cultura polÍtica, democracia e histÓria comparada: …
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CULTURA POLÍTICA, DEMOCRACIA E HISTÓRIA COMPARADA: UM ESTUDO
SOBRE OS GOVERNOS MAURICIO MACRI (2015-2019) E MICHEL TEMER
(2016-2018)
Bruno Natan Lima1
(PPGHS-UEL)
Resumo: Esta pesquisa tem por objetivo a realização de uma análise comparativa
entre os governos Mauricio Macri (2015-2019) e Michel Temer (2016-2018),
lançando luz sobre as concepções de democracia encerradas nas culturas políticas
argentina e brasileira. Para tanto, recorre-se a discursos oficiais e artigos,
produzidos tanto pelos já aludidos presidentes quanto por seus ministros das
relações exteriores, nos quais a Venezuela aparece como objeto. Como referencial
teórico-metodológico, utiliza-se fundamentalmente a História Comparada, a Nova
História Política, e a História do Presente. Entende-se, aqui, a democracia em sua
dimensão problemática, portanto, objetiva-se compreender o estabelecimento de
diferentes concepções sobre o termo no tempo e no espaço, considerando a sua
mutabilidade e a coexistência de distintas culturas políticas. A partir do entendimento
de que os regimes militares da segunda metade do século XX constituem, tanto na
Argentina quanto no Brasil, eventos traumáticos fundantes para o estabelecimento
de uma História do Presente, o trabalho considera também seus processos de
redemocratização, o aprofundamento das relações diplomáticas entre os anos 1980
e 1990 que deram origem ao Mercosul, a ascensão de governos progressistas nos
anos 2000 e a aproximação com a Venezuela que, a despeito da boa relação com
os governos do Partido Justicialista (PJ) e do Partido dos Trabalhadores (PJ), viu
seu presidente, Nicolás Maduro, ser duramente criticado pelos governos Macri
(PRO) e Temer (MDB) por ameaçar a democracia e desrespeitar direitos humanos.
Além da busca por generalizações, tenta-se, também, coteja-los a fim de
desembaraçar o terreno das falsas semelhanças.
Palavras-Chave: Argentina, Brasil, Venezuela, História Comparada, Cultura Política.
1 Bolsista CAPES.
Introdução
Podemos, se nos colocarmos na esteira de Berstein (2003), definir
rapidamente o conceito de Cultura Política como uma “linguagem comum
simplificada” compartilhada pelos membros de dada formação ideológica. Esta,
quando pensamos em um partido político, passa a compreender tanto suas elites
quanto a massa de eleitores que não poderiam levar a cabo uma discussão teórica
sobre seus fundamentos. Trata-se de um “sistema de referências”, não
necessariamente exprimido explicitamente, a partir do qual todos os membros de
uma agremiação se entendem (BERSTEIN, 2003). É a partir de tal premissa que
este trabalho, menos preocupado em defini-la conforme diferentes grandes tradições
do pensamento político moderno - bem sintetizadas no verbete de Bobbio (1998) no
Dicionário de Política organizado por ele mesmo -, se debruça sobre a democracia,
ou melhor, sobre concepções de democracia no seio de uma Cultura Política. Aqui,
em consonância com Rosanvallon (2010), a analisamos em sua natureza
necessariamente problemática.
Bebendo da História Comparada, conforme sistematizada por Bloch (1998),
cotejamos as concepções de democracia nas sociedades argentina e brasileira
durante os mandatos de Michel Temer (2016-2018) e Mauricio Macri (2015-2019), a
partir de seus posicionamentos sobre o governo do presidente venezuelano Nicolás
Maduro. O interesse sobre essa problemática parte da mudança de posição dos
países citados com relação à Venezuela. Se no ano de 2012 ela tornava-se um
membro pleno do Mercosul - organização na qual Argentina e Brasil são, na prática,
os membros de maior peso -, em grande medida em virtude da boa relação com os
governos progressistas do Partido Justicialista e do Partido dos Trabalhadores,
representados pelas figuras das presidentas Cristina Fernandez de Kirchner e Dilma
Rousseff, foi durante os mandatos de Macri e Temer que se deu a sua suspensão. O
Protocolo de Ushuaia Sobre Compromisso Democrático no Mercosul, de 1998,
aplicado para suspender a Venezuela em agosto de 2017, foi o mesmo que
suspendeu o Paraguai - cujo parlamento se opunha à adesão do país andino -, após
o controvertido impeachment do então presidente Fernando Lugo, permitindo a
entrada do país governado por Maduro no bloco meses depois.
Argentina
Em abril de 2015, ano final de seu mandato como presidenta da Argentina,
Cristina Fernández de Kirchner fez seu último discurso na VII Cúpula das Américas.
A mandatária – que também abordou o problema do tráfico de drogas
(responsabilizando principalmente os países desenvolvidos pelo consumo da maior
parcela do produto), o esforço de paz do então presidente colombiano Juan Manuel
Santos, e elogiou a inédita presença do presidente cubano Raul Castro na reunião –
utilizou a maior parte de seu tempo para criticar duramente os Estados Unidos pelo
decreto que definia a Venezuela como uma ameaça à sua segurança.
