ditadura militar, transiÇÃo polÍtica e democracia … · ... transiÇÃo polÍtica e democracia...

32
DITADURA MILITAR, TRANSIÇÃO POLÍTICA E DEMOCRACIA LIBERAL Luiz Fernando da Silva Lamericas.org Maio de 2014

Upload: lamhuong

Post on 09-Jul-2018

225 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Lamericas.org

DITADURA MILITAR, TRANSIÇÃO POLÍTICA E

DEMOCRACIA LIBERAL

Luiz Fernando da Silva

Lamericas.org

Maio de 2014

Lamericas.org 1

DA DITADURA MILITAR, TRANSIÇÃO POLÍTICA E DEMOCRACIA LIBERAL

CONSOLIDAÇÃO DA HEGEMONIA DO GRANDE CAPITAL

Luiz Fernando da Silva1

O golpe civil-militar de 1964 e o regime ditatorial brasileiro instalado não

fazem parte de passado distante; ocupam material e culturalmente muito de nosso

presente. A ditadura não somente encerrou por 21 anos o país em descalabros

políticos e econômicos, mas também condicionou a transição política no país,

atuando como agente político fundamental na defesa dos interesses empresariais

monopolistas nacionais e internacionais, dos interesses capitalistas no meio rural,

e também defensor do sistema de informação e repressão.

Durante o período de transição do regime político ditatorial para o regime

democrático-liberal, os militares realizaram um movimento de recuo organizado,

condicionando o ritmo da transição e limitando a agenda política e econômica.

Nesse movimento, incorporaram distintos setores da oposição liberal e atuaram

de maneira permanente no sentido de atemorizarem os setores de oposição.

Neste artigo reside uma problematização, no sentido de evidenciar as

relações estruturais e históricas, mas também conjunturais, que estabelecem o

percurso entre o golpe civil-militar e a transição política no país. A articulação

entre passado e presente. Basicamente será tratado o caráter do golpe civil-militar

e, com a crise econômica a partir de 1973 no país, o processo de crise do regime

político que desembocará na Nova República e processo constituinte. Como

elemento importante nesse processo procura-se observar as dissidências

empresariais que ocorrem na base do regime ditatorial e, por outro lado, o

processo de mobilizações e lutas sociais ocorridas no final da década de 1970 e

anos de 1980.

A maneira como os militares tiveram força para condicionarem a transição

política é algo que nos traz inúmeras questões, visto que o sistema de poder se

1Professor de Sociologia e Cultura Brasileira na Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (Unesp –

Campus Bauru). Graduado em História, Mestre e Doutor em Sociologia pela Unesp, com pós-doutorado

em Sociologia na Universidade de Buenos Aires (UBA). Coordenador do portal Lamericas.org

(www.lamericas.org) e do grupo de pesquisa “América Latina e Marx: Movimentos Sociais, Partidos,

Estado e Cultura” (CNPq).

Lamericas.org 2

encontrava enfraquecido e desmoralizado em decorrência da ampliação das

mobilizações sociais, da multiplicação das oposições, além da própria divisão

interburguesa por causa da crise econômica e da parcial retirada do apoio

imperialista aos regimes militares na América do Sul. Ainda assim manteve-se como

força política central, impondo e condicionando a transição no país. Viveram à

sombra do processo constitucional aberto em 1986, inclusive cerceando as

representações políticas e o caráter da assembléia constituinte. Certamente que isso

somente foi possível em razão do caráter dúbio e vacilante da oposição liberal

como também de parte significativa da esquerda política.

Em razão do velamento político ocorrido em defesa dos distintos interesses

do grande Capital e do sistema de informação e repressão, nesse processo, ainda

hoje existem muitas perguntas sobre o envolvimento dos setores civis e

empresariais com a ditadura, assim como dúvidas sobre a impunidade de

torturadores e mandantes. O papel que a mídia teve nesse processo também

precisa ser resgatado, ao exemplo das Organizações Globo, o Grupo Folha, os

Grupos Abril e RBS. As relações de banqueiros, empreiteiros e setores educacionais

também foram consideráveis.

Ainda são inúmeras famílias que procuram os corpos de seus filhos e parentes

desaparecidos, lhes sendo impedidas informações e documentos que se encontram

guardados a sete chaves pelo Estado. Os torturadores e mandantes, por sua vez,

encontram-se impunes, resguardados pela Anistia Restrita que ocorreu no país em

1979, embora somente esse fato tenha surgido no período por causa do amplo

movimento nacional pela Anista Ampla, Geral e Irrestrita. Enquanto muitos dos

opositores da ditadura militar sofreram penalizações com prisões, torturas,

assassinatos e desaparecimentos, os agentes da repressão nada sofreram.

