conceitos políticos em hannah arendt · suas afirmações no campo da política são iluminadoras...

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Anais do III Fórum de Pesquisa Científica e Tecnológica de Ponte Nova - ISSN: 2447-1674 - 122 - Conceitos Políticos em Hannah Arendt Aparecida Gonçalves Delazari Maciel FUPAC Ponte Nova Gilson José de Oliveira - Fupac Ponte Nova Paulo Sérgio da Silva FUPAC Ponte Nova Telma de Oliveira Vidigal FUPAC Ponte Nova Resumo: Os conceitos políticos elaborados ou refletidos por Hanna Arendt, em meados do século XX têm vigor ainda hoje, quando a política esvazia seu sentido e perde sua eficiência. Reler sua obra é buscar parâmetros éticos onde não os há. Palavras Chave: Teoria Política, Liberdade, Condição Humana Summary: The political concepts elaborated or reflected by Hanna Arendt in the mid- twentieth century are still strong today, when politics deprives its meaning and loses its efficiency. To re-read his work is to seek ethical parameters where there are no. Keywords: Political Theory, Freedom, Human Condition

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Anais do III Fórum de Pesquisa Científica e Tecnológica de Ponte Nova - ISSN: 2447-1674

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Conceitos Políticos em Hannah Arendt

Aparecida Gonçalves Delazari Maciel – FUPAC Ponte Nova

Gilson José de Oliveira - Fupac Ponte Nova

Paulo Sérgio da Silva – FUPAC Ponte Nova

Telma de Oliveira Vidigal – FUPAC Ponte Nova

Resumo: Os conceitos políticos elaborados ou refletidos por Hanna Arendt, em meados do

século XX têm vigor ainda hoje, quando a política esvazia seu sentido e perde sua eficiência.

Reler sua obra é buscar parâmetros éticos onde não os há.

Palavras Chave: Teoria Política, Liberdade, Condição Humana

Summary: The political concepts elaborated or reflected by Hanna Arendt in the mid-

twentieth century are still strong today, when politics deprives its meaning and loses its

efficiency. To re-read his work is to seek ethical parameters where there are no.

Keywords: Political Theory, Freedom, Human Condition

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Introdução

O pensamento de Hannah Arendt é fecundo e oportuno, na medida em

que o século XXI se aprofunda em crises de facetas variadas (política,

econômica, ecológica, hídrica, ética), que cada vez mais desafiam a condição

humana. A realidade sobre a qual refletiu não difere tanto do que hoje, talvez

em maior escala, interpela o pensamento de filósofos e sociólogos, além de

religiosos e afins. “O talvez” se deve ao fato de que Arendt viveu duas guerras

mundiais, o que por si, acentua uma realidade conflitiva de proporções

incalculáveis. Era uma sociedade em transe, numa crise constante, promotora

de duas guerras mundiais, de crescimento da técnica, ampliação do

consumismo, enfim, uma sociedade sem horizontes, já que assentada em

conflitos graves e centrada na técnica sem ética.

Suas afirmações no campo da política são iluminadoras para a ação

política nos dias atuais. Com o atual acirramento da corrupção, o esvaziamento

das instituições, a insistência da fome e das doenças, o quadro de degradação

do meio ambiente, recorrer às afirmações de Arendt pode funcionar como o

que ela mesma propôs: um recomeço, já que a humanidade traz consigo a

capacidade de recomeços sempre. Tal é o seu conceito de natalidade: cada

homem que nasce é um novo único, uma possibilidade extraordinária.

A abordagem desse artigo se propõe a reler os conceitos de Hannah

Arendt em seu contexto político e pinçar luzes que nos apontem caminhos de

superação do atual estágio político, absolutamente desolador. Recolocar sua

questão fundamental: há um sentido para a política ainda?

Dados Biográficos

Hannah Arendt (1906-1975) nasceu no subúrbio de Linden, em

Hannover, Alemanha, no dia 14 de outubro de 1906. Aos três anos muda-se

com a família para a Prússia. Aos sete anos perdeu o pai e procurou consolar a

mãe: “Pense – isso acontece com muitas mulheres”, teria dito a menina judia.

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Entrou para a Universidade de Marburg em 1924, foi aluna de Martin Heidegger

e Karl Jaspers. Em 1926 trocou de universidade, indo estudar na Albert Ludwig,

em Freiburg. Concluiu o doutorado em Filosofia na Universidade de Heidelberg,

aos 23 anos, com a tese “O Conceito de Amor em Santo Agostinho”, em 1928.

