hannah arendt: entre o passado e o futuro da política

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  • 8/10/2019 Hannah Arendt: entre o passado e o futuro da poltica

    1/230

    MARCELO HSIAO

    HANNAH ARENDT: ENTRE O PASSADO E O FUTURO DA

    POLTICA E DO DIREITO

    Autoridade, Legitimidade, Violncia e Poder

    MESTRADO EM DIREITO

    PUC / So Paulo

    2007

  • 8/10/2019 Hannah Arendt: entre o passado e o futuro da poltica

    2/230

    MARCELO HSIAO

    HANNAH ARENDT: ENTRE O PASSADO E O FUTURO DA

    POLTICA E DO DIREITO

    Autoridade, Legitimidade, Violncia e Poder

    Dissertao apresentada Banca

    Examinadora da Pontifcia

    Universidade Catlica de So Paulo,

    como exigncia parcial para obteno

    do ttulo de MESTRE em Direito

    (Filosofia do Direito), sob orientao

    do Professor Doutor Gabriel

    Benedito Issaac Chalita

    So Paulo

    2007

  • 8/10/2019 Hannah Arendt: entre o passado e o futuro da poltica

    3/230

    Banca Examinadora

    ______________________

    ______________________

    ______________________

  • 8/10/2019 Hannah Arendt: entre o passado e o futuro da poltica

    4/230

    AGRADECIMENTOS

    Ao Professor Gabriel Chalita, pelo incentivo na pesquisa, pela amizadee pelas valiosas sugestes.

    Professora Mrcia Alvim, pela leitura dos rascunhos e observaes

    precisas.

    Ao Professor Edson Iuquishigue Kawano, pelas orientaes valiosas,

    na vida e no trabalho.

    Ao Professor Willis Santiago Guerra Filho, por haver despertado meu

    interesse pelo tema da dissertao.

    A minha irm Luciana Hsiao, sempre pronta a me socorrer nas

    dificuldades de digitao.

    Aos familiares que com pacincia souberam respeitar os momentos de

    estudo e recluso.

  • 8/10/2019 Hannah Arendt: entre o passado e o futuro da poltica

    5/230

    RESUMO

    A poltica permeia todos os aspectos dos negcios humanos na sociedade. Estearrazoado leva adiante uma investigao jusfilosfica acerca das reflexes de Hannah

    Arendt em relao a:

    - Direito: a intuio do justo/injusto, lcito/ilcito, jurdico/antijurdico e

    legal/ilegal;

    - Poder: a sua distino da violncia; sua correlao com o vigor, a fora e

    autoridade;

    - Legitimidade: as diferenas entre legitimao e legitimidade, seu fundamento de

    validade, sua importncia para a poltica e direito.

    Os conceitos de poder, violncia, assim como seus correlatos: vigor, fora e

    autoridade tm prestado a muitos equvocos. Uma viso limitante destes conceitos seria v-

    los somente sob a ptica do domnio. O que Arendt se prope a fazer analis-los

    individualmente, mostrando suas particularidades e a amplitude destes conceitos no mbito

    da poltica.

    Desse modo, o poder, no rastro do pensamento de Arendt, corresponde atividade

    humana para agir em concerto. Fundamenta-se ele na liberdade de ao e do discurso

    sem os quais a esfera pblica perde sua razo de ser. O agir em concerto nunca

    propriedade de um indivduo, mas pertence a um grupo que o conserva unido. Quando

    dizemos que algum est em poder isto significa que foi empossado por um certo

    nmero de pessoas para agir em seu nome. aqui que o poder encontra sua legitimidade.

    O vigor designa algo no singular: a propriedade inerente a um objeto ou pessoa e

    pertence a seu carter. O vigor possui uma independncia peculiar, por isso, a natureza de

    um grupo e de seu poder voltar-se contra a independncia, a propriedade do vigor

    individual.

    A fora, muito confundida com a violncia, deveria indicar somente a energia

    liberada por movimentos fsicos ou sociais. Ela qualidade natural de um indivduo

    isolado. mensurvel, confivel, imutvel. Na luta entre dois homens, o que decide a

    fora, e no o poder.

  • 8/10/2019 Hannah Arendt: entre o passado e o futuro da poltica

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    SUMMARY

    Politics permeates all aspects of human dealings in society. This defense advancesa jusphilosophical investigation on the reflections of Hannah Arendt in relation to:

    - Law: the intuition of the just/unjust, licit/illicit, lawful/unlawful and legal/illegal;

    - Power: its distinction of violence; its correlation with vigor, strength and

    authority;

    - Legitimacy: the differences between legitimation and legitimacy, its fundamental

    of validity, its importance for politics and law.

    The concepts of power, violence, as well as their correlates: vigor, strength and

    authority have led to many mistakes. A limiting vision of these concepts would be to view

    them only from a domain standpoint. What Arendt proposes is to analyze them

    individually, showing their particularities and the breadth of these concepts in the context

    of politics.

    Thus, power, along the lines of Arendts rationale, corresponds to the human

    activity to act in unison. It is grounded on the freedom of action and speech, without

    which the public sphere loses its raison dtre. Acting in unison is never the property of an

    individual, but belongs to a group that keeps it united. When we say that someone is in

    power, this means that he was sworn-in by a certain number of people to act on his behalf.

    It is here that power finds its legitimacy.

    Vigor denotes something in the singular: it is the property inherent to an object or

    person and belongs to its character. Vigor has a peculiar independence and, for this reason,

    it is the nature of a group and of its power to turn against independence, the property of

    individual vigor.

    Strength, oft confused with violence, should only indicate the energy released by

    physical or social movements. It is the natural quality of an isolated individual. It is

    measurable, reliable and unchangeable. In a struggle between two men, the decisive factor

    is strength, not power.

  • 8/10/2019 Hannah Arendt: entre o passado e o futuro da poltica

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    SUMRIO

    INTRODUO................................................................................................ 9

    1. POLTICA E DIREITO ............................................................................ 22

    1.1. O paradigma da Filosofia do Direito ...................................................... 22

    1.2. Hannah Arendt: vida e obra .................................................................... 25

    1.2.1. Seu pensamento ................................................................................... 32

    1.3. Poltica e Direito luz de Hannah Arendt .............................................. 36

    2. O QUE AUTORIDADE? ...................................................................... 47

    2.1. A acepo filosfica do termo ................................................................ 47

    2.2. A acepo do termo autoridadepara Hannah Arendt ............................ 52

    3. DA VIOLNCIA....................................................................................... 58

    3.1. Poder e violncia .................................................................................... 58

    3.2. A distino entre violncia e poder ........................................................ 64

    3.3. Natureza e causas da violncia no mbito da poltica ............................ 77

    3.4. O fenmeno do totalitarismo .................................................................. 82

    3.4.1. O totalitarismo enquanto mal radical ............................................... 84

    3.4.2. O totalitarismo e a ruptura da tradio ocidental ............................... 103

    3.5. A crise dos direitos humanos no contexto da crise do espao da ao . 111

    4. PODER E POLTICA ............................................................................. 125

    4.1. Fora e autoridade: o papel do poder ................................................... 125

    4.2. O espao da aparncia e o poder .......................................................... 133

    4.3. O que poltica? ................................................................................... 142

    4.4. O sentido da poltica ............................................................................. 146

  • 8/10/2019 Hannah Arendt: entre o passado e o futuro da poltica

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    5. O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE.................................................... 159

    5.1. O legal e o legtimo: a reduo normativista ........................................ 184

    5.2. Legitimidade e efetividade: a reduo realista ..................................... 1935.3. Dissenso e mudana social: a crise de legitimidade ............................. 202

    CONCLUSO ............................................................................................. 214

    BIBLIOGRAFIA ......................................................................................... 219

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    MARCELO HSIAO

    HANNAH ARENDT: ENTRE O PASSADO E O FUTURO DA

    POLTICA E DO DIREITO

    Autoridade, Legitimidade, Violncia e Poder

    MESTRADO EM DIREITO

    PUC / So Paulo

    2007

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    MARCELO HSIAO

    HANNAH ARENDT: ENTRE O PASSADO E O FUTURO DA

    POLTICA E DO DIREITO

    Autoridade, Legitimidade, Violncia e Poder

    Dissertao apresentada Banca

    Examinadora da Pontifcia

    Universidade Catlica de So Paulo,

    como exigncia parcial para obteno

    do ttulo de MESTRE em Direito

    (Filosofia do Direito), sob orientao

    do Professor Doutor Gabriel

    Benedito Issaac Chalita

    So Paulo

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    Banca Examinadora

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    AGRADECIMENTOS

    Ao Professor Gabriel Chalita, pelo incentivo na pesquisa, pela amizadee pelas valiosas sugestes.

    Professora Mrcia Alvim, pela leitura dos rascunhos e observaes

    precisas.

    Ao Professor Edson Iuquishigue Kawano, pelas orientaes valiosas,

    na vida e no trabalho.

    Ao Professor Willis Santiago Guerra Filho, por haver despertado meu

    interesse pelo tema da dissertao.

    A minha irm Luciana Hsiao, sempre pronta a me socorrer nas

    dificuldades de digitao.

    Aos familiares que com pacincia souberam respeitar os momentos de

    estudo e recluso.

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    RESUMO

    A poltica permeia todos os aspectos dos negcios humanos na sociedade. Estearrazoado leva adiante uma investigao jusfilosfica acerca das reflexes de Hannah

    Arendt em relao a:

    - Direito: a intuio do justo/injusto, lcito/ilcito, jurdico/antijurdico e

    legal/ilegal;

    - Poder: a sua distino da violncia; sua correlao com o vigor, a fora e

    autoridade;

    - Legitimidade: as diferenas entre legitimao e legitimidade, seu fundamento de

    validade, sua importncia para a poltica e direito.

    Os conceitos de poder, violncia, assim como seus correlatos: vigor, fora e

    autoridade tm prestado a muitos equvocos. Uma viso limitante destes conceitos seria v-

    los somente sob a ptica do domnio. O que Arendt se prope a fazer analis-los

    individualmente, mostrando suas particularidades e a amplitude destes conceitos no mbito

    da poltica.