Golpe civil-militar de 1964

A ação golpista civil-militar construiu uma auto-representação de si como

“Revolução” e inventou interpretações que tentaram lhe justificar e velar a ação

golpista. Entre as justificativas, talvez a principal encontrava-se na afirmação de

Lamericas.org 3

que o comunismo iria ser implantado no país; sendo que os acontecimentos

políticos indicariam o caminho da “comunização” e da “república sindicalista”.

Essas interpretações conservadoras, no entanto, partiam de um indício real:

havia uma tendência revolucionária no país. O eixo central dessa tendência não

se apresentava em torno da “revolução socialista” ou “comunista”, mas sobretudo

em torno do aprofundamento do processo de democratização associado às

questões sociais fundamentais para a maioria da população. Ou seja, o “pré-64”

abriu-se como um rico período político em decorrência da radicalização política e

social de setores das massas assalariadas, camponesas e de setores populares que

colocava na agenda política a resolução de questões sociais seculares. A onda

crescente de greves, ocupações de terras pelas Ligas Camponesas, revoltas dos

marinheiros, e inúmeros movimentos por reformas de base, ao exemplo da

reforma agrária, educacional, financeira, moradia e outras não indicavam uma

tendência à comunização da sociedade brasileira.

Esses acontecimentos estariam vinculados ao Comício na estação de trem

Central do Brasil, em 13 de março, quando Goulart realiza seu discurso mais

radicalizado junto às massas populares e às forças políticas nacionalistas e

comunistas, anunciando medidas de reforma de base.

A ditadura militar gestou-se no contexto da Guerra Fria (EUA e URSS) e dos

impactos ideológicos e políticos decorrentes da Revolução Cubana (1959) na

América Latina. Para o imperialismo estadunidense era inadmissível a ampliação

de áreas geopolíticas fora de seu controle. Por isso, o apoio estadunidense às

articulações golpistas ocorridas no país e na região. Um ciclo de contra revoluções

ocorreu em países sul-americanos, no Brasil (1964-1985), Argentina (1966-1970;

1976-1983), e mais tarde no Uruguai (1973-1985) e Chile (1973-1989). Em 1954,

no Paraguai, um golpe militar já tinha ocorrido.

A relação orgânica do imperialismo estadunidense com as Forças Armadas, a

burguesia nacional e internacional foi decisivo para a ação golpista2. Isso é o que

nos mostra com detalhes o documentário O primeiro dia de 21 anos (dir. por

Camilo Tavares e Flávio Tavares). Mas é certo também que o movimento golpista

2 René Dreifuss, 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe, Petrópolis, Vozes,

1981.

Lamericas.org 4

teve amplo respaldo de setores da classe média, da Igreja, políticos e partidos da

Ordem, latifundiários, burocratas e tecnocratas públicos e privados.

A ditadura constituiu-se e desenvolveu-se como contra-revolução nos

seguintes aspectos: a) golpe de Estado reativo (contra) a ascensão da classes

operária e camponesa e setores populares urbanos; b) contra-revolução burguesa

contra a própria democracia burguesa em curso; c) eliminou do aparelho de estado

(bloco de poder) a disputa entre os interesses políticos e econômicos que marcou

a democracia burguesa entre 1945 e 1964; d) conseguiu retirar o país da crise

econômica que vivia por meio de um elevado grau de exploração dos assalariados

e camponeses.

A consolidação capitalista no país ocorreu com a reestruturação do Estado

brasileiro após o golpe militar de 31 de março de 1964. O regime político ditatorial

então instalado resolveu em primeiro lugar a contenda entre os projetos

estratégicos de nação3 que se apresentavam às classes sociais naquele período. Isso

significou pela via da força concentrar poderes, e iniciar processo de prisões e

cassação de políticos, dirigentes comunistas, sindicalistas, além de fechar o

Congresso Nacional, cassar mandatos dos parlamentares, e expurgar das FFAA

militares e do funcionalismo público setores nacionalistas.

As violentas ações terroristas do Estado, desde o seu início, tiveram sentido

na eliminação progressiva das oposições e, inclusive, de ex-aliados. Tal violência

está longe da definição de “ditabranda”. A ditadura brasileira não teve nada de

“brando”.

3 Três projetos se apresentaram à sociedade brasileira no período anterior ao golpe militar: a) projeto

nacional-popular, baseado na consolidação de um modelo de desenvolvimento capitalista autônomo, não

subordinado ao imperialismo, com ampla reforma agrária e voltado para a produção para o mercado interno.