Em 1933, Arendt se afastou da filosofia para lutar pela resistência

antinazista. Foi presa pela Gestapo e depois de passar oito dias na prisão,

resolveu deixar seu país natal. Em Paris, permaneceu seis anos trabalhando

com crianças judias expatriadas.

Em 1941, foi para os Estados Unidos, onde fixou residência,

naturalizando-se americana em 1951, já que em 1937 o regime nazista lhe

retirou a nacionalidade. Aí escreveu “Origem do Totalitarismo” (1951), A

Condição Humana (1958) e “Eichmann em Jerusalém” (1963).

De 1963 a 1967, Hannah Arendt lecionou na Universidade de Chicago.

Mudou-se então para Nova Iorque, e trabalhou na New School for Social

Research, até sua morte, em 1975.

Contexto de Hannah Arendt

Suas primeiras publicações se dão nos meados do século XX, após as

duas grandes guerras mundiais. São marcantes em sua personalidade e em

seu pensamento as realidades trágicas de Hiroshima e de Auschwitz. Estes

eventos, reveladores da perda completa do senso de humanidade, levam-na a

pensar a perda ou renúncia ao exercício da responsabilidade individual, as

pessoas se escondendo atrás do anonimato para cometer o mal. Reflete ao

mesmo tempo sobre os riscos de uma sociedade centrada numa visão

instrumental da razão.

O modo dos existencialistas rechaça a metafísica, opondo-se à definição

de grandes verdades predefinidas, como a Razão, Deus e a Natureza. Busca

o sentido da responsabilidade de cada um pelo que ocorre no mundo, não se

podendo culpar Deus ou quem quer que seja pela ordem ou desordem dos

fatos.

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O século de grandes conquistas da humanidade é também o das

contradições, da incapacidade da convivência, da brutalidade manifestada em

várias guerras, bem como na desigualdade expressa na fome e nas epidemias.

É também o século das ditaduras, dos regimes totalitários, das revoluções.

Os totalitarismos

Sua obra As Origens dos Totalitarismos (1951) é muito bem recebida,

tratada como algo bastante original, na temática e na profundidade. Percebe o

totalitarismo como um regime político em que o governo interfere diretamente

em todos os espaços da vida privada e pública, concentrando o poder nas

mãos de um grupo ou de um partido, eliminando os direitos políticos e as

liberdades públicas.

Com o advento do Nazismo, Arendt passa atuar contra essa forma de

poder, exatamente por eliminar a participação popular e impor atos violentos

contra pessoas e grupos políticos ou étnicos. Para ela, o surgimento dos

totalitarismos se dá a partir dos acontecimentos que marcaram a primeira

metade do século XX: a Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressão de

1929.

O desejo de reconstrução de um povo, a partir destas graves crises, leva

as pessoas a aceitarem certos sacrifícios no presente, com o intuito de garantir

algo bom no futuro. Assim sendo, o futuro, enquanto utopia, é o verdadeiro ópio

do povo, pois a aceitação da promessa de uma superação da crise aguda leva

a dissolução das individualidades e a aparição de super-heróis, líderes que

encarnam uma falsa esperança.

O regime totalitário impõe o terror e elimina a prática política, pois o

contraditório e a manifestação ficam proibidos, simplesmente. Nesta situação,

não faz sentido a consciência moral, o que permite aos homens se matarem

sem razão. Esta é a nova condição humana, exemplificada em Eichmann: um

sujeito que cumpre ordens sem avaliar se são boas ou más, se justas ou

injustas. O problema é que “Eichmanns” podem ser tantas pessoas que não

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pensam por si mesmas, mas agem sob comandos. Nesse ambiente, não há

espaço de cidadania, pois o estado tem o monopólio do poder, nega a

participação coletiva nos espaços de decisões.

Os totalitarismos anulam as consciências, exigem obediência absoluta,

negando o espaço da autonomia. Impõem uma ideologia, através da

propaganda, o doutrinamento e o terror, intimidando qualquer reação

organizada. Também o direito à informação é aviltado, restando o que

interessa ao sistema e a propaganda oficial. Os meios de comunicação ficam

censurados, controlados, descumprindo sua função social.

Banalidade do Mal

Ao analisar-se o caso Eichmann, dá conta de que o crime pode se tornar

um ato banal, quando o executor é uma peça de uma engrenagem, alguém que

se limita a obedecer ordens. A morte então se torna uma ação mecânica, sem

o sentido da responsabilidade pessoal.

O genocídio nazista começa com motivos banais, na busca de

segurança e foi efetivado através de uma burocracia eficiente.

