polÍtica de defesa na democracia brasileira
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ADRIANO PORTELLA DE AMORIM
POLÍTICA DE DEFESA NA DEMOCRACIA BRASILEIRA:
DESAFIO AO DIREITO E AO POLÍTICO
Dissertação apresentada como requisito parcial
para a conclusão do Programa de Mestrado em
Direito e Políticas Públicas do Centro de
Ensino Universitário de Brasília (UniCEUB)
Orientador: Prof. Dr. Roberto A. R. de Aguiar
BRASÍLIA
2008
3
Agradeço aos professores Roberto A. R. de Aguiar, Frederico A. B. da Silva, Luiz Eduardo L. de Abreu e José Levi M. do Amaral Júnior, pelo convívio fraterno e pela oportunidade de conhecer diferentes percepções.
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RESUMO
Recentemente foi aprovada a política de defesa nacional, que traz os conceitos de segurança e defesa, indicando a forma de atuação do Brasil. O presente trabalho tem o objetivo de analisar os fundamentos dessa política, os mecanismos de elaboração e transformação de situação em problema, além da viabilidade de implementar medidas, articular com outras políticas públicas e compor interesses em torno de questões que transcendem as ações transitórias de governo, dando ênfase à relevância de estabelecer uma estratégia de longo prazo da qual participem todos os atores políticos e sociais, inclusive no processo de integração da América do Sul, destacando o fato de que a política de defesa nacional não se circunscreve apenas ao campo militar. A metodologia abordará estudos doutrinários e a legislação que trata da matéria, estabelecendo-se construção interpretativa para demonstrar a singularidade do tema e a possibilidade de deturpação de seus aspectos práticos, na linha de que o debate democrático contribuirá para a formulação, o aperfeiçoamento e a aplicação das regras de direito correspondentes. Palavras-chaves: Direito. Democracia. Segurança e defesa nacionais. Políticas públicas.
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ABSTRACT
Recently approved was the policy of national defense, which brings the concepts of security and defence, indicating the manner of performance of Brazil. This study aims to examine the reasons for the policy, the mechanisms for producing, processing of a problem situation, in addition to the feasibility of implementing measures, in conjunction with other public policies and the ability to compose interests around issues that transcend the actions of transitional government, emphasizing the importance of establishing a long-term strategy which involved all political and social actors, including in the process of integration of South America, highlighting the fact that the policy of national defense is not limited only the military field. The methodology will address doctrinal studies and legislation dealing with the matter, setting up construction interpretative to demonstrate the uniqueness of the subject and the possibility of misrepresentation of its practical aspects, in line with the democratic debate that will contribute to the development, improvement and enforcement of law involved. Keywords: Law. Democracy. Security and national defense. Public policies.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 7 – 12
1 COMPOSIÇÃO DE ASSIMETRIAS ............................................................ 13 – 92
1.1 Escudo metafórico: a soberania ................................................................. 18 – 31
1.1.1 Soberania, lei, ordem e Forças Armadas ................................................. 31 – 43
1.2 Segurança e suspensão da beligerância explícita ................................... 43 – 51
1.3 Democracia: noções e distorções ................................................................ 51 – 91
1.3.1 O que é democracia? ................................................................................. 51 – 67
1.3.2 Desafios democráticos ............................................................................... 67 – 91
1.4 Incompatibilidades e convergências .......................................................... 91 – 92
2 POLÍTICA DE DEFESA BRASILEIRA ..................................................... 93 – 192
2.1 Defesa na consolidação da democracia ....................................................... 95 – 97
2.1.1 A mudança de um modelo ......................................................................... 97 – 119
2.1.2 Ruptura com o senso comum .................................................................... 119 – 123
2.1.3 Consenso e cooperação: desafio além do programático .......................... 123 – 131
2.2 Defesa e segurança na política brasileira .................................................. 131 – 139
2.2.1 Problema político-estratégico .................................................................... 139 – 172
2.2.2 Defesa e mobilização nacional .................................................................. 172 – 192
3 DEFESA E INTEGRAÇÃO .......................................................................... 193 – 238
3.1 Direito comunitário, direito internacional, globalização e soberania ..... 194 – 214
3.2 Mercosul, agenda externa brasileira e integração .................................... 214 – 226
3.3 Política de defesa brasileira e integração sul-americana ......................... 226 – 240
CONCLUSÃO ..................................................................................................... 241 – 249 REFERÊNCIAS .................................................................................................. 250 – 258
7
INTRODUÇÃO
Democracia, soberania, segurança e defesa trespassam o direito e a política.
Esses temas estão inter-relacionados e, ao mesmo tempo, são conflitantes e assimétricos,
tendo em vista os questionamentos que decorrem da teoria e da experimentação prática, cuja
relevância se revela e se amplia na atualidade marcada pela multiplicidade de fatores como a
velocidade dos acontecimentos, a busca frenética da realização pessoal, a internacionalização
do comércio e da economia, a fragilização do trabalho, os dilemas e demandas sociais que
determinam a mudança na forma de governar, a falta de reconhecimento do outro, a redução
da legitimidade dos Estados em estabelecer e controlar o curso de suas ações, a dificuldade de
compor consensos voltados ao bem-comum, a crescente desconfiança no político e no
invólucro democrático que oculta ou dissimula tendências totalitárias e a sofisticação com que
estratégias persuasivas e dissuasórias são postas em prática.
Nesse contexto, soberania, segurança, democracia e defesa ganham variados
contornos na medida em que, vistos em conjunto e elevados na pauta dos debates políticos,
sociais, técnicos e acadêmicos, podem desvelar assimetrias capazes de tornar esses
tradicionais conceitos dissonantes entre si, levando ao direito e ao político desafios de nova
ordem fundamentada na construção de entendimentos a partir da multiplicidade e da
pluralidade de atores e de interesses em conflito. É, pois, da observação desses elementos que
se revela pertinente estudar a política de defesa nacional brasileira.
No Brasil, recentemente foi editado o Decreto no 5.484, de 30 de junho de
20051, por meio do qual foi aprovada a Política de Defesa Nacional. Trata-se do primeiro ato
formal do poder público a respeito do assunto. Quais os fundamentos de uma política dessa
natureza? Como articular a política de defesa com outras políticas públicas? Será possível, no
1 Publicado no Diário Oficial da União de 1o de julho de 2005.
8
jogo do poder, conciliar ou harmonizar interesses em torno de questões que transcendem as
meras políticas de governo, para projetar uma estratégia de longo prazo, da qual participem
todos os atores políticos e sociais? Essas são algumas das inquietações que permeiam o
presente trabalho, que tem o objetivo de colocar em discussão determinados aspectos
conceituais para melhor compreender os mecanismos de elaboração, de transformação de
situação em problema, de legitimidade para a formulação e o aperfeiçoamento de políticas no
cenário da democracia brasileira.
A ponderação dessas questões leva a uma ruptura com o senso comum, na
medida em que situa a política de defesa nacional além do campo militar, do beligerante, do
uso da força ou da violência legalizada. O tema tem previsão constitucional posto que o
constituinte de 1988, na organização político-administrativa do Estado, atribuiu competência
exclusiva à União para “assegurar a defesa nacional”2. Não obstante, é preciso perquirir em
que consiste a defesa nacional. Trata-se de defender o que de quem? É uma atividade
exclusiva das Forças Armadas e dos órgãos de segurança pública? E os demais atores
públicos e sociais? Como funciona a defesa nacional no Estado Democrático de Direito? O
que pode ser entendido por segurança e qual a sua ligação com a defesa?
Em 1990, na cidade de Tashkent, capital do Uzbequistão, especialistas
reunidos a pedido da Organização das Nações Unidas (ONU) definiram segurança como
“uma condição pela qual os Estados consideram que não existe perigo de uma agressão
militar, pressões políticas ou coerção econômica, de maneira que podem dedicar-se
livremente a seu próprio desenvolvimento e progresso”3. Basta um olhar sobre os
acontecimentos da contemporaneidade para perceber que esse estado de segurança ainda não
é vivenciado – senão por toda – pelo menos por boa parte da humanidade. Ao contrário,
verifica-se que nos âmbitos interno e externo o uso da força, a ingerência política e a
2 Nos termos do inc. III do art. 21 da Constituição Federal de 1988. 3 Extraído das disposições do tópico “1. O Estado, a Segurança e a Defesa”, da Política de Defesa Nacional.
9
influência econômica funcionam em favor de poucos como instrumentos de opressão e, por
conseguinte, de obstáculo ao livre desenvolvimento e progresso dos povos que, dentre outros
dilemas, estão sujeitos a novas formas de colonialismo que se instala e se desenvolve no
território fragmentado de cada país ou nação. Nesse sentido, a colocação de Virilio (1984, p.
92) é precisa: “Não é mais a exocolonização (a era da conquista extensiva do mundo), mas a
era da intensidade e da endocolonização. Agora só se coloniza a própria população. Apenas se
subdesenvolve a própria economia civil”. A insegurança gera a crescente busca pela defesa
que traz consigo a desconfiança, o estranhamento entre os Estados e as pessoas. Esse modelo
precisa ser superado. Um dos caminhos passa pela reformulação das percepções do conceito
de defesa, especialmente no que tange aos aspectos de estratégia.
Tomada a definição trazida pela ONU, a política de defesa brasileira
estabeleceu o que, para o país, deve ser entendido por segurança e por defesa. Segurança
consistiria num conjunto de fatores que possibilitariam a preservação da soberania e da
integridade territorial, bem como a consecução dos interesses da nação sem qualquer tipo de
pressões e ameaças, garantindo-se aos cidadãos o exercício dos direitos e deveres
constitucionais. Por outro lado, a defesa seria composta por medidas e ações do Estado,
notadamente representado pela atuação do campo militar para a proteção do território, da
soberania e dos interesses nacionais contra ameaças preponderantemente externas, potenciais
ou manifestas. Note-se que os temas de segurança e defesa são tratados como atribuições
distintas, mas não diametralmente opostas ou dissociadas, lembrando que a primeira supera a
visão exclusivamente voltada aos assuntos de segurança pública, de natureza policial
preventiva e persecutória. Daí decorre, por mais paradoxal que possa parecer, a dificuldade de
estabelecer correlações conceituais e de natureza prática. Logo, o conceito de defesa não
encerra a simples idéia de atuação de forças armadas regulares para o fim de preservar a
10
soberania do país, garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem4. Não é tarefa fácil
identificar as razões que fundamentaram os atuais conceitos de segurança e defesa, ainda mais
quando o poder público os coloca separadamente. Depreende-se que, por força das
circunstâncias e da velocidade dos fatos, aqueles conceitos foram modificados e ampliados ao
longo do tempo, passando da simples idéia de confrontação entre países, de natureza de
defesa externa, bélica, a abranger, indissociavelmente, os campos político, jurídico, militar,
econômico, social e ambiental, entre outros5.
Ao diferenciar segurança de defesa, o Poder Executivo Federal assinalou
que a primeiro tem por princípio preservar o Estado, a sociedade e os indivíduos de riscos ou
ameaças, ao tempo em que a segunda tem por pressuposto manter o grau desejado de
segurança6. Qual será essa medida? Quem emite essa decisão? Como se opera, senão por
meio de políticas públicas e do uso não-instrumental do direito? Considerado que a desejada
segurança é um processo, um caminhar ao longo do tempo em face do qual o poder público
não detém amplo domínio, há de se conceber que a segurança é o fundamento da defesa, ao
tempo em que ambas devem ser consideradas mecanismos de políticas públicas
indissociáveis, podendo-se admitir que seus atores exerçam atividades diferentes, porém
complementares e interdependentes.
Um questionamento preparatório: pela segurança será possível conquistar a
defesa? A segurança corresponderia a uma situação de estabilidade política e institucional.
Em tese proporcionaria desenvolvimento e progresso com distribuição de riqueza e de
oportunidades. A defesa nacional, construída com base em medidas e ações do Estado, de
forte – mas não exclusiva – conotação militar, estaria dirigida, em boa parte, a atuar contra
ameaças externas de natureza bélica ou não. Todavia, a defesa precisa se aproximar de
4 Nos termos da previsão contida no caput do art. 142 da Constituição Federal de 1988. 5 Conforme as disposições do tópico “1. O Estado, a Segurança e a Defesa”, da Política de Defesa Nacional. 6 O grau de segurança não pode ser deslocado dos fundamentos que dão corpo ao Estado Democrático de
Direito, nos termos do art. 1o da Constituição Federal de 1988.
11
políticas públicas destinadas à consecução do estado democrático de direito. Somente
mediante o efetivo e continuado exercício dos fundamentos de cidadania, de dignidade da
pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político, o
Estado e a sociedade terão os legítimos instrumentos de sustentação de adequadas políticas
que assegurem a defesa nacional.
O presente trabalho terá por escopo abordar a política de defesa brasileira,
estabelecendo, sempre que possível, a correlação com as demais políticas públicas voltadas à
garantia dos direitos e garantias fundamentais, com o propósito de demonstrar que os
mecanismos e ações afetos à defesa estão condicionados à efetividade da segurança – também
no sentido de bem-estar social –, realizáveis, por conseguinte, por meio dos postulados do
estado democrático de direito. Portanto, será discutida a natureza transdisciplinar dos
conceitos de defesa e segurança, enfatizando-se a necessidade da combinação do direito com
as políticas públicas, de modo a que defesa e segurança não se reservem a fatias privilegiadas
da sociedade ou a projetos de poder pelo poder, mas que representem algo mais amplo.
Nessa ordem de idéias, o fio condutor da pesquisa conduz a uma
interdependência dos temas segurança e defesa na simbiose que se amplia e se dispersa na
complexa teia de relações e interesses internos e externos, cujos múltiplos efeitos trespassam
as diversidades culturais, econômicas e valorativas de todos os atores sociais que – queiram
ou não – estão envolvidos, influenciam ou se deixam conduzir pelas questões afetas à
problematização ora proposta.
Cumpre registrar que o presente trabalho, para o propósito a que se destina,
sofrerá considerável limitação de abordagem, tendo em vista que são de acesso restrito as
informações detalhadas que dizem respeito ao tema. Pretende-se que futura abordagem possa
discutir variáveis estratégicas, reaparelhamento das Forças Armadas, orçamento para a área de
defesa, incentivos à indústria nacional e estrutura organizacional do Ministério da Defesa.
12
Observados os objetivos propostos, o método expositivo-descritivo de
abordagem consistirá na discussão das questões que permeiam o tema, estruturado que foi em
três capítulos. No primeiro, serão abordadas a soberania e a segurança, como também as
noções, distorções e desafios da democracia. O segundo capítulo será dedicado à política de
defesa brasileira, passando pela inserção do tema na consolidação da democracia, a mudança
do modelo e a ruptura com o senso comum, assinalando a necessidade de consenso e
cooperação para o fim de superar o problema político-estratégico que se coloca diante do
direito e do poder político, discutindo os aspectos conceituais. Essas colocações preliminares
darão ensejo às ponderações de como a defesa pode ser pensada e os reflexos na elaboração
de políticas públicas, tecendo-se comentários à recente lei de mobilização nacional. O terceiro
e último capítulo abordará a defesa vista a partir do processo de integração regional da
América do Sul, sob o pressuposto do fortalecimento da democracia, da formação de
consensos e de colaborações para a manutenção do ambiente de paz indutor de
desenvolvimento e progresso.
Por fim, convém esclarecer que as percepções de Estado e de constituição
presentes neste trabalho são intimamente dependentes do poder político outorgado pela
soberania popular, de tal modo que um e outro não excluem ou mitigam a essência da força
anterior da vontade do povo.
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1 COMPOSIÇÃO DE ASSIMETRIAS
A Carta Política de 1988 atribuiu ao Brasil a natureza de república
constituída sob as regras do estado democrático de direito7, sob o fundamento da soberania,
da cidadania, da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa e do pluralismo político8. No regime democrático representativo o poder emana no
povo9, que outorga a seus representantes a soberania originária na forma dos poderes da
entidade estatal, denominada União, a compreender o Legislativo, o Executivo e o Judiciário10
que são poderes teoricamente independentes e harmônicos, na aproximação do modelo
delineado por Montesquieu (1995, p. 190), embora esse autor defendesse a existência de um
poder regulador para moderar os dois primeiros. Esse modelo não é meramente formal, pois a
representatividade da organização política precisa ser compreendida como fenômeno que
decorre da vontade popular que lhe precede.
Certamente, a consecução dos princípios fundamentais em que se alicerça o
atual Estado brasileiro depende da capacidade de construir uma sociedade livre, justa e
solidária, de garantir o desenvolvimento nacional, de erradicar a pobreza e a marginalização e
de reduzir as desigualdades sociais e regionais, tudo com o fim idealizado de promover o bem
de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de
discriminação11. Interligadas a esses postulados de natureza predominantemente interna que
dependem da concretude da função social do direito estão as relações internacionais do país,
as quais são pautadas nos princípios de independência nacional, de prevalência dos direitos
humanos, de autodeterminação dos povos, de não-intervenção, de igualdade entre os Estados,
de defesa da paz, de solução pacífica dos conflitos, de repúdio ao terrorismo e ao racismo, de
7 Cf. art. 1o da Constituição Federal de 1988. 8 Cf. art. 1o, I a V da Constituição Federal de 1988. 9 Cf. art. 1o, parágrafo único da Constituição Federal de 1988. 10 Cf. art. 2o da Constituição Federal de 1988. 11 Cf. art. 3o, I a IV da Constituição Federal de 1988.
14
cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e de concessão de asilo político12,
sem esquecer a busca pela integração econômica, política, social e cultural dos povos da
América Latina, no intuito de formar uma comunidade latino-americana de nações13. Esse
arcabouço político-jurídico precisa ser resgatado e repensado no contexto da política de
defesa baseada em princípios democráticos. A previsão constitucional desses postulados
constitui obra intelectual originada, com exclusividade, dos constituintes brasileiros? Não, é
claro. Esses princípios fundamentais refletem o consenso das nações que adotaram a
democracia a partir do reconhecimento dos direitos do homem e do cidadão, em que pese sua
efetiva aplicação não gozar dos amplos efeitos práticos almejados. Contudo, essa inspiração
humanitária – cujos traços se alinham ao pensamento predominante da Revolução Americana
de 1776, ao pensamento filosófico do movimento iluminista surgido na segunda metade do
século XVIII e aos ideais da Revolução Francesa de 1789 a 1799 – não afasta as ameaças
efetivas ou potenciais de natureza bélica, política, econômica, tecnológica e ambiental, todas
interligadas a interesses que escapam do conhecimento dos cidadãos e, até mesmo, do alcance
e do controle dos Estados.
Por conseguinte, a plena satisfação dos postulados adotados pelo Brasil
requer vigilância permanente, de responsabilidade de todas as pessoas, associada a um
sistema político-normativo capaz de enfrentar e formular alternativas com legitimidade para
resolver ou, no mínimo, compor consensual e eqüitativamente os inumeráveis conflitos
decorrentes da sobreposição de interesses e das tensões que se estabelecem entre os diversos
atores políticos e sociais, tanto no âmbito interno dos países quanto em suas variáveis
internacionais, reconhecendo-se a influência da velocidade nas relações cada vez mais
globalizadas, onde as noções de espaço e território ganham, na contemporaneidade,
conotações que desafiam o alcance convencional do direito e a atuação do poder político.
12 Cf. art. 4o da Constituição Federal de 1988. 13 Cf. art. 4o, parágrafo único da Constituição Federal de 1988.
15
Dessa maneira, no estado democrático de direito a defesa nacional
transcende a convencional idéia de atuação de forças armadas regulares contra uma ameaça
ou um perigo externo efetivo ou potencial, preponderantemente bélico ou, internamente, em
face de um inimigo ideológico, subversivo, que ameaça o regime, o sistema de governo ou o
poder político que dirige o país. Na organização político-administrativa do Estado, o
constituinte de 1988 atribuiu à União a competência para “assegurar a defesa nacional”. Essa
expressão14 requer interpretação jurídica mais ampla para o fim de compreender o conjunto de
responsabilidades que a sociedade e o poder público têm para com os continuados
procedimentos destinados a resolver os conflitos e as tensões que determinam ou influenciam
a vulnerabilidade do país, a abranger as relações com outras nações, como também – e quiçá
principalmente – as demandas e os problemas de ordem interna que decorrem dos
antagonismos da sociedade, os quais determinam as mazelas sociais que em boa parte
decorrem da falta do reconhecimento do outro.
Transcorridas duas décadas de regime de exceção e dezessete anos de
democracia15, o governo brasileiro formalmente editou, na forma de decreto presidencial16, a
política de defesa nacional. É interessante notar que esse ato normativo autônomo foi incluído
no ordenamento jurídico brasileiro não obstante a previsão constitucional dos princípios que
submetem o país à autodeterminação dos povos, à igualdade entre os Estados, à defesa da paz
e à solução pacífica dos conflitos. A análise da política de defesa precisa ser feita a partir do
contexto político-jurídico no qual está inserida, observando-se a recente transição do regime
de exceção para o democrático, bem como os temas conexos à matéria, dentre os quais a
14 Cf. art. 21, III da Constituição Federal de 1988. 15 Período considerado a partir da atual Carta Política, promulgada pela Assembléia Nacional Constituinte em 5
de outubro de 1988. 16 A política de defesa nacional foi provada pelo Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005, e entrou em vigor no
dia 1o de julho de 2005. Anteriormente, em 1996, a Revista Parcerias Estratégicas publicou o “Documento sobre Política de Defesa Nacional”, o que se pode chamar de as primeiras linhas da atual política de defesa (Revista Parcerias Estratégicas, v. 1 – no 2 – Dez./1996, p. 7-15 e 16-18, editada pela Secretaria de Assuntos Estratégicos e pelo Centro de Estudos Estratégicos da Presidência da República).
16
perplexidade com que se depara a soberania, a dependência entre segurança e defesa, além da
instrumentalidade dos meios militares, ou seja, do emprego de forças armadas regulares como
uma vertente do poder político, que pode ser dirigido à proteção, à restauração ou à
construção de um dado direito.
A formulação de uma política de defesa parte do pressuposto de que
determinado estado de coisas precisa ser conquistado, mantido ou retomado. Essa constatação
acompanha a humanidade desde os tempos mais primitivos, em que os povos lutavam para
sobreviver, para comer, para habitar certa localidade, para explorar a natureza e os meios
econômicos. Eisler (1989) desvela que em algum momento da história da humanidade os
fatos foram falseados para dar lugar ao discurso de dominação que somente pôde se sustentar
mediante o uso da força e da violência, estabelecendo-se de forma dissimulada a separação
entre masculino e feminino, o que repercutiu em toda a engrenagem social. A humanidade
deixou a parceria para adotar a rivalidade; ao invés de partilhar, inclinou-se a defender
privilégios de uma comunidade em detrimento de outra; optou-se por explorar quando seria
melhor instruir e partilhar.
Com alguma sofisticação e novos matizes, o estado de alerta permanente
ainda constitui um dos principais problemas das sociedades contemporâneas que vivem o
rescaldo da Primeira (1914-1918) e da Segunda (1939-1945) guerras mundiais, da Guerra Fria
(1945-1991), da reorganização dos blocos mundiais que se sucedeu principalmente a partir da
fragmentação e extinção da União Soviética (1991) e, por conseguinte, da aparente
desfiguração da bipolaridade de poder entre russos e americanos, o que deu ensejo à
proeminência dos Estados Unidos da América (EUA) como potência hegemônica com alta
capacidade econômica, ideológica, política e militar, cujos fatores decisivamente influenciam
e interferem na composição de cenários e estratégicas internacionais, com reflexos nas
políticas internas dos países, especialmente daqueles que, como o Brasil, tentam ocupar a
17
frágil faixa que separa o subdesenvolvimento do esforço para reduzir a subserviência e a
irrestrita dependência de fatores externos.
Soberania e segurança são elementos assimétricos e antagônicos que
interessam de perto ao estudo da política de defesa brasileira, tendo em vista o regime
democrático e os princípios constitucionais que regem as relações internacionais do país. A
questão é complexa, primeiramente porque ser soberano significa gozar de independência
para agir ou omitir da forma que melhor aprouver, ao passo que, no outro plano, a soberania
precisa ser assegurada mediante procedimentos que garantam a conquista, a preservação e a
retomada de um dado estado de coisas. Assim, a soberania brasileira está associada às
concepções de segurança em suas vertentes interna e externa. Ocorre que essa segurança não é
necessariamente aquela convencional, chamada de segurança pública17. A segurança da qual
depende a soberania é de espectro mais amplo, multidisciplinar, pois não se restringe à
obediência civil, à imposição da lei, à preservação de um dado poder transitório ou à adoção
de medidas acautelatórias exclusivamente voltadas ao exterior, mas sim à proteção dos
fundamentos da República, a compreender, como anteriormente enfatizado, a própria
soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa e o pluralismo político.
Ocorre que o Brasil não dispõe de uma política de segurança ou mesmo de
uma estratégia nacional que represente um consenso formado a partir dos diversos interesses
presentes na sociedade. A segurança corresponde, então, a um fragmentado concurso de
atores, propostas, projetos e idéias ora de iniciativa do poder público ora impulsionado por
setores que detêm habilidades para levar a efeito demandas que correspondam aos seus
17 Nos termos do art. 144 da Carta Política de 1988, o poder constituinte de 1988 concebeu a segurança pública
como um “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”, a cargo da polícia federal, da polícia rodoviária federal, da polícia ferroviária federal, das polícias civis e das polícias militares e corpos de bombeiros militares. Originalmente, essas atribuições não correspondem às Forças Armadas.
18
propósitos particulares ou corporativos. A política de defesa está inserida no contexto e no
limiar entre segurança e soberania, como recurso excepcional destinado a proteger um
determinado estado de coisas. Resta saber se seus fundamentos estão em consonância com os
princípios democráticos. As características e os efeitos do tripé soberania-segurança-defesa
repercutem e desafiam diretamente o poder político, a democracia e o direito.
A partir desses pontos de inquietação serão abordados os principais
argumentos que trespassam as percepções de soberania, segurança e democracia para que, no
capítulo seguinte, possa ser enfrentada a repercussão desses temas na formulação da política
de defesa brasileira.
1.1 Escudo metafórico: a soberania
A soberania é argumento que adquire forma jurídica quando, decorrente de
um ato de independência, é reconhecida pela comunidade internacional. Não cabe, nessa
oportunidade, especular a respeito da legitimidade da soberania, isto é, das idéias, das lutas e
dos movimentos a partir dos quais a liberdade ou a opressão determina e delineia a formação,
a fragmentação ou a dissolução de uma dada nação. Em tese, o Estado soberano tem a
prerrogativa de escolher ou de impor, em seu território, o regime político e o sistema de
governo que entender mais adequado, mesmo que para isso ignore a liberdade de escolha e a
composição de consensos. A soberania é, então, projetada internamente e refletida no campo
externo, embora não signifique, em termos práticos, a plena independência.
Como argumento do poder, a soberania serve a uma infinidade de causas. É
instrumento de justificação e proteção, especialmente em face de ingerências externas.
Também se apropria da coercitividade jurídica em que se fundamenta para tentar repelir a
ocorrência de rupturas internas destinadas a modificar a estrutura de poder dominante.
Entretanto, esse poder pode ser substituído por outro, pela revolução ou pelo voto pacífico,
19
sem que para isso ocorra, necessariamente, a perda da soberania estatal, mas apenas a
modificação do ordenamento político-ideológico. A esse respeito, não podem passar
despercebidas as teorias que procuram explicar as relações entre Estado e Direito, posto que, a
partir delas, poderá ser aferida a linha da fundamentação jurídica e, por conseguinte, os efeitos
que serão sentidos na soberania, nas concepções de segurança e, por conseguinte, de defesa.
As articulações entre a estrutura de poder e as normas de efeito vinculatório
perpassam as teorias monista, dualista, de paralelismo, tridimensional e de autolimitação
(CARVALHO, 2002, p. 91-93). Interessa conhecer, resumidamente, os fundamentos de cada
uma. Segundo a teoria monista18, Estado e Direito são unos, porém as normas emanam
exclusivamente do primeiro, que detêm o poder de coagir, de impor o cumprimento das regras
de direito. Nessa concepção, o Estado é a própria ordem jurídica. Por sua vez, a teoria
dualista19 considera que Estado e Direito são distintos, independentes e, portanto, não se
confundem. Assim, o Estado não detém o monopólio da fonte do direito, ou seja, admite-se
que as normas jurídicas possam advir de outras fontes, como o direito natural e o direito
costumeiro. Dessa maneira, o direito positivado pelo Estado se destina a dar forma jurídica
aos princípios, às normas ou às regras presentes nos comportamentos das sociedades, ou seja,
a formulação do direito está em constante transformação, sem a exclusividade do poder
estatal, não obstante ser sua atribuição dar forma aos comandos normativos. A teoria do
paralelismo20 sustenta o Estado e o Direito como realidades distintas e interdependentes, ou
seja, embora admita a pluralidade de fontes de direito defende que, quanto à produção
jurídica, deve preponderar a norma elaborada pelo ente estatal que representa a maioria ou a
sociedade como um todo. Quando estudado pela teoria tridimensional21, o Estado não se
fundamenta exclusivamente na norma ou no fenômeno sociológico. Sua abordagem consiste
18 Dentre os principais autores figuram Hobbes, Hegel, Austin, Jellinek e Kelsen. 19 Gierke, Gurvitch, Duguit e Santi Romano figuram como defensores dessa teoria. 20 Del Vecchio é o seu principal formulador. 21 Concebida por Miguel Reale.
20
na conjugação de três elementos: fato (existência de uma relação permanente de poder,
separando-se governantes e governados), valor (exercício do poder) e normas (equilíbrio do
poder que incide sobre os valores das relações sociais). Essa teoria reconhece a formulação
jurídico-normativa que decorre do predomínio de uma força de poder sobre outra, cujos
efeitos vinculatórios se dirigem à sociedade para regular as relações conflituosas e as regras
de conduta. Por fim, a tese da autolimitação22 considera o Estado investido na prerrogativa de
elaborar a norma jurídica que o limita, distante do direito natural e mesmo da aplicação da
justiça. Assim, as regras de conduta dirigidas ao Estado estão condicionadas à sua própria
vontade. Não há, portanto, parâmetro anterior que oriente a atuação ou a limitação do Estado,
pois nessa formulação teórica prevalece a prerrogativa da entidade estatal que não se reporta a
qualquer outra instância, revelando-se o máximo de seu poder soberano e a inconsistência do
termo “autolimitação”, uma vez que os limites correspondem à vontade do próprio Estado.
Todas essas teorias informam como a soberania pode ser exercida, com seus
traços totalitários ou democráticos. Todavia, percebe-se que nos argumentos teorizados
predomina a autorização ou o consentimento do Estado, mesmo quando as teorias dualista e
de paralelismo admitem a influência do direito costumeiro e de outras fontes de formulação
jurídica. Constata-se o forte emprego do direito como instrumento destinado a dar forma,
conteúdo, legitimidade e coercitividade ao exercício do poder político dominante, ainda
distante de seu atributo essencial, de natureza universal, que é a função social traduzida na
dignidade da pessoa humana e na alteridade, um caminho a partir do qual é possível dar
efetividade ao princípio de igualdade ante a complexa teia de relações que movem as
sociedades e delineiam os conflitos que lhe são inerentes. É nesse contexto que os reflexos da
soberania alcançam as concepções de segurança e defesa.
22 Jellinek também figura como defensor dessa teoria.
21
A soberania, oponível a todos, é ilimitada? Não. Seus limites são definidos a
partir das práticas reconhecidas, aceitas ou toleradas tanto pela comunidade internacional
quanto pela estrutura social da qual emana. O exercício da soberania encontra duas restrições:
externa e interna. Na atualidade, embora distorcidos, enfraquecidos ou abrandados, os
princípios democráticos e de dignidade da pessoa humana indicam novos parâmetros da
soberania, ora rígidos ora flexíveis, colocando esse instituto em crise ou declínio.
Ferrajoli (2002, p. 2-3) utiliza três aporias para estudar a soberania: (i) a
filosófico-jurídica, (ii) a histórica e a que diz respeito à (iii) consistência e legitimidade sob o
enfoque do direito. Cada uma pode justificar esse instituto. Essa abordagem é interessante,
pois o autor não as trata de maneira antinômica, isto é, mesmo que as razões possam indicar
diferentes caminhos para o entendimento da soberania, ainda não são suficientes para
comprovar sua verdadeira origem. De valia apresentar essa abordagem. A aporia filosófico-
jurídica é de natureza jusnaturalista, fundamenta a concepção juspositivista do Estado e serve
aos critérios do direito internacional. A histórica considera a soberania um poder absoluto,
dividindo-a em interna e externa: a primeira limitada e dissolvida em decorrência da criação
de Estados que optaram pelos modelos constitucionais e democráticos de direito; a segunda,
que serviu de fundamento para as primeira e segunda guerras mundiais sofre, no dizer do
autor, uma “progressiva absolutização” e “está longe de concluir-se e continua a mostrar-se
como uma ameaça permanente de guerras e destruições para o futuro da humanidade”.
Segundo a aporia que se dirige à consistência e à legitimidade a partir do direito, Ferrajoli
sustenta que entre a soberania e o direito existe uma antinomia insuperável, que atinge o
instituto em seus efeitos internos e externos. No primeiro caso, pela incompatibilidade entre
as prerrogativas do poder soberano e os postulados do estado de direito e da sujeição de todo
o poder à lei; no segundo, pela assimetria resultante de um poder absoluto em contraposição
22
aos preceitos internacionais. Esses argumentos são de fundamental importância para a defesa
nacional.
Historicamente, a soberania externa precede a interna. Ferrajoli (2002, p. 5-
6) assinala que suas origens se destinavam a “oferecer um fundamento jurídico à conquista do
Novo Mundo, logo após o seu descobrimento”. Havia a presunção de que o direito de
desenvolvimento ou exploração, de natureza privada, conferia legalidade e legitimidade às
invasões e às conquistas, as quais ganhavam o falso argumento cristão segundo o qual os
povos ditos civilizados teriam o dever ou a outorga divina de civilizar os selvagens, surgindo
daí as controvérsias a respeito da justiça e da injustiça dos títulos de propriedade e das
expropriações decorrentes da colonização, da conquista e da dominação. Franco (2000)
abordou essas circunstâncias no argumento que sustentou a figura do índio brasileiro como
bom selvagem, defendida no conjunto simbólico da Revolução Francesa.
Desses debates Ferrajoli (2002, p. 7) retoma as idéias de Francisco de
Vitoria a respeito dos princípios reguladores do direito internacional moderno e da própria
soberania do Estado, nas seguintes formulações: (i) a ordem mundial vista como uma
“sociedade natural de Estados soberanos”; (ii) as teorias dos direitos naturais não apenas dos
povos, mas também dos Estados; e (iii) a substituição da guerra concebida como justa sob o
fundamento da doutrina cristã, para dar lugar ao conceito de sanção jurídica contra ofensas.
Na primeira formulação a soberania estatal pressupõe, no plano externo, uma sociedade de
repúblicas organizadas na forma de Estados “igualmente livres” (mas não necessariamente
simétricos), com independência e capacidade para, em seu âmbito interno, organizar a
sociedade da forma que mais adequada, elaborando suas próprias leis. Esse modelo substituiu
a ordem anterior (a medieval), que estava condicionada aos ditames do imperador e do clero.
Contudo, nessa concepção de soberania Ferrajoli (2002, p. 10 e 12) assinala
que os ideais de igualdade e liberdade foram mitigados pelo próprio Vitoria, ao defender,
23
como direito natural dos povos e dos Estados, “uma nova legitimação à conquista” e “o
alicerce ideológico do caráter eurocêntrico do direito internacional, dos seus valores
colonialistas e até mesmo suas vocações belicistas”, o que revela “as origens não luminosas
dos direitos naturais e o seu papel na legitimação ideológica não só dos valores, mas também
dos interesses políticos e econômicos do mundo ocidental”, dando ensejo a uma série de
direitos, dentre os que conferiram aos espanhóis o emprego da guerra contra os índios
(considerados bárbaros e selvagens) como medida aplicável para a defesa de seus alegados
direitos (leia-se soberania) e de sua segurança.
Das idéias de Estados soberanos e de seus direitos naturais, Vitoria formula
a terceira concepção de soberania que, na assertiva de Ferrajoli (2002, p. 12-14), é “uma nova
doutrina de legitimação da guerra justa”. Essa concepção parte do argumento da soberania
estatal para construir a hipótese de reparação justificada pela ocorrência de uma dada ofensa,
atribuindo-se conotação jurídica à guerra, ou melhor, à violência como forma de sanção.
Nesse sentido, a conquista ou a submissão pela força que antes se fazia simplesmente sob o
pressuposto de uma prerrogativa soberana voltada à proteção de interesses ou do conveniente
dever de civilizar, de levar a revelação divina ou de propiciar desenvolvimento e progresso,
passou a erigir sob a forma de direito, para o fim de tornar lícita a imposição de condutas a
um dado Estado. O autor esclarece que dessa construção decorrem três conseqüências
presentes na atualidade: (i) a guerra ou o direito de guerra como prerrogativa de Estados
soberanos, o que faz da guerra, de um lado, um atributo essencial da entidade estatal, ou seja,
a preparação e o emprego da força legalizada como condição de reconhecimento do poder
soberano, orientando a permanente preparação para o combate (eventual ou efetivo). Por
outro lado, a guerra como direito faculta que outros atos, movimentos ou pensamentos
(políticos, religiosos ou meramente ideológicos) possam ser considerados crimes, a exemplo
do próprio terrorismo em sua roupagem contemporânea; (ii) que os princípios de direito não
24
são, essencialmente, os parâmetros da guerra, mas sim instrumentos para torná-la justa e
adequada ao fim sancionatório que pretende atingir, mesmo que, pela via oblíqua, o propósito
do uso da força consista na satisfação de interesses e valores distorcidos; e (iii) a atenuação
dos efeitos da guerra justa, submetendo-a a regras elementares, tais como a relevância da
ofensa que permitiria o uso da força, o mínimo de proteção à pessoa humana e a restrição ao
emprego da violência.
As três doutrinas elaboradas por Vitória foram superadas, pelo menos em
parte, a partir do período de predominância absolutista. Primeiramente porque a igualdade
entre Estados soberanos não correspondia à irrestrita sujeição ao direito, tendo em vista a
ambivalência do poder absoluto ante a desigualdade entre os países e a atuação das grandes
potências no contexto internacional, refletindo na esfera de domínio interno de cada Estado,
na luta pela supremacia de interesses econômicos e comerciais. De igual modo, a abstração
contida no argumento da soberania não foi suficiente para superar ou atenuar as desigualdades
existentes, de tal modo que os chamados direitos naturais de cada Estado soberano
determinaram o fortalecimento das concepções garantidoras da conquista e da colonização, o
que contribuiu para demonstrar que soberania não corresponde à idéia de igualdade. Por fim,
a guerra como sanção, de conotação jurídica e, por conseguinte, legalizada, perdeu
legitimidade na medida em que o direito foi desvelado como instrumento da violência,
contrastando com a sua essência, que parte do pressuposto idealizado de solução pacífica das
controvérsias (FERRAJOLI, 2002, p. 15).
De matriz internacionalista, o argumento da soberania afrouxou os vínculos
com o cristianismo para revelar sua natureza ilimitada, interna e externamente, servindo aos
interesses dos países europeus para, no dizer de Ferrajoli (2002, p. 16), legitimar a
colonização e a exploração, sustentando essas ações em quatro pontos centrais: (i) os valores
ditos universais, (ii) a missão de evangelizar, (iii) a prerrogativa de civilizar e (iv) a imposição
25
de valores ocidentais. Na ponderação do autor (2002, p. 17-19), esse quadro deu forma à
“formação da idéia moderna do Estado como pessoa artificial, fonte exclusiva do direito e, ao
mesmo tempo, livre do direito”, levando ao “princípio da efetividade” a partir do qual o
direito é condicionado ao fato. Na prática, significa que o direito dos mais fortes prevalece
sobre os demais na conjugação entre força e civilidade, ampliando-se o conceito de ofensa ou
injúria, que antes se limitava à ponderação de relevância para, então, abranger sanções contra
o direito natural e à divindade, permitindo, inclusive, o excesso de violência contra civis, isto
é, um retrocesso em comparação com a teoria vitoriana. Surge, por conseguinte, a formulação
de Estado como pessoa e sua personalidade jurídica, tendo como decorrência as bases
concentuais do positivismo jurídico e da supremacia (ou monopólio) do poder estatal23.
Ocorre que a soberania interna sustentada no pressuposto da pacificação
social a partir da centralização das ações na pessoa artificial do Estado, contrasta com a
soberania externa, fato que, na colocação de Ferrajoli (2002, p. 20), representa a negação do
regramento em que aquela se fundamenta, na medida em que, no campo externo, não há
limites para a atuação do poder soberano, contrariando o próprio regramento com o qual se
propôs a dirimir os conflitos, porque a soberania estatal ampliou a prontidão e a vigilância
permanentes ao ponto de a probabilidade da guerra e, por conseguinte, da segurança e da
defesa, ser um estado efetivo e não hipotético ou eventual.
A construção da tese de supremacia do poder soberano embasa a
confrontação entre civilizados e não-civilizados, o que outrora legitimou as conquistas
colônias. De um lado, o estado originário de natureza do novo mundo; e, de outro, o estado
civil europeu. Essas idéias estabeleceram a ponte entre a transição do período absolutista ao
início da era liberal, opondo estado de natureza e estado civil sob o argumento da
inferioridade do primeiro em face da superioridade do segundo, na imposição do racionalismo
23 Ferrajoli se refere às teorias de Alberico Gentili e Hugo Grotius.
26
do Estado moderno de conotação expansionista, mediante a combinação da conquista e da
colonização, que se fizeram acompanhar da exploração e da homologação para, ao final,
acomodar a “exportação ao mundo inteiro dos modelos culturais e políticos do Ocidente, a
partir do próprio modelo institucional do Estado soberano e do modelo da guerra entre
Estados que constitui o corolário deste” (FERRAJOLI, 2002, p. 24-25).
A limitação da soberania interna e a ampliação da soberania externa
ganharam novos contornos a partir da Revolução Francesa. Ferrajoli (2002, p. 25 e 27-28)
assinala que, embora os Estados ditos civilizados estivessem “virtualmente em estado de
guerra”, por outro lado estabeleciam coligações para o fim único de “civilizar o resto do
mundo”. Os princípios do estado de direito e da democracia ganharam espaço na metade do
século XIX, fazendo com que a soberania interna fosse reduzida ao que o autor denominou de
“dupla face do Estado, fator de paz internamente e de guerra externamente”. No plano interno,
o poder estatal perdeu a força que tinha sobre as pessoas, modificando-se com o advento da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), do que resultou, segundo o autor, o
surgimento de dois sujeitos de direito: o Estado e o cidadão. Essa característica da
contemporaneidade determina a limitação da soberania interna, a envolver esses dois sujeitos
circunscritos às regras de direito, ao princípio de legalidade e à observância dos direitos
fundamentais. Dessa maneira, o estado de direito, em que se funda a doutrina liberal, nega a
noção de ampla soberania interna.
Porém, o estado de direito não foi suficiente para sufocar a antiga idéia de
pleno poder em que se sustentava a soberania interna. Ao contrário. Ferrajoli (2002, p. 29)
assinala que essa prerrogativa foi reforçada em duas vertentes: a soberania nacional e a
soberania popular:
[...] que ambiguamente ladeiam a da soberania estatal e lhe fornecem uma legitimação política ainda mais forte do que as antigas fontes teológicas e contratualistas. Embora muito diferentes entre si, são expressões dessa
27
concepção, no pensamento filosófico-político, a doutrina rousseauniana da “vontade geral” e a hegeliana do “Estado ético”, que permitem conferir um valor totalitário ao antigo princípio da soberania absoluta. O Estado, nas figurações organicistas oferecidas por essas duas diferentes imagens da relação entre Estado e sociedade, acaba sendo não apenas legitimado como ordem civil e racional, mas, no primeiro caso, é também identificado com o “corpo moral e coletivo” de todos os cidadãos e, no segundo, é sublimado como “substância ética” e “espírito do mundo”. Em ambos os casos, o povo e os indivíduos de carne e osso, que mesmo nas doutrinas contratualistas liberais, e até mesmo em Hobbes, sempre mantinham uma subjetividade autônoma como partes contratantes do pactum subiectionis (contrato de sujeição), anulam-se no Estado [...].
Verifica-se que, para dar legitimidade ao Estado, a divisão da soberania
interna em nacional e popular trouxe ambigüidades que influenciam a existência e a
organização da entidade estatal. Mesmo sob os princípios do estado de direito, essa
construção não perdeu seu viés absolutista. A centralidade do poder em um ente artificial
possibilitou o resgate do valor totalitário da soberania ilimitada, a tal ponto de atingir e
distorcer o direito, posto que a capacidade de interferir do povo e do cidadão,
individualmente, foi mitigada. Ferrajoli (2002, p. 30-31) constata, ainda, que a nova
concepção de soberania interna foi crucial para redefinir a natureza do Estado e o exercício de
suas prerrogativas interna e externamente, colocando a entidade estatal como fonte do direito:
É, porém, sobretudo o pensamento jurídico que, no século XIX, chega a atribuir um caráter científico à imagem antropomórfica do Estado soberano e a assumi-la como fundamento da nova ciência do direito público. É do final do século XIX a construção, [...] da figura jurídica e não mais simplesmente política do Estado-pessoa como sujeito originário, que funda mas não é fundado, titular de soberania em lugar do princeps ou do povo. [...] Tratou-se de uma complexa operação de remoção e ocultação do momento constituinte do Estado, de claro cunho antiiluminista e anticontratualista, visando a conseguir dois resultados: por um lado, o de neutralizar e naturalizar o Estado e, assim, conferir caráter “científico-objetivo” às disciplinas juspublicistas e, através destas, como por uma espécie de legitimação de retorno, caráter “jurídico-objetivo” ao mesmo Estado e às suas instituições contingentes; por outro, e por conseqüência, o de confiar à imagem do Estado assim redefinida e, portanto, à nascente doutrina do direito público, uma função de unificação nacional e de reforço das frágeis identidades nacionais.
A existência jurídica do povo passou a depender da figura estatal. Ao tempo
em que essa circunstância reduz a liberdade e a capacidade de interferir do indivíduo,
28
teoricamente o amadurecimento do estado de direito limita à lei todos os poderes do Estado,
reduzindo, por conseguinte, a força da soberania, notadamente a partir da submissão do
governante e do legislador aos limites da lei, ou seja, o próprio Estado, no exercício de sua
soberania interna, está autolimitado ao direito. O problema reside em identificar o preceito em
que se funda a norma jurídica, de modo que a relevância está na validade e não na vigência
dos postulados legais. Desse modo, Ferrajoli (2002, p. 33) registra que a soberania interna,
especialmente na sua variável popular, foi dissolvida. Prevaleceu a soberania nacional como
sustentáculo do Estado. Todavia, a limitação do ente estatal às regras de direito tem
repercussões distintas no âmbito internacional, pois, nesse caso, prevalecem os poderes e as
prerrogativas inerentes à soberania externa, ainda de natureza absoluta. A confrontação entre
soberania nacional e soberania externa gera um quadro de perplexidade e desequilíbrio, na
medida em que, se por um lado determina a concretização dos direitos fundamentais do
homem, por outro autoriza a realização de medidas extremas para a consecução de
mecanismos voltados aos interesses das pessoas nacionais, na lógica da proteção exigida no
âmbito interno. Essa incongruência reside na ausência de reconhecimento do outro, do
diferente, do não-nacional, do não-cidadão, do dito “não-civilizado”, a ponto de justificar e
legitimar a realização de guerras e conquistas, sob o argumento da proteção da soberania ou
de interesses nacionais (FERRAJOLI, 2002, p. 35-38).
A tentativa de equilibrar as prerrogativas das soberanias externa e interna
impregnou o argumento democrático que, a propósito, é insuficiente, posto que a democracia
não é uma ideologia universal, tampouco recebe igual tratamento nos países que a adotam.
Então, não se pode descartar a possibilidade de a democracia servir ao direito e ao poder
político na construção de políticas e na elaboração de normas legais contrárias aos princípios
que enuncia, ou seja, mesmo sob o escudo da defesa democrática, não há como impedir a
prática de medidas que atentem contra a autodeterminação dos povos, os direitos
29
fundamentais e a dignidade da pessoa humana, por exemplo. Nessa ordem de idéias, sob a
bandeira das duas vertentes da soberania, a democracia pode ser apropriada como
instrumental de ações totalitárias.
Não obstante, o argumento democrático se amplia e ganha consistência na
medida em que a sociedade passa a exercer seu papel político de maneira mais intensa, a
partir do exercício da cidadania e da participação efetiva nas decisões de amplo efeito
vinculatório, influenciando e pressionando, principalmente, as representações parlamentares e
os dirigentes dos poderes executivos para conter excessos que ultrapassem os limites que
orientam o estado de direito. Ocorre que, nessa hipótese, mesmo no campo interno, são
grandes as chances do sistema de limitações não funcionar, notadamente quando a soberania
nacional é posta sob ameaça. Assim, cria-se o cenário político e instrumental do direito para
fazer face aos imperativos de segurança e defesa, cujos efeitos se estendem interna e
externamente, estabelecendo-se uma seqüência de pensamentos e ações que retiram o aparato
de contenção da amplitude da soberania, legitimando-a a atingir as liberdades públicas, os
direitos fundamentais e, por conseguinte, a dignidade da pessoa humana. O transbordamento
da soberania interna se projeta para o exterior, de forma plena, inclusive para alcançar as
últimas conseqüências na consecução da proteção dos interesses ditos nacionais, por mais
subjetivos, ocultos ou dissimulados que possam parecer. Não há, por conseguinte, limites
incondicionais ao exercício da soberania.
Se esses cenários são complexos nas regiões do planeta onde predomina,
ainda que titubeante, o consenso pela democracia, o problema da soberania – e suas
conseqüências na segurança e na defesa – se reveste de maior complexidade quando estudado
sob a ótica de regimes totalitários ou de exceção, marcados por intensos conflitos ideológicos,
pela submissão ou opressão imposta pelo poder dominante e, em certos casos, também pela
condicionante religiosa. Nesses casos, a soberania – interna e externa – não encontra sequer
30
parâmetros no estado de direito. Isso inviabiliza ou torna ainda mais violentos os movimentos
pela preservação das liberdades públicas, no âmbito interno, ao tempo em que amplia o
potencial de instabilidade – e também de violência – nas relações internacionais, cujos
reflexos são sentidos no âmbito interno de cada país. Contudo, a democracia, por si só, não
garante o equilíbrio entre as soberanias, posto que, como dito, pode servir para a prática de
atos contrários ao próprio regime democrático, sob o argumento da preservação dos interesses
nacionais, do resgate ou da instalação dos princípios que lhe são inerentes. Além do mais, a
exacerbação da soberania em regimes democráticos se revela ainda mais nociva, ante a
ruptura imprevisível de condutas que acarreta instabilidades de toda ordem.
A soberania que no passado legitimou conquistas e políticas exploratórias e
expansionistas a partir de invasões, guerras, anexações de territórios e imposições de valores e
de culturas sob o argumento civilizatório e religioso, na atualidade se revela sob novas formas
para manter o predomínio de interesses pela validação de um suposto equilíbrio de forças e de
princípios sem, contudo, abandonar por completo aqueles métodos tradicionais de exercício
do poder, adaptando-os ora ao discurso da democracia e dos direitos humanos ora às
prerrogativas da soberania nacional. São exemplos dessa constatação (i) as políticas
econômicas adotadas sob a ótica protecionista e destinadas, entre outras variantes, a
salvaguardar investidores e produtores nacionais em detrimento das possibilidades de maior
lucro dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento; (ii) a restrição aos avanços
tecnológicos de ponta, particularmente quanto à transferência de conhecimento, inclusive os
aplicáveis aos produtos de defesa, o que leva a um ciclo de continuada dependência dos países
mais pobres em relação aos ricos e desenvolvidos; (iii) a realização de empréstimos e a
submissão a programas econômicos distantes das reais ou das prementes necessidades dos
países que são condicionados a aderir; (iv) a exclusão da participação ampla em colegiados de
reflexão e de deliberação internacionais; (v) o alinhamento político ou ideológico para evitar
31
ou afastar embargos ou represálias; (vi) a restrição ao desenvolvimento de tecnologias
sensíveis como o enriquecimento de urânio, a aquisição e a construção de artefatos bélicos de
alta capacidade destrutiva; e (vii) o incentivo ou a recomendação velada para adotar a
democracia nos moldes ocidentais.
No Brasil, a Carta Política de 1988 reserva tratamento especial à soberania.
Prescreve-a, inicialmente, como um dos fundamentos da República24, a significar que a
existência formal do Estado brasileiro depende da soberania. Assinala que caberá mandado de
injunção quando verificada falta de norma que torne inviável a plenitude do exercício das
prerrogativas inerentes à soberania25. Assegura, como direito político, que a soberania popular
será exercida pelo sufrágio universal26, ao tempo em que condiciona a criação de partidos
políticos aos limites da soberania nacional27. Eleva os assuntos que dizem respeito à soberania
ao rol de competência do Conselho de Defesa Nacional28 e situa o instituto como princípio da
ordem econômica29. Por fim, em casos excepcionais, razões de soberania ainda autorizam a
remoção de grupos indígenas de seus territórios, desde que o Congresso Nacional delibere
nesse sentido, garantido o direito de retorno imediato quando cessados os correspondentes
efeitos30.
1.1.1 Soberania, lei, ordem e Forças Armadas
Note-se, por ser relevante, que a destinação constitucional das Forças
Armadas não prevê, textualmente, a proteção da soberania. Na atuação dessas instituições, o
constituinte de 1988 utilizou o termo “Pátria”, juntamente com os “defesa da garantia dos
24 Cf. art. 1o, I da Constituição Federal de 1988. 25 Cf. art. 5o, LXXI da Constituição Federal de 1988. 26 Cf. art. 14 da Constituição Federal de 1988. 27 Cf. art. 17 da Constituição Federal de 1988. No contexto da soberania, os partidos políticos também devem
observar os preceitos afetos ao caráter nacional, à proibição de receber recursos financeiros oriundos de entidades, governos estrangeiros ou entidades a eles subordinadas.
28 Cf. art. 91 da Constituição Federal de 1988. 29 Cf. art. 170, I da Constituição Federal de 1988. 30 Cf. art. 231, § 5o da Constituição Federal de 1988.
32
poderes constitucionais, da lei e da ordem”31. Mas, pátria e soberania têm sentidos diversos?
Sim, embora convirjam conceitualmente para a mesma figura de Estado ou de país. Contudo,
é pertinente inferir que o vocábulo pátria remete a momento anterior à formação do ente
estatal soberano, ou seja, o Estado é essencialmente pátria antes de receber o reconhecimento
internacional de sua existência jurídica, em tese como independente e autônomo. A soberania
tem lugar num segundo momento, enquanto a pátria teria maior valoração do que a soberania,
de tal modo que, mitigada essa, ainda assim permaneceria aquela, depreendendo-se, nessa
linha de raciocínio, que o papel das Forças Armadas transcende a defesa da soberania estatal
e, por conseguinte, do próprio sistema republicano ou regime democrático.
Na gradação estabelecida no caput do art. 142 da Constituição vigente há
quatro valores distintos e interligados: (i) pátria, (ii) poderes constitucionais, (iii) lei e (iv)
ordem. Ocorre que somente a defesa dos dois últimos está vinculada à iniciativa do segundo
(no caso, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário), donde a defesa da pátria não encontraria
limites nos poderes constitucionais, na lei ou mesmo na ordem, os quais poderiam ser
mitigados quando confrontados com a valoração atribuída à idéia de soberania. Então,
notadamente no âmbito interno, a soberania nacional – representada pelo poder político estatal
– encontra outra hipótese de limitação, posto que as Forças Armadas, no extremo, sequer
estariam mitigadas aos amplos efeitos das regras de direito. Entretanto, é no plano externo de
exercício da soberania que as atribuições das forças militares perdem sua amplitude em face
do estado de direito, desvelando, uma vez mais, no caso brasileiro, as assimetrias entre as
vertentes de aplicação do poder soberano: a interna e a externa. Na primeira, se de um lado a
soberania é contida pelas regras de direito, de outro poderá ser suplantada ou mitigada pela
valoração atribuível à defesa da pátria; na segunda, a absolutização da soberania está
condicionada aos princípios constitucionais que regem as relações internacionais e à
31 Cf. art. 142, caput da Constituição Federal de 1988.
33
necessidade de manter alinhamento com as correntes políticas, econômicas e ideológicas que
exercem predomínio no cenário mundial.
A reflexão sobre essas questões revela uma intrigante perplexidade do caso
brasileiro: uma faceta da norma constitucional permite que os princípios que regem o
exercício da soberania interna sofram uma significativa redução de seus limites pelas regras
do estado de direito (e, por conseguinte, democráticos) para proporcionar flexibilidade ao seu
enunciado, enquanto que, no campo externo, ampliam-se as restrições à soberania, na medida
em que o país, segundo as regras estabelecidas pelo Constituinte de 1988, tem o dever de
respeitar. Assim, no extremo da atuação das Forças Armadas – ou melhor, da forma como o
poder político dirige e considera essas instituições –, há a possibilidade de ocorrer inversão do
modo de operar o conceito de soberania a partir da idéia de estado de direito: limitação
externa e ampliação interna. A explicação para essa peculiaridade pode ser encontrada nos
ajustes não revelados da transição do regime de exceção para o democrático, cujas raízes
remontam ao início do período colonial no qual as principais atividades (incluídas as
militares) exercidas direta ou indiretamente pelo poder público não se incumbiam de defender
a criação de um novo Estado-Nação, mas sim assegurar os interesses do império português e
as demandas corporativistas e econômicas que delineavam a exploração mercantilista da
época, além da estratégica geopolítica de manter a integridade territorial da colônia32.
Tome-se a lei na acepção do direito positivado incumbido de regrar a ordem
social. Entenda-se a ordem como a observância e a aplicação das regras de conduta previstas
na lei, a compreender a atuação preventiva e repressiva dos órgãos de segurança pública do
Estado, no exercício do poder de polícia. Enquanto o significado de lei tem aplicação mais
rígida, o sentido de ordem está sujeito a elevado grau de subjetividade, capaz de distorcer o
próprio sentido de lei e, por conseguinte, dos postulados democráticos nos quais estão
32 José Murilo de Carvalho aborda com profundidade esse tema (A construção da ordem/Teatro de sombras.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006).
34
inseridos os poderes constitucionais. Convém conhecer as definições contidas no regulamento
das polícias militares e corpos de bombeiros militares33:
14) Grave Perturbação ou Subversão da Ordem – Corresponde a todos os tipos de ação, inclusive as decorrentes de calamidade pública, que por sua, natureza, origem, amplitude, potencial e vulto: a) superem a capacidade de condução das medidas preventivas e repressivas tomadas pelos Governos Estaduais; b) sejam de natureza tal que, a critério do Governo Federal, possam vir a comprometer a integridade nacional, o livre funcionamento de poderes constituídos, a lei, a ordem e a prática das instituições; c) impliquem na realização de operações militares. 19) Manutenção da Ordem Pública – É o exercício dinâmico do poder de polícia, no campo da segurança pública, manifestado por atuações predominantemente ostensivas, visando a prevenir, dissuadir, coibir ou reprimir eventos que violem a ordem pública. 21) Ordem Pública – Conjunto de regras formais, que emanam do ordenamento jurídico da Nação, tendo por escopo regular as relações sociais de todos os níveis, do interesse público, estabelecendo um clima de convivência harmoniosa e pacífica, fiscalizado pelo poder de polícia, e constituindo uma situação ou condição que conduza ao bem comum. 25) Perturbação da Ordem – Abrange todos os tipos de ação, inclusive as decorrentes de calamidade pública que, por sua natureza, origem, amplitude e potencial possam vir a comprometer, na esfera estadual, o exercício dos poderes constituídos, o cumprimento das leis e a manutenção da ordem pública, ameaçando a população e propriedades públicas e privadas. As medidas preventivas e repressivas neste caso, estão incluídas nas medidas de Defesa Interna e são conduzidas pelos Governos Estaduais, contando ou não com o apoio do Governo Federal.
Lei e ordem parecem expressões que encerram segregação de
competências. Mas é só aparência. Trata-se da tentativa de estabelecer um postulado de
verdade ou de legitimidade para hipóteses que podem ultrapassar a previsão constitucional. A
atuação das Forças Armadas na defesa da ordem alcança as atividades de preservação e
restabelecimento da lei, como hipótese de natureza extraordinária no caso de esgotamento das
33 De acordo com art. 2o do Decreto no 88.777, de 30 de setembro de 1983, que estabelece princípios e normas
para a aplicação do Decreto-Lei no 667, de 2 de julho de 1969, modificado pelo Decreto-Lei no 1.406, de 24 de junho de 1975, e pelo Decreto-Lei no 2.010, de 12 de janeiro de 1983.
35
instituições e dos instrumentos constitucionais de segurança pública34, de responsabilidade
dos entes da federação35. Então, não há que se falar em distinção entre lei e ordem, posto que
a segunda, sob pena de cometimento de excessos, não pode ser considerada senão como
espécie da primeira que, por sua vez, é gênero e está condicionada aos fundamentos
democráticos, de tal modo que o imperativo da lei possa limitar e alcançar, também, a atuação
das Forças Armadas, afastando uma possível configuração jurídica que as coloque acima da
ordem, das normas de direito e dos princípios democráticos. Essa aproximação com as
instituições e os instrumentos de ordem pública encontra explicação nos resquícios do regime
de exceção, presentes na lei de segurança nacional36 e na natureza de força auxiliar do
Exército que foi atribuída às polícias militares37.
Os princípios democráticos impõem a devida separação entre as instituições
responsáveis por prover a segurança pública e a defesa nacional. Por essa razão, a atuação das
Forças Armadas na chamada garantia da lei e da ordem é de natureza excepcional e limitada,
de tal maneira que a sua execução está condicionada ao cumprimento de, no mínimo, três
requisitos38 essenciais, sem os quais todos os procedimentos adotados restarão eivados de
inconstitucionalidade: (i) a declaração formal, feita pelo Chefe do Poder Executivo Federal ou
Estadual, que ateste a indisponibilidade, a inexistência ou a insuficiência dos meios (o
esgotamento) locais que, convencionalmente, teriam o objetivo de preservar a ordem pública
e a incolumidade das pessoas e do patrimônio; (ii) a iniciativa do dirigente máximo dos
poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; e (iii) o controle estrito dos fundamentos do
34 A esse respeito, o Parecer no AGU/TH/02/2001, de 29 de julho de 2001, adotado pelo Parecer no GM-025, de
10 de agosto de 2001, aprovado na mesma data pelo Presidente da República, para efeito do art. 40 Lei Complementar no 73, de 10 de fevereiro de 1993, a vincular os órgãos interessados que forem cientificados.
35 Cf. art. 144 da Constituição Federal de 1988. 36 Tratada na Lei no 7.170, de 14 de dezembro de 1983 (sem revogação expressa), que, por sua vez, substituiu,
por revogação, as disposições da Lei no 6.620, de 17 de dezembro de 1978, e dos Decretos-Leis nos 975 e 898, de 20 de outubro e de 29 de setembro de 1969, respectivamente.