    Desse modo, o poder, no rastro do pensamento de Arendt, corresponde atividade

    humana para agir em concerto. Fundamenta-se ele na liberdade de ao e do discurso

    sem os quais a esfera pblica perde sua razo de ser. O agir em concerto nunca

    propriedade de um indivduo, mas pertence a um grupo que o conserva unido. Quando

    dizemos que algum est em poder isto significa que foi empossado por um certo

    nmero de pessoas para agir em seu nome. aqui que o poder encontra sua legitimidade.

    O vigor designa algo no singular: a propriedade inerente a um objeto ou pessoa e

    pertence a seu carter. O vigor possui uma independncia peculiar, por isso, a natureza de

    um grupo e de seu poder voltar-se contra a independncia, a propriedade do vigor

    individual.

    A fora, muito confundida com a violncia, deveria indicar somente a energia

    liberada por movimentos fsicos ou sociais. Ela qualidade natural de um indivduo

    isolado. mensurvel, confivel, imutvel. Na luta entre dois homens, o que decide a

    fora, e no o poder.

    Palavras-chaves: Poltica, Direito, Autoridade, Legitimidade, Violncia, Poder.

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    ABSTRACT

    Politics permeates all aspects of human dealings in society. This defense advancesa jusphilosophical investigation on the reflections of Hannah Arendt in relation to:

    - Law: the intuition of the just/unjust, licit/illicit, lawful/unlawful and legal/illegal;

    - Power: its distinction of violence; its correlation with vigor, strength and

    authority;

    - Legitimacy: the differences between legitimation and legitimacy, its fundamental

    of validity, its importance for politics and law.

    The concepts of power, violence, as well as their correlates: vigor, strength and

    authority have led to many mistakes. A limiting vision of these concepts would be to view

    them only from a domain standpoint. What Arendt proposes is to analyze them

    individually, showing their particularities and the breadth of these concepts in the context

    of politics.

    Thus, power, along the lines of Arendts rationale, corresponds to the human

    activity to act in unison. It is grounded on the freedom of action and speech, without

    which the public sphere loses its raison dtre. Acting in unison is never the property of an

    individual, but belongs to a group that keeps it united. When we say that someone is in

    power, this means that he was sworn-in by a certain number of people to act on his behalf.

    It is here that power finds its legitimacy.

    Vigor denotes something in the singular: it is the property inherent to an object or

    person and belongs to its character. Vigor has a peculiar independence and, for this reason,

    it is the nature of a group and of its power to turn against independence, the property of

    individual vigor.

    Strength, oft confused with violence, should only indicate the energy released by

    physical or social movements. It is the natural quality of an isolated individual. It is

    measurable, reliable and unchangeable. In a struggle between two men, the decisive factor

    is strength, not power.

    Keywords: Politics, Law, Authority, Legitimacy, Violence, Power.

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    SUMRIO

    INTRODUO................................................................................................ 9

    1. POLTICA E DIREITO ............................................................................ 22

    1.1. O paradigma da Filosofia do Direito ...................................................... 22

    1.2. Hannah Arendt: vida e obra .................................................................... 25

    1.2.1. Seu pensamento ................................................................................... 32

    1.3. Poltica e Direito luz de Hannah Arendt .............................................. 36

    2. O QUE AUTORIDADE? ...................................................................... 47

    2.1. A acepo filosfica do termo ................................................................ 47

    2.2. A acepo do termo autoridadepara Hannah Arendt ............................ 52

    3. DA VIOLNCIA....................................................................................... 58

    3.1. Poder e violncia .................................................................................... 58

    3.2. A distino entre violncia e poder ........................................................ 64

    3.3. Natureza e causas da violncia no mbito da poltica ............................ 77

    3.4. O fenmeno do totalitarismo .................................................................. 82

    3.4.1. O totalitarismo enquanto mal radical ............................................... 84

    3.4.2. O totalitarismo e a ruptura da tradio ocidental ............................... 103

    3.5. A crise dos direitos humanos ................................................................ 111

    4. PODER E POLTICA ............................................................................. 125

    4.1. Fora e autoridade: o papel do poder ................................................... 125

    4.2. O espao da aparncia e o poder .......................................................... 133

    4.3. O que poltica? ................................................................................... 142

    4.4. O sentido da poltica ............................................................................. 146

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    5. O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE.................................................... 159

    5.1. O legal e o legtimo: a reduo normativista ........................................ 184

    5.2. Legitimidade e efetividade: a reduo realista ..................................... 1935.3. Dissenso e mudana social: a crise de legitimidade ............................. 202

    CONCLUSO ............................................................................................. 214

    BIBLIOGRAFIA ......................................................................................... 219

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    INTRODUO

    A presente dissertao de mestrado possui como finalidade precpuadesdobrar-se numa investigao cientfica que retrate as reflexes poltico-

    filosficas acerca de noes do Direito, Poder, Violncia, Legitimidade e

    Autoridade na obra de Hannah Arendt.

    Para tanto, este intrito pretende traar um pequeno esboo de como

    ser desenvolvido o tema em voga.

    Desta maneira, faz-se necessrio estudar sobre a vida e a obra da

    distinta pensadora poltica Hannah Arendt, para que possamos entender a

    profundidade e o alcance de seu pensamento, visto que sua contribuio foi de

    suma importncia para compreenso dos fatos histricos que marcaram nossa

    sociedade, e hodiernamente considerada uma das mais brilhantes pensadoras

    do sculo XX.

    Atravs da obra de Arendt, poderemos trazer tona um conceito

    plausvel do Direito, do Poder, Legitimidade e autoridade; depreendendo a

    conexo entre os trs institutos e, finalmente, fazermos uma anlise da

    conjuntura mundial vigente, com base nos fatos histricos marcantes em

    nossa civilizao ocidental, sob o prisma da Filosofia, visto que os

    acontecimentos tendem a ocorrer de forma cclica, ou seja, fatos ocorridos nopassado podem acarretar fatos vindouros, criando-se um crculo vicioso.

    As reflexes em Arendt nos convida a adotar, como indivduos, uma

    posio menos dogmtica e mais tolerante que poder nos auxiliar a

    atravessar os tempos sombrios e a banalizao do mal.

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    grego de vida pblica dedicada disputa por meio da palavra, e no no

    sentido moderno de governo.

    Embora a morte de Scrates tenha levado Plato a se desiludir com apoltica e tal desiluso tenha impregnado profundamente a atmosfera

    filosfica da Academia, o discpulo dileto de Plato, Aristteles, cuja obra

    tem igual ou maior envergadura que seu mestre, soube analisar com iseno o

    significado da vida pblica grega no tratado A Poltica. A partir de uma

    anlise primorosa desta obra, Arendt recupera a compreenso grega do

    significado da vida pblica e explica a razo do valor mximo que a ela

    atribudo pelos gregos.

    O tratado aristotlico considerado por muitos como uma obra

    reacionria, pois nela, Aristteles justifica a empresa da escravido e o

    alijamento da mulher na esfera pblica e sua permanncia exclusiva na esfera

    domstica. Arendt, ao contrrio, v nesta obra um grande tratado sobre o

    modo de vida grego. Aristteles no escreveu como partidrio de nenhuma

    causa especfica, mas como testemunha ocular de um modo de vida nico.

    Como sabemos, a sociedade grega dividia-se em trs classes, a dos

    cidados livres, a dos comerciantes e artesos e a dos escravos e mulheres.

    Somente a primeira classe, a dos cidados, tinha direitos polticos, isto ,

    quem pertencesse a este grupo podia participar da esfera pblica, sendo que o

    que a caracterizava era a ao (prxis) poltica.

    Para participar dela, o cidado deveria estar apto a usar o discurso

    (logos) para com ele defender determinadas posio e causa. Essa esfera era

    chamada pblica porque s existia dentro da comunidade de homens livres

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    (no h, por exemplo, esfera pblica no qual o homem vive em isolamento ou

    sob o jugo de uma tirania).

    A ao poltica consistia no ato de encontrar as palavras adequadas nomomento certo. Seu efeito era o convencimento pela palavra, ao invs da

    fora. Os gregos consideravam a vida pblica uma segunda vida, alm da vida

    privada.

    Ao contrrio desta, na vida pblica ativa dada ao homem a

    possibilidade mxima de imortalidade atravs da rememorao posterior,

    pelas futuras geraes, de seus atos nobres.

    O grande drama do homem grego era o da imortalidade. Sua condio

    animal lhe obrigava a obedecer s necessidades de sua natureza, como a

    alimentao e a procriao, porm, se reduzisse sua vida luta cclica,

    repetitiva, pelos meios para satisfazer suas necessidades, jamais teria tempo

    para dedicar-se a sua segunda natureza, a Poltica.

    Por isso, criou-se a instituio da escravido e da vida domstica. Cabia

    aos escravos cuidar das atividades domsticas de plantio a fim de fornecer a si

    e aos outros os meios de subsistncia e cabia s mulheres cuidar da

    reproduo e criao dos filhos. S assim podia o homem livre dedicar-se aos

    negcios pblicos que lhe garantiriam o direito imortalidade transmisso

    oral de seus feitos atravs das geraes vindouras.

    Ao se livrar da necessidade constante e repetitiva de produo e

    consumo, o homem desafiava a natureza e tornava-se senhor de si graas,

    claro, ao trabalho escravo e domstico.

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    Distanciados das preocupaes com a utilidade que guiava a ao dos

    artesos e com a satisfao das necessidades naturais, podia o cidado grego

    interagir livremente com os outros cidados por meio de grandes palavras e

    sem uso da violncia.

    O julgamento e a condenao de Scrates provocou, do ponto de vista

    da filosofia, a ruptura desta com o ideal de vida pblica.

    A imoralidade da condenao pblica de um homem inocente pode ser

    uma das causas que levaram a filosofia a distanciar-se dos homens e voltar-se

    para a contemplao do cosmos, da natureza, das idias... A imortalidade mais

    sublime no seria, aos olhos dos filsofos, a que era almejada pelas aes

    polticas, mas sim, a almejada pelo pensamento.