A expressão banalidade do mal refere-se a constatação de que o ato

mal pode ser executado por pessoas que não pensam, que não analisam o que

fazem. O mal se caracteriza pela ausência de pensamento. O mal em si não é

banal, mas a sua execução se dá de forma banal.

Hoje, a banalidade do mal está nos assassinatos, sequestros, na

violência do trânsito, em várias circunstâncias do dia a dia, nas quais as

pessoas violentas agem dentro de uma cultura de morte, em que a impunidade

e a insensibilidade andam juntas. A realidade violenta e banal está nas telas de

TV, nos jogos infantis, no cinema, disseminados individualmente, como se

todos fossem programados para matar. Quem não pensa, adere às novidades,

às ordens, sejam de quem forem: do poder, do mercado, da mídia, sem passar

por um critério, um crivo ético e moral. Esse achar natural e comum o agir

amoral é o que tornou Eichmann perigoso para milhões de seres humanos.

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A Condição Humana

A Condição Humana, trabalho publicado em 1958, foi como que a

consagração da autora e se tornou leitura primordial para compreensão da

realidade do século XX. Arendt levanta de novo a questão: Que é o homem?

Pergunta que alude a um tipo de homem e denuncia a perda da identidade, do

senso de humanidade. Ela estabelece três dimensões básicas da condição

humana:

Labor: a dimensão relacionada com as necessidades naturais e

atividades orgânicas. Diz respeito às tarefas que nos permite sobreviver, como

a procura de alimentos. Esta é uma atividade comum a todos os animais,

embora o homem se destaque por desenvolver habilidades especiais nesse

campo.

Trabalho: é o aspecto produtivo, é a interferência para fabricar alguma

coisa útil à vida. Os resultados do trabalho são para ser usados, não para ser

consumidos. Ele permite a cultura e o artifício. Pelo trabalho o homem domina

e transforma a natureza.

Ação: refere-se à liberdade e é a própria dimensão humana. Por meio da

ação, se produz a vida social e comunitária. Esta dimensão é própria da vida

política, da construção ética e moral. Graças à ação e ao manejo da palavra o

mundo não é visível somente a partir de uma perspectiva biológica. É também

social, nas definições de como se dá a convivência, em que parâmetros é

possível e aceitável a vida. A ação está relacionada com a política, política

entendida como a negação da violência. É necessário desenvolver a vida ativa

das pessoas, para que possam opor-se às formas de dominação e

manipulação pela força. Arendt critica a sociedade moderna, porque deu mais

importância ao aspecto econômico e tem menosprezado o sentido humano de

ação. Em nossa sociedade prevalecem as dimensões do labor e trabalho na

vida ativa, menosprezado a terceira perna, a ação política.

A condição humana é de perplexidade, na medida em que precisa

produzir a vida através do labor, forma escassa nos aglomerados, dado que a

desigualdade social dificulta a sobrevivência. Não sem razão, em seu tempo, e

ainda hoje, grande parte da humanidade passa fome. O trabalho, enquanto

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fabrico, que a partir do capitalismo faz surgir a classe operária, se torna

escasso, numa economia de exclusão, ao mesmo tempo em que máquinas

substituem pessoas. Os índices de desemprego são molas propulsoras das

exigências de mudanças políticas, que no entanto, não mudam os sistemas,

que continuam produzindo massas desempregadas, tanto ontem quanto hoje.

No que tange à dimensão da ação, esta se mostra incapaz de organizar o

mundo de forma que equilibre em liberdade e vida digna a condição humana.

Portanto a condição humana no século XX, prorrogada no século XXI, requer

novos parâmetros, que levem em consideração valores diferentes daqueles

que regem o capitalismo.

O que é a Política

“O que é a Política” é uma publicação póstuma, contendo fragmentos, ou

seja, anotações preliminares de uma obra que seria a Introdução à Política. A

primeira parte do livro é composta de Textos de Hannah Arendt, chamados

pela edição de Fragmentos, no total de 8. O texto primeiro parte de uma

afirmação categórica, que soa como um princípio: “a política baseia-se na

pluralidade dos homens” (ARENDT, 2013, p. 21). Os homens não são iguais

em seu comportamento, em sua formação cultural. O fato de ser plural indica

um segundo princípio:

“A política baseia-se na pluralidade dos homens. Deus criou o

homem, os homens são um produto humano mundano, e produto da

natureza humana” (ARENDT, 2013, p. 21).

Ou seja, Arendt quer ressaltar que há diferença entre o estabelecer da

vida privada e o senso de coletividade. “A pluralidade trata da convivência entre

diferentes”.