37 Cf. o § 6o do art. 144 da Constituição Federal de 1988, a fundamentação do Decreto no 3.897, de 24 de agosto de 2001, e o art. 1o do Decreto-Lei no 667, de 2 de julho de 1969.
38 Requisitos extraídos dos §§ 2o ao 4o da Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999, com a redação dada pela Lei Complementar no 117, de 2 de setembro de 2004.
36
estado de direito, mediante a obediência às normas rígidas de execução, dentre as quais a ação
não-continuada restrita a determinadas áreas por tempo certo.
Esses requisitos suscitam preocupação. O esgotamento dos meios policiais
convencionais, a iniciativa dos poderes constitucionais e a submissão ao controle estrito da
execução das medidas não superam uma crucial singularidade da medida, qual seja, a decisão
de empregar ou não as Forças Armadas é exercida com exclusividade pelo Presidente da
República, que poderá, inclusive, rejeitar a proposta do Legislativo ou do Judiciário. A
prerrogativa da autoridade presidencial é tamanha a ponto de dispensar solicitação
apresentada pelos governadores de Estado e do Distrito Federal, embora a legislação indique a
possibilidade de postularem nesse sentido39. Esse poder encontra explicação nos regimes que
concentram no Presidente da República a competência privativa para “exercer o comando
supremo das Forças Armadas” que, no caso brasileiro,40 cabe ao Chefe de Governo e não de
Estado, ampliando a natureza excepcional da medida quanto à legitimidade e extensão dos
efeitos. Comparativamente ao ato de declarar guerra, o procedimento de garantia da lei e da
ordem não se confunde com o instituto constitucional da intervenção, cuja aprovação também
depende do Congresso Nacional41.
Entretanto, cumpre lembrar que as hipóteses excepcionais que autorizam a
intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal se aproximam dos casos de garantia
da lei e da ordem, notadamente quanto a “pôr termo a grave comprometimento da ordem
pública”, a “garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação” e a
“prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial”42. Esse ponto merece especial
cautela, posto que a interpretação ou o manejo equivocado da aplicabilidade das medidas de
39 Cf. os §§ 1o e 2o do art. 2o da Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999. 40 Cf. art. 84, XIII da Constituição Federal de 1988, e o disposto nos artigos 1o e 2o da Lei Complementar no 97,
de 9 de junho de 1999. 41 Cf. art. 34 e 49, II da Constituição Federal de 1988. 42 Cf. art. 34, III, IV e VI da Constituição Federal de 1988.
37
garantia da lei e da ordem pode resultar indevido uso político das Forças Armadas, contrário
ao interesse público e, portanto, ofensivo ao pacto federativo, aos princípios democráticos e,
por conseguinte, ao estado de direito, mesmo que, em termos práticos, o emprego em
atividades de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio
possa apresentar resultados favoráveis e experiência aos militares em eventuais casos de
conflitos armados ou de missões de paz sob a orientação da ONU, a atuação recorrente das
Forças Armadas nessas hipóteses indica, no mínimo, distorção dos postulados de segurança
pública e demonstração da fragilidade da formulação das políticas que deveriam convergir
para o pleno gozo dos direitos fundamentais e para o combate às causas da criminalidade e da
violência, isso porque a persecução estatal há de ser dirigida contra o desvio de conduta e não
contra um inimigo ideológico ou político, distinguindo-se, ainda, as estratégias, o armamento
empregado, a duração das medidas e a extensão da violência legalizada, sendo pertinente
frisar que garantia da lei e da ordem difere dos ritos de decretação de estado de defesa e de
intervenção, sujeitos à aprovação do Poder Legislativo43.
Foi provavelmente sob essa perspectiva que o Poder Executivo Federal
procurou afastar do texto da política de defesa o emprego das Forças Armadas na garantia da
lei e da ordem44. Ocorre que essa possibilidade está presente quando o ato normativo, sob o
argumento da “preservação do exercício da soberania do Estado” e da “indissolubilidade da
unidade federativa”45, permite que as instituições militares atuem contra “ameaças internas”
sem, contudo, delimitá-los ou indicar os parâmetros para defini-los. Apesar de remeter essa
hipótese à Constituição Federal e ao pressuposto de resguardar a defesa nacional, estabelece
um precedente cuja subjetividade, a exemplo da garantia da lei e da ordem, também pode
derivar para práticas contrárias aos princípios democráticos e do estado de direito, cabendo 43 Cf. art. 49, II da Constituição Federal de 1988. 44 Nos termos do item 6.22 do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005: “O emprego das Forças Armadas na
garantia da lei e da ordem não se insere no contexto deste documento e ocorre de acordo com a legislação específica”.
45 Cf. o item 6.16 do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.
38
assinalar que a manutenção da integridade territorial constitui, ainda, uma das hipóteses de
intervenção federal46, instituto que, como visto, está sujeito a normas, procedimentos e
instituições que conferem maior rigor quanto ao emprego de meios militares. Essa é a
principal dificuldade de conjugar defesa, soberania e democracia no campo de atuação interna
do Estado: a apropriação do direito para conformar a abstração contida no termo “ameaças
internas”. Essa antinomia está presente nas restrições à desobediência civil, entendida por
Rawls (2002, p. 402-434) como um direito de resistir a regras injustas, como também (i) no
uso da força em áreas do país nas quais o Estado não tem plena legitimidade para atuar, como
nas comunidades dominadas por poderes paralelos encarregados de arbitrar, impor e manter a
ordem (notadamente em comunidades carentes de políticas públicas adequadas, em que são
evidentes as desigualdades sociais e o domínio do tráfico de drogas) e (ii) em regiões cuja
natureza da localização e de seus habitantes reduz as prerrogativas do poder público, como no
caso de reservas indígenas localizadas em extensas áreas contíguas situadas nos limítrofes
fronteiriços47, não obstante o Poder Executivo Federal ter assegurado a ação das Forças
Armadas e da Polícia Federal48.
Além das menções feitas à garantia da lei e da ordem e à possibilidade de
emprego das Forças Armadas contra ameaças internas, na atual política de defesa brasileira o
argumento da soberania também está expressamente contido (i) nos conceitos de segurança e
defesa nacional, (ii) na preocupação com a unipolaridade internacional do poder militar (a
soberania norte-americana), (iii) no reconhecimento de que a organização geopolítica do
planeta é permeada por zonas de instabilidades e de ilícitos transnacionais, (iv) na indicação
46 Cf. art. 34, I da Constituição Federal de 1988. 47 Exemplo típico dessa dificuldade é a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, destinada à posse permanente dos
grupos indígenas Ingarikó, Makuxi, Patamona, Taurepang e Wapixana, homologada pelo Governo Federal pelo Decreto de 15 de abril de 2005, com o perímetro de 978.132 metros, localizada em Roraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela e a Guiana. A complexidade será ampliada quando invocados os princípios da Declaração Universal dos Povos Indígenas, elaborada no âmbito da ONU e subscrita pelo Brasil.
48 Nos termos dos artigos 4o e 5o do Decreto de 15 de abril de 2005, e do disposto no Decreto no 4.412, de 7 de outubro de 2002, com as alterações introduzidas pelo Decreto no 6.513, de 22 de julho de 2008.
39
de que é necessário elevar o grau de importância dos temas de interesse político-estratégico e
(v) na formação de idéias destinadas a convencer a sociedade civil da importância da defesa49.
Terão lugar no capítulo seguinte, que tratará da formulação da política de defesa, os
argumentos de soberania que orientam os conceitos de segurança e defesa nacional. Assim,
feita a abordagem dos aspectos que dizem respeito à garantia da lei e da ordem e ao emprego
das Forças Armadas contra ameaças internas, os demais tópicos mencionados no parágrafo
anterior serão merecedores dos apontamentos que se seguem.
No contexto do ambiente internacional, a preocupação com a unipolaridade
do poder militar dos Estados Unidos da América (EUA) reafirma a soberania como princípio
de direito, juntamente com outros de semelhante grandeza, como o de não-intervenção e o de
igualdade entre os Estados. Esses princípios aparentemente compatíveis e coerentes são
essenciais aos processos, aos discursos e às intenções que pretendem proporcionar
estabilidade mundial a partir do desenvolvimento e do bem-estar da humanidade, com
prevalência do multilateralismo, de tal modo que a fragmentação ou o compartilhamento de
interesses possa repercutir na composição equitativa de poder. Entretanto, a aparência de
compatibilidade entre soberania, não-intervenção e igualdade não resiste às assimetrias de
poder que, segundo o próprio texto da política de defesa, produzem tensões e instabilidades
que diuturnamente colocam em risco a paz, ou melhor, a sensação de segurança e de
suspensão da beligerância explícita. Isso porque, aqueles três princípios são insuficientes para
afastar a incidência de interesses antagônicos que trespassam as relações e as adversidades
entre os países, agravados pela prevalência da soberania – especialmente dos efeitos que se
projetam para o exterior – e da atração exercida pela capacidade de influenciação política,
econômica e militar.
49 Argumentos extraídos dos itens 1.4, 2.3, 3.5, 5 (I), 6.16 e 6.20 do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.
40
Com destaque para a América do Sul e o entorno estratégico dessa região, a
política de defesa brasileira reconhece que a organização geopolítica do planeta é permeada
por zonas de instabilidades e de ilícitos transnacionais que repercutem na soberania dos
demais países. As instabilidades são das mais variadas ordens, como as disputas político-
ideológicas de poder, a miséria, a corrupção, a suposta falência da estrutura política de países,
os conflitos armados e as políticas econômicas. Os ilícitos transnacionais também alcançam
uma extensa gama de atividades e diferentes níveis de sofisticação e envolvimento de atores
públicos e privados, a compreender temas como tráfico de drogas, contrabando de armas e
bens, tráfico de órgãos e de pessoas, exploração sexual e biopirataria, além do terror, que
transita da definição de crime, de natureza mais restrita, para o conceito de ameaça contra a
soberania estatal, de efeitos mais amplos. As instabilidades e os ilícitos internacionais
repercutem na soberania na medida em que o espaço territorial e demais bens nacionais são
considerados como objeto direto ou indireto da ação ou omissão de autoridades públicas (que
têm o dever de combater esses fatos), bem como de atores que patrocinam e executam as
supostas ilegalidades. Exemplos recorrentes dessas hipóteses são as incursões nos territórios
de países vizinhos praticados pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), a
produção e o tráfico de drogas. Nas colocações de Castells (1999, p. 289-358), esses eventos
indicam a destituição do poder do Estado.
Observe-se que, enquanto os ilícitos transnacionais correspondem a um
consenso mínimo sobre quais práticas são contrárias ao estado de direito e à dignidade da
pessoa humana, as zonas de instabilidades não guardam a mesma percepção. Esse, a
propósito, é um tema de extrema singularidade, posto que sujeito aos argumentos extremos da
soberania, na visão do Brasil e dos demais países, interna e externamente. Assim, questões
econômicas, problemas ambientais, divergências ideológicas, movimentos reivindicatórios,
perda de legitimidade do poder político e ruptura com o sistema político vigente podem
41
caracterizar atos ilícitos e, por conseguinte, disseminar instabilidades, servindo, por
conseguinte, de motivo para que a soberania ultrapasse as barreiras de contenção e alcance a
plenitude de sua natureza absolutista, justificando intervenções, uso da violência legalizada,
atos de exceção, suspensão de direitos e de liberdades civis, estado de mobilização e de
guerra, além do decorrente aumento da produção e do aparato bélico. Em hipóteses como
essas, as Forças Armadas ora podem assumir diretamente a condição de defensores da pátria,
ora podem servir de instrumento do poder político dominante para defender um determinado
estado de coisas. Isso é bom? Se bom ou não, é juridicamente possível. E nesse aspecto reside
o desafio que a política de defesa dirige à democracia e ao político: encontrar alternativas para
evitar a deturpação de princípios orientadores da humanidade em nome de causas que se
fundamentam em alusões à democracia e na subjetividade do conceito de soberania, mas que
podem apenas ser verdades construídas com o propósito de dissimular atitudes totalitárias,
expansionistas e econômicas, voltadas a dissimular os embates políticos pelo exercício do
poder ou preservar vantagens, prerrogativas e privilégios que demarcam as assimetrias entre
os países.
A indicação da necessidade de elevar o tema de defesa ao grau de
importância político-estratégico é posta sob a premissa de que as relações internacionais, em
decorrência da diversidade de atores e de interesses, podem gerar associações ou conflitos,
dando força à idéia segundo a qual quanto maior ênfase aos aspectos de defesa mais
adequados serão os instrumentos destinados a preservar ou garantir a soberania, o patrimônio
nacional e a integridade territorial, compatibilizando-os, principalmente, com os interesses da
América do Sul. Da leitura dos objetivos da política de defesa, percebe-se que o poder público
busca um ponto de equilíbrio entre as demandas dos atores internacionais e os projetos
nacionais de cada país, ao reconhecer que o acirramento ou o abrandamento das adversidades
estão no pêndulo das influências e das interdependências. Qual o significado dessa
42
ponderação? Primeiro, disseminar a idéia de que, mesmo diante de tamanhas assimetrias de
poder entre os Estados, é possível um mínimo de estabilidade nas relações internacionais, sem
a ingenuidade de acreditar que essa condição possa efetivamente proporcionar igualdade.
Segundo, que a estabilidade possível pode encontrar na interdependência um remédio para
minimizar a capacidade que os países mais fortes têm de influenciar e, por conseguinte, de
interferir (direta ou indiretamente) na condução da política de outros países. É por isso que a
política de defesa brasileira elegeu, dentre os seus objetivos, “a promoção da estabilidade
regional”, a “contribuição para a manutenção da paz e da segurança internacionais” e “a
projeção do Brasil no concerto das nações e sua maior inserção em processos decisórios
internacionais”50.
A formação de idéias para elevar o grau de relevância da defesa na
sociedade civil é o último tema da política de defesa que expressamente está presente no
argumento de soberania, vinculando-o aos interesses nacionais e à integridade territorial do
país. Trata-se do corolário das demais premissas, para o fim de convencer o público e obter a
legitimidade para a implantação de medidas. É uma tentativa de aproximar o assunto da
população em geral e dos principais atores formadores de opinião. Esse ponto é essencial, na
medida em que ora atrairá interesses ora representará repulsa. A discussão transita em torno
da escassez de recursos orçamentários para atender, concomitantemente, as demandas sociais
e os pleitos de natureza militar, seja de natureza bélica e tecnológica, seja de capacitação,
formação e remuneração de efetivos. Esse debate parece superficial, mas não é. Significa o
elo entre políticas públicas distintas e interdependentes, separadas pelos antagonismos
decorrentes da ausência de metodologia capaz de estabelecer equilíbrios e consensos a
respeito do problema estratégico que aparentemente coloca em contradição os princípios
constitucionais que tratam dos fundamentos, dos objetivos e das relações internacionais do
50 Cf. incisos IV, V e VI do item 5 do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.
43
Brasil, indissociáveis do modelo de estado de direito democrático que foi adotado. É possível
encontrar solução para esse dilema? Sim. Um caminho: o modo de formular e de executar a
política de defesa, que será abordado no capítulo seguinte.
A abordagem de Foucault (2006, p. 181) se aproxima das preocupações
quanto ao uso instrumental que o poder político dominante faz das normas jurídicas de
natureza coercitiva e, por conseguinte, de imposição da disciplina que reveste a soberania,
vista pelo autor como “o problema central do direito nas sociedades ocidentais”:
[...] que o discurso e a técnica do direito tiveram basicamente a função de dissolver o fato da dominação dentro do poder para, em seu lugar, fazer aparecer duas coisas: por um lado, os direitos legítimos da soberania e, por outro, a obrigação legal de obediência. O sistema do direito é inteiramente centrado no rei e é, portanto, a eliminação da dominação e de suas conseqüências.
A relevância da soberania para a política de defesa reside, pois, na
percepção do alcance de seus princípios na democracia e na composição do jogo político –
cujos efeitos repercutem simultaneamente tanto no plano externo como no interno – ou, de
forma mais clara, de como a política de defesa pode ser utilizada para formar consensos
positivos de interesse coletivo, fundados em concepções de justiça, como também para servir
a pretensões totalitárias ou excludentes das demandas da sociedade em geral. Dessa feita,
forçoso admitir que a soberania, na forma de escudo metafórico, tem como um de seus pilares
outra construção de verdade jurídica: a idéia de segurança, que será abordada a seguir.
1.2 Segurança e suspensão da beligerância explícita
As noções de segurança influenciam o atuar do poder soberano e as linhas
das políticas de cada país ou nação, que se projetam para o exterior ou para o campo interno.
Segurança é tema tão amplo, subjetivo e manipulável que admite inúmeras concepções,
independentemente da prática de regimes democráticos. Portanto, segurança implica
44
controvérsia, complexidade e perplexidade. Sua relevância para a política de defesa brasileira
reside no fato de que constitui a causa da defesa, o que implica dizer que os instrumentos da
defesa são delineados e contidos nos fundamentos da segurança. O presente trabalho é
trespassado por debates que gravitam em torno dos efeitos que a segurança repercute na
defesa, suas vulnerabilidades e prováveis hipóteses de dissuasão e de persuasão. Esse tópico
tem a intenção de apresentar algumas inquietações julgadas relevantes e que poderão servir
para entender a formulação, as estratégias e as táticas que gravitam em torno do tema.
Não há organismo internacional com amplos e ilimitados poderes
supranacionais, com representatividade, legitimidade e força suficientes para determinar o
agir dos países. A ONU não se reveste dessas prerrogativas. E isso é bom, pois não há
garantias que indiquem a imparcialidade ou a justiça das decisões tomadas por uma entidade
dessa natureza, tendo em vista sua atual configuração. A tentativa se resume na frágil
composição de equilíbrios e de medidas pontuais destinadas a conter excessos, salvar povos
ou nações51 e punir transgressores de uma suposta ordem mundial marcada por injustiças e
assimetrias. Ocorre que mesmo esse pequeno gesto tem sofrido desgastes, ora pela proteção
de interesses nacionais não totalmente revelados, ora pela contestação às amarras a que são
submetidos os subversivos da alegada ordem mundial, ora pelos impulsos ideológicos e
hegemônicos que têm o propósito de sustentar a ascensão, a retomada ou a manutenção de
poder.
Embora sem unanimidade e com oscilações determinadas pela deturpação
de fundamentos, a segurança se baseia, no campo externo, na doutrina de renúncia à guerra
como instrumento de política nacional. Esse princípio consta expressamente do Tratado de
51 Na distinção apresentada por Marcos Augusto Maliska (Estado e século XXI: a integração supranacional
sob a ótica do direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 105-106), a partir dos ensinamentos de Hans Kelsen e Friedrich Müller.
45
Renúncia à Guerra52, de 1928, elaborado depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918)
com a pretensão de perpetuar as “relações pacíficas e amistosas existentes entre os povos”,
como também assegurar “que todas as mudanças nas suas mútuas relações só devem ser
baseadas nos meios pacíficos e realizadas dentro da ordem e da paz”. Esse singelo tratado de
apenas três artigos tentou por fim à guerra como instrumento da política, mas não alcançou
pleno êxito pelo fato inconteste da continuidade da preparação para o enfrentamento e do uso
da força, como também porque foi condicionado à adesão das nações ditas “civilizadas”
(termo que incita discórdia), conforme menção expressa em seu texto introdutório. É nessa
dissimulada fórmula de indicar a idéia de superioridade de uns sobre outros que persiste a
animosidade, as divergências e os enfrentamentos, no exercício da soberania (na abordagem
do capítulo anterior) e na concepção de segurança.
O estado de paz permanente nada mais é do que a suspensão da beligerância
explícita, no dizer de Kant (2004, p. 126-127):
O estado de paz entre os homens que vivem juntos não é um estado de natureza (status naturalis), o qual é antes um estado de guerra, isto é, um estado em que, embora não exista sempre uma explosão das hostilidades, há sempre, no entanto, uma ameaça constante. Deve, portanto, instaurar-se o estado de paz; pois a omissão de hostilidades não é ainda a garantia de paz e se um vizinho não proporciona segurança a outro (o que só pode acontecer num estado legal), cada um pode considerar como inimigo aquele a quem lhe exigiu tal segurança.
Observado que as repercussões da Segunda Guerra Mundial (1939-1945)
indicaram a possibilidade de extermínio da humanidade, os conflitos armados diminuíram
notadamente quanto aos objetivos manifestos de anexar territórios e tomar o poder. Contudo,
o uso da força armada pelo poder político adquiriu a sofisticação dos instrumentos de
dissuasão e persuasão. A dissuasão é estratégia de dissimulação, da preparação para
desestimular a ofensiva potencial ou manifesta, na delicada temporalidade determinada pela
52 Também chamado de Pacto de Paris ou Briand-Kellog, do qual o Brasil é signatário. Disponível em:
<www.mre.gov.br>. Acesso em: 7 de novembro de 2005.
46
velocidade tecnológica. A persuasão é estratégia de coerção, da demonstração de força e da
capacidade de influenciar a tomada de decisões. Procurou-se superar as limitações do Pacto
de Paris com a Carta da ONU (1945), principalmente com o manejo do conceito de legítima
defesa, trazendo-se para os debates do uso político da violência legalizada, pela força das
armas, a ampliação dos conceitos de guerra injusta e de guerra justa, derivando-se para a
instrumentalização do direito em favor da parte supostamente ofendida.
Utilizando-se da expressão “consciência atômica” como um caminho para o
pacifismo ativo, Bobbio (2003, p. 76) distingue três grupos teóricos que procuram justificar a
escolha da guerra: (i) todas as guerras são justificáveis, (ii) não há guerras justificáveis e (iii)
há guerras justificáveis e outras não. Ocorre que, no dizer do autor, a legitimidade, o
procedimento e a justiça dessas fórmulas são questionáveis, na aproximação com o princípio
de imparcialidade dos procedimentos judiciais:
[...] a guerra como execução forçada ou como pena, numa palavra, a guerra como sanção, a força a serviço do direito. Mas e quanto ao processo de cognição? Sob esse aspecto, a teoria mostra uma grave fraqueza, por duas razões pelo menos: um processo de cognição é tanto mais apto a assegurar a discriminação do justo e do injusto, e portanto a estabelecer uma linha de fronteira entre a razão e o erro, quanto mais se inspira nos princípios fundamentais da certeza dos critérios de julgamento e da imparcialidade de quem deve julgar. Na declaração e na realização de uma guerra, nem um nem outro princípio é respeitado: o primeiro não o é porque a longa tradição de teorias sobre a guerra justa falhou exatamente na tentativa de estabelecer um conjunto de critérios de justiça correntemente aceitos (daí não havia guerra que não encontrasse nessa ou naquela doutrina o seu próprio critério de justificação); o segundo também não o é porque quem decide sobre a justiça ou injustiça da guerra é a mesma parte em causa, não um juiz acima das partes. (BOBBIO, 2003, p. 77-78)
A noção de segurança reside na tênue e imaginária linha que tenta separar
paz (ou não-guerra) e guerra. Ao tempo em que promove a suspensão da beligerância
explícita, determina vigilância permanente e a preparação para um provável e eventual
enfrentamento. Nesse ponto está o fracasso do simbolismo que reveste o estado de paz
continuada ou permanente, porque não é paz: trata-se de mobilização passiva e ativa para o
47
conflito e, na atualidade, para as novas ameaças, que conta com o concurso do direito e do
presumido consentimento da coletividade sob o argumento sedutor da máxima proteção, a
envolver a economia e o poder político, resultando o fenômeno de que a defesa autorizada,
legalizada ou legitimada não se situa apenas no campo do militar, ou seja, a preparação
transcende o militar para se estender aos meios de produção, à tecnologia e à sociedade, na
teoria da “guerra pura” impregnada no cotidiano em que todos procuram se defender, nas
inquietações suscitadas por Virilio e Lotringer (1984).
Os estudos sobre a conceituação de segurança elaborados por especialistas a
pedido da ONU53, ao tempo em que trazem o diagnóstico desse quadro de fragilidade
desvelam que, na era atômica e nuclear, a estabilidade da segurança depende do
reconhecimento e da aceitação das diferenças tanto quanto da cooperação e da formação de
consensos. Dessa maneira, a segurança tem por princípio a liberdade para o desenvolvimento
e o progresso, na medida em que é elevada à condição de inexistência de perigo militar, de
pressões políticas ou econômicas que funcionem como formas de coerção. Note-se que o uso
bruto da violência armada e legalizada foi em parte substituído ou disfarçado por estratégias
de persuasão e, até mesmo, de dissuasão (abrandamento) que tentam dissimular a ocorrência
explícita ou atenuada daqueles fatores. Logo, o estado de plena segurança, em seu sentido
plural e fraterno, ainda está longe. Os estudos assinalam que a segurança global é
responsabilidade de cada indivíduo e de toda a comunidade internacional. Entretanto, deixa
claro que a percepção de segurança é apenas aparente.
A segurança decorre da graduação e da assimetria com que é aplicada, pois
está sujeita aos valores que são defendidos, desprezados ou combatidos. A ONU assinala que
são exemplos desses conceitos expressões como “equilíbrio de poder”, “dissuasão” e
53 Sob o título Um Desarmamento Geral e Completo. Estudo sobre os Conceitos de Segurança. Relatório
do Secretário Geral – A/40/553 (Capítulo V – Conclusões e Recomendações, p. 53-61), de 26 de agosto de 1985 (original em inglês).
48
“segurança coletiva”, além de medidas pontuais como o desarmamento, a limitação ao uso de
armamento e a forma como as forças militares dos diferentes povos podem ser mantidas,
preparadas e empregadas, com a ressalva de que quanto maior relevância for atribuída à
segurança (ou, por conseguinte, à defesa) nacional em detrimento da segurança coletiva,
maior será a probabilidade de o cenário internacional se tornar cada vez mais instável, o que
pode resultar nova e desenfreada corrida armamentista, potencialmente aniquiladora ante o
uso da tecnologia nuclear.
Em síntese, os estudos da ONU assinalam que a segurança internacional
seria alcançável mediante a combinação dos seguintes pressupostos: (i) todas as nações têm
direito à segurança, (ii) a utilização da força militar para fins que não sejam a autodefesa não
constitui instrumento legítimo de política nacional, (iii) a segurança deve ser entendida em
termos globais, (iv) a segurança deve ser preocupação de todos os povos,
(iv) a compreensão da diversidade deve servir de fundamento da paz e da segurança e (vi) os
debates a respeito do desarmamento e da limitação à compra, à produção e ao uso de
armamento são extremamente relevantes para a construção e a manutenção da paz e da
segurança. Desses pressupostos, merece destaque aquele que situa a segurança em sentido
amplo ou global, a seguir transcrito (tradução livre):
Políticas de segurança não mais podem ter como causa a paz definida exclusivamente como a ausência de guerra, mas devemos lidar eficazmente com as mais amplas e complexas questões da inter-relação entre elementos de segurança militares e não militares. Isso é essencial para resolver problemas políticos subjacentes, como os sociais e econômicos. Uma forte ênfase sobre os aspectos militares nas políticas de segurança aumentou o ritmo da corrida armamentista, agravada pela exacerbação das tensões internacionais e ao perigo de guerra. As políticas centradas sobre a força militar tendem a desviar a atenção de outras ameaças graves para a segurança global, como a desordem política, os problemas do desenvolvimento, do apartheid, a negação do direito à autodeterminação e a distribuição desigual dos recursos. A ameaça de guerra pode ser tratada de forma inadequada, sem uma análise prévia dos recursos e medidas eficazes dirigidos para as raízes das tensões internacionais e antagonismos que, muitas vezes, dão origem à concorrência no domínio do nuclear e de armas convencionais. Por conseguinte, tornou-se essencial a abordagem global para a segurança, reconhecendo a crescente interdependência dos fatores
49
políticos, militares, econômicos, sociais, geográficos e tecnológicos. A segurança é igualmente importante nos âmbitos nacional e internacional, devendo neles ser assegurada em todos os níveis desses campos.
Por fim, ao suscitar a revisão das políticas de segurança, os estudos indicam
que o caminho da não-guerra ou da paz duradoura está na segurança global, para a qual quatro
requisitos são essenciais, os quais estão associados aos seis pressupostos anteriormente
mencionados: (i) desarmar para evitar ou diminuir o perigo de guerra, (ii) aderir ao Estado de
Direito e às noções de segurança coletiva, (iii) descolonizar e pôr fim ao apartheid e (iv) atuar
política e economicamente para desenvolver a segurança. O desarmamento é um ponto
sensível e de aplicação extremamente desigual, já que é notória a concentração de poder e os
desdobramentos econômicos e políticos que dele decorrem, como a venda, a aplicação de
sanções, a proibição ou a limitação do uso, o contrabando e as restrições quanto à
transferência de tecnologia, que envolvem o poder oficial e as redes de criminalidade. A
adesão ao Estado de Direito parece mais factível, embora também dependa da democracia
que, por sua essência, precisa ser aceita e não imposta. O fim da colonização e da
discriminação significa apelo simbólico, tendo em vista que essas práticas são dissimuladas
em instrumentos e medidas sofisticadas que atingem os mesmos fins por outros meios. A
atuação política e econômica se revela como o pilar de sustentação da segurança sob o
fundamento do equilíbrio entre as demandas sociais e militares, observada a necessidade de
diminuir as vulnerabilidades do campo interno que repercutem no externo.
É preciso reconhecer que a organização da sociedade pressupõe o que se
convencionou denominar pacto social, que transita da forma consentida, tácita à escrita,
formal. Se nas sociedades devem prevalecer os princípios de retributividade, dependência,
controle social e sanção organizada, convém trazer algumas noções que, a esse respeito,
Rousseau (2005, p. 31-32) consignou: (i) a mudança do estado natural dos homens; (ii) a
constatação de que a melhor forma de conservação da existência humana está na agregação
50
das diversas forças para vencer as resistências, na tentativa de estabelecer o mínimo de
harmonia; (iii) como conciliar a força e a liberdade de cada homem para obter benefícios
mútuos; (iv) a superação do aparente antagonismo entre liberdade e esforço comum reside no
estabelecimento de um contrato, cujas cláusulas são “admitidas tacitamente e reconhecidas,
até que, violado o pacto social, cada um torne a entrar em seus direitos e retome a liberdade
natural, perdendo a liberdade de convenção, à qual sacrificou a primeira”; (v) a produção de
um corpo moral e coletivo; e (vi) a figura do Estado como pessoa pública formada pela união
de todas as pessoas.
Comparato (2006, p. 246-247) assinala que a proposta de Rousseau
corresponde “à condição lógica de justificação da relação política”, de tal maneira que se
justifique a sujeição da minoria às decisões da maioria (uma inquietação: quem é a maioria?).
Explica o autor que, diferentemente de Hobbes, Rousseau (2005) parte do pressuposto de que
no contrato social não haveria a possibilidade de se colocar “um soberano situado acima e
fora da sociedade civil”, razão pela qual “é indispensável que a própria comunidade seja a
receptora da totalidade dos direitos individuais”. Essas percepções estão presentes nas noções
de segurança, ou seja, naqueles postulados destinados, de um lado, a preservar a soberania
estatal e, de outro, a proporcionar condições favoráveis de pleno desenvolvimento e
progresso, sem violências ou opressões.
Nesse sentido, Comparato (2006, p. 574-575) assinala que a razão primeira
da existência da sociedade política “é a necessidade de garantir a todos um habitat coletivo,
que lhes assegure uma proteção contra os riscos de fome, falta de abrigo contra as
intempéries, ou assédio de outros grupos humanos”. Na atualidade, a garantia de segurança
pessoal de todos cabe ao Estado. Para tanto, no campo interno dos países são necessários os
sistemas de bem-estar social associados ao desenvolvimento e ao progresso, cujas variáveis se
estendem à economia e ao ambiente. Externamente, o caminho está na superação da atuação
51
isolada na base da disputa. O autor ainda assinala a relevância da solidariedade como atitude
complementar aos postulados de liberdade, igualdade e segurança (2006, p. 577-581):
“Enquanto a liberdade e igualdade colocam as pessoas umas diante das outras, a solidariedade
as reúne, todas, no seio de uma mesma comunidade”, destacando que o individualismo
prepondera na igualdade e na liberdade, enquanto é diminuído na solidariedade.
Conforme será abordado no capítulo seguinte, em linhas gerais a política de
defesa brasileira procura se inserir nesse quadro de conceitos e de princípios sobre
segurança54, dando ênfase às estratégias militares e às novas ameaças que são colocadas como
foco de atenção na atualidade, como os atentados terroristas, as invasões cibernéticas e as
disputas por fontes de energia, esboçando a interdisciplinaridade da matéria mediante a
indicação de pontes com as demais áreas de atuação do poder político e da sociedade civil. No
Brasil houve um significativo avanço, embora tardio e com forte tendência aos aspectos
militares, considerando que os estudos da ONU sobre os conceitos de segurança foram
concluídos no período em que se esboçava a transição do regime de exceção para o
democrático, entrecortado pela reorganização do poder político e pela elaboração de uma
nova constituição para o país.
1.3 Democracia: noções e distorções
A democracia é um argumento que procura fundamentar a legitimidade da
soberania e a difusão ou aceitação da idéia de segurança como mecanismo de preservação do
equilíbrio de forças. Ocorre que soberania e segurança são assimétricas e na maioria das vezes
excludentes, orientando-se pelos privilégios e interesses que estão em jogo, na aproximação
54 Sobre o tema, sugere-se a leitura de Robert S. McNamara (A essência da segurança: reflexões de um
secretário da defesa dos Estados Unidos. São Paulo: IBRASA, 1968), Panorama brasileiro de paz e segurança (Organizadores Clóvis Brigagão e Domício Proença Júnior. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Fundação Konrad-Adenauer, 2004) e Segurança internacional (Organizador Wilhelm Hofmeister. Rio de Janeiro: Fundação Konrad-Adenauer, 2007).
52
ou no distanciamento dos princípios democráticos, razão pela qual a composição do tripé
soberania-segurança-defesa encerra contradições que desafiam o direito e o político, quando
esse busca alternativas para que o equilíbrio de forças possa ser aperfeiçoado e transformado
em divisão de esforços para a melhoria das condições de vida da humanidade, na superação
do dogmatismo a partir da construção de regras jurídicas que levem em consideração
conhecimentos antropológicos e sociológicos. Por esses motivos, interessa à formulação da
política de defesa brasileira conhecer os fundamentos da democracia, e é nessa ótica que o
presente tópico será desenvolvido.
1.3.1 O que é democracia?
Tentar compreender a democracia é um exercício de fundamental
importância para o estudo da política de defesa nacional, tendo em vista os efeitos que são
sentidos no exercício da cidadania e, por conseguinte, das liberdades públicas. Logo, a
participação dos atores políticos e sociais na construção da aludida política constitui requisito
de legitimidade da atuação do Estado, que não pode dispensar o diálogo a partir do qual a
política de defesa é construída e aperfeiçoada. Democracia e soberania são temas ligados aos
conceitos de segurança e defesa, pois ajudam a compreender a forma como o Estado, a
sociedade e os indivíduos se comportam diante do direito e do político, observados os
cenários internos e externos, a conscientização da violência legalizada, o ônus da proteção e a
composição de consensos e de cooperações. Nessa ordem de idéias, serão alinhavadas
algumas noções de democracia, os desafios, as distorções e os dilemas que esse regime
enfrenta.
As controvérsias a respeito da democracia são recorrentes. Dahl (2001, p.
17) destaca que essa discussão remonta ora às práticas sociais experimentadas há 2.500 anos,
53
ora ao início da formação dos EUA55, ora às raízes clássicas vivenciadas na Grécia ou na
Roma antiga. Então, seria a democracia um instituto de progressão contínua ao longo do
tempo? O autor esclarece que não, assinalando que esse regime, essa forma de governar tem
por característica principal a transformação, na medida em que sofre interrupções e declínios
no curso da história. Assim, a democracia pode ser bem ou mal utilizada por aqueles que
exercem o poder, ou mesmo rejeitada pela tomada do poder. A democracia não é uma
ferramenta pronta e previamente preparada; precisa ser aceita, experimentada e, até mesmo,
adaptada às diferentes realidades históricas. No entanto, seus principais fundamentos devem
ser respeitados, dentre os quais o reconhecimento da pessoa humana, a alternância no poder, o
Estado de Direito, o efetivo exercício da cidadania e o respeito às liberdades públicas.
Não é descabido considerar uma espécie peculiar de democracia vivenciada
por populações tribais, ditas não civilizadas. Mas, por certo, essa democracia não se reveste
das peculiaridades, sutilezas e sofisticações dos ritos e das formas praticadas nos Estados
ocidentais modernos56. A propósito, com base no que Franco (2000, p. 234-237) assinalou a
respeito do equívoco que atribuiu aos ditos “selvagens” uma significativa influência na teoria
da bondade natural do homem, no século XVIII, e sua importância para a “doutrina
revolucionária democrática”, é oportuno fazer o seguinte registro: se a democracia, num
determinado momento da história, assimilou as idéias da Revolução Francesa (liberdade,
igualdade e fraternidade), as quais se fortaleceram na construção simbólica do selvagem como
portador da bondade natural, com efeitos nas doutrinas políticas, não seria desarrazoado
55 No dia 4 de julho de 1776 foi declarada a independência dos EUA, data que marca a Declaração de
Independência firmada pelas treze colônias britânicas na América do Norte. 56 Pierre Clastres (2004, p. 231-270), no estudo da etimologia selvagem dos índios da América do Sul, descreve
as restrições ao poder do chefe indígena, que se limita à representação da sociedade a que pertence. Ao líder, que exerce a chefia da comunidade, foram atribuídos poderes limitados, submetidos a um constante processo de controle pelos costumes e princípios que devem ser seguidos. A chefia e a guerra são poderes separados. Para os índios, o poder atribuído ao chefe é condicionado aos anseios da sociedade a que pertence. Desse modo, o chefe não tem o poder de declarar guerra se esse não é o desejo dos guerreiros, os quais, nessa condição, representam a sociedade. Trata-se de um verdadeiro contrapeso, de um mecanismo de proteção da liberdade. É a aversão ao controle único, à concentração de poderes, sendo uma forma legítima de preservação da existência e da continuidade da própria comunidade.
54
ponderar que, considerada errônea essa conclusão, destinada a dar concretude a um modelo,
os ideais democráticos restariam também comprometidos, posto que assentados na frágil
visão mitológica de um argumento.
Para Kelsen (1993, p. 88), a liberdade democrática está impregnada de
dominação. Esse entendimento revela a contradição existente na democracia. O autor
argumenta que a relevância desse regime reside não na ausência de chefes, mas na forma
como o poder político é formado e exercido. Daí a importância da maneira como a
representatividade é legitimada, de tal modo que, na sua visão, é preciso superar a construção
de que a vontade dominadora dispensa a efetiva participação popular (o exercício da
cidadania), dando lugar ao que chamou de escolha pelo amplo extrato daqueles que são
submetidos à ordem social, a revelar uma significativa falha da democracia real e o seu
distanciamento da democracia ideal. Nos esforços para superar ou minimizar a precariedade
da representação nos governos democráticos, Bovero (2002, p. 17-18) utiliza o termo
“equiparação”, aproximando-o do sentido de igualdade para formular a distinção que a
democracia apresenta em comparação com outras formas de convivência política, em tempos
antigos ou modernos, no permanente exercício do que chamou de “superação ou absorção de
desníveis”.
Entretanto, o sentido que os homens atribuem à igualdade freqüentemente
sofre mutações ao longo do tempo, porque inclinações particularizadas preponderam na
defesa de interesses não coletivos. Aqui, o sentido de coletivo não se confunde com o
corporativo, de uma determinada classe ou categoria, mas sim o voltado ao reconhecimento
da pessoa humana, sem distinção de origem, cor, credo ou posição social. Bovero (2002, p.
22), na menção de Tocqueville a Aristóteles, para quem “a democracia nasceu do fato de que
aqueles que são iguais em um ponto crêem ser absolutamente iguais: uma vez que todos são
igualmente livres, consideram ser iguais em tudo”, assinala que a igualdade precisa ser
55
compreendida além da simples igualdade de condições no corpo social: deve pressupor o
reconhecimento da pessoa humana independentemente de sua origem e condição social, como
portadora de direitos universais. Ocorre que, na democracia, essas características exigem que
o poder e a atuação política sejam compartilhados, distribuídos, de modo a que os governos,
os políticos e as instituições não se coloquem acima uns dos outros e das respectivas
populações.
A respeito da conscientização e da conseqüente distribuição de
responsabilidades intrínsecas ao regime democrático, Barzotto (2003, p. 207) defende que é
de natureza personalista a finalidade dos governos que se pautam no Estado Democrático de
Direito, na medida em que há “um dever de todos na plena realização dos seres humanos
entendidos não em termos individualistas (Kelsen) ou de um cidadão total (Rousseau), mas
concebidos como pessoas”, a expressar “a estrutura jurídico-política de uma comunidade que,
sob um Estado de Justiça, delibera sobre o conteúdo da vida boa e do bem-comum”. Por
conseguinte, depreende-se que, para o autor (2002, p. 23), a igualdade democrática reside no
pressuposto de que todos, indistintamente, têm o direito de participar do poder político, isto é,
das decisões de ordem pública. Na democracia moderna, a igualdade de participar se
concretiza no poder de votar, inerente à soberania popular e à representatividade, sendo essas
as características que distinguem a democracia moderna da antiga. Por outro lado, igualdade
requer liberdade, conceitos que, colocados no contexto do Estado político organizado, não
traduzem a acepção etimológica das expressões57, sendo pertinente, nesse sentido, a assertiva
de Montesquieu (1995, p. 186):
57 Kelsen assinalou: “A idéia de igualdade, por ser diferente da idéia formal de igualdade formal na democracia,
isto é, da igualdade dos direitos políticos, nada tem a ver com a idéia de democracia. Isto fica claramente demonstrado pelo fato de a igualdade material – não igualdade política formal – poder ser realizada tão bem ou talvez melhor em regimes ditatoriais, autocráticos, do que em regime democrático” (op. cit., p. 99).
56
É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer; mas liberdade política não consiste nisso. Num Estado, isto é, numa sociedade em que há leis, a liberdade não pode consistir senão em poder fazer o que se deve querer e em não ser constrangido a fazer o que não se deve desejar.
Deve-se sempre ter em mente o que é independência e o que é liberdade. A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque outros também teriam tal poder.
As idéias de Montesquieu estão presentes em Bovero (2002, p. 78-79), na
abordagem das liberdades positiva e negativa. A primeira (positiva) traduz a liberdade que o
indivíduo tem de decidir por sua própria vontade; é o querer autônomo de agir por si mesmo,
ao tempo em que a segunda (negativa) reside na liberdade de agir segundo princípios e
convenções adotados por uma determinada sociedade. Esses sistemas de idéias são objeto,
também, dos estudos de Berlin (2002) e Dumont (1985), compreendidos como questões
centrais da política: a obediência e a coerção. Na ideologia do individualismo, o homem deixa
de ser livre para ser igual, estando, pois, sujeito à obediência e à coerção. Para Berlin (2002,
p. 229), o sentido negativo diz respeito à liberdade ou não de ser ou de fazer algo, com ou sem
a permissão ou a interferência de outras pessoas ou instituições. O sentido positivo de
liberdade abrange o campo de controle ou interferência que determina que alguém faça ou
deixe de fazer alguma coisa. Na noção de liberdade negativa o homem é livre quando não está
sujeito à ação de outros. Daí decorre a liberdade política, que consiste no agir sem sofrer
restrições dos demais. O autor explica que “não temos liberdade política quando outros
indivíduos nos impedem de alcançar uma meta” (2002, p. 230-231). Além da restrição e da
coerção, a escravidão ou a opressão podem determinar esse estado de coisas.
Nesse sentido, a liberdade se amplia na medida em que a interferência é
diminuída. Berlin (2002, p. 231-234) destaca, a partir de Locke e Mill na Inglaterra e Constant
e Tocqueville na França, a necessidade de existir uma “mínima liberdade pessoal”, a ser
protegida de interferências, sendo essa questão de vital importância para os limites de atuação
57
do público sobre o privado. Contudo, o autor admite que a natureza interdependente dos
homens impossibilita a completa não-interferência, demonstrando, na seguinte passagem, que
igualdade e liberdade não podem prescindir do reconhecimento da condição de pessoa
humana a partir da necessidade – e, também, do dever coletivo – de oferecer a todas as
pessoas instrumentos que permitam refletir e agir critica e politicamente no contexto social:
[...] De fato, oferecer direitos políticos ou salvaguardas contra a intervenção do Estado a homens semi-nus, analfabetos, subnutridos e doentes é zombar de sua condição: eles precisam de ajuda médica ou educação antes de poderem compreender ou aproveitar um aumento em sua liberdade. O que é a liberdade para aqueles que não a podem empregar? Sem as condições adequadas para o uso da liberdade, qual é o valor dela? [...] a liberdade individual não é a necessidade primária de todos.
Não basta, pois, a liberdade. Para que possam fazer as melhores escolhas, é
preciso que as pessoas desenvolvam capacidade cognitiva para compreender os
acontecimentos, os conflitos, os jogos de conquista do poder e as pressões a que estão
sujeitas, não apenas no sentido de satisfazer a interesses pessoais, mas essencialmente para
refletir a respeito do conjunto de valores praticados numa dada sociedade. Ocorre que, para a
maioria da população, o desenvolvimento da capacidade cognitiva, da compreensão, fruto da
saúde, da educação e da cultura, dificilmente será alcançável senão com a prática continuada
de efetivas políticas públicas, construídas a partir da aplicação do direito não como um mero
instrumento de poder, mas como princípio de justiça eqüitativa. Com esses pressupostos, a
liberdade precisa ser associada à capacidade de escolher livremente, desapegada da tendência
de superar o outro ou de obter vantagem imediata. Então, a liberdade é a essência dos regimes
democráticos, evidentemente porque permite – se não deturpada – a participação (direta ou
por representação) dos indivíduos, na esfera dos mais variados temas, quando dos debates
para a tomada de decisões vinculatórias e para a elaboração de normas de conduta a que
estarão sujeitos, como é o caso da defesa. Logo, esse concurso de aspirações de todos os
atores sociais restará viciado se admitir discriminação ou qualquer forma de opressão, posto
58
que a ampla vinculação da obediência e da coercibilidade pressupõe a garantia de poder
participar e, por conseguinte, o dever de assumir responsabilidades.
Se a democracia depende da participação popular, é de valia lembrar que o
ingresso das massas no cenário de atuação política também foi uma das formas de manter
determinado predomínio de poder das elites e evitar a ruptura total do sistema no qual se
organizava o poder. A Revolução Francesa afastou o predomínio da aristocracia e influenciou
a nova forma de organização política e social. Sieyès (2001) demonstrou que o Estado não
representava a sociedade como um todo. A estrutura organicista francesa separava a elite
dirigente (nobreza e Igreja) do povo, dando origem ao movimento a partir do qual um novo
pacto de convivência social e de exercício do poder político foi construído. Esse novo quadro
influenciava – mesmo que a contragosto da elite dirigente e dominante – a maior participação
popular, inclusive como estratégia na busca pela legitimidade das decisões a serem tomadas,
de natureza vinculatória, sobremaneira para justificar a arrecadação de tributos e para fazer
face às necessidades da nova estrutura política. O Estado nacional subordinado a um poder
centralizado precisava refletir a imagem de uma nação unificada, de tal modo que a vontade
dos cidadãos exigia a representatividade e normatividade que emoldurassem o artifício da
aceitação coletiva.
Assim, se na democracia a soberania emana do povo e partir dele se
exterioriza, a conformação jurídica estabelecida para a organização social como representação
desse poder encontra significado na seguinte passagem de Kelsen (1993, p. 36):
Na verdade, o povo só parece uno, em sentido mais ou menos preciso, do ponto de vista jurídico; a sua unidade, que é normativa, na realidade é resultado de um dado jurídico: a submissão de todos os seus membros à mesma ordem jurídica estatal constituída – como conteúdo das normas jurídicas com base nas quais essa ordem é formada – pela unidade dos múltiplos atos humanos, que representa o povo como elemento do Estado, de uma ordem social específica.
59
No Brasil, a análise feita por Visconde do Uruguai (2002, p. 492) demonstra
que os mecanismos da organização do Estado nacional levaram em conta os instrumentos de
centralização e descentralização do poder político, com destaque às estratégicas de formação
das instituições e das autoridades públicas, na comparação entre os postulados ingleses,
americanos e franceses, sendo esses os que mais de se aproximam da realidade brasileira. Para
o autor, a descentralização do poder nos municípios reflete a plena liberdade e, por
conseguinte, a democracia:
É contudo na municipalidade que reside a força dos homens livres. As instituições municipais são para a liberdade o que as escolas primárias são para as ciências; põem a liberdade ao alcance do povo, fazem com que apreciem o seu gozo tranqüilo e habituam-no a servir-se dela. Sem instituições municipais pode uma nação dar-se um governo livre, mas não tem o espírito de liberdade.
Dessas questões não escapa o conflito entre liberdade e dominação, fazendo
com que sejam trazidas para a atualidade as colocações de La Boétie (2003, p. 28-30), para
quem a cobiça está sempre presente. A democracia não está imune a esse tipo de deturpação.
Provavelmente, essa ambição desmedida seja de fato o fiel da balança entre a resistência e a
servidão, estabelecendo-se relacionamentos que ampliam a dominação. Dessa forma, explica-
se a necessidade de distribuir pequenas parcelas de poder. A vontade de servir, no dizer do
autor, surge quando o amor à liberdade deixa de ser natural. A dominação, da qual decorre a
servidão, de tão enraizada leva à concepção de que os homens não nascem na posse da
liberdade e nem com a obrigação de defendê-la. Nos dias de hoje, a servidão é percebida, de
um lado, na composição de interesses descompromissados com as demandas públicas e, de
outro, na miséria, na pobreza e na falta de acesso à educação e à saúde (citando-se algumas
formas de exclusão e, por conseguinte, de opressão). Esses são exemplos do jugo, na medida
em que passam a ser instrumentos de imposição e de manutenção do poder, observando-se
que as pessoas estão apenas preocupadas com a sobrevivência ou com a subsistência,
colocando em segundo plano a liberdade e a efetiva participação democrática.
60
Outras reflexões de La Boétie (2003, p. 33-39) também encontram
ressonância nas distorções que a democracia enfrenta, dentre as quais a constatação de que os
tiranos se dividem em três espécies, conforme o modo de conquista do poder: (i) pela eleição
do povo, (ii) pela força das armas ou (iii) pela sucessão da raça, cujas hipóteses não merecem
maiores digressões. A opressão, para se instalar, segue a estratégia que começa com o servir
daquele que é constrangido pela derrota em conseqüência do uso da força (por certo que não
necessariamente da força física ou do uso de armas). Depois, a servidão funciona sem que seja
percebida, como se fosse uma circunstância voluntária. Esse estado de coisas se consolida ao
longo do tempo, sustentado pela “alimentação” e “educação” como um processo natural,
necessário, incondicional e definitivo. Revela-se, então, a primeira “razão” da servidão: o
costume ou hábito; a segunda, que decorre do costume de nascer e receber educação, consiste
em tornar os homens inertes e dóceis. Assim, constitui tarefa dos tiranos sempre “embrutecer
os súditos”, de maneira a torná-los incapazes de perceber a dominação e a servidão.
A constatação de La Boétie se aplica à atualidade: “o povo desconfia de
quem o ama e é sincero com quem o engana” (2003, p. 41). É possível estabelecer
comparações com as práticas de dominação de nossos dias, especialmente no campo de
políticas paternalistas e de engodo, em que um determinado programa ou ação político-
governamental tem início nas promessas eleitoreiras e na lei que entra em vigor mas, na
prática, não atinge ou não pretende atingir o seu fim, ou quando se destina a cooptar votos por
meio de burla às regras eleitorais.
Na tentativa de obter legitimidade para medidas vinculatórias, Dahl (2001,
p. 32-34) registra que a idéia de obter um mínimo de consenso dos governados a respeito das
reivindicações quanto ao aumento dos impostos se transformou gradativamente na
necessidade de estabelecer debates a respeito das leis em geral, exigindo-se, principalmente
em razão do tamanho dos territórios, a representação por meio de eleições nos colegiados que
61
tratavam de tributos e formulavam leis, de tal modo que, para os acordos, era necessário
reunir os populares. O autor menciona que essas práticas e tradições formaram a base para o
surgimento da democracia. Contudo, o caminho inicial foi apenas uma promessa, pois muitos
requisitos essenciais a esse sistema representativo de governo popular não estavam – e ainda
não estão – totalmente presentes, dentre os quais: (i) a diminuição das desigualdades sociais e
econômicas como forma de influência no poder, (ii) a realização de assembléias com efetiva
participação democrática (existência de privilégios e falta de representatividade popular), (iii)
a atuação dos representantes deslocada das demandas populares e (iv) a fragilidade da cultura
democrática.
Lembre-se que a tendência a governos democráticos não se guiou apenas
pela legitimidade de arrecadar tributos. A maior participação popular58 em decisões políticas
de caráter vinculatório também se revestiu da estratégia de conter a força de grupos que não
se contentavam com a concentração do poder num Estado aristocrático59 influenciado por
uma igreja parcial. Dessa forma, a iniciação democrática passou longe da simultânea tomada
de consciência coletiva em favor da necessidade de proporcionar liberdade, pleno exercício da
cidadania e alternância no poder, para encontrar explicação na estratégia de evitar uma
ruptura de conseqüências incalculáveis para a organização na qual operavam as redes de
poder dominantes.
Considerado que a democracia traz uma nova forma de governo vinculada à
soberania popular, na medida em que, seja pelo voto, seja pela fiscalização dos atos públicos,
o povo atua e contribui para o avanço ou para o retrocesso desse sistema político, há que se
perquirir a respeito do exercício dessa faculdade, desse poder soberano. Teria o povo
58 Especialmente da burguesia, que precisava de consumidores e de mão-de-obra para a expansão de seus
negócios. 59 Para Kelsen, na “ideologia autocrática, o chefe não é um órgão criado pela coletividade ou que possa ser
criado por ela. Deve ser imaginado como uma potência à qual a coletividade deve sua própria existência, como um ser cuja origem, se possível, não seja compreensível à inteligência humana” (op. cit., p. 93).
62
condições para tal? Não há consenso para essa questão. Porém, embora a administração dos
assuntos de ordem pública possa ser confiada a representantes eleitos, as prerrogativas
populares dependem da capacidade dos cidadãos em compreender e se posicionar a respeito
de temas que ultrapassam seus interesses particulares com o mínimo de desprendimento. O
pensar coletivamente é uma virtude de difícil mensuração, mesmo na democracia. Todavia,
essa atitude é construída a partir do enfrentamento continuado desse dilema, experimentando-
se os princípios democráticos na vigilância recíproca entre as redes nas quais estão
relacionados os atores públicos. Daí a importância das opiniões divergentes para a formação
de equilíbrios.
Quando se cogita em aptidão do povo, a formulação de Montesquieu (1995,
p. 189) está presente nos debates: “A grande vantagem dos representantes é que são capazes
de discutir os negócios públicos. O povo não é, de modo algum, capaz disso, fato que
constitui um dos graves inconvenientes da democracia”. Essa assertiva tem cabimento na
atualidade? Não. Ocorre que, na maioria das vezes, para ter acesso às informações que
funcionam como meio para corrigir as distorções do sistema, o povo depende dos mecanismos
que são oferecidos pelos próprios governantes ou pelas instituições (públicas ou privadas). Os
avanços nesse sentido precisam de tempo e da superação de obstáculos, tais como sobreviver,
alimentar-se, ter saúde, instruir-se, suplantar a apatia, sensibilizar-se com as dificuldades do
outro. A tarefa é difícil, pois a conquista desse estágio depende de políticas públicas de
responsabilidade daqueles que atuam em nome do Estado, como políticos e técnicos. Então, a
alegada falta de aptidão do povo decorre de ações ou omissões dos que exercem o poder,
como também de consensos e da conjugação de esforços da sociedade civil. Na democracia
contemporânea, é preciso que, mesmo representado, o povo atue de forma consciente e
efetiva, fiscalizando seus representantes e cobrando resultados, no pleno exercício da
cidadania, não obstante essas prerrogativas sofrerem fortes restrições e obstruções do poder
63
político oficial, notadamente na ausência de políticas públicas indispensáveis à participação
popular nos assuntos ditos de Estado. Soma-se a esses fatores a atividade parlamentar
desprendida de interesses de grupos corporativos descompromissados das demandas coletivas.
A análise acadêmica de Ferreira Filho (2001, p. 32) pode ajudar no esclarecimento desse
processo:
É registro de experiência que de povo para povo há grandes diferenças de cultura política. Essa variação também ocorre num mesmo povo de época para época. De fato, como a ciência política já apontou, há diferentes tipos e diferentes níveis de cultura política. Ora, essas diferenças afetam a aptidão do povo para governar-se [...]. Somente a demagogia o negará. Essa cultura tem de ser levada em conta na estruturação das instituições e na distribuição das competências. Tal cultura política é função de numerosos fatores que incluem a civilização a que pertence o povo, a sua experiência histórica, portanto a sua cosmovisão.
No entender de Ferreira Filho (2001, p. 31-33), a democracia
contemporânea “consiste numa forma de governo em que o povo participa decisivamente da
escolha dos seus governantes (eleição), todos os seus integrantes estando em pé de igualdade
quanto ao peso de sua participação (voto) e à elegibilidade”. Dessa feita, o governo se
estabelece por meio dos representantes eleitos pelo povo para servir aos interesses da
coletividade. Esse mecanismo, no dizer do autor, “permite uma seleção de baixo para cima,
impedindo a cristalização como casta da minoria governante”, sendo, para tanto, fundamental
“uma ampla informação, uma ampla liberdade de propaganda e defesa de idéias, o que
reclama partidos, e, por outro lado, o gozo por todos das liberdades, dos direitos
fundamentais”. Nessa ordem de idéias, o autor argumenta que a atuação dos governantes e
dos parlamentares não pode prescindir de um sistema político com determinadas “garantias
indispensáveis para impedir a sua degeneração”, a compreender uma “constituição rígida,
com o devido controle de constitucionalidade, a divisão do Poder, a proteção dos direitos
fundamentais”. A limitação do poder constitui, por conseguinte, o elemento fundamental da
64
democracia contemporânea, na medida em que exige que todos pratiquem os princípios
democráticos, com o propósito de evitar a “tirania da maioria”.
A democracia não se instala por conta própria. A aceitação, a prática e a
experimentação dos princípios democráticos dependem das pessoas, num movimento
voluntário ou de ruptura, a influenciar a organização do Estado e o agir das instituições. Como
não pode ser imposta, precisa ser compreendida e experimentada. Se boa ou ruim, dependerá
não da crença ou do mito, mas de atitudes conscientes voltadas a aperfeiçoá-la. Apesar da
possibilidade de ser rejeitada, deturpada ou combatida, a democracia se revela como o meio
mais adequado para o exercício das escolhas, das liberdades públicas e da legitimidade na
alternância do exercício do poder, fatores de influenciam a forma pela qual os Estados agem
interna e externamente, a refletir nas posturas política e jurídica que formam, inclusive, as
bases da segurança e da defesa.
A idéia de democracia está ligada aos mecanismos de representação popular
e da organização político-institucional do país. Todas as constituições brasileiras mantiveram
a forma republicana de organização do Estado, tradição advinda da proclamação da República
de 15 de novembro de 1889. Note-se que a Constituição do Império, de 1824, embora não
contemplasse, por óbvio, a natureza de república, previu a entidade estatal sob a forma de
associação política de todos os cidadãos brasileiros, os quais constituiriam uma nação livre e
independente (art. 1o), estipulando, numa visão que se aproximava do modelo federativo, que
o território estaria dividido em províncias, sendo permitida a subdivisão de acordo com o
interesse público (art. 2o). Curiosamente, o governo era monárquico hereditário,
constitucional e, também, representativo (art. 3o).
65
A representatividade política esteve presente nas constituições de 196760, de
1946, de 1934 e de 1891. A Constituição de 1937, decretada por Getúlio Vargas, não previu a
representação política ao argumento dos conflitos enfrentados pelo país naquela época. O
poder constituinte originário da Carta Política de 1988 prescreveu que não será objeto de
deliberação proposta de emenda destinada a abolir a forma federativa da República61.
Entretanto, diferentemente da forma republicana, o estado democrático de direito somente foi
expressamente previsto no atual texto constitucional, de tal modo que, na atualidade, o Brasil
está organizado sob a forma de república federativa, tendo adotado a estrutura jurídico-
política de Estado Democrático de Direito, sob o regime de governo de natureza
representativa, no qual todo “o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente”62.
Essas premissas são relevantes, pois servem para delimitar os parâmetros a
partir dos quais a política de defesa deve ser formulada. Do modelo absolutista ao
republicano, o Brasil, depois de um período de experimentação democrática e de
instabilidades políticas, deixou o regime de exceção para novamente enfrentar os desafios da
democracia, prevendo, agora de modo expresso, na Carta de 1988, o Estado de Direito. Essa
mudança precisa superar o valor simbólico que o termo encerra. Avanços são percebidos
nesse sentido e é inegável que o país está no caminho da consolidação democrática. E nessa
linha a política de defesa também precisa ser pensada, ou seja, a discussão de seus
fundamentos não pode se restringir ao governo ou a um grupo seleto de especialistas,
militares ou civis. A defesa é matéria de ampla – porém silenciosa – repercussão, de modo
60 Não obstante as restrições impostas pela Emenda Constitucional no 1, de 17 de outubro de 1969, editada pelo
governo militar, por força da qual, com base no Ato Institucional no 16, de 14 de outubro de 1969, e no Ato Institucional no 5, de 13 de dezembro de 1968, uma vez decretado o recesso do Congresso Nacional, o Poder Executivo Federal se investiu da prerrogativa de legislar sobre todas as matérias e de emendar a Constituição então vigente editando, na prática, uma nova Carta Política. A respeito, sugere-se a leitura de Roberto A. R. de Aguiar (Os Militares e a Constituinte – poder civil e poder militar na Constituição. São Paulo: Alfa-Omega, 1986).
61 Cf. § 4o do art. 60 da Constituição Federal de 1988. 62 Cf. parágrafo único do art. 1o da Constituição Federal de 1988.
66
que interessa ao poder estatal e à sociedade civil, ante os efeitos vinculatórios que decorrem
(ou não) de consensos. Contudo, a participação democrática na elaboração da política de
defesa exige debate público e representação política adequada.
Da intensidade do debate público a difusão de conhecimentos e de idéias
sobre defesa desvelará a extensão e a profundidade do tema, suas teias de relacionamento e
repercussão na vida das pessoas comuns, dos governos e das instituições nacionais e
internacionais, demonstrando a necessidade de consensos e cooperações para fins de interesse
coletivo. Dessa maneira, a legitimidade das ações tenderá a aumentar, posto que, uma vez
percebida a natureza multidisciplinar da defesa, o concurso positivo de esforços resultará o
aperfeiçoamento de estratégicas e a condução de políticas públicas nos contextos nacional e
internacional, com os custos, ônus e prerrogativas inerentes. Não se trata de devassar o sigilo
de informações e das estratégias do país, mas de debater o que deva ser considerado relevante,
do que efetivamente importa para alcançar a sensação de que “não existe perigo de uma
agressão militar, pressões políticas ou coerção econômica, de maneira” a que o país possa
“dedicar-se livremente a seu próprio desenvolvimento e progresso”63. Ademais, seria
ingenuidade supor que os demais países não conhecem pelo menos parte do diagnóstico das
vulnerabilidades, das estratégias e dos recursos brasileiros64, de ordem civil, política e militar.