    Uma vez que o fluxo de pensamento fosse momentaneamente

    interrompido, as idias seriam rememoradas e concatenadas segundo uma

    ordem lgica para, finalmente, serem transpostas para alguma forma de

    materialidade.

    V-se aqui que essa ruptura entre a filosofia e a poltica inaugura um

    novo modo do cidado livre lidar com a limitao de sua natureza mortal. A

    escrita, e no a lembrana, passa a ser o modo a partir do qual o homem livre

    culto almeja sua imortalidade. Para os filsofos gregos desta poca, o real

    objetivo do pensamento deveria ser a vida contemplativa e no a redao detratados (atividade secundria). Acreditava-se que o pice da vida

    contemplativa seria o alcanar da experincia do indizvel, do eterno.

    Tal experincia s poderia ser alcanada longe da esfera pblica, em

    isolamento. Ao contrrio da experincia da imortalidade por meio do trabalho

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    ativo de perpetuao das idias na escrita, a experincia contemplativa do

    eterno feita em completa imobilidade e silncio, quase como uma

    experincia mstica.

    Hannah Arendt mostra em A Condio Humanaque, com o advento

    da era moderna, esta trouxe uma completa inverso deste quadro com a

    eliminao da separao entre as esferas pblica e privada. O interesse

    individual sobrepujou o interesse coletivo (a esfera pblica deveria, agora,

    atender aos interesses da esfera privada) e a preocupao do cidado comum

    passou a ser a manuteno e o aumento de sua propriedade e riqueza, sem que

    o Estado em nada possa prejudic-lo.

    Ao mesmo tempo em que nessa poca a subjetividade descoberta, e

    com ela todas as formas de intimidade, relacionamento do indivduo consigo

    mesmo e individualidade passam a ser evidenciadas, tambm ocorre a

    valorizao de uma esfera nova da vida ativa, a saber: a esfera da

    objetalidade.

    As grandes cidades europias passam a ser centros de economia

    manufatureira e industrial. A atividade principal da economia humana passa a

    ser a do artfice, que produz com suas mos um produto para ser usado. Agora

    a imortalidade no mais alcanada pela narrativa das grandes palavras dos

    grandes homens, mas atravs da durabilidade dos objetos criados pelos

    homens. Tais objetos so feitos para uso, mas seu material lhes permite umamaior durabilidade e uma existncia mais longa que a do seu artfice.

    Vivemos hoje, ainda, em uma sociedade moderna, cujos interesses

    privados e individuais se sobrepem aos interesses coletivos (no existe entre

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    ns, infelizmente, quase nenhum vestgio de uma esfera pblica, tal qual os

    gregos a conheceram).

    Se, por um lado, a revoluo industrial e a atual revoluo tecnolgicatrouxeram o nvel de conforto material e de riquezas jamais vistos, por outro

    lado, vivemos uma situao semelhante aos escravos da Grcia antiga, que

    viviam somente para produzir e consumir.

    A nossa sociedade de consumo nos estimula a consumir

    desenfreadamente, isto , a comprar e jogar fora logo em seguida o que

    acabamos de adquirir, para que possamos voltar cadeia consumidora.

    Desta forma, presos s necessidades da nossa natureza (e

    bombardeados pela da publicidade com necessidades que nem imaginvamos

    ter), deixamos de lado a segunda vida, a vida para a imortalidade, to elogiada

    pelos gregos. A cada vez que aumenta nossa vontade de consumo, cresce o

    nosso vazio existencial.

    Hannah Arendt, quando se dizia pensadora poltica e no filsofa, nos

    chama ateno para a falta que faz a esfera pblica, na qual o interesse

    pblico se sobreponha ao privado e tenha a palavra um sentido de ato e no s

    de reflexo.

    A experincia pessoal de Arendt fez com que assumisse posiespolmicas e firmes a respeito de temas controvertidos. A autora, exilada e sem

    ptria durante uma boa parte de sua vida, enfrentou com coragem e deciso

    uma existncia deslocada entre a velha Europa e os Estados Unidos, entre um

    marido proletrio e comunista, o poeta e filsofo alemo Heinrich Blcher

    (1899-1970), e um amor impossvel com o filsofo e membro do partido

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    nazista, Martin Heidegger (1889-1976), entre o judasmo problemtico e a

    assimilao impossvel. Junto a tudo isso, Hannah Arendt quis dedicar-se ao

    racionalismo1, objeto de seus estudos filosficos.

    Seu primeiro estudo, O conceito de amor em Santo Agostinho,pde

    parecer como um passo firme diante de uma assimilao que a tempestade

    hitlerista ir reduzi-la a um fracasso. O seu protesto, em 1933, contra o novo

    regime no se deu a partir de uma posio de mulher de esquerda, mas como

    judia. Em seu primeiro exlio, em Paris, teve a oportunidade de perceber sua

    pertinncia tnica trabalhando em organismos judeus. Mas a Frana foi

    unicamente uma etapa, que poderia ser fatal, como ocorreu com seu amigo

    Walter Benjamin (1892 1940).

    Em consonncia com sua atividade no meio da comunidade judia e

    sionista, Arendt quis entender um fenmeno que ficou estampado no ttulo de

    seu livro As Origens do totalitarismo. Desejava saber mais sobre o mal,

    como confessou a Karl Jaspers em uma conversa de 1953.

    Arendt pronunciou-se e afirmou sua viso, ainda que parecesse uma

    provocao. Depois de sua anlise do totalitarismo, no se deteve nos limites

    do fascismo e passou a escandalizar os intelectuais sobretudo os do Velho

    Continente incluindo a verso totalitria do comunismo no mundo sovitico.

    Entretanto, anos aps o trauma chamado mundialmente de Holocausto,Arendt teve a ousadia de qualificar o processo de Adolf Eichmann (1906

    1962), no qual desfilaram centenas de sobreviventes dos campos de

    concentrao, com a seguinte frase: Show Trial! (Espetculo!) e se atreveu

    1A atitude de quem confia nos procedimentos da razo para a determinao de crenas ou de tcnicas emdeterminado campo. Cf.Nicola Abbagnano, Dicionrio de Filosofia.

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    a descrever Eichmann como um instrumento da monstruosa mquina

    administrativa do regime nazista, um pequeno funcionrio da ideologia dentro

    desse mal banalizado. Eichmann foi julgado em Jerusalm, em 1961, e

    executado um ano depois, por enforcamento2.

    Arendt nos distancia da diviso entre bons e maus. Entramos em uma

    engrenagem na qual o mal, em sua banalidade, tem quase a todos como

    colaboradores. Trata-se justamente de uma das perverses do totalitarismo,

    que levar suas vtimas a colaborarem com ele. Da questionamos o Direito,

    o Poder, a Autoridade e a Legitimidade em Hannah Arendt.

    Novamente em A Condio Humana, Arendt diz que devemos

    pensar o que fazemos, mas vtima, frente presena de Heidegger, de um

    eclipse de seu pensar razovel, visto que este, apesar de grande intelectual, foi

    nazista e simpatizante de ideologia ditatorial.

    Hannah Arendt, em suas dinmicas, nos permite perceber uma vez mais

    a complexidade do ser individual e a riqueza infinita da vida que nos deixa

    encerrar em moldes, sejam eles os mais sofisticados. preciso pensar que a

    vida no se limita a descrever as debilidades dos homens; pensar a vida h de

    ser tambm dignific-la.

    A exigncia de Arendt, ter de pensar o que fazemos, incumbe-nos de

    agregar a responsabilidade suprema de pensar o que pensamos.

    Uma das contribuies da autora, especialmente relevante para o

    pensamento contemporneo e particularmente significativo para ns,

    brasileiros, na presente conjuntura, marcada por desiluses polticas que nos

    2Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalm, pg. 271.

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    podem conduzir ao niilismo e ao imobilismo ou s veleidades

    antidemocrticas, o ensinamento que nos deixou: mesmo no acreditando

    em Deus, e ainda que no se possa mais idealizar a razo, nem tudo

    permitido e nem tudo est perdido. Em outras palavras: a humanidade, noOcidente, h anos vem procurando uma base firme e permanente sobre a qual

    seja possvel construir suas certezas. A certeza, no conhecimento, a verdade;

    no juzo moral, a justia; no juzo esttico, a beleza. As duas mais

    importantes plataformas edificadas pelo pensamento, ao longo desses sculos,

    a fim de servir de base para a cincia, a moral e a esttica, foram Deus e a

    Razo.

    No final do sculo XIX, desdobrando uma linha crtica que se estendia

    atravs desses sculos, Nietzsche decretou a morte de Deus e a precariedade

    da Razo, sempre parcial, frgil, ligada a seu tempo, amarrada s diferentes

    culturas nas quais se realiza. Depois de Nietzsche mostrar que o rei estava nu

    e que a mitologia metafsica era insustentvel, mesmo que a f perdurasse, na

    vida privada, ela no poderia continuar a ser o suporte que havia sido no

    passado. Por outro lado, mesmo sendo possvel delimitar a razo, ela se

    revelava relativa. Portanto, o solo perdera firmeza e se tornara movedio.

    Onde encontrar valores permanentes, para alm da histria e das culturas?

    Onde descobrir as essncias? Como restaurar os fundamentos?

    O veneno do relativismo e do ceticismo inundou o sculo XX e j se

    projeta sobre o novo sculo. A decepo poltica, no Brasil, estimula essaonda, que aniquila esperanas e engajamentos.

    Hannah Arendt apontou a sada: , sim, possvel, mesmo reconhecendo

    a vacilao do terreno em que pisamos, assumir valores, defender posies

    polticas, afirmar convices, investir no conhecimento, firmar juzos morais

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    e estticos. Para isso, necessrio recusar os dogmatismos, reconhecer a

    legitimidade do pluralismo, adotar a humildade e a tolerncia como posturas

    constantes, e buscar, no dilogo e na reflexo crtica, no estudo da tradio e

    no exame do repertrio contemporneo das criaes culturais, as refernciasque produzam menos danos para a vida coletiva, em condies civilizadas, e

    menos prejuzos aos valores que podem proteger e animar, seja o espao

    pblico democrtico, seja a experincia privada variada e livre. A receita no

    simples, no fcil. No se aplica, mecanicamente, mas nos ajuda a

    atravessar nosso tempo sombrio.

