cultura polÍtica, democracia e histÓria comparada: …

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CULTURA POLÍTICA, DEMOCRACIA E HISTÓRIA COMPARADA: UM ESTUDO SOBRE OS GOVERNOS MAURICIO MACRI (2015-2019) E MICHEL TEMER (2016-2018) Bruno Natan Lima 1 (PPGHS-UEL) Resumo: Esta pesquisa tem por objetivo a realização de uma análise comparativa entre os governos Mauricio Macri (2015-2019) e Michel Temer (2016-2018), lançando luz sobre as concepções de democracia encerradas nas culturas políticas argentina e brasileira. Para tanto, recorre-se a discursos oficiais e artigos, produzidos tanto pelos já aludidos presidentes quanto por seus ministros das relações exteriores, nos quais a Venezuela aparece como objeto. Como referencial teórico-metodológico, utiliza-se fundamentalmente a História Comparada, a Nova História Política, e a História do Presente. Entende-se, aqui, a democracia em sua dimensão problemática, portanto, objetiva-se compreender o estabelecimento de diferentes concepções sobre o termo no tempo e no espaço, considerando a sua mutabilidade e a coexistência de distintas culturas políticas. A partir do entendimento de que os regimes militares da segunda metade do século XX constituem, tanto na Argentina quanto no Brasil, eventos traumáticos fundantes para o estabelecimento de uma História do Presente, o trabalho considera também seus processos de redemocratização, o aprofundamento das relações diplomáticas entre os anos 1980 e 1990 que deram origem ao Mercosul, a ascensão de governos progressistas nos anos 2000 e a aproximação com a Venezuela que, a despeito da boa relação com os governos do Partido Justicialista (PJ) e do Partido dos Trabalhadores (PJ), viu seu presidente, Nicolás Maduro, ser duramente criticado pelos governos Macri (PRO) e Temer (MDB) por ameaçar a democracia e desrespeitar direitos humanos. Além da busca por generalizações, tenta-se, também, coteja-los a fim de desembaraçar o terreno das falsas semelhanças. Palavras-Chave: Argentina, Brasil, Venezuela, História Comparada, Cultura Política. 1 Bolsista CAPES.

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Page 1: CULTURA POLÍTICA, DEMOCRACIA E HISTÓRIA COMPARADA: …

CULTURA POLÍTICA, DEMOCRACIA E HISTÓRIA COMPARADA: UM ESTUDO

SOBRE OS GOVERNOS MAURICIO MACRI (2015-2019) E MICHEL TEMER

(2016-2018)

Bruno Natan Lima1

(PPGHS-UEL)

Resumo: Esta pesquisa tem por objetivo a realização de uma análise comparativa

entre os governos Mauricio Macri (2015-2019) e Michel Temer (2016-2018),

lançando luz sobre as concepções de democracia encerradas nas culturas políticas

argentina e brasileira. Para tanto, recorre-se a discursos oficiais e artigos,

produzidos tanto pelos já aludidos presidentes quanto por seus ministros das

relações exteriores, nos quais a Venezuela aparece como objeto. Como referencial

teórico-metodológico, utiliza-se fundamentalmente a História Comparada, a Nova

História Política, e a História do Presente. Entende-se, aqui, a democracia em sua

dimensão problemática, portanto, objetiva-se compreender o estabelecimento de

diferentes concepções sobre o termo no tempo e no espaço, considerando a sua

mutabilidade e a coexistência de distintas culturas políticas. A partir do entendimento

de que os regimes militares da segunda metade do século XX constituem, tanto na

Argentina quanto no Brasil, eventos traumáticos fundantes para o estabelecimento

de uma História do Presente, o trabalho considera também seus processos de

redemocratização, o aprofundamento das relações diplomáticas entre os anos 1980

e 1990 que deram origem ao Mercosul, a ascensão de governos progressistas nos

anos 2000 e a aproximação com a Venezuela que, a despeito da boa relação com

os governos do Partido Justicialista (PJ) e do Partido dos Trabalhadores (PJ), viu

seu presidente, Nicolás Maduro, ser duramente criticado pelos governos Macri

(PRO) e Temer (MDB) por ameaçar a democracia e desrespeitar direitos humanos.

Além da busca por generalizações, tenta-se, também, coteja-los a fim de

desembaraçar o terreno das falsas semelhanças.

Palavras-Chave: Argentina, Brasil, Venezuela, História Comparada, Cultura Política.

1 Bolsista CAPES.

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Introdução

Podemos, se nos colocarmos na esteira de Berstein (2003), definir

rapidamente o conceito de Cultura Política como uma “linguagem comum

simplificada” compartilhada pelos membros de dada formação ideológica. Esta,

quando pensamos em um partido político, passa a compreender tanto suas elites

quanto a massa de eleitores que não poderiam levar a cabo uma discussão teórica

sobre seus fundamentos. Trata-se de um “sistema de referências”, não

necessariamente exprimido explicitamente, a partir do qual todos os membros de

uma agremiação se entendem (BERSTEIN, 2003). É a partir de tal premissa que

este trabalho, menos preocupado em defini-la conforme diferentes grandes tradições

do pensamento político moderno - bem sintetizadas no verbete de Bobbio (1998) no

Dicionário de Política organizado por ele mesmo -, se debruça sobre a democracia,

ou melhor, sobre concepções de democracia no seio de uma Cultura Política. Aqui,

em consonância com Rosanvallon (2010), a analisamos em sua natureza

necessariamente problemática.