Assim, o debate além de consultas e audiências formais fundamentará as bases democráticas
da política de defesa, fixando-se, ao final, as correspondentes regras jurídicas. Nesse ponto, a
representatividade política é colocada à prova.
A par dos atuais problemas de ingerência política e das denúncias de
corrupção vivenciados no país, que indicam sinais de desequilíbrio nas relações institucionais
63 Nos termos da definição dada em 1990 por especialistas da Organização das Nações Unidas (Cf. item 1.3 do
anexo do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005). 64 Nos recursos está o conjunto do potencial humano, econômico, natural e bélico, entre outros.
67
de independência e harmonia entre os poderes65, cabe indagar: o povo efetivamente é
representado? Vivencia-se uma crise de representatividade, cujos efeitos repercutem no
equilíbrio de forças indispensável à democracia? Embora essas reflexões ultrapassem a
delimitação temática do presente trabalho, algumas impressões merecem ser suscitadas no
tópico seguinte, pois essas noções ajudam a entender a dificuldade de formular a política de
defesa a partir de um consenso que conte com a ampla participação de atores políticos e
sociais.
1.3.2 Desafios democráticos
Bobbio (2006, p. 30) assinala que, para compreender a democracia, é
preciso colocá-la como idéia contraposta à autocracia, que é a forma de poder político
exercido por uma pessoa ou grupo de pessoas que, discricionariamente, desempenha as
funções de governo66. No dizer do autor, a democracia é “caracterizada por um conjunto de
regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar decisões
coletivas e com quais procedimentos”. Dessa maneira, os regimes democráticos estão
fundados no Estado de Direito, isto é, nas regras de conduta que orientam a representação
política e o funcionamento das instituições, as quais são (ou deveriam ser) elaboradas,
cumpridas, fiscalizadas e aperfeiçoadas pelo conjunto de atores políticos e sociais para que,
no enfrentamento dos mais diversos interesses, possa prevalecer o bem-comum.
Então, onde se situam a política e o político e que relevância têm para a
democracia? Para Lefort (1991, p. 25), a política está além do fato político exteriorizado
isolado dos de natureza social, como os econômicos, jurídicos, estéticos e científicos.
65 Esses problemas e denúncias são, entre outros, os que envolvem integrantes do Legislativo, suas ligações com
o Executivo e, até mesmo, com o Judiciário e setores da sociedade. São exemplos o caso denominado “mensalão” (objeto da denúncia do Ministério Público Federal, tratada no Inquérito no 2.245, em curso no Supremo Tribunal Federal) e a investigação chamada “Operação Furacão” (levada a efeito pela Polícia Federal e tratada no procedimento de no 2007.51.01.80285-5, em trâmite na 6ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro).
66 Os governos autocráticos tomam as conhecidas formas de tirania, despotismo, ditadura ou oligarquia.
68
Segundo o autor, esse pensamento cria a ficção que define uma das características das
sociedades democráticas modernas: a indevida separação entre política e outras atividades
também essenciais do corpo social, equívoco que prejudica o pleno exercício dos princípios
democráticos como decorrência do isolamento e da não-participação nas decisões de atores
que nelas têm interesse. É nesse ponto que Lefort estabelece a estreita ligação entre política e
poder político. A política não pode ser desprendida do “significado político” que lhe é anterior
e do qual se origina. Isso porque, a forma de sociedade é definida pelo poder político que a
estabelece e, por conseguinte, proporciona legitimidade às concepções políticas que
orientarão o atuar de todo o conjunto social, cujas transformações estarão sujeitas à
estabilidade (ou não) do poder político no curso do tempo:
O político revela-se assim não no que se nomeia atividade política, mas nesse duplo movimento de aparição e de ocultação de modo de instituição da sociedade. Aparição, no sentido em que emerge à visibilidade o processo crítico por meio do qual a sociedade é ordenada e unificada, através de suas divisões; ocultação, no sentido em que um lugar da política (lugar onde se ergue a competição entre os partidos e onde se forma e se renova a instância geral de poder) designa-se como particular, ao passo em que se encontra dissimulado o princípio gerador da configuração de conjunto. (LEFORT, 1991, p. 26)
Poder político e política não são exclusividades da democracia. Porém, é
nesse regime que desempenham relevância crucial, pois norteiam as liberdades públicas, as
escolhas, a alternância no poder, a maior participação da sociedade na formulação de
demandas e a fiscalização do modo de agir dos atores e das instituições. Nesse sentido, a
forma como a sociedade é constituída e projetada diante de si e do Estado formal (em sua
construção orgânica) proporcionará o aperfeiçoamento ou o desvirtuamento da arquitetura
democrática. Não é desarrazoado dizer que as sociedades – assim como a democracia – estão
sujeitas a transformações, num permanente processo de construção e de adaptação. Por certo
que esse caminhar sofre a influência das mais variadas redes de interesses, capazes de inserir
distorções nos processos governamentais, na elaboração de políticas públicas e, também, na
69
formação do direito, de modo que essas percepções não podem se deslocar da formulação da
política de defesa nacional.
Com essas preocupações, Lefort (1991, p. 27) propõe repensar o político a
partir do que chamou “emergência do totalitarismo” e de seus reflexos na democracia, ao
observar que o totalitarismo moderno adquiriu uma “mutação de ordem simbólica” que
influencia, por sua vez, a forma pela qual o poder é exercido. Nessa configuração, os
procedimentos democráticos são mitigados pela supremacia de um partido “como portador de
todas as aspirações do povo e detentor de uma legitimidade que o coloca acima das leis; ele
toma o poder destruindo todas as oposições; o novo poder não tem que prestar contas a
ninguém, subtraindo-se a todo controle legal”. Essa distorção se opera na atuação de um
partido ou na liderança que exerce sobre outros, numa coligação de demandas que, na
hipótese de Lefort, não levam em conta o interesse público, os ideais democráticos e a
diversidade de opiniões. Com efeito, a democracia é reduzida a rótulo que ilude e oculta a
atuação hegemônica contrária à pluralidade. Essa forma de exercício do poder político é
composta por pessoas que dão substância à imagem e exteriorizam o discurso político dirigido
à coletividade. Na ampliação desse quadro, estão os partidos, os países, as instituições e as
organizações internacionais públicas e privadas.
O viés totalitário atinge frontalmente o regime democrático que tem por
pressuposto a outorga da soberania popular à representação política do Estado que,
organizado a partir de instituições, passa a exercer o poder político e a adotar medidas cujos
efeitos se estendem a todos os integrantes do corpo social. Contudo, essa transferência de
poder não é ilimitada ou definitiva. Ao contrário: é temporal e restrita. Dessa dupla
condicionante resulta a constatação de que os representantes do povo (no Executivo e no
70
Legislativo67) não exercem (ou não deveriam exercer) o poder outorgado para satisfazer a
interesses corporativos, pessoais ou destinados a atender projetos de simples conquista ou
permanência no poder, de concessão, ampliação ou manutenção de privilégios. Não obstante,
a disputa e a alternância no poder são legítimas e benéficas à democracia. O bom uso da
soberania popular é uma das principais preocupações que devem orientar os defensores da
democracia. Além de imanentes aos preceitos e aos valores universais da humanidade, a
temporalidade e as restrições ao uso representativo da soberania popular residem no conjunto
de regras que a sociedade instituiu como pacto de convivência68 previsto na constituição, que
pode ser escrita ou não69.
A propósito, as constituições escritas e as não-escritas são suscetíveis a
distorções do poder político, observadas as circunstâncias de cada época, as instabilidades
políticas e os desequilíbrios institucionais, mediante a inclusão de regras e procedimentos não
previstos ou autorizados, em flagrante lesão à soberania popular. Logo, as constituições
sofrem o risco de servir de instrumento de governantes e de parlamentares para fazer face às
aspirações desprovidas de interesse público. Desde que compatíveis com a vontade popular,
as cartas políticas devem ser respeitadas, a exemplo do ato jurídico perfeito, do direito (e não
privilégio) adquirido e da coisa julgada70. As mudanças são bem-vindas, desde que observem
as regras democráticas.
No cenário brasileiro, causa estranheza a Proposta de Emenda à
Constituição no 157/200371, que tem por objetivo convocar uma questionável e não prevista
assembléia de revisão constitucional, cuja justificativa consiste no seguinte: “[...] À toda
67 No Brasil, os cargos do Poder Judiciário e do Ministério Público não são preenchidos pelo voto popular direto.
Via de regra, o acesso a essas carreiras se dá por concurso público. Contudo, há hipóteses em que o Presidente da República realiza nomeações precedidas ora pela organização de listas oriundas de instituições jurídicas, ora pela escolha exclusivamente política, o que, de forma indireta, simboliza o exercício da outorga da soberania popular.
68 Trata-se do pacto ou contrato social construído a partir de princípios e regras procedimentais. 69 Na atualidade, somente Israel e Inglaterra têm constituições não escritas. 70 Cf. art. 6o do Decreto-Lei no 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução ao Código Civil). 71 De iniciativa do Poder Legislativo e elaborada pela da Câmara dos Deputados. Fonte: www.camara.gov.br.
71
evidência, a Constituição brasileira exacerba da tarefa de impor limites aos poderes públicos,
constituindo-se em poderoso instrumento de ingovernabilidade”. Essa colocação revela a
insatisfação, pelo menos em parte, com as restrições que a lei maior impõe àqueles que
exercem o poder. Esse fato é preocupante, pois coloca o direito como instrumento do poder
político, e não como limite ou parâmetro para o bom exercício do poder. A Carta Política
brasileira é escrita e os procedimentos para sua eventual alteração demonstram a rigidez de
sua natureza, posto que, de acordo com as prescrições estatuídas pelo poder constituinte
originário, somente poderá ser emendada por proposta “de um terço, no mínimo, dos
membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal”, “do Presidente da República” ou
“de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-
se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros”72.
Ademais, não poderá ser levada à deliberação proposta de emenda que
pretenda abolir “a forma federativa de Estado”, “o voto direto, secreto, universal e periódico”,
“a separação dos Poderes” e “os direitos e garantias individuais”73. Há de se reconhecer que a
Constituição brasileira poderia ter um rol mais adequado, restrito ou simplificado de matérias
protegidas. Porém, essa decisão não encontra legitimidade apenas no caráter transitório dos
governos. O debate sob o fundamento do qual será estabelecido o consenso para um novo
pacto transcende os apelos circunstanciais para alcançar o cerne das razões formadoras do
pensamento político, dos valores da sociedade. A mudança deve obedece à vontade popular
sob pena de distorcer a essência da cidadania na escolha dos desígnios da nação, além de
afetar a segurança jurídica e, por conseguinte, a estabilidade das relações sociais. Por outro
lado, o respeito às regras constitucionais não impede a feitura de outra constituição, caso a
profundidade das reformas assim o exigir, estabelecendo-se um novo pacto por ruptura ou
consenso.
72 Cf. art. 60, I a III da Constituição Federal de 1988. 73 Cf. art. 60, § 4o, I a IV da Constituição Federal de 1988.
72
O totalitarismo ou a ameaça totalitária, como forma de distorção da
democracia, passa a ser inserido, na percepção de Lefort (1991, p. 28), na “esfera do poder, na
esfera da lei, na esfera do saber”, fazendo com que Estado e sociedade civil se confundam
como única entidade, na representação do poder político dominante que pretende dar
aparência hegemônica e negar a divisão social, “ao mesmo tempo que são recusados todos os
sinais que diferenciam as crenças, opiniões, costumes”. O caráter hegemônico é contrário aos
princípios democráticos. Esse é o principal contraste entre democracia e totalitarismo, posto
que, enquanto a primeira se fundamenta na indeterminação do processo histórico do qual se
origina e se aperfeiçoa, o segundo depende do artifício unitário (Estado, partido político
dominante e sociedade), na busca do controle de todas as manifestações do corpo social, a
partir da lei74 (moldada pela instrumentalização do direito) e da organização das instituições.
Por essas razões, Lefort (1991, p. 28 e 31) sustenta que o totalitarismo
moderno combina “um ideal artificialista com um ideal radicalmente organicista”, para o fim
de dar conformação à suposta sociedade solidária “em estado de mobilização permanente”.
Na realidade, essa mobilização não compreende a dócil e voluntária convergência de
interesses, de ideais. O político deve perceber essas inquietações e buscar a composição de
equilíbrios, de consensos com legitimidade suficiente para a tomada de decisões não apenas
vinculatórias, mas que recebam o reconhecimento de que, dentre as várias alternativas, as
escolhas foram as mais adequadas para todo o conjunto da sociedade.
A principal diferença entre totalitarismo e democracia está no exercício do
poder. Como visto, enquanto o totalitarismo está vinculado à figuração política que ocupa o
poder, a democracia, no dizer de Lefort (1991, p. 32-33), assemelha-se a “um lugar vazio”, de
tal modo que toda tentativa voltada à apropriação ou à incorporação de poder configura ato
74 A respeito da confusão entre sociedade civil e Estado, Pierre Clastres ataca o pensamento político ocidental
elaborado com base em estratégias de dominação e subordinação, defendendo a ruptura da tese segundo a qual a sociedade sem o Estado não existiria (A sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac & Naify, 2007).
73
contrário aos princípios democráticos, o que requer permanente vigilância dirigida às
instituições e aos procedimentos utilizados pela política para conquistar ou permanecer no
poder. Sob o argumento de que a democracia é definida a partir de um “poder vazio” e que a
assunção a esse poder não prescinde da disputa política sob regras e condições transparentes,
o autor assinala que o poder democrático institucionaliza o conflito e inaugura, em
decorrência, um novo proceder do político, do direito e do conhecimento que são
reconstruídos sob a premissa dos debates que envolvem todos os atores sociais, de tal modo
que o sufrágio universal se revela como essência desses mecanismos, na medida em que essa
nova ordem depende de (des)equilíbrios capazes de proporcionar a legitimidade indispensável
à preservação do Estado de Direito, à eleição dos representantes da soberania popular, à
condução das políticas públicas e, também, à formação do direito. Desse quadro resulta a
troca da liberdade pela igualdade e, por via de conseqüência, a possibilidade de o poder
público coagir e restringir.
Assim é que a tomada de decisões vinculatórias dirigidas à sociedade
democrática não pode deixar de observar duas regras elementares: (i) a determinação dos
indivíduos que estão autorizados a fazê-lo e (ii) os procedimentos com base nos quais as
medidas são adotadas. No dizer de Bobbio (2006, p. 31), o poder de decidir se reveste da
forma de direito, de tal modo que essas regras devem constar na lei máxima do país, que é a
constituição, escrita ou não. No caso brasileiro, afora as peculiaridades das sentenças
judiciais, as decisões políticas a cargo dos representantes eleitos pelo povo para cargos no
Executivo e no Legislativo são as que se encaixam nessa espécie decisória, cujas
competências foram detalhadas pela Carta Política de 1988 em observância ao princípio
federativo75, considerados a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal. Portanto,
75 A Constituição Federal de 1988 atribuiu à União as competências privativas previstas nos artigos 21 e 22; aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, as competências comuns e concorrentes com a União constam dos artigos 23 e 24, respectivamente.
74
somente a lei76 tem o condão de exercer sobre as pessoas o poder vinculatório, obrigacional,
coercitivo. Ocorre que, na democracia, o texto da lei também está condicionado, de um lado,
aos preceitos universais do direito das gentes77 e, de outro, aos limites impostos pela própria
constituição, a prevalecer o princípio da maioria78, lembrando que, em razão da matéria, a
iniciativa será do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário.
Embora haja registro de que foi ampliada a base de participação popular no
processo democrático e estabelecidos procedimentos específicos ao exercício do poder
político, a definição de democracia exige um terceiro requisito: a possibilidade de escolha, ou
melhor, a presença de alternativas oferecidas ao eleitor para decidir qual será o seu
representante, o seu partido e o que será feito do mandato. Nesse requisito Bobbio (2006, p.
32-33) incluiu os direitos de liberdade, de opinião, de expressão, de reunião e de associação,
os quais, no entender do autor, remetem ao pressuposto jurídico segundo o qual o Estado
liberal é o pressuposto do Estado democrático, sustentando:
[...] é pouco provável que um Estado não-liberal possa assegurar um correto funcionamento da democracia, e de outra parte é pouco provável que um estado não democrático seja capaz de garantir as liberdades fundamentais. A prova histórica desta interdependência está no fato de que Estado liberal e Estado democrático, quando caem, caem juntos.
Não cabe, aqui, discutir a natureza clássica liberal ou não do Estado
brasileiro, em que vigoram os fundamentos dos valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa79, a garantia do direito à propriedade privada e de sua função social80, como também
76 Cf. art. 5o, II da Constituição Federal de 1988: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei”. 77 Os quais estão consubstanciados, pelo menos em parte, na Carta das Nações Unidas. 78 Maioria e minoria são expressões relativas que nem sempre traduzem o poder de influenciar a tomada de
decisão. De todo o modo, a maioria não pode eliminar a resistência da minoria. Kelsen assim se posicionou a respeito do tema: “Abstraindo-se a ficção segundo a qual a maioria também representaria a minoria e a vontade da maioria seria vontade geral, o princípio de maioria apareceria como o princípio do domínio da maioria sobre a minoria. Mas na realidade não é assim” (op. cit., p. 69).
79 Cf. art. 1o, I da Constituição Federal de 1988. 80 Cf. arts. 5o, XXII e 170, II e III da Constituição Federal de 1988.
75
o princípio de que as desigualdades regionais e sociais devem ser reduzidas81 e que é livre o
exercício da atividade econômica82, além de que o Estado somente poderá exercer diretamente
essa faculdade em casos excepcionais83, cabendo ao poder público, por outro lado, atuar como
agente normativo e regulador do mercado84. Não é desarrazoado dizer que a prática brasileira
é híbrida, circunstância que influencia a construção do direito e a elaboração de políticas
públicas, acarretando dificuldades de ordem prática ante os inevitáveis conflitos ideológicos.
Isso é ruim? Não obstante os entraves, é possível sustentar que visões diferentes possibilitam
equilíbrios de forças e funcionam como salutar mecanismo de fiscalização recíproca das
inclinações políticas presentes no Estado democrático consolidado ou em processo de
consolidação, no caso do Brasil. Notadamente, para a democracia o papel do Legislativo é
fundamental, não apenas no campo da atividade de legislar, mas principalmente no
desempenho das atribuições de fiscal político das ações empreendidas pelo Executivo, na
qualidade de representante da soberania popular. Para tanto, a integridade e a independência
da instituição parlamentar é condição essencial para evitar distorções no sistema democrático,
sendo de valia trazer as colocações de Amaral Júnior (2005, p. 15-16):
A função de controle político dos Parlamentos vem desde os primórdios das instituições parlamentares. Foi ofuscada, é verdade, pela função legislativa. No entanto, posteriormente, com a progressiva participação dos governos na potestade de legislar, essa também ficou esmaecida no âmbito parlamentar.
Por outro lado, a paulatina dependência dos governos em relação aos Parlamentos, mormente nos sistemas de governo parlamentaristas, propiciou um nítido revigoramento da função parlamentar de controle político.
Com efeito, tal como havia nos sistemas parlamentaristas, a responsabilidade política do governo perante o Parlamento é o mais vigoroso mecanismo de controle político desse contra aquele. O governo assume postura pró-ativa, inclusive legislativa, e o Parlamento lhe confere legitimidade e o fiscaliza, controla. Em situações limites de conflito entre os dois, “(...) a negação de confiança é a forma mais drástica de ação do Parlamento sobre o Governo”. (COTA, 2000, p. 886).
81 Cf. art. 170, VII da Constituição Federal de 1988. 82 Cf. art. 170, parágrafo único da Constituição Federal de 1988. 83 Cf. art. 173, caput (segurança nacional ou interesse coletivo) da Constituição Federal de 1988. 84 Cf. art. 174, caput da Constituição Federal de 1988.
76
No caso brasileiro, não obstante o sistema de governo presidencialista, a função de controle político tem sido o grande alento do Congresso Nacional. Muitos resultados positivos já foram colhidos do seu exercício em favor da democracia. No entanto, somente com uma profunda reengenharia do sistema de governo pátrio será possível ampliar em efetividade o controle político do Congresso. Em outras palavras: somente com a submissão do governo ao Congresso, fazendo aquele politicamente responsável perante esse, haverá verdadeiro aprimoramento e fortalecimento da função de controle político das Casas legislativas brasileiras.
Os conceitos de liberal e social, especialmente no caso brasileiro, nem
sempre colocam em lados opostos as tendências políticas de direita e de esquerda, isso sem
contar as posturas de centro que se inclinam ora a uma ora a outra corrente. Essas
circunstâncias ajudam a estabelecer equilíbrio? Superficialmente, sim. Contudo, implicam
distorção no cumprimento dos princípios democráticos, posto que confundem os cidadãos
quando interesses partidários e corporativos prevalecem sobre as plataformas eleitorais, nas
trocas e negociações políticas, podendo causar prejuízos às demandas representativas da
população em geral que, deslocada do jogo do poder, possui atuação limitada nas decisões
que são tomadas pelos governos ou nas votações no parlamento. A esse respeito Bobbio
(2006, p. 33) avalia que o pensamento à direita transformou a democracia “num regime semi-
anárquico, predestinado a ter como conseqüência o ‘estilhaçamento’ do Estado”, enquanto
que, à esquerda, “a democracia parlamentar está se transformando cada vez mais num regime
autocrático”. Essas distorções ganham novos matizes nos chamados governos de coalizão,
onde atuam conjuntamente forças opostas em disfarçados e permanentes conflitos, na busca
da supremacia de seus projetos individuais, utilizando o direito e as políticas públicas como
instrumentos para ajustar as trocas pela governabilidade.
É no contexto dessas reflexões que Bobbio (2006, p. 33-45) discute os
contrastes entre os “ideais democráticos” (vistos como a essência da democracia) e a
“democracia real”. Do exame entre o prometido e o realizado, o autor destaca seis promessas
não cumpridas, as quais não podem deixar de ser mencionadas no presente trabalho. A
77
democracia como sociedade pluralista representa a primeira promessa não cumprida. Do
acordo de vontades de indivíduos igualmente soberanos a partir do qual foi criada a sociedade
política, os Estados democráticos abandonaram a idéia da relevância dos sujeitos políticos
para dar maior espaço à atuação de grupos (que raramente se toleram) na defesa de interesses
antagônicos, para satisfazer objetivos pontuais dos atores que os sustentam. No dizer do autor,
o povo ou a nação do qual emanava a soberania perdeu a importância e, por conseguinte, a
unidade, substituído na representação política por “grupos contrapostos e concorrentes, com
sua relativa autonomia diante do governo central”.
A distribuição do poder é seguida da representação política, sendo essa a
segunda promessa não cumprida. Se a soberania popular foi mitigada pela atuação de grupos,
a democracia moderna deixou de representar os interesses da nação em seu conjunto. Nesse
sentido, Bobbio (2006, p. 36-37) apresenta o problema do mandato vinculado, caracterizado
pela eleição de um representante para o fim de defender aos interesses de um determinado
grupo. A representação política é contaminada pela defesa parcial de interesses. Essa
distorção gera, na colocação do autor, a figura do “mandato vinculado”:
Jamais uma norma constitucional foi mais violada que a da proibição de mandato imperativo. Jamais um princípio foi mais desconsiderado que o da representação política. Mas uma sociedade composta por grupos relativamente autônomos que lutam pela sua supremacia, para fazer valer os próprios interesses contra outros grupos, uma tal norma, um tal princípio podem de fato encontrar realização? Além do fato de que cada grupo tende a identificar o interesse nacional como o interesse do próprio grupo, será que existe algum critério geral capaz de permitir a distinção entre o interesse geral e o interesse particular deste ou daquele grupo, ou entre o interesse geral e a combinação de interesses particulares que acordam entre si em detrimento de outros? [...] E onde podemos encontrar um representante que não represente interesses particulares? [...] A proibição do mandato imperativo, além do mais, é uma regra sem sanção.
Para Kelsen (1993, p. 63), é impraticável a idéia corporativa na concepção
parlamentar de democracia, assinalando que essa hipótese daria ensejo à criação de outro
sistema de representação, distinto do democrático. No Brasil não há, pelo menos em termos
78
formais, a prática de mandatos vinculados, sendo pertinente mencionar que na composição
política os cargos públicos eram preferencialmente ocupados por bacharéis em direito,
oriundos, na maioria, de Portugal, ou formados em instituições portuguesas sediadas no país,
na defesa dos interesses do reino. Essa prática também foi adotada no parlamento, onde os
grupos se dividiam entre os representantes da Coroa, dos profissionais liberais e dos
proprietários de terra, que influenciavam o curso da política e a tomada de decisões
vinculatórias (CARVALHO, 2006, p. 171-194 e 249-260). Na atualidade, os princípios
constitucionais85 que regem os partidos políticos afastam, em tese, a proibição dessa nociva
prática ao estabelecer que os partidos devem atender aos imperativos de soberania nacional,
de preservação do regime democrático, de natureza pluripartidária e de respeito aos direitos
humanos.
Não obstante, é impossível assegurar que os políticos, uma vez eleitos,
passem a desempenhar suas funções sob a influência das promessas eleitorais dirigidas a
grupos específicos, como também a balizar a atuação, no governo ou no parlamento, com o
propósito de atender às reivindicações daqueles que contribuíram para o financiamento de
suas campanhas86. Isso sem contar com as questionáveis trocas de filiação partidária87.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, a partir do
entendimento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que os mandatos pertencem aos partidos e
não aos políticos eleitos. Ao tempo em que esses julgados significam uma ruptura com a
jurisprudência que até então predominava, seus efeitos influenciarão perdas de mandato,
revisão de estratégias de composição política, reflexões sobre a individualidade das
plataformas eleitorais e o amadurecimento do sistema representativo, o que fortalece as 85 De acordo com o disposto no art. 17 da Constituição Federal de 1988. Dos preceitos constitucionais aplicáveis
aos partidos políticos, merecem destaque os que se referem ao caráter nacional e à proibição de receber recursos financeiros de entidades ou governos de outros países, vedada a destinação paramilitar.
86 O financiamento público, privado ou misto das campanhas eleitorais está na pauta da agenda política do país, embora com fraco enfrentamento das questões controvertidas. Seja qual for, a partir do resultado dos debates e de sua experimentação será possível conhecer melhor como pensam e como agem os políticos e a sociedade.
87 Cf. julgamento dos mandados de segurança nos 2662, 2663 e 2664. Disponível em: <www.stf.gov.br>.
79
legendas e indica ao eleitor a importância das propostas e não exclusivamente dos políticos,
tomados individualmente. Não é preciso maiores ilações para perceber que aquelas
costumeiras práticas estão deslocadas dos reais interesses da coletividade, da sociedade.
Forma-se um quadro de influência e dominação88 que podem revelar a tendência que se
aproxima dos traços de mandatos vinculados, a confundir a população e a distorcer a própria
democracia.
Mas, a democracia não estaria reduzida a um jogo travado no poder, com
negociações e barganhas de diversos interesses em conflito, do qual resultará, depois de
concessões, trocas e consentimentos, a decisão final sobre determinado tema? Não. A
democracia não pode ser reduzida a composições privadas, particularizadas e deslocadas dos
valores e das demandas da coletividade. Será possível compor equilíbrios consensualizados a
partir de critérios de justiça? Rawls (2002, p. 146-153) propõe a formulação do regramento
social com base no justo, utilizando do simbolismo que resolveu chamar de “véu da
ignorância”, construção destinada a desnudar o homem de suas idéias individualistas a
respeito do bem-da-vida, de modo a que, desprendido da conquista de interesses pessoais e
sabedor da possibilidade de ser afortunado ou não, ter a prerrogativa ou a faculdade de
escolher as regras eqüitativas para uma justiça igualitária, respeitada, ainda, a liberdade
inerente a todo ser.
Pergunta-se: seria o véu da ignorância uma visão utópica? Não. Seu valor
simbólico conduz os indivíduos e a sociedade a um alto grau de abstração. No fundo, todos
sabem o que é injusto; contudo, não reconhecem essa condição ou situações de injustiça e de
desigualdade não despertam a sensibilidade, pois esse estado de coisas é julgado lícito e
88 Como exercício de cidadania, a análise das doações de campanha constituiu uma boa forma de acompanhar as
tendências das decisões políticas. Essas informações são disponibilizadas ao público geral pelo TSE, na demonstração de que a justiça tem avançado na tentativa de tornar transparente o processo eleitoral e, por conseguinte, promover a cidadania mediante a veiculação de dados que ajudam a compreender as possíveis condutas daqueles que representam a soberania popular.
80
juridicamente aceitável. Talvez o véu da ignorância esconda o receio potencial que as pessoas
têm de ver seus interesses violados. Rawls propõe uma estratégia hábil de composição, na
medida em que os prazeres e as vicissitudes podem ser sofridos por qualquer um,
pressupondo-se que, na escolha dos princípios, ocorra a busca pelo menos gravoso para todos,
o que pode servir a determinadas facetas da realidade brasileira, guardadas as devidas
proporções.
Em que pese a importância da divergência de idéias para o sistema
democrático, a disputa de poder entre grupos semelhantes pode levar a uma distorção do
princípio da representatividade quando prevalecerem hegemonias dominantes. Essa
circunstância, por sua vez, insere na democracia a terceira promessa não cumprida: o fim das
oligarquias. Mesmo com o aumento da base de participação popular, o problema (crise ou
desvirtuamento) da representatividade persiste na presença de grupos hegemônicos que
disputam influência e exercício do poder político. Por certo que as oligarquias afastam o
efetivo envolvimento popular, ainda que pretendam demonstrar preocupação com as
necessidades sociais das massas. Oligarquias, portanto, estão associadas às elites que se fazem
presentes nas estruturas burocráticas das instituições públicas e privadas. A presença de elites
no poder seria de todo prejudicial? Bobbio (2006, p. 39) explica que “a presença de elites no
poder não elimina a diferença entre regimes democráticos e regimes autocráticos”, ao
assinalar que a caracterização da democracia está não na ausência de elites, mas na “presença
de muitas elites em concorrência entre si para a conquista do voto popular”.
Então, a democracia não seria afetada simplesmente pela presença de elites,
mesmo porque é difícil considerar a total inexistência de elites, de oligarquias. A diferença
está na forma como as elites influenciam a política e a conduta do político. Logo, para o bem
da democracia as elites não podem ser hegemônicas. A existência de conflitos entre elas é
81
essencial para o sistema democrático89. Assim, o país poderá avançar ou recuar em função da
inércia, da apatia ou da vontade de implementar mudanças. Porém, as elites não podem
figurar sozinhas no jogo do poder, posto que a população em geral corre o risco de se
transformar em mero instrumento de composição de trocas e não de alternância no poder,
impelida pela necessidade de satisfazer necessidades imediatas, pela ausência de
oportunidades para refletir sobre as conjunturas de seu tempo e pela descrença no Estado e no
político.
Por essas razões, a democracia requer, cada vez mais, a participação da
sociedade nos debates sobre os mais variados temas, dentre os quais o da defesa. Não se trata,
aqui, da idéia de retorno às assembléias deliberativas da antiguidade, mas da submissão dos
assuntos à população mediante o esclarecimento das questões que estão em pauta, seus
aspectos controvertidos, prováveis efeitos, principais beneficiários, o custo (além do
financeiro) e o risco que orbitam em torno das decisões. Por certo que será preciso estabelecer
mecanismos com base nos quais possa ser evitada ou, no mínimo, reduzida a possibilidade
desse expediente servir de encenação para legitimar as medidas que serão tomadas90. A
democracia participativa, cujos procedimentos foram verificados em algumas oportunidades
no Brasil como, por exemplo, nas propostas de orçamentos elaborados a partir de demandas
indicadas pela comunidade é, sem dúvida, o mecanismo que melhor se coaduna com a
essência desse regime, mas que depende da educação e do acesso aos fóruns deliberativos.
Passa-se, então, à quarta promessa não cumprida, marcada pela dificuldade que a democracia
89 C. Wright Mills apresenta um aguçado estudo a respeito da elite norte-americana, que abrange a forma como é
inserida no poder, a composição das famílias e a divisão social, sua influência na política e nos aspectos militares. As colocações de Mills servem para entender parte do funcionamento das estruturas decisórias dos Estados Unidos, as quais muitas vezes se revelam contraditórias com os princípios democráticos defendidos por aquele país, a repercutir na comunidade internacional (A elite do poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1975).
90 No âmbito federal, as consultas e as audiências públicas podem, se amadurecidas, proporcionar maior transparência ao conhecimento e aos debates em torno de questões relevantes. Contudo, essa prática ainda não é obrigatória e está sujeita à discricionariedade dos órgãos e das autoridades responsáveis pelos assuntos (cf. artigos 31 a 33 da Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999). A respeito da democracia participativa, a obra Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Boaventura de Sousa Santos (org.). Série Reinventar a Emancipação Social: para novos manifestos, 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002).
82
tem de estar presente nas instâncias superiores do poder, nas quais as decisões vinculatórias
são efetivamente tomadas. Para Bobbio (2006, p. 40-41), essa questão é crucial, posto que
supera a ampliação da base de participação popular, reafirma o problema da
representatividade, do mandato para defender interesses particulares e dos grupos que formam
as oligarquias, deixando em segundo plano os debates sobre maiorias e minorias para dar
ênfase ao que chamou de “poder ascendente” e “poder descendente:
[...] quando se deseja saber se houve um desenvolvimento da democracia num dado país, o certo é procurar perceber se aumentou não o número dos que têm o direito de participar nas decisões que lhes dizem respeito, mas nos espaços nos quais podem exercer este direito. Até que os dois grandes blocos de poder situados nas instâncias superiores das sociedades avançadas não sejam dissolvidos pelo processo de democratização – deixando-se de lado a questão de saber se isto é não só possível mas sobretudo desejável –, o processo de democratização não pode ser dado por concluído. [...] a concessão dos direitos políticos foi uma conseqüência natural da concessão dos direitos de liberdade, pois a única garantia de respeito aos direitos de liberdade está no direito de controlar o poder ao qual compete esta garantia.
É crescente o interesse da sociedade para com o agir daqueles que estão no
poder. Esse fator contribui para a consolidação da democracia. Mas a participação social
depende de conhecimento e capacidade para interagir, para formular as demandas e as
divergências. Nessa linha, deve-se reconhecer que ainda é muito superficial o conteúdo
divulgado dos assuntos que serão objeto de decisão política. Prevalece a fiscalização e o
acompanhamento realizados posteriormente à tomada das decisões, o que ocasiona pouca
margem para modificar situações que se formaram, cujos efeitos alcançam outras áreas, tais
como a jurídica, a econômica, a ambiental e, por conseguinte, as políticas públicas91. O jogo
do poder insiste em obstruir os canais de conhecimento, de disseminação das informações,
dos compromissos de trocas, barganhas e negociações que, ao final, darão sustentação às
medidas adotadas. A sociedade e as instituições que tentam conhecer e acompanhar esse
91 Os programas e a propaganda dos partidos políticos não estão obrigados a detalhar a execução das medidas
que pretendem adotar, a viabilidade em face dos trâmites burocráticos e legais, os limites de ordem fiscal e tributária e a necessidade de formar trocas, coalizões e concessões, de tal modo que o conteúdo programático das campanhas eleitorais assume contornos de promessas distantes da realidade e, por conseguinte, difíceis (para não dizer impossíveis) de realizar, o que prejudica o controle dos eleitores e da sociedade em geral.
83
movimento acabam se valendo de intuições e interpretações conjunturais que poderão ou não
se confirmar, de acordo com o nível de insatisfação dos interessados ou em decorrência de
fatos desprendidos de uma investigação realizada paralelamente.
Com essa argumentação Bobbio (2006, p. 41) sustenta que a quinta
promessa não cumprida da democracia real está na permanência do que chamou de “poder
invisível”, expressão que corresponde à existência de um “Estado duplo”92, no qual a
publicidade dos atos de governo é obscurecida para evitar a fiscalização das ações e das
decisões a cargo daqueles que exercem o poder, destacando que, na atualidade, os governos
exercem mais controle sobre os cidadãos do que estes sobre as ações dos governantes, a tal
ponto de o poder invisível comprometer profundamente o desiderato da democracia, na
inversão da equação que fundamenta o princípio de transparência: o público passa a vigiar o
privado. São inquietantes as incursões que Foucault (2006) e Castells (1999) fazem nessa
temática, ao desvelarem as facetas que tornaram os indivíduos objeto de um jogo travado na
cada vez mais ampla e intrincada teia de formação de condutas e de vigilância da sociedade,
levada a efeito pelo poder público e por instituições privadas transnacionais, cujos traços
estão presentes nas estratégias de defesa sob o argumento da soberania e da segurança.
A educação para a cidadania é a sexta e última promessa não cumprida.
Corresponde ao que se pode chamar de desprendimento do Estado e das elites para o fim de
criar condições adequadas de acesso a todas as pessoas, tendo como prioridade as classes
desfavorecidas, os pobres, os miseráveis que uma vez instruídos, alimentados, abrigados e
libertos do trabalho escravo ou da escravização do trabalho possam melhor compreender os
mais variados assuntos e se posicionar criticamente, contribuindo para o aperfeiçoamento e a
consolidação da democracia. O voto funcionaria para a melhor escolha coletiva e não para
atender a uma necessidade pessoal. É o processo de transformação do súdito em cidadão. No
92 Ao utilizar a expressão “Estado-duplo”, Bobbio se reporta a Alan Wolfe, autor do livro The Limits of
Legitimacy. Political Contradictions of Contemporary Capitalism. The Free Press: New York, 1977.
84
pensamento de Bobbio (2006, p. 45) a educação é indissociável do processo democrático, mas
não apenas como um procedimento virtuoso que teria lugar somente depois de um movimento
de ruptura. A abordagem do autor é interessante, uma vez que coloca a educação além das
necessidades das massas, considerando-a como fator de diminuição da passividade também
das classes acomodadas, nas quais as próprias elites se encontram. Combinadas, educação e
cidadania aperfeiçoam a democracia na medida em que interferem no “poder invisível”,
ocupam os espaços restritos de tomada de decisão, alternam a composição das oligarquias,
diversificam os mecanismos da representatividade e possibilitam que a base de distribuição de
poder se torne heterogênea, além de superar a restrição colocada por Montesquieu (1995, p.
189), segundo a qual faltaria ao povo capacidade para lidar com assuntos públicos.
No que tange à consolidação da democracia brasileira, convém trazer alguns
dados da base eleitoral e da educação para o fim de conhecer pelo menos parte da realidade
em que se dá a outorga da soberania popular. De outubro de 2000 a setembro de 200793 o
eleitorado cresceu 15,33%, passando de 109.826.263 para 126.662.20894, evolução distribuída
entre as regiões nordeste, centro-oeste, sudeste, sul e norte, computados, ainda, os eleitores
sediados no exterior. Comparado com a contagem da população que, em outubro de 2007,
chegou a 189.970.84195, o número de eleitores revela um significativo avanço na
consolidação da democracia na medida em que demonstra a possibilidade de participação
cada vez maior de pessoas, das mais variadas origens, para que, pelo voto, possam
93 Consideradas as informações disponibilizadas na página eletrônica do TSE em 8 de outubro de 2007. 94 Síntese do crescimento, conforme as informações disponibilizadas pelo TSE: nordeste, de 29.561.610 para
34.278.784 (15,957%); centro-oeste, de 7.418.597 para 8.905.077 (20,037); sudeste, de 48.486.490 para 55.323.775 (14,101%); sul, de 17.243.157 para 19.132.971 (10,96%); norte, de 7.073.019 para 8.925.524 (26,191%); e exterior, de 43.390 para 96.077 (121.427%). Disponível em: <www.tse.gov.br>. Acesso em: 8 de outubro de 2007.
95 Dados obtidos mediante consulta à Contagem da População, divulgada em outubro de 2007, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que adotou o dia 1o de abril de 2007 como data de referência. O estudo realizado considerou 5.435 municípios brasileiros, restando consolidar os números referentes ao Distrito Federal e de outros 128 municípios.
85
efetivamente exercer a cidadania e diminuir a distância entre a democracia real e a
democracia ideal.
Todavia, a ampliação do número de eleitores também precisa ser analisada
no contexto da qualidade e da liberdade de escolha dos representantes que exercerão os
governos e as funções legislativas, fatores que não podem se desprender dos números
referentes às abstenções96 registradas pelo TSE nas eleições de 200697, que totalizaram
18,996% no 1o turno, na comparação com o total de eleitores aptos. Dessa maneira, em que
pese ter crescido o número de eleitores, os dados indicam uma preocupante descrença no
processo eleitoral ou, mais precisamente, na maneira como a representação política é
percebida pela população, notadamente porque, na democracia brasileira, a soberania
popular98 paradoxalmente ainda é um poder de natureza obrigacional99.
Quanto à educação, a melhoria dos níveis de escolaridade e, por
conseguinte, de pessoas alfabetizadas100 não afasta a preocupação com os critérios que
definem se a pessoa é alfabetizada, alfabetizada funcional ou analfabeta funcional. Esses três
aspectos precisam ser enfrentados pela sociedade e pelo poder público para fazer com que a
ampliação da base de eleitores possa refletir a consciente participação no processo
democrático. Esses critérios foram utilizados na Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD), concluída em 2006 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE)101. O primeiro deles considerou alfabetizada a pessoa que “responde que consegue ler
96 Não foram mencionados os votos brancos e nulos, em razão da pouca segurança quanto à intenção do eleitor. 97 Dados referentes às votações para os cargos de presidente, governador, deputado estadual, deputado federal e
senador, veiculados pelo TSE. Disponível em: <www.tse.gov.br>. Acesso em: 23 de outubro de 2007. 98 Nos termos do art. 14, I a III da Constituição Federal de 1988, a soberania popular é exercida pelo sufrágio
universal e pelo voto direto e secreto, sem distinção entre as pessoas, nas formas de plebiscito, referendo e iniciativa popular.
99 O alistamento eleitoral e o voto são obrigatórios para os maiores de 18 anos e facultativo para os analfabetos, para os maiores de 70 anos e para os menores de 16 e menores de 18 anos, de acordo com as prescrições constantes dos incisos I e II do § 1o do art. 14 da Constituição Federal de 1988.
100 Conforme informações divulgadas pelo IBGE, com destaque para a persistência das disparidades regionais. 101 Informações extraídas dos Comentários da Síntese dos Indicadores da PNAD/2006. Disponível em:
<www.ibge.gov.br>. Acesso em: 8 de outubro de 2007.
86
e escrever pelo menos um bilhete simples no idioma que conhece”102, critério que se limita ao
registro da declaração do entrevistado sem aferir sua habilidade. O segundo critério classifica
como alfabetizada funcional a pessoa que consegue “utilizar a leitura para continuar
aprendendo e se aperfeiçoando”. Similarmente ao primeiro, demonstra a subjetividade com
que o tema é tratado. Por sua vez, o terceiro critério considera analfabeta funcional a pessoa
que tem dez anos ou mais de idade e que tem menos de quatro anos de estudos completos.
Depreende-se que essa definição alcança as pessoas que ingressaram na escola e não
conseguiram ou não puderam nela permanecer (evasão escolar). Do que consta do Censo
Demográfico de 2000, a taxa de analfabetismo desse grupo foi reduzida em 10,2% no período
de 1991 a 2000103. Por sua vez, a Síntese dos Indicadores Sociais elaborada pelo IBGE indica
que, em 2002, havia no Brasil 14,6 milhões de analfabetos, 32,1 milhões de analfabetos
funcionais e 65,7% de estudantes com quatorze anos de idade com defasagem escolar.
As questões educacionais ganham maior relevância quando os dados
levantados pelo IBGE são comparados com as estatísticas do eleitorado104. Até outubro de
2000 do total de 109.826.263 eleitores, 8.326.313 declararam ser analfabetos105,
representando 7,58% da população alistada. No mesmo ano consta o registro de que
23.152.365 eleitores conseguem apenas ler e escrever106 (21,08%). Somados, chegam a
31.478.678 (28,66%). De outubro de 2000 a setembro de 2007 foi verificada uma pequena
redução desse quadro. A quantidade de pessoas analfabetas chegou a 8.272.985 (6,53%) e a
de pessoas que sabem ler e escrever a 20.771.729 (16,4%), totalizando 29.044.714 (22,93%).
102 Segundo o critério adotado pelo IBGE, a taxa de analfabetismo corresponde ao percentual de pessoas
alfabetizadas no universo de pessoas de uma mesma faixa etária. 103 Outros dados levantados pelo IBGE também contemplam amostras por cor ou raça e pessoas com quinze anos
ou mais de idade. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em: 23 de outubro de 2007. 104 Dados obtidos junto ao TSE, com a ressalva de que o grau de instrução é informado pelo eleitor, consideradas
as pessoas do sexo feminino e do sexo masculino. Dentre as opções de grau de instrução constam também: não informado, primeiro grau incompleto, segundo grau incompleto, segundo grau completo, superior incompleto e superior completo. Disponível em: <www.tse.gov.br>. Acesso em: 23 de outubro de 2007.
105 Desse total, 3.946.281 são do sexo masculino e 4.359.563 são do sexo feminino. 106 Desse total, 12.042.270 são do sexo masculino e 10.977.870 são do sexo feminino.
87
A diminuição de analfabetos declarados foi de 1,05% enquanto que entre os que sabem ler e
escrever foi de 5,04%. A redução desses dois grupos foi da ordem de 5,73%.
Não se trata de insinuar que as pessoas com pouca escolaridade ou
analfabetas consigam apenas discernir o mínimo indispensável para a execução das tarefas do
dia-a-dia. Empiricamente, essas pessoas desenvolvem aptidões e sensibilidades que não raras
vezes superam aquelas de formação mais sofisticada. A questão é outra: a oportunidade de
acesso à educação formal, observadas as peculiaridades da população, variáveis, dentre
outras, em função da região, da cultura e das condições sócio-econômicas. Mesmo que
procurem respeitar a integridade do indivíduo, os critérios utilizados pelo poder público
revelam a existência de falhas ou omissões do Estado e da sociedade quanto ao pleno
exercício da cidadania, da dignidade da pessoa humana107 e, por conseguinte, da democracia e
de suas políticas públicas, posto que o amplo e indispensável acesso à educação108 ainda não
está efetivamente garantido.
A comparação e a análise desses dados não constituem o objetivo central do
presente trabalho, de tal modo que a apresentação desse panorama é suficiente para
demonstrar a relevância da educação para o processo de consolidação da democracia, a ser
construído e aperfeiçoado por meio de políticas públicas efetivas, continuadas e adequadas às
individualidades, às realidades e às complexidades regionais do país. Assim, a educação deve
ser considerada como fator propedêutico destinado a preparar as pessoas ao exercício da
cidadania, do poder político de que se reveste a soberania popular, levando em conta que o
107 A cidadania e a dignidade da pessoa humana constituem fundamentos da República brasileira, nos termos dos
incisos II e III do art. 1o da Constituição Federal de 1988. 108 A educação é um direito social, cuja promoção é de competência comum da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, constituindo direito de todos para o fim de proporcionar o completo desenvolvimento da pessoa humana, preparando-a para a cidadania e para a sua qualificação profissional, nos termos dos artigos 6o, caput, 23, V e 205, caput, todos da Constituição Federal de 1988.
88
fortalecimento da sociedade exige a superação das disparidades educacionais, alimentada pela
dicotomia que faculta o voto do analfabeto ao tempo em que o considera inelegível109.
No campo da experimentação democrática, a par dos argumentos até então
expendidos a respeito das promessas não-cumpridas, Bobbio (2006, p. 46-52) ainda considera
que, no curso da história, três obstáculos separam os estágios que denominou de “democracia
real” e “democracia ideal”. O primeiro deles diz respeito às mudanças ocorridas nas
economias, cujos reflexos atingiram a composição da política e o aparato da tecnocracia,
dando ensejo à prevalência da participação de técnicos na tomada de decisões vinculatórias:
[...] se o protagonista da sociedade industrial é o especialista, impossível que venha a ser o cidadão qualquer. A democracia sustenta-se sobre a hipótese de que todos podem decidir a respeito de tudo. A tecnocracia, ao contrário, pretende que sejam convocados para decidir apenas aqueles poucos que detêm conhecimentos específicos.
Se por um lado a técnica pode proporcionar um grau maior de sofisticação
na elaboração de estratégias e no manejo de cálculos e projeções na formulação de temas de
ordem pública, por outro exclui a sociedade civil, o homem médio e até o político de
participar dos debates e, por conseguinte, retira a sensibilidade capaz de fundamentar a
realização de ajustes antes da tomada de decisão. Dessa maneira, a tecnocracia restringe o rol
de atores com habilidade para influenciar e formar juízos de valor, de modo que a limitação
dessas prerrogativas acaba por mitigar o princípio da ampliação da base de eleitores, que
adquire mero aspecto formal para dar contornos de legitimidade às escolhas feitas por um
grupo reduzido de profissionais. Nessa ordem de idéias, para Bobbio não há ética na
combinação entre tecnocracia e democracia. Assim, a educação para a cidadania se coloca
como o principal mecanismo para enfrentar essa assimetria, permitindo diálogos entre o poder
público e a sociedade na busca de soluções consensualizadas, mesmo que amparadas em
aspectos técnicos.
109 Cf. art. 14, § 4o do art. 14 da Constituição Federal de 1988.
89
O segundo obstáculo está na ampliação das estruturas burocráticas que, na
dicção de Bobbio (2006, p. 47), ordenou o poder “do vértice à base” em oposição ao princípio
norteador do sistema democrático ideal. Não obstante, o autor pondera que quanto mais
democráticos se tornam os Estados, maior será a burocracia destinada a atender às demandas
que se originam do corpo social, assinalando que a atuação dos governos deixou a antiga
necessidade de proteger a propriedade privada para tentar atender aos pleitos que dizem
respeito à educação, à saúde e à segurança públicas, os quais são intrínsecos aos direitos e
garantias individuais que decorrem da crescente participação no processo democrático da
população mais pobre. Ocorre que o aumento do aparato estatal não pode servir de
instrumento de dependência da população para com o Estado e, por conseguinte, na colocação
do poder público como única ou a melhor alternativa para solucionar problemas sociais,
principalmente os que atingem as pessoas carentes.
Além de temas sociais, outras questões também são submetidas aos
governos. Assim, não se afasta o dever de dirigir políticas públicas específicas e desiguais, na
medida em que as necessidades efetivas das pessoas são diferentes, sendo fundamental a
participação da sociedade. É nesse aspecto que se destaca a relevância da formulação das
normas que garantirão não apenas a assistência, mas também os mecanismos por meio dos
quais serão oferecidas oportunidades de melhoria das condições de vida. Se a dependência
assistencialista – ou, pior, paternalista – das ações do Estado e do governo estiver desatrelada
de políticas que permitam aos cidadãos evoluir e, numa combinação de incentivos públicos e
esforço próprio, modificar para melhor sua condição social, a democracia poderá sofrer (se
esse quadro já não se verifica) forte comprometimento na medida em que as esperanças
daqueles eleitores estarão depositadas no continuísmo de determinado grupo que ocupa o
poder, mas não na capacidade de o corpo social se mobilizar e, por consenso, impulsionar o
poder político no caminho das mudanças.
90
O considerável deslocamento que ocorreu entre a sociedade civil e o sistema
político constitui o terceiro obstáculo delineado por Bobbio (2006, p. 48), que justifica esse
fenômeno a partir da constatação de que o Estado liberal110 e sua adaptação à democracia
fizeram com que as demandas da sociedade se ampliassem ao ponto de submeter o “sistema
político a drásticas opções”, desvelando a morosidade dos procedimentos decisórios em
contraste com os sistemas autocráticos, os quais, diversamente das democracias, formulam e
impõem as próprias demandas. Essa circunstância atinge a legitimidade dos governos e
fortalece o argumento de que o Estado democrático não é capaz, por si só, de resolver ou de
atender a todas as reivindicações sociais. Nesse sentido, a democracia não pode ser
confundida como meio pelo qual a sociedade se despe de suas responsabilidades coletivas e
transfere ao poder público o dever de prover e tutelar a nação.
O poder político que fundamenta o regime democrático e, por conseguinte, a
sociedade (LEFORT, 1991, p. 31-32), não pode ser substituído pelo ente estatal, ou melhor,
pelos políticos, pelos governos e pelos tecnocratas. Impossível encontrar uma equação que
atenda a todos os interesses. Por isso a importância de consensos, com base em critérios de
justiça. Notadamente nos governos em processo de consolidação democrática de maior apelo
social, como é o caso do Brasil, a ausência dessa percepção tende a fazer com que a
população apresente seus pleitos e se coloque na posição de aguardar a atuação dos políticos e
das instituições públicas. Os exitosos serão aqueles que conseguirem exercer suas habilidades
de influência, a depender do momento e da agenda política. O direito, nesses casos, acaba por
servir de instrumento para a exteriorização da decisão tomada.
Dessa visão de democracia uma constatação não pode escapar: o regime
democrático não admite imposição. Deve, ao contrário, emergir da percepção e da vontade da
110 Michel Foucault aborda como a iniciativa privada identificou a necessidade de estabelecer medidas destinadas
a atender pelo menos parte das demandas sociais e dos trabalhadores, configurando, no seu entender, um movimento estratégico para evitar uma drástica ruptura nos sistemas econômico e de dominação, acarretando a maior fragmentação da sociedade (Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2005).
91
sociedade em modificar um determinado estado de coisas. Desse movimento serão
aperfeiçoadas as bases jurídicas que fundamentam as relações sociais, as tensões e os
inevitáveis conflitos de interesses. O principal entendimento sobre a democracia e sua atual
concepção de governo consiste na forma de representação política, que precisa se aproximar
do reconhecimento do outro na condição de pessoa humana e, portanto, na qualidade de titular
de direitos fundamentais, de tal sorte a prevalecer o bem-comum sobre o interesse particular
ou corporativo, num ininterrupto incorporar da ética e da alteridade aos sistemas jurídico-
normativos, cada vez mais articulados nas redes de relacionamento transdisciplinar que
alimentam a construção da democracia e do direito.
1.4 Incompatibilidades e convergências
No presente capítulo foram tratados três dos mais relevantes temas que
orbitam em torno da defesa. Soberania, segurança e democracia são argumentos manipuláveis
pelo poder político e instrumentalizáveis pelo direito para o fim de tentar compor as
assimetrias existentes nas relações internas e externas de cada Estado ou nação. A composição
dessas incompatibilidades e convergências evita a beligerância explícita ou declarada, mas
não excluiu, na linha do pensamento de Virilio (1984), a militarização – que não é
exclusividade do militar – do cotidiano dominado pela velocidade e pelo estado de prontidão,
colocando a sociedade no curso da preparação permanente para um provável e (in)desejável
enfrentamento que denominou “guerra pura”.
A soberania, lastreada ora pela amarras absolutistas ora pelas idéias
libertárias é colocada diante da crise que transcende o reconhecimento internacional da figura
estatal, suas limitações e adaptações em face de outros atores políticos e da sociedade civil,
para se ver diante da perplexidade motivada pelo questionamento de sua essência, que nada
mais é do que a independência para agir livremente. A crise não se reduz ao poder soberano,
92
mas à esdrúxula configuração que impõe a limitação e a dependência da colaboração ou da
autorização coletiva. Esse quadro é o resultado da concepção de segurança para
principalmente evitar novas guerras de efeitos devastadores a ponto de destruir o ambiente e
dizimar a espécie humana. Mas também é decorrência do (des)equilíbrio de forças, da divisão
de poder e, por conseguinte, da manutenção de prerrogativas. Ocorre que o simbolismo da
suposta segurança encontra seu principal ponto de fragilidade no ideal democrático. Isso
porque, como visto, a democracia ideal ainda está muito distante da democracia real. Nem
todos os Estados são democráticos. A adoção desse regime não é universal e não obedece ao
mesmo grau de experimentação e aceitação. Mesmo nos países democráticos fundados no
estado de direito a democracia ainda apresenta parcialidade. A dosimetria democrática
depende das circunstâncias, dos valores e dos interesses envolvidos. Apesar disso, parece ser
a opção mais adequada, pois possibilita desvelar as assimetrias.
Por essas razões, soberania, segurança e democracia repercutem diretamente
na formulação da política de defesa brasileira, na medida em que o país precisa consolidar o
processo de redemocratização a partir dos princípios que regem suas relações internacionais e
a consecução de objetivos nacionais, os quais não elegeram inimigos externos ou internos,
ideologias preferenciais ou solução armada para pôr fim a interesses antagônicos. A
composição desse quadro desafia o direito e o político, de modo que a política de defesa se
encontra na tênue linha que separa o cumprimento irrestrito dos princípios constitucionais das
possíveis demandas de segurança, de proteção. O problema reside em encontrar a melhor
forma de dissuadir. Talvez a democracia ajude a encontrar o caminho adequado a partir da
ponderação e do diálogo com a sociedade civil, pois será esta que, ao final, arcará com o ônus
de vidas humanas e recursos financeiros com base nos quais a defesa é praticada.
93
2 POLÍTICA DE DEFESA BRASILEIRA
Como preliminar, é necessário esclarecer que a idéia de defesa compreende
a hipótese extrema do uso da violência legalizada e do poder de destruição, os quais têm o uso
autorizado e podem ser dirigidos contra as pessoas, o ambiente, os territórios, o espaço e os
bens materiais, culturais e intelectuais. Porém, essa hipótese não é o último ou o único recurso
escolhido para o fim de lograr determinado êxito. A violência e a destruição, a propósito, se
revestem de variadas formas. Associa-se a essa assertiva a seguinte pergunta: uma política de
defesa teria lugar em país democrático que, em suas relações internacionais, adota como
princípios fundamentais a prevalência dos direitos humanos, a autodeterminação dos povos, a
não-intervenção, a igualdade entre os Estados, a defesa da paz, a solução pacífica dos
conflitos e a cooperação dos povos para o progresso da humanidade? Sim, simplesmente
porque esses princípios ou são violados ou não foram aceitos por todos os países ou nações, o
que implica um estado permanente de inquietação, de desconfiança, de preparação para um
provável enfrentamento. Tem-se, daí, a noção de segurança.
A complexidade se amplia na medida em que os possíveis ofensores adotam
técnicas de ocultação sofisticadas ou – pior – quando estão deslocados da representação
oficial do poder estatal, organizando-se, por exemplo, em grupos terroristas ou sob o
argumento da defesa incondicional de uma dada ideologia. É inevitável, pois, reconhecer que
a defesa transcende a simples idéia de atuação de um aparato bélico na proteção da pátria e na
garantia de poderes constitucionais, da lei e da ordem, na redação do caput do art. 142 da
Carta Política brasileira de 1988. Essas premissas permitem afirmar que no estado
democrático de direito a defesa se situa além da agenda exclusivamente militar de
organização, preparo e emprego de forças armadas regulares.
94
Mas, em que consiste a defesa nacional? De plano, é importante assinalar
que segurança111 e defesa são conceitos que contemplam atribuições distintas mas não
opostas. São complementares uma da outra e dependentes do conjunto de ações direcionadas
à consecução dos direitos fundamentais. Nesse sentido, a defesa deve consistir numa série de
políticas públicas destinadas à consecução dos fundamentos da República112 a partir de bases
democráticas. Somente mediante o efetivo e continuado exercício da soberania popular, da
cidadania, da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho, da livre iniciativa
e do pluralismo político, terá a sociedade – e não apenas o Estado – os legítimos instrumentos
de sustentação de uma adequada política que assegure a devida segurança, a desejada
proteção. Logo, as políticas públicas destinadas a assegurar a defesa não podem se revestir de
natureza exclusiva ou meramente militar, de cujo escopo a sociedade brasileira tende a se
afastar por receio, estigma ou ignorância. Por conseguinte, serão adequadas à defesa as
políticas voltadas a fortalecer o país, desde que proporcionem vida digna e conscientizem a
todos da responsabilidade coletiva para com o tecido social, contribuindo, dessa maneira, para
a proteção não somente da humanidade, das sociedades e do Estado.
A política de defesa brasileira está “voltada, preponderantemente”113, para
ameaças externas, atribuindo-se maior destaque aos princípios constitucionais que dizem
respeito à solução pacífica das controvérsias e ao fortalecimento da paz e da segurança
internacionais. Porém, o uso da expressão “preponderantemente” indica que as políticas e as
ações de governo não devem se preocupar única e exclusivamente com os fatores advindos
dos cenários externos ou de natureza bélica, isso porque a instabilidade interna também
configura significativa hipótese de ameaça à proteção do país. A possibilidade de sofrer
ataques militares de origem externa representa hipótese remota, porém factível. Contudo,
111 Convém anotar que a segurança pública é uma variável do conceito de segurança. 112 Na enumeração prevista no art. 1o da Constituição Federal de 1988. 113 Conforme o disposto na parte introdutória do anexo Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.
95
cumpre dizer que, na atualidade, as ameaças externas não se resumem aos casos de
confrontação bélica. Suas variáveis contemplam as cada vez menos veladas formas de
intervenção econômica, ambiental, científica, tecnológica e política, especialmente sob o
argumento falacioso da cooperação ou do resgate de nações fragmentadas ou falidas. Por
essas razões, o poder público deve dirigir sua atenção às mazelas que diminuem as
resistências do país. Mas isso não exclui a preocupação com o cenário internacional. Ao
contrário: é preciso combinar as políticas destinadas a assegurar a defesa nacional com
aquelas que garantam a consecução plena do Estado Democrático de Direito, fundamentando-
as e colocando-as em sintonia temporal.
2.1 Defesa na consolidação da democracia
Todo país tem a prerrogativa de defender seus interesses e a integridade de
seu território e, por conseguinte, sua soberania, seu povo. Para cumprir essa tarefa, muitas
variáveis são aplicáveis, dentre as quais os instrumentos diplomáticos, o poder econômico, as
estratégias e as negociações políticas, além da organização, do preparo e do emprego de
forças armadas regulares. A democracia vigente no Brasil exige uma reflexão a respeito do
escopo da política de defesa, no sentido de romper com o senso comum de que essa matéria
está limitada à atuação militar. É preciso desvelar outro sentido para a idéia de defesa: o de
que os problemas sociais também são fatores determinantes das vulnerabilidades do país,
devendo ser enfrentados por políticas públicas comprometidas com a melhoria da condição de
vida das pessoas sem, contudo, relegar os aspectos estratégicos de natureza militar, cuja
relevância se situa além do arsenal belicoso.
No Brasil não há o hábito de debater, com todos os atores políticos e sociais,
as questões que dizem respeito à defesa nacional. Acena-se para aspectos polêmicos a
reboque de fatos ocorridos. A sensação é de que o tema não desperta interesse ou não guarda
96
afinidade com a maioria da população e com boa parte daqueles que representam o poder
político, de um lado por remeter a sociedade ao recente período do regime de exceção e, de
outro, por dar a impressão de que o assunto requer um alto grau de conhecimento em assuntos
militares. Soma-se a esses motivos a percepção de que o afastamento do assunto também
decorre da estratificação social, do exercício concentrado do poder e da ininterrupta
necessidade de sobrevivência na sociedade cada vez mais competitiva, aflita pela velocidade e
voltada ao consumo e à subsistência, fatores que retiram a capacidade de perceber as mazelas
que silenciosamente se instalam e, num movimento continuado, tornam os atores sociais seres
de diminuta capacidade sensorial que não reconhecem o outro; ou pior: admitem-no como um
distante diferente que nessa posição deve permanecer.