Essa proposta amalgamava um amplo leque de forças sociais nacionalistas e comunistas, em ampla base

social operária e popular; b) projeto de desenvolvimento nacional associado ao capital internacional. Teve

seu impulso principalmente a partir do desenvolvimento industrial associado, do período do Governo de

Juscelino Kubitshek (1956-1960). As forças políticas como UDN, PDS e escalões superiores das Forças

Armadas apoiavam essa proposta, com base em setores das camadas médias tradicionais e “novas” que se

desenvolviam com a modernidade capitalista no país; c) projeto de cunho socialista somente enunciado

por estratos das camadas sociais médias, não tinha expressão social, e esteve principalmente ligado às

elaborações de uma intelectualidade da POLOP – Política Operária. Entre esses intelectuais destacavam-

se: Theotônio dos Santos, Rui Mauro Marini, Michel Löwy, Paul Singer, entre outros.

Lamericas.org 5

As informações sistematizadas no relatório Direito à memória e à verdade4,

como também em outros relatórios5 impressionam. Estima-se que cerca de 50 mil

pessoas foram detidas em prisões arbitrárias nos primeiros meses da ditadura; ao

longo das duas décadas ditatoriais cerca de 10 mil brasileiros tiveram que

reorganizar suas vidas no exílio. Foram 426 mortos e desaparecidas políticos e 20

mil torturados. Os inquéritos policiais atingiram 10.034 cidadãos; 4.862 pessoas

tiveram cassados os seus mandatos e direitos políticos; 6.592 militares foram

punidos e exonerados; 49 juízes expurgados de suas funções, 3 ministros do STF

afastados.

No período pré-64 intensificava-se o desenvolvimento das classes sociais no

país, em decorrência do desenvolvimento do capitalismo no campo e do processo

de industrialização cada vez mais intensa. A urbanização acentua-se com a

migração rural-urbana. A proletarização na cidade e no campo se expressa na

divisão social do trabalho em todos os setores da produção e administração

pública e privada. Por dentro e por fora das relações populistas, nos sindicatos

urbanos e rurais, nas ligas camponesas, junto às igrejas, nos partidos, sob várias

formas, o proletariado e o campesinato realizaram um grande avanço político nas

décadas anteriores ao golpe de 1964, em particular nos anos 1961-1964, quando

se desenvolve e agrava a crise do populismo.

No período assinalado, Ianni considerava que havia destampado uma crise

política no país que ele definia como de situação pré-revolucionária, pois se

ampliaram intensamente o número de greves, movimentos sociais e lutas sociais

rurais e se acentuava a crise do regime político. No entanto, como afirma o autor,

não existia uma situação de dualidade de poderes, nos termos que pudéssemos

comparar com a Revolução Russa, entre fevereiro e outubro de 1917, quando

surgiu sovietes de operários e camponeses. As massas operárias e populares, do

campo e das cidades, imprimiram às suas movimentações reivindicações que eram

sentidas em seus cotidianos, e que foram expressas nas propostas de reformas de

base no país. Por essa razão, o golpe civil-militar de 1964 teve um caráter contra-

4 Brasil. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, Comissão Especial sobre

Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), Brasília, 2007. 5 Vide: Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, Dossiê dos mortos e desaparecidos

políticos, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1996; Brasil nunca mais, Arquidiocese de São Paulo,

Ed. Vozes, 1985.

Lamericas.org 6

revolucionário, ou seja, preventivo ao desenvolvimento das reivindicações, lutas

e organização operário-populares.

As lutas sociais em curso cruzavam-se com dois processos que tornavam o

quadro político mais explosivo. Por um lado, as taxas de investimentos e a taxa

de renda per capita estavam em queda rapidamente, o que unificou os vários

setores da burguesia (nacional e estrangeira; grande, média e pequena) contra

qualquer concessão estatal às massas populares. Por outro lado, desenvolvia-se

uma profunda crise política do regime de então. Como observa Ianni,

o Estado burguês entrou em crise, junto com a crise econômica, devido

às controvérsias entre setores burgueses, às pressões do imperialismo

contra o populismo, o nacionalismo econômico, a politização dos

trabalhadores, e, principalmente, devido ao ascenso político de

operários e camponeses.6

Esse cenário acirrado na luta de classes pode explicar a violência estatal que

tomou os meses seguintes ao golpe e as posições adotadas no transcorrer da

ditadura militar. Como também ajuda a explicar o caráter relativamente

monolítico e de solidariedade de classe que gerou a ação golpista. As reações

ocorridas com as marchas das classes médias em São Paulo e Rio de Janeiro foram

significativas como respostas ao ascenso popular.