Bebendo da História Comparada, conforme sistematizada por Bloch (1998),

cotejamos as concepções de democracia nas sociedades argentina e brasileira

durante os mandatos de Michel Temer (2016-2018) e Mauricio Macri (2015-2019), a

partir de seus posicionamentos sobre o governo do presidente venezuelano Nicolás

Maduro. O interesse sobre essa problemática parte da mudança de posição dos

países citados com relação à Venezuela. Se no ano de 2012 ela tornava-se um

membro pleno do Mercosul - organização na qual Argentina e Brasil são, na prática,

os membros de maior peso -, em grande medida em virtude da boa relação com os

governos progressistas do Partido Justicialista e do Partido dos Trabalhadores,

representados pelas figuras das presidentas Cristina Fernandez de Kirchner e Dilma

Rousseff, foi durante os mandatos de Macri e Temer que se deu a sua suspensão. O

Protocolo de Ushuaia Sobre Compromisso Democrático no Mercosul, de 1998,

aplicado para suspender a Venezuela em agosto de 2017, foi o mesmo que

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suspendeu o Paraguai - cujo parlamento se opunha à adesão do país andino -, após

o controvertido impeachment do então presidente Fernando Lugo, permitindo a

entrada do país governado por Maduro no bloco meses depois.

Argentina

Em abril de 2015, ano final de seu mandato como presidenta da Argentina,

Cristina Fernández de Kirchner fez seu último discurso na VII Cúpula das Américas.

A mandatária – que também abordou o problema do tráfico de drogas

(responsabilizando principalmente os países desenvolvidos pelo consumo da maior

parcela do produto), o esforço de paz do então presidente colombiano Juan Manuel

Santos, e elogiou a inédita presença do presidente cubano Raul Castro na reunião –

utilizou a maior parte de seu tempo para criticar duramente os Estados Unidos pelo

decreto que definia a Venezuela como uma ameaça à sua segurança.

A princípio, disse ter rido do caráter inverossímil da decisão ao invés de

pensar em uma resposta anti-imperialista, e explicou sua reação lançando mão de

uma comparação entre as desproporcionais despesas militares dos dois países – o

que, no passado, teria permitido ao presidente Barack Obama tranquilizar os

cidadãos americanos em um momento de tensão com o Irã, país cuja despesa

militar é também consideravelmente maior do que a do Estado andino. Não demorou

até que Kirchner fizesse alusão ao financiamento, por parte dos Estados Unidos, de

golpes militares em países democráticos da América Latina durante a segunda

metade do século XX e, em seguida, citasse o que ela chamou de “golpes suaves”:

novas formas de intervenção “donde se utilizan medios masivos de comunicación

multinacionales, denuncias falsas, asociaciones caprichosas de Estados con otros

Estados para hacer no sé qué cosas y que conspiraciones” (KIRCHNER, 2015).

Mais sutis e sofisticadas, tais intervenções se dariam através de novas organizações

de financiamento desconhecido que, segundo ela, servir-se-iam do título de ONGs

para lançar denúncias exotéricas e sem comprovação a despeito do pretexto de

lutarem pela liberdade e pelos direitos humanos, culminando, assim, na

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desestabilização de governos da região, “curiosamente, que más han hecho por la

equidad, por la educación y por la inclusión social” (KIRCHNER, 2015).

Em grande medida, a posição combativa de Kirchner com relação aos

Estados Unidos e fraternal com relação à Venezuela é melhor compreendida à luz

dos padrões de política externa que o governo argentino vinha adotando desde a

posse de Néstor Kirchner, em 2003. De acordo com Mazzina e Cambel (2018), os

primeiros anos do kirchnerismo foram marcados por um duplo compromisso: de um

lado, com a reinserção argentina em um cenário mundial globalizado; e de outro,

com a autonomia do país, tendo o Estado como principal agente de seu

desenvolvimento econômico, o que inclui o aludido processo de reinserção

internacional (MAZZINA e CAMBEL, 2018). A relação com os Estados Unidos, dessa

forma, passou por etapas distintas. Na primeira, o apoio do governo Bush mostrou-

se importante para o logro da renegociação da dívida argentina, seguida, em 2005,

pelo aprofundamento de sua política de desendividamento e consequente

afastamento do país da tutela do FMI. Justamente neste ano, entretanto,

divergências com relação a temas relevantes para a agenda dos EUA começaram a

aparecer, vide a censura a Cuba em matéria de direitos humanos ou posição

favorável à guerra do Iraque (MAZZINA e CAMBEL, 2018).

No mês de novembro de 2005 foi realizada a VII Cúpula das Américas em

Mar del Plata, na Argentina. Enquanto Bush aproveitava o evento para tentar

viabilizar a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), Néstor Kirchner, em claro

sinal de oposição aos Estados Unidos, se reunia com o presidente venezuelano do

outro lado da cidade a fim de fortalecer o Mercosul. A aposta em aproximar-se de

Hugo Chávez veio, em grande medida, do fato de ter sido a Venezuela, desde o

default de 2001, um dos poucos países a comprar títulos de sua dívida. A uma

relação de início estritamente econômico-comercial, seguiu-se o nascimento e

aprofundamento de um caráter mais ideológico, uma vez que a chegada de Kirchner

ao poder significou apoio ao projeto de Chávez, até então figurando isolado como

presidente progressista na região (MAZZINA e CAMBEL, 2018).