    Uma das faces notrias do pensamento poltico de Hannah Arendt sua

    anlise a respeito do totalitarismo. De fato, a partir do evento totalitrio que

    nossa autora constri toda a sua teoria da ao poltica, buscando erigir

    limites para o espao poltico de forma a evitar que um evento semelhante

    acontea novamente. Tendo isto em vista, a autora aposta boa parte de suas

    fichas na ao poltica e na capacidade desta de gerar o novo. Nesse

    empreendimento, Arendt opera, em primeiro lugar, uma radical diviso entre

    os espaos pblico e privado. O espao privado aquele das necessidades e

    sentimentos humanos. aqui que o ser humano tem suas relaes ntimas,

    sente dor, amor e tambm aqui que ele busca atender a suas necessidades

    vitais bsicas, garantindo sua sobrevivncia. No espao pblico, o ser humano

    lana-se ao mundo, realizando suas atividades sociais, fabricando objetos que

    garantam no somente sua prpria reproduo, mas a do prprio mundo.

    neste momento, tambm, que o ser humano, agindo em concerto com osdemais, pode gerar poder poltico e ser livre.

    Note-se aqui que, no espao pblico, h atividades de naturezas

    distintas: algumas garantem a reproduo do mundo, outras tm apenas como

    sentido a liberdade daqueles que agem e a conseqente gerao de poder.

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    Com base nisto, nossa autora realizou mais uma diviso, entre o espao social

    e o espao poltico. Portanto, temos no seu pensamento trs esferas de atuao

    humana: a privada, a social e a poltica.

    O que se depreende da obra da autora que a preservao destas esferas

    com limites claros entre elas a principal garantia de que eventos totalitrios

    no mais aconteam e, principalmente, a manuteno de uma esfera poltica

    genuna, a qual garante que o ser humano pode manter sua capacidade de ser

    livre e gerar o novo.

    Para manter esta esfera genuna, Arendt caracterizou-a como sendo o

    espao da ao sem finalidade, desinteressada e plural. A rigidez desta

    caracterizao j foi bastante criticada e provavelmente seu crtico mais

    clebre tenha sido o filsofo alemo Jrgen Habermas, que apontou que a

    teoria arendtiana da ao no seria suficiente para cuidar dos problemas que

    atualmente se colocam para a poltica. Tal como afirma Habermas, Arendt

    desconsidera os problemas de administrao e as disputas de poder que

    ocorrem entre os atores polticos. Podemos acrescentar que esta

    desconsiderao s foi possvel porque ela deslocou para a esfera social o

    interesse e o conflito.

    Para muitos, esta pode ser a maior qualidade da teoria da ao de

    Arendt. Entre outras razes, porque a retirada do interesse e do conflito vm

    acompanhada da desvinculao entre ao poltica e violncia.

    E deve ser destacado aqui que violncia, para Arendt, no somente a

    utilizao de armas ou de prticas terroristas para a obteno de um resultado

    poltico, mas sim qualquer prtica que no seja a persuaso, pelo discurso,

    livre de qualquer tipo de coero, inclusive a coero realizada pelas

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    necessidades sociais ou econmicas, ou a coero imposta por um corpo de

    leis que prescreve condutas aos indivduos. Alm disso, o poder nunca algo

    que se realiza sobre algum ou algo, mas sempre com outros.

    Com isto, Arendt parece ter colocado na poltica uma noo de

    igualdade muito forte. E realmente, em sua teoria, a ao poltica

    eminentemente uma atividade realizada entre iguais. Ocorre que, como j

    asseverado, para retirar a violncia da poltica, Hannah Arendt formulou uma

    teoria da ao em que os seres humanos agem sem qualquer interesse ou

    finalidade. Mas ento por que esses mesmos seres humanos atuariam

    politicamente? Para serem livres e obter poder legtimo. Com todas estas

    limitaes, Arendt parece ter formulado uma teoria poltica com exigncias

    normativas sem precedentes. Mas com estas mesmas exigncias, ela tirou da

    esfera poltica a luta pela igualdade, pois esta um dos pressupostos da ao,

    e retirou talvez a maior razo pela qual as pessoas saem de seus ambientes

    privados e se lanam ao mundo: os interesses em conflito.

    Dada a profundidade e o alcance de sua obra, Arendt hoje, talvez, a

    nica mulher cujo acesso imortalidade, ao Olimpo das letras, o qual no lhe

    foi negado por seus pares masculinos.

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    1. POLTICA E DIREITO

    1.1. O paradigma da Filosofia do Direito

    A preponderncia do Direito Positivo na experincia jurdica dos

    sculos XIX e XX levou a um modo corrente de aproximar-se do Direito, que

    consiste na afirmao: no existe outro Direito que no o Direito Positivo.3

    Tal afirmao, que uma das dimenses importantes do

    positivismo jurdico, recusa evidentemente a distino dicotmica entre um

    Direito ideal e um Direito real, com a qual opera o paradigma do Direito

    Natural deontolgico. Tambm na medida em que o Direito contemporneo

    assinala-se pelo processo de contnua mudana, as caractersticas de

    universalidade e imutabilidade com as quais igualmente trabalha o

    jusnaturalismo se esfumam diante da prtica. Por isso mesmo deixou de ser

    til, para o jurista, ver o Direito como algo dado materialmente por uma razo

    comum a todos. Passou a ser mais proveitoso encar-lo como algo posto e

    positivado, direta ou indiretamente, por um poder estatal que estabelece, para

    distintas sociedades, a diferena atravs da sano.

    Assim, o Direito foi deixando de ter como funo operacional

    qualificar condutas, distinguindo-as entre bona in see mala in sea partir de

    uma estreita vinculao entre Direito e Moral, em consonncia com oparadigma do Direito Natural, pois assumiu basicamente um papel tcnico-

    instrumental de gesto da sociedade ao permitir, proibir, comandar, estimular

    e desestimular comportamentos.

    3Norberto Bobbio, Giusnaturalismo e positivismo giuridico, op. cit. Introd. Nota 11, p. 105-7.

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    Esta gesto exprime-se por um Direito assinalado pela

    mutabilidade e pela particularidade, positivado pelo poder estatal ou por ele

    contestado, garantido pela sano, e que tem como pressuposto a utilidade,

    para a sociedade, do Direito Positivo.

    Ora, a Filosofia do Direito explcita de que fala Miguel Reale

    surge como uma reflexo sobre estas situaes, que pem em xeque a

    elaborao doutrinria do Direito Natural. Trata-se, em verdade, de um novo

    paradigma de pensamento que , como observa Elias Daz, o resultado de uma

    dupla confrontao: frente ao paradigma do Direito Natural como uma anlise

    sobre as realidades do Direito Positivo e frente ao positivismo jurdico como

    uma reflexo que transcende criticamente os dados empricos atravs dos

    quais se exprime o Direito Positivo.4

    O paradigma da Filosofia do Direito, porque idia que resultou

    da fratura da crena num Direito Natural, no unvoco. O que caracteriza o

    paradigma o seu modo de explicitao. Pode ser visto, para valer-se da

    distino que estabeleceu Bobbio entre a Filosofia do Direito dos filsofos e a

    Filosofia do Direito dos juristas, como uma elaborao doutrinria que se

    inicia no sculo XIX, derivada basicamente das reflexes dos juristas com

    interesses filosficos e no da obra dos filsofos com curiosidade jurdica, ou

    ento de esforos de encarar rigidamente a Filosofia do Direito como uma

    filosofia aplicada, subordinada a grandes temas da Filosofia Geral.5

    Estas reflexes dos juristas com interesses filosficos so a

    conseqncia da busca de um saber confivel em matria de Direito, e tem a

    sua origem em problemas e necessidades concretas que a experincia jurdica

    4Elaz Daz, Sociologia y filosofia del derecho, op. cit. Introd. Nota 8, p. 285-6.5Norberto Bobbio, Giusnaturalismo e positivismo giuridico, op. Cit. Introd. Nota 11, p. 40-6.

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    foi colocando para a prtica do Direito. So estes problemas concretos que

    foram definindo o paradigma e os campos de investigao da Filosofia do

    Direito.

    Na elaborao do paradigma da Filosofia do Direito, os

    jusfilsofos a ela vm dando maior ou menor amplitude 6 em funo da

    definio e delimitao de seus campos de investigao. H autores que, por

    se interessarem por vrias coisas, buscam uma viso integrada da experincia

    jurdica. o caso de Miguel Reale, que atravs de uma metodologia (a

    ontognoseologia) busca, com a sua Teoria Tridimensional do Direito, lidar

    com o jurdico na concomitante dimenso de fato, valor e norma. H autores

    que se concentram somente no explicitar de uma perspectiva centrpeta da

    realidade jurdica. o caso de Kelsen que, por fora de sua preocupao

    metodolgica com o rigor, ao elaborar a Teoria Pura, limitou o campo do

    jurdico a uma teoria formal do Direito.

    Existe algo, no entanto, que, apesar das imensas diferenas que

    separam os jusfilsofos, une-os no processo de elaborao comum do

    paradigma da Filosofia do Direito que se inicia no sculo XIX. Este algo

    resulta do fato de que as perspectivas por eles escolhidas na definio dos

    campos de investigao da Filosofia do Direito provm de problemas

    especficos suscitados pelas necessidades prticas de ir alm dos dados

    empricos do Direito Positivo, para poderem lidar com o prprio Direito

    Positivo.

    interessante, neste sentido, observar que a Filosofia do Direito,

    como alis a Filosofia Poltica, a partir do seu prprio nome, coloca um

    problema delicado de equilbrio na definio do seu alcance e dos seus

    6Miguel Reale, Filosofia do direito, op. cit. Introd. Nota 8, p. 288-9.