A princípio, disse ter rido do caráter inverossímil da decisão ao invés de
pensar em uma resposta anti-imperialista, e explicou sua reação lançando mão de
uma comparação entre as desproporcionais despesas militares dos dois países – o
que, no passado, teria permitido ao presidente Barack Obama tranquilizar os
cidadãos americanos em um momento de tensão com o Irã, país cuja despesa
militar é também consideravelmente maior do que a do Estado andino. Não demorou
até que Kirchner fizesse alusão ao financiamento, por parte dos Estados Unidos, de
golpes militares em países democráticos da América Latina durante a segunda
metade do século XX e, em seguida, citasse o que ela chamou de “golpes suaves”:
novas formas de intervenção “donde se utilizan medios masivos de comunicación
multinacionales, denuncias falsas, asociaciones caprichosas de Estados con otros
Estados para hacer no sé qué cosas y que conspiraciones” (KIRCHNER, 2015).
Mais sutis e sofisticadas, tais intervenções se dariam através de novas organizações
de financiamento desconhecido que, segundo ela, servir-se-iam do título de ONGs
para lançar denúncias exotéricas e sem comprovação a despeito do pretexto de
lutarem pela liberdade e pelos direitos humanos, culminando, assim, na
desestabilização de governos da região, “curiosamente, que más han hecho por la
equidad, por la educación y por la inclusión social” (KIRCHNER, 2015).
Em grande medida, a posição combativa de Kirchner com relação aos
Estados Unidos e fraternal com relação à Venezuela é melhor compreendida à luz
dos padrões de política externa que o governo argentino vinha adotando desde a
posse de Néstor Kirchner, em 2003. De acordo com Mazzina e Cambel (2018), os
primeiros anos do kirchnerismo foram marcados por um duplo compromisso: de um
lado, com a reinserção argentina em um cenário mundial globalizado; e de outro,
com a autonomia do país, tendo o Estado como principal agente de seu
desenvolvimento econômico, o que inclui o aludido processo de reinserção
internacional (MAZZINA e CAMBEL, 2018). A relação com os Estados Unidos, dessa
forma, passou por etapas distintas. Na primeira, o apoio do governo Bush mostrou-
se importante para o logro da renegociação da dívida argentina, seguida, em 2005,
pelo aprofundamento de sua política de desendividamento e consequente
afastamento do país da tutela do FMI. Justamente neste ano, entretanto,
divergências com relação a temas relevantes para a agenda dos EUA começaram a
aparecer, vide a censura a Cuba em matéria de direitos humanos ou posição
favorável à guerra do Iraque (MAZZINA e CAMBEL, 2018).
No mês de novembro de 2005 foi realizada a VII Cúpula das Américas em
Mar del Plata, na Argentina. Enquanto Bush aproveitava o evento para tentar
viabilizar a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), Néstor Kirchner, em claro
sinal de oposição aos Estados Unidos, se reunia com o presidente venezuelano do
outro lado da cidade a fim de fortalecer o Mercosul. A aposta em aproximar-se de
Hugo Chávez veio, em grande medida, do fato de ter sido a Venezuela, desde o
default de 2001, um dos poucos países a comprar títulos de sua dívida. A uma
relação de início estritamente econômico-comercial, seguiu-se o nascimento e
aprofundamento de um caráter mais ideológico, uma vez que a chegada de Kirchner
ao poder significou apoio ao projeto de Chávez, até então figurando isolado como
presidente progressista na região (MAZZINA e CAMBEL, 2018).
A Argentina e os Estados Unidos também tiveram diferentes fases durante os
dois mandatos de Cristina Kirchner, assistindo desde uma tentativa de
reaproximação em 2012 até um novo afastamento após decisão da Suprema Corte
americana sobre os “fondos buitre”, culminando, de acordo com Mazzina e Cambel
(2018), em quatro consequências: (1) a saída da Argentina do plano de
estabilização, afastamento dos EUA e do Ocidente; (2) aprofundamento da
desconfiança com relação ao governo Obama; (3) reforço de uma identidade
argentina sul-americana em virtude da pouca confiança no Ocidente; e (4)
estreitamento de relações estratégicas com outros países, em especial Rússia e
China. Neste sentido, como ocorreu com seu antecessor, a presidenta teria
encontrado na Venezuela, compradora de títulos pós-default e um dos poucos a
investir no mercado argentino de petróleo e lácteos, um companheiro fiel (MAZZINA
e CAMBEL, 2018). Tais elementos, componentes da cultura política do kirchnerismo,
nos ajudam a entender melhor o posicionamento da mandatária na Cúpula das
Américas e o contraste com as posições da agremiação político-partidária que se
viabilizou com a eleição de Mauricio Macri, em 2015.
Após 12 anos de governo kirchnerista, a Argentina assistiu à ascensão, por
via eleitoral, de uma força política de centro-direita que, de acordo com Vommaro
(2019), mostrou-se inédita desde o surgimento dos partidos majoritários no país.
Trata-se do Cambiemos, uma aliança entre a Unión Cívica Radical (UCR), a
Coalición Cívica (CC), partidos menores e a Propuesta Republicana (PRO), este
último responsável por encabeçar a coalizão. À crise de 2001 e 2002, que teria
criado um clima propício para o surgimento de novas forças políticas, seguiu-se a
fundação de dois partidos de centro-direita, o Recrear, partido não peronista liderado
pelo economista Ricardo López Murphy, e o PRO, cujo alto desempenho com a
conquista da prefeitura de Buenos Aires levou o primeiro a fundir-se a ele, com a
consequente unificação da centro-direita e obtenção de cobertura nacional
(VOMMARO, 2019).