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A Argentina e os Estados Unidos também tiveram diferentes fases durante os

dois mandatos de Cristina Kirchner, assistindo desde uma tentativa de

reaproximação em 2012 até um novo afastamento após decisão da Suprema Corte

americana sobre os “fondos buitre”, culminando, de acordo com Mazzina e Cambel

(2018), em quatro consequências: (1) a saída da Argentina do plano de

estabilização, afastamento dos EUA e do Ocidente; (2) aprofundamento da

desconfiança com relação ao governo Obama; (3) reforço de uma identidade

argentina sul-americana em virtude da pouca confiança no Ocidente; e (4)

estreitamento de relações estratégicas com outros países, em especial Rússia e

China. Neste sentido, como ocorreu com seu antecessor, a presidenta teria

encontrado na Venezuela, compradora de títulos pós-default e um dos poucos a

investir no mercado argentino de petróleo e lácteos, um companheiro fiel (MAZZINA

e CAMBEL, 2018). Tais elementos, componentes da cultura política do kirchnerismo,

nos ajudam a entender melhor o posicionamento da mandatária na Cúpula das

Américas e o contraste com as posições da agremiação político-partidária que se

viabilizou com a eleição de Mauricio Macri, em 2015.

Após 12 anos de governo kirchnerista, a Argentina assistiu à ascensão, por

via eleitoral, de uma força política de centro-direita que, de acordo com Vommaro

(2019), mostrou-se inédita desde o surgimento dos partidos majoritários no país.

Trata-se do Cambiemos, uma aliança entre a Unión Cívica Radical (UCR), a

Coalición Cívica (CC), partidos menores e a Propuesta Republicana (PRO), este

último responsável por encabeçar a coalizão. À crise de 2001 e 2002, que teria

criado um clima propício para o surgimento de novas forças políticas, seguiu-se a

fundação de dois partidos de centro-direita, o Recrear, partido não peronista liderado

pelo economista Ricardo López Murphy, e o PRO, cujo alto desempenho com a

conquista da prefeitura de Buenos Aires levou o primeiro a fundir-se a ele, com a

consequente unificação da centro-direita e obtenção de cobertura nacional

(VOMMARO, 2019).

Organizado em torno de Macri, presidente do Boca Juniors – importante clube

de futebol argentino – e herdeiro de um grande grupo empresarial, o nascimento do

partido seguiu uma consciência pragmática. Enquanto terreno propício para opções

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de centro-direita e cenário de debilitação de forças políticas tradicionais ou surgidas

na década de 1990, a cidade de Buenos Aires foi o epicentro de um PRO que se

originou com a intenção de constituir-se um veículo de chegada ao poder. Tal

característica, como aponta Vommaro (2019), o teria levado a acolher quadros

provenientes de diferentes origens, compreendendo desde políticos de larga data do

peronismo, do radicalismo e outras forças tradicionais de direita, quanto novos

políticos provenientes de ONGs e “fundaciones profesionalizadas e

internacionalizadas”, e empresários e “quadros de alta gerencia del mundo privado”

(VOMMARO, 2019, p. 99).

Com a reeleição de Cristina Kirchner, em 2011, assistiu-se à intensificação da

polarização política na Argentina. Se houve, por um lado, aumento na retórica

conflitiva do oficialismo, de outro, eclodiram as primeiras manifestações

antigovernamentais massivas. Centradas no protagonismo das classes médias, suas

demandas eram “econômicas”, como a oposição à regulação do acesso ao dólar, e

institucionais, pois se voltavam contra atos de corrupção. Neste contexto, o PRO foi

responsável por traduzir um discurso marcadamente “antipopulista” e

antikirchnerista, servindo-se da difusão de um “pânico moral” a respeito da

possibilidade de “chavização” do país, em sua versão não capitalista e não liberal-

republicana. A criação do Cambiemos, sobretudo com a adesão da UCR, permitiu

que o grupo capitaneado por Macri tomasse um atalho e chegasse a distritos em

que seu desempenho era inexpressivo. Embora nem todas as novas forças políticas

da agremiação compartilhassem de seu programa, o protagonismo do PRO era claro

e todos tiveram de subordinar-se a ele.

En efecto, el hecho que PRO hubiese definido la vía local como primer paso de construcción de una opción electoral nacional implicó un reto para su construcción como desafiante del kirchnerismo. Tras intentos limitados para ampliar su implantación territorial (incorporar aliados provinciales de centro-derecha, cooptar dirigentes peronistas y radicales disconformes con sus partidos, incorporar figuras con popularidad en algunas provincias que permitieran conseguir votos a pesar de contar con bajos niveles de organización), la alianza con el radicalismo unificó la oposición al peronismo en su versión de centro-izquierda como FPV. Los nuevos aliados de PRO eran partidos en decadencia (la UCR), vehículos personalistas (CC) o pequeños partidos de nicho (Parido Fe, neoperonista, fundado por el líder del sindicato de peones rurales), con lo que no fue difícil para la pujante centro-derecha imponerse sobre ellos, lograr controlar la estrategia y la etiqueta, y colocar a sus candidatos a la cabeza de las listas para cargos

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nacionales en los distritos más importantes del país (con excepciones, como Mendoza) (VOMMARO, 2019, p. 100).

Diante do que foi exposto sobre o Cambiemos, é possível supor que o

discurso de Macri sobre o governo venezuelano tenha sido sensivelmente distinto

daquele que foi apresentado por seus predecessores. O contraste, inclusive com

relação aos EUA, pode ser ilustrado, por exemplo, quando o presidente argentino,

ao ser questionado sobre sua posição acerca da situação política venezuelana no

Centro de Estudos Estratégicos Internacional de Washington, classificou o país

como não democrático, listando o desrespeito aos direitos humanos, a existência de

presos políticos e o desrespeito à independência do congresso, colocando-se ainda

em favor da permanência do esforço pela exigência de novas eleições e liberação

dos presos políticos através dos instrumentos do Mercosul (MACRI, 2017a). O que

chama a atenção aqui é o fato de Macri ter criticado a Venezuela justamente no país

que recebeu duras palavras de protesto de Cristina Kirchner há dois anos pelo já

aludido decreto expedido contra o governo de Nicolás Maduro.