A defesa nacional é um tema relevante que transcende a significativa
atuação de forças armadas regulares, pois compreende a infinidade de tensões e conflitos de
interesses que se movimentam, se chocam e se entrelaçam nas relações sociais, políticas e
institucionais, tanto no campo interno como no externo. As questões que dizem respeito à
política de defesa não podem prescindir, por conseguinte, do conhecimento e do debate no
seio da sociedade, essencialmente na busca da construção de consensos a respeito das
estratégias de proteção do país e de seu povo, considerado um só, além da faixa de terra e da
organização do Estado, mas fundamentalmente formado por pessoas.
Tendo em vista que o Brasil é um país democrático sob o estado de direito,
parece razoável que a defesa configure uma boa alternativa para a construção de consensos
sobre princípios de justiça que mais apropriadamente traduzam os interesses da população, de
modo a que os bens jurídicos de uns não estejam mais protegidos do que os de outros, para
que todos se sintam comprometidos a cooperar indistintamente, ante o caráter universal das
medidas sem desmerecer a importância da organização, do preparo e do emprego das Forças
97
Armadas, nos limites das regras constitucionais e da irrestrita submissão ao poder político
civil, sob as premissas que norteiam as instituições democráticas.
2.1.1 A mudança de um modelo
O presente trabalho não tem o objetivo de abordar as causas e a implantação
da ditadura militar que o Brasil vivenciou no período de 1964 a 1985. O escopo é outro:
suscitar uma nova forma de compreender a defesa nacional sob o fundamento de princípios
democráticos, com a participação da sociedade, na linha de que o poder político, uma vez
fortalecido e distribuído entre os mais variados atores, possa reunir a legitimidade
indispensável ao estabelecimento de regras vinculatórias aceitas por consensos formados a
partir de composições de conflitos, o que implica o seguinte questionamento: a dissuasão,
fator fundamental de defesa, encontra alternativa além das vias diplomáticas ou bélicas?
Para tratar de defesa no contexto da democracia a consistência dos
argumentos requer a menção de determinadas peculiaridades que envolveram a transição para
o atual regime, destacando, sempre que possível, as implicações no cenário jurídico. Nessa
linha, com o propósito de organizar as idéias no transcurso do tempo, será utilizada a parte
introdutória do estudo de Castro e D’Araújo (2001) a respeito dos militares e da política,
como também alguns pontos contidos na análise de Linz e Stepan (1999)114.
Dessa maneira, convém trazer alguns episódios da transição da democracia
no Brasil, a partir da cronologia feita por Castro e D’Araújo (2001, p. 337-346). Em 25 de
abril de 1984 foi derrotada a proposta de emenda constitucional que previa eleições diretas
para presidente da República; em 15 de janeiro de 1985 Tancredo Neves e José Sarney foram
eleitos pelo Colégio Eleitoral, respectivamente, Presidente e Vice-Presidente da República;
114 Eliézer Rizzo de Oliveira (Democracia e defesa nacional: a criação do Ministério da Defesa na
presidência de FHC. São Paulo: Monole, 2005) e José Murilo de Carvalho (Forças Armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006) são autores que também abordam com profundidade a atuação dos militares no cenário político e a transição da democracia no Brasil.
98
em 15 de março de 1985 José Sarney assumiu a Presidência da República; em 15 de
novembro de 1986 ocorreu a eleição de senadores e deputados federais para compor a
Assembléia Nacional Constituinte, além de governadores e deputados estaduais, com ampla
vitória do Partido da Mobilização Democrática Nacional (PMDB); em 1o de fevereiro de 1987
foi instalada a Assembléia Nacional Constituinte; em 2 de junho de 1988 a Constituinte
aprovou o mandato presidencial de cinco anos para o Presidente José Sarney; em 3 de
setembro de 1988 foram encerrados os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte; em 5
de outubro de 1988 foi promulgada a nova Constituição; em 15 de novembro de 1989 foram
realizadas eleições diretas em primeiro turno para presidente da República, sendo levados ao
segundo turno os candidatos Fernando Collor de Mello e Luís Inácio Lula da Silva; e em 17
de dezembro de 1989 Fernando Collor de Mello foi eleito em segundo turno Presidente da
República, tendo renunciado no dia 29 de dezembro de 1992, por força do impedimento
autorizado pela Câmara dos Deputados115, que resultou na deliberação do Senado116 pela
inabilitação política por oito anos, por crime de responsabilidade117. A seguir, o Vice-
Presidente Itamar Franco assumiu a Presidência da República, Fernando Henrique Cardoso
foi eleito por dois mandatos consecutivos (1995-1998 e 1999-2002, este com mudança nas
regras de reeleição), assim como Luís Inácio Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010).
Em que pese os movimentos contrários ao regime militar, a violência, as
mortes, as perseguições políticas e ideológicas, o Brasil não teve uma revolução que, oriunda
e amplamente legitimada pela sociedade civil, tenha, por si só, retirado os militares do poder.
Não houve uma retomada, mas sim o que se pode chamar devolução condicionada do poder
político, uma saída estratégica tanto para os civis que almejavam exercer o poder, como para
os militares que o deixariam. Embora no país e no exterior tenha ocorrido um arranjo de
115 Cf. art. 51, I da Constituição Federal de 1988. 116 Cf. art. 52, I da Constituição Federal de 1988. 117 Nas eleições de 2006, Fernando Collor foi eleito Senador da República pelo Estado de Alagoas.
99
política geoestratégica de correntes que, em dado momento, se colocaram contrárias ao
regime militar, o processo de mudança foi lento e permeado por uma série de concessões e
rupturas que permitiram a continuidade – mesmo que em intensidade menor e limitada à
autuação institucional garantidora da influência em temas decisórios relevantes – da
participação das Forças Armadas na vida política brasileira. Em síntese, a transição do
autoritário para o democrático teve início com a posse na Presidência da República do general
Ernesto Geisel, em 15 de março de 1974, completando-se quando Collor assumiu o poder, em
15 de março de 1990. Foram, pois, dezesseis anos de transição (LINZ e STEPAN, 1999, p.
204-205). Desde então, a democracia brasileira tem experimentado grandes desafios, mas em
momento algum foi formalmente ameaçada de ruptura armada ou ideológica que pudesse
comprometer o caminhar do processo de consolidação.
Note-se que os defensores da democracia distinguem liberalização de
democratização. Cabe, a esse respeito, esclarecer que, no primeiro caso, são admitidas
determinadas aberturas, enquanto no segundo as liberdades públicas são efetivamente
praticadas. No dizer de Linz e Stepan (1999, p. 21):
[...] uma combinação de mudanças sociais e de diretrizes políticas, tais como menos censura na mídia; um espaço um pouco maior para a organização das atividades autônomas da classe trabalhadora; a introdução de algumas salvaguardas jurídicas para o indivíduo, como o habeas corpus; a libertação da maior parte dos presos políticos; o retorno dos exilados; talvez algumas medidas visando a melhoria das condições de renda e, o que é mais importante, a tolerância à oposição.
No panorama teórico da democracia, Linz e Stepan (1999, p. 21) destacam a
importância de conhecer a natureza dos regimes não-democráticos, de modo a que os
mecanismos de transição e de posterior consolidação possam ser avaliados e planejados, em
cujo contexto se encontra o arcabouço jurídico-normativo vigente e a ser construído, tendo em
vista que a mudança do regime de exceção para o democrático, ainda que pacificamente,
100
acarreta profunda revisão no atuar da sociedade e das instituições, o que repercute no direito
e, por conseguinte, na percepção do que é justo. Entenda-se por pacífica a transição ocorrida
sem agressão armada, sem o uso de violência a partir da pressão (interna e externa) pela
mudança de regime. Por certo, não se pode deixar de mencionar a ocorrência de atos de
violência e repressão contra os movimentos que antecederam o retorno do processo
democrático ao Brasil. Para melhor compreender o fenômeno sob análise, revela-se de todo
apropriado transcrever a definição alinhava por aqueles autores:
Uma transição democrática está completa quando um grau suficiente de acordo foi alcançado quanto aos procedimentos políticos visando obter um governo eleito; quando um governo chega ao poder como resultado direto do voto popular livre; quando esse governo tem, de fato a autoridade de gerar novas políticas; e quando os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, criados pela nova democracia, não têm que, de jure, dividir o poder com outros organismos.
Segundo esse entender, inicialmente a transição para a democracia encontra
legitimidade na formação de consenso a respeito dos mecanismos para a eleição do novo
governo. Logo, o primeiro requisito compreende o reconhecimento da perda do poder político
da gestão autoritária em face das exigências advindas da sociedade e da pressão externa, mas
não necessariamente de todo o conjunto da população, no impulso de determinados grupos de
influência, observada a opressão, a sensação de segurança e o distanciamento que as massas
tiveram – e, de certa maneira, ainda têm – dos assuntos de natureza política.
A esse respeito, Linz e Stepan (1999, p. 267) contemplam os resultados de
pesquisas de opinião sobre democracia, abrangendo a capacidade que o regime tem para
resolver problemas. As respostas, que levaram em consideração a concordância ou não dos
entrevistados com o comando da assertiva, compreendem três grupos de perguntas e
respectivos percentuais de respostas, todos dirigidos à legitimidade do regime, a saber: (i) “A
democracia é preferível a qualquer outra forma de governo”. Quanto à capacidade, 55,2%
responderam que sim e, quanto à incapacidade, 29,0% responderam que não; (ii) “Em
101
algumas circunstâncias, um governo autoritário poderia ser preferível a um governo
democrático”. 16,8% responderam pela capacidade, enquanto 27,7% pela incapacidade; e (iii)
“Para gente como eu, não faz diferença se o regime é democrático ou não democrático”. Do
total, 17,2% manifestaram concordância com a legitimidade da democracia, contra 30,7% que
não acreditaram. No que concerne à percepção das pessoas, esses dados indicam a fragilidade
do regime democrático e sua permanente sujeição a intenções assistencialistas ou
paternalistas, para as quais podem derivar práticas totalitárias.
Certamente a ruptura gerou significativa tensão entre as forças políticas, não
só daquelas interessadas na abertura do regime, mas também no seio das que compartilhavam
o poder, fossem elas de origem militar ou civil. Castro e D’Araújo (2001, p. 15-16) destacam
que havia entre os militares que entrevistaram o sentimento predominante de que a transição
se fazia necessária para pôr fim à sucessão de governos de exceção que até então se praticava.
Ademais, a ausência de unanimidade no pensamento dos dirigentes do país provavelmente
funcionou como um termômetro para medir os limites da atuação institucional contra ou a
favor da mudança. Porém, uma ou outra tendência inevitavelmente influenciaria a ocorrência
de conflitos nos quartéis, o que não seria desejável sob os aspectos da justiça e disciplina118,
que são, em tese, princípios basilares da atividade militar. Os autores também destacam o
papel desempenhado pelos líderes da Aliança Liberal e pelo candidato da oposição, Tancredo
Neves, na transição para o governo civil que, embora por meio de eleições indiretas, tentou
estabelecer a conciliação, ao contrário do sentimento de vingança contra as Forças Armadas
que tanto preocupava os militares.
Percebe-se um alinhamento à direita ou, no mínimo, ao centro, na
demonstração de que a base de sustentação do novo governo não teria aspectos
revolucionários ou revanchistas na transferência do poder. Castro e D’Araújo registram que
118 Princípios previstos no caput do art. 142 da Constituição Federal de 1988.
102
essa postura foi mantida quando Sarney assumiu a Presidência, dando ensejo ao aumento da
remuneração dos militares, além de manifestações públicas destinadas a prestigiar aquelas
instituições e respectivas autoridades. O governo Sarney foi rotulado de viver sob a tutela dos
militares, argumentando-se que esses continuavam a gozar de posição política de destaque.
Interessante mencionar que, para Faria (2003, p. 20), o sistema brasileiro se caracterizava e
ainda tem presente a concessão de benefícios considerados “desiguais e fragmentários”,
voltados a determinados grupos e às elites como, por exemplo, militares, empresas estatais,
funcionários do legislativo, do judiciário e funcionários de carreira do Estado, como também
(porém em menor grau) de trabalhadores da indústria e de setores estratégicos119.
Sarney, Vice-Presidente eleito indiretamente, assumiu a Presidência em
decorrência da morte de Tancredo antes mesmo da posse. O artigo 78 da Constituição de
1967120 não previa textualmente essa possibilidade. Mas o parágrafo único do art. 76, que
estabelecia os procedimentos de vacância, mencionava que o cargo de Presidente ou de Vice-
Presidente seria declarado vago no prazo de dez dias contados da data fixada para a posse,
admitindo-se a interpretação de que a sucessão prevista na segunda parte do caput do art. 77
não dependeria da prévia posse do Presidente eleito. Se assim não fosse, nos termos do art. 78
da Carta de 1967121, poderiam assumir a Presidência da República, sucessivamente, o
Presidente da Câmara dos Deputados, o Presidente do Senado Federal ou o Presidente do
Supremo Tribunal Federal. A assunção de Sarney foi oportuna, posto que, como assinalaram
Linz e Stepan (1999, p. 205-206), ele presidia o partido pró-regime e fazia parte dos acordos
ajustados.
119 Nessa linha, Faria (2003) mencionou que a crise dos anos 80 e 90 ampliou a desorganização do sistema de
proteção gerenciado pelo Estado. 120 Esse dispositivo, com a redação dada pela Emenda Constitucional no 1, de 17 de outubro de 1969,
promulgada pelos então Ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, prescrevia: “Substitui o Presidente, em caso de impedimento, e sucede-lhe, no de vaga, o Vice-Presidente. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 1o de novembro de 2007.
121 Dispositivos da Constituição de 1967 com a redação dada pela Emenda Constitucional no 1, de 17 de outubro de 1969.
103
Na definição de Linz e Stepan (1999, p. 21) o segundo requisito da transição
corresponde à eleição do governo pelo voto popular livre, o que não ocorreu no caso
brasileiro, pelo menos no primeiro momento. Tancredo Neves e Sarney foram
respectivamente eleitos, pela via indireta, Presidente e Vice-Presidente. Ou seja, a escolha do
chefe de Estado (que também era o chefe do Executivo, como na atualidade) coube ao colégio
eleitoral ainda sujeito às tensões do governo militar, sendo de relevância lembrar que em 25
de abril de 1984 foi rejeitada a proposta de emenda constitucional que pretendia consagrar o
voto direto para aqueles cargos. Portanto, somente em 15 de novembro de 1989 (mais de
quatro anos depois da posse de Sarney) foi realizado o primeiro turno das eleições diretas para
a Presidência da República pós-regime de exceção, isto é, no curso da transição (e não antes,
frise-se). A posse ocorreu três meses depois, em 15 de março de 1990, data a partir da qual foi
aperfeiçoada a transição para a democracia. Não obstante, é relevante destacar que em 15 de
novembro de 1986 foram realizadas as eleições de senadores e deputados federais para
compor a Assembléia Nacional Constituinte, e de governadores e deputados estaduais, todas
com votação direta, fatos que assinalaram a mudança de regime, tendo em vista o início da
construção de um novo pacto social, a abranger a nova constituição e a reformulação da
divisão do poder no território nacional, embora com diminuta participação das massas.
Com as eleições realizadas no país, passa-se ao terceiro requisito da
definição de Linz e Stepan (1999), que consiste na legitimidade que o governo tem para
articular novas políticas. Ultrapassa os limites desse trabalho a análise das políticas
formuladas naquela fase inicial de transição para democracia (Sarney) e dos primeiros passos
da consolidação democrática (Collor-Itamar). Mas é possível afirmar que as medidas
adotadas, de maior ou menor relevância, revelaram certo grau de autonomia e de autoridade
dos governantes. A esse respeito, destaca-se o papel fundamental desempenhado pelo Poder
Legislativo, na qualidade de representante do povo, pois a democracia e as regras
104
constitucionais modificaram substancialmente a concentração de poder que até então se
verificava nas ações do chefe do Executivo, que dispunha de prerrogativas excepcionais para
legislar ou para influenciar a pauta do Congresso, ao amparo de atos institucionais que
exorbitavam e ampliavam sobremaneira os poderes da autoridade presidencial122.
Na atualidade brasileira, mesmo com determinadas condições, o uso da
medida provisória123 e a nomeação para cargos públicos relevantes124, além da autonomia para
gerir o orçamento público, ainda conferem ao Presidente da República, na confusão entre
chefe de Estado e de Governo, competências que não raras vezes são vistas como contrárias
ao regular processo legislativo e prejudiciais aos princípios democráticos, tendo em vista que,
por força das assimetrias que geram, podem funcionar como instrumentos de cooptação de
apoios e, por conseguinte, acarretar distorções no sistema de representação política.
Colocados o consenso para a mudança de regime, a realização de eleições e
a legitimidade do novo governo, o quarto e último requisito apontado por Linz e Stepan
(1999) diz respeito à atuação livre e independente das instituições, dentre as quais estão os
poderes Executivo, Legislativo e Judiciário sob a égide da nova Constituição. A esse respeito,
o art. 2o da Carta Política de 1988 atribui independência e harmonia a essa estrutura basilar da
União, que assume a forma de representação do poder do Estado. No que concerne à paridade
entre os poderes da União, Carvalho (2002, p. 242) pondera que o princípio de separação
passa por processo de transformação justificado pelo argumento de que o poder estatal
contemporâneo não comporta mais a extrema rigidez da fórmula, argumentando, porém, que
não deve ser negado, mas aperfeiçoado para o fim de torná-lo compatível com a eficiência
que é exigida do poder público, desde que respeitados os direitos fundamentais. Como sabido,
122 Especialmente aqueles previstos no Ato Institucional no 5, de 13 de dezembro de 1968. 123 Cf. arts. 62 e 84, XXVI da Constituição Federal de 1988 e o art. 246 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias. 124 Dentre os quais, os de Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica; com a prévia aprovação dos
nomes pelo Senado Federal, os de Ministros do STF e dos tribunais superiores, os de governadores dos Territórios, o de Procurador-Geral da República, o de presidente e os de diretores do Banco Central.
105
a separação dos poderes tem por premissa a noção de freios e contrapesos sem a qual
dificilmente a democracia funcionaria a contento. O aperfeiçoamento desse princípio se
justifica pela tendência de deturpação do funcionamento daquelas instituições, especialmente
o Legislativo e o Executivo em decorrência dos vícios de uma fração de seus membros que,
despreparados para o trato de interesses coletivos que exigem elevado grau de abnegação e
desprendimento de interesses individuais e corporativos, frustram as expectativas do povo na
busca não raras vezes desenfreada do poder pelo poder, substituindo a vocação política pela
banalização da coisa pública e dos preceitos que deveriam nortear a equilibrada composição
de causas sujeitas a conflitos e tensões.
Os problemas enfrentados na aplicação do princípio de separação dos
poderes guardam estreita ligação com a linha parlamentarista da Carta de 1988, delineada
para um governo parlamentarista e que acabou por servir ao presidencialismo, situando o
Presidente da República ora como chefe de Estado ora como chefe de governo. Foi mantida a
aproximação dos militares com a cúpula do poder político. Essa composição exige cautelas
permanentes, pois é preciso questionar as relações que se estabelecem nos rituais de
administrar, de legislar e de zelar pelo fiel cumprimento das regras de direito, tendo em vista
que a confusão entre essas atividades pode resultar prejuízos à consolidação da democracia,
notadamente porque o mandato popular, de natureza transitória, não está imune ao risco de ser
substituído pela submissão ao fascínio de permanecer no poder que se opera, dentre outras
estratégias, pela conquista de maiorias para aprovar projetos de grupos corporativos e para
viabilizar o que se convencionou chamar de governabilidade, mediante a realização de
negociações parciais, de nomeações destinadas a atender demandas desprendidas do bem-
comum e da aprovação de emendas ao orçamento125 para manter a lealdade de aliados.
125 O orçamento da União ainda não é vinculatório, posto que se sujeita aos limites de execução determinados
pelos agentes da tecnocracia centralizados nas instituições que integram o Poder Executivo Federal.
106
O Brasil passou pela transição, mas ainda se encontra no curso da
consolidação democrática. Entretanto, esse processo vai além dos fatores ou dos requisitos até
então mencionados (consenso para a mudança, eleição do governo pelo voto, autoridade
governamental para propor e implantar políticas públicas efetivas e atuação independente dos
poderes constituídos). Exige um conceito ou um conjunto de ações mais amplo do que uma
simples lista de intenções meramente programáticas, o que determina a competição aberta
pelo direito de exercer o poder político com base em debates que enfrentem detalhadamente
os temas de interesse do país e as políticas públicas viáveis para solucioná-los, decorrendo as
escolhas por partidos e candidatos com plataformas eleitorais coerentes, para que o exercício
das atividades governamental e parlamentar correspondam aos anseios da população. Dessa
maneira, a democracia deve ser compreendida como valor da vida social, presente também
nas instituições, para que possa alcançar seus objetivos por meio da participação de todos na
escolha dos desígnios do país, seja pelo voto direto, pelas pressões legítimas e pela
fiscalização dos atos praticados e das decisões tomadas (LINZ e STEPAN, 1999, p. 22-24).
Decorrente do processo de consolidação, a teoria desenha a fase de
democracia consolidada de acordo com as condições e o momento histórico de cada país. Para
Linz e Stepan (1999, p. 22-24) essa experimentação pode ser analisada no contexto dos
comportamentos, das atitudes e dos aspectos constitucionais:
Em termos comportamentais, um regime democrático, em um território, está consolidado quando nenhum ator nacional de importância significativa, quer social, econômica, política ou institucional, despenda recursos consideráveis na tentativa de atingir seus objetivos por intermédio da criação de um regime não-democrático, lançando mão de violência ou de intervenção estrangeira, visando a secessão do Estado.
Em termos de atitudes, um regime democrático está consolidado quando uma grande maioria da opinião pública mantém a crença de que os procedimentos e as instituições democráticas são a forma mais adequada para o governo da vida coletiva em uma sociedade como a deles, e quando o apoio a alternativas contrárias ao sistema é bastante pequeno ou menos isolado das forças pró-democráticas.
Em termos constitucionais, um regime democrático está consolidado quando tanto as forças governamentais quanto as não-governamentais, em todo o
107
território do Estado, sujeitam-se e habituam-se à resolução de conflitos dentro de leis, procedimentos e instituições específicas, sancionadas pelo novo processo democrático.
Nessa ordem de idéias, as variáveis territorialidade e institucionalização são
essenciais para a democracia porque permitem verificar a fragilidade ou a consistência da
atuação do poder político, sua presença na sociedade, no Estado e no governo. Porém, a
legitimidade de sua atuação depende da forma como as pessoas reconhecem e praticam os
princípios democráticos, além dos parâmetros valorativos sob o fundamento dos quais serão
compostos os consensos necessários à composição dos conflitos, proporcionando a
estabilidade e a continuidade das instituições responsáveis para levar a efeito as decisões
políticas. A esse respeito, Torres (2004, p. 20) assinala:
La institucionalización del orden puede ser entendida como un proceso de dos dimensiones. Por una parte, como el proceso mediante el cual principios y valores que dan fundamento a las instituciones son conocidos, aceptados y practicados regularmente, al menos por aquellos a quines esas mismas pautas definen como participantes o no del proceso. Aquí el grado de institucionalización está dado por la capacidad que tienen los principios y valores institucionales para mantener la unidad del poder político e la cohesión del aparato estatal por en cima de las tensiones y conflictos de la sociedad (O’Donnell y Schmitter, 1991). Y por otra parte, la institucionalización del orden puede ser entendida como el proceso mediante el cual las organizaciones adquieren valor y estabilidad en sus estructuras, funciones y procedimientos (Huntington, 1991). La institucionalización del orden concreta las formas de interacción de los individuos, como relaciones de consenso o represión. Es el campo de encuentro entre dominación y hegemonía. La institucionalización del orden también define los principios de cohesión externa, como problemas de institucionalización del orden, ponen en evidencia la irrupción incontrolada e incontrolable de una multiplicidad formas, instancias e instrumentos paralelos a las formas, instancias e instrumentos institucionales del Estado en la regulación y control de la vida en sociedad.
Contudo, assim como Dahl (2001) e Ferreira Filho (2001), Linz e Stepan
(1999, p. 24-25) advertem que a democracia não obedece a modelo único para todos os países
e que a consolidação no curso da história pode sofrer mudanças e interrupções, indo além da
realização de eleições e da existência de mercados livres. Como metodologia para analisar o
processo de consolidação, esses autores formularam cinco fatores sob o pressuposto de que a
108
democracia é uma forma de governar e que, por conseguinte, uma comunidade política
somente poderá se constituir sob tais princípios quando previamente for considerada como
Estado. Nessa linha, argumentam que restará democraticamente fortalecido o ente estatal que
contemplar (i) condições para o desenvolvimento de uma sociedade civil livre e ativa, (ii) que
disponha de um mínimo de autonomia e valorização (iii) sob o fundamento do estado de
direito que preserve as garantias legais das liberdades dos cidadãos e da vida associativa
independente, sem dispensar a burocracia estatal no novo governo democrático e, por fim, (v)
que a sociedade econômica represente uma realidade institucionalizada. Esses fatores estão
presentes no modelo brasileiro.
Para entender o funcionamento do Estado com base nos cinco fatores
anteriormente descritos é necessário conhecer a noção de sociedade civil e de sociedade
política, a partir dos estudos de Linz e Stepan (1999, p. 26). Assim, sociedade civil consiste
“no campo da comunidade política no qual grupos, movimentos e indivíduos, auto-
organizados e relativamente independentes do Estado tentam articular valores, criar
associações e entidades de interesses mútuos, e defender seus interesses”. Os autores
acrescentam que a sociedade civil organizada e com objetivos normativos teve grande
capacidade de mobilizar a oposição nos regimes burocrático-autoritários dos militares na
América do Sul, de maneira mais “patente” no Brasil e “crucial” no Leste europeu,
notadamente na Polônia. Essas colocações devem ser observadas com cautela, tomando a
advertência deixada por Kelsen (1993, p. 61), ao tratar da organização do povo em profissões
visando a proteção de interesses comuns, considerando que esse movimento “não compreende
todos os interesses em jogo na formação da vontade do Estado”. Não obstante, os autores
também consideram a existência e a força dos cidadãos comuns que não pertencem a
determinados grupos organizados:
109
Esses cidadãos são, muitas vezes, de importância crítica na alteração do equilíbrio regime/oposição, porque eles vão às ruas em passeatas de protestos, ridicularizam a polícia e as autoridades, manifestam sua discordância, primeiramente a medidas específicas, para em seguida dar apoio a reivindicações mais amplas e, por fim, acabam por desafiar o regime. Nesse sentido, podem conduzir a uma liberalização e conseqüente mudança do arcabouço jurídico-normativo na mudança de regime.
Por outro lado, Linz e Stepan (1999, p. 27) entendem a sociedade política no
contexto da busca pela democratização como uma comunidade “que se organiza de forma
específica, visando reivindicar o direito legítimo de exercer controle sobre o poder público e o
aparato estatal”. Em que pese não ser descartada a hipótese de a sociedade política atuar
contra ou a favor do regime democrático na tentativa de defender seus interesses e manter seu
predomínio no poder, a influenciar, por conseguinte, as ações da sociedade civil, a assertiva
dos autores demonstra o quanto é relevante a atuação da sociedade política na transição e na
consolidação da democracia, principalmente na construção de consensos que servirão de base
à nova realidade do país, a envolver os temas centrais que o norteiam, dentre os quais estão os
partidos políticos, as eleições, as regras eleitorais, a liderança política, as alianças
interpartidárias e as legislaturas que servirão “para escolher e monitorar o governo
democrático”.
Ocorre que sociedade civil e sociedade política não atuam de forma
harmônica. A esse respeito, Linz e Stepan (1999, p. 27-29) ponderam que, embora aparentem
compartilhar interesses convergentes, adotam posições contrárias ou antagônicas que
prejudicam profundamente a consolidação democrática. Assim, ao invés da ação de uma
complementar a outra, estabelece-se oposição que silenciosamente instala o conflito entre
forças. Para solucionar, ou melhor, para compor essas controvérsias no campo do diálogo, a
formação de partidos se faz conveniente, pois, em tese, agregam e representam diferenças
entre as correntes representativas. Por conseguinte, exige-se a continuada regulação dos
conflitos, inserindo os mecanismos democráticos na rotina institucional para que seja possível
110
intermediar as posições que separam o Estado (no qual foi incorporada a sociedade política)
da sociedade civil, mediante a estruturação de acordos que gozem de legitimidade e que não
sirvam para dar continuidade às práticas de opressão então praticadas antes da transição para a
democracia. Nessa discussão, o estado de direito é determinante na medida em que funciona
como ideário de justiça eqüitativa que se busca na democracia, a constituir a fonte de
sustentação, autonomia e independência das sociedades civil e política para o alcance da
consolidação da democracia. Dessa feita, as regras de direito devem ser respeitadas e
preservadas pelo próprio poder público, no cumprimento dos princípios da Carta Política, a
respeito de cuja especialização os autores ainda sustentam:
Um espírito constitucionalista requer mais do que o preceito do governo da maioria, implicando um consenso relativamente forte no que diz respeito à constituição e, em especial, ao compromisso com procedimentos “de auto-limitação de governo”, que exigem maiorias excepcionais para que mudanças sejam feitas. Ele requer também uma clara hierarquia das leis, interpretadas por um sistema judiciário independente e apoiada por uma forte cultura legal na sociedade civil.
No campo teórico desenvolvido por Linz e Stepan (1999, p. 29), a sociedade
civil ativa e independente, a sociedade política com autonomia suficiente e o consenso
operacional quanto aos procedimentos de governo constituem, juntamente com o
constitucionalismo e o estado de direito, os pré-requisitos para uma democracia consolidada.
Lembram, ainda, que a democracia é a forma de governo da vida na polis, onde cidadãos
exercem direitos que lhe são assegurados e protegidos, sendo admitido o uso legítimo da força
no território para que o governo democrático possa proteger os direitos básicos da população.
Para tanto, segundo os autores, faz-se necessário um Estado operacional e uma burocracia
estatal capaz de ser utilizada para o exercício do poder de comando, regulação e fiscalização.
A questão a ser enfrentada reside na democratização da burocracia e das elites, desfazendo-se
as amarras que conduzem à opressão, dentre as quais o corporativismo e o não-
reconhecimento do outro como portador de direitos fundamentais.
111
No entender de Linz e Stepan (1999, p. 30) a economia é o último fator
(metodológico e não de importância) de sustentação de uma democracia consolidada.
Preferem denominá-la de sociedade econômica orientada por dois postulados, a saber: (i) em
tempos de paz, não há possibilidade de contemplar uma economia planificada; e (ii)
igualmente, não há lugar para a democracia em uma economia de mercado pura. Os autores
argumentam que a democracia consolidada moderna requer “um conjunto de normas,
instituições e regulamentações, construídas e acordadas de forma sócio-político, às quais
denominamos sociedade econômica, que atua como mediadora entre o Estado e o mercado”.
Nesse aspecto, o modelo jurídico-normativo adotado pelo Brasil126 corresponde a essa
definição, pois a Carta Política de 1988 preceitua que a exploração direta de atividade
econômica pelo Estado somente poderá ocorrer em casos excepcionais quando presentes os
imperativos de segurança nacional ou de relevante interesse coletivo127, determinando que o
poder público atue apenas na qualidade de agente normativo e regulador da atividade
econômica, por meio da fiscalização e da promoção de incentivos, utilizando-se de políticas e
da indicação dos melhores caminhos à iniciativa privada128.
Linz e Stepan (1999, p. 32) também sustentam que, no campo econômico, a
democracia consolidada moderna não seria sustentável caso deixasse de produzir debates a
respeito das prioridades e das políticas governamentais, especialmente quanto à geração de
bens públicos administrados pelo governo e destinados à população, com ênfase às áreas de
educação, saúde, transporte e na formação de “redes de segurança” providas de estruturas
capazes de assistir aos que sofrerem prejuízos decorrentes das oscilações de mercado, além,
126 Os arts. 170 a 181 da Constituição Federal de 1988 tratam da atividade econômica, que se baseia nos
seguintes princípios: soberania nacional; propriedade privada; função social da propriedade; livre concorrência; defesa do consumidor; defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; redução das desigualdades regionais e sociais; busca do pleno emprego; e tratamento favorecido a empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham a sua sede e administração no País.
127 Cf. art. 173 da Constituição Federal de 1988. 128 Cf. art. 174 da Constituição Federal de 1988.
112
por certo, de suprir as carências das camadas mais pobres da sociedade. Os autores concluem
a análise do panorama teórico com a assertiva de que a democracia transcende o convencional
conceito de regime político para compreender o convívio social fundamentado num “sistema
de interações”, no qual “há mediações constantes entre os campos, cada um dos quais está, de
maneira correta, no ‘campo’ de forças que emana dos demais”. A democracia consolidada
requer, pois, a atuação em rede numa construção transdisciplinar ininterrupta para a qual
concorrem todos os atores políticos e sociais.
Os problemas de ordem econômica dificultam a consolidação democrática.
Entre 1985 e 1993 sete diferentes planos de reforma foram lançados e fracassaram. Segundo
Linz e Stepan (1999, p. 203-204) a falta de êxito decorreu da incapacidade política de união
para formar uma coalizão que pudesse sustentar a consecução de novas políticas:
O constitucionalismo e o Estado de direito – que nunca foram fortes na altamente desigual sociedade brasileira – enfraqueceram-se mais ainda. A longa crise econômica diminuiu a capacidade fiscal e moral do Estado para desempenhar um papel integrador na sociedade e para serviços básicos aos cidadãos. A autonomia e o valor conferidos às instituições da sociedade política tornaram-se cada vez mais tênues. Como o Estado retirava-se de cena, e a sociedade política não era capaz de forjar um apoio político contínuo em torno de qualquer alternativa política, a sociedade tornou-se cada vez mais anômica, e o valor da cidadania entrou em declínio.
No curso da consolidação da democracia brasileira, Castro e D’Araújo
(2001, p. 17-18) esclarecem que, depois da queda da popularidade de Sarney, ocorrida no
final de 1986, decorrente do fracasso de seu plano de estabilização econômica (Plano
Cruzado), houve uma aproximação mais intensa de seu governo com os militares, que se
apresentavam sempre atentos às promessas conciliatórias firmadas por Tancredo Neves na
tentativa de evitar atitudes revanchistas que não interessavam às autoridades militares129. A
transição ganhava contornos mais delicados na medida em que os debates a respeito da nova
Constituição se intensificaram, oportunidade na qual os militares, apesar de revelarem “pouco 129 É relevante lembrar que os países vizinhos do Cone Sul também passavam por momentos de abertura política,
com a deflagração de demandas judiciais e morais contra os regimes de exceção.
113
ou nenhum” conhecimento mútuo de suas instituições, conciliaram esforços no sentido de
unificar os temas tidos como favoráveis às Forças Armadas, caracterizando um “lobby” que
se aproximou das principais lideranças da Assembléia Constituinte, tendo sua atuação
facilitada com a criação do bloco suprapartidário de centro-direita chamado “centrão”.
A aproximação dos militares com os políticos também foi analisada por
Linz e Stepan (1999, p. 206), destacando a influência que os primeiros exerceram em face dos
segundos, chegando, inclusive, a interferir no que seria a pioneira experiência latino-
americana de parlamentarismo, alinhavada na proposta de redação do art. 78 da carta política
que era construída. O receio dos militares residia na possibilidade de se submeter a um
parlamento e, ao mesmo tempo, perder a relação direta com a autoridade do Presidente da
República. Essa teoria explica, em parte, o perfil parlamentarista da Constituição de 1988 e
seus contrastes com o sistema presidencialista, ao final adotado e que tanto desgaste leva ao
governo cujo dirigente máximo também atua como chefe de Estado, tornando próximo do
insustentável o enfrentamento das mais diversas crises a que está sujeito o governo
(Executivo) que necessita firmar alianças para compor maiorias e conseguir o que se
convencionou designar de “governabilidade”, dificultando a realização de mudanças
significativas na cúpula do poder, na proposição de alterações legislativas necessárias e na
concepção de políticas públicas.
No complexo conjunto de temas de interesse do governo de exceção que
deixava o poder estavam a (i) manutenção do serviço militar obrigatório, (ii) a continuidade
do controle da aviação civil na Aeronáutica, (iii) a preservação da natureza, da organização e
da colocação institucional das Forças Armadas no contexto do poder político nacional em
detrimento das idéias de criação do Ministério da Defesa, (iv) a relevância de manter a Justiça
Militar e (v) a polêmica em admitir o habeas data no sistema jurídico brasileiro,
especialmente para proporcionar o acesso à documentação do serviço de informações do
114
regime de militar. Dentre as principais preocupações figurou a possibilidade de revisão dos
atos de governo praticados durante o período da ditadura, na forma de concessão de anistia
política, com o retorno à ativa dos cassados e ao pleno gozo de seus direitos, o que, segundo
os argumentos em sentido contrário, prejudicaria os princípios de hierarquia e disciplina, pois
a medida alcançaria militares e civis. Outra preocupação relevante se concentrou nos debates
em torno das atribuições constitucionais das Forças Armadas “como mantenedoras da lei e da
ordem, em caso de convulsões internas” (CASTRO e D’ARAÚJO, 2001, p. 19), abordada no
capítulo anterior.
O instituto da anistia política, previsto no inc. XVII do art. 21 da
Constituição Federal de 1988, foi aperfeiçoado na forma da Lei no 10.559, de 13 de novembro
de 2002. Antes, porém, a anistia foi prevista em atos específicos e incluída nos artigos 8o e 9o
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias daquela Carta Política. O serviço militar
obrigatório foi mantido no caput do art. 143 da Constituição, com as exceções dos §§ 1o e 2o,
que tratam do imperativo de consciência130, das mulheres e dos eclesiásticos131. Inicialmente,
a aviação civil foi preservada no âmbito de atribuições do então Ministério da Aeronáutica,
dada a competência da União prevista na alínea “c” do inc. XII do art. 21 da Constituição.
Porém, depois da inserção constitucional do Ministério da Defesa, feita pela Emenda
Constitucional no 23, de 2 de setembro de 1999, como também da transformação dos então
ministérios Militares em Comandos de Força Armada, o art. 21 da Lei Complementar no 97,
de 9 de junho de 1999, previu a criação da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC),
estabelecendo que as competências para “orientar, coordenar e controlar as atividades de
Aviação Civil e estabelecer, equipar e operar, diretamente ou mediante concessão, a infra-
estrutura aeroespacial, aeronáutica e aeroportuária” seriam transferidas da Aeronáutica para
130 Entendido como crenças religiosas ou convicções filosóficas ou políticas incompatíveis com o serviço militar,
substituído, em tempo de paz, por prestação alternativa. 131 A isenção está restrita aos tempos de paz e condicionada outros encargos previstos em lei.
115
aquela Agência, o que se deu com o advento da Lei no 11.182, de 27 de setembro de 2005,
que efetivamente criou a ANAC, autarquia especial que integra a Administração Pública
Federal indireta, vinculada ao Ministério da Defesa132.
A natureza constitucional atribuída ao Ministério da Defesa pela Emenda
Constitucional no 23, de 2 de setembro de 1999, reforçou a subordinação civil unificada dos
Comandos das Forças Armadas a esse novo ente público133, respeitada a autoridade suprema
do Presidente da República134. Por sua vez, a Justiça Militar foi mantida no art. 124 da
Constituição Federal de 1988, porém com significativa mudança do seu campo de
abrangência ante a nova conjuntura democrática135. O habeas data – garantia civil de natureza
fundamental –, foi previsto no inc. LXXII do art. 5o da Carta Política de 1988, considerando-
se, também, o disposto no inc. XXXIII do mesmo artigo, assegurando que o poder público
não poderá negar aos cidadãos “informações de seu interesse particular, ou de interesse
coletivo ou geral”, com a ressalva daquelas “cujo sigilo seja imprescindível à segurança da
sociedade e do Estado”. Como sabido, esse instituto tem a finalidade de “assegurar o
conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou
bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público” e para retificar “dados,
quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo”, nos termos
das alíneas “a” e “b” do inc. LXXII do art. 5o da Carta Política vigente.
Quanto ao processo de transição, Aguiar (1986, p. 17-18) assinala que,
diferentemente do movimento pelas eleições diretas, os debates dos temas da Constituinte não
envolveram profundamente a população, de tal modo que restou mitigado o “processo político
legítimo”, mantendo-se o mesmo procedimento que tanto marcou a história das constituições 132 Em 2006, o acidente aéreo que envolveu aeronave da empresa GOL e um jato comercial tornou público
problema vivido no setor que envolve aspectos de direção, infra-estrutura, treinamento de pessoal, fiscalização, gestão, aplicação de recursos públicos e denúncias de corrupção.
133 Cf. art. 3o da Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999. 134 Cf. art. 1o da Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999. 135 Para aprofundar a análise sobre a Justiça Militar, sugere-se a leitura de Roberto A. R. de Aguiar (op. cit., p.
24).
116
brasileiras para ao final refletir os “interesses e projetos históricos dos grupos hegemônicos da
sociedade”. Esse traço, segundo o autor, se estende a todo o ordenamento jurídico na assertiva
de que “o direito estatal é sempre um direito de classe, é sempre uma delimitação de condutas
e comportamentos à luz de padrões ideológicos emergentes das relações de produção dos
grupos que ocupam e instituem o Estado”, ante a possibilidade de supremacia do poder
econômico da minoria em detrimento da vontade legítima das maiorias.
Na comparação entre Brasil, Chile, Argentina, Uruguai, Espanha, Portugal e
Grécia, Linz e Stepan (1999, p. 203) chegaram ao diagnóstico de que o Brasil enfrentou as
maiores dificuldades na consolidação da democracia. Com a observação de que os demais
países também tiveram regimes autoritários anteriores136, os autores sustentam que o principal
problema residiu na “variável da economia política da legitimidade”, assinalando que os
principais fatores que marcaram o país foram (i) a desigual distribuição de renda, (ii) os piores
níveis educacionais e de bem-estar social de todos os países sul e centro-europeus e sul-
americanos, além de vigorar (iii) o sistema de partidos políticos menos estruturado dentre os
quatro sul-americanos analisados. Quanto ao aspecto partidário, a atualidade brasileira tem
vivenciado esforços no sentido de proporcionar maior credibilidade aos partidos políticos, ao
processo eleitoral e, por conseguinte, ao Poder Legislativo. Porém, as recentes iniciativas de
reforma política não foram capazes de, até então, diminuir o enfraquecimento da legitimidade
da representação política nas eleições de 2006. Dentre as reformas, figurou a Emenda
Constitucional no 52, de 8 de março de 2006, que, na tentativa de disciplinar as coligações
eleitorais, deu nova redação ao § 1o do art. 17 da Constituição Federal de 1988, a saber137:
136 A obra Democracia e Forças Armadas no Cone Sul (organizadores Maria Celina D’Araújo e Celso Castro.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000) apresenta estudo comparativo da transição dos regimes de exceção para a democracia e a inserção dos militares nessa nova ordem política, nas realidades de Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai.
137 A referida Emenda foi questionada na Ação Direta de Inconstitucionalidade no 3685-8.
117
É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.
Interessante notar que, conforme apuraram Linz e Stepan (1999, p. 209-210;
211-213), a ineficácia do governo civil e seus efeitos na qualidade de vida das pessoas
repercutiu negativamente na consolidação da democracia no Brasil, observada a relativa
estabilidade econômica dos períodos de governos militares, com significativa influência no
grau de sensibilidade da massa do povo brasileiro notadamente quanto à preferência ou não
pelo regime democrático, ponderada a hipótese de que os mais pobres ou menos instruídos
não foram atingidos, num primeiro momento, pelos efeitos da mudança de regime. Os autores
defendem que a democracia consolidada exige um Estado capaz de regular e compor a
solução dos conflitos existentes entre os indivíduos e no âmbito da comunidade política, com
legitimidade para atuar em todo o território, como visto anteriormente. Portanto, a concepção
democrática exige a presença normativa e institucional do Estado, privilegiando-se o
exercício da plena cidadania para o fim de, na assertiva dos autores, modificar a percepção de
que a justiça não exerce seu papel de forma eqüitativa, mas sim privilegiando uns em
detrimento de outros.
Essa questão ganha maiores contornos quando observada sob o aspecto da
violência. Os recentes problemas vivenciados no Rio de Janeiro são um exemplo clássico da
precariedade da atuação do Estado e de sua perda ou diminuição de legitimidade para atuar
efetiva e continuadamente em todo o território, retratando as dificuldades de compor
consensos a respeito das formas mais adequadas de enfrentar os desafios do poder público e
de toda a sociedade. A presença do Estado não se faz apenas pela polícia, mas pela execução
permanente e interligada de corretas políticas públicas suprapartidárias nas áreas de moradia,
emprego, lazer, educação e saúde.
118
É preciso, pois, que o poder público, sob o fundamento dos princípios de
justiça, desenvolva a capacidade política indispensável para regular os conflitos e, ao mesmo
tempo, agir como regulador e integrador social. Contudo, a configuração estatal por si só não
possui a legitimidade e a força necessárias para tanto, principalmente porque depende do livre
exercício da cidadania e da aptidão dos diversos atores políticos e sociais para estabelecer
consensos a respeito de objetivos ou interesses comuns138. Aguiar (1986, p. 18), ao abordar a
interferência de grupos históricos hegemônicos na formulação do ordenamento jurídico
brasileiro, assinala que:
[...] não existe apenas o direito estatal, mas sim uma pluralidade de ordenamentos jurídicos concomitantes que se tornam direito estatal ou não, dependendo da correlação de forças de uma dada sociedade. Para clarear um pouco mais, podemos dizer que existe um ordenamento jurídico estatal hegemônico, um direito oficial que vive em contradição com anti-direitos (estes sim, direitos) daqueles que sofrem a opressão e a anatematização das leis oriundas ou permitidas pelo Estado.
Por fim, e no que objetivamente interessa ao presente trabalho, cumpre
registrar que embora a Constituição de 1988 coloque as Forças Armadas sob a autoridade
suprema do Presidente da República e submetidas aos poderes constitucionais, a criação do
Ministério da Defesa significou relevante passo na consolidação da democracia brasileira,
principalmente no que tange à transferência do poder militar ao poder civil mediante a
subordinação das Forças Armadas a um órgão civil dirigido por autoridade política também
civil. Muito ainda há para ser trilhado, notadamente na formulação da política de defesa, cujo
enfoque há de considerar a nova realidade plural e interdisciplinar de interesse da sociedade
brasileira. É o que será discutido a seguir, a par dos temas tratados até então.
138 Essa reflexão se amplia com a leitura de Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada, de
Boaventura de Sousa Santos (in Introdução crítica do direito – Série o direito achado na rua, v. 1, 4ª ed., p. 42-47. Org. José Geraldo de Sousa Júnior. Brasília: Universidade de Brasília, 1993).
119
2.1.2 Ruptura com o senso comum
O que inquieta nas reflexões sobre a defesa nacional? Para melhor
compreender o significado dessa expressão, é preciso distanciá-la, com cautela, do senso
comum. O objeto de exame deve ser visto em sua completude, ponderando-o com suas
variáveis num contexto maior, além do campo no qual, inadvertidamente ou não, está
inserido. A noção predominante de defesa reside na idéia de proteção do território ou do
patrimônio nacional contra ameaças externas, efetivas ou potenciais, preponderantemente
militares. Vale lembrar que esse entendimento consta do primeiro documento normativo
formalmente editado pelo governo federal a respeito da matéria, o Decreto no 5.484, de 30 de
junho de 2005, que instituiu a Política de Defesa Nacional.
No caso de defesa contra ameaças militares externas (efetivas ou potenciais)
há de se empregar as Forças Armadas na qualidade de instituições nacionais permanentes e
regulares destinadas à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa
destes, da lei e da ordem (temas debatidos no capítulo anterior), nos termos do caput do art.
142 da Carta Política vigente, observadas, por sua vez, as prescrições contidas na Lei
Complementar no 97, de 9 de junho de 1999, com as alterações introduzidas pela Lei
Complementar no 117, de 2 de setembro de 2004139, e, ainda, os mecanismos constitucionais
que asseguram, conforme cada caso, a participação heterogênea do Conselho da República140
e do Conselho de Defesa Nacional141, cujo acompanhamento e fiscalização cabem à Mesa do
Congresso Nacional, com o concurso dos líderes dos partidos políticos142. Todavia, não
parece razoável que tema de crucial relevância e repercussão compreenda visão estreita. A
defesa não interessa somente a uma parcela da sociedade, à representação política ou ao poder
139 Dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas, estabelecendo
suas atribuições subsidiárias, as quais vão além da defesa contra ameaças externas militares, efetivas ou potenciais.
140 Cf. arts. 89 e 90 da Constituição Federal de 1988. 141 Cf. art. 91 da Constituição Federal de 1988. 142 Cf. arts. 140 e 141, parágrafo único da Constituição Federal de 1988.
120
econômico. Também não pode servir como instrumento de manutenção de determinado
estado de coisas que reflita o interesse de grupos em detrimento do coletivo. Nesse sentido,
vai além do bélico para evitar que o confronto – armado ou não – se estabeleça: deve se
antecipar para diminuir as vulnerabilidades do país. É, na essência, medida dissuasória.
Na defesa se entrelaçam redes de conflitos inerentes às relações das pessoas
e das nações. São questões de ordem política, cultural, econômica, tecnológica, ambiental,
jurídica e ética, numa superficial tentativa de delimitar o caráter multidisciplinar do tema.
Como, então, conceber uma visão limitada de defesa? É preciso transpor o senso comum e
incentivar a participação da população na formação de um consenso que possa abstrair os
mesquinhos conflitos de interesses para, ao final, despertar na sociedade o sentimento de que
sem a cooperação social o país se torna cada vez mais vulnerável, interna e externamente. O
ponto nodal: o que se defende? O Estado, a soberania? O território é porção de faixa de terra
em dada parte do globo, onde as pessoas se fixaram, formaram sociedades e deram ensejo à
construção de nações. Tem-se a figura do Estado e sua natureza soberana. Trata-se de uma
configuração, de uma conformação jurídica. E não há oposição entre o individualismo e o
nacionalismo, pois prevalece a percepção de que a nação está historicamente vinculada ao
indivíduo como valor, na perspectiva antropológica da ideologia moderna feita por Dumont
(1985, p. 21):
Vejamos um exemplo para se apreciar a diferença entre o discurso ordinário e o discurso sociológico de que estamos tratando. Alguém opõe ao individualismo o nacionalismo, sem explicação: sem dúvida, é preciso entender que o nacionalismo corresponde a um sentimento de grupo que se opõe ao sentimento “individualista”. Na realidade, a nação, no sentido preciso e moderno do termo, e o nacionalismo – distinto do simples patriotismo – estão historicamente vinculados ao indivíduo como valor. A nação é precisamente o tipo de sociedade global que correspondente ao reino do individualismo como valor. Não só ela o acompanha historicamente, mas a interdependência entre ambos impõe-se, de sorte que se pode dizer que a nação é a sociedade global composta por pessoas que se consideram indivíduos (HH, ap. D, p. 379). É uma série de ligações desse gênero que nos autoriza a designar pela palavra “individualismo” a configuração ideológica moderna. [...]
121
A designação de ideologia é atribuída por Dumont (1985, p. 20) “a um
sistema de idéias e valores que tem curso num dado meio social. Chamo ideologia moderna
ao sistema de idéias e valores característico das sociedades modernas”. Basta, pois, um olhar
crítico para perceber que a sociedade, em suas teias de tensões e conflitos, requer soluções
que satisfaçam as expectativas de diferentes grupos. Como atender aos anseios sem a
concepção de que seja justo para todos, eqüitativamente? A chave está no consenso e na
construção de princípios de justiça, a partir de diálogos em que os diferentes possam ouvir, ser
ouvidos e ter – pelo menos em parte – suas demandas atendidas. É preciso ter uma visão geral
que, sem prejuízo do conhecimento amplo do objeto observado, afaste a arbitrariedade na
determinação do melhor ou do mais apropriado, evitando-se, assim, uma equivocada
interpretação a respeito do justo e dos valores envolvidos.
A pergunta principal: o que se defende? Se a pretensão não consiste apenas
em preservar um estado de coisas clivado pelos instrumentos de imposição e manutenção de
poder mas, ao contrário, construir um fim maior que possa contemplar o consenso de diversos
interesses, ganha sustentação a idéia de que a noção de defesa precisa transpor a proteção do
território ou do país propriamente dito. É preciso buscar um ponto de (des)equilíbrio que
compreenda os diversos interesses e condições sócio-culturais que identificam o país. Diante
desse quadro está a seguinte questão: as ameaças externas, efetivas ou potenciais, seriam
somente de natureza militar? De certo que não. Ataques militares são, em tese, o último e
mais remoto recurso a ser escolhido pelos países (CLAUSEWITZ, 2005, p. 294 e 299). A
partir dessa constatação, o método para compreender a defesa requer a abordagem do tema em
duas vertentes sem, contudo, separá-las ou estigmatizá-las em razão da complementaridade de
seus fundamentos. A primeira vertente é de natureza militar contra ameaças externas bélicas,
efetivas ou potenciais. A segunda diz respeito ao tecido social interno, com suas tensões e
122
conflitos em face dos quais o direito positivado, por si só, já não tem forças para solucionar
todas as controvérsias ou compor todos os consensos.
De certo que não se pode descuidar do aparato militar, em razão de seu
caráter estratégico, sob vários aspectos, principalmente o desenvolvimento de tecnologias que
possam, inclusive, ser aproveitadas pela sociedade. Contudo, não compreender o tecido social
e, por conseguinte, falhar nas políticas públicas sociais implica enfraquecer o país, cujos
efeitos são inexoravelmente sentidos na defesa. Cumpre esclarecer que não se trata de colocar
em oposição sociedade civil e instituições militares. Essa separação é nociva, como qualquer
outra forma de discriminação. Também não se cogita escolher um em detrimento do outro na
repartição do orçamento público. Essa fórmula está ultrapassada. É preciso que os
mecanismos de proteção militar e social encontrem pontos de convergência e de equilíbrio,
pois, infelizmente, no estágio atual da humanidade (que se reflete no seio da sociedade
brasileira), a força, a violência e a opressão ainda são instrumentos de imposição e
manutenção de poder.
Portanto, é preciso buscar a compreensão de como a defesa se desdobra e
como essa operação poderá ser aperfeiçoada. Contudo, em face da história recente do país,
marcada por anos de regime de exceção, o tema não desperta muita atenção, conforme já
mencionado. Paira um incômodo silêncio do qual decorre a sensação de que a defesa, a um só
tempo, é espúria ou restrita ao campo militar. Ocorre que não é. Na linha do pensamento de
Santos (1989, p. 32), a superação do senso comum pode ajudar nessa tarefa:
O senso comum é um 'conhecimento' evidente que pensa o que existe tal como existe e cuja função é a de reconciliar a todo custo a consciência comum consigo mesma. É, pois, um pensamento necessariamente conservador e fixista. A ciência, para se constituir, tem de romper com essas evidências e com o “código de leitura” do real que elas constituem; tem, nas palavras de Sedas Nunes, “de inventar um novo ‘código’ –, o que significa que, recusando e contestando o mundo dos ‘objetos’ do senso comum (ou da ideologia), tem de constituir um novo ‘universo conceptual’, ou seja: todo um corpo de novos ‘objetos’ e de novas relações entre ‘objetos’, todo um sistema de novos conceitos e de relações entre conceitos” (1972:30).
123
Outra pergunta: além das ameaças externas, há ameaças no campo interno?
Nos dias atuais, marcados pela velocidade e pela tecnologia, pela comunicação eletrônica e
pela extraterritorialidade das relações, é difícil distinguir a origem e a gradação das ameaças.
Indivíduos e Estados estão sujeitos e são movidos pelos mais variados conflitos de interesses,
dentre os quais os econômicos, os políticos e os sociais, inerentes ao jogo de conquista,
manutenção e retomada de poder. Intrínsecos a esses exemplos estão a criminalidade, a
violência, a miséria, a pobreza, a discriminação, o desemprego. Desse modo, já é ultrapassada
a concepção de uma política de defesa que considera e identifica simplesmente um inimigo
interno ou externo contrário aos interesses e às instituições nacionais. Andou bem o Poder
Executivo na redação que deu ao Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005, ampliando os
campos de preocupação estratégica no contexto global.
O caminhar da consolidação da democracia brasileira deve centrar os
esforços no fortalecimento da sociedade vista como um todo, oferecendo-lhe condições
cognitivas de decidir os seus destinos sem a indevida atuação de grupos hegemônicos que se
julguem portadores das melhores soluções. Nesse sentido, sob o pressuposto de que a defesa
nacional não se limita à área militar, em face de seu caráter transdisciplinar, essa ruptura
conceitual exige a formação de um consenso amplo a respeito dos princípios de justiça que
nortearão o desenho e a consecução de políticas públicas afetas à defesa, sob o enfoque do
estado democrático de direito.
2.1.3 Consenso e cooperação: desafio além do programático
Não se trata de planificar o tecido social ou da pueril idéia de extinguir ou
harmonizar conflitos de interesses e de pôr fim às classes sociais, mas sim oferecer condições
mínimas para que cada pessoa possa reunir condições cognitivas para escolher o caminho que
deseja seguir. É nesse ponto que se encontra a ponte entre a política de defesa, as políticas
124
públicas e o estado democrático de direito, já que o Brasil adotou como princípios
fundamentais a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político143. Ligados a esses princípios estão os
objetivos fundamentais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, de garantia do
desenvolvimento nacional, de erradicação da pobreza e da marginalização, de redução144 das
desigualdades sociais e regionais, da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação145.
Por certo que o exercício dos princípios e objetivos fundamentais ora
mencionados deve guardar harmonia com aqueles com base nos quais o Brasil se projeta
internacionalmente, os quais não podem ser abandonados no vácuo da utopia. Ao contrário:
devem ser trazidos à realidade, experimentados e aperfeiçoados. Para tanto, é preciso vontade
política e, decisivamente, o despertar, o querer das pessoas. Embora na democracia brasileira
o poder político do povo é comumente exercido sob a forma da representação parlamentar, a
Carta de 1988 não proíbe que a população expresse livremente sua vontade e exija de seus
governantes e de seus representantes eleitos o cumprimento de promessas e de projetos de
interesse coletivo. Não obstante esses argumentos, a ruptura com o senso comum alinhavada
no tópico anterior não mitiga o valor empírico da defesa, posto que é dessa troca valorativa de
conceitos que se torna possível aperfeiçoar o entendimento a respeito de tão relevante tema.
Dessa feita, retoma-se o problema com conhecimento suficiente para compreendê-lo em sua
dimensão, conjugando-o com a gama de variáveis que lhe são correlacionadas.
Como visto, o tema precisa ser situado nos diversos campos da sociedade e
não apenas no militar. Convém enfatizar que não se trata de excluir ou diminuir a importância
143 Cf. art. 1o, I a V da Constituição Federal de 1988. 144 Deve-se interpretar essa redação valorativamente no sentido de um esforço cooperativo ao final do qual serão
eliminadas as desigualdades de acesso às oportunidades de usufruir, em condições de igualdade, as riquezas produzidas pelo país.
145 Cf. art. 3o da Constituição Federal de 1988.
125
das Forças Armadas nas questões e estratégias afetas à defesa, mas sim do concurso e da
cooperação de todos os atores do tecido social, além da atuação das instituições militares no
contexto constitucional da democracia brasileira, considerando o exercício das atribuições
subsidiárias indispensáveis ao desenvolvimento nacional146.
A partir dessas premissas, é possível tecer breves comentários a respeito de
determinados pontos do texto da política de defesa nacional que guardam sintonia com essas
percepções. Em sua parte introdutória, embora o texto da política indique as ameaças externas
como foco principal das preocupações do país, a redação esclarece que sua consecução não
poderá prescindir da participação ou do “envolvimento” dos setores militar e civil:
A Política de Defesa Nacional voltada, preponderantemente, para ameaças externas, é o documento condicionante de mais alto nível do planejamento de defesa e tem por finalidade estabelecer objetivos e diretrizes para o preparo e o emprego da capacitação nacional, com o envolvimento dos setores militar e civil, em todas as esferas do Poder Nacional. O Ministério da Defesa coordena as ações necessárias à Defesa Nacional.
Interessa refletir a respeito das expressões “capacitação nacional” e “poder
nacional”, as quais têm significado abstrato. Então, para melhor situar a argumentação,
considere-se por capacitação nacional o conjunto de riquezas e habilidades humanas
pertencentes aos bens jurídicos de todos os atores que compõem o tecido social; por poder
nacional, o conjunto de entes que exercem com legitimidade a representação dos atores
públicos e privados, observado que uma nação não se resume apenas aos órgãos
governamentais, aos políticos, à elite social, política ou dirigente e ao mercado econômico.
Estabelecidos esses parâmetros, constata-se que a política de defesa está diante de uma rede
de interesses e de tendências, cujos objetivos raramente convergem para os mesmos fins, de
maneira sincronizada ou integrada.
146 A cooperação com o desenvolvimento nacional consta do caput do art. 16 da Lei Complementar no 97, de 9
de junho de 1999. As atribuições subsidiárias foram previstas nos artigos 17 a 19, na redação dada pela Lei Complementar no 117, de 2 de setembro de 2004.
126
Dessa maneira, o condicionamento desses atores ao preparo e ao emprego
da “capacitação nacional” em prol da defesa tende a ser frágil, com efeitos na legitimidade
para a condução das ações na medida em que as regras do estado democrático de direito não
autorizam que o poder público interfira indevidamente nos bens jurídicos situados nas esferas
privada e coletiva, os quais se encontram constitucionalmente protegidos uma vez que são
garantidores do livre agir das pessoas e das instituições. Apenas situações excepcionais147
poderiam mitigar esse preceito sem, contudo, desprezar as regras de direito e os mecanismos
de controle e fiscalização que não podem ser esquecidos ou violados148.
Embora se admita que o caráter compulsório da mobilização para a
capacitação nacional está condicionado à efetiva ameaça externa de natureza
preponderantemente bélica, a coercitividade da medida, mesmo nessa hipótese, enfrentará
sérios questionamentos pois, ainda que factível, estará sujeita, no âmbito interno, a regras
específicas de contornos constitucionais, observando-se, também, os princípios que regem a
atuação do Brasil no plano internacional. Dessa forma, não seria desarrazoado dizer que o
envolvimento da sociedade ou da capacitação nacional em prol do poder nacional requer
muito mais do que instrumentos coercitivos do Estado. Essa mobilização não prescinde do
consenso baseado em princípios de justiça, a partir do qual será construída a cooperação
destinada a diminuir as vulnerabilidades do país, interna e externamente.
Não bastassem as dificuldades terminológicas e de legitimidade para
implementar medidas coercitivas ou compulsórias, o texto do Decreto no 5.484, de 30 de
147 Os procedimentos constitucionais que tratam do estado de defesa e do estado de sítio constam do art. 136 e,
especialmente, do art. 137, II da Constituição Federal de 1988. 148 Dentre os instrumentos constitucionais de fiscalização e controle das medidas afetas ao estado de defesa e ao
estado de sítio estão o funcionamento do Conselho da República e do Conselho de Defesa Nacional, além das atribuições da Mesa do Congresso Nacional e das lideranças dos partidos políticos para o acompanhamento e a fiscalização, nos termos do disposto nos artigos 89, 91 e 140-141, parágrafo único da Constituição Federal de 1988.