Aponta assim o objeto da política enquanto investigação: dar

sustentação à convivência. E isso é criação cultural, racional, não um dado do

Criador. Este deu o homem, mas a pluralidade e a diversidade são

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consequências da convivência. Os homens organizam politicamente suas

coisas em comum, essenciais na aceitação das diferenças.

Assim, assinala que a política não tem origem no homem em si, como afirma

Aristóteles, mas na relação, no “entre-homens”. O homem não seria

naturalmente político, como quis Aristóteles, mas o político se dá porque os

homens são vários, de vários modos, o que exige a ação política para

organizar a vida em sociedade.

“A política surge no entre-os-homens, portanto, totalmente fora do

homem. Por conseguinte, não existe nenhuma substância política

original. A política surge no intra-espaço e se estabelece como

relação” (ARENDT, 2013, p.23).

Ao analisar os preconceitos contra a política, o raciocínio é simples e

claro: a política mostrou-se incapaz de cumprir seus objetivos e garantir seu

sentido: a garantia da liberdade e da vida. A política promoveu a matança. A

afirmação básica é que o preconceito com a política vem do fracasso da

política.

Uma das razões para a eficiência e a periculosidade dos preconceitos

reside no fato de neles sempre se ocultar um pedaço do passado. Além disso,

“Observando-se com mais atenção, vemos que um verdadeiro preconceito pode ser reconhecido porque nele se oculta um juízo já formado, o qual originalmente tinha uma legítima causa empírica que lhe era apropriada e que só se tornou preconceito porque foi arrastado através dos tempos, de modo cego e sem ser revisto (ARENDT, 2013, p. 30).

Hannah Arendt rejeita a solução do fracasso da política pela formação

de um governo mundial, hoje pensamento muito presente em alguns setores.

Para ela, um governo mundial só ampliaria a dominação.

“Tem a política ainda algum sentido? Para pergunta sobre o sentido

da política existe uma resposta tão simples e tão concludente em si

que se poderia achar outras respostas dispensáveis por completo. Tal

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resposta seria: o sentido da política é a liberdade. Tem a política

algum sentido ainda?

O que está em jogo aqui não é apenas a liberdade, mas sim a vida, a

continuidade da existência da Humanidade e talvez de toda a vida

orgânica da Terra”. (ARENDT, 2013, p. 39)

Nada muito diferente do que se assiste hoje, quando a ameaça a vida

vem além da Guerra Fria e a possibilidade das bombas de total destrui8ção: a

destruição já está presente na forma da crise hídrica, da crise ecológica, do

aquecimento global.

No Fragmento 3b (p. 45) se aprofunda a busca pelo sentido da Política.

Com o seu costumeiro método de comparar o velho e o novo, ir à origem, para

perceber onde está o erro, o desvio de sentido, Arendt constata:

“Quase todas as classificações ou definições da coisa política que encontramos em nossa tradição são, quanto ao seu conteúdo original, justificações. Falando-se de maneira bastante geral, todas essas justificações ou definições têm como objetivo classificar a política como um meio para um fim mais elevado, sendo a determinação dessa finalidade bem diferente ao longo dos séculos” (ARENDT, 2013, p. 45).

Se a liberdade foi o espaço a ser garantido no tempo dos gregos, agora,

com a urgência que os tempos exigem, a “tarefa e objetivo da política é a

garantia da vida no sentido amplo”.

Para Aristóteles o animal político era uma condição de viver na polis. A

política não é natural. A questão central da polis é a liberdade. Ser livre, sentido

original de schole, ou otium, a política aí é um objetivo, não um meio. Os terem

entre si relações d e liberdade, para além da força, da coação, e do domínio.

(Só em tempos de guerras iguais dão ordens a iguais). Fica claro que

liberdade, no contexto dos gregos, é não ser dominado nem dominar. Por isso

se fala em isonomia, direito igual a atividade política. Que evolui para isologia,

direito de falar. Escravos e bárbaros eram aneu logou, sem o domínio da

palavra. Era impossível a conversa livre. Os tiranos suprimem o espaço

público, a liberdade política. A ideia de liberdade é permanente, enquanto que

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a tirania segue sendo a piro forma de Estado, com argumento de que é preciso

sacrificar a liberdade para o desenvolvimento, quando na verdade só a ação

livre dos homens pode dar tal garantia.

Falar e agir, entre os gregos é uma coisa só. Desde os relatos de

Homero. O homem de grandes feitos é também um grande orador. Archein é

um verbo que quer dizer começar e dominar. Prattein, quer dizer agir. A tarefa

política, que é um agir e um falar, é levar ao cabo a coisa começada. O homem

é um initium, quando nasce, um novo único e profundo, conforme Agostinho, o

que abre sempre grandes horizontes. Este início deve ter sequência na vida

prática, na ação, na realização de coisas novos, daí a esperança.