Os setores sociais que se beneficiaram com o “milagre econômico”(1968-

1973) e com o enriquecimento desenfreado certamente consideram importante a

“modernização conservadora”7 ocorrida no período. A dimensão econômica do

regime ditatorial revela que o processo de acumulação de capital teve um

beneficiário principal: o grande capital (nacional e internacional). Isso ocorreu

sobre a superexploração do trabalho e a doutrina de “segurança e

desenvolvimento”. A política salarial da ditadura foi instrumento central de

acumulação, ao qual outros mecanismos articularam-se, como a política anti-

inflacionária, a abertura da economia ao capital imperialista, a articulação do setor

produtivo estatal com os setores privados nacional e estrangeiro, os incentivos ao

crescimento do capitalismo predatório no campo. Esses mecanismos

6 Octavio Ianni, A ditadura do grande capital, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p.195. 7 Esse termo é impreciso e foi muito usado nas análises do período. Basicamente significa desenvolvimento

econômico acelerado com estado de excessão (regime político ditatorial).

Lamericas.org 7

consolidaram-se por meio da eliminação de direitos políticos e trabalhistas,

imposição de legislação antigreve, intervenção estatal em cerca de 1.202 sindicatos

de trabalhadores e eliminação de 254 entidades sindicais.

Redefiniu-se a direção do desenvolvimento capitalista no país. Essa

redefinição correspondeu, no plano político, uma nova organização interna do

sistema de interesses capitalistas que exerce, desde 1964, a hegemonia no centro

do bloco do poder. O golpe militar de 1964 abriu caminho para o estabelecimento

da hegemonia, no bloco do poder, de uma rede de interesses monopolistas com

duas características fundamentais:

a) era dirigida pelo capital bancário - segmento monopolista com maiores

vantagens na política pró-monopolista implementada pelos sucessivos governos

militares; b) articulava três segmentos monopolistas: a empresa estatal, o capital

monopolista privado nacional e o capital monopolista privado estrangeiro (o

chamado ‘tripé’, cujos interesses fundamentais teriam inspirado a política

econômica da ditadura militar).8

Em decorrência desse desenvolvimento, a estrutura de classes no país

modificou-se profundamente: aumentou em número e nacionalmente,

diversificou-se a composição do proletariado, pois se proletarizaram antigos

setores liberais e da pequena burguesia (rural e urbana), como também cresceu e

diversificou-se a composição dos trabalhadores da área estatal, em âmbito federal,

estadual e municipal. Esse crescimento ocorreu articulado e subordinando os ramos

produtivos e de serviços em sintonia com a dinâmica da produção dos centros

econômicos internacionais. Encadeou-se um mercado capitalista integrado

nacionalmente. Essas condições constituíram a dinâmica complexa de contradições

estruturais e conjunturais que impulsionaram permanentes tensões, conflitos de

interesses sobre a distribuição da riqueza no país, pólos populacionais.

Esse tipo de desenvolvimento associado possibilitou a elevação da taxa de

lucro, que estava em declínio na fase depressiva do ciclo econômico entre 1963-

1967, através do arrocho salarial como forma permanente de controle da taxa de

exploração da força de trabalho. Ao lado dessa política, um decreto lei extingue a

estabilidade no emprego após dez anos de serviço e, em seu lugar, instaura o

8 Décio Saes, Democracia e capitalismo no Brasil. Balanço e perspectivas, 1996, p.42.

Lamericas.org 8

Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Esse fundo permitiu a

rotatividade da mão-de-obra e, por outro lado, o deslocamento de seus imensos

recursos para investimentos básicos nas operações do Banco Nacional de

Habitação (BNH). Tais investimentos apoiaram o surto da construção civil,

notabilizando-se nesse processo construtoras como Odebrecht, Camargo Corrêa,

entre outras.

Esse desenvolvimento capitalista ocorreu integrado e subordinado ao capital

imperialista. De um lado, com o estímulo ao ingresso de capitais estrangeiros, à

medida em que protegesse as remessas de lucros e estabilizasse o sistema de

taxação e insenções tributárias, além de garantir aos investidores contra riscos de

nacionalização. Do outro lado, tomando empréstimos internacionais que

circulavam com taxas de juros baixas.