127
junho de 2005, atribuiu ao Ministério da Defesa149 a coordenação das ações necessárias à
consecução da política de defesa. Sabe-se que esse relevante e recém-criado ente da
Administração Pública Federal atua em linha com os demais órgãos públicos da União, ou
seja, não possui ascendência sobre outros que direta ou indiretamente formulam e executam
políticas públicas correlacionadas com o escopo da defesa como, por exemplo, segurança
pública, indústria e comércio exterior, ciência e tecnologia, ambiente e educação. Essa
circunstância poderá acarretar profundas dificuldades à plena consecução da política de
defesa, tendo em vista que seu escopo depende de políticas públicas estratégias que exigem
planejamento integrado e força política para a implementação e execução, não obstante o
Presidente da República ter consignado, no texto do ato normativo, que os órgãos e entidades
do Poder Executivo Federal devam “considerar, em seus planejamentos, ações que concorram
para fortalecer a Defesa Nacional”150.
Ocorre que os fundamentos da política de defesa se estendem a toda a
federação brasileira, fato que demonstra – uma vez mais – a interdisciplinaridade da matéria,
que transcende o campo militar e, por essa razão, exige o concurso de uma variada gama de
atores, sob a direção de uma instituição política que represente todo o complexo tecido social,
não podendo se sujeitar a instabilidades decorrentes da mudança de governos e a
contingenciamentos orçamentários e financeiros, tendo em vista sua singular natureza
continuada.
Visto que a defesa não se preocupa apenas com as ameaças bélicas e que os
princípios constitucionais adotados na Carta Política de 1988 sinalizam a opção pacífica do
Brasil no campo das relações internacionais, ganha robustez o argumento segundo o qual a
cooperação (mobilização) dos atores sociais para a defesa requer a construção de um
149 A inserção constitucional do Ministério da Defesa se deu a partir da Emenda Constitucional no 23, de 2 de
setembro de 1999. Antes, porém, foi tratado na Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999. 150 De acordo com o disposto no art. 2o do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.
128
consenso. Já não é suficiente a conscientização dos segmentos da sociedade a respeito da
importância da defesa. É preciso compreender, compor e aceitar seus fundamentos.
Não há lugar para impor dever sem que se tenha o sentido de unidade
construído a partir do consenso pela cooperação. Pode-se dizer que a contrapartida está na
possibilidade de conhecer e participar na qualidade de formulador. Principalmente em tempos
de paz, o consenso do qual decorrerá a cooperação (voluntária) não surgirá sob a simples
forma de um dever, mas como uma atitude decorrente da aceitação de princípios que orientem
as condutas de todos, a compreender as pessoas, as instituições e o Estado. É sabido que os
conflitos de interesses estão em movimento na sociedade e que decorrem da formação de
grupos voltados a um ou mais objetivos raramente convergentes ou integrados ao mesmo fim.
Logo, a defesa na democracia não pode escapar da seguinte reflexão: como compatibilizar
vários interesses? Pensar a política de defesa sob o fundamento de princípios de justiça que
conduzam o Brasil a efetivamente praticar a cooperação é perfeitamente compatível com os
valores e a realidade brasileira. Entretanto, é preciso vontade política e desprendimento dos
projetos pessoais de poder. Uma política de defesa distante da construção de consenso voltado
à cooperação pode levar apenas a intenções dificilmente realizáveis e situadas no simbolismo
programático.
Importa ponderar o seguinte: será possível preservar bens jurídicos coletivos
sem a formação de consensos? Não em sua plenitude. A questão ganha maior complexidade
quando se verifica que a política de defesa tem, dentre seus objetivos, a contribuição para a
preservação da coesão e da unidade nacionais, conceitos de espectro igualmente amplos,
assim como “capacitação nacional” e “poder nacional”, a partir dos quais a construção de um
consenso para a cooperação se revela imprescindível, sob pena de o escopo da defesa não
ultrapassar a barreira programática, se inclinar para a subjetividade ou – pior – atender a
interesses de grupos que não representam, na integralidade, o povo brasileiro. Essas breves
129
ponderações a respeito de alguns aspectos da política de defesa são suficientes para sustentar
o argumento segundo o qual é necessário estabelecer um consenso de caráter cooperativo.
Abstraídos os aspectos de ordem cultural, com bom senso e sensibilidade é
possível utilizar as contribuições de Rawls (2002) quanto à formação de uma estrutura básica
da sociedade como alternativa para a discussão da idéia de justiça, construindo-se o consenso
almejado. Nesse sentido, é necessário tratar o justo ou mesmo o direito não apenas como uma
circunstância que se alimenta exclusivamente da controvérsia, da disputa, da contraposição de
interesses. O justo e o direito podem ser vistos a partir de argumentos compreensivos e
agregadores a partir dos quais os homens venham a reconhecer as razões e as diferenças de
seus semelhantes e, por conseguinte, encontrar um ponto de equilíbrio (ou desequilíbrio)
capaz de proporcionar o bem da vida (material ou imaterial) sem, contudo, promover um mal
necessário, como a violência legalizada151.
A atividade de defesa requer o atendimento das necessidades de ordem
militar, dentre as quais o desenvolvimento de estratégias compatíveis com os interesses da
sociedade brasileira e os princípios constitucionais que regem a atuação internacional do
Brasil, além da aquisição de tecnologias que correspondam às necessidades geopolíticas, dos
recursos que possibilitem o exercício das competências e atribuições das Forças Armadas
num sistema integrado que conduza à melhor utilização dos meios. A defesa não pode dividir
o país em campos militar e civil. É preciso convergir observando os contornos jurídicos da
atuação militar sem, contudo, desvirtuar sua limitação constitucional condicionada às
151 Luis Eduardo de L. Abreu tem um ponto de vista muito interessante: “Rawls só fará sentido para nós se
reconhecermos nossas diferenças. Mas vejo agora que isso não basta. Rawls nos coloca diante do seguinte dilema que, num certo sentido, resume o projeto do equilíbrio reflexivo enquanto um exercício de filosofia crítica: isso é bom? Acreditamos sinceramente que essa é a boa maneira de sermos enquanto coletividade? Por certo, em toda a nossa ideologia política, há coisas com as quais não concordamos, outras que acreditamos importantes, talvez mesmo constitutivas da nossa tradição – aquilo que nos define como identidade coletiva e que legitimamente queremos manter. Se, como Rawls propõe, ajustar as nossas convicções a princípios pode modificar a nossa maneira de agir no mundo, não sei dizer. Mas talvez não tenhamos alternativa senão defender essa possibilidade” (Qual o sentido de Rawls para nós? In Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal-Secretaria Especial de Editoração e Publicações-Subsecretaria de Edições Técnicas, n. 172, outubro-dezembro 2006, p. 149-168).
130
instituições democráticas e ao poder político civil. O desafio maior da política de defesa é
superar o programático das políticas públicas que lhe dão sustentação e convencer a sociedade
do caráter transdisciplinar de seus fundamentos. O Ministério da Defesa tem dado importantes
passos nessa complexa tarefa152.
De todo o modo, não se pode deixar de considerar que a defesa nacional é
de conteúdo jurídico e não se submete apenas ao direito positivado, mas também a valores
metajurídicos. Na forma como tratada no presente trabalho a defesa se aproxima da noção de
alteridade153, pois uma política dessa magnitude deve considerar o outro, o diferente, no
território nacional ou no estrangeiro, Estado ou nação. Provavelmente a defesa, tomada como
é pela maioria das nações, decorra dessa odiosa falha de não reconhecer o outro como
diferente, de não partilhar pelo simples ato de humanitariamente partilhar, de temer que a
prosperidade será diminuída ou arrancada à força, de interferir para manter, de manter para
impedir a prosperidade do outro.
Dessa feita, é preciso refletir a respeito do exercício do poder político, da
melhor face do significado da representatividade política, da mais adequada e imparcial
escolha, da ponderação dos argumentos do jogo do poder, da lealdade na confrontação das
forças políticas e do sentimento de que o Estado é uma construção formada por pessoas que
podem – e devem – agir conjunta ou separadamente para o bem. É possível, sim, mudar o
atual estado de coisas. Como fazer? Um caminho: ponderar o conteúdo valorativo dos
postulados legais que orientam o caminhar do país e da percepção do que é justo.
Compreender a política de defesa pode ser uma boa alternativa para
aperfeiçoar a consolidação da democracia brasileira sem os vícios do passado e na busca por
um consenso razoável que proporcione condições favoráveis para que a sociedade brasileira – 152 Convém destacar, entre outras ações, os debates que deram ensejo à coletânea Pensamento brasileiro sobre
defesa e segurança. Disponível em <www.defesa.gov.br>. 153 Sugere-se a leitura do artigo Alteridade e rede no direito, de Roberto A. R. de Aguiar (in Revista Jurídica da
Casa Civil da Presidência da República, Brasília, v. 8, n. 82, p. 9-32, dez./jan., 2007).
131
e não somente o Estado como representação do poder – estabeleça os critérios de justiça com
base nos quais sejam dadas iguais oportunidades de escolha, demonstrando, destarte, a
importância de fortalecer o tecido social, cujos efeitos serão sentidos no campo externo,
tornando o país menos vulnerável e funcionando, inclusive, como fator de dissuasão. A defesa
começa pelo reconhecimento das desigualdades excludentes internas e pela construção da
cooperação desinteressada decorrente de um consenso sobre o justo para que políticas
públicas possam efetivamente surtir o efeito político esperado: oportunidades de prosperidade
para todos, tomando por base os conceitos de segurança e defesa elaborados por especialistas
da ONU e incorporados ao texto do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.
2.2 Defesa e segurança na política brasileira
No percurso da consolidação democrática transitam e estão entrelaçadas as
percepções de defesa e segurança. A complexidade desses temas se amplia quando
comparados os conceitos154 contidos na política de defesa nacional alinhados com os
princípios estabelecidos pela ONU, assinalando que o conceito de segurança foi ampliado ao
longo do tempo, passando da simples idéia de confrontação entre países, de natureza de
proteção contra ataques externos, a abranger, entre outros, os campos político, militar,
econômico, social e ambiental. Nessa linha, a compreensão de segurança possibilitou a
inclusão de questões e problemas que dizem respeito à defesa civil, à ordem pública e às
políticas econômicas, educacionais, ambientais e de saúde. Ao distinguir segurança de defesa
o Poder Executivo Federal assinalou que a primeira “é a condição em que o Estado, a
sociedade ou os indivíduos não se sentem expostos a riscos ou ameaças, enquanto que defesa
é ação efetiva para se obter ou manter o grau de segurança desejado”155. O Decreto no 5.484,
de 30 de junho de 2005, ainda menciona a conclusão a que chegaram os especialistas
154 Incorporados no item 1.4 do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005. 155 Cf. item 1.3 do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.
132
convocados pela ONU que, reunidos em Tashkent, em 1990, definiram segurança como “uma
condição pela qual os Estados consideram que não existe perigo de uma agressão militar,
pressões políticas ou coerção econômica, de maneira que podem dedicar-se livremente a seu
próprio desenvolvimento e progresso”156.
Da leitura desses conceitos, depreende-se que segurança e defesa devem ser
considerados como instrumentos indissociáveis na formulação de políticas e na aplicação do
direito. Pode-se até admitir que seus atores figurem em cenários diferentes, desde que
reconhecida sua interdependência. Em tese, a segurança consiste numa dada condição sob o
fundamento da qual o país estaria protegido política e institucionalmente e, portanto,
legitimado a promover, livremente, seu desenvolvimento e progresso. Por outro lado, a defesa
tem a característica de concretizar medidas e ações do Estado destinadas a combater ou a
prevenir a ocorrência de ameaças predominantemente externas, de natureza militar ou não.
Quais as razões que fundamentam essa conceituação? O quadro abaixo, elaborado com base
no texto do ato normativo, auxilia a compreender a terminologia adotada:
Segurança Defesa
preservação da soberania
defesa da soberania
preservação da integridade territorial
defesa do território
realização de interesses nacionais
defesa dos interesses nacionais contra ameaças preponderantemente externas,
potenciais ou manifestas
garantia aos cidadãos do exercício dos
direitos e deveres constitucionais
156 Cf. item 1.3 do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.
133
Oportuno observar as semelhanças existentes entre os bens jurídicos
protegidos nos conceitos de segurança e defesa. A idéia de soberania surgiu no século XVI
como fundamento do Estado absolutista, contrapondo-se aos demais poderes existentes, ditos
intermediários, então exercidos por senhores feudais. Na concepção moderna, a soberania
constitui a essência do próprio Estado que se origina soberano e, em tese, independente.
Conforme abordado no capítulo inaugural, o valor da soberania é destacado e está presente
nos conceitos de segurança e defesa, a significar o “poder de mando de última instância numa
sociedade politicamente organizada”, traduzindo-se, internamente, na supremacia do Estado
sobre os demais entes e organizações; externamente, representa a independência frente aos
demais (CARVALHO, 2002, p. 243).
Na linha do que estabelece o Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005,
enquanto a segurança visa a preservar a soberania, a defesa nacional se preocupa com a defesa
desse mesmo instituto. A legitimidade da segurança e da defesa depende da soberania. Sob o
pressuposto de que o Brasil é um país soberano, as políticas públicas e o direito buscam a
preservação dessa situação jurídica. Portanto, a defesa da soberania restará inevitavelmente
prejudicada se forem poucos ou insuficientes os instrumentos que assegurem a segurança
interna. A propósito, a idéia de Estado soberano se situa no plano da personalidade jurídica
internacional que, no direito das gentes, é de natureza originária. “O Estado, com efeito, não
tem apenas precedência histórica: ele é antes de tudo uma realidade física, um espaço
territorial sobre o qual vive uma comunidade de seres humanos” (REZEK, 1991, p. 157).
Outros dois bens jurídicos presentes nos conceitos de segurança e defesa
dizem respeito ao território e aos interesses nacionais. A noção de território está intimamente
ligada à concepção de Estado soberano. Preservar a integridade territorial (segurança) e
defender o território nacional (defesa nacional) são atribuições que diferem em apenas um
ponto: a ameaça externa, potencial ou manifesta, situada no campo da defesa. Esclareça-se
134
que a ameaça externa não precisa ser de natureza bélica ou militar. Tampouco a contra-
ofensiva a essa ameaça ou efetiva agressão deve adquirir a forma exclusiva de medidas ou
ações militares. No que tange aos interesses nacionais, enquanto a segurança busca a
realização desses interesses, a defesa se preocupa com a sua preservação em face de ameaças,
“preponderantemente externas, manifestas ou potenciais”157. Aqui, outra semelhança em
relação ao bem jurídico protegido e defendido: os interesses nacionais. Mas, o que vem a ser
interesses nacionais? Por certo, dizem respeito a toda sociedade. Implicariam, por outro lado,
uma insustentável distorção caso retratassem os interesses do chefe de Estado, do partido
político dominante, dos ricos ou dos pobres. Os interesses nacionais devem corresponder aos
anseios de democracia, justiça, desenvolvimento e progresso da sociedade brasileira. Todavia,
é difícil precisar se essas impressões coletivas, desinteressadas e de natureza cooperativa estão
arraigadas no seio dos valores daqueles que influenciam e que tomam decisões vinculatórias,
ou se constam expressamente de um diploma legal, o que torna esse bem jurídico alvo de
idiossincrasias inerentes à transitoriedade do poder, admitindo-se a possibilidade de apenas
refletir o comportamento da sociedade.
Ao tratar do ambiente internacional, a política de defesa assinala,
sucintamente, que os atuais desafios externos são complexos e imprevisíveis, diferentemente
daqueles existentes na confrontação ideológica bipolar vivenciada no período da Guerra Fria,
depois da Segunda Guerra Mundial. Estando praticamente descartado o conflito generalizado
entre Estados, a denominada ordem mundial sofre a ameaça de controvérsias que, de longa
data, estão presentes na história da humanidade, embora relegadas a segundo plano: os
conflitos étnicos e religiosos, os nacionalismos doentios e a fragmentação de Estados158.
Convém tecer alguns apontamentos a respeito da guerra.
157 Cf. item 1.4, II do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005. 158 Cf. item 2.1 do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.
135
Grotius (2004, p. 72), valendo-se de Cícero, define guerra como “um debate
que se resolve pela força”, assinalando:
O uso, porém, acabou por designar por esta palavra não uma ação, mas um estado. Assim, a guerra é um estado de indivíduos, considerados como tais, que resolvem suas controvérsias pela força. Esta definição geral compreende todos os tipos de guerra [...]. Não excluo sequer a guerra privada que, sendo mais antiga que a guerra pública e tendo incontestavelmente a mesma natureza, deve ser designada, por esta razão, por este único e mesmo nome que lhe é próprio. [...] Também o uso deste termo não destoa com esta significação mais ampla. Se por vezes a denominação de guerra é unicamente reservada à guerra pública, isto não constitui um obstáculo. De fato, é coisa certa que o nome do gênero é muitas vezes afetado de maneira particular quanto à espécie, especialmente quando esta é de categoria superior. Não incluo a justiça em minha definição porque o objetivo específico desta discussão é pesquisar se há guerra que seja justa e que guerra seria justa. [...]
Por sua vez, Mello (1996, p. 118-119), ao tratar da evolução do tema na
doutrina e prática internacionais, elucida que o “direito à guerra” era tido como um atributo
dos poderosos, dentro do Estado, de maneira que essas pessoas se consideravam legitimadas a
declarar a guerra, que tinha conotação privada. No final do século XVI, porém, o conceito de
guerra foi modificado, passando o Estado à condição de titular dessa prerrogativa, como
pressuposto da soberania a ser imposta:
Atualmente, com a renúncia ao uso da força nas relações internacionais (Pacto Briand-Kellog, 1928 e a Carta da ONU) para citarmos apenas o primeiro grande texto internacional e o mais importante tratado vigente sobre esta matéria, os estados perderam o “jus ad bellum” para iniciarem uma guerra, mas o conservam quando se trata de uma guerra no exercício da legítima defesa. O monopólio do uso da força armada é atualmente da ONU e neste caso não se utiliza a palavra guerra. Tem-se usado diferentes expressões como “ação de polícia”, ou a de “operação de Paz”, sendo esta última a mais consagrada.
Dessa maneira, neste século as potenciais ameaças, segundo a política de
defesa brasileira, dizem respeito a disputas por áreas marítimas, pelo domínio aeroespacial e
por fontes de água doce e de energia, cuja escassez tende a se acentuar cada vez mais. Além
desses bens, inerentes à noção de soberania, as fronteiras também podem constituir motivo de
136
conflitos em decorrência da ocupação dos últimos espaços terrestres159. Suscita-se, por
conseguinte, que questões e interesses antagônicos decorrentes das medidas afetas à proteção
desses bens possam abrir caminho a ingerências em assuntos internos do país, circunstância
capaz de estabelecer quadros de instabilidade. Esse ponto é de extrema delicadeza porque o
Brasil não pode perder legitimidade para o trato e a tomada de decisões sobre assuntos de
natureza política, econômica, social e de uso e exploração dos recursos naturais localizados
em seu território, sob pena de diminuir suas prerrogativas de Estado soberano, em face da
atuação de outros países e organizações internacionais que venham a pleitear ou até mesmo
impor condutas ao país. Como evitar essas ingerências, cujos efeitos se estendem à segurança
e, por conseguinte, à defesa? A alternativa mais próxima da realidade reside na prática de
políticas públicas efetivamente voltadas aos interesses nacionais sem, contudo, deixar de
considerar as composições multilaterais, notadamente as de cunho regional, sob o fundamento
dos princípios que regem a concepção de comunidade latino-americana de nações160.
Do cotejo entre os principais bens jurídicos considerados nos conceitos de
segurança e defesa, o que diz respeito à garantia dos cidadãos ao exercício dos direitos e
deveres constitucionais é o único não textualmente abrangido no conceito de defesa nacional.
Entretanto, é o mais importante. Somente quando o poder público, mediante políticas públicas
eficientes e duradouras, dotar de efetividade a plena garantia ao exercício de seus direitos e
deveres constitucionais, poderá a nação se desenvolver e progredir livremente, possibilitando
a segurança desejada. Todavia, impende observar que o efetivo exercício dos deveres e
direitos constitucionais começa pelo cumprimento, por parte de todos os atores políticos e
sociais, dos objetivos fundamentais da República. Não obstante, os objetivos fundamentais
constituem condição sem a qual esses postulados não passarão de um protocolo de intenções.
Assim, a segurança – razão de ser da defesa – depende do esforço e da cooperação de todos.
159 Cf. item 2.1 do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005. 160 Cf. parágrafo único do art. 4o da Constituição Federal de 1988.
137
As políticas voltadas ao desenvolvimento e ao progresso do país são as mais
importantes ferramentas de que deve dispor o poder público para prover a segurança e, por
conseguinte, assegurar a defesa. A precariedade e a ausência de políticas direcionadas à
educação, à saúde, à moradia, ao acesso à justiça, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção
e ao uso racional dos recursos naturais são tão prejudiciais quanto as ameaças externas,
potenciais ou manifestas, bélicas ou políticas. Em termos simbólicos, é o país abrindo suas
próprias feridas, tornando-se cada vez mais frágil, vulnerável e com diminuído poder
dissuasório. Se desprovido de resolver seus problemas internos e de bem usufruir os
potenciais de seu território, abre-se margem a ingerências externas muitas vezes dissimuladas
em políticas de cooperação. Portanto, torna-se indispensável estabelecer a interdependência
entre a política de defesa e as demais políticas públicas destinadas à garantia dos direitos e
garantias fundamentais (compreendidas no conceito de segurança) com o propósito de
demonstrar que as ações e os mecanismos afetos à defesa estão condicionados à efetividade
da segurança – no sentido de bem-estar social –, e realizáveis, por conseguinte, por meio dos
postulados da democracia.
Em que pese o constituinte de 1988 tenha atribuído à União a tarefa de
assegurar a defesa nacional, a Carta Política em vigor silencia a respeito dos princípios e dos
procedimentos correspondentes, notadamente em tempos de paz e de normalidade públicas161.
Como, então, no campo político, devem ser construídas e praticadas políticas que digam
respeito, direta ou indiretamente, a esse relevante tema? Qual o papel e a legitimidade dos
atores envolvidos e como se opera a participação da sociedade? Poderá a União, ou melhor, o
Estado, prover, por si, a defesa nacional? Não. Mas, para melhor compreender essa ausência
de legitimidade, é preciso estabelecer o distanciamento do pragmatismo e do positivismo que
tendem a conduzir ao mecanicismo das respostas prontas e das propostas que optam pela via
161 Os comentários a respeito das situações extraordinárias que envolvem o estado e o estado de sítio serão
apresentados na abordagem da mobilização nacional contida no neste Capítulo.
138
oblíqua, do discurso evasivo ora visionariamente deslocado da realidade ora contaminado por
argumentos parciais de interesses corporativos. Surge desse cenário um delicado problema
político-estratégico, intrínseco às estruturas de poder e, por conseguinte, da arquitetura de
políticas públicas e de instrumentalização do direito. Esse problema é permeado por conflitos
que devem ser enfrentados e compreendidos para o fim de, no mínimo, desvelar que o pensar
a defesa requer a sensibilização a respeito das mazelas sociais brasileiras, o que constitui um
relevante instrumento de poder político para a condução de políticas públicas e, por
conseguinte, de vulnerabilidade cuja repercussão atinge diretamente os fatores dissuasórios de
relevância para a defesa e para a segurança.
Como dito, a política de defesa nacional concebida e formalizada na forma
do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005, é o primeiro ato normativo formal, de natureza
jurídica, que trata do assunto. Porém, o decreto autônomo162 é instrumento de que dispõe o
Presidente da República para orientar a condução dos órgãos que lhe são subordinados,
quanto à organização e ao funcionamento da Administração Pública, desde que não implique
aumento de despesa. Assim, via de regra, o decreto editado ao amparo do art. 84, VI, “a” da
Constituição Federal de 1988 não decorre do resultado de debates políticos, abertos a toda
sociedade, como é o caso do instrumento que serviu para aprovar a política de defesa. Por
essas razões, é pertinente ponderar que seu conteúdo está sujeito a críticas quanto à
efetividade total ou parcial de seus fundamentos, de seus efeitos práticos. Esse aspecto ganha
maior relevância na medida em que, em sua formulação, vêm à tona as seguintes
inquietações: (i) a presumida falta ou a diminuta participação do Legislativo (na qualidade de
representante da soberania popular) e de setores da sociedade (atores públicos e privados)
interessados e com responsabilidades pelo seu desenho e implementação, cujas repercussões
refletem na articulação e na coordenação das políticas públicas intrínsecas à defesa; e (ii) a
162 Não regulamenta texto de lei, ou seja, seus efeitos são limitadíssimos.
139
aprovação de uma política pública essencial sem o correspondente aporte de recursos
orçamentários e financeiros indispensáveis à confiabilidade, aceitação e continuidade das
correspondentes ações.
É, pois, nesse cenário que se enuncia o problema político-estratégico de
eficácia da política de defesa nacional, cujo tema, de extrema relevância, precisa ser elevado
nos debates da agenda política brasileira e, também, na percepção da sociedade, para o fim de
construir uma atitude de cooperação com a participação de todos, desmistificando suas
variáveis que interferem nos temas de interesse coletivo.
2.2.1 Problema político-estratégico
Primeiramente, é preciso enfatizar que a idéia de defesa parte do
pressuposto da ameaça efetiva ou potencial. Essa concepção se aplica a uma variada gama de
relações jurídicas. A ameaça, por sua vez, tem muitas facetas. Pode ser externa ou se originar
no território nacional, sem desprezar sua ocorrência simultânea. Porém, em ambas as
hipóteses têm por causa fatores políticos, econômicos e sociais, os quais resultam, por fim, na
consecução de interpretações sobre o que é ou não justo. Apesar de formados por homens, os
países não têm a prioridade de proporcionar, indistintamente, bem-estar a toda humanidade.
Das demandas por riqueza é gerado o sentimento de perda ou de conquista,
do qual decorre a necessidade de proteção que, por sua vez, move os países, os governantes e
as pessoas a defender seus próprios interesses, que se dividem e se confrontam nas disputas
por parcelas de poder e influência. Dessa feita, a defesa se manifesta nas medidas para manter
o estado de coisas que, de um lado, atende às pretensões daqueles que dominam o cenário
político e, de outro, conforma aqueles que estão sujeitos ou se deixam sugestionar por esse
jogo político, de poder. A defesa, portanto, tem origem na riqueza construída para acumular e
não para repartir, no esquecimento da parceria, no perdimento de sentimentos fraternos e no
140
uso legalizado da força para proteger, dominar, conquistar, influenciar e agir com violência
(EISLER, 1989, p. 74-92 e 173).
Nos contornos do presente trabalho a melhor compreensão do tema passa
pela leitura de algumas das manifestações que antecederam a edição do texto da política de
defesa nacional. Para tanto, as reflexões que a seguir serão postas levarão em conta parte do
conteúdo dos seminários “Política de Defesa Nacional para o Século XXI” e “Política Externa
do Brasil para o Século XXI”, realizados em agosto de 2002 pela Comissão de Relações
Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados. A propósito, é cabível considerar
esses encontros como o esforço inicial de conscientização e de convencimento, embora com
efeitos limitados. Mas, é bom deixar claro que a participação do Legislativo naqueles eventos
não se deu sob a efetiva forma de representação da soberania popular, ou seja, a plenitude da
legitimidade política formal de que se reveste o processo legislativo163 na elaboração de leis e,
com efeito, na formalização de medidas vinculatórias.
Segundo Quintão (2002, p. 21), o cenário de segurança e defesa mundiais
sofreu significativa mudança em decorrência dos atentados terroristas contra os Estados
Unidos, em especial os episódios de 11 de setembro de 2001. Nesse sentido, o combate ao
terrorismo foi elevado na prioridade da política norte-americana com reflexos nos demais
países, sustentando, assim, que a visão de defesa e segurança recebeu conotação muito mais
hobbesiana, sobrepondo-se aos ideais kantianos de um estado de paz permanente. De fato,
depois dos atentados de 2001 aumentou o sentimento de desconfiança dos EUA contra boa
parte da comunidade internacional, no exterior e em seu próprio território. Mas, como sabido,
esse clima de suspeição está associado a outro aspecto: a repugnância contra a política norte-
americana. Instados por essas circunstâncias, países foram obrigados a adaptar suas políticas
às medidas de prevenção e coerção instauradas e, por conseguinte, reforçar suas posições
163 No rito dos artigos 59 a 69 da Constituição Federal de 1988.
141
estratégicas com o propósito de, ao mesmo tempo, garantir proteção em face das medidas
norte-americanas, de seus aliados e dos terroristas, na tentativa de demonstrar que não estão
alinhados com atitudes contrárias aos valores daquele país ou com as práticas do terror e que,
por razões de soberania, também são capazes de evitar ataques daquela natureza. Ademais,
corre pela via oblíqua o receio de que a dominação americana se amplie pelo uso da força.
A propósito, Mead (2006, p. 33-34) demonstra que o poder dos EUA vai
além do uso ou da demonstração da força militar, argumentando que a configuração do poder
norte-americano se estrutura a partir da coerção (militar e econômica) e da não-coerção
(cultural), desvelando que o primeiro interessa à “ordem mundial americana”, pois “preserva
o sistema, porque influencia os outros países a gostarem da administração norte-americana e
apoiá-la por livre-arbítrio”. O poder militar é “vigoroso”, enquanto o econômico é “pegajoso”
porque “seduz tanto quanto coage”. O autor ainda distingue o poder não-coercitivo em
“encantador” e “hegemônico”, este mais coercivo do que as idéias na medida em que “se
origina, principalmente, da interação entre o poder vigoroso, o pegajoso e o encantador,
formando, ao final, “a ordem mais artificial e arbitrária desde a Segunda Guerra Mundial –
algo como uma estrutura natural, desejável, inevitável e permanente”.
A respeito da mudança de postura no cenário de segurança e defesa, é
valioso o apontamento feito por Fernandes (2002, p. 77-79):
Para captar a profundidade da mudança atualmente em curso na política mundial, é necessário recuar um pouco no tempo e acompanhar a evolução da agenda externa do governo norte-americano após o colapso do antigo campo socialista. O triunfalismo de Washington se traduziu, na época, na proposição de uma “Nova Ordem Mundial” para substituir a velha ordem bipolar da Guerra Fria. Este conceito foi incorporado como eixo estruturador da política externa norte-americana pelo Presidente George Bush (pai) às vésperas da Guerra do Golfo, em 1990. A proposição básica era de que os variados fóruns multilaterais do sistema da ONU deveriam se tornar o núcleo ordenador de uma nova ordem mais estável no mundo, superando as tensões e antagonismos que haviam marcado a Guerra Fria.
142
[...] Os atentados de 11 de setembro forneceram o pretexto para o atual Presidente George W. Bush elevar a um novo patamar esta “opção preferencial” pelo unilateralismo e pelo recurso a uma política de força e coação abertas. Instrumentalizando um clima de histeria e pânico que se formou na sociedade americana após os atentados – fruto de sua repentina e traumática constatação de que a ampla superioridade tecnológica e militar não era garantia de invulnerabilidade o novo governo Bush consagrou a busca da “segurança” (com todas as suas implicações) como o valor/objetivo supremo da política doméstica e externa do Estado norte-americano. Isto implicou conferir nova centralidade para os mecanismos e instrumentos do exercício direto da sua dominação pela força no sistema internacional, em detrimento da opção predominante anterior pelo exercício da sua hegemonia via recursos “indiretos” de poder estrutural.
A análise desses apontamentos revela que a superioridade tecnológica e
militar dos EUA não é suficiente para proporcionar defesa e segurança a um dado país ou
nação e, tampouco, à humanidade. É preciso fortalecer e cultivar a paz, mediante o
reconhecimento das diferenças e da diversidade dos aspectos ideológicos e culturais que
identificam e distinguem os povos. Lamentavelmente o etnocídio ainda é muito comum,
embora revestido de outra roupagem. Políticas públicas sérias constituem uma alternativa
eficaz para esclarecer a sociedade dos limites de atuação global na busca do consenso e da
cooperação, na tentativa de conciliar e minimamente equilibrar os interesses nacionais e
internacionais com os mecanismos de proteção de que é merecedora toda a humanidade – e
não apenas um país ou grupo de países, de corporações ou de indivíduos, estejam do lado
ocidental ou oriental do planeta. Mas, quem faz essas escolhas e a partir de quais
pressupostos, de quais princípios? A democracia levada a sério ainda representa o melhor
caminho.
Esclareça-se, por oportuno, que não é objetivo do presente trabalho
fomentar sentimentos contrários ao governo ou à população dos EUA. Ocorre que os aspectos
de política de defesa são captados pelo que circunda e motiva a maior potência mundial,
econômica e militarmente. Os fundamentos das relações internacionais de cada país
determinam o maior ou menor grau de instrumentalização da força legalizada na consecução
143
de objetivos políticos no campo externo (e também no interno), funcionando como fator de
dissuasão e persuasão complementar, em paralelo ou sob a forma de escudo para as ações ou
omissões diplomáticas. No caso do Brasil, os princípios constitucionais não autorizam a
satisfação de interesses políticos ou econômicos pelo uso travestido das Forças Armadas. Não
obstante, deve-se reconhecer que o campo militar guarda estreitos laços com o campo
político, sendo possível, até, a utilização do primeiro pelo segundo, na ponderação sempre
atual de Clausewitz (2005, p. 294 e 299), para quem a guerra é instrumento da política164:
O pressuposto a respeito da política é que ela junta e harmoniza em si quaisquer assuntos racionais, desde todos os interesses da administração interna até os da humanidade, porque nada é além de mero mandatário e expoente de todos esses interesses diante dos outros Estados. Sob nenhuma circunstância poderá a arte da guerra ser considerada guia da política, que só pode aqui ser vista como a representante dos interesses em geral de toda a comunidade. Por essa razão, não nos diz respeito, aqui, o fato de a política poder tomar uma direção equivocada, e, com deslealdade, defender os fins ambiciosos, os interesses privados ou a vaidade dos governantes. [...] a guerra é uma ferramenta da política; precisa inevitavelmente mostrar o seu caráter, precisa avaliar-se pela sua escala. A condução da guerra, nos aspectos que lhe são inerentes, é a própria política que, apesar de impor a espada em lugar da pena, não vai, por essa razão, deixar de pensar de acordo com as suas próprias leis.
Nessa ordem de idéias, a atuação dos países não se circunscreve ao seu
limitado espaço territorial. A tentativa de não perder a soberania se projeta além das
fronteiras, influenciando e sendo influenciada. Não obstante, as sociedades precisam perceber
o que as rodeia, o que lhes pode potencial ou efetivamente afetar, ameaçar. Desse exercício
resultará a demonstração do que internamente precisa ser corrigido e melhorado. Pertinente,
pois, a análise de Guimarães (2000, p. 503) a respeito da geopolítica e da guerra para os EUA:
A geopolítica, como exercício de definição de objetivos nacionais na esfera internacional, análise da importância relativa de influir, controlar e defender certas regiões para alcançar aqueles objetivos e de elaboração de estratégias diplomáticas e militares em tempo de paz e de guerra a serem desenvolvidas no confronto ou em cooperação com os demais Estados, é preocupação central e permanente da sociedade e do governo norte-americanos. Em
164 João Paulo Soares Alsina Jr. tece abordagem interessante a esse respeito (Política externa e política de
defesa no Brasil. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2006).
144
conseqüência, deve e tem de ser de central interesse para os países que se encontram no centro do sistema e, ainda mais, para os que se encontram na periferia e que são soberanos sobre as regiões que são alvo daquelas estratégias americanas de ação. Os territórios onde se encontram os centros de produção e de consumo existem sempre em espaços geográficos específicos mas variam de importância como fontes de matérias-primas estratégicas, como mercados consumidores, como rotas de acesso e de comunicação, como origem de ameaças, e por essas razões a geopolítica tem de estar presente para a definição de prioridades geográficas de defesa do sistema, inclusive com instrumentos militares. A defesa da gigantesca e complexíssima malha mundial de interesses e conexões de que depende o funcionamento da economia norte-americana no próprio território dos Estados Unidos, e portanto o bem-estar e a segurança da sociedade americana, tem de ser feita de forma permanente e atenta através de estratégicas ideológicas, políticas e econômicas e, em último caso, militares, com o uso da força.
Essas conjecturas guardam consonância com as advertências de Quintão
(2002, p. 23-24), para quem o Brasil tem a necessidade de encontrar, para a defesa de seus
interesses, mecanismos que garantam seu próprio fortalecimento, de modo a se tornar
respeitado e com legitimidade para atuar “com mais desenvoltura nos cenários regional,
hemisférico e mundial”. Significa dizer que o Brasil, caso seja considerado institucionalmente
instável, além de perder sua representatividade na América do Sul, também poderá sofrer
ingerências externas, nas seguintes palavras:
A elevação gradativa de seu desempenho econômico e, em conseqüência, uma maior presença brasileira no plano global deverão estar acompanhados de um correspondente aumento do nosso perfil estratégico. Disto depreendemos que, no plano regional, é necessário o incremento do relacionamento com os países vizinhos, no campo da defesa, como conseqüência natural da aproximação política e econômica. A cooperação para a construção de uma visão sul-americana de defesa elevaria a capacidade dissuasória do continente diante de outros países ou blocos. Assim, o Brasil deve assumir uma postura mais atuante, sendo explícito em suas intenções de conduzir a concertação sul-americana em termos de defesa. Nas ações preventivas de defesa, deverá ser considerada a criação de mecanismos bilaterais de cooperação com os países da América do Sul, com o propósito de intensificar as medidas de confiança mútua e ampliar a interação político-estratégica.
145
Note-se que as estratégicas não se resumem ao campo militar. Seu espectro
é mais amplo porque abrange os campos político e econômico na busca da conformação ou do
alinhamento de interesses em substituição ao enfrentamento. É uma tarefa difícil, sem dúvida.
Vale lembrar uma vez mais que essas percepções estão em harmonia com os princípios que
regem as relações internacionais do Brasil, dentre os quais a autodeterminação dos povos, a
defesa da paz, a solução pacífica dos conflitos e o repúdio ao terrorismo, além dos esforços
para a integração econômica, política, social e cultural da América Latina – e não apenas da
região sul-americana –, para o fim de formar uma comunidade com interesses comuns.
Pergunta-se: na abordagem que comumente é feita da defesa nacional, o
objeto da análise recai na política externa ou na política interna brasileira, com ênfase às
políticas públicas? Por certo que o enfoque principal é dado à primeiro, sob o argumento –
para não dizer dilema – da solução de conflitos pela via diplomática e, se preciso for, do
emprego de forças armadas regulares nas limitações impostas pela Carta Política de 1988 e,
inevitavelmente, pelo direito das gentes. Um questionamento não pode, pois, deixar de ser
formulado: é possível separar a política externa (na qual a defesa também tem o seu lugar) de
políticas públicas internas? De certo que não, principalmente porque para alcançar sua
concretude a política de defesa depende de pressupostos presentes na diversidade das políticas
governamentais e do esforço da sociedade civil, salientando-se que o Brasil não possui um
inimigo externo declarado, além de basear suas relações internacionais em princípios que
rejeitam os conflitos armados incondicionais. Por conseguinte, a atuação do poder político
exige extrema habilidade posto que a melhoria das condições de vida do país, a ampliação e a
distribuição da riqueza e o demasiado fortalecimento do poderio militar também podem dar
espaço a controvérsias com outros Estados, de tal modo que o equilíbrio e a extensão dos
benefícios econômicos e sociais, bem como as projeções dos aparatos bélicos, devem pautar
as agendas prioritárias do Brasil, especialmente para com seus vizinhos do entrono regional,
146
que é extremamente estratégico, sob a perspectiva de que a integração poderá favorecer a
diminuição de vulnerabilidades e a redução de potenciais conflitos e, por conseguinte, de
inimigos. A existência de conflitos ou inimigos no entorno estratégico da América do Sul
amplia as hipóteses de dissuasão, persuasão e penetrabilidade de ameaças e ataques externos,
independentemente de sua origem, natureza e motivação.
O cenário internacional influi no doméstico e é nessa ponte marcada por
inúmeras assimetrias que o acerto da tomada de decisões políticas no âmbito interno
repercutirá, positiva ou negativamente, na atuação e na forma como o Brasil se projeta e é
visto externamente, a revelar uma maior ou menor vulnerabilidade, cujos indicativos
determinarão a condução da política de defesa fundamentada na transcendência do aparato
militar. Importa refletir se os instrumentos de defesa – entendidos como o conjunto de fatores
que afastam as tentativas de concretização de ameaças –, no que concerne à proteção e
segurança de um país democrático que adotou o estado de direito também podem ganhar a
forma de políticas públicas de combate às mazelas sociais, como estratégia preventiva e
acautelatória. Quintão (2002, p. 25) indica a natureza transdisciplinar de uma política de
defesa que pretende ser legítima e efetiva:
Como pode ser constatado, segurança não pode ser associada somente ao efeito resultante dos atos do uso da força derivados das capacidades militares, mas conformando-se também na adoção de medidas de proteção no campo social, econômico, da diplomacia, do segmento científico-tecnológico e do meio ambiente contrapondo-se a riscos e ameaças que incorporam dimensões não-militares. Logo, segurança é relativa e adjetiva por não ser absoluta, admitir gradação e constituir-se em uma qualidade; já a defesa é substantiva pressupondo ação. Portanto, “Defesa Nacional” é o conjunto das ações do Estado, com ênfase na aplicação da expressão militar, para a defesa do território, da soberania e dos interesses nacionais contra as ameaças externas, contribuindo, portanto, para a “Segurança Nacional”. Enfatizo que o contexto da defesa nacional é o da Nação brasileira perante as demais nações, ou seja, campo externo. A defesa é abrangente e multisetorial, envolvendo todas as esferas e níveis de poder e de interesse de toda sociedade, não sendo portanto assunto restrito e exclusivo dos militares.
147
Constata-se, uma vez mais, que a concepção de defesa deixa de ser
essencialmente voltada ao combate de ameaças externas, de natureza militar, para dar lugar ao
pensamento multidisciplinar que compreende variáveis que podem proporcionar ao homem a
desejada segurança e, por conseguinte, a paz social ou, em termos menos otimistas, a
suspensão da beligerância explícita. Afasta-se o senso comum de que o campo militar é uma
entidade estanque encarregada do monopólio de defender o país de ameaças externas ou
mesmo de repelir eventuais inimigos internos, sejam terroristas, subversivos ou que
simplesmente exerçam o legítimo direito político de se opor ou resistir ao poder que exerce ou
influencia as funções de governo. Para sustentar essa mudança, as ponderações de Santos
(1989, p. 13) são bastante apropriadas na medida em que revelam a necessidade de aproximar
a sociedade civil do tema que, embora relevante, é posto distante de sua capacidade de
compreender e de participar da construção de seus fundamentos:
A reflexão hermenêutica torna-se, assim, necessária para transformar a ciência, de um objeto estranho, distante e incompreensível com a nossa vida, num objeto familiar e próximo, que, não falando a língua de todos os dias, é capaz de nos comunicar as suas valências e os seus limites, os seus objetivos e o que realiza aquém e além deles, um objeto que, por falar, será mais adequadamente concebido numa relação eu-tu (a relação hermenêutica) do que numa relação eu-coisa (a relação epistemológica) e que, nessa medida, se transforma num parceiro da contemplação e da transformação do mundo. Compreender assim a ciência não é fundá-la dogmaticamente em qualquer dos princípios absoluto ou a priori que a filosofia da ciência nos tem fornecido, desde o ens cogitans de Descartes à reflexão transcendental de Kant, ao espírito absoluto de Hegel, à consciência pura e sua intuição das essências de Husserl, à imediação da percepção sensorial do empirismo anglo-saxônico e do sensualismo francês. Ao contrário, trata-se de compreendê-la enquanto prática social de conhecimento, uma tarefa que se vai cumprindo em diálogo com o mundo e que é afinal fundada nas vicissitudes, nas opressões e nas lutas que o compõem e a nós, acomodados ou revoltados.
De acordo com o pensamento de Quintão (2002, p. 26), o futuro texto da
política de defesa nacional seria um “documento de mais alto nível em matéria de defesa,
coerente com a política externa, [...] visando a orientar o preparo e o emprego da capacitação
nacional em todos os níveis e esferas de poder”. É preciso ponderar essas colocações com os
148
mecanismos que regem a formulação de políticas públicas. Como, então, elaborar uma
política de defesa de tamanha magnitude? Essa é uma preocupação que precisa ser enfrentada
com todo o cuidado, posto que, no estado democrático de direito, a fixação de objetivos e o
estabelecimento de diretrizes de caráter vinculatório dirigidos à sociedade não podem
prescindir, sob pena de perda de legitimidade, de uma ampla discussão sob o fundamento da
qual a autoridade política passa a deliberar. Essas ponderações se justificam na medida em
que a política de defesa visa a “orientar o preparo e o emprego da capacitação nacional em
todos os níveis e esferas de poder”165, ou seja, seus comandos se dirigem ao conjunto
heterogêneo de atores públicos e privados cujos interesses são complexos e, por conseguinte,
concorrentes e raramente harmônicos.
Quintão (2002, p. 26) ainda assinala que, sob os fundamentos dos objetivos
e das diretrizes da política da defesa nacional, os demais setores do governo e da sociedade
passariam a elaborar suas respectivas políticas setoriais, acrescentando que, no âmbito do
Ministério da Defesa, teria curso a política setorial de enfoque militar. Nesse ponto reside um
problema e uma mudança de paradigma no modelo da política de defesa, em face da
articulação das redes sem as quais sua execução restará prejudicada. Dessa feita, a análise da
política de defesa não pode levar em consideração apenas o objeto que ao mundo empírico
parece ser essencial, qual seja, a proteção contra uma efetiva ou potencial ameaça externa
preponderantemente militar, mas também todo o contexto em que está inserida, abrangendo as
suas mais variadas vertentes. Para desvelar esse novo modelo teórico é necessário lançar mão
do poder de ruptura e do poder de generalização para, ao final da depuração entre as relações
do corpo político-social, conhecer o objeto a ser construído e experimentado. Essas
ponderações, inspiradas em Bourdieu, Chamboredon e Passeron (1999, p. 71-72), podem ser
sintetizadas no seguinte excerto:
165 Cf. parte introdutória do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.
149
[...] a construção de um modelo permite tratar diferentes formas sociais como outras tantas realizações de um mesmo grupo de transformações e, por conseguinte, fazer surgir propriedades ocultas que só se revelam quando cada uma das realizações é colocada em relação com todas as outras, isto é, por referência ao sistema completo de relações pelo qual se exprime o princípio da afinidade estrutural das mesmas. É esse procedimento que confere fecundidade, isto é, poder de generalização, às comparações entre sociedades diferentes ou entre subsistemas da mesma sociedade, por oposição aos simples paralelismos suscitados pelas semelhanças dos conteúdos.
O problema que se apresenta ao político, por sua vez, reside na fragilidade
de implementação, de articulação, de coordenação e, por fim, de execução da política de
defesa, tendo em vista que não há instrumentos que possam assegurar que os demais atores
públicos e privados estão comprometidos ou aderiram ao seu conteúdo. No dizer de Rua
(1998, p. 235), esses são “atores políticos” representados por todos aqueles que têm interesses
em jogo e podem vir a ganhar ou perder em decorrência das decisões compreendidas em uma
dada medida, razão pela qual uma política que não esteja atenta a esse aspecto representativo
tenderá a fracassar. Não há, portanto, que se falar em atores políticos em campos distantes e
sem comunicação, como sociedade e governo ou militares e civis isolados ou em posições
contrárias, tendo em vista que um e outro compõem uma rede entrelaçada de poder e de
interesses que podem ou não convergir num dado momento. Não é diferente com a política de
defesa.
Por outro lado, a mudança de paradigma reside na constatação de que a
política de defesa não é uma matéria que pertença, exclusivamente, ao campo militar, na linha
argumentativa que caracteriza o presente trabalho. É preciso insistir nessa premissa, pois sua
relevância proporciona a revisão do marco conceitual segundo o qual a defesa se dirigiria,
prioritariamente, à proteção bélica contra ameaças oriundas do exterior. O escopo dissuasório
da política de defesa deve consistir em evitar o uso de força armada regular, para que a
segurança e a proteção possam ser dirigidas e convertidas para o coletivo da população
150
brasileira e não preferencialmente a grupos que, em termos econômicos ou de prerrogativas,
teriam mais a perder em decorrência de uma guerra ou de uma nova ameaça.
Fortalecer o tecido social também é uma forma de dissuadir, na medida em
que amplia a legitimidade do esforço vinculatório sob o pressuposto do consenso cooperativo
baseado na solidariedade. Há nesse ponto uma questão delicada que diz respeito à
sensibilização que motivará a sociedade a aderir e a cooperar com o projeto de fortalecimento
do tecido social, despertando-a de processos de alienação baseados na repetição de
comportamentos, do consumo e da simples sobrevivência num quadro hostil de falta de
oportunidades. Se não houver esse despertar, esse querer, pouco valerão os discursos, os
recursos financeiros, as normas de direito e as estratégias.
Aguiar (2000, p. 140-141) indicou um caminho ao abordar os pressupostos e
as crenças transformadores na contemporaneidade:
Nem sempre é a grande prática que gera as grandes interferências ou soluções. Basta atentar para o mundo físico para confirmar esse entendimento. Nos fenômenos complexos da meteorologia, são pequenas variações, diminutas interferências que causam os efeitos da chuva, do sol e das tempestades. A complexidade é tão grande e o nível de acerto das previsões tão pequeno, que levou a meteorologia a criar novos modelos de explicação e previsão lastreados na Teoria do Caos. Quando nos deparamos com fenômenos qualitativamente mais complexos, como o caso das sociedades humanas, verificamos que os modelos abrangentes e as teorias da transformação geral podem até dar conta da explicação de certos fenômenos, mas falham quando tentam prever ou intervir em determinada direção. Por outro lado, experiências sociais localizadas ou insights pontuais exercem sobre o todo social influências devastadoras ou transformadoras. O pequeno e o grande, o abrangente ou o localizado podem ter, em termos de qualidade, papéis de mesma significação. A partir do que foi dito, podemos afirmar que o que é local também pode ser universal, assim como o que se pretende universal pode ser meramente provinciano.
Portanto, a política de defesa compreende variáveis que não se restringem
ao campo militar, as quais poderão proporcionar os meios de que o país necessita para se
fortalecer internamente e, por conseguinte, diminuir suas vulnerabilidades. Mas, que variáveis
são essas? Não poderiam ser outras senão as que dizem respeito, preponderantemente, às
151
políticas sociais, ambientais, tecnológicas e econômicas. Quintão (2002, p. 26) assim se
posicionou:
Logo, uma boa política de defesa, em qualquer época e tempo, deve expressar muito bem os interesses maiores do Estado brasileiro codificados pela sociedade e que representem os reais interesses do nosso povo de modo a assegurar a sobrevivência e continuidade política do Estado brasileiro e permitir a sua livre busca do progresso e desenvolvimento.
Diante desse quadro, as dificuldades se ampliam e ganham novos contornos,
posto que, na assertiva de Quintão (2002, p. 26), a “concepção sistêmica” de defesa deve
“emergir” a partir da política de defesa nacional, cabendo ao Ministério da Defesa atuar como
“órgão central, em condições de realizar as coordenações necessárias com os demais
integrantes do sistema, assegurando-lhe eficácia”. As dificuldades começam pela constatação
de que os fundamentos ou a “concepção sistêmica” de defesa carecem de legitimidade e de
ampla representatividade política, isto é, ainda não está consolidado o aspecto jurídico-
institucional caracterizado pelo conjunto de regras de direito e pela autoridade pública com
prerrogativas para conduzir o processo de formação de consensos e de cooperações. Funciona
de outra maneira: a política decorre e se aperfeiçoa (ou se degenera) a partir do jogo do poder
e da conformação de interesses em conflito, dando origem à vontade política de, no caso,
implantar ou não a variável de defesa. Por essa razão, a formulação da política de defesa, em
face de seu caráter conjuntural, necessita do concurso positivo de outros atores cujas
contribuições e responsabilidades correspondam à sua plena execução e eficácia. Nessa linha,
a falta de participação tende a acarretar esvaziamento político que se reflete na perda ou no
enfraquecimento da legitimidade das medidas vinculatórias.
Além do mais, é preciso admitir que a forma (decreto autônomo) escolhida
para formalizar a política de defesa confere diminuta legitimidade ao Ministério da Defesa
152
para coordenar as respectivas ações166. Mesmo considerado um órgão civil com competência
para o trato da matéria167, esse novo ente público, que conta apenas com oito anos de criação,
não dispõe de ascendência sobre os demais atores políticos, órgãos da administração pública e
setores da sociedade, ou seja, sua capacidade representativa e sua legitimidade estão, no
mínimo, niveladas com aqueles que disputam poder, prestígio, recursos e mecanismos de
convencimento para a consecução de suas próprias políticas. O quadro se agrava na medida
em que o atual governo é composto por uma base pluripartidária de diversas ideologias, tanto
no Poder Executivo quanto no Legislativo. Dessa feita, no atual cenário, são grandes as
dificuldades para executar de forma ampla a política de defesa. A respeito das relações entre
grupos e dos efeitos que delas decorrem, deve-se considerar, também, o mecanismo de
internalização das políticas, como a de defesa, observando-se o fluxo de informações que as
norteiam, sob a forma de troca simbólica de dependência das relações de força, de
predomínios de monopólios de saber e de dominação, de modo que as seguintes colocações de
Bourdieu (1983, p. 52-53) se aplicam ao objeto ora estudado:
[...] Na verdade, sabe-se que as interações simbólicas no interior de um grupo qualquer dependem não somente, como bem o vê a psicologia social, da estrutura do grupo de interação no qual elas se realizam, mas também das estruturas sociais nas quais se encontram inseridos os agentes em interação (isto é, a estrutura das relações de classe): assim, é provável que uma das medidas das trocas simbólicas que permitisse distinguir, com Chapple e Coon, os que só emitem (originate), os que só respondem e os que respondem às emissões dos primeiros e emitem para os segundos, tornaria visível, tanto na escala de uma formação social em seu conjunto quanto no interior de um grupo circunstancial, a dependência das relações de força simbólica com respeito à estrutura das relações de força política. O modelo de concorrência pura é irreal tanto aqui quanto alhures e o mercado de bens simbólicos tem também seus monopólios e suas estruturas de dominação.
A política de defesa depende da interação de várias outras políticas e da
complementaridade de ações e posturas do governo e da sociedade, o que requer a
166 Cf. parte introdutória do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005. 167 O disposto na alínea “a” do inc. VII do art. 27 da Lei no 10.683, de 28 de maio de 2003, que trata da
organização da Presidência da República e dos Ministérios, elenca a defesa nacional no rol de assuntos que competem ao Ministério da Defesa.
153
reconstrução do direito e a conscientização do poder político, na medida em que as regras de
efeitos vinculantes precisam convergir para uma nova realidade de cooperação. Se a defesa é
multidisciplinar, a composição dos interesses em conflito precisa encontrar, também, um
ponto de convergência, de tal modo que a representatividade política precisa superar sua crise
de legitimidade para fazer face às demandas coletivas sem, contudo, perder a natureza plural e
heterogênea imprescindível à democracia. Oportuno trazer as colocações de Rua (1998, p.
250) a respeito desse jogo político:
[...] o jogo político não se dá apenas entre unidades institucionais e coletivas: há todo o tipo de ator. Atores organizacionais defendendo interesses organizacionais ou, alternativamente, usando sua posição organizacional para favorecer interesses e ambições pessoais. Atores coletivos agindo em defesa dos interesses de suas coletividades ou não. Atores institucionais ou individuais, privados e públicos. E, sempre, tudo permeado por cálculos políticos, de curto, médio e longo alcance. Nesse jogo, para obter vantagens individuais, coletivas, organizacionais, os atores fazem todas as alianças possíveis, usam de todas as estratégias e de todos os recursos disponíveis. O que move o jogo do poder não é a lógica de um curso de ação, nem as rotinas organizacionais, nem a excelência técnica de cada alternativa, mas o poder efetivo e as habilidades políticas dos proponentes e dos adversários de uma alternativa para negociar, barganhar até obter uma solução que lhes seja satisfatória, em um determinado problema político.
A política de defesa não está imune a esse jogo de poder. Há todo o tipo de
interesses que movimenta o poder público, a iniciativa privada e determinados setores da
sociedade civil que têm demandas diretamente envolvidas na formulação e na execução dessa
política. Não se pode alimentar a ilusão de que o único fim das linhas da defesa consista em
prestar relevante serviço público coletivo, de defender o Brasil, de resguardar a soberania, de
elevar a nacionalidade. Assim, os militares também se interessam em manter, preservar e
ampliar o grau de importância de suas instituições, tendo em vista que, a partir da relevância
atribuída à defesa poderão dar prosseguimento ou inovar projetos que correspondam às
expectativas de sua formação profissional, garantir a continuidade de suas organizações e
154
obter recursos orçamentários destinados ao preparo e ao emprego dos meios bélicos, além de
justificar a correspondente retribuição financeira para o pagamento de seu pessoal.
Semelhantemente se colocam os dirigentes públicos e os políticos que
angariam simpatia dos atores militares, buscam reconhecimento interno e externo mediante a
demonstração da existência de poder de persuasão e de dissuasão aos aliados e aos prováveis
inimigos, conquistam a simpatia de organismos internacionais que se comprazem com
posturas uniformes alinhadas à ideologia dominante, formalizam atos e contratações para
adquirir ou compartilhar (com restrições) produtos de defesa elaborados por outros países e
promovem intercâmbios com nações amigas para trocar experiências. Paralelamente à atuação
de militares e de políticos se beneficiam as empresas que desenvolvem tecnologias, fabricam
e comercializam produtos de aplicação bélica. Desse conjunto se forma uma rede que tem
como um de seus efeitos a proteção da sociedade. Ocorre que até chegar ao coletivo há muitos
beneficiados diretos. Esse quadro fundamenta a discussão democrática da política de defesa,
observada a tendência para custos difusos suportados por toda a sociedade, enquanto
vantagens diretas têm enorme probabilidade de se concentrarem em setores específicos do
país ou do exterior.
Ao tratar das perspectivas, das ameaças e das vulnerabilidades a que o
Brasil está sujeito e que justificam a política de defesa, Quintão (2002, p. 27) reconheceu a
dificuldade de levar a efeito uma política de espectro amplo com aplicação de recursos
financeiros de grande vulto na área militar quando existem necessidades emergentes nas áreas
sociais e de infra-estrutura. Contudo, é preciso considerar que essas demandas também estão
compreendidas no escopo da política de defesa, pois visam fortalecer a sociedade e, dessa
maneira, proporcionar meios para o desenvolvimento de suas potencialidades. Desse modo, a
dissuasão se projeta para além do bélico. As variáveis de uma política de defesa transcendem
a simples concepção de aparato militar que deve caminhar com as políticas públicas sociais,
155
ambientais, tecnológicas e econômicas. Esse argumento ganha robustez na medida em que
surgem novos paradigmas de vulnerabilidade em substituição aos tradicionais ataques
externos. São eles: o terrorismo, o crime organizado, o narcotráfico e as instabilidades
internas168.
Essa conjuntura coloca o país diante de um quadro que merece bastante
cuidado e sensibilidade, para o fim de evitar precipitações que prejudiquem o tempo
necessário à reflexão política dos fatos. Como tratar de terrorismo, de crime organizado, de
narcotráfico e de instabilidades internas, tidas como novas ameaças à defesa nacional?
Poderia o Ministério da Defesa, a partir da atuação das Forças Armadas, conduzir
isoladamente uma política voltada a combater esses problemas? Por certo que não.
Novamente se revela que a política de defesa não constitui matéria exclusiva do campo
militar. Algumas inquietações não podem passar despercebidas como, por exemplo, o que é e
quem pratica o terror? Em que pese a odiosidade da violência desmedida, não se pode
desconsiderar a possibilidade de a prática do terror ser conseqüência da perda dos valores de
humanidade muitas vezes gerada pela indiferença e pela imposição de condutas e ideologias
sem a observância da diversidade cultural. Como enfrentar essa mazela se a sua origem tem
raízes na própria política (ou na ação dos políticos)? Atribuir ao terror a natureza de ameaça à
soberania tem no mínimo duas drásticas conseqüências práticas. A primeira é afastar a
natureza delitiva comum dos atentados, dando-lhe a perigosa conotação política. A segunda,
que é decorrência da primeira, consiste em admitir uma nova possibilidade legitimadora da
guerra justa ou em legítima defesa com a nociva peculiaridade de mascarar intempestivas
investidas de um Estado contra outro e o indesejado conflito armado entre países ou nações,
remetendo ao limite da extraterritorialidade. Em ambas perde a humanidade, pois tanto no
pólo ativo como no passivo dessa luta incauta os prejuízos incidem sobre vidas humanas,
168 Extraídos do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.
156
riquezas, liberdades públicas, direitos fundamentais e ideais democráticos, esses com o
gravame de serem mitigados pela parte que declara a prática de seus princípios169.
Por outro lado, o crime organizado e o narcotráfico ganham espaço ante a
capacidade de gerar lucros e corromper, diversificando-se pelo aproveitamento das
instabilidades e das fragilidades do sistema jurídico-político, da pobreza, da desigualdade
social e da falta de oportunidades. Não apenas se opõe à ordem pública estabelecida, mas
tenta subvertê-la e substituí-la, revelando as falhas e a ausência de efetivas e convincentes
políticas públicas sociais. No que tange à crise social brasileira é pertinente a observação de
Ferreira (2003, p. 43):
Da análise da crise social – pois é disso que se trata – ressaltarão dois fatos: um, que o Estado está de fato ameaçado pelo crime institucionalizado e pela miséria que desafia a organização social; outro, que a política de consecução de objetivos deve ter continuidade ao longo de sucessivos governos de todos os níveis de administração. Conceber essa política como aplicável a âmbitos geográficos juridicamente configurados destruirá o caráter sistêmico da federação e a unidade do Estado. Quando se conjugam esses elementos – o crime e sua capacidade de aliciamento entre as populações jovens e não só carentes, e os milhões de pessoas que povoam o mapa da miséria – o planejador é necessariamente levado a considerar a solução desses problemas como das mais prementes; na realidade, isso é que põe em risco a estrutura do Estado.
A esse respeito, convém mencionar o relatório da ONU intitulado “O Estado
das Cidades do Mundo 2006-2007”, segundo o qual, apesar da taxa de crescimento das
favelas ser estável, a estimativa é que o Brasil tenha até 2020 (daqui a doze anos) cerca de 55
milhões de pessoas vivendo (ou sobrevivendo) nessas comunidades. O dado é alarmante
considerado que esse número tende a ser maior, pois muitas das moradias que atualmente são
destinadas a pessoas de baixa renda, como forma de política pública social, as chamadas casas
populares, mesmo que não situadas em favelas tradicionais e não diagnosticadas como de alto
risco representam, total ou parcialmente, forma de habitação que coloca as pessoas, com raras
169 Sobre terrorismo, sugere-se a leitura de José Manoel de Aguiar (Terrorismo: ação, reação e prevenção. São
Paulo: Arte & Ciência, 2003) e da obra coordenada por Leonardo Nemer Caldeira Brant (Terrorismo e direito: os impactos de terrorismo na comunidade internacional e no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2003).