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    campos de investigao. Com efeito, enquanto Filosofia ela tende a ser uma

    investigao terica. Entretanto, enquanto Direito ela uma atividade

    preponderantemente prtica. por essa razo que o jusfilsofo no pode ser

    exclusivamente terico como um fsico, nem exclusivamente prtico comoum engenheiro.

    por isso que o paradigma da filosofia do Direito obra de

    juristas com interesses filosficos, que combinam teoria e prtica, e so

    basicamente quatro: o metodolgico, o da validade formal da norma,

    tradicionalmente denominado ontolgico, o da efetividade da norma em

    relao aos seus destinatrios, tradicionalmente denominado fenomenolgico

    e o da justia e legitimidade da norma, tradicionalmente denominado

    deontolgico.

    1.2. Hannah Arendt: vida e obra

    Hannah Arendt nasceu em Hannover, Alemanha, em 1906 e

    faleceu em Nova York, nos Estados Unidos, em 1975.

    De famlia de judeus emigrados da Rssia, graduou-se em

    filosofia na Universidade de Masburg. Foi aluna de Martin Heidegger, tido

    como um dos maiores filsofos do sculo XX, com quem manteve um

    romance relativamente longo.

    Tornou-se filsofa e em 1929, aos 23 anos, Arendt defendeu sua

    tese de doutoramento, pela Universidade de Heidelberg, intitulada O amor

    em Santo Agostinho, onde enfocou o amor como anseio; a relao de amor

    do homem com o Criador e o amor ao prximo, sob a orientao de Karl

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    Jaspers, tese esta que se transformou no livro O conceito de amor na obra de

    Santo Agostinho.

    O direcionamento de sua vida para a poltica ocorreu a partir de1933 e se deu, inicialmente, por meio da total recusa do meio intelectual e do

    engajamento na ao direta de resistncia ao nazismo. Em 1941, refugiou-se

    nos Estados Unidos, para escapar do nazismo, pas em que lecionou e

    escreveu a maior parte de sua obra e onde obteve a naturalizao em 1951, o

    mesmo ano em que publicou sua primeira obra de repercusso: Origens do

    Totalitarismo, traando as razes do comunismo e do fascismo e

    investigando suas relaes com o anti-semitismo.

    Arendt assevera na obra A Condio Humana: O poder s

    efetivado enquanto a palavra e o ato no se divorciam, quando as palavras no

    so empregadas para velar intenes, mas para revelar realidades, e os atos

    no so usados para violar e destruir, mas para criar relaes e novas

    realidades7.

    Isto significa que cada vez que os homens se renem na

    modalidade de ao e do discurso, no espao da aparncia, o poder

    efetivado. O mostrar-se condio indispensvel para a efetivao do poder

    na medida em que ele no propriedade de um s indivduo mas pertence a

    uma coletividade, onde cada qual mostra aquilo a que veio e onde todos so

    ouvidos uns pelos outros.

    a esta noo sui generis de poder de Hannah Arendt que J.

    Habermas vai denominar de poder comunicativo porque fundado na ao

    comunicativa, naquela ...faculdade de alcanar um acordo quanto ao

    7Cap. V, item 28.

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    comum, no contexto da comunicao livre da violncia contrapondo-o

    quelas teorias clssicas sobre o poder que o definem como possibilidade de

    impor a prpria vontade ao comportamento alheio.8

    A concepo de poder enquanto imposio encontra no

    pensamento clssico farta referncia. Convm, portanto, nos debruarmos

    sobre estas concepes de poder que permeiam a tradio poltica ocidental

    para depois percebermos em que medida a concepo arendtiana de poder

    algo original.

    A legitimidade do poder encontra-se, portanto, no fato de que o

    poder defende e protege a todos mediante um contrato de autorizao.

    Para Arendt, o poder s pode basear-se na ao comunicativa.

    mais uma vez ao exemplo da polis que ela recorre. No espao da polis, o

    poder era o resultado da capacidade humana de agir e falar uns com os outros,

    de unir-se uns com os outros e atuarem em concordncia.

    Do ponto de vista do poder que encontra sua razo de ser na ao

    comunicativa a autora no fala de fora, de ameaas, sanes e manipulao,

    mas sim de um poder que se obtm atravs de uma teia de relaes, onde

    cada qual se liga ao outro na comunicao recproca.

    Desse modo o poder s existe na medida em que os homensagem em conjunto e da mesma forma desaparece quando eles se dispersam.

    Por isso o poder sempre um potencial de poder, no uma entidade

    imutvel, mensurvel e confivel como a fora. Isso, diz Arendt, pode ser

    confirmado na prpria Histria onde muitas vezes um pequeno grupo de

    8Habermas, in Freitag B. e Rouanet, J.P. 1980:100.

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    O que distingue o poder da fora que enquanto a nica

    limitao do poder a pluralidade, a limitao da fora est na interao de

    vrios indivduos e no poder da maioria. Um homem com fora jamais possui

    poder enquanto que um grupo organizado sempre o possui.

    O poder no necessita de justificao, ele justifica-se a si mesmo

    porque inerente prpria existncia das comunidades polticas. O que ele

    necessita de legitimidade.

    Ao tratar da legitimidade do poder, Arendt oferece pistas para

    que se faa uma crtica quilo que a sociedade moderna entende por

    autoridade, que no se confunde com o desejo de se fazer obedecer atravs da

    coero imposta pela fora, pelo vigor ou pela violncia.

    O poder necessita da autoridade e esta s encontra seu

    fundamento no espao da pluralidade. Em outras palavras, a base da

    autoridade a comunidade poltica. O conceito assim percebido afasta de

    imediato qualquer tentativa de tomar como sinnimo a autoridade e o

    autoritarismo.

    O poder funda-se na associao entre os homens que se renem

    no espao da aparncia, onde ao e discurso manifestam-se livremente, e

    prprio do espao da aparncia a criao de relaes que permitem o fluir

    livremente de diferentes pontos de vista sobre uma mesma realidade.

    A noo de legitimidade do poder, como trao comum entre os

    diversos enfoques dados pelo pensamento e pela prtica polticos de nossa

    civilizao, parece sempre consistir numa tentativa para justificar

    determinado tipo de ao poltica, isto , estabelecer uma ponte entre as

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    expectativas dos destinatrios e determinada orientao na conduo da

    comunidade: j que aqueles que exercem efetivamente esse poder de

    conduo formam uma minoria em relao aos que obedecem, preciso que

    estes sejam convencidos de que no h necessidade de uma constanteaplicao da fora para manter uma convivncia, em que pesem

    desigualdades na diviso do bolo social e na participao poltica.

    Em segundo lugar, esse papel, tradicionalmente desempenhado

    pela legitimidade, tambm exigido pelo fato de que toda orientao

    impingida aos rumos da poltica arbitrria, no sentido de que s existe

    deciso diante de vrias alternativas possveis. Em terceiro lugar, as normas

    de conduo entram em conflito com a conduta efetiva quando transgredidas:

    este conflito e a necessidade de seu controle ressaltam o carter repressivo do

    direito e reforam as exigncias de legitimao.

    Problematizar a legitimidade significa, em certa medida,

    examinar as prprias bases sobre as quais se assentam o direito e a poltica,

    enfrentando questes que, devidamente ampliadas, coincidem com a prpria

    histria da civilizao ocidental: em que sentido se pode falar ou no na

    expresso governo ilegtimo? Como possvel que tantos se sujeitem s

    diretrizes de to poucos, ou seja, como se explica a assim chamada obedincia

    civil? Qual a diferena entre a ordem emitida por um juiz ou policial e aquela

    de um assaltante ou inimigo de guerra? Qual o papel do ordenamento jurdico

    nessas consideraes?

    Ainda sobre a legitimidade, falaremos sobre a crise de poder, que

    nada mais do que a crise de legitimidade do poder, rigorosamente falando,

    uma vez que o desenvolvimento na tecnologia dos instrumentos de violncia

    torna cada vez menos crtica a situao de poucos dominando muitos. De

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    modo mais difuso mas tambm importante, o progresso tecnolgico das

    comunicaes e do manuseio de informaes em geral tem sido outro

    poderoso instrumento ao alcance dos governantes. Toda crise social , no

    fundo, uma crise de legitimidade em relao s decises dos poderesestabelecidos na esfera poltica do social.

    No que tange ao Direito, demonstraremos a afirmativa de que a

    norma jurdica legislada a nica fonte legtima de direito, partindo do

    princpio de que as leis formam um todo sistemtico e coeso, suficientemente

    generalizado para dirimir quaisquer conflitos de ordem jurdica ou poltica. A

    legitimidade associada a um ttulo que justifique a dominao enquanto a

    legalidade se responsabiliza por todas as conseqncias, organizando o

    exerccio do poder segundo frmulas previamente estabelecidas e fechando

    em si mesma a ao do sistema.

    Verificaremos que do monoplio da produo de normas

    jurdicas, a ascenso da lei e a positivao do direito, a legitimidade faz-se

    legitimao, o que significa transferir a questo de fundamento para uma ao

    legitimadora por parte do Estado e do ordenamento em geral; a legitimidade

    deixa de se reportar a contedos externos e o poder jurdico-poltico, embora

    de forma mais ou menos velada por uma retrica tradicional e aparentemente

    conteudista, pode ter pretenses a uma autolegitimao.

    Observaremos que legtimo significa que est de acordo comprocedimentos jurdicos pr-fixados.

    Demonstraremos que qualquer que seja a ideologia do discurso

    poltico, o direito legitima-se por si mesmo legitimando tambm o poder

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    poltico, mais e mais dependente do direito, podemos acrescentar - como

    subsistema autnomo.

    Discorreremos acerca da realidade jurdica em Hannah Arendt.Para tanto, devemos esclarecer que, apesar da lngua inglesa designar com o

    mesmo termo, law, os fenmenos da lei e do direito, o que sempre dificulta a

    traduo, principalmente quando o contexto no claramente exclusivo.

    Obviamente, h os dois sentidos distintos, a lei ou norma jurdica legislada

    entendida como uma das manifestaes do direito. A rigor, sinnimo de

    direito realidade jurdica, expresso de que Hannah Arendt no se utiliza; a

    que as decises dos tribunais so lawno sentido mais geral mas no o so

    no outro sentido. A autora no tinha preocupaes to especificamente

    jurdicas e no se debruou sobre este problema terminolgico, ficando difcil

    dizer, em determinadas ocasies, quando ela se refere a law em uma ou outra

    de suas acepes.