Organizado em torno de Macri, presidente do Boca Juniors – importante clube
de futebol argentino – e herdeiro de um grande grupo empresarial, o nascimento do
partido seguiu uma consciência pragmática. Enquanto terreno propício para opções
de centro-direita e cenário de debilitação de forças políticas tradicionais ou surgidas
na década de 1990, a cidade de Buenos Aires foi o epicentro de um PRO que se
originou com a intenção de constituir-se um veículo de chegada ao poder. Tal
característica, como aponta Vommaro (2019), o teria levado a acolher quadros
provenientes de diferentes origens, compreendendo desde políticos de larga data do
peronismo, do radicalismo e outras forças tradicionais de direita, quanto novos
políticos provenientes de ONGs e “fundaciones profesionalizadas e
internacionalizadas”, e empresários e “quadros de alta gerencia del mundo privado”
(VOMMARO, 2019, p. 99).
Com a reeleição de Cristina Kirchner, em 2011, assistiu-se à intensificação da
polarização política na Argentina. Se houve, por um lado, aumento na retórica
conflitiva do oficialismo, de outro, eclodiram as primeiras manifestações
antigovernamentais massivas. Centradas no protagonismo das classes médias, suas
demandas eram “econômicas”, como a oposição à regulação do acesso ao dólar, e
institucionais, pois se voltavam contra atos de corrupção. Neste contexto, o PRO foi
responsável por traduzir um discurso marcadamente “antipopulista” e
antikirchnerista, servindo-se da difusão de um “pânico moral” a respeito da
possibilidade de “chavização” do país, em sua versão não capitalista e não liberal-
republicana. A criação do Cambiemos, sobretudo com a adesão da UCR, permitiu
que o grupo capitaneado por Macri tomasse um atalho e chegasse a distritos em
que seu desempenho era inexpressivo. Embora nem todas as novas forças políticas
da agremiação compartilhassem de seu programa, o protagonismo do PRO era claro
e todos tiveram de subordinar-se a ele.
En efecto, el hecho que PRO hubiese definido la vía local como primer paso de construcción de una opción electoral nacional implicó un reto para su construcción como desafiante del kirchnerismo. Tras intentos limitados para ampliar su implantación territorial (incorporar aliados provinciales de centro-derecha, cooptar dirigentes peronistas y radicales disconformes con sus partidos, incorporar figuras con popularidad en algunas provincias que permitieran conseguir votos a pesar de contar con bajos niveles de organización), la alianza con el radicalismo unificó la oposición al peronismo en su versión de centro-izquierda como FPV. Los nuevos aliados de PRO eran partidos en decadencia (la UCR), vehículos personalistas (CC) o pequeños partidos de nicho (Parido Fe, neoperonista, fundado por el líder del sindicato de peones rurales), con lo que no fue difícil para la pujante centro-derecha imponerse sobre ellos, lograr controlar la estrategia y la etiqueta, y colocar a sus candidatos a la cabeza de las listas para cargos
nacionales en los distritos más importantes del país (con excepciones, como Mendoza) (VOMMARO, 2019, p. 100).
Diante do que foi exposto sobre o Cambiemos, é possível supor que o
discurso de Macri sobre o governo venezuelano tenha sido sensivelmente distinto
daquele que foi apresentado por seus predecessores. O contraste, inclusive com
relação aos EUA, pode ser ilustrado, por exemplo, quando o presidente argentino,
ao ser questionado sobre sua posição acerca da situação política venezuelana no
Centro de Estudos Estratégicos Internacional de Washington, classificou o país
como não democrático, listando o desrespeito aos direitos humanos, a existência de
presos políticos e o desrespeito à independência do congresso, colocando-se ainda
em favor da permanência do esforço pela exigência de novas eleições e liberação
dos presos políticos através dos instrumentos do Mercosul (MACRI, 2017a). O que
chama a atenção aqui é o fato de Macri ter criticado a Venezuela justamente no país
que recebeu duras palavras de protesto de Cristina Kirchner há dois anos pelo já
aludido decreto expedido contra o governo de Nicolás Maduro.
En primer lugar, cuando por primera vez tomé contacto con este tema, hace muchos años, muchos me dijeron que la cosa no podía empeorar. Pero el tiempo pasó y las cosas, realmente, empeoraron, así que lo que creo es que en Venezuela no se tiene ningún respeto por los derechos humanos, eso no es una democracia, no está funcionando, tenemos presiones los políticos, no se está respetando la independencia del Congreso, así que creo que tenemos que seguir exigiendo elecciones, la liberación de los prisioneros y me alegro mucho que hayamos logrado un acuerdo en el seno del Mercosur para expresar eso justamente; y ahora, la OEA también ha emitido una declaración en ese sentido, así que yo creo que hay que seguir trabajando. Yo creo que a todos aquí nos preocupa lo que está pasando en Venezuela, tenemos amigos, recibimos inmigrantes de Venezuela como nunca antes en Argentina, están desesperados tratando de encontrar un lugar para poder recuperar su vida, y obviamente esa no es la solución. Necesitamos lograr que Venezuela vuelva a tener un gobierno democrático y hay mucho trabajo para hacer en ese sentido, porque el día después va a ser muy, muy duro
(MACRI, 2017a).