En primer lugar, cuando por primera vez tomé contacto con este tema, hace muchos años, muchos me dijeron que la cosa no podía empeorar. Pero el tiempo pasó y las cosas, realmente, empeoraron, así que lo que creo es que en Venezuela no se tiene ningún respeto por los derechos humanos, eso no es una democracia, no está funcionando, tenemos presiones los políticos, no se está respetando la independencia del Congreso, así que creo que tenemos que seguir exigiendo elecciones, la liberación de los prisioneros y me alegro mucho que hayamos logrado un acuerdo en el seno del Mercosur para expresar eso justamente; y ahora, la OEA también ha emitido una declaración en ese sentido, así que yo creo que hay que seguir trabajando. Yo creo que a todos aquí nos preocupa lo que está pasando en Venezuela, tenemos amigos, recibimos inmigrantes de Venezuela como nunca antes en Argentina, están desesperados tratando de encontrar un lugar para poder recuperar su vida, y obviamente esa no es la solución. Necesitamos lograr que Venezuela vuelva a tener un gobierno democrático y hay mucho trabajo para hacer en ese sentido, porque el día después va a ser muy, muy duro

(MACRI, 2017a).

Mazzina e Cambel (2018) apontam que a diplomacia argentina assistiu a um

giro diplomático na gestão de Mauricio Macri, que se caracterizou pelo caráter

pragmático e pela tentativa de reinserção do país no mundo. Essa atitude se

materializou na reaproximação ou estreitamento de relações com países ocidentais

como a França de Hollande, a Alemanha de Merkel, o Canadá de Trudeau, o Reino

Unido de Cameron e May e a Itália de Renzi. Houve, portanto, uma busca pela

diversificação da agenda internacional argentina com o balanceamento de suas

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relações diplomáticas, até então voltadas para Rússia e China. A retórica do PRO,

conforme as autoras, garantiu à segunda um papel central na abertura multilateral

do país. Ao mesmo tempo em que evitou-se o conflito com a manutenção das

relações comerciais – inegavelmente caras a ambos –, buscou-se a redução da

dependência com a abertura a outros países. A relação com a Rússia de Putin,

entretanto, embora ativa e cordial, teria sido a mais afetada quando comparada ao

governo anterior (MAZZINA E CAMBEL, 2018).

Suzana Malcorra, a chanceler responsável por capitanear a política externa

argentina continuada por seu sucessor, Jorge Faurie, estabeleceu, no princípio do

governo Macri, 10 eixos diplomáticos para o país.2 Em conformidade com o que foi

apresentado acima, o primeiro deles caracteriza-se pela importância da manutenção

de relações maduras com todas as nações e pela presença do país em todos os

foros internacionais, nos quais a Argentina se apresentaria como construtora e

solucionadora de problemas. Da mesma maneira, o terceiro eixo propõe o

“estabelecimento de uma política de integração e abertura” manifestada em sua

presença na ONU, na OEA, no Mercosul, na Unasul e na Celac. Aqui, dois eixos nos

chamam a atenção por colaborarem com a elucidação de nossa problemática. O

sétimo eixo aponta como objetivo a criação de uma relação “inteligente e madura”

com os EUA. Malcorra, neste tópico, argumenta que a relação com o país mais

poderoso do mundo é imprescindível, daí a necessidade de buscar-se uma agenda

comum. Defende, contudo, que uma entrega incondicional não pode e não deve ser

efetivada, considerando que há temas sobre os quais os dois países não irão se

entender. O segundo eixo, por fim, define países que apresentam ruptura

democrática como exceções ao esforço diplomático bilateral argentino.

A reconstrução do vínculo com os Estados Unidos, francamente debilitado

pelo discurso antiamericano dos últimos anos de Cristina Kirchner no poder,

apresentou-se, de acordo com Mazzina e Cambel (2018), como uma das prioridades

do governo Macri. A princípio, essa mudança pode ser percebida na visita de

2 Los 10 ejes de la política exterior argentina, según Susana Malcorra, diario La Nación, 18/02/2016.

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Obama, já no final de seu último mandato, à Argentina.3 Tal dinâmica teve

continuidade com a eleição de Trump, que recebeu o presidente argentino na Casa

Branca pouco depois de uma ligação intermediada por Malcorra. Mike Pence, vice-

presidente dos EUA, visitou, por sua vez, a Argentina em 2017 para a formalização

de agendas de Estado. Em abril de 2017, Mauricio Macri, no almoço realizado na

Casa Branca em sua homenagem, lançou mão de uma aproximação entre os

sistemas políticos americano e argentino, comentando que, apesar da Constituição,

as duas nações desafortunadamente se desentenderam e tomaram caminhos

diferentes com o tempo. Argumentando ainda que ambos compartilham interesses

comuns no que diz respeito ao “compromisso absoluto com a democracia, com os

direitos humanos, com a luta contra o terrorismo e o crime organizado”, terminou o

seu discurso mencionando partidas de golfe disputadas entre ele e o republicano no

passado (MACRI, 2017b).

A retórica do PRO se mostrou marcadamente contrária ao governo

venezuelano ao menos desde a campanha presidencial de 2015, na qual, como

apontou Vommaro (2019), o medo que parte da população nutria pela possível

chavização do Estado foi utilizado como arma política pelo partido em ascensão.

Macri, já no cargo e sobretudo com a agudização da crise política no país andino,

mais de uma vez colocou a escolha dos eleitores por seu programa e pela “verdade”

(MACRI, 2018a) como responsável por “detener el proceso que nos llevaba a

convertirnos en otra Venezuela” (MACRI, 2018b).