A liberdade de externar opinião, determinante para a organização da

polis, distingue-se da liberdade característica do agir, do fazer um

novo começo, porque numa medida muitíssimo maior não pode

prescindir da presença de outros e do ser-confrontado com suas

opiniões. É verdade que o agir também jamais pode realizar-se em

isolamento, porquanto aquele que começa alguma coisa só pode

levá-la a cabo se ganhar outros que o ajudem (p. 58).

A política é um espaço de discurso, onde a palavra se faz força

argumentativa e também espaço de construção do consenso e de possibilidade

da convivência plural. É necessário recuperar o espaço de participação da

cidadania, numa sociedade em que se promova o valor do sujeito. Deve ser um

espaço maior que a simples democracia representativa e a instituições

democráticas.

Ilustrando seu conceito de democracia, Arendt lembra Sócrates e a

situação de Atenas, onde os indivíduos exercitavam o pensamento crítico,

discursavam na tentativa de persuadir e emitiam juízo e valoração. Assim, o

pensamento, a vontade e o juízo serão, para ela, as condições de

responsabilidade moral.

A autêntica democracia deve basear-se na individualidade e na

participação do cidadão nas questões políticas. Significa que a individualidade

não deve ser anulada pelo coletivo, ao contrário, deve ser considerada e

somada como parte integrante de um todo.

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O indivíduo só pode realizar-se na democracia. Para Arendt, esse

indivíduo é o cidadão, mas ele não desaparece no jogo coletivo, ele não se dilui

num outro conceito (cidadão), mas se torna importante, quando, com sua

singularidade, soma no coletivo. As dimensões do humano são o pensamento,

a vontade e o juízo. Somente a democracia favorece o desenvolvimento

dessas três dimensões: uma atitude crítica, ação e participação na vida cívica e

política, e uma atitude de compromisso.

Pensar, querer e julgar são as condições da responsabilidade moral. Na

democracia se exige participação ativa de toda cidadania, na busca de novas

formas políticas.

Considerações finais

Não é sem razão que Hannah Arendt tem sido debatida amplamente nas

academias: seu pensamento possui profundidade e amplitude, e á claramente

atual, até porque o contexto se intensificou na tecnologia como prevalência

sobre a ética, na incapacidade política de gerir o mundo para o bem comum, na

falta de sentido para tantas coisas.

A desconfiança e o preconceito contra a política são ainda mais patentes

agora, quando a corrupção, que confunde público e privado, marca o fracasso

da política. A sublevação, as recentes manifestações na América Latina, no

Brasil, no mundo árabe, mostram que a paciência coletiva tem limites e faz

explodir a reação descoordenada e sem uma proposta objetiva. Mas revelam a

incapacidade da política, seja na democracia republicana, seja em monarquias,

califados ou regimes fechados, em resolver as expectativas do povo.

Caso emblemático é o brasileiro que registra um governo (2003-2016)

que foi capaz de superar a fome e a miséria, de realizar a difícil mobilidade

social, de elevar a condição de vida de grandes camadas pobres da população,

seja com políticas públicas de moradia, de educação, de inclusão, mas não deu

conta de estancar a corrupção, nem talvez dela se separar, pelo menos. A

história julgará e lançará luzes sobre este período.

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Há caminhos que podem e devem ser percorridos: com toda a gama de

possibilidades que a comunicação imediata e a conectividade nos permitem, é

possível mundializar não o poder, mas o bem e redefinir o espaço político como

de liberdade e vida. Só na liberdade o discurso (falar) produzirá efeito (ação),

que atenda às necessidades de todos, aparando as arestas de desigualdade

profunda, função do Estado. Há que se rever o arcabouço da modernidade,

ainda prevalentes na pós-modernidade, mas não respondem ao cidadão

excluído. Os conceitos aqui apresentados indicam o caminho de retorno ao

início, como possibilidade de recriação ou reinvenção do novo. Continuar

perguntando pelo sentido da política e o que ela é permanece sendo tarefa

desafiadora nesse exercício da própria liberdade.

Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. O que é Política? 11ª ed. Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2013.

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10ª Ed. Editora Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2007.

ARENDT, Hannah. Origens dos Totalitarismos. Companhia das Letras, São Paulo, 1989.

ARISTÓTELES. Política. Ed Martin Claret, São Paulo, 2007

HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o Humanismo. Centauro editora, São Paulo, 2005.

NAY, Olivier. História das Ideias Políticas. Ed. Vozes, Petrópolis, 2007.