157
exceções, à margem de mínimos padrões arquitetônicos e urbanísticos que confiram
dignidade à pessoa humana, sujeitando-as à discriminação e à precariedade de investimentos
públicos.
Cabe também lembrar que as Forças Armadas não têm a atribuição precípua
de permanentemente atuar no campo da segurança pública, o que pode configurar o indevido
uso político daquelas instituições170. Conforme abordado no primeiro capítulo do presente
trabalho, aquelas instituições somente estarão autorizadas a atuar em casos excepcionais
quando for demonstrada a inoperância dos sistemas de segurança dos estados, por tempo
determinado e nos limites da interpretação restritiva da previsão contida no caput do art. 142
da Carta Política de 1988 e na Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999. Dessa feita,
afora as controversas hipóteses de garantia da lei e da ordem, as atribuições subsidiárias que
foram acometidas pelo Poder Legislativo ao Exército – além daquelas dirigidas à Marinha171 e
à Aeronáutica172 – estão condicionadas a “contribuir para a formulação e condução de
políticas nacionais que digam respeito ao Poder Militar Terrestre”, a “cooperar com órgãos
170 É interessante a abordagem feita por João Rodrigues Arruda (O uso político das Forças Armadas: e outras
questões militares. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007). 171 A Marinha tem por atribuições subsidiárias: “I – orientar e controlar a Marinha Mercante e suas atividades
correlatas, no que interessa à defesa nacional; II – prover a segurança da navegação aquaviária; III – contribuir para a formulação e condução de políticas nacionais que digam respeito ao mar; IV - implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual, quando se fizer necessária, em razão de competências específicas. Parágrafo único. Pela especificidade dessas atribuições, é da competência do Comandante da Marinha o trato dos assuntos dispostos neste artigo, ficando designado como ‘Autoridade Marítima’, para esse fim. V – cooperar com os órgãos federais, quando se fizer necessário, na repressão aos delitos de repercussão nacional ou internacional, quanto ao uso do mar, águas interiores e de áreas portuárias, na forma de apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução” (Cf. art. 17 da Lei no 97/99).
172 São as atribuições subsidiárias da Aeronáutica: “I – orientar, coordenar e controlar as atividades de Aviação Civil; II – prover a segurança da navegação aérea; III – contribuir para a formulação e condução da Política Aeroespacial Nacional; IV – estabelecer, equipar e operar, diretamente ou mediante concessão, a infra-estrutura aeroespacial, aeronáutica e aeroportuária; V – operar o Correio Aéreo Nacional. Parágrafo único. Pela especificidade dessas atribuições, é da competência do Comandante da Aeronáutica o trato dos assuntos dispostos neste artigo, ficando designado como ‘Autoridade Aeronáutica’, para esse fim. VI – cooperar com os órgãos federais, quando se fizer necessário, na repressão aos delitos de repercussão nacional e internacional, quanto ao uso do espaço aéreo e de áreas aeroportuárias, na forma de apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução; e VII – atuar, de maneira contínua e permanente, por meio das ações de controle do espaço aéreo brasileiro, contra todos os tipos de tráfego aéreo ilícito, com ênfase nos envolvidos no tráfico de drogas, armas, munições e passageiros ilegais, agindo em operação combinada com organismos de fiscalização competentes, aos quais caberá a tarefa de agir após a aterragem das aeronaves envolvidas em tráfego aéreo ilícito” (Cf. art. 17 da Lei no 97/99).
158
públicos federais, estaduais e municipais e, excepcionalmente, com empresas privadas, na
execução de obras e serviços de engenharia, sendo os recursos advindos do órgão solicitante”,
a “cooperar com órgãos federais, quando se fizer necessário, na repressão aos delitos de
repercussão nacional e internacional, no território nacional, na forma de apoio logístico, de
inteligência, de comunicações e de instrução”, a “atuar, por meio de ações preventivas e
repressivas, na faixa de fronteira terrestre, contra delitos transfronteiriços e ambientais,
isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo”, mediante “ações de
patrulhamento, revista de pessoas, de veículos terrestres, de embarcações e de aeronaves,
podendo, nesses casos, efetuar prisões em flagrante delito”173.
Tais limitações não constituem mero positivismo jurídico. Representam,
sim, a vontade política que formou o pacto federativo contemplado na atual Carta Política.
Poder-se-á ampliar o rol de atribuições das Forças Armadas? Quais seriam os novos
parâmetros? Seria possível dimensionar seus efeitos no Estado Democrático de Direito?
Conjecturas como essas revelam a complexidade do tema em face da política de defesa
nacional. A reflexão deve levar em conta não a possibilidade de o Exército, a Marinha e a
Aeronáutica reunirem condições para fazê-lo, mas a capacidade que as outras instituições
públicas e a própria sociedade civil têm ou deveriam desenvolver. Isso porque o valor e o
funcionamento das instituições são parâmetros de consolidação da democracia, posto a
diversidade evita concentração de poderes e, por conseguinte, a inclinação indevida a modelos
ou sistemas totalitários. O desejo de proteção da sociedade não pode servir de justificativa
para práticas imediatistas que passem ao largo das causas centrais dos problemas. Esse é um
dos desafios ao direito e ao poder político.
As instabilidades internas, por seu turno, nada mais são do que a eclosão
fragmentada de tensões sociais ora silenciosas (como o trabalho escravo, o trabalho infantil,
173 Cf. art. 17A da Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999.
159
os problemas na rede de saúde pública, a falta de capacitação para o trabalho) ora ruidosas
(como o crime organizado, as disputas violentas e sem limites entre traficantes, as rebeliões
deflagradas em presídios, os conflitos fundiários).
Diante desse quadro de novas ameaças, que revela a amplitude e a
diversidade de atores que concorrem para o êxito de uma política de defesa, cujo escopo –
frise-se – não mais consiste no ingênuo objetivo de simplesmente proteger o país de
investidas externas ou de articulações para a tomada do poder por um improvável inimigo
interno, verifica-se que as mais significativas e evidentes vulnerabilidades do Brasil estão
situadas em seu próprio território, ou melhor, no exercício da cidadania que, por sua vez,
reflete na soberania do país. O problema estratégico reside na dificuldade que o governo tem
de estruturar uma política de Estado flexível, continuada e que a um só tempo possa atender,
de um lado, às expectativas de natureza militar e, de outro, ao fortalecimento do tecido social
mediante o estabelecimento de políticas públicas de resultado coletivo. A esse respeito, a
opinião de Ferreira (2003, p. 36) reflete esse desafio:
Fixemos desde o início que esses desafios são, a um tempo, econômicos, sociais e, sobretudo, políticos. E só podem encontrar solução se equacionados sob uma correta concepção estratégica. E a concepção estratégica será tanto mais adequada aos embates previsíveis, quanto mais for construída sem cólera nem parcialidade. Por outro lado, observe-se que uma concepção estratégica nada é sem uma política de consecução dos objetivos, e que essa política está destinada ao malogro se, na concepção estratégica, não tiverem sido estabelecidos os fatores de força e de fraqueza do País no seu relacionamento com o mundo e os fatores adversos internos, além de se terem fixado os instrumentos políticos que tornarão eficaz a consecução dos objetivos.
Do que foi alinhavado até então, é possível afirmar que a política de defesa
nacional é, sim, necessária, inclusive para o fim de demonstrar, a partir de seus fundamentos,
que o país, nessa delicada matéria, também está sujeito aos princípios democráticos não
apenas para se proteger de ameaças externas, de caráter preponderantemente militar, mas para
reconhecer e cuidar das mazelas sociais que ampliam a vulnerabilidade do país em
160
decorrência, principalmente, da falta ou da insuficiência de políticas públicas nas áreas
sociais, não obstante a tendência de melhoria das condições de desenvolvimento humano174 e
dos índices que acenam para a diminuição da pobreza e da indigência no Brasil175. Portanto, é
forçoso reconhecer que a dissuasão não se constrói apenas com o aparelhamento das Forças
Armadas e com a sofisticação dos instrumentos diplomáticos. Dissuadir também significa
afastar pretensões que pela força ou pela persuasão velada tentem colocar o país em condição
econômica ou política mais elevada do que os demais.
A defesa não é tema novo, mas foi recentemente que recebeu atenção mais
detida por parte do poder público ou, para dizer melhor, dos atores políticos, pelo menos no
que tange à edição do Decreto no 5.484, de 2005. O que determinou essa mudança de postura?
Qual a motivação que o governo federal teve para incluir ou elevar na agenda política assunto
que causa embaraços quando confrontado com parte dos princípios constitucionais que regem
as relações internacionais do país, com o pensamento democrático que resultou da transição
do regime de exceção para o democrático, além do enfoque às emergentes demandas sociais?
Inevitável reconhecer que as assimetrias e instabilidades do quadro mundial se tornaram mais
evidentes a partir dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Também ajudaram a
despertar interesse pelo tema fatos que na atualidade foram destaque na mídia, como os
acidentes aéreos ocorridos no Brasil em 2006 e 2007, os problemas de infra-estrutura e de
controle da aviação civil, as questões políticas e legislativas que circundaram a criação da
Secretaria de Planejamento de Longo Prazo176, as controvérsias que envolvem a política da
Venezuela, as medidas de nacionalização levadas a efeito pelo governo da Bolívia, as
negociações para a liberação de reféns e os ataques do governo da Colômbia contra as FARC,
174 A respeito, o relatório de desenvolvimento humano 2007/2008 elaborado pela ONU. Disponível em:
<www.hdr.undp.org>. Acesso em: 30 de maio de 2008. 175 Dados detalhados constam do Capítulo Renda (p. 25-29) da publicação Radar Social 2006 – Condições de
Vida no Brasil, elaborada em julho de 2006 pelo IPEA. Disponível em: <www.ipea.gov.br>. Acesso em: 30 de maio de 2008.
176 Criada pela Medida Provisória no 377, de 18 de junho de 2007, que foi rejeitada pelo Congresso Nacional pelo Ato Declaratório no 1, de 3 de outubro de 2007.
161
a soberania brasileira na Amazônia177 e a demarcação de terras indígenas, apenas para
mencionar alguns acontecimentos domésticos e do entorno regional.
Na aproximação com o diagnóstico de Rua (1998, p. 238), situações como
essas são tidas como “estado de coisas” caracterizadas por uma duração continuada ao longo
do tempo, marcadas por inquietações sem, contudo, “mobilizar as autoridades
governamentais”, de tal modo que essa ausência de comprometimento faz com que o tema
não seja incluído na “agenda governamental”, pois não desperta o interesse daqueles que
decidem. Percebe-se que uma situação relevante – como a defesa nacional – pode estar
perfeitamente caracterizada, incomodar grupos em decorrência da inércia dos tomadores de
decisão, gerar prejuízos e insatisfações a uma série de atores políticos e sociais sem constituir
prioridade do poder público. Esse estado de coisas é elevado a problema político no momento
em que os argumentos que o sustentam passam a sensibilizar e a preocupar as autoridades.
O problema da conversão de tema em problema político reside na
dependência dessa mudança de percepção para a formulação de políticas públicas como fator
comum da política, das divisões do governo e da própria oposição, circunstância que permite
a análise da política sob o ponto de vista da busca para estabelecer, implementar ou evitar a
concretização de medidas. É uma das maneiras de influenciar o processo decisório, num
marcado jogo de forças. A melhoria desse quadro – cujos resultados interessam à sociedade
civil – exige mudança para melhor do sistema de representação política, do qual participam os
partidos políticos, os grupos sociais e a sociedade como um todo (LAHERA P., 2004, p. 5-7).
Nessa linha, revela-se apropriado discutir a pertinência teórica e conceitual
que fundamenta as políticas e as políticas públicas, mediante a releitura da estruturação e da
funcionalidade das instituições do Estado, especialmente quanto à natureza do regime político
na determinação dos formatos das estratégias do poder público. Deve ser feita uma
177 Sobre o tema, o livro Amazônia e defesa nacional. Organizador Celso Castro. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
162
aproximação dos princípios e da dinâmica que regem as relações entre a esfera política, a ação
pública e a sociedade civil. Para tanto, é preciso conhecer os fundamentos do regime político
e o domínio em que se desenvolvem as políticas públicas. Mas, então, o que determina a
formação das políticas públicas? O regime? Os tipos ou formas de regime implicam a
especificidade de estruturações das políticas públicas. Há, portanto, relação entre o regime
político e os procedimentos baseados na precariedade política e na ação pública pautada na
informalidade das instituições (TORRES, 2004, p. 5-7).
Conforme esclarece Rua (1998, p. 238-239), a mobilização política que
determina a transformação do estado de coisas em problema político pode corresponder à
ação de coletividades e de atores estratégicos, conjunta ou separadamente. Mas, em geral, o
atuar político é marcado pela “percepção de um ‘mal público’, além de situações como crises
e catástrofes”. No caso da política de defesa, além de setores da sociedade civil e de
circunstâncias externas, há de ser considerada a atuação, no âmbito do governo, de atores
estratégicos, dentre os quais não podem deixar de figurar o Ministério das Relações
Exteriores, o Ministério da Justiça, o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da
República, o Ministério das Cidades, o Ministério da Reforma Agrária, o Ministério da
Fazenda e o Ministério da Defesa (consideradas as Forças Armadas), em razão das
competências e responsabilidades que lhes são inerentes. Ainda segundo Rua, os movimentos
de cenários como esse, nos quais se verifica a mudança da situação de estado de coisas a
problema político, devem compreender pelo menos uma das seguintes características:
1. mobilize ação política: expresse ou a ação coletiva de grandes grupos, ou a ação coletiva de pequenos grupos dotados de fortes recursos de poder, ou a atuação de atores individuais estrategicamente situados; 2. constitua uma situação de crise, calamidade ou catástrofe, de maneira que o ônus de não resolver o problema seja maior que o custo de resolvê-lo; 3. represente uma situação de oportunidade, ou seja, signifique vantagens, antevistas por algum ator relevante, a serem obtidas com o tratamento daquele problema.
163
Confrontadas essas características com o desenho da política de defesa,
identifica-se a ocorrência das três características descritas por Rua, verificáveis na ação
coletiva de pequenos grupos dotados de fortes instrumentos de poder e na demonstração da
situação de crise potencial ou efetiva ante os cenários interno e externo que determinaram a
oportunidade da tomada de decisão. O poder político foi mobilizado pela ação de grupos do
próprio governo e da sociedade civil. Os primeiros, representados por militares e por atores
que sustentam a necessidade de postura mais enérgica do Brasil, com efeitos nas variáveis
econômicas, ambientais e tecnológicas, admitindo-se que essas opiniões estão desprendidas
de interesses corporativos sob a bandeira da soberania, da nacionalidade e da integridade
territorial. Os segundos, impulsionados por setores da iniciativa privada que, direta ou
indiretamente, consideram que a relevância do tema – que traz consigo a ampliação dos
orçamentos – constitui significativa oportunidade de expansão e revitalização de suas
plataformas de produção e, por conseguinte, de lucro, como é o caso da indústria de defesa.
A situação de crise foi desvelada pela necessidade do Brasil em reafirmar os
princípios constitucionais que norteiam suas relações internacionais, a partir dos atentados
terroristas, de modo a assinalar, para efeito estratégico junto à política externa norte-
americana, o alinhamento do país com os meios e os fins da democracia ocidental, para que
não figurasse como possível inimigo, mesmo que, pela imparcialidade, se mantivesse distante
dos episódios. Dos atentados de 2001 e, posteriormente, à invasão do Iraque, às investidas no
território afegão, à crise aérea brasileira e às instabilidades políticas e econômicas que
envolvem a América do Sul, em especial Venezuela, Bolívia e Colômbia, além do
desenvolvimento de técnicas de enriquecimento de urânio, das demandas por energia e dos
problemas de segurança pública que atingem o Rio de Janeiro (e que associam o tema de
maneira mais visível à atuação das Forças Armadas), a defesa foi elevada na agenda política à
164
condição de problema, de tal modo que o seu enfrentamento causará menores ônus políticos e
financeiros do que se colocado num nível de prioridade menor.
A mobilização política e o reconhecimento da crise justificam a
oportunidade aguardada pelos atores a quem a defesa interessa mais de perto, seja para
influenciar ou levar adiante projetos que não recebiam apoio (institucional ou financeiro), seja
para legitimar a composição de novos entendimentos políticos. Resta saber quem,
efetivamente, será o beneficiário dessas vantagens, dessas deliberações. Essa é uma pergunta
que, talvez, o transcurso do tempo e os efeitos das medidas que venham a ser adotadas
possam ajudar a esclarecer. Mas, a aprovação da política de defesa, levada a efeito na forma
do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005, garante a transformação da decisão em ação, em
toda a sua amplitude? É o que se pretende abordar a seguir.
O texto da política de defesa dispõe de uma parte introdutória na qual é
esclarecido que o escopo consiste, preponderantemente, na atuação do poder público em face
de ameaças externas. Recebido como a exteriorização da decisão política tomada, ao Decreto
no 5.484, de 2005, foi atribuída a natureza de “documento condicionante de mais alto nível do
planejamento de defesa”178. Sua finalidade, segundo consta, é a de “estabelecer objetivos e
diretrizes para o preparo e o emprego da capacitação nacional”, para cujo desiderato hão de
concorrer os setores militar e civil, “em todas as esferas do Poder Nacional”179, sob a
coordenação do Ministério da Defesa. Adicionalmente ao que foi mencionado, importa
considerar que as expressões “capacitação nacional” e “poder nacional” são elementos
simbólicos capazes de englobar, de um lado, as riquezas e as potencialidades humanas,
naturais e materiais do país, e, de outro, as forças políticas que as influenciam e exercem
predomínio sobre o tema. O texto da política de defesa nacional se divide em sete partes,
assim denominadas: “O Estado, a Segurança e a Defesa”, “O Ambiente Internacional”, “O
178 Cf. parte introdutória do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005. 179 Cf. parte introdutória do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.
165
Ambiente Internacional e o Entorno Estratégico”, “O Brasil”, “Os Objetivos da Defesa
Nacional”, “Orientações Estratégicas” e, por fim, “Diretrizes”. As cinco primeiras foram
consideradas como partes políticas, enquanto as duas últimas estratégicas. Considerada a
abordagem até então empreendida, convém, a partir de agora, tecer algumas ponderações a
respeito dos objetivos, das orientações estratégicas e das diretrizes.
Os objetivos da defesa nacional, de natureza política, foram alinhavados nos
seguintes termos180:
As relações internacionais são pautadas por complexo jogo de atores, interesses e normas que estimulam ou limitam o poder e o prestígio das Nações. Nesse contexto de múltiplas influências e de interdependência, os países buscam realizar seus interesses nacionais, podendo gerar associações ou conflitos de variadas intensidades. Dessa forma, torna-se essencial estruturar a Defesa Nacional de modo compatível com a estatura político-estratégica para preservar a soberania e os interesses nacionais em compatibilidade com os interesses da nossa região. Assim, da avaliação dos ambientes descritos, emergem objetivos da Defesa Nacional: I – a garantia da soberania, do patrimônio nacional e da integridade territorial; II – a defesa dos interesses nacionais e das pessoas, dos bens e dos recursos brasileiros no exterior; III – a contribuição para a preservação da coesão e unidade nacionais; IV – a promoção da estabilidade regional; V – a contribuição para a manutenção da paz e da segurança internacionais; VI – a projeção do Brasil no concerto das nações e sua maior inserção em processos decisórios internacionais.
Esses objetivos são, em sua maioria, voltados ao cenário internacional. Mas,
sem desmerecer os demais, há de se convir que aquele que trata da “contribuição para a
preservação da coesão e unidade nacionais” é o único capaz de proporcionar efetividade aos
demais, sob a ótica da legitimidade que deve fundamentar o estado democrático de direito.
180 Cf. item 5 do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.
166
Então, como preservar a coesão e a unidade nacionais sem a certeza de que esses dois
elementos estão presentes ou podem ser desenvolvidos na sociedade? Em que pese o Brasil se
constituir como unidade territorial181, a coesão não pode deixar de ser questionada, ou melhor,
ponderada quanto às diferenças de oportunidade, de crescimento e de expectativa de
distribuição de riqueza. Para constatar esse fenômeno, basta percorrer o olhar nas
desigualdades regionais e sociais que refletem as diferenças das condições de vida da
população brasileira182.
As vulnerabilidades do país e as correspondentes estratégicas dissuasórias
estão correlacionadas aos temas de segurança, defesa e políticas públicas destinadas à
melhoria da qualidade de vida das pessoas. Essa constatação ganha relevância quando
conhecidos determinados dados estatísticos do Brasil. Na abordagem do estado das cidades
brasileiras, F. de Carvalho (2006, p. 30) registra que no país há 53 milhões de pessoas
vivendo em favelas urbanas e 4,2 milhões de bóias-frias no campo. O autor também destaca
pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, segundo a qual o déficit habitacional cresceu 16,6%
nos últimos dez anos, alcançando o número de 7,3 milhões de moradias em 2005. Interessante
observar que esse quadro está concentrado na região sudeste que, considerada a mais rica do
país, tem nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais 38% da falta de moradias,
fato que explica os contrastes entre geração e distribuição de riqueza, o que leva ao cenário de
marginalização, estigma, profunda estratificação social, violência e tráfico de drogas:
Em termos absolutos, o Brasil abriga a maior concentração de pobres do Hemisfério Ocidental. A grande concentração de pobreza urbana está no eixo Rio-São Paulo, sendo que somente a região do Grande Rio abriga a quarta parte da pobreza metropolitana do país.
181 Em termos formais, de acordo com o que prescreve o art. 1o da Constituição Federal de 1988: “A República
Federativa do Brasil, formada pela União indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito [...].”
182 Detalhes desse quadro constam da publicação Radar Social 2006 – Condições de Vida no Brasil, elaborada em julho de 2006 pelo IPEA. Disponível em: <www.ipea.gov.br>. Acesso em: 30 de maio de 2008.
167
Não se pode falar em liberdades individuais, muito menos em democracia, na faixa de pobreza e indigência, de modo que esse panorama configura um círculo vicioso de miséria e violência: povo miserável e ignorante, que desconhece os seus direitos às liberdades individuais e elege e reelege políticos ineptos e corruptos, que só contribuem para perpetuar a ignorância e agravar a miséria. (F. DE CARVALHO, 2006, p. 31)
As orientações estratégicas e as diretrizes da política de defesa nacional são
essencialmente de natureza política. Não há estratégia dissociada da política, ou melhor, é a
decisão política que estrutura, legitima e proporciona os mecanismos necessários a
implementar situação que passou de estado de coisas a problema político, indicando o que
precisa ser enfrentado e resolvido sob a forma de estratégias. Para reforçar esse argumento,
convém verificar a redação dada aos seguintes dispositivos da política de defesa:
Orientações Estratégicas: 6.7 As Forças Armadas devem estar ajustadas à estatura político-estratégica do País, considerando-se, dentre outros fatores, a dimensão geográfica, a capacidade econômica e a população existente. 6.20 O desenvolvimento de mentalidade de defesa no seio da sociedade brasileira é fundamental para sensibilizá-la acerca da importância das questões que envolvam ameaças à soberania, aos interesses nacionais e à integridade territorial do País. Diretrizes: 7.1 As políticas e ações definidas pelos diversos setores do Estado brasileiro deverão contribuir para a consecução dos objetivos da Defesa Nacional. Para alcançá-los, devem-se observar as seguintes diretrizes estratégicas: XIV – promover a interação das demais políticas governamentais com a Política de Defesa Nacional; XVI – incentivar a conscientização da sociedade para os assuntos de Defesa Nacional;
Da leitura desses dispositivos, constata-se que fatores tais como a
capacidade econômica e a população, como também a sensibilização da sociedade para gerar
motivação para agir não são atingíveis apenas pela fixação de orientações estratégicas
formais, as quais, muitas vezes, se restringem ao campo das idéias. Para gerar efeitos práticos
devem ser impulsionados pela vontade política. De igual modo, diretrizes voltadas a diversos
168
setores do país com o objetivo de promover a integração de políticas governamentais e
incentivar a conscientização da sociedade tendem a não lograr êxito se desprovidas de poder e
de vontade política. Nesse ponto está delineado um significativo problema que precisa ser
novamente frisado: a representatividade política da sociedade. A soberania popular está, de
fato, devidamente representada? Aguiar elucida (2000, p. 263-264):
Política é luta pelo poder. Poder é relação entre comando e obediência, em redes conflitantes, que transitam do macropoder para o micropoder. Se a política é luta pelo poder, ela é, no mínimo, jogo e, no máximo, guerra. Esse é um resumo grosseiro da explicação vigente de política. Embora a ciência política desenvolva sua teorização analisando essa teia de relações descrita, as abordagens filosóficas ou econômicas, explícita ou implicitamente, esperam por um momento em que as sociedades estarão de tal forma transformadas, seja pela mão invisível do mercado, seja pela revolução, que não haverá mais lugar para esses jogos, estratégias e táticas. Todos têm uma nostalgia da não política, do não-jogo e da não guerra. A sociedade sem classes é um típico sonho nesse sentido. No fundo, com todos os conflitos, a política está prenhe de uma outra política, que é a sua contradição e superação. A política, nos moldes atuais, é a tradução mais explícita do padrão civilizatório da competição, do entrechoque de interesses e da crença na inviabilidade da solidariedade no gênero humano. Os seres humanos, naturalmente, são divididos e não conseguem transcender sua situação grupal e seu papel na hierarquia grupal. A política é um desenfreado processo de luta pela hegemonia, pela conquista de espaços, que culmina no exercício do poder. Além de traduzir o que foi descrito, essa política expressa uma compreensão da sociedade e o papel de seus componentes muito própria. Para ela, os seres humanos são diferentes, mas essa diferença, que poderia ser símbolo de riqueza e de surgimento de unidades mais densas, é considerada um empecilho para a realização de certo tipo de ordem, que confunde segurança com homogeneidade, diferença com risco e identidade com perigo.
Nessa linha, Rua (1998, p. 250) explica que o jogo político, formado por
“cálculos políticos, de curto, médio e longo alcance”, envolve todos os tipos de atores, desde
os organizacionais aos coletivos. Os primeiros defendem interesses organizacionais ou usam
sua influência para favorecer interesses e ambições pessoais, enquanto os segundos podem ou
não agir em defesa dos interesses das coletividades a que pertencem. A autora assinala que as
vantagens que decorrem do jogo político são de cunho individual, coletivo ou organizacional
169
e têm origem nas mais variadas formas de alianças, de todas as estratégicas e recursos
possíveis:
O que move o jogo do poder não é a lógica de curso de ação, nem as rotinas organizacionais, nem a excelência técnica de cada alternativa, mas o poder efetivo e as habilidades políticas dos proponentes e dos adversários de uma alternativa para negociar, barganhar até obter uma solução que lhes seja satisfatória, em determinado problema político.
Para Rua (1998, p. 250-251), a decisão tomada em política pública nada
mais é do que “um amontoado de intenções sobre a solução de um problema, expressas na
forma de determinações legais: decretos, resoluções etc”. Há, pois, uma grande distância entre
decidir e implementar e entre implementar e atender ao fim coletivo colimado. Cabe, então,
indagar: a política de defesa é decisão política destinada a permanecer por longo tempo (ou
indefinidamente) no campo das idéias? A legitimidade e a efetividade daquela política
constituem o núcleo do problema político-estratégico ora suscitado:
O que garante a transformação de uma decisão em ação, nos regimes democráticos? A efetiva resolução de todos os pontos de conflito envolvidos naquela política pública. Essa “efetiva resolução” não significa nada tecnicamente perfeito. Significa o que politicamente se considera uma “boa decisão”: uma decisão em relação à qual todos os atores relevantes acreditem que saíram ganhando algo e nenhum deles acredite que saiu completamente prejudicado. Como essa solução é realmente difícil de ser obtida, apesar de todas as possibilidades de negociação, então considera-se também uma “boa decisão” aquela que foi a melhor possível naquele momento específico. Isso, na prática, quer dizer que naquele momento todos os atores dotados de efetivos recursos de poder para inviabilizar uma política pública devem acreditar que saíram ganhando alguma coisa e nenhum ator dotado de efetivos recursos de poder para inviabilizar a política pública acredite que saiu prejudicado com a decisão. Ou seja, a ausência de ganhos e os prejuízos reais, em um momento específico, devem estar limitados àqueles atores que não são capazes de mobilizar recursos de poder para impedir que a decisão se transforme em ação. (RUA, 1998, p. 251)
Política e políticas públicas são instrumentos distintos que exercem
influência recíproca, entrelaçados que estão no sistema político e ligados ao poder originário
da sociedade civil. As políticas têm conceito amplo, enquanto as políticas públicas
170
correspondem a ações ou soluções específicas que conduzem assuntos públicos. P. Lahera
(2004, p. 7 e 8-10) formula os seguintes apontamentos a respeito do que é ou poderá vir a ser
uma boa política pública:
Una política pública de excelencia corresponde a aquellos cursos de acción y flujos de información relacionados con un objetivo definido en forma democrática; los que son desarrollados por el sector público y, frecuentemente, con la participación de la comunidad y el sector privado. Una política pública de calidad incluirá orientaciones o contenidos, instrumentos o mecanismos, definiciones o modificaciones institucionales, y la previsión de sus resultados. Lo principal es la idea, el punto de vista, o el objetivo desde el cual plantear o analizar normas o disposiciones. Así es posible considerar a una norma o decisión o a varias (como el “programa” de Estados Unidos). También se ha usado la expresión “espacio de las políticas” para denotar un conjunto de políticas tan interrelacionadas que no se pueden hacer descripciones o enunciados analíticos útiles de ellas sin tener en cuenta los demás elementos del conjunto. [...] El concepto de políticas públicas incluye tanto temas de gobierno como de Estado. Estas últimas son, en realidad, políticas de más de un gobierno, lo que plantea una especificidad política. También es posible considerar como políticas de estado aquellas que involucran al conjunto de los poderes del estado en su diseño o ejecución.
Torres (2004, p. 8-9) destaca que os estudos da relação entre regimes
políticos e políticas públicas devem enfrentar o problema do poder, as instituições, os atores
das políticas e os fatores que distorcem a ação pública. O Estado institucionalmente frágil tem
sua capacidade de agir limitada. Os regimes políticos marcam as restrições e as possibilidades
de estruturação das políticas públicas. Cada realidade tem uma política. Por sua vez, as
políticas públicas não podem ser analisadas em si mesmas, isoladamente. É indispensável –
frise-se – conhecer o regime e o governo. Os governos precisam definir prioridades voltadas a
levar o país a situações preestabelecidas de desenvolvimento. Semelhantemente, Faria (2003,
p. 25-26) explicita que o êxito de uma dada política pública dependerá da coordenação e
articulação político-administrativa marcadas por uma boa gestão de continuidade e
171
convergência de interesses e necessidades. Para tanto, recomenda estabelecer uma forte
orientação regional num verdadeiro esforço de focalização com o propósito de evitar
problemas de clientelismo e corrupção, entre outros.
Não é demais lembrar que o desencadeamento desses fatores depende das
circunstâncias do momento político e de oportunidade, de modo que toda política pública,
inclusive a de defesa, está sujeita às oscilações de poder e de influência, de priorização ou
não. A essa conjugação de vontade e oportunidade são somados os estudos trazidos por Rua
(1998, p. 252), que apontam dez pré-condições ao êxito de uma política:
1. as circunstâncias externas à agência implementadora não devem impor restrições que desvirtuem a natureza da política; 2. a política ou o programa deve dispor de tempo e de recursos suficientes; 3. não apenas deve ter restrições em termos de recursos globais, mas também, em cada estágio da implementação, a combinação necessária de recursos humanos, financeiros e materiais deve estar efetivamente disponível no momento adequado; 4. a política a ser implementada em uma teoria correta sobre a relação entre a causa – de um problema – e o efeito – da solução que está sendo proposta; 5. essa relação entre causa e efeito deve ser direta e, se houver fatores intervenientes, esses devem ser mínimos; 6. a responsabilidade pela implementação deve estar claramente atribuída a uma só agência, que não depende de outras agências para ter sucesso; se outras agências estiverem envolvidas, a relação de dependência deverá ser mínima em número e em importância; 7. deve haver completa compreensão e consenso quanto aos objetivos a serem atingidos e essa condição deve permanecer durante todo o processo de implementação; 8. ao avançar em direção aos objetivos estabelecidos, deve ser possível especificar, em detalhes completos e em seqüência perfeita, as tarefas a serem realizadas por cada participante; 9. é necessário que haja perfeita comunicação e coordenação entre os vários agentes e agências envolvidas no programa; 10. os que exercem posições de comando devem ser capazes de obter efetiva obediência de seus comandados.
172
A política de defesa, de natureza singular, permanente, continuada e, em
tese, desvinculada da transitoriedade dos governos, ainda não foi implementada, pelo menos
em todo o seu conjunto. Requer, para tanto, a formação de consensos e um delicado processo
de convencimento dos atores políticos e da sociedade civil, construído dia-a-dia. Pode-se
dizer que a política de defesa está no campo dos princípios, posto que suas ações dependem
de várias e intercaladas decisões, além da formulação de outras políticas públicas que, via de
regra, não obedecem à mesma cronologia e aos mesmos critérios de relevância e prioridade.
Prova desse estágio de amadurecimento está na determinação do atual governo de reformular
a política e estabelecer o que chamou de estratégia nacional de defesa. Será preciso
ponderação para que os estudos nesse sentido não resultem retrocesso nos avanços até então
obtidos183.
2.2.2 Defesa e mobilização nacional
Nos debates depreendidos ao longo do presente trabalho, a política de defesa
não faz sentido se desprendida do que se convencionou denominar de mobilização, expressão
que no tecnicismo da caserna significa o conjunto de medidas necessárias para fazer face ao
esforço da batalha ou da dissuasão para evitar ou minimizar o confronto. No contexto
democrático, essa expressão abrangente e com fortes traços de subjetividade se aproxima da
idéia de compor consensos, na medida em que seus efeitos adquirem natureza vinculatória
quando utilizada na concepção de defesa. Portanto, a aplicação desse instituto (na tentativa de
estabelecer uma categoria) requer acurada cautela para não servir de simples
instrumentalização do direito por parte do poder político, ante os postulados constitucionais,
as competências das instituições, das autoridades, dos órgãos e dos colegiados envolvidos,
183 Essa postura foi exteriorizada pelo Decreto de 6 de setembro de 2007, que instituiu o Comitê Interministerial
de Formulação da Estratégia Nacional de Defesa, encarregado de elaborar proposta de estratégia nacional de defesa e de atualização da política de defesa, de estratégia nacional de desenvolvimento de longo prazo. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 11 de setembro de 2007.
173
além, por certo, das prerrogativas, dos direitos e dos deveres inerentes ao estado de direito,
especialmente as liberdades públicas.
Por essas razões, revela-se pertinente tecer alguns comentários a respeito da
recente Lei no 11.631, de 27 de dezembro de 2007184, de iniciativa do Poder Executivo
Federal. É preciso indicar as assimetrias valorativas na aplicação e interpretação desse novo
diploma legal, cujos contrastes podem influir nos institutos jurídicos inter-relacionados ao
tema e, por conseguinte, prejudicar ou, até mesmo, inviabilizar a plena adoção das medidas
voltadas à legitimidade da execução das atividades de mobilização nacional e, por
conseguinte, de defesa. Para melhor compreender o objeto estudado, é preciso trazer uma
preliminar, resumida na seguinte pergunta: a mobilização nacional está compreendida no
contexto da defesa e, por conseguinte, da respectiva política, da qual seria um instituto
jurídico acessório, ou seja, não possuiria natureza auto-executória e, portanto, suas noções
estariam no conceito e no conteúdo da política de defesa, observadas as limitações de ordem
constitucional? A reflexão a respeito dessa pergunta não dispensa a leitura do inc. XIX do art.
84 da Carta Política de 1988, que atribui competência privativa ao Presidente da República
para a prática do seguinte ato:
XIX – declarar guerra185, no caso de agressão estrangeira, autorizado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele186, quando ocorrida no intervalo das sessões legislativas, e, nas mesmas condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização nacional;
O conceito de mobilização contido no inc. I do art. 2o da Lei no 11.631, de
27 de dezembro de 2007:
184 Dispõe sobre a Mobilização Nacional e cria o Sistema Nacional de Mobilização – SINAMOB. Entrou em
vigor no dia 28 de dezembro de 2007. 185 Lembre-se que o Brasil rege suas relações internacionais, entre outros, pelos princípios de autodeterminação
dos povos, de não-intervenção, de igualdade entre os Estados, de defesa da paz e de solução pacífica dos conflitos, nos termos dos incs. III, IV, V, VI e VII do art. 4o da Constituição Federal de 1988.
186 No que tange aos procedimentos afetos à declaração de guerra, não é demais dizer que o ato do Presidente da República, na qualidade de Chefe de Estado, há de se encontrar, sempre, restrito aos princípios de ordem constitucional, sujeito e vinculado ao Congresso Nacional, prévia ou – excepcionalmente – posteriormente, observado o disposto nos incs. II, IV e V do art. 49; inc. XIX do art. 84; inc. I do art. 90; incs. I e II do § 1o do art. 91; e art. 136, todos da Constituição Federal de 1988.
174
[...] Mobilização Nacional, o conjunto de atividades planejadas, orientadas e empreendidas pelo Estado, complementando a Logística Nacional, destinadas a capacitar o País a realizar ações estratégicas, no campo da Defesa Nacional, diante de agressão estrangeira;
A análise também não pode deixar de observar os seguintes excertos da
Exposição de Motivos Interministerial no 472/MD/MJ/MRE/MP/MCT/SECOM-
PR/MF/MI/GSI-PR/CCIVIL-PR, de 2 de outubro de 2003187, que deu início à proposta da Lei
de Mobilização Nacional:
2. A Mobilização Nacional consiste no conjunto de atividades planejadas, orientadas e empreendidas pelo Estado, desde a situação de normalidade, complementando a Logística Nacional, com o propósito de capacitar o País a realizar ações estratégicas no campo da Defesa Nacional para fazer face a uma agressão estrangeira. 3. É, portanto, uma atividade essencial à Defesa Nacional, a qual envolve todas as expressões do Poder Nacional em um processo amplo e global, que visa à criação de mecanismos de defesa contra possíveis agressões estrangeiras que ponham em risco a soberania nacional e a integridade territorial.
No que tange à mobilização nacional, a política de defesa consignou a
“capacidade de mobilização nacional” como um dos pressupostos básicos188 de suas
Orientações Estratégicas, sendo relevante transcrever os dispositivos que mais se aproximam
das questões suscitadas na presente análise:
6.1 A atuação do Estado brasileiro em relação à defesa tem como fundamento a obrigação de contribuir para a elevação do nível de segurança do País, tanto em tempo de paz, quanto em situação de conflito. 6.2 A vertente preventiva da Defesa Nacional reside na valorização da ação diplomática como instrumento primeiro de solução de conflitos e em postura estratégica baseada na existência de capacidade militar com credibilidade, apta a gerar efeito dissuasório.
187 Objeto do Projeto de Lei no 2.272/2003, sob a competência privativa da União para legislar sobre defesa
nacional, defesa aeroespacial, defesa marítima, defesa civil e mobilização nacional, nos termos do inc. XXVIII do art. 22 da Constituição Federal de 1988. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acessado em: 28 de abril de 2008.
188 Além da “capacidade de mobilização nacional”, as Orientações Estratégicas da Defesa Nacional compreendem os seguintes pressupostos: “fronteiras e limites perfeitamente definidos e reconhecidos internacionalmente; estreito relacionamento com os países vizinhos e com a comunidade internacional baseado na confiança e no respeito mútuos; rejeição à guerra de conquista; busca da solução pacífica de controvérsias; valorização dos foros multilaterais; e existência de forças armadas modernas, balanceadas e aprestadas” (incs. I a VI do subitem 6.2 do anexo do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005).
175
6.3 A vertente reativa da defesa, no caso de ocorrer agressão ao País, empregará todo o poder nacional, com ênfase na expressão militar, exercendo o direito de legítima defesa previsto na Carta da ONU. 6.5 No gerenciamento de crises internacionais de natureza político-estratégica, o Governo determinará a articulação dos diversos setores envolvidos. O emprego das Forças Armadas poderá ocorrer de diferentes formas, de acordo com os interesses nacionais. 6.6 A expressão militar do País fundamenta-se na capacidade das Forças Armadas e no potencial dos recursos nacionais mobilizáveis. 6.9 O fortalecimento da capacitação do País no campo da defesa é essencial e deve ser obtido com o envolvimento permanente dos setores governamental, industrial e acadêmico, voltados à produção científica e tecnológica e para a inovação. O desenvolvimento da indústria de defesa, incluindo o domínio de tecnologias de uso dual, é fundamental para alcançar o abastecimento seguro e previsível de materiais e serviços de defesa. 6.20 O desenvolvimento de mentalidade de defesa no seio da sociedade brasileira é fundamental para sensibilizá-la acerca da importância das questões que envolvam ameaças à soberania, aos interesses nacionais e à integridade territorial do País.
Da leitura das transcrições acima, torna-se possível depreender que o escopo
da defesa e da idéia de mobilização consiste, essencialmente, em estabelecer mecanismos
capazes de viabilizar a construção de uma consciência coletiva para o fim de congregar e
conferir legitimidade às ações que envolverão todos os atores sociais (públicos e privados),
quando do estabelecimento do “esforço” comum voltado ao preparo e ao emprego da
capacitação nacional, tendo por fim evitar ou diminuir as vulnerabilidades do país,
notadamente em face de eventuais agressões potenciais ou manifestas, de natureza militar ou
não. Soma-se a essas colocações o fato de que, na seara constitucional, o tema mobilização
está atrelado aos atos extraordinários de declaração de guerra e de resposta a agressão189, de
competência privativa do Presidente da República190. Note-se, porém, que a declaração de
guerra transcende a atuação da autoridade presidencial como Chefe de Governo (Poder
189 Considerado o direito de legítima defesa previsto no item 6.3 do anexo do Decreto no 5.484, de 30 de junho
de 2005, os princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil e o disposto no art. 51 da Carta das Nações Unidas, de 26 de junho de 1945. Disponível em: <www.unesco.org.br>. Acessado em: 28 de abril de 2008.
190 Cf. art. 84, XIX da Constituição Federal de 1988.
176
Executivo), que pratica esse ato na qualidade de Chefe de Estado191, encontrando-se, nessa
singular hipótese, compelido a sujeitar os procedimentos à aprovação do Congresso Nacional,
tendo em vista a extensão de seus efeitos.
Cumpre esclarecer que a Carta Política de 1988 aborda a mobilização
nacional em dois momentos. Primeiramente quando determina, no inc. III do art. 22, que a
prerrogativa de legislar sobre a matéria compete privativamente à União. Importa salientar
que essa competência se refere à iniciativa das leis e não à edição unilateral de normas, por
parte do Poder Executivo ou do Chefe de Estado na representação da República que, como
sabido, tem como Poderes, “independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e
o Judiciário”192. Daí resulta que a legitimidade dos postulados legais, em razão da matéria,
decorrerem da aprovação pelo Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado
Federal)193. Na segunda oportunidade, a mobilização é referida no inc. XIX do art. 84,
esclarecendo que o instituto poderá ser decretado, total ou parcialmente, também por ato de
competência privativa do Presidente da República, desde que atendidas as seguintes
condições: (i) existência de agressão estrangeira em que se fundamenta a declaração de guerra
e (ii) prévia autorização do Congresso Nacional, que poderá posteriormente referendar o ato,
no caso de intervalo das sessões legislativas. Lembre-se que a hipótese de agressão militar
estrangeira há de ser distinta das “novas ameaças” exemplificadas na política de defesa194.
Trespassam essas condições os institutos constitucionais que preceituam
sobre a defesa e o sítio. A ordem constitucional vigente não estabeleceu o que se poderia
chamar, apenas para fins didáticos, de “estado de mobilização”. O poder constituinte que deu
191 Cf. Kildare Gonçalves Carvalho (op. cit., p. 509). 192 Cf. art. 2o da Constituição Federal de 1988. 193 Em observância aos ritos previstos para as hipóteses do art. 49, II e IV da Constituição Federal de 1988
(“autorizar o Presidente da República a declarar guerra, a celebrar a paz, a permitir que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente, ressalvados os casos previstos em lei complementar” e “aprovar o estado de defesa e a intervenção federal, autorizar o estado de sítio, ou suspender qualquer uma dessas medidas”).
194 Cf. itens 1.2, 1.4-II, 2.6, 4.8, 6.8, 6.13 e 6.16 do anexo do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.
177
origem à Carta Política de 1988 previu, apenas, no título que trata da defesa do Estado e das
instituições democráticas, os institutos do estado de defesa (art. 136) e do estado de sítio (art.
137), que têm significativos efeitos no regime das garantias constitucionais e, por
conseguinte, das liberdades públicas e do direito de propriedade. O estado de defesa visa a
“preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública
ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por
calamidades de grandes proporções na natureza”, enquanto o estado de sítio se aplica a casos
de “comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a
ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa”, a admitir, por derradeiro, a
“declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira”. Conhecidos os
casos em que o estado de defesa e o estado de sítio podem ser utilizados na defesa do Estado e
das instituições democráticas, torna-se relevante abordar, brevemente, os procedimentos
afetos à concretização desses institutos, a partir da leitura dos artigos 136 a 141 da Carta
Política de 1988.
Tanto o estado de defesa quanto o estado de sítio podem ser decretados pelo
Presidente da República mediante a prévia e necessária oitiva195 do Conselho da República196
e do Conselho de Defesa Nacional197. Na decretação do estado de defesa não é exigida a
prévia aprovação do Congresso Nacional, porém, uma vez praticado o ato, o Presidente da
República deverá submetê-lo àquela instituição, com as devidas justificativas, no prazo de
vinte e quatro horas, para fim de decisão a respeito, por maioria absoluta, no prazo de dez dias
contado do recebimento do pedido; se em recesso, dar-se-á convocação extraordinária no
prazo de cinco dias, período em que vigoram, sem suspensão, os efeitos das medidas. Em
contrapartida, a decretação do estado de sítio depende da prévia aprovação do Congresso 195 Procedimento previsto no caput dos artigos 136 e 137 da Constituição Federal de 1988. 196 A competência do Conselho da República consta do art. 90 da Constituição Federal de 1988, e sua
organização e funcionamento são disciplinadas pela Lei no 8.041, de 5 de junho de 1990. 197 A competência do Conselho da Defesa Nacional consta do art. 1o do art. 91 da Constituição Federal de 1988,
e sua organização e funcionamento constam da Lei no 8.183, de 11 de abril de 1991.
178
Nacional, cabendo ao Presidente da República, quando do pedido, relatar os motivos que
determinaram a escolha da medida, de modo a que a decisão seja tomada também por maioria
absoluta; no caso de recesso, o Presidente da Casa imediatamente convocará sessão
extraordinária para apreciação no prazo de cinco dias, devendo permanecer em
funcionamento enquanto durar a execução das medidas.
A decretação do estado de defesa, cujos efeitos alcançarão apenas locais
restritos e determinados, determinará o tempo de duração das medidas, as áreas abrangidas e a
indicação, de acordo com os termos e os limites da lei198, das medidas coercitivas que serão
aplicáveis, a abranger, exclusivamente, as hipóteses de restrições de direitos e de ocupação e
uso temporário de bens públicos (no caso de calamidade pública), não podendo ultrapassar o
período de trinta dias, prorrogável uma única vez desde que mantidos os motivos
determinantes. Por seu turno, o ato que decretar o estado de sítio também especificará a
duração da medida, as normas necessárias à sua execução e as garantias constitucionais que
serão suspensas, observado o prazo máximo de trinta dias de vigência para a hipótese de
“comoção grave de repercussão nacional” ou de “ocorrência de fatos que comprovem a
ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa”. No caso de “decretação de estado
de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira”, o estado de sítio poderá vigorar
enquanto durar a guerra ou a agressão armada estrangeira.
Verifica-se que o estado de defesa constitui etapa intermediária das medidas
extraordinárias previstas para o estado de sítio, cuja valoração jurídica, em face da amplitude
de efeitos, é mensurada pela necessidade de prévia aprovação do Congresso Nacional e da
possibilidade de suspensão (e não supressão) de garantias constitucionais, quando se tratar de
guerra ou de resposta a agressão armada estrangeira, cabendo ao Presidente da República
198 O emprego da expressão “nos termos e limites da lei” no § 1o do art. 136 da Constituição Federal de 1988
revela que o Poder Constituinte assegurou, mesmo quando da aplicação das medidas excepcionais de natureza coercitiva, a observância dos direitos e garantias fundamentais consignados no art. 5o da Carta Política.
179
designar, por força constitucional, o executor das medidas e as áreas de abrangência. A
aproximação da mobilização com os pressupostos do estado de defesa e do estado de sítio
pode ser verificada na comparação entre as medidas coercitivas previstas nesses institutos:
Estado de Defesa Estado de Sítio Mobilização Nacional
Art. 136, § 1o, da CF/88:
I - restrições aos direitos de:
a) reunião, ainda que exercida no seio das associações;
b) sigilo de correspondência;
c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica; e
II - ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes.
§ 3o Na vigência do estado de defesa:
[...]
I - a prisão por crime contra o Estado, determinada pelo executor da medida, será por este comunicada imediatamente ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal, facultado ao preso requerer exame de corpo de delito à autoridade policial;
II - a comunicação será acompanhada de declaração, pela autoridade, do estado físico e mental do detido no momento de sua autuação;
III - a prisão ou detenção de qualquer pessoa não poderá ser superior a dez dias, salvo quando autorizada pelo Poder Judiciário; e
IV - é vedada a incomunicabilidade do preso.
Art. 139 da CF/88:
I - obrigação de permanência em localidade determinada;
II - detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns;
III - restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei;
IV - suspensão da liberdade de reunião;
V - busca e apreensão em domicílio;
VI - intervenção nas empresas de serviços públicos; e
VII - requisição de bens.
Art. 4o, parágrafo único, da Lei no 11.631/07:
I - a convocação dos entes federados para integrar o esforço da Mobilização Nacional;
II - a reorientação da produção, da comercialização, da distribuição e do consumo de bens e da utilização de serviços;
III - a intervenção nos fatores de produção públicos e privados;
IV - a requisição e a ocupação de bens e serviços;
V - a convocação de civis e militares.
180
Note-se, por relevante, que as medidas coercitivas constitucionalmente
previstas para o estado de defesa se referem apenas às hipóteses de “comoção grave de
repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada
durante o estado de defesa”199, não tendo o Poder Constituinte de 1988 detalhado, nesse
sentido, as medidas coercitivas aplicáveis à hipótese de “declaração de estado de guerra ou
resposta a agressão armada estrangeira”200, limitando-se a prescrever a possibilidade de
suspensão das garantias constitucionais, isto é, aquelas pertencentes ao sistema de liberdades
públicas e de dignidade da pessoa humana, provavelmente porque somente a iminência da
situação extrema de beligerância (estado de guerra ou resposta a agressão armada) será capaz
de efetivamente revelar as possíveis restrições aos direitos fundamentais, observados, por
certo, os procedimentos previstos pela ONU201, ante os princípios que regem as relações
internacionais do Brasil.
É preciso refletir sobre o conceito de defesa contido no estado de defesa e
no estado de sítio. No primeiro caso, as medidas se destinam a preservar ou prontamente
restabelecer a ordem pública202 e a paz social203. Observe-se que a natureza desse instituto
será preventiva ou restauradora. A aplicabilidade do estado de defesa se fundamenta em duas
hipóteses de ameaça à ordem pública e à paz social: (i) grave e iminente instabilidade
institucional e (ii) calamidades de grande proporção na natureza. A primeira hipótese abrange 199 Cf. art. 137, I da Constituição Federal de 1988. 200 Cf. art. 137, II da Constituição Federal de 1988. 201 Nos termos da previsão contida no subitem 6.3 do anexo do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005: “A
vertente reativa da defesa, no caso de ocorrer agressão ao País, empregará todo o poder nacional, com ênfase na expressão militar, exercendo o direito de legítima defesa previsto na Carta da ONU”.
202 Ordem pública, na definição de Pedro Nunes (Dicionário de tecnologia jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 784-785): “Conjunto de princípios jurídicos, éticos, políticos e econômicos, pelos quais se rege a convivência social, no interesse público. Situação de segurança e tranqüilidade do corpo comunitário, conseqüente à sinergia normal de seus órgãos, fiscalizados pelo poder de polícia. Distingue-se em: a) interna ou nacional, quando esses princípios são observados dentro do território do país; b) externa ou internacional, a que é proveniente do efeito produzido pelo conjunto de regras, ou institutos jurídicos que os povos civilizados adotam e uma nação aplica, para estabelecer e manter confraternização com as demais nações, as boas relações políticas, econômicas e jurídicas entre si, a harmonia e a segurança sociais, o bem-estar do povo, a paz e a concórdia comuns”.
203 A definição de paz pública, que se aplica ao termo, elaborada por Pedro Nunes (op. cit., p. 806): “Estado de ordem, harmonia e segurança na convivência humana, do que resulta o funcionamento normal do organismo social”.
181
a eventual ruptura dos preceitos formadores do estado democrático de direito, cujos efeitos
são capazes de atingir a união indissolúvel dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal,
como também – e quiçá principalmente – o exercício do poder soberano emanado do povo204
e, ainda, o princípio de separação dos Poderes da União caracterizado pela independência e
harmonia entre o Legislativo, o Executivo e o Judiciário205, sem desmerecer, por outro lado,
as hipóteses de ataques terroristas e, até mesmo, as perturbações causadas nas redes
cibernéticas, ante a interligação de interesses decorrente da mundialização das relações
negociais públicas e privadas.
O segundo caso de estado de defesa trata de calamidades de grandes
proporções na natureza. A esse respeito, cabe apenas registrar que, via de regra, o infortúnio
público representado por desastre de grande escala, embora possa decorrer de fatores oriundos
da natureza, também poderá ser o resultado, direto ou indireto, doloso ou culposo, da ação do
homem no ambiente, a causar desequilíbrios de conseqüências incalculáveis, não se podendo
descartar, inclusive, a atuação intencional de grupos cujos interesses residam em perturbar a
ordem pública e a paz social brasileiras, por meio de ações e procedimentos contrários às
regras democráticas.
Quanto ao estado de sítio, as medidas se dirigem a duas hipóteses distintas:
(i) “comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a
ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa” e (ii) “declaração de estado de
guerra ou resposta a agressão armada estrangeira”. A primeira se divide em duas
possibilidades. De um lado, a comoção de grave repercussão nacional é de difícil
exemplificação porque transita pelo senso coletivo da moral e dos valores éticos, que poderá
decorrer de um movimento de ofensa ou repúdio a determinado estado de coisas ou de
calamidade cujos efeitos ultrapassem os limites de determinada localidade, repercutindo no
204 Valor contido no parágrafo único do art. 1o da Constituição Federal de 1988. 205 Cf. art. 2o da Constituição Federal de 1988.
182
país como um todo, caracterizando-se, inclusive, como medida posterior ao estado de defesa.
A segunda hipótese encontra fundamento na declaração de estado de guerra206 ou resposta a
agressão armada estrangeira207, sendo a que mais interessa ao objeto da presente análise,
tendo em vista que sua aplicabilidade é indissociável à mobilização nacional, ou melhor, a
mobilização está compreendida no escopo dessa hipótese, ao cotejo do disposto no inc. XIX
do art. 84 da Carta Política de 1988208, tendo em vista que o pressuposto de legitimidade à
execução da mobilização, segundo a redação dada ao inc. I do art. 2o da Lei no 11.631, de
2007, reside na hipótese extrema de agressão estrangeira.
Ora, se o pressuposto da mobilização tem por fundamento a agressão
estrangeira, isto é, a preparação para a resposta à agressão e, por conseguinte, a declaração de
estado de guerra, conforme determinar, em cada caso, a seqüência dos fatos, logo a
mobilização não pode ser considerada individualmente tampouco gerar efeitos práticos
anteriores à ocorrência de eventual agressão estrangeira (ou à declaração de guerra), estando,
por conseguinte, afastada a sua legitimidade para as hipóteses de estado de defesa e, também,
para a maioria das hipóteses de estado de sítio. Entendimento contrário colocará o Brasil em
situação de beligerância iminente, circunstância diferente de vigilância permanente, essa na
linha do conceito de segurança da ONU. Essa constatação aponta para vício de
constitucionalidade da Lei no 11.631, de 2007, na medida em que se constata que seus
comandos ultrapassam as previsões constitucionais209.
206 Declaração de guerra, segundo Pedro Nunes (op. cit., p. 365): “Ato pelo qual o Estado notifica outro de que
considera rompidas as relações diplomáticas existentes entre ambos e de que vai dar início às hostilidades contra ele. É ordinariamente precedido de ultimatum e retirada dos agentes diplomáticos inimigos, seguindo-se-lhe as comunicações às nações neutras. A declaração estabelece o estado de guerra e dá aos conflitantes a qualidade de beligerantes.
207 A agressão, temática também assente no direito internacional público, foi definida por Pedro Nunes (op. cit., p. 71) nos seguintes termos: “Ataque armado de Estado contra outro, sem fundar-se na legítima defesa”.
208 Como visto anteriormente, o art. 84, XIX atribui competência privativa ao Presidente da República para declarar guerra.
209 Josemar Dantas criticou o projeto de lei no artigo intitulado Iniciativa totalitária, publicado no suplemento Direito & Justiça do jornal Correio Braziliense de 27 de fevereiro de 2006, p. 2.
183
Dessa feita, questão incidental não pode escapar do fio condutor da presente
análise. Trata-se da abrangência da política de defesa, de natureza multidisciplinar, posto que,
como dito repetidas vezes, não está limitada à atuação militar ou mesmo às ameaças externas
de natureza bélica. Observado que, para efeito daquela política, estão presentes as definições
de segurança e defesa, fruto dos estudos realizados por especialistas convocados pela ONU210,
não é desarrazoado sustentar que os institutos jurídico-constitucionais destinados à defesa do
Estado e das instituições democráticas estão abrangidos no escopo da política de defesa que,
dessa maneira, depende da Carta Política de 1988 mediante cautelosa e continuada
ponderação de valores, observadas as competências exclusivas do Congresso Nacional211 e os
direitos e garantias fundamentais212.
Portanto, é razoável argumentar que a mobilização, em termos valorativos e
procedimentais, não pode mitigar ou se sobrepor à defesa, posto que a primeira é acessória da
segunda, o que torna legítima a preocupação quanto à assimetria entre uma e outra, tendo em
vista que a primeira foi tratada por lei ordinária, enquanto a segunda por decreto autônomo de
efeitos limitados.
O Poder Constituinte de 1988 não instituiu o “estado de mobilização” como
mecanismo isolado e destinado à defesa do Estado e das instituições democráticas. A
mobilização se situa no escopo da defesa, sendo parte integrante do estado de sítio,
notadamente nas hipóteses de declaração de estado de guerra e de resposta a agressão armada
estrangeira. Verifica-se, por conseguinte, equívoco do constituinte na escolha da terminologia
“estado de defesa”. Nesse sentido, as medidas coercitivas que dizem respeito “a reorientação
da produção, da comercialização, da distribuição e do consumo de bens e da utilização de
210 Conforme a parte introdutória e o subitem 1.4 do anexo do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005. 211 Cf. art. 49, II, IV e V da Constituição Federal de 1988. 212 Insertos no art. 5o da Constituição Federal de 1988, especialmente aqueles presentes nos incisos II e XXV:
“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” e “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”.
184
serviços”, “a intervenção nos fatores de produção públicos e privados” e “a requisição e a
ocupação de bens e serviços”213 já se encontram compreendidas nos incisos VI e VII do art.
139214, para a hipótese de estado de sítio fundamentado no inc. I do art. 137 da Carta
Política215, não aplicáveis, portanto, à hipótese de declaração de estado de guerra ou resposta a
agressão armada estrangeira216, cujo espectro de abrangência, em razão da excepcionalidade
de seus efeitos, o texto constitucional remeteu à futura suspensão (e não supressão, frise-se)
das garantias fundamentais, determinável em cada caso concreto mediante pedido do
Presidente da República fundamentado em motivos plenamente determinantes.
Cabe considerar que a redação dada aos incisos II a IV do parágrafo único
do art. 4o da Lei no 11.631, de 2007, inova o direito constitucional quanto à inserção de
medidas coercitivas contra as liberdades públicas e o direito de propriedade, prevendo
hipóteses não contempladas pelo Poder Constituinte de 1988, circunstância que poderá
suscitar futura inconstitucionalidade, não obstante as manifestações favoráveis dos órgãos
colegiados do Poder Legislativo que examinaram o Projeto de Lei de origem. Então, como
dispor sobre a mobilização nacional, especialmente quanto às medidas coercitivas (ou
compulsórias) previstas na Lei no 11.631, de 2007? Uma alternativa: quando o Presidente da
República efetivamente formular o pedido, acompanhando dos motivos determinantes,
dirigido ao Congresso Nacional, por meio do qual será pleiteada a autorização para decretar o
estado de sítio na hipótese de declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada
estrangeira, incluindo-se a forma de atuação dos entes da República e a convocação ou
213 Medidas elencadas no art. 4o, parágrafo único, II a IV da Lei no 11.631, de 27 de dezembro de 2007. 214 São as seguintes: “intervenção nas empresas de serviços públicos” e “requisição de bens”. 215 Trata-se da hipótese de “comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a
ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa”. 216 Cf. art. 139, II da Constituição Federal de 1988.
185
requisição de civis e militares217, observados os ritos dos artigos 49, II, IV e V; 84, XIX, 90, I;
91, § 1o, I e II; e 137 a 141, todos da Carta Política de 1988.
Nessa linha de argumentação, restaria prejudicado o intento da Lei no
11.631, de 2007, que pretende estabelecer medidas coercitivas não constitucionalmente
previstas ou autorizadas pelo poder constituinte originário, de natureza antecipatória à
ocorrência de fatos ensejadores à decretação do estado de sítio sob o fundamento de eventual
declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.
Tendo em vista a prevalência das liberdades públicas218 e do direito de
propriedade, permeados, no caso, pelos princípios que regem as relações internacionais do
Brasil, caberia ao texto legal dispor apenas sobre a parte conceitual da mobilização (e da
conseqüente desmobilização) e, no que couber, do respectivo sistema (o SINAMOB), ao
amparo do art. 22, XXVIII da Carta Política de 1988, dispositivo que, embora mencione a
competência privativa da União para legislar sobre a matéria219, não expressamente previu a
possibilidade de lei ordinária que, a esse respeito, pudesse adentrar a esfera das garantias
constitucionais – diferentemente das hipóteses dos §§ 1o e 3o do art. 136 e do art. 139220 –,
ante a natureza excepcional das medidas e as competências exclusivas do Congresso
Nacional221.
217 A contemplar o art. 4o, I e V do parágrafo único da Lei no 11.631, de 2007: “a convocação dos entes
federados para integrar o esforço da Mobilização Nacional” e “a convocação de civis e militares”. 218 Sugere-se a leitura de Jean-Jacques Israel (Direito das liberdades fundamentais. Manole, 2005) e de
Alberto Nogueira (Direito constitucional das liberdades públicas. Renovar, 2003). 219 Lembre-se que o processo legislativo, previsto nos artigos 59 a 69 da Constituição Federal de 1988,
compreende a elaboração de emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções.