Mazzina e Cambel (2018) apontam que a diplomacia argentina assistiu a um
giro diplomático na gestão de Mauricio Macri, que se caracterizou pelo caráter
pragmático e pela tentativa de reinserção do país no mundo. Essa atitude se
materializou na reaproximação ou estreitamento de relações com países ocidentais
como a França de Hollande, a Alemanha de Merkel, o Canadá de Trudeau, o Reino
Unido de Cameron e May e a Itália de Renzi. Houve, portanto, uma busca pela
diversificação da agenda internacional argentina com o balanceamento de suas
relações diplomáticas, até então voltadas para Rússia e China. A retórica do PRO,
conforme as autoras, garantiu à segunda um papel central na abertura multilateral
do país. Ao mesmo tempo em que evitou-se o conflito com a manutenção das
relações comerciais – inegavelmente caras a ambos –, buscou-se a redução da
dependência com a abertura a outros países. A relação com a Rússia de Putin,
entretanto, embora ativa e cordial, teria sido a mais afetada quando comparada ao
governo anterior (MAZZINA E CAMBEL, 2018).
Suzana Malcorra, a chanceler responsável por capitanear a política externa
argentina continuada por seu sucessor, Jorge Faurie, estabeleceu, no princípio do
governo Macri, 10 eixos diplomáticos para o país.2 Em conformidade com o que foi
apresentado acima, o primeiro deles caracteriza-se pela importância da manutenção
de relações maduras com todas as nações e pela presença do país em todos os
foros internacionais, nos quais a Argentina se apresentaria como construtora e
solucionadora de problemas. Da mesma maneira, o terceiro eixo propõe o
“estabelecimento de uma política de integração e abertura” manifestada em sua
presença na ONU, na OEA, no Mercosul, na Unasul e na Celac. Aqui, dois eixos nos
chamam a atenção por colaborarem com a elucidação de nossa problemática. O
sétimo eixo aponta como objetivo a criação de uma relação “inteligente e madura”
com os EUA. Malcorra, neste tópico, argumenta que a relação com o país mais
poderoso do mundo é imprescindível, daí a necessidade de buscar-se uma agenda
comum. Defende, contudo, que uma entrega incondicional não pode e não deve ser
efetivada, considerando que há temas sobre os quais os dois países não irão se
entender. O segundo eixo, por fim, define países que apresentam ruptura
democrática como exceções ao esforço diplomático bilateral argentino.
A reconstrução do vínculo com os Estados Unidos, francamente debilitado
pelo discurso antiamericano dos últimos anos de Cristina Kirchner no poder,
apresentou-se, de acordo com Mazzina e Cambel (2018), como uma das prioridades
do governo Macri. A princípio, essa mudança pode ser percebida na visita de
2 Los 10 ejes de la política exterior argentina, según Susana Malcorra, diario La Nación, 18/02/2016.
Obama, já no final de seu último mandato, à Argentina.3 Tal dinâmica teve
continuidade com a eleição de Trump, que recebeu o presidente argentino na Casa
Branca pouco depois de uma ligação intermediada por Malcorra. Mike Pence, vice-
presidente dos EUA, visitou, por sua vez, a Argentina em 2017 para a formalização
de agendas de Estado. Em abril de 2017, Mauricio Macri, no almoço realizado na
Casa Branca em sua homenagem, lançou mão de uma aproximação entre os
sistemas políticos americano e argentino, comentando que, apesar da Constituição,
as duas nações desafortunadamente se desentenderam e tomaram caminhos
diferentes com o tempo. Argumentando ainda que ambos compartilham interesses
comuns no que diz respeito ao “compromisso absoluto com a democracia, com os
direitos humanos, com a luta contra o terrorismo e o crime organizado”, terminou o
seu discurso mencionando partidas de golfe disputadas entre ele e o republicano no
passado (MACRI, 2017b).
A retórica do PRO se mostrou marcadamente contrária ao governo
venezuelano ao menos desde a campanha presidencial de 2015, na qual, como
apontou Vommaro (2019), o medo que parte da população nutria pela possível
chavização do Estado foi utilizado como arma política pelo partido em ascensão.
Macri, já no cargo e sobretudo com a agudização da crise política no país andino,
mais de uma vez colocou a escolha dos eleitores por seu programa e pela “verdade”
(MACRI, 2018a) como responsável por “detener el proceso que nos llevaba a
convertirnos en otra Venezuela” (MACRI, 2018b).
Brasil
Há, no caso brasileiro, uma complicação considerável. Diferente do que
ocorreu com o Cambiemos de Mauricio Macri, o governo Temer e suas propostas
não se sujeitaram ao crivo popular. Dilma Vana Rousseff, ex-ministra da Casa Civil
do governo Lula e eleita presidenta pela primeira vez em 2010 como candidata do
Partido dos Trabalhadores (PT), foi, em 2016 - segundo ano de seu segundo
3 A última visita de um presidente americano ao país havia ocorrido em 2005, na já citada tentativa de George
W. Bush de viabilizar a Alca, ativamente boicotada por Néstor Kirchner e Hugo Chávez.
mandato -, retirada do cargo por um controvertido processo de impeachment
(definido por alguns autores como “golpe parlamentar”). Entre eles, encontra-se o
cientista político e antigo porta voz da presidência André Singer, que difere o
processo de um golpe de Estado, normalmente entendido como uma tomada do
poder pelas forças armadas, por esse ter ocorrido dentro “dos limites da lei”
(SINGER, 2018). Em grande medida, como reconhece o autor, o impeachment da
presidenta foi facilitado pela ampla divulgação midiática da Operação Lava Jato, da
qual o juiz federal Sergio Moro se tornara o maior símbolo, somada às crescentes
manifestações “antilulistas” levadas a cabo entre junho de 2013 e março de 2016.