    1.2.1. Seu pensamento

    Hannah Arendt foi uma autora pitoresca: absolutamente

    original; combinava erudio e sintonia permanente com o que acontecia no

    mundo; aliava sensibilidade esttica ao rigor filosfico; temperava ousadia e

    equilbrio, imaginao e prudncia; criatividade e fidelidade tradio;

    engajamento poltico e independncia; produo acadmica fiel aos cnones eautonomia, tanto na escolha dos temas, quanto na maneira de trat-los,

    dilogo com seus pares universitrios e participao no debate pblico;

    esprito crtico ferino e humildade ante o pluralismo de opinies; firme em

    suas posies e tolerante com as diferenas; convico e responsabilidade.

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    Reconhecia a mediocridade dos jogos polticos, reduzidos

    ao mercado eleitoral e composio de interesses, mas no deixava de

    escrever sobre a dignidade da poltica e sobre a grandeza de algunsprotagonistas, cujas virtudes contrastavam com os tempos sombrios. Rendeu

    muitas vezes homenagem ao espao pblico, como campo do dilogo e da

    construo de consensos, em torno do bem comum.

    Repblica e democracia eram as referncias s quais no

    renunciava, ainda que as contemplasse com amarga suavidade e moderado

    ceticismo.

    Assim, Arendt considerada pela comunidade filosfica

    como um dos pensamentos polticos mais representativos do sculo XX, pois

    acompanhou bem de perto as maiores mudanas sociais do sculo findo,

    motivo pelo qual seus livros e artigos continuam sendo traduzidos para vrios

    idiomas na medida em que cresce o interesse pela atualidade de seu

    raciocnio.

    No s os tericos da poltica tm se debruado sobre sua

    obra, mas tambm todos os que esto preocupados com a banalizao da vida

    na sociedade moderna de massas; o Direito, que por sua essncia possui

    cunho social, filosfico, poltico e histrico, no poderia deixar de aceitar esta

    contribuio brilhante.

    O estudo do pensamento de Arendt teve duas motivaes

    bsicas: em primeiro lugar, uma espcie de insatisfao pessoal com o

    esvaziamento de contedo que algumas doutrinas mais recentes procuram

    detectar na relao comando/obedincia jurdico-poltica, numa uniformidade

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    Desta maneira, temos que Arendt um bom fio condutor

    para um estudo filosfico-jurdico com preocupaes polticas, nesse campo

    minado que a poltica do direito, numa poca em que poltica e direito esto

    interdependentes como nunca. Por outro lado, do mesmo modo que nossaautora no sofre as presses de uma formao jurdico-dogmtica, um estudo

    filosfico-jurdico com preocupaes polticas pode perceber aspectos que

    passariam ao largo sob influncia da mais recente mas j arraigada Cincia

    Poltica, cujo dogmatismo por vezes nada fica a dever a nossa Cincia do

    Direito.

    Hannah Arendt quer nos transmitir que o poder legtimo,

    se no apela a instncias transcendentes nem tem contedo universal

    estabelecido, define-se por levar em considerao a pessoa do outro, uma vez

    que a ao, o direito e a poltica constituem-se na intersubjetividade.

    1.3. Poltica e Direito luz de Hannah Arendt

    Hannah Arendt entende a lei em sua conotao grega clssica,

    como um objeto produzido pela atividade do homo faber que fornece a

    estrutura material do direito e da poltica e demarca o espao pblico.

    Todavia, ela no era legalista. A lei, como todo objeto, s tem sentido atravs

    da ao humana, da sua manifestao no mundo das aparncias por meio de

    palavras, atos, fatos do homem, enfim. Lembremos que nem o espao pblico produto automtico da simples existncia da lei, nem ao espao poltico

    suficiente a existncia do mundo pblico.

    A lei na Grcia originalmente identificada com a linha externa,

    a fronteira que separa entre si os diversos sujeitos em sua esfera privada, ao

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    mesmo tempo delimitando o espao que comum a todos: sem a lei no pode

    haver a cidade, a polis, mas um mero conglomerado de casas. A lei forma o

    alicerce das esferas pblica e poltica, embora no se confunda e seja anterior

    a elas, e tem um significado espacial em suas origens etimolgicas; Arendtchama ateno para a relao entre a lei, o direito, e o muro, a parede, no

    termo grego nomos. por isso que o legislador no precisa sequer ser

    cidado, podendo mesmo ser um estrangeiro.

    Adverte a autora que possvel notar a diferena entre as

    acepes grega e romana para o termo lei. Para os romanos, a lei no uma

    atividade pr-poltica, mas indica, alm de manifestao do poder legtimo, a

    prpria constituio do pacto de fundao da cidade, num sentido no to

    pouco usitado a ouvidos modernos quanto o grego. A lex demarca o pacto

    poltico entre os patrcios, descendentes dos invasores provenientes de Tria,

    e os plebeus, descendentes dos nativos da pennsula italiana. Mas nem na

    Grcia nem em Roma a legitimidade do direito depende de uma instncia

    transcendente, vale dizer, a infra-estrutura da poltica mundana, embora a

    equiparao entre a legitimidade e efetividade seja totalmente estranha ao

    pensamento clssico. O fato de o ato legislativo grego ser considerado pr-

    poltico, por seu turno, no indica qualquer transcendncia, pelo contrrio,

    enfatiza o carter artificial, feito pelo homem, da lei e do direito em geral.

    Na grande maioria das vezes em que usa o termo law, Hannah

    refere-se ao sentido grego, da atividade legislativa como produto do homofaber. Quando quer falar da realidade jurdica em sentido mais amplo, como

    conduta em interferncia intersubjetiva (Cossio), por exemplo, ela

    menciona a poltica como o campo onde se d a teia das interaes humanas:

    a idia de que a atividade poltica fundamentalmente o ato de legislar,

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    embora de origem romana, essencialmente moderna e encontrou sua mais

    alta expresso na filosofia poltica de Kant.11

    O legalismo arendtiano apenas uma infra-estrutura do polticoe, poderamos acrescentar, da realidade jurdica entendida como o direito tal

    como efetivamente praticado. Justamente porque no pensava e no podia

    julgar, Eichmann e o burocrata em geral se apegava a normas, no como

    orientao mas como dogmas inquestionveis e pr-fixados de conduta. Quer

    dizer, Hannah Arendt no positivista no sentido do legalismo 12 , do

    normativismo13 ou muito menos do realismo 14 : ela v como necessria a

    problematizao do contedo de cada caso individual, h oportunidades em

    que as normas pr-existentes, em geral indispensveis, no so de qualquer

    valia e devem ser deixadas de lado.

    A legitimidade da lei, seu fundamento de validade vem, entre

    outros fatores, da velha e mundana mxima romana:pacta sunt servanda.

    Arendt defende que a respeito dos regimes totalitrios, a negao

    da legalidade consiste exatamente em derivar sua legitimidade de uma

    legalidade superior nica legalidade, a positiva. O direito s o se

    positivo.

    Em outro ponto Arendt tambm positiva: na expressa

    separao entre moralidade e legalidade, entre a moral, de um lado, e apoltica e o direito, de outro. A moral, que se revela na conscincia, difere do

    11Norberto Bobbio & M. Bovero, Societ e stato nella filosofia poltica moderna. Cap. I, nota 6, pg. 19 a20.12Nicola Abbagnano. Dicionrio de Filosofia: atitude de observncia literal da lei.13 Ibidem: Entende-se por normativo aquilo que ...prescreve a regra infalvel para alcanar a verdade, abeleza, o bem, etc., ou seja, um bem absoluto; no contexto, a justia.14Ibidem: em geral, a atitude de quem confia nos procedimentos da razo para a determinao de crenas oude tcnicas em determinado campo; no contexto, o direito.

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    direito por ser, em princpio, apoltica. Interpretando Kant, Arendt diz que

    mesmo uma raa de demnios pode permanecer dentro dos limites

    razoveis fixados pelo direito e pela poltica, isto , podemos ter maus

    homens moralmente falando e ainda assim bons cidados. As proposiesmorais s so evidentes para aqueles que pensam e julgam, o direito precisa

    ser evidente para todos, tem que aparecer como linha demarcatria que . O

    nico contedo moral do consentimento que apia o poder poltico-jurdico,

    como alis o contedo moral de todos os acordos e contratos, a simples

    disposio de cumprir promessas, de dar e manter garantias quanto a uma

    futura conduta.

    Mas poltica e direito, se bem que estreitamente ligados, no se

    confundem; enquanto a poltica essencialmente modificadora da realidade, o

    campo do infinitamente improvvel, o direito restringe essas modificaes,

    contrabalanando-as (note-se como Arendt quase sempre pensa em lawcomo

    lei): Os mais importantes dentre os fatores desestabilizadores, mais

    duradouros que costumes, usos sociais e tradies, so os sistemas legais que

    regulam nossa vida no mundo e nossas relaes dirias uns com os outros15.

    E esta a funo da lei e do direito em geral: As leis positivas, portanto,

    destinam-se fundamentalmente a funcionar como fatores estabilizadores para

    os movimentos sempre em mudana dos homens16.

    Prometer a maneira peculiar de ordenar o futuro, de tron-lo

    confivel na medida do humanamente possvel; orden-lo mas no constitu-lo, a imprevisibilidade do futuro faz com que as promessas jamais sejam

    absolutas, sempre possvel quebr-las. Por isso mesmo, alm da capacidade

    de fazer promessas, os homens so dotados da faculdade de mant-las e

    15Tobias Barreto, Estudos de Direito e Poltica, pg. 11.16Norberto Bobbio, Studi per uma teoria generale del diritto, op. cit. Cap. 2, nota 10, p. 148.

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    cumpri-las. Mas o poder de prometer de nada adianta com relao ao passado:

    para conciliar-se com essa dimenso temporal o homem dispe do poder de

    perdoar. Essas duas capacidades, j que no falamos de poder em sentido

    poltico, no vm de fora mas so remdios da prpria ao para caracteresessenciais dela mesma: a promessa estabiliza o futuro e remedia a

    imprevisibilidade da ao; o perdo estabiliza o passado e remedia a

    irreversibilidade dos atos humanos.