Brasil

Há, no caso brasileiro, uma complicação considerável. Diferente do que

ocorreu com o Cambiemos de Mauricio Macri, o governo Temer e suas propostas

não se sujeitaram ao crivo popular. Dilma Vana Rousseff, ex-ministra da Casa Civil

do governo Lula e eleita presidenta pela primeira vez em 2010 como candidata do

Partido dos Trabalhadores (PT), foi, em 2016 - segundo ano de seu segundo

3 A última visita de um presidente americano ao país havia ocorrido em 2005, na já citada tentativa de George

W. Bush de viabilizar a Alca, ativamente boicotada por Néstor Kirchner e Hugo Chávez.

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mandato -, retirada do cargo por um controvertido processo de impeachment

(definido por alguns autores como “golpe parlamentar”). Entre eles, encontra-se o

cientista político e antigo porta voz da presidência André Singer, que difere o

processo de um golpe de Estado, normalmente entendido como uma tomada do

poder pelas forças armadas, por esse ter ocorrido dentro “dos limites da lei”

(SINGER, 2018). Em grande medida, como reconhece o autor, o impeachment da

presidenta foi facilitado pela ampla divulgação midiática da Operação Lava Jato, da

qual o juiz federal Sergio Moro se tornara o maior símbolo, somada às crescentes

manifestações “antilulistas” levadas a cabo entre junho de 2013 e março de 2016.

Estas, que segundo Singer teriam se iniciado como oposição de esquerda ao

lulismo, logo se tornaram um “levante de classe média”, na qual o centro e a direita

“levaram para a avenida o tema da corrupção” (SINGER, 2018, p. 28-28). Conforme

a leitura do autor:

O caráter errático da atuação de Dilma depois de junho abriu uma avenida para o antilulismo. Engrenagens que aguardavam a oportunidade desde 2003 puseram-se a funcionar. Uma ambiciosa coalizão de poder, capitaneada por Michel Temer e o senador José Serra (PSDB-SP), foi sendo costurada desde pelo menos agosto de 2015. Ressentido pela quarta derrota seguida em eleições presidenciais, o PSDB forneceu elementos para a construção do golpe parlamentar. Embora o protagonismo tenha sido do PMDB, que assumiria a Presidência, a formulação jurídica, o programa econômico, a ponte com o empresariado e a legitimação perante a classe média passaram pelo PSDB – para não falar na centena de votos que o tucano galvanizava no Legislativo. A mobilização impulsionada pela Lava Jato, via meios de comunicação, recobriu a derrubada de apoio social (SINGER, 2018, p. 31).

Conforme Maciel (2014), o partido de Michel Temer, em um espectro político

polarizado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social Democracia

Brasileira (PSDB), a sua centralidade “na ordem de preferências” e o peso político

traduzido em um considerável número de cadeiras nas bancadas do congresso,

tornaram-no uma espécie de “coringa” na política brasileira. Em grande medida, seu

grande peso político pode ser creditado à sua forte presença regional e ao

nascimento prematuro dos partidos surgidos com a redemocratização da sociedade

brasileira, tendo agremiado o conjunto da oposição oficial aos militares e seus

apoiadores durante a ditadura iniciada em 1964. A autora, apesar de defini-lo

sobretudo como um partido de centro, chama a atenção para contornos de centro-

direita que este ganhou com a saída de afiliados mais à esquerda para compor ou

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formar novos partidos, como foi o caso de Fernando Henrique Cardoso com o

PSDB.

Apesar da mudança de contexto, a centralidade e o peso político do PMDB continuaram em processo de autorreforço. A heterogeneidade do partido se acirrou com a abertura do sistema partidário, dificultando ainda mais o delineamento de um programa político. O PMDB se consolidou como o centro do espectro político brasileiro não apenas por sua posição moderada, mas principalmente pela falta de um programa e um perfil ideológico. O peso político do partido, por sua vez, aumentou ainda mais com o retorno à democracia, principalmente com o sucesso eleitoral da década de 1980. Este bom desempenho eleitoral foi reforçado principalmente pelo aumento do poder dos líderes regionais dentro da organização (MACIEL, 2014, p. 63).

A mesma autora argumenta que, se durante o regime militar o PMDB se

dividia sobretudo pela oposição moderada ou combativa, a polarização passou a

ser, a partir do governo FHC, entre governistas e oposicionistas ou dissidentes.

Grosso modo, tratava-se de uma disputa pelo controle do partido entre aqueles que

defendiam a adoção de uma postura independente e o desenvolvimento de uma

bandeira política própria, e aqueles que advogavam pela participação do PMDB no

governo, ocupando ministérios e importantes cargos de direção sob o pretexto de

contribuírem para a sustentação da governabilidade e aprovação de propostas

importantes. Estes últimos eram representados principalmente pela figura de Michel

Temer e acabaram por ganhar sensível vantagem a despeito dos anseios do grupo

dissidente. Embora tenha ficado, de início, de fora da coalizão formada em ocasião

do primeiro mandato de Lula como Presidente da República, não demorou até que,

em janeiro de 2004, o partido fosse chamado para compor também o governo do PT

na segunda coalizão formada.

Embora defendesse, a princípio, uma candidatura própria para o PMDB,

Michel Temer, apoiado pelo PT em sua empreitada pela presidência da câmara

federal em 2009, aceitou compor, como vice-presidente, a chapa encabeçada por

Dilma Rousseff para concorrer à presidência da República em 2010. A vitória da

chapa reafirmou a liderança de Temer e fortaleceu ainda mais a ala governista do

partido. Com o início das primeiras movimentações para o impeachment de Dilma

após a sua reeleição, entretanto, as diferenças entre os dois em temas diversos

começaram a se evidenciar. Dentre outros tópicos, a relação com a Venezuela

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mudou consideravelmente com a ascensão de Temer na presidência. O presidente,

discursando na abertura da LI Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul e Estados

Associados, em dezembro de 2017, afirmou que o Mercosul a esperaria de “braços

abertos” assim que ela “voltasse à democracia”, logo após dizer estar do lado “da

liberdade de expressão, da separação dos poderes e dos direitos humanos”

(TEMER, 2017).