Estas, que segundo Singer teriam se iniciado como oposição de esquerda ao
lulismo, logo se tornaram um “levante de classe média”, na qual o centro e a direita
“levaram para a avenida o tema da corrupção” (SINGER, 2018, p. 28-28). Conforme
a leitura do autor:
O caráter errático da atuação de Dilma depois de junho abriu uma avenida para o antilulismo. Engrenagens que aguardavam a oportunidade desde 2003 puseram-se a funcionar. Uma ambiciosa coalizão de poder, capitaneada por Michel Temer e o senador José Serra (PSDB-SP), foi sendo costurada desde pelo menos agosto de 2015. Ressentido pela quarta derrota seguida em eleições presidenciais, o PSDB forneceu elementos para a construção do golpe parlamentar. Embora o protagonismo tenha sido do PMDB, que assumiria a Presidência, a formulação jurídica, o programa econômico, a ponte com o empresariado e a legitimação perante a classe média passaram pelo PSDB – para não falar na centena de votos que o tucano galvanizava no Legislativo. A mobilização impulsionada pela Lava Jato, via meios de comunicação, recobriu a derrubada de apoio social (SINGER, 2018, p. 31).
Conforme Maciel (2014), o partido de Michel Temer, em um espectro político
polarizado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB), a sua centralidade “na ordem de preferências” e o peso político
traduzido em um considerável número de cadeiras nas bancadas do congresso,
tornaram-no uma espécie de “coringa” na política brasileira. Em grande medida, seu
grande peso político pode ser creditado à sua forte presença regional e ao
nascimento prematuro dos partidos surgidos com a redemocratização da sociedade
brasileira, tendo agremiado o conjunto da oposição oficial aos militares e seus
apoiadores durante a ditadura iniciada em 1964. A autora, apesar de defini-lo
sobretudo como um partido de centro, chama a atenção para contornos de centro-
direita que este ganhou com a saída de afiliados mais à esquerda para compor ou
formar novos partidos, como foi o caso de Fernando Henrique Cardoso com o
PSDB.
Apesar da mudança de contexto, a centralidade e o peso político do PMDB continuaram em processo de autorreforço. A heterogeneidade do partido se acirrou com a abertura do sistema partidário, dificultando ainda mais o delineamento de um programa político. O PMDB se consolidou como o centro do espectro político brasileiro não apenas por sua posição moderada, mas principalmente pela falta de um programa e um perfil ideológico. O peso político do partido, por sua vez, aumentou ainda mais com o retorno à democracia, principalmente com o sucesso eleitoral da década de 1980. Este bom desempenho eleitoral foi reforçado principalmente pelo aumento do poder dos líderes regionais dentro da organização (MACIEL, 2014, p. 63).
A mesma autora argumenta que, se durante o regime militar o PMDB se
dividia sobretudo pela oposição moderada ou combativa, a polarização passou a
ser, a partir do governo FHC, entre governistas e oposicionistas ou dissidentes.
Grosso modo, tratava-se de uma disputa pelo controle do partido entre aqueles que
defendiam a adoção de uma postura independente e o desenvolvimento de uma
bandeira política própria, e aqueles que advogavam pela participação do PMDB no
governo, ocupando ministérios e importantes cargos de direção sob o pretexto de
contribuírem para a sustentação da governabilidade e aprovação de propostas
importantes. Estes últimos eram representados principalmente pela figura de Michel
Temer e acabaram por ganhar sensível vantagem a despeito dos anseios do grupo
dissidente. Embora tenha ficado, de início, de fora da coalizão formada em ocasião
do primeiro mandato de Lula como Presidente da República, não demorou até que,
em janeiro de 2004, o partido fosse chamado para compor também o governo do PT
na segunda coalizão formada.
Embora defendesse, a princípio, uma candidatura própria para o PMDB,
Michel Temer, apoiado pelo PT em sua empreitada pela presidência da câmara
federal em 2009, aceitou compor, como vice-presidente, a chapa encabeçada por
Dilma Rousseff para concorrer à presidência da República em 2010. A vitória da
chapa reafirmou a liderança de Temer e fortaleceu ainda mais a ala governista do
partido. Com o início das primeiras movimentações para o impeachment de Dilma
após a sua reeleição, entretanto, as diferenças entre os dois em temas diversos
começaram a se evidenciar. Dentre outros tópicos, a relação com a Venezuela
mudou consideravelmente com a ascensão de Temer na presidência. O presidente,
discursando na abertura da LI Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul e Estados
Associados, em dezembro de 2017, afirmou que o Mercosul a esperaria de “braços
abertos” assim que ela “voltasse à democracia”, logo após dizer estar do lado “da
liberdade de expressão, da separação dos poderes e dos direitos humanos”
(TEMER, 2017).
A democracia foi reconquistada em nossa região com grande custo. Cabe a nós defender esse valor fundamental para as nossas sociedades, para o desenvolvimento do nosso processo de integração. Defender a democracia não significa impor políticas a quem quer que seja. O pluralismo é da própria essência da democracia. Defender a democracia significa, isto sim, manter fidelidade aos compromissos que assumimos no Mercosul ao longo de mais de duas décadas. Significa dar concretude a esses compromissos naqueles momentos em que direitos fundamentais são postos em xeque. Por isto que, quando suspendemos por comum acordo a Venezuela do Mercosul, era aliás, uma medida que se imponha (TEMER, 2017).