    Ambas as capacidades da ao prendem-se condio desta, a

    pluralidade, a presena efetiva de outros, j que ningum pode prometer ou

    perdoar a si mesmo. Mas enquanto o perdo se tem mantido, desde que

    revelado por Jesus de Nazar, fora do mbito pblico, a capacidade de

    prometer, consubstanciada pelos romanos na mxima pacta sunt servanda,

    adquiriu relevncia publica h tempos imemoriais. Embora ambas existam em

    funo da pessoa do outro e impliquem numa ao, s a faculdade de

    prometer tem tido grande importncia na esfera poltica. Enquanto o poder

    gerado quando as pessoas se renem e agem em conjunto, o espao das

    aparncias a realidade onde se d este poder, a capacidade de prometer e

    cumprir mantm os homens juntos ainda que fisicamente separados ou

    inativos.

    Mesmo que Arendt no se refira diretamente a isso, e uma vez

    que tanto a lei quanto a promessa so fatores estabilizadores da ao,

    podemos perfeitamente ligar o direito faculdade de prometer; atravs dodireito que o incessante fluxo de recm-chegados tomam p das regras do

    jogo de promessas mtuas que compem as fronteiras da cadeia de aes e

    reaes humanas. Embora mutvel, o direito positivo o menos do que a ao

    e o prprio poder precisa dele, na medida em que organiza o espao poltico.

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    Mas fica claro, diga-se logo, que a legitimidade em Hannah

    Arendt tem, com certeza, instncias de referncia de contedo relativamente

    determinvel, as quais no se podem resumir no mero respeito legalidade ou

    ao cumprimento de promessas, tampouco podem ser medidas por quaisquerrelaes ou funes que eventualmente desempenhem. A livre associao e os

    direitos civis, por exemplo, so contedo indispensvel condio humana

    em sua plenitude, no s para a vita activa mas tambm para a

    contemplativa.

    O poder legtimo no se resume a eles, mas, diante do inusitado

    da ao humana que seu fundamento, necessita de limites razoavelmente

    rgidos e facilmente identificveis atravs do direito positivo: uma vez

    assegurada a plenitude da condio humana, todo homem capaz de juzo

    poltico e o consenso do apoio ao poder deixa de ser algo fictcio.

    Quando se estuda o pensamento de um autor, bvio que o

    objetivo deve ser compreend-lo o mais fielmente possvel e no procurar

    derrub-lo, apontar-lhe eventuais inconsistncias como se ali estivesse o cerne

    da questo. Caso contrrio, no h sentido em t-lo escolhido como guia para

    questionar este ou aquele problema. Da que, se algumas contradies

    menores foram aqui observadas dentro da obra de Hannah Arendt, isso se

    deve tentativa de melhor esclarec-las, mesmo que apenas para alertar quem

    porventura queira estudar pessoalmente sua obra, que no nada fcil. Muitos

    dos problemas e perplexidades que tivemos, parece-nos, podem assim serevitados.

    No mesmo sentido, certo que Arendt no se insere entre os

    assim chamados positivistas uma espcie de mistura de posies legalistas,

    normativistas, realistas nem os pontos de vista destes entre os quais a

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    nsia pela consistncia lhe devem ser aplicados se o propsito sincero de

    fato compreend-la. No obstante, em que pesem o que nos parecem diversos

    erros ou exageros do positivismo, mormente em sua feio jusfilosfica,

    muitas de suas contribuies tm sido postas de lado no calor dos debates; aprpria Arendt pode ser chamada positivista em mais de um sentido, muito

    embora o tom geral de sua obra e a conotao corrente do termo positivista

    no permitam exatamente classific-la como tal. Mas diante do

    jusnaturalismo, por exemplo, a recusa de critrio transcendente ou legalidade

    superior bem que justifica o ttulo.

    Algumas crticas positivistas, como chamadas aqui, parecem de

    bom alvitre, apesar de tudo, no porque se queira emprestar a Hannah Arendt

    estilos de pensamento que lhe so estranhos ou exigir-lhe uma consistncia

    com que no achou por bem se preocupar. O que interessa, nesta parte,

    examinar alguns pontos mais fracos ou no devidamente esclarecidos, talvez

    sob uma ptica positivista, simplesmente na medida em que, nossa opinio,

    prejudicam a compreenso e obscurecem a contribuio da autora sem

    dvida notvel para a filosofia do direito e, especificamente, para o

    problema da legitimidade do poder.

    Arendt exclui a fora e a violncia do conceito de poder,

    denuncia a manipulao da opinio e a incapacidade para pensar como

    ameaas permanentes ao homem moderno e rejeita a burocracia e o sistema

    de partidos como distores inadequadas. Contudo, a defesa da necessidadedo direito (principalmente o legislado), se bem que perfeitamente vivel,

    deixa de lado a discusso de se essas fronteiras de apoio no podem encobrir e

    proteger os interesses de uma elite dominante, estabilizando sua

    predominncia, ao invs de somente delimitar o espao das aparncias.

    Arendt sempre se refere ao direito positivo e lei como se tivessem de fato os

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    caracteres que lhes so geralmente atribudos pela dogmtica jurdica, quais

    sejam, objetividade, imparcialidade, igualdade e outros; a histria do direito

    revela que tais atributos so contingentes e que o papel do ordenamento

    jurdico na poltica no to neutro assim. Muito embora deixe claro que a leino suficiente para garantir o poder legtimo, a autora no atenta para o fato

    de que esta mesma lei, ainda que no necessariamente, pode prejudicar e at

    subverter as condies reais da poltica. Na mesma direo, se bem que tenha

    plena conscincia das profundas diferenas entre a legalidade antiga e a

    moderna, Hannah Arendt no se dedica ao fenmeno da positivao do

    direito.

    De outro lado, sua insistncia sobre as capacidades individuais e

    o carter nico de cada ser humano, cada ao, cada juzo particular pode

    levar a concluses apressadas quanto a um excessivo individualismo. Mas se

    tem em conta o conceito de poder de Hannah Arendt, a impresso logo

    dissipada: no importa o quo corretos ou adequados sejam o meu prprio

    juzo ou ao, sua significao poltica vai depender da persuaso, do

    exemplo, em suma, do nmero daqueles que compartilham de perspectiva

    semelhante. Ainda se pode procurar espao na mesma caracterstica do

    pensamento de Hannah Arendt para enxergar ali um certo elitismo filosfico,

    a despeito das defesas que faz da igualdade da esfera poltica e de afirmar

    expressamente que a elite poltica, aqueles que desejam participar, no se

    confunde com a elite econmica, social, intelectual ou quaisquer outras. A

    questo no simples: escaldada pelo sucesso do nazismo, Arendt demonstraclaramente seu receio diante da possibilidade de manipulao das massas por

    minorias organizadas, padres de conduta ou disciplina, propaganda

    ideolgica, etc., inclusive em governos que nada tm de totalitrios. Se h

    aqui uma aristocracia latente, porque Arendt parece realmente acreditar

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    tm sido feitas de prometer em Arendt, nem sempre presentes. O pacto

    poltico bem leonino, h que se reconhecer, a desigualdade de oportunidades

    muito grande e a liberdade de escolha sabidamente fictcia. No s o fato

    de nascerem submetidos a pactos polticos que faz os homens aceitarem asregras do jogo, o amor pelas instituies parece-nos visivelmente mais frgil

    do que a leitura de Hannah Arendt pode dar a perceber.

    Falaremos tambm da expanso na rbita de interferncia do

    Estado contemporneo e a crescente complexidade do ordenamento jurdico a

    ele vinculado, que tm revelado terreno propcio para o que se pode chamar

    de alienao poltica em seu sentido mais literal: os processos decisrios, e

    muitas vezes o prprio contedo das decises, so simplesmente

    incompreensveis para a maior parte dos destinatrios, os quais so

    transformados em terceiros no-interessados na conduo desses processos de

    deciso, tendo sua opinio pressuposta e manipulada das mais diversas

    maneiras. A teoria crtica do direito, tanto em nvel da teoria geral quanto da

    sociologia, tm feito preciosas incurses neste tema, inclusive no Brasil.

    Num contexto sofisticado a ponto de a mquina governamental

    poder manipular dados e informaes e moldar opinies no sentido de obter

    aceitao para decises ainda indeterminadas quanto ao seu contedo,

    significativo observar que Arendt defende uma das raras teorias polticas

    contemporneas que se aferra a um certo contedo tico na delimitao do

    conceito de legitimidade, chegando mesmo a uma ontologia do social eprincipalmente do poltico. Reportando-se a instncias de contedo definido,

    Hannah Arendt insurge-se contra as tendncias contemporneas das cincias

    sociais, pois critica igualmente as analises weberianas, marxistas ou

    funcionalistas dominantes.

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    O poder, atravs da dominao poltica para o bem ou para o

    mal foram mais e mais posto em dvida e esvaziado das instncias de

    referncia que forneciam seu contedo axiolgico. Veremos tambm que as

    condies mais complexas das sociedades modernas exigiram uma ampliaodos servios do Estado e como o monoplio da produo de normas jurdicas

    foi provocando a positivao do direito e a supremacia da lei, fenmenos que

    certamente punham prova os smbolos de legitimidade herdados dos tempos

    passados. Com Max Weber, a questo da legitimidade ganha suas feies

    atuais e passa a ser vista em termos de legitimao.

    tambm Weber o primeiro a se debruar sobre o problema da

    legitimidade sob o prisma voltado para a nova realidade de um Direito

    legislado e positivado, tratando sistematicamente a legitimao do poder: a

    legitimidade vista no como um conceito que designe algo mas como uma

    relao, uma relao graas qual o poder puro e simples se torna dominao.

    Por fim, do Direito, uma das pedras basilares da dissertao,

    podemos entender que dentre as cincias sociais, a que mais sofre com a

    falta de padres objetivos para conduo dos conflitos, quase que abdicando

    de sua dignidade cientfica e transformando-se em mera tecnologia social.

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    2. O QUE AUTORIDADE?