A democracia foi reconquistada em nossa região com grande custo. Cabe a nós defender esse valor fundamental para as nossas sociedades, para o desenvolvimento do nosso processo de integração. Defender a democracia não significa impor políticas a quem quer que seja. O pluralismo é da própria essência da democracia. Defender a democracia significa, isto sim, manter fidelidade aos compromissos que assumimos no Mercosul ao longo de mais de duas décadas. Significa dar concretude a esses compromissos naqueles momentos em que direitos fundamentais são postos em xeque. Por isto que, quando suspendemos por comum acordo a Venezuela do Mercosul, era aliás, uma medida que se imponha (TEMER, 2017).

A mudança de postura da diplomacia brasileira é muito bem ilustrada quando

cotejamos dois artigos que, embora abordem o mesmo tema, apresentam

perspectivas muito distintas sobre ele: o aniversário de 25 anos do Mercosul,

comemorado em 2016 – coincidentemente o ano no qual Dilma Rousseff sofreu o

impeachment e Michel Temer assumiu a sua posição. Mauro Vieira, até então

ministro das relações exteriores do Brasil, publicou, no dia 26 de março, pelo jornal

Folha de S. Paulo, um texto intitulado “Os 25 Anos de Mercosul: momento de

reconhecer os ganhos” (VIEIRA, 2016). No subtítulo já se evidencia o contraste com

relação ao que foi escrito por seu sucessor. José Serra (PSDB), primeiro ministro

das relações exteriores do governo Michel Temer, publicou, no dia 10 de julho

daquele mesmo ano, um artigo no jornal O Globo intitulado “Vinte e Cinco Anos e

Muito Por Fazer”. Menos de quatro meses separam a publicação dos artigos, o que

descarta a atuação de uma grande mudança estrutural externa entre as

representações e projeções de Mauro Vieira e José Serra.

Vieira propõe um “balanço equilibrado” que pressupunha “reconhecer os

ganhos, responder às críticas e identificar desafios”. Entre os ganhos, cita o salto

comercial quantitativo e qualitativo do Brasil com os vizinhos que compõe o bloco, a

elevação de salários e a possibilidade de trabalho no exterior com contabilização de

anos para a aposentadoria, a criação de mecanismos eficientes para o

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reconhecimento de estudos no exterior, bem como a facilidade de trânsito sem a

necessidade de passaporte – um conjunto de ganhos que viabilizariam “o

desenvolvimento de uma cidadania comum na região” –, e a estabilidade que pode

ser percebida, por exemplo, pela melhora nas relações diplomáticas entre Argentina

e Brasil. Responde ainda críticas feitas ao suposto engessamento de acordos

comerciais bilaterais em virtude da necessidade de negociação em bloco, citando a

União Europeia como um exemplo bem sucedido deste tipo de organização. Por fim,

o então ministro define a democracia como “pressuposto de todas as outras

conquistas”. O Mercosul, que teria, desta forma, nascido “do desejo de superar de

vez o autoritarismo”, poussiria, de acordo com Vieira, além dos ganhos citados por

ele anteriormente, o trunfo de funcionar como “um instrumento de preservação e

aperfeiçoamento” das democracias regionais.

Percebe-se, aqui, que a democracia é apresentada como um ativo da

integração regional, enquanto a Venezuela sequer foi citada pelo ministro. O artigo

de José Serra, por sua vez, aposta em outro direcionamento. O tucano inicia seu

texto reconhecendo que o Mercosul obteve bons resultados agregados e menciona

os desafios de integração em um cenário internacional competitivo e instável. É a

Venezuela, contudo, que recebe quase que integralmente sua atenção. Por um lado,

Serra justifica a postergação da transferência da presidência pró-tempore do bloco

em virtude do não cumprimento de regras indispensáveis para a integração do país

andino, que teria se dado de forma “exótica”, uma vez que só ocorreu após a

suspensão do Paraguai, cujo parlamento se opunha à sua entrada. Serra defende

que os motivos que levaram Argentina, Brasil e Uruguai a aceitarem a Venezuela

foram “político-ideológicos”, visto que ela não cumpria com requisitos mínimos, e que

o impeachment de Lugo – responsável pela suspensão do Paraguai -, ocorrera

conforme a constituição. O “Protocolo de Assunção sobre o Compromisso com a

Promoção e Proteção dos Direitos Humanos no Mercosul (2005)”, o “Acordo de

Residência do Mercosul (2002)” e o “Acordo de Complementação Econômica n. 18,

no âmbito da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi)” foram alguns dos

documentos não assinados pela Venezuela citados por Serra.

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Esse último, no qual estão refletidas as principais disciplinas comerciais do bloco, constitui a espinha dorsal do Mercosul comercial. A não incorporação dessas normas faz da Venezuela um sócio incompleto, inadimplente em relação a deveres que são fundamentais, como regras de origem, que definem se um produto pode ingressar nos demais parceiros sem pagar imposto de importação, cooperação judicial e regulamentos técnicos sobre meio ambiente, alimentos, direitos do consumidor e requisitos fitossanitários, entre outros. No momento em que os países da região, e o Mercosul com eles, voltam a conferir o devido valor à previsibilidade e à segurança jurídica, a expectativa de que a Venezuela cumpra com as obrigações assumidas é exigência lógica e requisito incontornável (SERRA, 2016).