A mudança de postura da diplomacia brasileira é muito bem ilustrada quando
cotejamos dois artigos que, embora abordem o mesmo tema, apresentam
perspectivas muito distintas sobre ele: o aniversário de 25 anos do Mercosul,
comemorado em 2016 – coincidentemente o ano no qual Dilma Rousseff sofreu o
impeachment e Michel Temer assumiu a sua posição. Mauro Vieira, até então
ministro das relações exteriores do Brasil, publicou, no dia 26 de março, pelo jornal
Folha de S. Paulo, um texto intitulado “Os 25 Anos de Mercosul: momento de
reconhecer os ganhos” (VIEIRA, 2016). No subtítulo já se evidencia o contraste com
relação ao que foi escrito por seu sucessor. José Serra (PSDB), primeiro ministro
das relações exteriores do governo Michel Temer, publicou, no dia 10 de julho
daquele mesmo ano, um artigo no jornal O Globo intitulado “Vinte e Cinco Anos e
Muito Por Fazer”. Menos de quatro meses separam a publicação dos artigos, o que
descarta a atuação de uma grande mudança estrutural externa entre as
representações e projeções de Mauro Vieira e José Serra.
Vieira propõe um “balanço equilibrado” que pressupunha “reconhecer os
ganhos, responder às críticas e identificar desafios”. Entre os ganhos, cita o salto
comercial quantitativo e qualitativo do Brasil com os vizinhos que compõe o bloco, a
elevação de salários e a possibilidade de trabalho no exterior com contabilização de
anos para a aposentadoria, a criação de mecanismos eficientes para o
reconhecimento de estudos no exterior, bem como a facilidade de trânsito sem a
necessidade de passaporte – um conjunto de ganhos que viabilizariam “o
desenvolvimento de uma cidadania comum na região” –, e a estabilidade que pode
ser percebida, por exemplo, pela melhora nas relações diplomáticas entre Argentina
e Brasil. Responde ainda críticas feitas ao suposto engessamento de acordos
comerciais bilaterais em virtude da necessidade de negociação em bloco, citando a
União Europeia como um exemplo bem sucedido deste tipo de organização. Por fim,
o então ministro define a democracia como “pressuposto de todas as outras
conquistas”. O Mercosul, que teria, desta forma, nascido “do desejo de superar de
vez o autoritarismo”, poussiria, de acordo com Vieira, além dos ganhos citados por
ele anteriormente, o trunfo de funcionar como “um instrumento de preservação e
aperfeiçoamento” das democracias regionais.
Percebe-se, aqui, que a democracia é apresentada como um ativo da
integração regional, enquanto a Venezuela sequer foi citada pelo ministro. O artigo
de José Serra, por sua vez, aposta em outro direcionamento. O tucano inicia seu
texto reconhecendo que o Mercosul obteve bons resultados agregados e menciona
os desafios de integração em um cenário internacional competitivo e instável. É a
Venezuela, contudo, que recebe quase que integralmente sua atenção. Por um lado,
Serra justifica a postergação da transferência da presidência pró-tempore do bloco
em virtude do não cumprimento de regras indispensáveis para a integração do país
andino, que teria se dado de forma “exótica”, uma vez que só ocorreu após a
suspensão do Paraguai, cujo parlamento se opunha à sua entrada. Serra defende
que os motivos que levaram Argentina, Brasil e Uruguai a aceitarem a Venezuela
foram “político-ideológicos”, visto que ela não cumpria com requisitos mínimos, e que
o impeachment de Lugo – responsável pela suspensão do Paraguai -, ocorrera
conforme a constituição. O “Protocolo de Assunção sobre o Compromisso com a
Promoção e Proteção dos Direitos Humanos no Mercosul (2005)”, o “Acordo de
Residência do Mercosul (2002)” e o “Acordo de Complementação Econômica n. 18,
no âmbito da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi)” foram alguns dos
documentos não assinados pela Venezuela citados por Serra.
Esse último, no qual estão refletidas as principais disciplinas comerciais do bloco, constitui a espinha dorsal do Mercosul comercial. A não incorporação dessas normas faz da Venezuela um sócio incompleto, inadimplente em relação a deveres que são fundamentais, como regras de origem, que definem se um produto pode ingressar nos demais parceiros sem pagar imposto de importação, cooperação judicial e regulamentos técnicos sobre meio ambiente, alimentos, direitos do consumidor e requisitos fitossanitários, entre outros. No momento em que os países da região, e o Mercosul com eles, voltam a conferir o devido valor à previsibilidade e à segurança jurídica, a expectativa de que a Venezuela cumpra com as obrigações assumidas é exigência lógica e requisito incontornável (SERRA, 2016).