220 Aplicáveis somente na hipótese de estado de sítio, no caso de “comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa” (art. 137, I, da Constituição Federal de 1988.
221 Cf. art. 49, II e IV da Constituição Federal de 1988.
186
Essa posição ganha robustez quando comparadas as medidas da Lei no
11.631, de 2007, com as de sítio e de defesa:
Estado de Defesa Estado de Sítio Mobilização Nacional
Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.
§ 1o O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:
I - restrições aos direitos de:
a) reunião, ainda que exercida no seio das associações;
b) sigilo de correspondência;
c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica;
II - ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes.
[...]
Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de:
I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;
II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.
Parágrafo único. O Presidente da República, ao solicitar autorização para decretar o estado de sítio ou sua prorrogação, relatará os motivos determinantes do pedido, devendo o Congresso Nacional decidir por maioria absoluta.
Art. 138. O decreto do estado de sítio indicará sua duração, as normas necessárias a sua execução e as garantias constitucionais que ficarão suspensas, e, depois de publicado, o Presidente da República designará o executor das medidas específicas e as áreas abrangidas.
Art. 4o A execução da Mobilização Nacional, caracterizada pela celeridade e compulsoriedade das ações a serem implementadas, com vistas a propiciar ao País condições para enfrentar o fato que a motivou, será decretada por ato do Poder Executivo, autorizado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele, quando no intervalo das sessões legislativas.
Parágrafo único. Na decretação da Mobilização Nacional, o Poder Executivo especificará o espaço geográfico do território nacional em que será realizada e as medidas necessárias à sua execução, dentre elas:
I - a convocação dos entes federados para integrar o esforço da Mobilização Nacional;
II - a reorientação da produção, da comercialização, da distribuição e do consumo de bens e da utilização de serviços;
III - a intervenção nos fatores de produção públicos e privados;
IV - a requisição e a ocupação de bens e serviços; e
V - a convocação de civis e militares.
187
O quadro comparativo acima apenas demonstra que a mobilização está, de
fato, compreendida no escopo do estado de sítio e, por conseguinte, na política de defesa.
Ademais, embora o texto da Lei no 11.631, de 2007, assinale que a decretação da mobilização
dependerá de prévia aprovação do Congresso Nacional e que as medidas coercitivas ou
compulsórias são restritas a espaços geográficos delimitados do território nacional, não há
vinculação a período de vigência, a eventual possibilidade de prorrogação, a prazo para a
apreciação da proposta pelo Congresso Nacional, aos critérios para cessação ou rejeição e os
efeitos correspondentes. A ausência desses comandos implica reconhecer, uma vez mais, que
resta prejudicada a pretensão de antecipar a prática de medidas coercitivas não
constitucionalmente previstas ou autorizadas pelo Poder Constituinte, deslocadas, portanto, da
hipótese prevista no art. 137, II, não se coadunando – repita-se – com os ritos previstos nos
artigos 49, II, IV e V; 84, XIX, 90, I; 91, § 1o, I e II; 137 a 141, todos da Carta Política de
1988.
A respeito dos dispositivos que se referem à criação, à competência e aos
procedimentos do sistema de mobilização, o SINAMOB, de que tratam os artigos 5o a 10 da
Lei no 11.631, de 2007, cumpre registrar algumas preocupações afetas à legitimidade das
medidas. Aquele sistema222 compreende a atuação conjunta, ordenada e integrada de órgãos
do Poder Executivo Federal de hierarquia horizontal223, isto é, entre eles não há ascendência,
circunstância, ante a complexidade de matérias envolvidas, poderá gerar profundas
dificuldades ao desempenho de suas atribuições, não obstante o Ministério da Defesa figurar
como órgão central. É sentida a falta de representantes dos poderes Legislativo e Judiciário,
do Ministério Público, dos Estados, dos Municípios, do Distrito Federal e da sociedade civil.
222 Cf. art. 5o, caput e parágrafo único da Lei no 11.631, de 2007. 223 São os seguintes, de acordo com o art. 6o da Lei no 11.631, de 2007: Ministério da Defesa, Ministério da
Justiça, Ministério das Relações Exteriores, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, Ministério da Ciência e Tecnologia, Ministério da Fazenda, Ministério da Integração Regional, Casa Civil da Presidência da República, Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República e Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica da Presidência da República.
188
A competência para “prestar assessoramento direto e imediato ao Presidente da República na
definição das medidas necessárias à Mobilização Nacional, bem como aquelas relativas à
Desmobilização Nacional”224, poderá configurar sobreposição ou conflito com as
competências do Conselho da República e do Conselho de Defesa Nacional, observado o teor
dos inc. I do art. 90, I e II do § 1o do art. 91, todos da Carta Política de 1988.
No que tange à competência do SINAMOB para “formular a Política de
Mobilização Nacional”225, há de se reconhecer que essa atribuição é originária do Ministério
da Defesa, nos termos da alínea “j” do inc. VII do art. 27 da Lei no 10.683, de 28 de maio de
2003226, o que mitigaria, também, as competências para “elaborar o Plano Nacional de
Mobilização e os demais documentos relacionados a Mobilização Nacional”227, “elaborar
propostas de atos normativos e conduzir a atividade de Mobilização Nacional”228 e
“consolidar os planos setoriais de Mobilização Nacional”229. Ademais, quanto à competência
daquele Sistema para “articular o esforço de Mobilização Nacional com as demais atividades
essenciais à vida da Nação”230, convém dizer que as expressões “esforço”, “atividades
essenciais” e “vida da Nação” estão revestidas de um grau muito elevado de abstração e
subjetividade, o que poderá ensejar confusão conceitual, desvirtuamento de atribuições e, até
mesmo, sobreposição de competências em face de outros órgãos e instituições.
Outra competência controversa do SINAMOB reside na possibilidade de
“requerer dos órgãos e entidades dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de
pessoas ou de outras entidades as informações necessárias às suas atividades”231, posto que
configura preocupante precedente pois não indica parâmetros ou limites para essas
224 Cf. art. 7o, I da Lei no 11.631, de 2007. 225 Cf. art. 7o, II da Lei no 11.631, de 2007. 226 Dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, e dá outras providências. 227 Cf. art. 7o, III da Lei no 11.631, de 2007. 228 Cf. art. 7o, IV da Lei no 11.631, de 2007. 229 Cf. art. 7o, V da Lei no 11.631, de 2007. 230 Cf. art. 7o, VI da Lei no 11.631, de 2007. 231 Cf. art. 8o, caput da Lei no 11.631, de 2007.
189
requisições, na subjetividade posta a cargo dos integrantes do colegiado ou à regulamentação
via decreto do Presidente da República.
Não é demais dizer que os dispositivos da Lei no 11.631, de 2007, colocam
o país na situação de latente preparação para a beligerância, ampliando a vigilância
permanente e – pior – antecipando os efeitos de conflitos que, embora potenciais, não
correspondem aos princípios que regem as relações internacionais brasileiras ou à percepção
da sociedade civil. Esses movimentos repercutem, ainda, na concepção de defesa dos demais
países, notadamente daqueles que compõem o entorno regional, fazendo com que cresça a
preocupação com o fortalecimento dos meios militares e do aparato bélico, o que poderá
refletir na estabilidade da segurança e dos esforços de cooperação para a formação da
comunidade latino-americana de nações, isso sem contar com o desconhecimento que o
próprio Estado e a sociedade têm do alcance desse novel diploma legal, a exceção de atores
com prerrogativas, interesses e habilidades negociais diretamente ligados às medidas de
mobilização, como os políticos, os militares e a indústria de defesa232.
Nesse panorama de desafios que se coloca à democracia, é possível elencar
alguns dos temas que o poder político terá de enfrentar quando da aplicação da Lei no 11.631,
de 2007, principalmente para justificar a sua constitucionalidade. Dessa maneira, (i) nas
atividades planejadas, orientadas e empreendidas pelo Estado será necessário proporcionar
transparência ao texto legal, indicando as áreas de interesse estratégico; (ii) quanto à
legitimidade da atuação do poder estatal, caberá esclarecer qual a forma de participação da
sociedade em face da necessária legitimidade das medidas, não obstante o caráter
compulsório; (iii) nos aspectos referentes à logística nacional, revela-se necessário indicar os
232 Samuel P. Huntington (O soldado e o Estado: teoria e política das relações entre civis e militares. Rio de
Janeiro: Biblioteca do Exército, 1996, p. 337-490) abordou as estruturas e as relações entre civis e militares dos EUA na preparação e no emprego das forças armadas, com reflexos nas ligações existentes entre as instituições públicas e a indústria privada de defesa, apresentando um quadro que ajuda a compreender as trocas e as disputas de poder.
190
fundamentos, as diretrizes e os responsáveis pelas medidas; (iv) as ações estratégicas deverão
ser indicadas, mesmo que exemplificativamente, para proporcionar transparência às ações
com efeito nas liberdades públicas e no campo privado; (v) no que tange à agressão
estrangeira, será adequado esclarecer os procedimentos, os motivos determinantes e as
prováveis conseqüências; (vi) o retorno à situação de normalidade deverá compreender
hipóteses e graduações de interrupção, suspensão ou diminuição dos motivos determinantes,
elencando métodos e critérios para apurar os níveis de anormalidade, indicando responsáveis
pelos procedimentos.
De igual forma, (vii) o preparo das ações estratégicas deverá indicar as
fontes de indenizações ou reparações econômicas (ex.: títulos da dívida pública resgatáveis
em determinado prazo), destacando a participação da sociedade, o caráter cooperativo e,
quando necessário, coercitivo das medidas que envolverão a população em geral e os atores
detentores de direito de propriedade sobre a produção, a comercialização, a distribuição e
consumo de bens e utilização de serviços; (viii) a compulsoriedade das ações e a convocação
para o “esforço” deverão se consubstanciar em critérios e atos com base nos quais as ações
compulsórias serão efetivamente executadas. Será preciso prever a forma de convocação e
exemplificar qual o “esforço” dos entes federados, ante a obrigatoriedade de atuar
conjuntamente, além da pertinência de estabelecer métodos mínimos de fiscalização e
acompanhamento, inclusive quanto a apuração de excessos cometidos, considerando
mecanismos de ressarcimento e responsabilização, observado o disposto na Lei no 1.079, de
10 de abril de 1950233.
Quanto ao SINAMOB, (ix) o planejamento das fases de mobilização deverá
indicar a metodologia e a possibilidade de colaboração da sociedade e de outros órgãos e
instituições públicas e privadas; (x) a requisição de informações não poderá infringir os
233 Define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo e julgamento.
191
direitos fundamentais, de modo que deverão ser definidos critérios e atos com base nos quais
as informações serão requisitadas, com a correspondente metodologia para a guarda e
responsabilização pelo processamento; e, por fim, (xi) será necessário precisar o critério
obrigatório ou indicativo da alocação de recursos financeiros destinados ao preparo da
mobilização, observando a possibilidade de criar rubrica orçamentária específica em cada
órgão integrante do sistema e vincular os recursos às respectivas atividades originárias,
verificados os impactos e as limitações do orçamento da União, além dos debates em torno da
existência de fontes permanentes e vinculadas de custeio.
A Lei no 11.631, de 2007, coloca em posições assimétricas a mobilização e a
defesa, posto que a primeira reúne os efeitos de lei em sentido estrito, enquanto a segunda,
aprovada na forma de simples decreto autônomo, possui efeitos limitados. O problema se
amplia quando constatada a natureza acessória de mobilização no conceito de defesa. Esse
quadro significa equívoco ou estratégia. Equívoco valorativo na escolha dos instrumentos
legais. Estratégia na perspectiva de inverter fases, isto é, antecipar os efeitos do estado de sítio
e contornar o sentido dos princípios das relações internacionais contidos na Carta Política de
1988, podendo determinar, no extremo, a hipótese de cometimento de crime contra a
segurança interna do país234.
Por fim, vale lembrar o forte viés democrático do estado de sítio, posto que,
além da manifestação do Poder Legislativo, sua decretação depende também da apreciação do
Conselho da República, cuja composição é heterogênea e conta com a participação popular de
“seis cidadãos brasileiros natos, com mais de trinta e cinco anos de idade, sendo dois
nomeados pelo Presidente da República, dois eleitos pelo Senado Federal e dois eleitos pela
234 Tipificado no no 3 do art. 8o da Lei no 1.079/50: “decretar o estado de sítio, estando reunido o Congresso
Nacional, ou no recesso deste, não havendo comoção interna grave nem fatos que evidenciem estar a mesma a irromper ou não ocorrendo guerra externa”.
192
Câmara dos Deputados, todos com mandato de três anos, vedada a recondução”.235 Essa
legitimação deve servir de exemplo à mobilização no contexto da política de defesa.
235 Cf. art. 89 da Constituição Federal de 1988.
193
3 DEFESA E INTEGRAÇÃO
Os países estão sujeitos ao enfrentamento de questões que dizem respeito às
relações internacionais garantidoras do reconhecimento, da legitimidade e da capacidade de
influenciar de cada Estado e, também, à tentativa de solucionar delicados problemas internos
que abrangem desde a plena consecução de direitos fundamentais até medidas de ordem
econômica, os quais decorrem, não raras vezes, dos reflexos do jogo do poder travado no
campo externo e da falta de políticas públicas internas eficazes e continuadas, principalmente
nos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil e da maioria dos que integram o
continente sul-americano. Por certo que esses dilemas trespassam a soberania e o direito
constitucional de cada país, na medida em que as políticas e as ações adotadas interferem nos
interesses das instituições e das pessoas que estão direta ou indiretamente envolvidas nos
problemas, nas decisões e nas omissões das autoridades públicas que atuam na representação
do Estado. Não é tarefa fácil identificar os limites ou os parâmetros de atuação do poder
público, posto que nem sempre as demandas nacionais e internacionais se revestem da
transparência indispensável à demonstração do que é público ou privado, dos pontos de
convergência entre esses campos e do que favorece ou prejudica determinados grupos de
interesse ou a população em geral.
Se as relações internacionais são permeadas por conflitos de interesses entre
público e privado, público e público, privado e privado, cujos reflexos alcançam a soberania e
o direito constitucional, é preciso reconhecer que o estudo desse fenômeno requer o cotejo
entre os fundamentos do direito comunitário e da integração, tendo em vista que seus aspectos
repercutem na defesa, na compreensão das assimetrias que determinam ou influenciam a
atuação do Estado e da sociedade. Note-se a relevância da natureza transdisciplinar do
conceito de “defesa nacional”, cuja essência implica ruptura com o senso comum que se
194
baseia na turva concepção de que o tema está restrito à reduzida idéia de possuir aparato
bélico e formar forças armadas com a simplória destinação de combater ameaças externas ou
internas. A defesa transcende as fronteiras territoriais para dar nova dimensão à noção de
soberania, tendo em vista que as ameaças à independência e à autodeterminação se
transfiguram nas mais diversas formas, ante a evolução tecnológica e as estratégicas
cibernéticas no contexto transnacional das empresas, da economia, do comércio e, por
conseguinte, do crime, dos fluxos de capital, dos postos de trabalho, do ambiente, da política e
do direito.
O presente capítulo trará alguns apontamentos a respeito do direito
comunitário e da integração, na tentativa de indicar os reflexos na política de defesa brasileira,
observados os princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil, na
linha de que o tema pode contribuir ao processo de integração da América do Sul, desvelando
as confluências e as assimetrias presentes nos temas de integração e defesa, tendo como
pressuposto o estado democrático de direito e o conseqüente desafio a ser enfrentado no
campo político. O fio condutor da abordagem levará em conta que a integração regional e a
política de defesa podem coexistir e que é possível conciliar demandas nacionais com
interesses comunitários mediante composição de consensos voltados à cooperação e à
integração, formulando-se o direito e as políticas públicas nos cenários da globalização e da
regionalização.
3.1 Direito comunitário, direito internacional, globalização e soberania
Para Borges (2005, XXXII) o direito comunitário difere do direito
internacional e do direito constitucional porque não é constituído de normas jurídico-
positivas, pois não se origina de única fonte normativa, de natureza cogente, derivada dos
órgãos da comunidade a que se aplica: consiste num “sistema” que, por sua natureza e
195
características dessemelhantes, compreende normas de direito nacional (intra-estatal), de
direito internacional e de direito internacional privado comum não-estatais. Para o autor, o
direito comunitário tem a natureza de direito da integração, a perfazer um contexto mais
amplo de aproximação entre os países, tendo em vista as seguintes razões: (i) compreende, em
tese, um conjunto de normas plurilaterais, posto que não editadas coercitiva e unilateralmente
pelos Estados-partes, mas formuladas e aceitas por consenso, dentro do espírito de
colaboração; (ii) as normas decorrem da instituição convencional inter-estatal, notadamente
incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais na forma de tratados; e (iii) tende a formar
comunidade de contornos próprios, em estrutura e funcionamento, para o fim de proporcionar
o atendimento consensual das demandas numa intrincada teia de interesses. As diferenças
entre o direito comunitário e o direito internacional se ampliam na medida em que são
verificados os contornos do segundo, que pressupõe, na tese pluralista, a coordenação da
diversidade de ordenamentos soberanos ou, na linha da tese monista, a sobreposição do
internacional aos ordenamentos soberanos internos.
Convém observar os efeitos que o direito comunitário pode gerar na
construção e na aplicação do ordenamento jurídico interno, tendo em conta os potenciais e
efetivos conflitos na fase de elaboração das leis (o processo legislativo), na adaptação
interpretativa dos comandos legais em vigor (hermenêutica) e na constatação da plena
incompatibilidade entre os dispositivos normativos. Nesse sentido, ao ponderar valores na
solução de controvérsias, cuja escolha resvala na soberania, opera-se o significativo fenômeno
da retração do poder soberano nacional decorrente da integração. Então, poderia o direito
comunitário ser reconhecido como ordenamento jurídico, ou seja, que seus comandos, ao
ultrapassarem as fronteiras da soberania estatal dos países, pudessem reunir a legitimidade
capaz de constituir um concurso de normas de direito? Segundo Borges (2005, p. XXXII), a
ocorrência desse fenômeno depende da reunião dos seguintes requisitos: (i) a força
196
constitucional; (ii) o concurso do direito internacional público geral (pacta sunt servanda); e
(iii) o concurso do direito internacional privado comum (convenção sobre conflitos ou
concorrência de leis no espaço). Dessa maneira, no dizer do autor, a característica marcante
do direito comunitário consiste na “comunhão de objetivos institucionais perseguidos em
bloco pelos Estados-membros da comunidade”.
No entender de Borges (2005, p. XXXVI), o direito comunitário encontra
raízes no direito internacional público na forma dos tratados internacionais. Dessa maneira, as
normas comunitárias surgem e se multiplicam como conseqüência da intercessão das normas
comunitárias com as de ordem constitucional (intra-estatais) e convencionais (tratados). O
autor esclarece que o direito comunitário não constitui necessariamente um ramo do direito,
mas ordenamento autônomo que se distingue da ordem nacional e internacional, de tal modo
que essa natureza confere a condição de sistema jurídico regido por suas próprias normas.
Nessa linha, o direito comunitário é interdisciplinar e marca, por conseguinte, significativa
ruptura com o direito internacional público tradicional, na medida em que, se de um lado
representa uma continuidade das fontes normativas dos tratados, por outro configura a
convergência de várias disciplinas normativas.
Por conseguinte, posicionado no espaço que não pertence exclusivamente a
cada Estado-parte, o direito teoricamente construído a partir do consenso lastreado no
equilíbrio e no reconhecimento de valores dessemelhantes, passa a ser inserido no
ordenamento jurídico-comunitário estruturado e desenvolvido no campo relacional híbrido em
que se sustenta a integração – e não no território de determinado país –, circunstância que
transfere a aplicação das regras estabelecidas para o âmbito regionalizado de validade das
normas comunitárias. Mas, o que move a elaboração, a aceitação e a adoção de regras
jurídicas que ultrapassam os domínios da soberania dos países, cujos comandos estão sujeitos
a conflitos das mais variadas espécies e que não encontrariam parâmetros de aferição de
197
validade, eficácia e controle jurisdicional garantidores da executoriedade, a constituir
contexto de perplexidade e, até mesmo, de inexecução e descrença quanto à possibilidade de
resultados práticos que traduzam a vontade coletiva, comunitária, integradora que se sobrepõe
aos supostos interesses nacionais, que não admitem ou não reconhecem a possibilidade de
compartilhar, de ser solidário para alcançar objetivos de interesse público comum?
A compreensão desse problema pode ser encontrada na justificativa
formulada por Borges (2005, p. 55): a “integração comunitária é um fenômeno social,
juridicamente regulado, consistindo fundamentalmente num processo de harmonização do
funcionamento das estruturas jurídicas nos Estados-membros da comunidade”. O autor
sustenta que a aludida harmonização do funcionamento das estruturas jurídicas não implica,
necessariamente, a “unificação arquitetônica institucional da Comunidade”. Portanto, para
que o direito comunitário alcance legitimidade e gere efeitos práticos, não se exige a fusão
dos países em federação ou a associação em forma de confederação. Essa percepção, diga-se,
é imprescindível para evitar que se cometam erros de interpretação quanto aos fundamentos e
objetivos do direito comunitário, dando espaço a indevidas tentativas expansionistas,
totalitárias ou hegemônicas. Convém nesse sentido assinalar que os países têm resguardadas
sua soberania e forma jurídica de existir, mantendo suas tradições e individualidades. Mas,
essa autonomia será, de fato, absoluta e plenamente compatível com os preceitos que regem o
direito comunitário, no escopo de uma integração além do aspecto econômico-comercial?
O direito comunitário regula as relações intersubjetivas entre Estados e
organizações internacionais, pessoas naturais e pessoas jurídicas de direito público e privado,
envolvendo normas que decorrem de tratados celebrados, da legislação interna de cada país e
da atuação de órgãos comunitários, cujos conflitos estão presentes e constituem, por
conseguinte, o desafio político a ser enfrentado sob os pressupostos do regionalismo e da
globalização, de forte impacto e importância para a economia e para o direito, no esforço para
198
a superação das fronteiras geográficas, de modo a que possam ser estabelecidas estratégias
para a formação de blocos destinados à defesa de interesses comuns. O direito comunitário
representa, assim, uma evolução a partir da qual os países superam as limitações impostas
pelos aspectos econômicos – e também histórico-culturais – para compartilharem temas de
relevância para a mútua aceitação política, social, cultural e ambiental, apenas para mencionar
alguns exemplos. Dessa maneira, as matérias reguladas estão em permanente expansão,
adaptando-se ao âmbito de aplicação que, por sua vez, se amplia na medida em que novos
países formalizam suas adesões. Para tanto, é preciso legitimidade política para conduzir as
populações ao direito comunitário e à integração. Isso se faz com transparência nas
informações, participação popular e demonstração dos interesses (e interessados) que estão
em jogo.
O direito comunitário se vincula à regionalização, sendo esta um nível
intermediário da globalização e, na assertiva de Borges (2005, p. 65), requer a “superação
histórica dos nacionalismos”. A esse respeito, o autor pondera que o nacionalismo representa
fundamentação estritamente teórica que se socorre do princípio da soberania na forma de
“ideologia de circunstância” que, por sua vez, encontra legitimidade na viabilidade da
autonomia nacional e na independência estatal diante de influências estrangeiras
intervencionistas. Então, o direito comunitário interfere na autonomia dos países.
O mecanismo com base no qual a globalização opera traduz o que parte da
doutrina denomina de crise do conceito tradicional de soberania (Coni, 2006). Borges (2005,
p. 69-70) pondera que a positivação constitucional da soberania brasileira236 conduz a revisão
da característica convencional de “poder uno, absoluto, incontrastável, indivisível e
irrenunciável”. Nessa linha, é razoável concordar com o autor pelo menos quanto ao fato de
que a soberania se encontra diante de um paradoxo, observado que (i) a convivência com a
236 Cf. art. 1o, I da Constituição Federal de 1988.
199
integração inter-estatal comunitária flexibiliza parte dos poderes soberanos como requisito
para a institucionalização da comunidade de países, levando ao entendimento de que a
soberania não é mais absoluta e indivisível ou, em sentido oposto, a idéia de que (ii) a
soberania é “absoluta, incontrastável e irrenunciável”, o que impossibilitaria a criação de
normas comunitárias de força vinculante e, por conseguinte, constitutivas do arcabouço
jurídico fundamental do processo de integração. Tem-se, então, uma questão crucial: a
soberania pode ser compartilhada ou repartida e, ainda assim, corresponder ao conceito de
poder autônomo que autoriza dispor livremente sobre os desígnios de determinado país?
Quais seriam os contornos e os fundamentos das decisões soberanas diante das convergências
inerentes ao direito comunitário? Esses pontos interessam à política de defesa.
Observado que os desafios do direito comunitário e, por conseguinte, da
chamada crise do conceito de soberania transitam pela condicionada necessidade de
relacionamento internacional dos países, o processo de globalização tem na atuação política
fator determinante com as variáveis de segurança e defesa na nova formulação conceitual de
composição equitativa de interesses. Lewandowski (2004, p. 51) assinala que a globalização,
em sentido estrito, teve seu curso acelerado não apenas em decorrência do fim da Segunda
Guerra Mundial, mas principalmente depois do término da Guerra Fria, representando
fenômeno econômico a partir da criação transnacional do mercado mundial onde circulam
interesses, bens, capitais e tecnologias. Obviamente, esse fenômeno repercute no poder de
intervir e de influenciar dos Estados-nacionais, dando azo a uma série de eventos de difícil
mensuração que escapam do controle e do conhecimento dos governos, configurando, dentro
outros, delitos transnacionais e interferências promovidas pelo poder público e pela iniciativa
privada. Nesse cenário se intensificam o incentivo ao terrorismo e o avanço da corrupção,
considerada a possibilidade de participação e conivência dos Estados ou de seus
representantes.
200
Lewandowski (2004, p. 51) retrata a globalização como etapa do
capitalismo sustentada por possibilidades de negócios trazidas pelo avanço tecnológico, com a
conseqüente descentralização da produção pelos países ao arbítrio do mercado e sem que os
governos queiram ou tenham forças para interferir nas escolhas que determinam a nova forma
de distribuição do trabalho, da produção e da comercialização de insumos, o que gera
“progressiva interdependência entre os sistemas econômicos”. Note-se que a globalização
vista dessa maneira está reduzida à integração de mercados sem a necessária preocupação
com a distribuição de riqueza e a valorização do trabalho como fundamentos da dignidade
humana. Vergopoulos (2005, p. 44), por sua vez, sustenta que a atual noção de globalização
não se coaduna com a idéia de “uma etapa superior do capitalismo, a um novo crescimento
intensivo ou extensivo, nem a uma etapa qualitativa ou quantitativa do capital”. A crítica
desse autor se dirige à forma como a globalização é manejada, posto que, no seu entender, a
operacionalização do instituto retrata a “recente degradação das condições de funcionamento
da economia mundial, a exacerbação das disparidades de renda, a multiplicação das fraturas e
exclusões em escala nacional e mundial”. O desempenho econômico e o emprego não são
melhorados pela política da globalização levada a efeito pela inserção dos mercados
financeiros no plano internacional, na medida em que, segundo o argumento de Vergopoulos
(2005, p. 45), os mecanismos utilizados se preocupam com a desaceleração e a retração, a
transferir, de maneira intensa, os “sacrifícios unilaterais” apenas aos trabalhadores que se
sujeitam às condições de mercado para manter a sobrevivência. A descrença do autor está
resumida na seguinte passagem:
Nesse contexto, é forçoso concluir quão arcaico e obsoleto é o Estado-nação, bem como qualquer forma de regulação nacional, regional e até mundial. Os instrumentos fundamentais da regulação nacional, como as políticas monetárias e orçamentárias, parecem em nossa época inúteis. Por isso, toda a sociedade fica exposta sem proteção e defesa às múltiplas causas internacionais de instabilidade, de insegurança e de risco.
201
Na percepção de Vergopoulos (2005, p. 59) a globalização funciona como
“uma opção mítica e problemática”, limitada aos aspectos econômicos e, portanto, deslocada
das demandas sociais, de tal modo que essas circunstâncias colocam os trabalhadores como
defensores da sociedade, tendo em vista a “crise mundial do emprego, a segmentação do
mundo do trabalho, o retorno da pobreza e das exclusões sociais”. O autor não identifica um
movimento das economias e das sociedades no sentido de buscarem adaptações ao atual
modelo de globalização, mudanças essas que, como acentuou, não poderão prescindir da
observância das “realidades históricas, econômicas e sociais do planeta”.
Então, a chamada crise da soberania se encontra atrelada aos mecanismos
com base nos quais a globalização é operada. O conceito tradicional de soberania tem sido
objeto de ponderação por parte da doutrina que pretende compreender o fenômeno a partir de
sua experimentação na velocidade das variadas concepções que se entrelaçam e se confundem
na contemporaneidade. A contribuição de Carvalho (2005, p. 243) corresponde a esse
entendimento:
Soberania, palavra que tem sua origem em super omnia, superanus ou supremitas, indica o poder de mando da última instância numa sociedade politicamente organizada. No plano interno, consiste na supremacia ou superioridade do Estado sobre as demais organizações, e, no exterior, quer dizer independência do Estado em relação aos demais Estados.
A crise da noção de soberania tem-se agravado no mundo contemporâneo, havendo, inclusive, quem sustente que vivemos o ocaso da soberania, em razão, sobretudo, da superação do Estado nacional por outras formas de convivência social.
Verdú, citado por Carvalho (2005, p. 243), tem pensamento incisivo a esse
respeito:
[...] a crise do Estado nacional soberano exige a criação e consolidação de estruturas e instituições supranacionais de diversos tipos: econômico, militar, cultural [...], de modo que a questão da soberania se redimensione principalmente no plano das relações exteriores.
202
Rezek (1991, p. 227) assinala que a noção de soberania não mais comporta a
delimitação do conceito no tripé “território, população estável e governo”, desvelando, por
conseguinte, a necessidade de desenvolver a percepção de que a soberania transcende o
conceito tradicional para requerer mais, a representar um conjunto de valores a partir dos
quais o Estado soberano atue como governo que “só se põe de acordo com seus homólogos na
construção da ordem internacional, e na fidelidade aos parâmetros dessa ordem, a partir da
premissa de que aí vai um esforço horizontal e igualitário de coordenação no interesse
coletivo”.
Imperioso refletir a respeito da noção de soberania e de seus efeitos no
campo do direito comunitário e da integração, especialmente quanto às colocações que
remetem à crise do conceito de soberania e da construção de consensos entre homólogos para
uma concepção horizontal a partir da qual os interesses coletivos possam receber tratamento
igualitário. Para que a integração, como pedra angular da comunidade, possa ultrapassar a
simples, mesquinha e diminuta idéia de compensação econômica para grupos privilegiados de
pressão e de influência no mercado e nas ações de poder, é possível sustentar a idéia de que os
países necessitam, no mínimo, reconhecer e praticar valores comuns fundamentados na
dignidade da pessoa humana e, por conseguinte, nos direitos fundamentais. Mas, qual seria a
melhor fórmula para alcançar essa base comum de aceitação e reconhecimento do outro? O
outro que não é meramente um país, mas sim o conjunto de pessoas que vivem em
determinado espaço geográfico e que podem atuar sem fronteiras. O primeiro passo não
poderá ser em outro sentido senão no aperfeiçoamento do estado de direito como conquista
primeira dos povos, das gentes, de modo a banir e a afastar práticas ou ameaças de
autoritarismo, totalitarismo, demagogia e, por conseguinte, de opressão. O segundo passo,
dependente do primeiro, carece da democracia em permanente experimentação pois, mesmo
203
com todos os seus antagonismos ainda consegue permear as relações internas e externas com
liberdades capazes de proporcionar significativas e legítimas mudanças.
Borges (2005, p. 70) assinala que a doutrina debate a transferência parcial
de poderes soberanos de Estados para organizações internacionais. Exemplos dessa figura
jurídica estão presentes na União Européia e nas comunidades européias, não obstante sejam
registrados dissensos por parte das populações de alguns países, como é o caso da França, no
que toca à aprovação da proposta de aceitação de uma constituição comum. Nessa linha, a
transferência parcial de soberania implica o que se convencionou chamar de
compartilhamento dessa qualidade e mesmo a própria “negação da soberania como um poder
absoluto e ilimitado”, não divisível ou passível de compartilhamento no âmbito das relações
internacionais. A transferência de poderes soberanos resultaria, por conseguinte, na outorga
de uma espécie de “soberania parcial” às comunidades, hipótese que destoa da tese
doutrinária predominante, segundo a qual elas não “detêm a competência-das-competências
(kompetenz-kompetenz), característica da soberania estatal”, no dizer do autor.
Se com o direito comunitário as relações jurídicas internas e externas são
permeadas por um conflito sui generis que põe, de um lado, a soberania estatal absoluta e, de
outro, a transferência de poderes soberanos ao conjunto de entes não necessariamente estatais
que integram a comunidade, inevitavelmente o regionalismo assume a forma de etapa
intermediária, no contexto do processo maior de globalização que, em tese, seria irreversível.
Essa regionalização, no dizer de Borges (2005, p. 71), deve ser percebida como uma
“tendência histórica” dos povos, caracterizada pela institucionalização em blocos autônomos
de Estados que formam comunidades estatais organizadas num movimento tendente à
unificação marcada por uma política econômica comum para, ao final, configurar a superação
do econômico para alcançar a união política, como parece se desenhar na União Européia,
embora com críticas bastante contundentes.
204
A autodeterminação dos Estados sofre restrições em decorrência da
associação regional de blocos na composição de interesses em face de terceiros, assinala
Lewandowski (2004, p. 116) ao registrar que essa forma de associativismo não tem a mesma
natureza dos acordos formalizados no passado, cujo escopo consistia na concretização de
“objetivos militares ou mercantis de natureza transitória ou localizada”. O autor esclarece que,
na atualidade, as composições entre os Estados têm “caráter permanente e abrangem uma
larga gama de interesses”. Dentre os tipos de blocos comerciais que atuam regionalmente,
Lewandowski (2004, p. 117) apresenta a seguinte tipologia: (i) acordo de comércio
preferencial, em que são estabelecidos privilégios tarifários para os interessados com o
propósito de facilitar a reciprocidade de acesso aos respectivos mercados; (ii) zona de livre
comércio, onde há eliminação das tarifas apenas entre os países partícipes; (iii) união
aduaneira, marcada pela liberação do comércio entre os partícipes e a uniformização das
tarifas para os demais países; (iv) mercado comum, caracterizado pela total exclusão de
“restrições à movimentação interna de fatores de produção”; e (v) união econômica, cujo
fundamento consiste na “unificação das políticas fiscal, monetária e social”.
Não constitui objeto do presente trabalho o estudo, em detalhe, das
características de cada bloco regional. No entanto, convém ressaltar que as características de
associação podem ser mescladas, posto que, na análise feita por Lewandowski (2004, p. 119),
a “eventual progressão de uma forma de integração menos complexa para outra mais
articulada, ou a regressão para outra com menor sofisticação, ou ainda a dissolução da
parceria, depende de variáveis históricas, políticas e econômicas”. Note-se, por pertinente,
que predomina a integração na base do livre comércio, circunstância que representa, em tese,
o predomínio dos interesses econômicos como forma de equilibrar as relações internacionais,
consideradas as diferenças entre os países. Mas, seria realmente a globalização uma tendência
voluntária e inevitável em que os povos formulam livremente suas adesões? Seria a
205
alternativa mais razoável para a solução de conflitos ou seu escopo está limitado a transações
econômicas em que o próprio poder de mercado simplesmente influencia e determina a forma
de agir dos países e, por conseguinte, os desígnios das pessoas? Esse questionamento tem
cerne no convívio das diferenças e na busca pelo estabelecimento de mecanismos voltados à
construção de princípios igualitários compatíveis com a humanidade, relacionados à
distribuição da riqueza, à percepção de que é preciso pensar na alteridade, no diferente, no
devir. No entanto, predominam os aspectos econômicos e comerciais sob o pressuposto da
manutenção da paz. Nesse sentido, é valiosa a colocação de Vergopoulos (2005, p. 234):
[...] o império mundial de hoje, o da globalização, já se acha ameaçado não por sua tolerância e suposto pluralismo cultural, mas sim pela ambição de estender suas próprias normas culturais a vastos espaços do mundo, tradicionalmente regidos por outros conceitos e prioridades. Não seria a primeira vez na história em que a sorte de um império se decide não no seu núcleo, mas no espaço de suas ‘ferramentas’ culturais.
Do cotejo entre os fundamentos do direito comunitário, da globalização e do
regionalismo não pode ser deslocada, como dito anteriormente, a necessidade de compartilhar
valores minimamente compatíveis que digam respeito aos direitos fundamentais e, por
conseguinte, à dignidade da pessoa humana, de tal modo que essas percepções passem a
nortear as escolhas ponderadas de interesses comuns ou que possibilitem a conciliação.
Portanto, o caminho para essas composições implica reconhecer a democracia não como o
único, mas provavelmente como meio imediato de levar a efeito a possibilidade de mudanças,
de modo a que a soberania e o direito interno de cada país acompanhem as adaptações
requeridas pela atualidade como sustentáculo do processo de integração decorrente da vida
comunitária erigida, quiçá, de forma espontânea, sem esquecer, por outro lado, que o regime
democrático e suas instituições trafegam ao longo do tempo e estão sujeitos às vicissitudes
dos retrocessos políticos, do exercício deturpado ou da usurpação do poder, mas também ao
seu próprio aperfeiçoamento.
206
Importa retomar alguns aspectos dogmáticos do direito comunitário. De
acordo com Borges (2005, p. 72), a doutrina do direito comunitário tem origem na teoria da
União de Estados, na “representação da multiplicidade de Estados postos de regra em pé de
igualdade e subordinados a um ordenamento jurídico que a todos vincula”, dando, por
conseguinte, ensejo a “personificações de ordenamentos jurídicos nacionais”. Dessa feita, a
união de Estados implica vinculação a uma ordem jurídica supra-estatal que, por sua vez,
forma um ordenamento jurídico superior à União dos Estados, do qual pode resultar, segundo
o autor, (i) o caráter universal do direito internacional ou (ii) o ordenamento jurídico especial
que “vigora com força (eficácia) própria, embora extraída originalmente do ordenamento
jurídico internacional, especificamente dos tratados”.
A evolução da comunidade, conforme já aventado, não se limita – ou assim
não poderia estar – ao campo econômico. Necessário se faz ampliar a concepção comunitária
no caminho da integração que principia pela atuação política em sentido amplo, na tentativa
de convergir interesses para a construção de consensos. De todo o modo, não se pode olvidar
que, segundo a tradição histórica, os Estados são reconhecidos pelo direito internacional como
marco de sua origem e fundamento da soberania e da independência nacionais. No preceito
universal, as normas de direito internacional primam sobre as de direito nacional. Assim, a
partir da concepção monista, o direito internacional proporciona validade ao direito nacional,
de tal modo que é evidente a supremacia do primeiro em face do segundo. Contudo, a atuação
dos Estados não é exclusivamente regulada pela ordem jurídica internacional. Para Borges
(2005, p. 77), esse fenômeno regulação se dá sobre os “indivíduos-órgãos e agentes que
compõem, com a sua conduta, o âmbito pessoal de validade das normas jurídicas
internacionais”. Dessa feita, na linha defendida pelo autor a teoria monista não retrata
hierarquia, mas fusão que se configura no primado da supremacia do direito nacional
condicionado e superado pela evolução do direito das gentes.
207
Por outro lado, a teoria dualista coloca o direito internacional e o direito
nacional como duas ordens jurídicas distintas e independentes que proporcionam
representação interna e externa, dando formato a uma relevante questão: como resolver os
conflitos de interesses e de interpretação, no campo do direito comunitário, a partir dessa
dualidade de ordenamentos jurídicos? Na linha dualista, a soberania concebida
ideologicamente e levada a extremos implica a não-vinculação dos Estados aos tratados
internacionais, donde (i) o Estado soberano não poderia estar vinculado, contra sua vontade,
por resoluções majoritárias de órgãos internacionais e (ii) o direito nacional não poderia ser
originado de procedimentos de direito internacional. O direito comunitário rompe com essas
concepções, posto que, na assertiva de Borges (2005, p. 83), a solução de conflitos entre
normas de direito internacional e nacional requer análise axiomática (evidência, máxima,
princípio), de modo que a “opção por um ou outro estará sempre saturada de um quantum de
discricionariedade ideológico-política. E não por critérios exclusivamente jurídicos”.
Lewandowski (2004, p. 187-188) assinala que o direito comunitário
constitui um tertium genus, posto que “não se identifica nem com o direito internacional
público nem com o direito interno, visto que possui fontes, institutos, métodos e princípios
informativos próprios”. O autor ainda adverte para a necessidade de não confundir direito
comunitário com direito da União, esclarecendo que o primeiro, originado do fenômeno do
processo de integração européia sob os fundamentos de um direito novo, “significa
literalmente direito da Comunidade”, a compreender, em stricto sensu, a união econômica e
monetária da União Européia, como berço desse direito, considerado que os demais pilares da
União (a política externa e de segurança comum e a cooperação judiciária e policial no campo
penal) estão sujeitos aos regimes jurídicos concernentes a cada matéria regulada. A
supranacionalidade é, nesse sentido, a pedra angular do direito comunitário, a representar um
208
conjunto de normas oriundo de fontes próprias que se diferem dos sistemas do direito interno
ou externo:
Com efeito, os tratados de integração, que representam verdadeiras cartas constitucionais, assim como as resoluções e diretrizes baixadas pelos órgãos comunitários, vinculam não só os Estados, como também as pessoas jurídicas públicas e privadas e ainda os particulares que neles se encontrem.
Essas ponderações conduzem à constatação de que o direito comunitário
mais adequadamente se harmoniza com a teoria monista, em razão do resguardo dado ao seu
campo híbrido e, por conseguinte, sui generis de aplicação, construído a partir da
compatibilização de interesses e da construção de consensos. A propósito, fortalece essa tese
o argumento segundo o qual o reconhecimento e a gradativa inserção, no ordenamento
jurídico nacional, de regras do direito comunitário, advêm, pois, dos postulados do direito
internacional, na medida em que se apóiam na soberania dos Estados-partes para a
formalização dos tratados, vistos não como instrumentos de limitação ou restrição da
soberania estatal, mas como garantidores da independência nacional e da própria soberania,
“adaptando-a a novas condições socialmente emergentes para o seu exercício e que ditaram o
aparecimento do fenômeno comunitário” (BORGES, 2005, p. 171).
Ainda segundo Lewandowski (2004, p. 188), o direito comunitário pode ser
caracterizado como primário ou derivado, de acordo com a fonte da qual se extrai a norma
dele originada. Via de regra, será primário o direito decorrente dos tratados sob o fundamento
dos quais são instituídas as comunidades, bem como formalizadas suas respectivas alterações,
tendo em vista que estabelecem objetivos, organização e regras mínimas que tratam da forma
pela qual a integração será levada a efeito. Outra hipótese de direito comunitário primário
admite a formalização de tratados com outros Estados e mesmo com organismos
internacionais. Por outro lado, o direito comunitário derivado se origina dos atos praticados
pelos Estados-partes no sentido de dar execução às regras dos tratados. Poder-se-á cogitar,
209
então, que o poder de legislar de cada Estado-parte se encontra obstado ou limitado pelo
direito internacional e mesmo pelo direito comunitário? Seria esse o principal sintoma da
chamada crise da soberania? Como superar esses questionamentos e encontrar argumentos
com base nos quais será possível uma maior integração entre os países, a transcender o
complexo e saturado campo econômico, resguardando-se, concomitantemente, as
independências e soberanias nacionais?
Coni (2006, p. 43 e 45), ao tratar da internacionalização do poder
constituinte, destaca que o modelo do Estado soberano clássico com base na soberania
absoluta está em crise de origens distintas e inter-relacionadas: (i) de fora do Estado, ante a
transferência para entidades externas de grande parte das funções antes exercidas com
exclusividade pelos países; e (ii) de dentro do próprio Estado, como conseqüência das
desagregações internas que impedem a concretização das funções estatais, quais sejam, a
unificação nacional e a pacificação interna. Não se trata de crise da noção de soberania como
efeito decorrente da globalização (e da regionalização). Esse argumento não passa de artifício
doutrinário (ou até mesmo de uma estratégia ideológica) destinado a evitar a ruptura de uma
hegemonia e a continuidade de determinado estado de coisas.
É instigante refletir a respeito do conceito de soberania e da força das
constituições nacionais na atualidade, a agirem – ou não – como fatores relevantes da
tendência mundial “de fazer ceder a autodeterminação dos povos em face da necessidade de
manutenção ou do alcance da paz” (CONI, 2006, p. 47). Por um lado, os instrumentos dessa
renúncia ou dessa imposição de novos valores poderiam decorrer, dentre outros fatores, da
influência religiosa deturpada ou de uma ordem econômica desatrelada dos princípios
eqüitativos de distribuição de riqueza, a contaminar o campo político tomado por movimentos
totalitários ou disfarçado do ideário democrático na busca de tentar tornar a humanidade
homogênea. O outro lado, embora pouco factível ou ainda distante do estado de evolução da
210
humanidade consiste em reconhecer o outro na qualidade de pessoa humana como requisito
fundamental para a construção de princípios consensualizados de justiça, para o fim de
proporcionar melhores condições de vida, independentemente do plano jurídico-social. Outra
inquietação, portanto, não pode deixar de ser considerada: a paz poderá ser alcançada
mediante a imposição de restrições, de fórmulas econômicas e de modelos democráticos que
não preservem as tradições e os valores cultuados por uma dada nação? É possível impor
valores?237 Por certo que não. Sem dúvida, essas questões interessam e influenciam a atuação
do campo político e não podem se afastar dos estudos a respeito da política de defesa nacional
ou comum a determinados Estados-partes.
Revela-se pertinente conhecer parte da abordagem sobre o poder político no
contexto da evolução e da titularidade da soberania. Lewandowski (2004, p. 197), ao sustentar
que um “indivíduo ou grupo de indivíduos sujeita-se simultaneamente a vários tipos de poder,
porquanto têm seu comportamento moldado por vontades distintas”, utiliza das três maneiras
(coação, recompensa ou persuasão) de exercício do poder descritas por Galbraith para
assinalar que esses mecanismos estão presentes no âmbito da política, em cujo seio atua o
poder social238. Esses mecanismos influenciam o êxito ou não da integração. A par dessas
ponderações, é importante frisar que os mecanismos de exercício do poder, a depender do
regime político de cada país ou nação, determinam a incidência da coação, da recompensa e
da persuasão, de maneira velada ou não, nos âmbitos interno e externo. Desse modo, cumpre
sustentar, uma vez mais, que a democracia, mesmo com suas deficiências, proporciona maior
legitimidade ao exercício do poder, posto que os direitos fundamentais e as liberdades
públicas funcionam como instrumentos de controle da atuação estatal, para o fim de evitar ou
237 A respeito, é apropriada a leitura de Isaiah Berlin (Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios.
São Paulo: Companhia das Letras, 2002), John Rawls (Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002) e Amartya Sen (Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000).
238 O poder e seus mecanismos também são abordados de maneira intensa por Michel Foucault (Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2007), Riane Eisler (O cálice e a espada – nossa história, nosso futuro. Rio de Janeiro: Imago, 1989) e Étienne de La Boétie (Discurso sobre a servidão voluntária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003).
211
corrigir deturpações no exercício do poder político. Essa ponderação é essencial para definir
as escolhas, pois evitam distorções que não reflitam o interesse público interno e da
comunidade em processo de integração.
Na incursão que fez no conceito clássico de soberania, Coni (2006, p. 48) se
valeu dos quatro elementos essenciais propostos por Richard Hass: (i) autonomia política e
monopólio do uso legítimo da força em seu território; (ii) capacidade de controlar fluxos nas
fronteiras; (iii) eleger, livremente, uma política externa própria; e (iv) ser reconhecido por
outros governos como uma entidade independente com direito a não sofrer qualquer
intervenção externa. O autor (2006, p. 81) também sintetiza a tipologia da internacionalização
pela formalização de tratado como resultado da autoridade emanada de um organismo
internacional e sob a forma excepcional (mas não improvável) decorrente da “vontade de uma
potência estrangeira de se imiscuir no processo de reconstrução de Estados vencidos”.
Cumpre assinalar que, para o direito comunitário, cujo pilar consiste na composição de
consensos, a formalização de tratados se revela como a forma que melhor se compatibiliza
com a natureza jurídica do instituto. As demais – autoridade de organismo internacional e
deliberação de potência estrangeira –, por não guardarem, necessariamente, a legitimidade
advinda da vontade, da liberdade de escolha do povo pertencente ao Estado-parte destinatário
da medida extrema, parecem não se coadunar com os preceitos de direito comunitário ao se
afastarem da integração quando intervêm na autodeterminação dos povos, direta ou
indiretamente, pelo uso da força legalizada, não consentida ou legitimada.
A partir desses elementos o conceito tradicional de soberania restaria
desafiado pelo direito comunitário na medida em que seus fundamentos teriam de se adaptar a
novas formas de atuação do Estado no campo internacional, principalmente a composição de
entendimentos além do campo interno governamental, muitas das vezes contaminado por
disputas partidárias descompromissadas com as demandas do povo e distantes do interesse
212
público. Mas, se o ponto nodal do direito comunitário e, por conseguinte, da integração reside
na soberania ameaçada ou em crise, importa perguntar: quem detém a titularidade da
soberania? Lewandowski (2004, p. 232) ilustrou sua obra com discussões doutrinárias das
escolas francesa e germânica239 que colocavam, de um lado, a noção de soberania na
representação do povo, retratada pela realidade empírica da nação e, de outro, na conformação
jurídica do Estado. O autor assinalou que, na atualidade, não há antinomia entre essas
doutrinas, valendo-se de Miguel Reale240:
De fato, de um ponto de vista sociológico ou político, é possível afirmar que a soberania radica-se no povo ou na nação, mas de acordo com uma perspectiva jurídica, ou seja, encarando-a como um direito, ela só pode ser exercida pelo Estado. No fundo, a soberania do povo ou da nação é a mesma do Estado, porém, apenas num segundo momento, que apresenta um caráter eminentemente jurídico.
Dessa feita, é possível depreender que o efetivo exercício da soberania passa
da vontade do povo, da nação, ao Estado juridicamente organizado que formula, aplica e
interpreta o direito e, por conseguinte, o poder de coerção. Portanto, como noção jurídica a
soberania está atrelada ao poder de representação outorgado ao Estado, que o exerce nos
campo interno e externo, limitado, contudo, aos preceitos originados dos valores cultuados
pelo povo ou pela nação. A par dessas percepções é possível suscitar que a essência da crise
não está no conceito de soberania, mas na representatividade sob o fundamento da qual a
soberania é exercida juridicamente pelo Estado241, cujos efeitos repercutem, inevitavelmente,
na forma como são estabelecidas as relações internacionais, seja nas trocas multilaterais, seja
239 O autor faz uma interessante passagem pelos autores franceses Rousseau (Do contrato social) e Emmanuel
Sieyès (O que é o Terceiro Estado?), indo aos germânicos Krause, Gerber e Gierke, sob a inspiração de Hegel e, num outro momento, a Kelsen, que defendia a soberania como “uma qualidade do ordenamento jurídico estatal, negando-lhe qualquer correspondência com a realidade empírica” (op. cit., p. 232).
240 Na lição de Miguel Reale, o “tão debatido contraste entre a escola francesa da soberania nacional e a corrente germânica da soberania do Estado provém de uma confusão entre os pontos iniciais das pesquisas e perde sua razão de ser quando examinamos o problema, primeiro, relativamente à origem ou à gênese do poder, e, depois, quanto ao poder juridicamente organizado e à forma de seu exercício” (op. cit., p. 232).
241 A respeito da legitimidade na condução dos desígnios de um povo ou de uma nação, sugere-se a leitura de Manuel Castells (O poder da identidade, Cap. 5 – Um Estado destituído de poder? São Paulo: Paz e Terra, 1999.
213
na composição de blocos regionais. A crise se desloca da noção central de soberania para duas
vertentes dependentes, porém inter-relacionadas: (i) a forma como os representantes do povo
ou da nação atuam, se estão atentos às demandas de seus representados, se agem com
probidade, ética e de acordo com o interesse público; e (ii) a maneira como os representados
exercem a cidadania, como elegem e vêem seus representantes, se como meros facilitadores
de interesses pessoais ou como responsáveis pela implementação de projetos de interesse
coletivo voltados à melhoria da condição de vida das pessoas, no campo interno e, também,
no externo, tendo em vista os preceitos norteadores da dignidade da pessoa humana.
É preciso observar com cautela as teorias que propalam a irremediável crise
da soberania, a fragmentação ou o fim dos Estados, a cessão de atribuições e o
compartilhamento do poder soberano, pois todos esses argumentos podem apenas ter o
propósito de servir de artifício doutrinário destinado a manter determinado estado de coisas,
em que os mais fortes mantêm suas prerrogativas e exercem o poder (mesmo que sob a capa
democrática), como também para evitar ruptura das amarras que dificultam o devir da
humanidade. Nessa linha, o direito comunitário, como passo primeiro da integração, precisa
ter como base o reconhecimento dos valores do outro, do diferente, não com o fim tosco de
apenas antever a vantagem econômica para restritos grupos de interesses, circunstância que
deturpa a soberania e a nacionalidade e coloca os indivíduos em permanente situação de
disputa e prontidão, interna e externamente. A soberania precisa, pois, ser desvelada sob a
forma de poder cognitivo dos homens para o fim de indicar aos seus representantes que os
direitos fundamentais e, em especial, a dignidade da pessoa humana, devem constituir a
preocupação primordial dos governos e das sociedades.
Claro está que o processo de integração interessa à política de defesa pelo
fato de colocar o direito e o político diante de desafios que superam a simples noção de
preparo e mobilização permanentes para o emprego contra ameaças efetivas ou potenciais, de
214
natureza militar ou não. Na integração, o conceito absoluto de soberania e a concepção restrita
de defesa como procedimento de vigilância permanente contra um inimigo efetivo ou
potencial encontram incompatibilidade com o princípio de cooperação e aceitação recíprocas
entre os Estados, a exigir uma continuada ponderação a respeito das estratégicas bélicas, da
construção de políticas públicas de interesse comunitário e de conformação das normas de
direito interno às expectativas das sociedades em processo de integração. A propósito, esses
fatores, na qualidade de elementos de persuasão pacífica, são capazes de diminuir ou evitar a
sensação de insegurança e de instabilidade que podem levar a processos de hostilidades
explícitas ou veladas, transitórias ou continuadas ao longo do tempo, prejudicando a
integração, a manutenção da paz e, por conseguinte, o desenvolvimento e o progresso. No
caso da América do Sul, há um caminho que pode levar à superação de assimetrias
irreconciliáveis: o Mercado Comum do Sul (Mercosul).
3.2 Mercosul, agenda externa brasileira e integração
O presente tópico apresentará apontamentos a respeito dos fundamentos do
Mercosul e de linhas da política externa brasileira, estabelecendo, sempre que possível, as
repercussões desses temas no conceito de soberania para o fim de enriquecer a discussão a
respeito da política de defesa nacional no contexto da integração. Como sabido, as relações
internacionais do Brasil são regidas pelos princípios de independência nacional, de
prevalência dos direitos humanos, de autodeterminação dos povos, de não-intervenção, de
igualdade entre os Estados, de defesa da paz, de solução pacífica dos conflitos, de repúdio ao
terrorismo e ao racismo, de cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e de
concessão de asilo político. Por certo que esses princípios não constituem invenção do
Constituinte de 1988, mas retratam a sensibilidade e, também, a pressão internacional para a
adoção, ou melhor, para a restauração de preceitos amplamente aceitos e consagrados no
215
direito das gentes, sob a inspiração dos dispositivos da Carta da Organização das Nações
Unidas, da Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana e da Carta da Organização
dos Estados Americanos242.
É no bojo dos princípios que regem as relações internacionais do Brasil que
se situa o dever de buscar “a integração econômica, política, social e cultural dos povos da
América Latina243, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”244.
Interessa destacar que o constituinte de 1988 foi além dos temas de ordem econômica ao
ampliar o escopo da integração, compreendendo os aspectos políticos, sociais e culturais da
América Latina, a representar significativo passo, relevante avanço rumo à composição de
entendimentos consensuais e sustentados em critérios de justiça e de igualdade, em que o
reconhecimento do outro, do diferente, há de ser considerado como fator essencial ao
estabelecimento de compromissos voltados ao desenvolvimento, ao progresso e à distribuição
da riqueza sem que haja, por outro lado, qualquer ameaça à independência nacional, à
soberania e à autodeterminação dos povos. Por certo que essa integração não está deslocada
da necessidade de fortalecimento do bloco formado por países pobres, subdesenvolvidos ou
em desenvolvimento, como forma de, pelo menos, tentar estabelecer mínimos (mesmo que
frágeis) mecanismos de proteção diante de mercados e de países industrializados, ricos e
desenvolvidos, na difícil tarefa de resistir e de não ceder às ingerências e às tentações
ideológicas, políticas e econômicas.
Balizado nesse contexto foi concluído em Assunção, no dia 26 de março de
1991, o Tratado para a Constituição do mercado comum entre a República da Argentina, a
República Federativa do Brasil, a República do Paraguai e a República Oriental do Uruguai.
242 Promulgada pelo Decreto no 67.542, de 12 de novembro de 1970. Carta reformada pelo Protocolo de Buenos
Aires de 1967 (Decreto no 95.559, de 8 de março de 1989). 243 A América Latina engloba vinte países independentes, a saber: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia,
Costa Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.
244 Cf. art. 4o, parágrafo único da Constituição Federal de 1988.
216
Também chamado de Tratado de Assunção, esse ato constituiu o denominado Mercosul,
tendo sido aprovado pelo Congresso Nacional brasileiro pelo Decreto Legislativo no 197, de
25 de setembro de 1991. Em vigor internacional desde 29 de novembro de 1991, foi
incorporado ao ordenamento jurídico pátrio em 22 de novembro de 1991, quando da
publicação do Decreto de promulgação no 350, de 21 de novembro de 1991.
Contudo, é notório que a principal dificuldade no estabelecimento de um
mínimo de integração, a iniciar, no caso, pela área econômica, reside justamente na intrincada
composição de acordos paralelos voltados ao atendimento dos mais diversos interesses, tarefa
que deve observar o conjunto de demandas dos países que constituem o bloco, restando, na
maioria das vezes, a impressão de que uns tiveram vantagens sobre outros, o que desfiguraria
o escopo da integração na medida em que as decisões políticas se distanciam dos interesses
comunitários para atender a pretensões locais direcionadas a satisfazer projetos ideológicos de
poder pelo poder, distanciados das necessidades das populações na consecução de atividades e
projetos que, somados, possam repercutir benefícios de ordem social, econômica e comercial,
atrelados à distribuição da riqueza e ao desenvolvimento de cada Estado-parte. A atuação
integrada é, portanto, procedimento difícil que, para alcançar êxito, não pode prescindir da
sensibilidade dos dirigentes políticos e da vigilância da sociedade como um todo, não apenas
dos grupos de interesses preocupados com as questões negociais de mercado, mas também da
população em geral que anseia por mudanças significativas nos mecanismos de direito e de
justiça com base nos quais será exercida a cidadania.
Por certo que a integração econômica, política, social e cultural de povos
constitui processo que se estende e se ajusta ao longo do tempo. Não prescinde do
reconhecimento de valores comuns e éticos voltados ao reconhecimento do outro, da reflexão
continuada em favor da alteridade. Embora o aspecto econômico possa contribuir para o
primeiro passo, é preciso considerar que somente essa variável dificilmente proporcionará
217
integração capaz de efetivamente distribuir riqueza e proporcionar desenvolvimento
sustentável, que não se traduzem na mera remessa de recursos, de financiamentos de projetos
ou na realização de investimentos de um Estado no outro, diretamente ou por intermédio de
empresas públicas e privadas, mas sim com base em políticas públicas construídas a partir das
reais necessidades das populações e na transferência de tecnologias capazes de modificar a
condição social de miserabilidade, de pobreza, de exclusão. É, pois, com o oferecimento de
condições de justiça eqüitativa que o espírito da integração poderá ser plenamente alcançado,
com base nas quais as pessoas possam adquirir conhecimento e, por conseguinte, desenvolver
as habilidades necessárias ao seu próprio desenvolvimento como pessoa humana, o que sem
dúvida acarretará melhoria das condições sociais e, inevitavelmente, dos países, das nações,
dos Estados-partes.
A integração não pode pretender transformar as pessoas num aglomerado
uniforme contabilizado para fins de projeções de receitas e despesas. A integração deve
colimar pela atenção, pelo respeito à diferença, ao reconhecimento de que o outro (povo) não
é igual, de que os valores, as tradições, as inclinações religiosas e as culturas variam e se
diversificam de lugar para lugar (mesmo no território de um mesmo país), mas que na
natureza humana deve prevalecer o sentimento de igualdade, de dignidade:
O pluralismo, com a dose de liberdade ‘negativa’ que acarreta, parece-me um ideal mais verdadeiro e mais humano do que as metas daqueles que buscam nas grandes estruturas disciplinadas e autoritárias o ideal do autodomínio ‘positivo’ por parte de classes, povos ou de toda a humanidade. É mais verdadeiro, pois pelo menos reconhece o fato de que as metas humanas são muitas, nem todas comensuráveis, e em perpétua rivalidade umas com as outras. Supor que todos os valores possam ser graduados numa única escala parece-me falsificar nosso conhecimento de que os homens são agentes livres, representar a decisão moral como uma operação que uma régua de cálculo poderia, em princípio, executar. (BERLIN, op. cit., 2002, p. 272)
Convém lembrar, em razão da relevância para o processo de integração, que
a América Latina congrega uma diversidade de povos de origem milenar, os nativos, os
218
índios, os negros e outros oriundos da Europa, dentre os quais os portugueses, os espanhóis,
os franceses. Essa teia de identidades amplia a complexidade do agir comunitariamente de
maneira integrada, sem restrições ou preconceitos. O passado de predomínio português e
espanhol no subcontinente não pode ser ignorado nos atuais processos de integração da
região. Carvalho (2006, p. 13), ao abordar como as colônias portuguesas e espanholas na
América passaram a condição de independentes, identifica que, no campo político, a diferença
residiu em dois pontos principais: (i) no exercício do poder e (ii) no tipo de sistema político.
No primeiro caso, o autor destaca que, no início do século XIX, a colônia espanhola enfrentou
a fragmentação política para, em meados daquele período, se transformar em dezessete países
independentes. Por seu turno, a colônia portuguesa manteve a unidade política, tendo
formado, já em 1825, o Brasil na configuração de único país independente245.
Quanto ao segundo aspecto (sistema político), Carvalho (2006, p. 13)
registra que grande parte dos países formados a partir da ex-colônia espanhola experimentou
considerável período anárquico, de modo que somente foi possível a organização do “poder
em bases mais ou menos legítimas graças a lideranças de estilo caudilhesco”, enquanto que “a
ex-colônia portuguesa, se não evitou um período inicial de instabilidade e rebeliões, não
chegou a ter uma única mudança irregular e violenta de governo (não considerando como tais
a abdicação e a antecipação da maioridade)”, mantendo, em todas as circunstâncias, naquela
oportunidade, “a supremacia do governo civil”.