Por outro lado, apesar da justificativa tecnicista, Serra critica a qualidade

democrática do país vizinho, cujo déficit representa uma preocupação de primeira

ordem em seu discurso. “Política, econômica e humanitária”, uma vez que suas

consequências vão de “prisões arbitrárias” ao “desabastecimento”, a crise

venezuelana é definida por ele como reflexo de “uma realidade de polarização e

acirramento retórico de difícil superação”, manifestada em uma contenda entre o

poder executivo e o legislativo que se complicava pela ação questionável do

judiciário. O artigo do ministro, escrito antes do acirramento das tensões que se

seguiram à tentativa recuada do STJ de anular os poderes da Assembleia Nacional

e da iniciativa do executivo pela criação de uma Assembleia Constituinte, em 2017

(SCHEIDT, 2019), demonstra preocupação diante da iniciativa de setores chavistas

em prol do fechamento do órgão de maioria oposicionista. Serra colocou o Mercosul

a disposição para a resolução do impasse, pontuando, contudo, a “falta de vontade

política” para uma saída democrática. Seu artigo é concluído com o reconhecimento

da importância da Venezuela em um processo de desenvolvimento conjunto, cujas

bases, ressalvou, devem se basear em “instituições respeitadas, comportamento

previsível e regras claras” (SERRA, 2016).

Evidências de que setores ligados ao governo querem o fechamento da Assembléia Nacional dão a medida da turbulência. Há denúncias de prisões arbitrárias, crescente violência nas ruas e uma gravíssima crise de desabastecimento de alimentos e remédios, que vem castigando duramente a população, sobretudo a mais pobre. O Brasil aposta no diálogo entre as principais forças políticas venezuelanas para o encaminhamento dos impasses. Mas é forçoso reconhecer que, hoje, o cenário é de grande instabilidade e de falta de vontade política para levar adiante a construção de pontes para uma saída democrática da crise (SERRA, 2016).

Aloysio Nunes, também filiado ao PSDB, sucedeu José Serra no comando do

Ministério das Relações Exteriores e, ao menos no que tange à postura a respeito

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da situação política venezuelana, deu continuidade ao seu discurso. O novo ministro

mostrava-se ativamente crítico às instituições chavistas mesmo antes de Michel

Temer ter tomado posse como presidente. Em junho de 2015 – primeiro ano do

segundo mandato de Dilma Rousseff -, o tucano, então senador pelo estado de São

Paulo, integrou uma comitiva que desembarcou em Caracas sob o pretexto de pedir

a soltura daqueles que por eles eram definidos como presos políticos do regime. Ao

seu lado, encontravam-se figuras notáveis que compunham a oposição ao Partido

dos Trabalhadores, incluindo o também senador tucano Aécio Neves, principal

adversário de Dilma Rousseff nas acirradas eleições presidenciais de 2014.4 Nunes,

que assumiu a pasta em março de 2017, proferiu um discurso de posse que, dentre

outras tópicos, não deixou de lado uma tomada de posição sobre o país vizinho:

Não posso deixar de lembrar a preocupação, cada vez mais presente, com a escalada autoritária do governo venezuelano, que nos últimos anos esteve presente entre os grandes temas em debate. A nossa posição frente à Venezuela é emblemática do papel que queremos desempenhar na América Latina e no mundo. Nossa solidariedade irrestrita com aqueles que lutam pela liberdade nesse país irmão é a reafirmação do princípio constitucional da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais do Brasil democrático (NUNES, 2017a).

De acordo com o ministro, sua participação na Comissão de Relações

Exteriores e Defesa Nacional o ensinou que tais preocupações ultrapassariam “os

limites das atuais situação e oposição”, sendo compartilhadas por um “amplo

espectro de opiniões políticas”. Além de seus discursos, é possível perceber seus

posicionamentos através de artigos escritos especificamente sobre o papel da

diplomacia brasileira na crise venezuelana. Em junho de 2017, o tucano publicou um

artigo pelo jornal O Estado de S. Paulo intitulado “Por uma Venezuela novamente

democrática”. No texto, ele justifica seu alinhamento com outros chanceleres da

OEA a respeito do país, no qual “o estado democrático” teria “deixado de vigorar”. O

governo Maduro é definido como arbitrário por “cercear liberdades individuais”,

destruir a independência do judiciário, ignorar a voz do legislativo e sufocar a

oposição, negando-se a realizar eleições em um “regime” que estaria enchendo

seus porões de presos políticos e “inegavelmente” reprimindo cada vez mais seus

4 Nessas eleições, como lembrou com orgulho o próprio ministro em seu discurso de posse no Itamaraty, Nunes

foi candidato ao cargo de vice-presidente pelo PSDB na chapa liderada por Aécio Neves.

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cidadãos. Nunes critica sobretudo a convocação, por parte do governo, de uma

Assembleia Constituinte que, segundo ele, teria se dado à revelia do “princípio do

sufrágio universal inscrito na própria Constituição bolivariana”.

A crise humanitária é consequência direta da privação de direitos sofrida pelos venezuelanos. Defendemos o respeito aos princípios democráticos para que o povo da Venezuela possa voltar a ser senhor do próprio destino. A soberania e a autodeterminação na Venezuela precisam emanar de um povo capaz de participar ativamente da vida da nação, em ambiente democrático verdadeiramente livre. Somente na democracia é possível trilhar o caminho da paz social e da prosperidade, que é o que nós brasileiros desejamos aos irmãos venezuelanos (NUNES, 2017b).

Em “Caminho seguro para o agravamento da crise”, artigo de julho daquele

mesmo ano publicado pelo jornal Folha de São Paulo, as críticas se intensificaram.