Por outro lado, apesar da justificativa tecnicista, Serra critica a qualidade
democrática do país vizinho, cujo déficit representa uma preocupação de primeira
ordem em seu discurso. “Política, econômica e humanitária”, uma vez que suas
consequências vão de “prisões arbitrárias” ao “desabastecimento”, a crise
venezuelana é definida por ele como reflexo de “uma realidade de polarização e
acirramento retórico de difícil superação”, manifestada em uma contenda entre o
poder executivo e o legislativo que se complicava pela ação questionável do
judiciário. O artigo do ministro, escrito antes do acirramento das tensões que se
seguiram à tentativa recuada do STJ de anular os poderes da Assembleia Nacional
e da iniciativa do executivo pela criação de uma Assembleia Constituinte, em 2017
(SCHEIDT, 2019), demonstra preocupação diante da iniciativa de setores chavistas
em prol do fechamento do órgão de maioria oposicionista. Serra colocou o Mercosul
a disposição para a resolução do impasse, pontuando, contudo, a “falta de vontade
política” para uma saída democrática. Seu artigo é concluído com o reconhecimento
da importância da Venezuela em um processo de desenvolvimento conjunto, cujas
bases, ressalvou, devem se basear em “instituições respeitadas, comportamento
previsível e regras claras” (SERRA, 2016).
Evidências de que setores ligados ao governo querem o fechamento da Assembléia Nacional dão a medida da turbulência. Há denúncias de prisões arbitrárias, crescente violência nas ruas e uma gravíssima crise de desabastecimento de alimentos e remédios, que vem castigando duramente a população, sobretudo a mais pobre. O Brasil aposta no diálogo entre as principais forças políticas venezuelanas para o encaminhamento dos impasses. Mas é forçoso reconhecer que, hoje, o cenário é de grande instabilidade e de falta de vontade política para levar adiante a construção de pontes para uma saída democrática da crise (SERRA, 2016).
Aloysio Nunes, também filiado ao PSDB, sucedeu José Serra no comando do
Ministério das Relações Exteriores e, ao menos no que tange à postura a respeito
da situação política venezuelana, deu continuidade ao seu discurso. O novo ministro
mostrava-se ativamente crítico às instituições chavistas mesmo antes de Michel
Temer ter tomado posse como presidente. Em junho de 2015 – primeiro ano do
segundo mandato de Dilma Rousseff -, o tucano, então senador pelo estado de São
Paulo, integrou uma comitiva que desembarcou em Caracas sob o pretexto de pedir
a soltura daqueles que por eles eram definidos como presos políticos do regime. Ao
seu lado, encontravam-se figuras notáveis que compunham a oposição ao Partido
dos Trabalhadores, incluindo o também senador tucano Aécio Neves, principal
adversário de Dilma Rousseff nas acirradas eleições presidenciais de 2014.4 Nunes,
que assumiu a pasta em março de 2017, proferiu um discurso de posse que, dentre
outras tópicos, não deixou de lado uma tomada de posição sobre o país vizinho:
Não posso deixar de lembrar a preocupação, cada vez mais presente, com a escalada autoritária do governo venezuelano, que nos últimos anos esteve presente entre os grandes temas em debate. A nossa posição frente à Venezuela é emblemática do papel que queremos desempenhar na América Latina e no mundo. Nossa solidariedade irrestrita com aqueles que lutam pela liberdade nesse país irmão é a reafirmação do princípio constitucional da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais do Brasil democrático (NUNES, 2017a).
De acordo com o ministro, sua participação na Comissão de Relações
Exteriores e Defesa Nacional o ensinou que tais preocupações ultrapassariam “os
limites das atuais situação e oposição”, sendo compartilhadas por um “amplo
espectro de opiniões políticas”. Além de seus discursos, é possível perceber seus
posicionamentos através de artigos escritos especificamente sobre o papel da
diplomacia brasileira na crise venezuelana. Em junho de 2017, o tucano publicou um
artigo pelo jornal O Estado de S. Paulo intitulado “Por uma Venezuela novamente
democrática”. No texto, ele justifica seu alinhamento com outros chanceleres da
OEA a respeito do país, no qual “o estado democrático” teria “deixado de vigorar”. O
governo Maduro é definido como arbitrário por “cercear liberdades individuais”,
destruir a independência do judiciário, ignorar a voz do legislativo e sufocar a
oposição, negando-se a realizar eleições em um “regime” que estaria enchendo
seus porões de presos políticos e “inegavelmente” reprimindo cada vez mais seus
4 Nessas eleições, como lembrou com orgulho o próprio ministro em seu discurso de posse no Itamaraty, Nunes
foi candidato ao cargo de vice-presidente pelo PSDB na chapa liderada por Aécio Neves.
cidadãos. Nunes critica sobretudo a convocação, por parte do governo, de uma
Assembleia Constituinte que, segundo ele, teria se dado à revelia do “princípio do
sufrágio universal inscrito na própria Constituição bolivariana”.
A crise humanitária é consequência direta da privação de direitos sofrida pelos venezuelanos. Defendemos o respeito aos princípios democráticos para que o povo da Venezuela possa voltar a ser senhor do próprio destino. A soberania e a autodeterminação na Venezuela precisam emanar de um povo capaz de participar ativamente da vida da nação, em ambiente democrático verdadeiramente livre. Somente na democracia é possível trilhar o caminho da paz social e da prosperidade, que é o que nós brasileiros desejamos aos irmãos venezuelanos (NUNES, 2017b).
Em “Caminho seguro para o agravamento da crise”, artigo de julho daquele
mesmo ano publicado pelo jornal Folha de São Paulo, as críticas se intensificaram.