    2.1. A acepo filosfica do termo

    Entende-se por autoridade qualquer poder exercido sobre um

    homem ou grupo humano por outro homem ou grupo. Esse termo

    generalssimo e no se refere somente ao poder poltico. A autoridade ,

    portanto, qualquer poder de controle das opinies e dos comportamentos

    individuais ou coletivos, a quem quer que pertena esse poder17.

    O problema filosfico da Autoridade diz respeito sua

    justificao, isto , ao fundamento sobre o qual pode apoiar-se sua validade.

    Podem-se distinguir as seguintes doutrinas fundamentais:

    1 - o fundamento da autoridade a natureza;

    2 - o fundamento da autoridade a divindade;

    3 - o fundamento da autoridade so os homens, isto , o

    consenso daqueles mesmos sobre os quais ela exercida.

    A primeira teoria segundo a qual a autoridade foi estabelecida

    pela natureza a aristocrtica, comum a Platoe a Aristteles. Segundo essa

    teoria, a autoridade deve pertencer aos melhores e a natureza quem se

    incumbe de decidir quem so os melhores. Plato, de fato, divide os homensem duas classes: os que so capazes de se tornarem filsofos e os que no o

    so18. Os primeiros so movidos naturalmente por uma tendncia irresistvel

    17Nicola Abbagnano, Dicionrio de Filosofia, pg. 98.18Repblica, VI, 484 b.

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    verdade19 ; os segundos so naturezas vis e iliberais que nada tm em

    comum com a Filosofia20. A diviso entre os que esto destinados a possuir e

    a exercer a autoridade e os que esto destinados a se lhes ser submetidos ,

    portanto, feita pela natureza; a educao dos filsofos no faz senosalvaguardar e desenvolver o que a natureza disps. Essa desigualdade radical

    dos homens como fundamento natural da autoridade tambm a doutrina de

    Aristteles.

    A prpria natureza ofereceu um critrio discriminativo

    fazendo que dentro de um mesmo gnero de pessoas se

    estabelecessem as diferenas entre os jovens e os velhos; e,

    entre estes, a uns incumbe obedecer, a outros mandar...21

    Mas a diferena entre jovens e velhos temporria; os jovens

    ficaro velhos e, por sua vez, comandaro. A diferena substancial e

    fundamental entre o pequeno nmero de cidados dotados de virtudes

    polticas, sendo, portanto, justo que se alternem no governo, e a maioria dos

    cidados comuns, desprovidos daquelas virtudes e destinados a obedecer22. O

    teorema fundamental dessa concepo de autoridade , portanto, a diviso

    natural dos cidados em duas classes, das quais s uma possui como apangio

    natural o direito de exercer a autoridade. Desse ponto de vista, o critrio de

    distino das duas classes tem pouca importncia: o importante a distino.

    Todos os aristocratismos tm em comum esse teorema e essa concepo da

    autoridade: encontram-se, por exemplo, no racismo, bem como em Tnnies,segundo o qual h trs espcies de dignidade ou autoridade: A dignidade da

    19Ibid., 485 c.20Ibid., 486 b.21Poltica, 1.333 a.22Ibid., II, 2, 1.261 a.

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    Deus, como do primeiro dominante, deriva todo domnio27. Essa concepo

    coincide com a primeira num carter negativo, isto , em tornar a autoridade

    totalmente independente do consenso dos sditos. Mas distingue-se da

    primeira num carter fundamental: justifica toda autoridade que seja exercidade facto. Enquanto a primeira no exige que a classe destinada a mandar

    mande sempre de fato (e para Plato, com efeito, a questo no se formula

    assim), a segunda, ao contrrio, implica que toda autoridade que de fato seja

    exercida, tendo sido disposta ou estabelecida por Deus, sempre plenamente

    legtima. Este o teorema tpico da concepo em tela: teorema que permite

    reconhec-la mesmo nas formas mais ou menos conscientemente mistificadas.

    Quando, por exemplo,Hegelafirma que o Estado a realizao

    da liberdade ou o ingresso de Deus no mundo 28 , estabelece uma

    coincidncia entre aquela que, para ele a mais elevada e a realidade histrica

    do Estado,isto , justifica qualquer poder de fato, segundo a mxima de sua

    filosofia: Entender o que , tarefa da razo, porque o que , razo29.

    Segundo esse ponto de vista, autoridade e fora coincidem: quem possui fora

    para impor-se no pode deixar de gozar de uma autoridade vlida, j que toda

    fora desejada por Deus ou divina.

    A terceira concepo de autoridade ope-se precisamente a esse

    teorema. A autoridade no consiste em posse de uma fora, mas no direito de

    exerc-la; tal direito deriva do consenso daqueles sobre quem ela exercida.

    Essa doutrina nasceu com os esticos e seu primeiro grande expositor foiCcero. Seu pressuposto fundamental a negao da desigualdade entre os

    homens. Todos os homens receberam da natureza a razo, isto , a verdadeira

    lei que comanda e probe retamente; por isso, todos so livres e iguais por

    27De regimine principium, III, 1.28Filosofia do Direito, 258, adendo.29Ibid., pref.

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    natureza30. Assim sendo, s dos prprios homens, da sua vontade concorde

    podem originar-se o fundamento e o princpio da autoridade. Ccero achava

    que s um estado assim pode ser chamado legitimamente de repblica, isto ,

    coisa do povo. Mas s vezes o reconhecimento de que a fonte da autoridadeest no povo une-se ao reconhecimento do carter absoluto da prpria

    autoridade. Isso acontece noDigesto, em que Ulpiano diz: O que agradou ao

    prncipe tem valor de lei, mas acrescenta imediatamente: porquanto foi com

    a lei rgia, com que se regulamentou o poder dele, que o povo lhe conferiu

    toda a sua autoridade e todo o seu poder31.

    Um dos teoremas tpicos desse ponto de vista o carter de lei

    que se reconhece nos costumes: de fato, se as leis no tm outro fundamento

    seno o juzo do povo, as leis que o prprio povo aprovou, mesmo sem

    escrever, tm o mesmo valor das que foram escritas32. Os grandes juristas do

    Digesto admitiam, portanto, que a nica fonte da autoridade era o povo

    romano. Foi essa a forma assumida, na Idade Mdia, pela doutrina do

    fundamento humano da autoridade. Diz Dante: O povo romano, por direito e

    no por usurpao, assumiu a tarefa do monarca, que se chama imprio, sobre

    todos os mortais33 . Do mesmo modo, Ockham afirmava que o imprio

    romano foi certamente institudo por Deus, mas atravs dos homens, isto ,

    por intermdio dos romanos34.

    No mundo moderno, o predomnio do contratualismo e do

    jusnaturalismo determinam o predomnio dessa doutrina. E, embora hoje ocontratualismo e o jusnaturalismo no possam ser invocados como

    justificaes suficientes do Estado e do Direito, a tese da origem humana da

    30De legibus, I, 10, 28; 12, 33.31Digesto, I, 4, 1.32Ibid., I, 3, 32.33De Mon., II, 3.34Dialogus inter magistrum et discipulum, III, tract. II, lib. I, cap. 27, em GOLDAST, Monarchia, II, p. 899.

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    autoridade no posta em dvida. A prpria doutrina de Kelsen, ao atribuir a

    autoridade ordenao jurdica, no mais do que uma especificao da tese

    tradicional. Diz Kelsen:

    O indivduo que ou tem autoridade deve ter recebido o

    direito de promulgar ordens obrigatrias, de modo que outros

    indivduos sejam obrigados a obedecer. Tal direito ou poder

    pode ser conferido a um indivduo somente por uma

    ordenao normativa. A autoridade , portanto,

    originariamente, a caracterstica de um ordenamento

    normativo35.

    De qualquer forma, a autoridade em Filosofia representa a voz da

    tradio religiosa, moral, poltica ou mesmo filosfica; e mesmo quando no

    se apia na fora das instituies polticas que nela se fundam, essa voz age

    sobre a pesquisa filosfica tanto de forma explcita, com o prestgio que

    confere s teses que apia, quanto de forma sub-reptcia e disfarada,

    impedindo e limitando a indagao e prescrevendo ignorncia e tabus36.

    2.2. A acepo do termo autoridade para Hannah

    Arendt

    A palavra autoridade deriva do verbo latino augere aumentar,acrescentar e, como observa Hannah Arendt, foram os romanos que nos

    deram tanto o conceito quanto a palavra. De fato, os gregos procuraram

    estabelecer um fundamento para a vida pblica que no fosse apenas a

    35General Theory of Law and State, 1945, II, cap. VI, C, h, p. 389.36Nicola Abbagnano, Dicionrio de Filosofia, p. 98-100.

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    argumentao ou a fora, mas tanto Plato quanto Aristteles se utilizaram de

    conceitos pr-polticos para a anlise do problema ao transferirem, por

    analogia, para o campo da Poltica as relaes pais-filhos, senhor-escravo,

    pastor-rebanho, etc., que no eram relaes entre iguais como as que devemnortear a vida poltica.

    A busca deste fundamento , sem dvida, complicada porque

    autoridade envolve obedincia, e, no entanto, exclui coero, pois quando

    ocorre o emprego da fora, da violncia, no existe autoridade. Por outro lado,

    por envolver obedincia, autoridade se situa no campo da hierarquia e,

    conseqentemente, exclui a persuaso igualitria que anima o dilogo

    poltico. Apesar desta dificuldade, deste fundamento indispensvel porque,

    num determinado momento, o processo poltico exige uma escolha entre

    diversos argumentos. Este momento, que o momento do poder, resulta do

    agir em conjunto que, no entanto, requer, para ser estvel, legitimidade.

    Esta legitimidade deriva do incio da ao conjunta, cujo

    desdobramento assinala a existncia de uma comunidade poltica. O incio da

    ao conjunta a fundao confere autoridade ao poder. No contexto do

    conceito romano, cujo grande achado foi o de ter ancorado o conceito de

    autoridade no fato poltico do incio da ao conjunta, o que a ao poltica

    faz acrescentar, atravs dos feitos e acontecimentos, importncia fundao

    da comunidade poltica e vida s instituies. por isso que em Roma o

    poder estava com o povo, mas a autoridade residia no Senado, dotado degra