A fragmentação e a manutenção da unidade, cujas circunstâncias históricas
são relevantes para melhor entender o atual processo de integração da região, são
demonstradas por Carvalho (2006, p. 16-17) na comparação que fez entre a formação inicial
das colônias e a posterior constituição de países. Assim, é de grande significado apresentar a
245 O autor também aborda os mecanismos com base nos quais o poder foi exercido pela Coroa portuguesa, a
compreender o uso e a distribuição da riqueza, o ensino, o processo legislativo, a elite burocrática, a distribuição de títulos de nobreza e de propriedades e, até mesmo, a dilação de prazo para dar fim à escravidão (dos negros).
219
síntese desses dados. No começo do século XIX, a colônia chamada América Espanhola
possuía quatro vice-reinados: Nova Espanha (México), Nova Granada (Colômbia), Peru e La
Plata (Argentina). Em 1850, a colônia espanhola havia dado origem a dezesseis países
independentes, a saber: Honduras, El Salvador, Guatemala, Nicarágua, Costa Rica, México,
República Dominicana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Chile, Bolívia, Argentina,
Uruguai e Paraguai. Cuba conquistou a independência em 1902. O Paraná, em 1903. No total,
dezoito países tiveram origem na colônia espanhola. Por sua vez, a colônia portuguesa, no
início do século XVIII, era representada por dois Estados: Maranhão e Brasil divididos em
capitanias-gerais que, em 1825, deram origem ao Brasil independente (a declaração de
independência ocorreu em 1822). Desse quadro é possível depreender as grandes dificuldades
a que estão sujeitas as medidas de integração econômica, política, social e cultural dos povos
da América Latina, tendo em vista que os desafios ultrapassam os aspectos econômicos para
indicarem a necessidade de equilibrar a composição política e reconhecer as diferenças de
cada povo. No entanto, há uma via comum a percorrer: a democracia.
De concreto, mas ainda em construção, o processo de integração da América
Latina tem por linha-mestra os aspectos econômicos e comerciais. Iniciado e centralizado na
América do Sul, por meio do Mercosul e sem desmerecer os demais acordos firmados por
outros países. É oportuno lembrar que a norma constitucional de integração prevista no
parágrafo único do art. 4o da Carta de 1988 não afasta a necessidade de que os instrumentos
pertinentes sejam submetidos aos procedimentos de recepção brasileiros246, que dispõem
sobre a aprovação dos tratados pelo Congresso Nacional, na representação da soberania
246 A esse respeito, o STF firmou o seguinte entendimento: "Sob a égide do modelo constitucional brasileiro,
mesmo cuidando-se de tratados de integração, ainda subsistem os clássicos mecanismos institucionais de recepção das convenções internacionais em geral, não bastando, para afastá-los, a existência da norma inscrita no art. 4o, parágrafo único, da Constituição da República, que possui conteúdo meramente programático e cujo sentido não torna dispensável a atuação dos instrumentos constitucionais de transposição, para a ordem jurídica doméstica, dos acordos, protocolos e convenções celebrados pelo Brasil no âmbito do Mercosul" (CR 8.279-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17 de junho de 1998, Diário da Justiça de 10 de agosto de 2000). Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 10 de agosto de 2007.
220
popular, mesmo que os atos de pactuação tenham sido previamente firmados pelo Presidente
da República como Chefe de Estado eleito democraticamente por sufrágio universal, nos
termos, respectivamente, dos artigos 49, I e 84, VIII da Carta de 1988, dispositivos esses que
atribuem, respectivamente, ao Poder Legislativo a competência exclusiva para “resolver
definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou
compromissos gravosos ao patrimônio nacional”, e, ao Presidente da República, também em
caráter exclusivo, a competência para “celebrar tratados, convenções e atos internacionais,
sujeitos a referendo” do Congresso Nacional.
A par dessas competências, convém lembrar que, no campo de proteção dos
direitos e garantias fundamentais, o constituinte de 1988 consignou que a República
Federativa do Brasil deve obedecer a outros direitos e garantias presentes no texto
constitucional, não exclusivamente os elencados no rol do art. 5o, a compreender, também, os
que decorram do regime e dos princípios adotados pela Carta Política, ou os que tiverem
origem nos tratados em que o país figure como parte. Relevante destacar que a Emenda
Constitucional no 45, de 30 de dezembro de 2004, incluiu no texto do art. 5o os §§ 3o e 4o. O §
4o dispõe sobre a submissão do Brasil à jurisdição do Tribunal Penal Internacional (TPI)247,
enquanto o § 3o inovou a forma de recepção de tratados que versem sobre direitos humanos,
ao adicionar a regra de quorum qualificado para que o ato, quando internalizado, passe a
vigorar com força equivalente a emenda constitucional248. Essa alteração alimenta a discussão
a respeito dos efeitos da nova regra, trazendo ao debate os argumentos segundo os quais
haveria gradação de direitos humanos: uma parte recepcionada como lei ordinária e, outra,
como de ordem constitucional, a trespassar, em cada caso, a maior ou menor possibilidade de
247 Também chamado Estatuto de Roma, foi incorporado ao direito interno pelo Decreto no 4.388, de 25 de
setembro de 2002. Esse tratado entrou em vigor internacional no dia 1o de julho de 2002 e, para o Brasil, em 1o de setembro de 2002.
248 Recente julgado do STF: HC 90.172, Relator Ministro Gilmar Mendes. Julgamento em 5 de junho de 2007. Informativo 470. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 13 de agosto de 2007.
221
modificação e de pleno exercício das garantias, além da necessidade – ou não – de submeter
os tratados anteriores ao novo rito, para conferir-lhes plena eficácia.
Essa questão interessa ao presente trabalho, pois revela a tendência cada vez
maior à supremacia dos direitos humanos como elemento indispensável a todo e qualquer
processo de integração, a compreender os aspectos econômicos, comerciais, políticos, sociais
e culturais. O econômico, o comercial e o mercadológico tendem a ceder aos valores humanos
como condição sem a qual a plena integração não será alcançada. Mas isso não pode ser uma
estratégia, uma armadilha para evitar a reação de países a políticas hegemônicas das potências
desenvolvidas. Impossível escapar do fato de que a integração para além do econômico pode
não interessar a grupos de interesses que dominam o cenário político, influenciam a atuação
do corpo social e delineiam um padrão homogêneo de sociedade, o que enfraquece a
pluralidade de que depende a democracia e as relações internacionais. Por essas razões é
preciso fortalecer o Mercosul e ampliar a legitimidade dos instrumentos voltados ao exercício
dos direitos humanos, sob o pressuposto de que esses postulados encontram caminho mais
seguro nos estados democráticos de direito que, mesmo em face da permanente
experimentação, aperfeiçoamento e até instabilidade, proporcionam liberdades a partir das
quais as sociedades e os países podem decidir seus desígnios. Não é demais lembrar que o
Brasil aderiu à Convenção Americana dos Direitos Humanos cerca de vinte e três anos depois
de sua elaboração249, ou seja, foi somente depois do regime militar e em meados do terceiro
ano do primeiro governo civil com eleições diretas para Presidente e Vice-Presidente da
República que o país, apesar de ainda lançar declaração interpretativa a determinados
dispositivos250, internalizou o Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969.
249 Cf. Decreto no 678, de 6 de novembro de 1992. 250 A declaração interpretativa foi redigida nos seguintes termos: “O Governo do Brasil entende que os arts. 43 e
48, alínea “d”, não incluem o direito automático de visitas e inspeções in loco da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, as quais dependerão da anuência expressa do Estado” (art. 2o do Decreto no 678/92).
222
No campo econômico internacional, Magalhães (2006, p. 121-140) registra
que o novo milênio e as expectativas promissoras para os países subdesenvolvidos revelam
um cenário diferente daquele vivido por ocasião da Revolução Industrial, período que, no
final do século XVII, marcou a distância entre países ricos e pobres, aferida no parâmetro do
produto per capita. O autor acrescenta que o fenômeno do terceiro milênio reside no rápido
crescimento de nações continentais, citando como exemplos a Índia e a China, não obstante as
assimetrias internas e externas que envolvem esses dois países, suscitando se o crescimento
será continuado ou não ao longo do tempo. O autor ainda pondera que os desequilíbrios entre
as grandes populações e os territórios nacionais, observados a “escassez relativa” de recursos
naturais e o distanciamento cultural do capitalismo, não constituem, no atual cenário, motivos
para a permanência no estado de subdesenvolvimento que, por sua vez, retrata uma grande
contradição da humanidade, fato que serve para demonstrar que a prosperidade ou o caminho
aberto para essa situação não se confunde com a melhoria das condições de vida de toda a
população dos países que intensamente atuam no mercado globalizado, donde as
desigualdades podem até aumentar em decorrência de processos de integração com fins
exclusivamente econômicos e comerciais, descompromissados com as demandas sociais.
De todo o modo, Magalhães (2006, p. 122-123) guarda ponderado otimismo
ao observar que o contexto em que o Brasil se encontra proporciona condições favoráveis a
políticas de desenvolvimento. No entender do autor as dificuldades brasileiras ultrapassam o
campo econômico. Não se trata, necessariamente, de inadequação das instituições. O autor se
reporta às origens históricas de exercício do poder para indicar os prováveis motivos para o
subdesenvolvimento do país, utilizando-se da expressão “barreira ideológica” para
caracterizar as elites “convencidas a adotarem voluntariamente, e por as considerarem as
melhores para o país, medidas em choque direto com o objetivo do desenvolvimento”. Mas,
quais os fatores que efetivamente impedem o desenvolvimento mais equitativo dos países no
223
mercado globalizado? A tese predominante consiste no argumento dos países ricos de que
seria inviável o desenvolvimento econômico em escala planetária. Tem-se, então, uma crítica
ao Consenso de Washington251, argumentando que o fiel cumprimento de suas regras levou a
América Latina à semi-estagnação, enquanto o descumprimento, pelos países asiáticos, gerou
rápido crescimento. No entender do autor, o caminho para a solução desse e de outros dilemas
passa pela criação, nos países subdesenvolvidos, de núcleos de pensamento crítico para o fim
de gerar paradigmas econômicos ajustados às diferentes realidades, o que poderia tornar
factível a atuação no mercado globalizado sem que para isso fosse necessária a subserviência,
com ênfase às exportações, ao crescimento acelerado do produto interno bruto e à
implementação de políticas destinadas a corrigir os alarmantes níveis de concentração de
renda e desemprego252.
Depreende-se, pois, que a política externa brasileira253, embora tenha por
prioridade a integração da América do Sul, está preponderantemente voltada aos aspectos
econômicos e comerciais (com as variáveis energia, ilícitos transnacionais, infra-estrutura,
fluxos de pessoas, políticas industriais e agrícolas, problemas ambientais, segurança,
tecnologia, cultura), atrelados à diversificação de parcerias entre países em desenvolvimento e
à manutenção das históricas negociações com os países ricos. Afigura-se a tentativa
empreendedora limitada pelo receio de represálias. Embora demonstre atitude voltada ao risco
e à confiança no potencial brasileiro, a política externa mantém cautela em face dos interesses
251 Política formulada em 1989 por economistas do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial e
do Departamento do Tesouro dos EUA, consistindo em regra básica aplicável ao ajustamento macroeconômico dos países em desenvolvimento, fundamentada nos seguintes pilares: disciplina fiscal, redução dos gastos públicos, reforma tributária, juros de mercado, câmbio de mercado, abertura comercial, investimento estrangeiro direto, privatização de empresas estatais, desregulamentação (afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas) e proteção ao direito de propriedade.
252 As ponderações a respeito das opões dos países na adoção de modelos próprios diante de crises econômicas e institucionais também são objeto dos estudos de Manuel Castells (Fim de milênio – A era da informação: economia, sociedade e cultura, v. 3. São Paulo: Paz e Terra, 2000) e de Hélio Jaguaribe (O Brasil ante o século XXI. In O Brasil é viável?: uma análise de aspectos críticos da realidade brasileira, seguida de esboço de diretrizes estratégicas para um projeto nacional. São Paulo: Paz e Terra, 2006).
253 Conforme o teor da Mensagem do Presidente da República encaminhada em 2007 ao Congresso Nacional, na abertura da 1ª Sessão Legislativa Ordinária da 53ª Legislatura, por força do disposto no inc. XI do art. 84 da Constituição Federal de 1988. Em 2008 o quadro manteve os mesmos fundamentos.
224
dos países desenvolvidos. Ainda é muito tímida a iniciativa de constituir sólido direito
comunitário, no âmbito regional, a partir do qual o processo de integração mais amplo possa
ganhar corpo, a compreender os aspectos políticos, sociais e culturais. O predomínio
econômico e comercial nos processos de integração influencia a elaboração do direito, com
forte tendência à planificação de regras e procedimentos para uniformizar demandas com o
intuito de proporcionar sensação de eqüidade e segurança jurídica.
Nesse cenário, cumpre destacar a relevante iniciativa, na América do Sul, do
desiderato de constituir o Parlamento do Mercosul como mecanismo de grande significado
para a integração de escopo mais amplo e, por conseguinte, representa significativo esforço na
construção de consensos regionais atentos às peculiaridades econômicas, políticas, sociais e
culturais em razão da natureza democrática da representatividade dos partícipes (pela
legitimidade outorgada a parlamentares eleitos pelo voto popular direto nos países de origem),
principalmente da Argentina, do Brasil, do Paraguai e do Uruguai, signatários do Mercosul e
do protocolo constitutivo do respectivo Parlamento254, além, é claro, de Bolívia, Chile e
Venezuela, nos limites dos acordos firmados. Em julho de 2006 o bloco foi ampliado com o
ingresso da Venezuela, na qualidade de membro pleno. Contudo, a efetividade dessa medida
ainda está sujeita à deliberação do Congresso Nacional brasileiro.
Se para superar a agenda econômica e comercial as regras de integração
devem observar princípios de direitos humanos, o processo de integração depende
essencialmente da democracia, que poderá ser deturpada quando utilizada como instrumento
para a consecução de projetos de poder e concretização de interesses de grupos que pretendam
manter a hegemonia ideológica, mascarando ameaças totalitárias que configuram óbice à livre
254 Em vigor internacional desde 24 de fevereiro de 2007, foi ratificado pelo governo brasileiro em 23 de
novembro de 2006.
225
integração política, social e cultural. Na força democrática do Protocolo de Ushuaia255
(firmado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) reside a legitimidade do processo de
integração, no simbolismo de reafirmar os princípios e objetivos do Mercosul e dos
correspondentes acordos de cooperação celebrados com Bolívia e Chile. O desprezo ou a
ruptura com os ideais democráticos256 implicará o isolamento dos países, tendo em vista que a
recusa leva à suspensão de participar dos processos decisórios e da fruição dos direitos
acordados no âmbito do bloco. Além do compromisso democrático de Ushuaia, o Protocolo
Constitutivo do Mercosul contempla o propósito dos Estados de levar a efeito uma integração
mais ampla, na linha do pluralismo e da representação popular de todos os países.
Em que pese as intenções de ampliar as bases democráticas do processo de
integração para torná-lo menos pragmático sob o ponto de vista econômico e comercial,
priorizando-se o multiculturalismo257 e a conjugação de esforços para o alcance de resultados
coletivos, é preciso admitir que está distante a consecução desses objetivos. Verifica-se que o
Mercosul e a agenda externa brasileira estão em linha com os tradicionais princípios de
soberania e não guardam elementos de supranacionalidade capazes de macular a atuação
independente do Brasil258, posto que, em tese, os atos estão sujeitos aos ritos próprios de
direito internacional e, em cada caso, à deliberação do Congresso Nacional, à luz da
legislação nacional no que tange à internalização das regras comuns firmadas entre blocos ou
países. É evidente que o Mercosul e, notadamente, o Protocolo Constitutivo de seu
Parlamento, constituem um relevante gesto na direção da integração política, social, cultural e
255 O Protocolo de Ushuaia, formalizado no dia 24 de julho de 1998, foi internalizado no Brasil na forma do
Decreto no 4.210, de 24 de abril de 2002, publicado no Diário Oficial da União de 25 de abril de 2002. 256 No que tange os princípios democráticos na América Latina, é muito proveitosa a leitura do Relatório
intitulado A Democracia na América Latina rumo a uma democracia de cidadãs e cidadãos, elaborado pelo PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (tradução de Mônica Hirts). Santana do Parnaíba, SP: LM&X, 2004.
257 Sobre o tema, C. Taylor (Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998). 258 Os temas soberania e integração também foram abordados por Paulo Napoleão Nogueira Silva (Direito
Constitucional do Mercosul. Rio de Janeiro: Forense, 2000).
226
econômica dos povos da América Latina, tendo como embrião a América do Sul, desde que
respeitadas as diferenças, a dignidade da pessoa humana e os princípios democráticos.
Essas reflexões denotam que a integração possibilita a superação de temas
econômicos e comerciais, afastando o argumento segundo o qual a soberania seria
fragmentada, compartilhada ou repartida em decorrência de valores, princípios e regras
comuns, posto que não se trata de mero positivismo, mas da percepção de que pode haver
crescimento, geração e distribuição de riqueza entre povos soberanos de origens diferentes,
desde que compartilhem valores comuns sem que para tanto o peso da moeda e a força de
políticas veladamente coercitivas ou persuasórias influenciem ou determinem os desígnios das
pessoas, das sociedades e dos países. Com essas percepções, passa-se a abordagem da política
de defesa brasileira no escopo da integração sul-americana.
3.3 Política de defesa brasileira e integração sul-americana
O tradicional conceito de soberania cedeu espaço a novas formas de
compreender a atuação dos Estados e das nações no contexto internacional, tendo em vista os
efeitos do mundo globalizado nas políticas internas de cada sociedade. Assim, decorrem
teorias segundo as quais a soberania restaria repartida, compartilhada ou fragmentada.
Provavelmente, o poder soberano ainda permaneça com os contornos originais, ou seja,
caracterizado pela decisão – nem sempre livre – dos povos na escolha das mais apropriadas
formas que aparentam assegurar a manutenção ou a assunção de determinado estado de
coisas, seja pela imposição de valores próprios ou pela necessidade de aceitar os de outros,
tendo como fatores decisivos o uso da força, da moeda ou mesmo da religião, em conjunto ou
isoladamente, de maneira abrupta ou continuada. Nessa ordem de idéias, as percepções acerca
da soberania se deslocam do senso de humanidade sem observar que os povos se distinguem
227
pelas origens, etnias, cor, prosperidade econômica, línguas. Portanto, nos processos de
integração é preciso revigorar o multiculturalismo e agir com base na alteridade.
Os movimentos de integração partem do pressuposto de que é preciso
pensar estrategicamente aspectos econômicos e comerciais para estabelecer critérios mínimos
de equilíbrio na tentativa de superar o nada ingênuo propósito de evitar fragilidade ou
vulnerabilidade a partir da qual o outro terá campo aberto para aproveitar o êxito. Não se trata
de rotular de tiranos os necessários propósitos da economia e do comércio, tendo em vista que
as sociedades giram em torno da subsistência, da troca e das negociações. Ocorre que desses
fatores também decorrem conflitos que vão dos diplomáticos aos bélicos, dos jurídicos aos
religiosos. A economia e o comércio, assim como a política e o direito, não podem ser
considerados apenas sob a ótica do conflito. Ao contrário, precisam ser compreendidos como
alternativa para a composição de consensos que determinem a distribuição equitativa da
riqueza para o fim de diminuir ou evitar desigualdades que levam a animosidades efetivas ou
potenciais entre países, blocos, regiões hemisféricas ou territórios de um mesmo país num
silencioso, continuado e prenhe sentimento de vingança, discórdia, desconfiança e desrespeito
à condição humana do outro. É nesse contexto que a política de defesa brasileira precisa ser
pensada no cenário de integração regional sul-americana, a partir do Mercosul quiçá como
instituição preparatória da conjugação de valores comuns dos povos da América Latina nos
campos econômico, político, social e cultural, nos quais, por via de conseqüência, estão os
aspectos humanitários259.
Com as devidas cautelas, a experiência da Europa pode ajudar a formar um
novo pensamento sul-americano em matéria de defesa, razão pela qual é de valia registrar
determinadas práticas vivenciadas por aquele continente. Borges (2005, p. 69) assinala que a
doutrina do direito comunitário europeu está assentada no pilar formado (i) pelas três
259 Nessa linha, a leitura de Emmauel Lèvinas (Entre nós – ensaios sobre a alteridade. Rio de Janeiro: Vozes,
2004; e Humanismo do outro homem. Rio de Janeiro: Vozes, 1993).
228
comunidades européias260, (ii) pela política externa e de segurança comum (PESC) e (iii) pela
área de justiça e assuntos internos. Essa “metáfora arquitetônica” foi construída depois da
Segunda Guerra Mundial na tentativa de diminuir as diferenças com base em variáveis que
determinam a probabilidade de ocorrer conflitos, criando interdependência entre todos os
países envolvidos para o fim de manter a paz calcada na cooperação recíproca, cujos efeitos
ultrapassam o continente europeu tendo em vista o grau sofisticado de composição que pode
ser observado para ilustrar possíveis cenários de integração.
Daquelas comunidades, a CECA e a EUROTOM têm correspondência
direta com os temas de segurança e defesa. A primeira foi fundada por França, Itália e a então
Alemanha Ocidental, em 1951, no Tratado de Paris, com o objetivo de integrar países e evitar
outra guerra mundial. Por sua vez, a EURATOM, constituída em 1957 pelo Tratado de
Roma261, tem o objetivo de fomentar a cooperação para o desenvolvimento e a utilização da
energia nuclear e, por conseguinte, elevar a condição de vida dos países-membros. Não
obstante a relevância dos temas justiça e assuntos internos, a PESC tem especial relevância
para a abordagem proposta no presente trabalho, tendo em vista sua natureza de cooperação
intergovernamental baseada nos objetivos de (i) salvaguardar os valores comuns, os interesses
básicos e a independência da União Européia, de (ii) reforçar, sob todas as formas, a
segurança daquela comunidade, de (iii) manter a paz e ampliar a segurança internacional e,
por último, de (iv) desenvolver e consolidar a democracia e o estado de direito, com respeito
aos direitos humanos e às liberdades fundamentais.
Note-se que há contradição de princípios na política de defesa comum
européia. Dos seus quatro primeiros objetivos, dois são impeditivos de uma integração mais
ampla, pois admitem a salvaguarda, até as últimas conseqüências, dos valores, dos interesses e
260 Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA), Comunidade Européia da Energia Atômica
(EURATOM) e Comunidade Européia (CE). 261 Instituiu a Comunidade Econômica Européia.
229
da independência exclusivamente em favor da União Européia, sem considerar as demais
nações, enquanto que os dois últimos buscam a paz e a segurança internacionais, a
consolidação da democracia e seus indissociáveis mecanismos de direitos humanos e
liberdades fundamentais. A contradição reside na assimetria que revela os resquícios de
soberania absoluta exteriorizada e contrastada com as realidades de outros blocos ou nações,
sujeitando os princípios democráticos à condição de instrumentos oponíveis àqueles que os
desafiarem, o que representa uma antinomia que coloca a democracia entre a paz que se
prepara para a guerra, podendo ser utilizada como meio de uma ou outra condição, servindo
de artifício para práticas persuasórias e expansionistas por meio de estratégias sofisticadas de
convencimento e imposição de valores, alternativamente às pretéritas anexações forçadas de
territórios, às intervenções não autorizadas e à prática de guerras justas, injustas ou de
conquista, como outrora foi utilizada a soberania absoluta. Não é demais dizer que a
democracia é contida pelas demandas que estão em jogo, fazendo com que a contradição de
seus argumentos atinja os próprios valores defendidos pelo país que a maneja, como foi o
caso da suspensão dos direitos civis e das liberdades públicas decretados pelos EUA para
fazer face às investigações, às medidas coercitivas e às ações intervencionistas armadas que
decorreram dos atentados terroristas de 11 de setembro.
Na medida em que a PESC admite a defesa incondicional das demandas da
comunidade a que se dirige, tolera a omissão ou a prática de atos que podem mitigar os
preceitos democráticos em que se inspira, concorrendo, inclusive, para o enfraquecimento da
paz e a ampliação de desequilíbrios que levam a instabilidades prejudiciais à segurança
internacional. De certo que a América Latina e, especialmente, o continente sul-americano,
ainda não experimentaram a composição de interesses que efetivamente transcendam a
230
economia e o comércio, sem desmerecer os acordos estratégicos formalizados262. Todavia, o
Tratado de Assunção, o Protocolo de Ushuaia e o Protocolo Constitutivo do Parlamento do
Mercosul constituem os pilares da integração sul-americana, constatando-se que a ênfase
embrionária aos aspectos econômicos e comerciais foram associados à tendência de
composição política, tendo em vista a prevalência dos princípios democráticos e a
possibilidade de tomar decisões vinculatórias não somente a cargo dos chefes de Estado, mas
– numa fase ainda em construção – também consignadas a representantes eleitos pelo voto
direto dos povos integrantes dos poderes legislativos de cada Estado-Parte, no Parlamento do
Mercosul. Entretanto, nem a América Latina nem a América do Sul dispõem de um tratado
voltado à defesa comum, o que remete à reflexão anteriormente suscitada: de que defesa se
trataria? Seria esse um tema de interesse para a integração da região? A respeito do tema, o
pensamento de Silva (2000, p. 343):
A questão relativa à defesa comum, parece ser uma das resultantes lógicas da existência de um ‘bloco’ econômico e social comunitário; pois, no atual contexto mundial, dificilmente a existência de uma tal entidade poderá deixar de, por extensão e corolário natural, representar algo muito próximo de uma confederação política. Tal confederação se afigura, aliás, mais estreita do que a Comunidade de Estados Independentes, surgida após a extinção da União Soviética. Por outro lado, não se pode excluir a possível formação, até mesmo, de uma ‘federação indireta’, às avessas e assimétrica, na medida em que as Constituições dos seus membros forem sendo compatibilizadas umas com as outras.
Silva (2000, p. 343) ainda assinala que as dificuldades para implementar
uma política de defesa comum vão além dos aspectos constitucionais que envolvem os países
do Mercosul. Para o autor, os maiores entraves são de ordem factual e permeiam a atuação
262 Com destaque para os atos promulgados pelo Brasil de 2005 até junho de 2007, dentre os quais: a Convenção
Interamericana sobre Transparência nas Aquisições de Armas Convencionais (Decreto no 6.060, de 12 de março de 2007); o Memorando de Entendimento firmado com a Argentina para estabelecer um mecanismo permanente de intercâmbio de informações sobre a circulação e o tráfico ilícito de armas de fogo, munições, explosivos e outros materiais correlatos (Decreto no 5.945, de 26 de outubro de 2006); o Acordo de Cooperação firmado com a Argentina para o combate ao tráfego de aeronaves supostamente envolvidas em atividades ilícitas internacionais (Decreto no 5.933, de 13 de outubro de 2006); e o Acordo Regional de Cooperação para a Promoção da Ciência e da Tecnologia Nucleares na América Latina e no Caribe – ARCAL (Decreto no 5.885, de 5 de setembro de 2006).
231
política na região, com destaque para temas que envolvem diretamente Brasil e Argentina, os
dois maiores parceiros do bloco. O autor lembra as animosidades históricas que, territorial e
demograficamente envolveram os dois países, além da economia de todos os países da região,
fatores que refletem nas respectivas populações, isso porque não se pode deixar de considerar
que a base da integração tem por eixo central os aspectos econômicos e comerciais que
influenciam políticas públicas e, notadamente, a política de defesa, tendo em vista que o êxito
do bloco depende da confiança recíproca e do compromisso de não beligerância efetiva ou
potencial.
Essas premissas indicam a necessidade de fortalecer o Mercosul, posto que a
existência do bloco representa mais do que acordos econômicos e comerciais, guardando forte
tendência à consolidação de uma integração política a partir de seu Parlamento. A defesa
comum ou um sistema de defesa que reúna interesses e valores convergentes será a
conseqüência natural do amadurecimento das sociedades e de suas escolhas como efeito do
processo de integração ampla, principalmente em tempos de paz. Para Silva (2000, p. 350),
“vingando a defesa comum, muitos outros problemas e ressentimentos ficariam superados
entre os respectivos países”, entendendo essa proteção comum como mecanismo de
integração que constitui um dos poucos aspectos do bloco que não demandam ajustes
constitucionais:
De notar, a defesa comum é um dos poucos aspectos a envolver o Mercosul sem, no entanto, demandar adequações constitucionais pelos países que o compõem: pode ser perfeitamente equacionado mediante legislação infraconstitucional, uma vez que não importa em diminuir, mas em ampliar o alcance da soberania de seus membros através da integração; deixando de lado no seu âmbito o conceito de ‘estrangeiro’, embora mantido o conceito de ‘nacional’ e, a nosso ver, superando até mesmo a expressão ‘direito comunitário’, em benefício da expressão ‘direito da integração’.
Segundo as reflexões de Silva (2000, p. 352), a efetividade do Mercosul e,
por conseguinte, da futura composição de consenso para a defesa comum da região encontra
232
maior obstáculo nas “estruturas internas” de cada Estado-Parte, especialmente nas do Brasil e
Argentina, países que teriam mais a conceder do que a obter. O autor destaca que nesses
países são fortes as influências das “oligarquias econômicas regionais” que acabam por
determinar como os governos devem se comportar no contexto regional, ponderando que a
plena efetividade do Tratado de Assunção vai além da ação diplomática na superação de
crises para alcançar a percepção de vantagens e de benefícios mútuos que somente seriam
revelados a partir de uma “reformulação e adequação dos respectivos pactos federativos” que,
no dizer do autor, seria “ampla no sentido horizontal” e “profunda no sentido vertical”,
transformação sem a qual a integração não passará dos aspectos meramente econômicos e
comerciais, vitimada pelas “guerras fiscais” entre os Estados brasileiros e pela acirrada
concorrência entre os países ou entre países e empresas do bloco, gerando crises pontuais
contornadas pela diplomacia e transferidas, total ou parcialmente, para as próximas disputas.
Silva (2000, p. 353) destaca, por fim, que a hegemonia da superpotência
norte-americana exige a existência de blocos supranacionais não como forma de fragmentação
ou enfraquecimento da soberania dos Estados nacionais, mas essencialmente como alternativa
mais viável para preservá-la, tendo por resultado o determinismo das relações dos campos
político, jurídico, militar e econômico:
Com certeza, a questão da defesa comum nem sempre esteve ligada apenas a interesses econômicos: tem sido notória a cooperação de meios militares e logísticos de diversos países, para a proteção eventual de espaços geográficos sem, necessariamente, a complementação de convergências econômicas. A partir da realidade que a última década deste século apresenta para o século XXI, isso não será mais possível: ‘o político-jurídico’ e o ‘militar’ devem voltar a determinar o ‘econômico’, e vice-versa; a nenhum destes parece possível dissociá-lo dos demais.
A política de defesa brasileira corresponde a essa concepção integradora da
região com base no Mercosul. Dentre os pontos mais relevantes estão a solução pacífica das
controvérsias e o fortalecimento da paz e da segurança internacionais. Apesar de considerar
233
pouco provável um novo conflito generalizado entre Estados, admite a renovação de conflitos
étnicos e religiosos, além da exacerbação de nacionalismos e da fragmentação de Estados, o
que poderia ameaçar a ordem mundial. A aproximação entre defesa e integração também se
verifica nas disputas por áreas marítimas, domínio aeroespacial e fontes de água doce e de
energia, com reflexos que ultrapassam o aspecto formal da soberania para atingir a
independência dos países na tomada de decisões e na adoção de medidas em seus territórios,
como fontes de conflitos. Exemplo dessa polêmica está na preservação da Amazônia
brasileira, sobre a qual o Brasil tem soberania ao tempo em que sente cada vez mais próxima
a possibilidade de ver sua independência mitigada por força da precariedade dos meios de
preservação ambiental, na demonstração de que o poder predominante maneja o argumento da
maneira que melhor lhe convém, pois no passado a guerra de conquista e a exploração
econômica e comercial tinham como um de seus pressupostos de validade a existência de
áreas não-cultivadas ou exploradas no território objeto da ofensa.
O ambiente regional e o entorno estratégico receberam o seguinte
tratamento na política de defesa:
3. O AMBIENTE REGIONAL E O ENTORNO ESTRATÉGICO
3.1 O subcontinente da América do Sul é o ambiente regional no qual o Brasil se insere. Buscando aprofundar seus laços de cooperação, o País visualiza um entorno estratégico que extrapola a massa do subcontinente e incluiu a projeção pela fronteira do Atlântico Sul e os países lindeiros da África.
3.2 A América do Sul, distante dos principais focos mundiais de tensão e livre de armas nucleares, é considerada uma região relativamente pacífica. Além disso, processos de consolidação democrática e de integração regional tendem a aumentar a confiabilidade regional e a solução negociada dos conflitos.
3.3 Entre os processos que contribuem para reduzir a possibilidade de conflitos no entorno estratégico, destacam-se: o fortalecimento do processo de integração, a partir do Mercosul, da Comunidade Andina de Nações e da Comunidade Sul-Americana de Nações; o estreito relacionamento entre os países amazônicos, no âmbito da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica; a intensificação da cooperação e do comércio com países africanos, facilitada pelos laços étnicos e culturais; e a consolidação da Zona de Paz e de Cooperação do Atlântico Sul.
234
A ampliação e a modernização da infra-estrutura da América do Sul podem concretizar a ligação entre seus centros produtivos e os dois oceanos, facilitando o desenvolvimento e a integração.
3.4 A segurança de um país é afetada pelo grau de instabilidade da região onde está inserido. Assim, é desejável que ocorram: o consenso; a harmonia política; e a convergência de ações entre os países vizinhos, visando lograr a redução da criminalidade transnacional, na busca de melhores condições para o desenvolvimento econômico e social que tornarão a região mais coesa e mais forte.
3.5 A existência de zonas de instabilidade e de ilícitos transnacionais pode provocar o transbordamento de conflitos para outros países da América do Sul. A persistência desses focos de incertezas impõe que a defesa do Estado seja vista com prioridade, para preservar os interesses nacionais, a soberania e a independência.
3.6 Como conseqüência de sua situação geopolítica, é importante para o Brasil que se aprofunde o processo de desenvolvimento integrado e harmônico da América do Sul, o que se estende, naturalmente, à área de defesa e segurança regionais.
Considerados esses termos, convém retomar as duas perguntas feitas no
início da abordagem desse tópico: qual o escopo de uma defesa comum? Seria esse um tema
de interesse para a integração da região? Cumpre afastar, de plano, a concepção pouco
provável (e indesejável em face das deturpações que poderia gerar) de forças armadas
regulares multinacionais organizadas, preparadas e empregadas na região. A atuação militar
encontra melhor caminho na cooperação estratégica do esforço para a consecução de
objetivos comuns, escolhidos por consenso pelos Estados a partir da observância das
demandas das populações, no processo democrático de representação popular liderado pelo
poder político civil, mediante trocas de experiências, realização de exercícios combinados,
desenvolvimento e transferência de tecnologias.
Por certo que essas formas de atuação conjunta devem ser trabalhadas a
partir do pressuposto da não-agressão e da não-intervenção, por meio de controles rígidos
estabelecidos sob o fundamento do estado de direito e da democracia, na elevada tarefa
política e no exercício da autoridade sobre as forças armadas regulares e demais instituições
públicas e privadas, observando-se regras claras de não-beligerância, de aceitação da
235
autodeterminação dos povos e de reconhecimento dos direitos humanos, tendo em conta a
legitimidade de políticas econômicas e comerciais que proporcionem a equidade
indispensável à preservação da paz, com severas sanções pelo descumprimento dos acordos,
tudo de conhecimento público e fiscalizado por colegiados proporcionalmente integrados por
representantes da sociedade civil, políticos e especialistas.
Sob essa perspectiva, a defesa comum estaria voltada a preservar a
construção da segurança a partir da qual os povos da região poderão desenvolver seu peculiar
processo de integração econômica, política, social e cultural. Essa segurança não poderia
tomar outro parâmetro senão aquele definido pela ONU: “condição pela qual os Estados
consideram que não existe perigo de uma agressão militar, pressões políticas ou coerção
econômica, de maneira que podem dedicar-se livremente a seu próprio desenvolvimento e
progresso”263. Nesse contexto, o recente acordo de cooperação em matéria de defesa firmado
entre Brasil e Argentina merece ser visto como a iniciativa mais relevante do processo de
integração que contempla como variável a defesa comum. O ato foi recepcionado pela
legislação brasileira na forma do Decreto no 6.084, de 19 de abril de 2007264, internalizando o
denominado Acordo Quadro de Cooperação, elaborado em Puerto Iguazú, no dia 30 de
novembro de 2005.
É relevante destacar os pontos do acordo Brasil-Argentina que mais se
aproximam da idéia central do presente trabalho. Seu objeto deixa claro que a cooperação será
baseada nos princípios de igualdade, reciprocidade e mútuos interesses, sujeita, todavia, às
legislações dos países e, também, aos compromissos assumidos em âmbito internacional, o
que denota a aceitação de procedimentos rígidos e a aceitação das regras estabelecidas pela
ONU, notadamente quanto aos aspectos nucleares, armamento e solução de controvérsias. Foi
263 Definição extraída do tópico “O Estado, a segurança e a defesa”, da Política de Defesa Nacional brasileira. 264 O acordo foi aprovado pelo Congresso Nacional brasileiro, por meio do Decreto Legislativo no 484, de 20 de
dezembro de 2006, em vigor internacional no dia 26 de janeiro de 2007. O Decreto de recepção no 6.084, de 19 de abril de 2007, foi publicado no Diário Oficial da União de 20 de abril de 2007.
236
fixado que o acordo terá como principal objetivo o fortalecimento da “cooperação política em
matéria de defesa”, o que eleva e institucionaliza os procedimentos democráticos na escolha
de alternativas e dos intercâmbios que serão levados a efeito, a abranger a “troca de
experiências em desenho e gestão de políticas de defesa e de ações nas áreas de planejamento,
gestão orçamentária, pesquisa e desenvolvimento, apoio logístico e aquisição de produtos e
serviços de defesa”265. Os artigos segundo, terceiro e quarto do acordo tratam,
respectivamente, das ações, do alcance da cooperação e da forma como será executado, cujos
dispositivos se limitam a ações programáticas.
Não obstante os aspectos favoráveis que enuncia, o acordo Brasil-Argentina
está limitado aos países signatários e dirigido enfaticamente aos temas de natureza militar, os
quais, por sua vez, têm forte conotação econômica principalmente porque priorizam a
indústria de defesa e o conseqüente crescimento da produção bélica, circunstância que, se por
um lado poderá fortalecer as relações entre os dois países, por outro abre a possibilidade de
desequilíbrios indesejáveis nas relações com os demais Estados do entorno estratégico
regional, num movimento de precaução, afastamento e até ameaça, o que pode prejudicar a
construção do processo de integração ampla. A propósito, esses efeitos também repercutem na
comunidade internacional que, de acordo com as circunstâncias do jogo político, econômico,
tecnológico e ambiental, poderá ver a região como grande compradora de material de
emprego militar, provável adversária e inimiga potencial. Se o bloco sul-americano estabelece
tratado comum para dispor sobre a defesa da região, logo terá ampliada a integração
econômica e comercial, como também aperfeiçoado o reconhecimento das diferenças
políticas, sociais e culturais, pressupostos sob o fundamento dos quais a composição
eqüitativa de interesses ganha mais espaço, legitimidade e efetividade, proporcionando
desenvolvimento e progresso, na linha da definição de segurança adotada pela ONU.
265 Cf. Artigo 1 do Acordo Quadro de Cooperação.
237
Da defesa comum fundamentada em princípios democráticos e desprendida
de apelos meramente econômicos e comerciais com foco no fomento da indústria bélica e no
decorrente aumento da produção armamentista poderá resultar novos matizes de cooperação,
sob o pressuposto de que a defesa transcende o campo militar, de modo que a diminuição das
vulnerabilidades e os mecanismos de dissuasão compreendem, também, o desenvolvimento
sustentado e o pleno exercício da cidadania, mediante escolhas apropriadas de representantes
políticos, prestação de serviços de saúde adequados e amplo acesso ao sistema de educação,
apenas para exemplificar. Com esse escopo, os países terão mais do que interesses comuns,
mas políticas públicas essenciais e estratégicas a construir, a executar, a desfrutar e a
preservar conjunta e cooperativamente, dissipando-se algumas das mais potenciais formas de
ameaças, dentre as quais as bélicas, as econômicas, as sociais (miséria, tráfico, criminalidade
em geral), as terroristas e as ambientais.
São grandes as dificuldades para alcançar esse estágio de integração, pois os
antagonismos entre o fortalecimento e a atenuação do bélico impedem a fixação de pontos
decisivos que englobem amplos consensos equitativos. A hipótese de ameaça potencial coloca
os países em estado de latente preparação para o esforço de combate que, na atualidade,
assume variados contornos. O alinhamento com a política internacional predominante sujeita
os países a ingerências externas ao argumento da vigilância coletiva autorizada, enquanto que
a recusa em aceitar a política e as regras leva à exclusão e ao ônus de sanções rigorosas.
Recentemente, o Brasil e o Irã se viram às voltas com os conflitos desses valores, nos casos
que envolveram o enriquecimento de urânio. E a democracia praticada não é suficiente para
equacionar esses problemas; pode ajudar, mas não resolve porque sofre distorções e obedece a
dosimetria arbitrada pelo poder que tem maior possibilidade de persuadir, ou seja, é parcial.
A realidade imposta pela mundialização forçará o poder político a construir
a defesa comum na América do Sul. Não uma defesa armada uns contra os outros ou do bloco
238
regional contra outros blocos ou países da região ou do globo, mas uma defesa que prime pela
segurança no sentido de proporcionar as mais equitativas condições de desenvolvimento e
progresso, da necessidade de fortalecer as instituições, as sociedades e os indivíduos, de modo
a que todos percebam a importância da atuação em conjunto para evitar a fragmentação, não a
fragmentação das soberanias nacionais, mas da própria identidade dos povos na medida em
que a busca desenfreada pela sobrevivência e prevalência internacionais tende a ampliar o
isolamento dos países, o deslocamento dos preceitos humanitários e a extrema dependência
das demandas e das políticas dos países mais ricos ou desenvolvidos que, via de regra, não se
adaptam à diversidade e à singularidade dos interesses e das expectativas regionais266.
O direito comunitário, indutor da integração mais ampla, encerra o desafio
político de encontrar o caminho da cooperação para a construção de consensos legítimos,
capazes de reconhecer as diferenças e compor interesses. Nesse sentido, é pertinente refletir a
respeito da formulação de um tratado de cooperação entre os países da América do Sul, que
disponha sobre a atuação conjunta para a segurança e a defesa. Essa coexistência requer a
conciliação das demandas nacionais com os interesses comunitários sem, contudo, retirar a
soberania e as identidades nacionais, prestigiando a relevância da atuação política na
composição de consensos, num permanente trabalho voltado a desvelar confluências e ajustar
assimetrias, tendo como pressuposto o estado democrático de direito. O governo brasileiro
deu o primeiro passo na construção de idéias embrionárias do chamado “conselho sul-
americano de defesa” e da formulação do “plano estratégico de defesa”, tendo por fio
condutor a integração regional267, temas que estão sob a ponderação dos países.
266 Sugere-se a leitura de O Brasil no cenário internacional de defesa e segurança (in Pensamento brasileiro
sobre defesa e segurança, vol. 2. Brasília: Ministério da Defesa, 2004). 267 A esse respeito, as notícias veiculadas pelo Ministério da Defesa (disponível em: <www.defesa.gov.br>.
Acesso em: 11 de abril de 2008), a exposição feita pelos Ministros Nelson Jobim e Mangabeira Unger à Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados (disponível em: <www.camara.gov.br>. Acesso em: 3 de junho de 2008) e a reunião de cúpula dos presidentes dos países da América do Sul, realizada em Brasília, no dia 23 de maio de 2008.
239
De certo que a defesa comum da América do Sul não poderá se voltar ao
equívoco de servir como instrumento de pressão, de coerção, de latente beligerância a
persuadir países em face do arsenal bélico, do efetivo militar ou de fatores econômicos.
Também não deve instrumentalizar barganhas globalizadas ou macular agendas políticas
voltadas à hegemonia e à imposição de valores, idéias e projetos de governo. A defesa não
pode se deslocar da definição de segurança elaborada pela ONU como mecanismo equitativo
para o livre desenvolvimento e progresso, a compreender a necessidade da cooperação e do
reconhecimento da condição humana do outro, como o mais apropriado mecanismo a partir
do qual a paz possa ser aperfeiçoada e mantida.
A aventada defesa comum precisa ser elaborada à luz de princípios
democráticos e, por conseguinte, de direitos humanos, de tal sorte que sua inserção no direito
nacional se opere de acordo com a nova regra constitucional prevista no § 3o do art. 5o da
Constituição de 1988, para o fim de evitar a ocorrência de distorções, na linha da Carta da
ONU, da Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, da Carta da Organização dos
Estados Americanos, do Protocolo de Ushuaia e do Protocolo Constitutivo do Parlamento do
Mercosul, para o fim de proteger a região de pretensões totalitárias, indicando aos demais
países o imperativo dos preceitos adotados.
É nesse contexto que se situa a relevância do caráter transdisciplinar da
defesa, especialmente na composição das políticas públicas internas de cada Estado-Parte,
para o fim de que as populações nacionais, sem embargo da representação parlamentar e
governamental, possam efetivamente participar da construção de uma nova realidade
comunitária pela prática da eqüidade e da solidariedade, com a finalidade de proporcionar
condições de dignidade ao desenvolvimento da condição humana, da melhor distribuição da
riqueza, da educação e saúde de qualidade, acessíveis a todas as pessoas, de modo a que a
integração regional pretendida não se perca em promessas inexeqüíveis ou descontinuadas,
240
transformando a região em ilhas de privilegiados cercadas por cinturões de pobreza e miséria,
elevando o tema de defesa como política de Estado e não de governos transitórios, reforçando
a idéia de que sua formulação, em razão da democracia representativa e de seus amplos
efeitos vinculatórios, merece previsão constitucional ou, no mínimo, por lei ordinária.
241
CONCLUSÃO
A abordagem proposta no presente trabalho teve como problema central os
fundamentos ou princípios da formulação da política de defesa brasileira, levando em conta a
transição do regime de exceção para o democrático, considerado o contexto internacional e a
rede de interesses que atua em torno do tema. Na tentativa de desvelar os desafios que essas
circunstâncias colocam ao direito e ao poder político, os estudos foram iniciados a partir da
composição das assimetrias que compreendem o tripé composto pelas noções assimétricas
entre soberania, segurança e democracia.
O argumento da soberania como poder absoluto e fundamento da segurança
e da defesa foi contrastado com a interdependência imposta pelas práticas de globalização e
da decorrente tomada de decisões, determinando a conformação dos países com os desníveis
de poder que, na prática, permitem a supremacia de uns sobre outros, influenciando a forma
como a soberania é exercida. É com base na soberania teoricamente contida no exterior e
relativamente ilimitada no campo interno que as políticas de segurança e defesa são
elaboradas, refletindo as desigualdades existentes entre os países, o que determina, por
conseguinte, a maior ousadia ou a maior prudência em estabelecer princípios, estratégias e
táticas.
A segurança se preocupa primeiro com a preservação de interesses nacionais
para, num segundo plano, tentar compor arranjos coletivos. Mas, principalmente na
contemporaneidade, marcada pela velocidade e pela força do transnacional, torna-se quase
impossível distinguir os interesses, as demandas e as disputas de poder. Ao tempo em que a
idéia de segurança procura estabelecer ou manter a paz, na prática ocorre a suspensão da
beligerância explícita, isto é, não se interrompe a preparação permanente para um futuro ou
eventual enfrentamento, potencial ou manifesto, de natureza militar ou não, limite que poderá
242
ser evitado ou diminuído pelo senso coletivo de proteção, ou melhor, pela solidariedade, pelo
ainda distante gesto de partilhar. Logo, segurança implica criar condições para que os
conflitos se resolvam pacificamente, em decorrência do reconhecimento das diferenças e da
cooperação. Ocorre que por segurança também se entende prevenção e proteção contra o
outro, o que gera discórdia e uso da força política, econômica e militar para fazer valer
interesses nacionais (mas não necessariamente públicos ou do povo) ou de grupos que atuam
conjuntamente no cenário internacional.
A democracia integra o terceiro elemento do tripé assimétrico. Mas, o que é
democracia? Não é algo pronto e acabado que pode ser utilizado sob medida por todos os
povos ou nações. Sequer pode ser imposta como salvação ou libertação de natureza política
ou moral, pois, se assim ocorrer, seus preceitos serão profunda e irremediavelmente
distorcidos, violados. Democracia ou ditadura268, o senso crítico exige que as reflexões na
atualidade ponderem a respeito de formas disfarçadas que, ao abrigo de leis e de suposta
legitimidade, tentam retirar a soberania do povo na condução de seus desígnios, com o sutil
argumento de que a defesa, a segurança e a democracia prescindem do regime de liberdade e
igualdade complementado pela solidariedade. O totalitarismo é um desses disfarces, na visão
de Lefort (1991, p. 35): “a democracia já não dá lugar a instituições, a modos de organização
e de representação totalitária? Seguramente sim. Porém, não é menos verdadeiro que uma
mudança na economia do poder é necessária para que surja a forma de sociedade totalitária”.
O Brasil enfrentou e venceu a transição do regime autoritário para o
democrático, mas ainda caminha na consolidação da plena democracia. Não é tarefa fácil
compor conflitos numa sociedade tão complexa e desigual quanto à brasileira, ainda mais 268 Interessante observar que os povos antigos lançavam mão do instituto jurídico-político da ditadura para
preservar a república, porém com rígidos critérios. Parece antagônico, mas é revelador: “[...] Nos princípios da República recorreu-se muitas vezes à ditadura porque os alicerces do Estado ainda não eram bastante sólidos, para que só a força da Constituição o sustentasse; [...] Ademais, de qualquer modo que se confie tão poderosa comissão, cabe pôr um prazo de curta duração, que ela nunca transcenda; nas tempestades que a motivam, o Estado é logo subvertido ou salvo, e, além do instante arriscado, é tirânica ou inútil”. (ROUSSEAU, 2005, p. 114-115)
243
quando se verifica que o sistema político-partidário, apesar dos esforços, carece de maior
legitimidade para cumprir a finalidade de bem representar a soberania popular. É, pois, nesse
contexto que se faz necessário rever as percepções de como a defesa deve ser compreendida e
aperfeiçoada, situando-a como problema político-estratégico. Forçoso reconhecer que houve
significativa ruptura jurídico-normativa quando da mudança de regime, a partir da qual a
preocupação do Estado deixou a premência do inimigo interno, subversivo, insurgente e
atentatório ao poder vigente para dar lugar a questões muito mais amplas que transcendem as
ameaças externas exclusivamente militares, a compreender temas estratégicos mais densos,
complexos e sofisticados, vinculados e movidos pela velocidade dos fatos da
contemporaneidade afetada pela mundialização, a envolver intrincada teia de interesses e
demandas sem precedentes nos campos jurídico, tecnológico, social, econômico, político e
ambiental.
Por essas razões, a democracia exige cada vez mais a participação da
sociedade civil nas decisões de natureza política e, por conseguinte, de repercussão legal ou
normativa do país. Essa percepção não excetua a formulação da política de defesa, posto que a
legitimidade de seus dispositivos, ante os efeitos vinculatórios, depende da representatividade
conferida pela soberania popular na formação do consenso para uma nova forma de
cooperação social pode ser construído e experimentado. Por essa razão, a relação entre o
Estado e a sociedade civil precisa mudar, invertendo, ou melhor, retornando ao movimento
inicial de outorga do poder político, isto é, o poder público ao encontro da sociedade, antes
que esta se afaste totalmente ou diminua a importância das instituições públicas, encontrando
outros caminhos para resolver seus problemas, demandas e conflitos, cujos efeitos são difíceis
de mensurar, na linha das colocações de Sorj e Oliveira (2007).
A transição do regime autoritário para a democracia no Brasil significou,
como dito, profunda e significativa mudança na estrutura jurídica e política, a partir da Carta
244
Política de 1988 e da legislação infraconstitucional que a sucedeu ou por ela foi recepcionada,
com a subordinação do poder militar ao poder civil, embora com alguns temas que ainda
merecem aperfeiçoamento, notadamente quanto à atuação do Ministério da Defesa e dos
mecanismos com bases nos quais as Forças Armadas são organizadas, preparadas e
empregadas, como decorrência natural do amadurecimento das instituições democráticas e da
conscientização da sociedade. Por conseguinte, não há mais lugar para a distinção entre poder
civil e poder militar. Há um único poder, que é o político, originário da sociedade, dirigido
por civis, o implica dizer que esse poder é impessoal e irrestritamente condicionado às regras
do Estado de Direito Democrático, sob pena de sofrer distorção. Dessa maneira, as estratégias
de segurança e defesa são de responsabilidade do poder político e, na hipótese de emprego
militar, caberá às Forças Armadas indicar as hipóteses táticas de emprego, de atuação, sob a
autoridade e responsabilidade do poder político. Em síntese, não é o campo militar que
influencia o político, mas esse que determina e delimita o agir daquele.
Desfeito o que foi considerado doutrina de segurança nacional, a partir de
cujo fundamento a elite dirigente ou que influenciava o poder no país não apenas precisava se
defender de potenciais ameaças externas, mas também de práticas consideradas subversivas
ou insurgentes contra a ordem interna dominante, naturalmente o processo de consolidação da
democracia traz à discussão as bases das políticas de proteção da sociedade (na combinação
de segurança e defesa), para o fim de adequá-las às exigências do Estado de Direito. Essa
peculiar mudança de atuação institucional interfere diretamente na formulação da política de
defesa, que deve observar a realidade brasileira e mundial, mediante reflexão continuada a
respeito de temas como integração, cooperação, persuasão, dissuasão, estratégica e tática, na
ponderação entre as expectativas militares e as demandas de natureza social, todos
considerados no conjunto de vulnerabilidades do país.
245
A política de defesa consiste na decisão política sobre conjunto
multidisciplinar de situações que passou de estado de coisas a problema político. Diz respeito
à atuação do poder público em face das vulnerabilidades do país, as quais, como foi visto, não
se restringem às ameaças bélicas efetivas ou potenciais. Foi desvelado que as mazelas sociais
também constituem situações que diminuem a percepção de segurança e de defesa do país,
decorrendo daí a constatação de que a matéria não é exclusividade do setor militar,
transcendendo-o para compreender o poder público, a sociedade civil e o contexto
internacional. Cumpre destacar que a expressão “militar” não abrange somente as instituições
e as pessoas que exercem a atividade militar nas Forças Armadas. Para o propósito desse
trabalho, a noção de militar compreende os interesses principais e acessórios da militarização,
isto é, o conjunto de atores públicos e privados, nacionais e internacionais, que têm demandas
vinculadas direta e indiretamente à defesa e que interferem ou procuram interferir na tomada
de decisões sobre o tema.
Se a defesa implica reconhecer e evitar vulnerabilidades, sua política não
poderá prescindir, para lograr êxito, de efetivas políticas públicas destinadas ao fortalecimento
do tecido social, em observância aos direitos fundamentais que regem a democracia. Portanto,
as estruturas política, jurídica, militar, econômica e tecnológica não são capazes de
isoladamente inibir ou dissuadir as indesejadas investidas externas – na maioria das vezes
praticadas de forma silenciosa –, sejam elas de natureza militar ou não. Desse modo, a
persuasão e a dissuasão têm a vertente bélica e, também, a vertente social. Portanto, claro está
que esse problema transcende o campo militar, pois os instrumentos para a sua plena
implementação dependem do concurso e dos recursos de uma série de atores políticos, dos
mais variados cenários, nos campos interno e externo. Essa circunstância conduz ao principal
problema político-estratégico: a mobilização de forças políticas capazes e com legitimidade
para efetivamente dar concretude à política de defesa, tema que merece ser enfrentado e
246
resolvido mediante a adoção de políticas públicas sérias e eficazes, voltadas a esclarecer a
sociedade sobre a importância de seu papel político, visando a coesão e a unidade nacionais,
com base na parceria e na autodeterminação dos povos sem, contudo, desmerecer o papel e a
importância das Forças Armadas brasileiras, de cujos fatores decorrem a necessidade de seu
permanente preparo, nos limites dos princípios democráticos para o fim de colaborarem para
o desenvolvimento e progresso do país, concorrendo para a segurança e, naturalmente, para as
atividades de defesa.
Na democracia a defesa merece ser recebida sob nova concepção, não mais
voltada à doutrina de segurança nacional que vigorou durante o regime de exceção. O Brasil e
o cenário mundial mudaram e continuam em permanentes adaptações na tentativa de manter o
delicado desequilíbrio de forças, de poder. Essa rede transdisciplinar que orienta as bases da
estratégia brasileira – a abarcar os interesses de toda a população, as tensões e os conflitos –
têm reflexos diretos na política de defesa e nas demais políticas públicas. Dessa feita, é
preciso registrar que a principal fragilidade da política de defesa remonta à sua essência
normativa, cujos efeitos repercutem na diminuta legitimidade de sua natureza vinculatória.
Como assinalado, o Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005, foi aprovado
ao amparo do disposto no art. 84, inc. VI, alínea “a” da Constituição Federal de 1988,
dispositivo que trata da competência privativa do Presidente da República para, na qualidade
de Chefe do Poder Executivo, dispor sobre “a organização e funcionamento da administração
federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de cargos
públicos”. Portanto, a política de defesa foi instituída pela edição de um ato normativo
(decreto) autônomo (que não regulamenta texto de lei), ou seja, de limitados efeitos. Esse fato
denota que, em seu campo de abrangência, a percepção política ainda se encontra no estágio
programático, embora os efeitos repercutam no restrito âmbito de competência dos órgãos
públicos envolvidos. Sente-se, por conseguinte, a falta de consenso a respeito dos
247
fundamentos da política de defesa, a partir do qual seriam elaborados seus princípios,
estipulando-se as fontes de recursos financeiros que continuadamente sustentarão as ações
decorrentes, indo além da costumeira previsão de orçamento não obrigatório, como também a
envolver todos os atores públicos e privados, direta ou indiretamente, no esforço de
mobilização voluntária e não simplesmente determinada por lei que traz arraigado o conceito
de preparação permanente, na perigosa antecipação de estado de sítio de uma guerra
hipotética e não-declarada, passível de críticas que apontem inconstitucionalidade.
Na integração regional, a democracia constitui o pilar da construção
jurídico-normativa do Mercosul, uma vez que orienta a elaboração das regras de direito e a
formulação de políticas públicas dos países que integram o bloco, com repercussão nos
acordos e nas regras de vinculação interna de cada país e da comunidade em formação. Para
tanto, é preciso fortalecer a cidadania a partir da educação (Bobbio, 2006, p. 43-45) das
populações dos Estados-Partes. A aproximação dessa simples equação significa, no mínimo,
um grande gesto na direção da efetiva integração, que transcende a superficial sujeição a
ordenamentos jurídicos supranacionais, para alcançar a percepção de que há outros povos a
que devem ser deferidos os mesmos direitos fundamentais. A integração tem por fundamento
primeiro a aceitação do outro, do diferente, dos valores universais. Logo, é preciso caminhar
do valor às normas, e não o contrário.
Compatível com essa ordem de idéias está o fato de que Argentina, Brasil,
Paraguai, Uruguai, Bolívia e Chile aderiram ao Protocolo de Ushuaia, ato que dispõe sobre o
compromisso democrático no Mercosul. Por esse instrumento, aqueles países acordaram que a
democracia constitui o fundamento de legitimidade do processo de integração. Não adotar ou
romper com os princípios democráticos resulta isolamento do país, suspensão de participar
dos processos deliberativos e decisórios, bem como dos direitos e deveres acordados. A
democracia é a pedra angular do processo de integração, de modo que seus efeitos
248
proporcionarão, também, maior segurança e estabilidade para a região, prevenindo-se
conflitos e ampliando-se a capacidade de solução pacífica das controvérsias, posto que, na
medida em que são abertos espaços para diálogos e são construídas soluções justas e
solidárias, afasta-se a possibilidade de enfrentamento bélico e, conseqüentemente, fortalece-se
a paz e diminui-se o estado de alerta, de desconfiança. Assim, a boa atuação do poder político
terá tempo e lugar para compor consensos, sob o fundamento dos quais os instrumentos do
Estado poderão servir não apenas para prevenir potenciais ameaças contra a soberania, o
território, os interesses e o patrimônio nacionais, mas também para cultivar o sentimento
universal de reconhecimento e proteção da pessoa humana, foco principal de todo processo de
integração. Essas são as bases que precisam orientar a formulação da política de defesa
comum da América do Sul, como estratégica de dissuasão coletiva.
A política de defesa depende da legitimidade das decisões vinculatórias que,
por sua vez, não prescinde da sustentação dada pela soberania e dos princípios que norteiam a
segurança. Não a soberania vista sob a ótica estreita e transitória dos governos e das
autoridades públicas, na pretensa tentativa de incorporar as prerrogativas do Estado, do poder
político. A soberania que deve sustentar a política de defesa não pode ser outra senão a
original, a natural, aquela que advém do povo. Por certo, cabe ao Legislativo, na qualidade de
representante da população, exercer papel fundamental na formulação da política de defesa
sem, contudo, mitigar ou se sobrepor às competências do Poder Executivo Federal e do Chefe
de Estado. Esse é o ponto fulcral no qual esse trabalho se sustenta para argumentar que a
defesa transcende a atuação isolada das Forças Armadas, instituições que estão sob a
autoridade suprema do Presidente da República. Não é preciosismo ponderar que as bases
dessa política devam se submeter ao regular processo legislativo, num esforço para a
construção de amplo consenso com a participação da sociedade civil, a exemplo da previsão
constitucional que prevê diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional
249
equilibrado, a partir do qual serão incorporados e compatibilizados planos nacionais e
regionais de desenvolvimento269. Esclareça-se que não se trata de militarizar a Carta Política
ou a legislação. A elevação desse debate exige o fortalecimento do Legislativo e a superação
de suas crises, para representar o povo e não os interesses de grupos, de corporações e da
busca do poder pelo poder, na percepção de que a defesa não se situa na transitoriedade dos
governos, mas sim na política de Estado formulada com a participação da sociedade civil,
executada e fiscalizada em conjunto com as instituições públicas. Importa reconhecer que a
edição do Decreto no 5.484, de 2005, significa singular avanço na democratização da política
de defesa. Mas é preciso avançar mais, o que se espera do seu inevitável e constante processo
de reflexão e aprimoramento, em termos conceituais e estratégicos, nos limites da Carta
Política de 1988.
O desafio que a política de defesa coloca ao direito e ao poder político
reside na vigilância incessante de ponderar os fundamentos, os objetivos e os princípios
constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil em face das demandas e
expectativas que gravitam em torno da defesa considerada no contexto da segurança, de modo
a que o direito não sirva de mero instrumento do político para a consecução de fins
deslocados dos ideais democráticos.
269 Cf. § 1o do art. 174 da Constituição Federal de 1988, que ainda depende de regulamentação: “A lei
estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento”.
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