Com “já se foi o tempo de convivência com o arbítrio da Venezuela”, ele inicia o
texto, escrito em ocasião das eleições para a Assembleia Constituinte daquele dia
trinta. O ministro critica a própria utilização da palavra “eleição”, cuja designação
seria “enganosa” por se tratar de uma manobra de Nicolás Maduro para se
perpetuar no poder, prescindindo, assim, dos líderes oposicionistas, e aplicada à
revelia do plebiscito convocado pela Assembleia Nacional – esta sim eleita conforme
a Constituição venezuelana -, no dia dezesseis de julho. Nunes critica também o
custo humanitário da crise, sentido sobretudo no desabastecimento de
medicamentos básicos – que o Estado brasileiro teria tentado ajudar a suprir mas
sido impedido pelas autoridades venezuelanas –, e nas vidas perdidas em
manifestações pela repressão governamental. Dentre os elementos
antidemocráticos do regime, é mencionada a privação de “liberdades públicas, da
liberdade de imprensa, do devido processo legal, da tutela jurisdicional, da
autonomia do organismo eleitoral e dos princípios basilares da independência e do
controle recíproco dos Poderes” (NUNES, 2017c).
Os elementos acima citados nos ajudam a delinear melhor o que Nunes
compreende por “democracia”. Aqui, a história do Estado brasileiro é reclamada por
ele como uma autorização para a cobrança feita ao governo venezuelano. Fazendo
referência ao regime ditatorial vivido pelo Brasil entre os anos de 1964 e 1985, ele
diz reconhecer a importância da “institucionalização da convivência democrática, na
sequência de mecanismos de transição negociada” (NUNES, 2017c). A partir deste
paralelo, fora cobrada do governo disposição para negociar com a oposição, dando
início a uma negociação para uma transição que incluísse a soltura dos “presos
políticos”, a restauração dos poderes da Assembleia Nacional e a “definição de um
calendário segundo os ditames da Constituição de 1999”. Embora dizendo colocar
seu país - ao lado de “outras grandes nações democráticas” - à disposição para uma
redemocratização dialogada que desembocaria em um futuro no qual até mesmo ao
chavismo tivesse espaço, Nunes argumenta que o governo de Maduro continuava
“cego e surdo” para tal saída, daí a necessidade de aplicação das disposições de
consulta contidas no Protocolo de Ushuaia Sobre o Compromisso Democrático no
Mercosul.
Considerações Finais
Este texto buscou apresentar, de maneira introdutória, a problemática desta
pesquisa e uma parcela daquilo que foi desenvolvido até então. A maioria das
nossas hipóteses ainda carece de conclusões, que deverão vir como consequência
do futuro desenvolvimento das investigações. De maneira geral, podemos afirmar
que o período compreendido pelos governos de Michel Temer e Mauricio Macri foi
marcado não apenas pelo distanciamento diplomático com relação à Venezuela
enquanto Estado, mas também por críticas contundentes ao governo do presidente
Nicolás Maduro. Aqui, nos preocupamos menos em definir a qualidade da
democracia no país andino e mais com as concepções dos autores políticos
analisados.
Entendemos que a democracia é um tema sensível tanto para o passado
recente da Argentina quanto para o do Brasil, uma vez que ambos passaram por
ditaduras autoritárias de forma mais ou menos sincrônica, tendo o primeiro se
redemocratizado em 1983 (com a eleição de Raul Alfonsín) e o segundo em 1985
(com a eleição indireta do civil Tancredo Neves). A partir da virada do milênio, os
governos progressistas kirchneristas e petistas apresentaram proximidade com a
Venezuela e uma boa relação com o chavismo, no geral. Discursos sobre a
democracia, em tal período, foram muito associadas a uma melhora no quadro
social, bem como à diminuição da desigualdade, uma maior inclusão social e o
acesso à educação. A diplomacia brasileira, entretanto, se mostrou muito mais
pragmática, não apostando no tom combativo e anti-imperialista do governo
kirchnerista, muito mais próximo à Venezuela.
Os governos Macri e Temer, por sua vez, apresentaram um considerável
alinhamento de posições quando se trata da natureza da democracia venezuelana.
Há distinções sensíveis que precisam ser consideradas. Enquanto o Cambiemos de
Mauricio Macri é uma agremiação de centro-direita formulada nos anos 2000 a partir
de Buenos Aires e tendo em vista a conquista do poder político, o PMDB de Temer
foi fundado prematuramente durante o regime militar, passando a se caracterizar
cada vez mais pela preponderância de lideranças regionais, pela presença na base
de sustentação parlamentar de diferentes partidos políticos e a ausência de um
programa ideológico bem delineado. Tão importante quanto é o fato de Macri ter
sido eleito pela maior parte da população argentina votante, enquanto Temer não
passou pelo crivo popular, assumindo a presidência em decorrência do
impeachment de Dilma Rousseff.
A viabilização de ambos, entretanto, dificilmente pode ser colocada à parte
das manifestações de setores de centro e de direita que, a despeito de suas
diferenças, foram marcadas pelo protagonismo da classe média, protestos contra a
corrupção e até mesmo pelo temor de uma possível chavização do país que, no
caso argentino, foi inclusive utilizado pelo PRO como estratégia retórica antes e
após a eleição de Macri. De maneira geral, quando criticam o governo venezuelano
pelo seu déficit democrático, os governos Macri e Temer parecem se apoiar em uma
definição do termo que corresponde ao que Bobbio (1998) definiu como “formal”,
cujos exemplos se encontram principalmente em “democracias liberais” - adotadas
por países dos quais tanto o PRO quanto o PMDB buscaram se aproximar
diplomaticamente. Acreditamos, portanto, que o pensamento político comporta
diferentes possibilidades de entendimento compartilhado de uma mesma palavra de
acordo com a cultura política de cada grupo.
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