política, do indivíduo e de toda sociedade para se ter um planeta mais sustentáveis

e ético, sem que as relações humanas se tornem pífias e as tecnologias do mundo

contemporâneo um meio de exclusão ou desigualdades.

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Não queremos aqui denunciar a ruínas do mundo e abandoná­lo. Queremos

sim, atender o convite de Hannah Arendt de refletir sobre a crise na educação e

reconhecer que é hora de se reconciliar com o mundo, amparando as crianças

através da educação que valoriza os princípios éticos e do cuidado pelo mundo. O

mundo novo está dentro de cada um de nós e precisa despertar a partir do potencial

transformador que temos dar inicio a novos começos.

5 Considerações Finais

Nossa proposta com esse artigo foi apenas apresentar de forma parcial uma

reflexão sobre o tema da educação em Hannah Arendt, sem, contudo, ter a

pretensão de esgotar a questão. Não restam dúvidas que são grandes as

dificuldades em lidar com a realidade de crise em que vive nosso temposeja na

cultura, na política ou mesmo na educação, no entanto,devemos buscar

compreender nossas emergências específicas para ultrapassar os limites danossa

época e encontrar talvez às respostas necessárias para nossas crises.

Assim, ao trata política e educação em Hannah Arendt, optamos por dá

centralidade a alguns conceitos e categorias que julgamos fundamentais para a

compreensão desse tema na perspectiva da autora, a saber: natalidade, ação

política e responsabilidade pelo mundo. O conceito de natalidade é idêntico ao

nascimento, significa a singularidade que cada indivíduo tem desde sua chegada ao

mundoe também seu potencial de transformação do mundo que já existia antes

mesmo de seu nascimento.

Já a teoria da ação política tem um vínculo direto com a experiência da

natalidade. Segundo nossa autora, a ação se dá sempre no espaço da pluralidade

dos homens, sendo fruto do agir conjunto dos homens e fonte de onde se origina

todo o poder (Cf. ARENDT, 2006, p. 532). É somente por meio da pluralidade que os

homens manifestam sua capacidade de ação e de discurso, tornando possível seu

aparecimento aos demais homens e sua entrada num mundo verdadeiramente

humano. No entanto, para que esse aparecimento possa se efetivar se faz

necessário revigorar o espaço público perdido na modernidade. De acordo com

Arendt, a retomada do espaço público e da dignidade da política só é realmente

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possível através da capacidade que cada homem tem de dar início a novos

começos, de começar coisas novas.

É nesse ponto que a educação assume um papel primordial e que o conceito

de responsabilidade pelo mundo ganha centralidade. Para Arendt, somente através

da educação podemos decidir se amamos o mundo o bastante para assumirmos

nossa responsabilidade diante dele. Por outro lado, é também somente através da

educação que podemos acolher os recém­chegados e criar as possibilidades

necessárias para que eles possam renovaro mundo a qual eles adentram como

estrangeiros.

Por fim, gostaríamos de frisar que nosso artigo trata­se apenas de algumas

considerações iniciais a questão da relação entre política e educação em Hannah

Arendt, não tendo com isso a pretensão de esgotar o problema. Portanto, fica em

aberto o espaço para posteriores considerações e maiores aprofundamentos sobre o

tema a partir do pensamento de Hannah Arendt.

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