Com “já se foi o tempo de convivência com o arbítrio da Venezuela”, ele inicia o

texto, escrito em ocasião das eleições para a Assembleia Constituinte daquele dia

trinta. O ministro critica a própria utilização da palavra “eleição”, cuja designação

seria “enganosa” por se tratar de uma manobra de Nicolás Maduro para se

perpetuar no poder, prescindindo, assim, dos líderes oposicionistas, e aplicada à

revelia do plebiscito convocado pela Assembleia Nacional – esta sim eleita conforme

a Constituição venezuelana -, no dia dezesseis de julho. Nunes critica também o

custo humanitário da crise, sentido sobretudo no desabastecimento de

medicamentos básicos – que o Estado brasileiro teria tentado ajudar a suprir mas

sido impedido pelas autoridades venezuelanas –, e nas vidas perdidas em

manifestações pela repressão governamental. Dentre os elementos

antidemocráticos do regime, é mencionada a privação de “liberdades públicas, da

liberdade de imprensa, do devido processo legal, da tutela jurisdicional, da

autonomia do organismo eleitoral e dos princípios basilares da independência e do

controle recíproco dos Poderes” (NUNES, 2017c).

Os elementos acima citados nos ajudam a delinear melhor o que Nunes

compreende por “democracia”. Aqui, a história do Estado brasileiro é reclamada por

ele como uma autorização para a cobrança feita ao governo venezuelano. Fazendo

referência ao regime ditatorial vivido pelo Brasil entre os anos de 1964 e 1985, ele

diz reconhecer a importância da “institucionalização da convivência democrática, na

sequência de mecanismos de transição negociada” (NUNES, 2017c). A partir deste

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paralelo, fora cobrada do governo disposição para negociar com a oposição, dando

início a uma negociação para uma transição que incluísse a soltura dos “presos

políticos”, a restauração dos poderes da Assembleia Nacional e a “definição de um

calendário segundo os ditames da Constituição de 1999”. Embora dizendo colocar

seu país - ao lado de “outras grandes nações democráticas” - à disposição para uma

redemocratização dialogada que desembocaria em um futuro no qual até mesmo ao

chavismo tivesse espaço, Nunes argumenta que o governo de Maduro continuava

“cego e surdo” para tal saída, daí a necessidade de aplicação das disposições de

consulta contidas no Protocolo de Ushuaia Sobre o Compromisso Democrático no

Mercosul.

Considerações Finais

Este texto buscou apresentar, de maneira introdutória, a problemática desta

pesquisa e uma parcela daquilo que foi desenvolvido até então. A maioria das

nossas hipóteses ainda carece de conclusões, que deverão vir como consequência

do futuro desenvolvimento das investigações. De maneira geral, podemos afirmar

que o período compreendido pelos governos de Michel Temer e Mauricio Macri foi

marcado não apenas pelo distanciamento diplomático com relação à Venezuela

enquanto Estado, mas também por críticas contundentes ao governo do presidente

Nicolás Maduro. Aqui, nos preocupamos menos em definir a qualidade da

democracia no país andino e mais com as concepções dos autores políticos

analisados.

Entendemos que a democracia é um tema sensível tanto para o passado

recente da Argentina quanto para o do Brasil, uma vez que ambos passaram por

ditaduras autoritárias de forma mais ou menos sincrônica, tendo o primeiro se

redemocratizado em 1983 (com a eleição de Raul Alfonsín) e o segundo em 1985

(com a eleição indireta do civil Tancredo Neves). A partir da virada do milênio, os

governos progressistas kirchneristas e petistas apresentaram proximidade com a

Venezuela e uma boa relação com o chavismo, no geral. Discursos sobre a

democracia, em tal período, foram muito associadas a uma melhora no quadro

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social, bem como à diminuição da desigualdade, uma maior inclusão social e o

acesso à educação. A diplomacia brasileira, entretanto, se mostrou muito mais

pragmática, não apostando no tom combativo e anti-imperialista do governo

kirchnerista, muito mais próximo à Venezuela.

Os governos Macri e Temer, por sua vez, apresentaram um considerável

alinhamento de posições quando se trata da natureza da democracia venezuelana.

Há distinções sensíveis que precisam ser consideradas. Enquanto o Cambiemos de

Mauricio Macri é uma agremiação de centro-direita formulada nos anos 2000 a partir

de Buenos Aires e tendo em vista a conquista do poder político, o PMDB de Temer

foi fundado prematuramente durante o regime militar, passando a se caracterizar

cada vez mais pela preponderância de lideranças regionais, pela presença na base

de sustentação parlamentar de diferentes partidos políticos e a ausência de um

programa ideológico bem delineado. Tão importante quanto é o fato de Macri ter

sido eleito pela maior parte da população argentina votante, enquanto Temer não

passou pelo crivo popular, assumindo a presidência em decorrência do

impeachment de Dilma Rousseff.

A viabilização de ambos, entretanto, dificilmente pode ser colocada à parte

das manifestações de setores de centro e de direita que, a despeito de suas

diferenças, foram marcadas pelo protagonismo da classe média, protestos contra a

corrupção e até mesmo pelo temor de uma possível chavização do país que, no

caso argentino, foi inclusive utilizado pelo PRO como estratégia retórica antes e

após a eleição de Macri. De maneira geral, quando criticam o governo venezuelano

pelo seu déficit democrático, os governos Macri e Temer parecem se apoiar em uma

definição do termo que corresponde ao que Bobbio (1998) definiu como “formal”,

cujos exemplos se encontram principalmente em “democracias liberais” - adotadas

por países dos quais tanto o PRO quanto o PMDB buscaram se aproximar

diplomaticamente. Acreditamos, portanto, que o pensamento político comporta

diferentes possibilidades de entendimento compartilhado de uma mesma palavra de

acordo com a cultura política de cada grupo.

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