A estrutura do parque industrial brasileiro concentrou-se rapidamente nos

ramos produtores de bens de produção e de consumo durável. De acordo com

Pereira9, a indústria metalúrgica, mecânica, de material elétrico e comunicações e

de material de transporte elevou sua participação na produção industrial brasileira

de 13,2% em 1939 para 32,3% em 1969. Enquanto isso, as indústria têxtil e de

produtos alimentícios tinham sua participação conjunta diminuída de 46,4% para

23,1%. Em 1980, a produção de bens de capital representava 23% do produto

indústria total contra 7% em 1969. Somada à produção de bens intermediários, o

setor de bens de capital encontrou-se no comando da indústria brasileira. Apoiado

maciçamente pelo BNDES, o setor de bens de capita tornara-se a posição

majoritária.

As relações capitalistas também se estenderam ao campo. Diversos grupos

industriais envolveram-se com empreendimentos na esfera agropecuária. Entre os

grupos industriais ligados a iniciativas agropecuárias, naquele período, podem ser

mencionados grupos industriais e financeiros que na época tinham grande peso

econômico: Votorantim, Klabin, Hering, Matarazzo, além de grupos bancários,

destacando-se o grupo Bozano-Simonsen10.

9 Duarte Pereira, A ditadura da fábrica, São Paulo: Hucitec, 1980. 10 Jacob Gorender, Burguesia Brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1980.

Lamericas.org 9

O capital bancário, por sua vez, teve papel central na mediação e no

deslocamento de capital para cada setor da produção. Neste sentido, sistema

bancário diversificou-se e dinamizou-se com a estruturação do mercado de capitais

e com a revitalização da Bolsa de Valores, através de lançamento de títulos

públicos na Bolsa como fonte não inflacionária de recursos. Ocorreu também a

canalização da poupança privada para o financiamento da compra de bens de

consumo durável, sobretudo automóveis. Isso possibilitou grande dinamização do

mercado interno, sendo o principal dinamizador a heterogênea classe média. De

acordo com Leocádia Prestes:

O Estado brasileiro detém 61,7% dos investimentos no setor bancário, segundo

os dados da ADECIF em 1969. O Governo Federal exerce o controle acionário

do Banco do Brasil, que é o maior banco comercial do país. Em 1972, seus

depósitos eram 9 vezes superiores aos do maior banco comercial privado. O

controle direto do Governo se estende também ao Banco do Nordeste, ao

BNDE, ao BNH e à Caixa Econômica. A rede bancária do Governo inclui ainda

32 bancos comerciais e de desenvolvimento dos Estados. Levando em conta

apenas os bancos comerciais, os bancos governamentais, em 1972 detinham 53%

dos depósitos e 58% dos empréstimos. Mais de 60% dos empréstimos do sistema

financeiro como um todo ao setor privado vieram das instituições financeiras do

Governo11.

A partir do quadro apresentado, afirma-se que, entre o período ditatorial e

a Nova República, foi construída e consolidada a hegemonia do capital

monopolista no Estado brasileiro. Além de resguardar os interesses gerais do

Capital, essa fração orientou-se para preservar os interesses monopolistas,

especialmente a hegemonia do capital financeiro internacional – e não mais o

capital puramente bancário, até então de origem em grande parte nacional.

A crise do regime político ditatorial

O regime militar entrou em “crise prolongada”, a partir de 1973-1974; tal

crise se estenderia ao longo da década de 1980, inclusive durante o Governo de

José Sarney (1985-1989). Esse cenário originou-se da crise econômica na qual o

país entrava naquele momento. Nessas condições tendeu ao longo do período a

11Anita Leocádia Prestes, “A formação do capitalismo monopolista de Estado no Brasil e suas

particularidades”, in Temas de Ciências Humanas, nº8, 1981, p.54-5.

Lamericas.org 10

perder base de apoio político e social. As análises realizadas sobre o período de

crise da ditadura militar salientam o crescente descontentamento de setores do

capital com o então regime político.

A crise econômica brasileira expressava a maneira como a política econômica

tinha se constituído no país, baseada na alavancagem de infra-estrutura

(comunicacional, telecomunicação e energia) e de empréstimos ao Capital (via

BNDE), a partir de empréstimos financeiros internacionais que no final da década

de 1960 eram oferecidos a taxas de juros baixas pelos banqueiros internacionais.

A crise capitalista internacional teve impactos drásticos para os países latino-

americanos, em decorrência dos empréstimos tomados pelos regimes militares aos

bancos estrangeiros.

Essa crise exigiu do regime um movimento político que se prolongou até o

final da década de 1980, envolvendo restritas concessões políticas à oposição

liberal, dentro de um projeto que ficou conhecido no período do Governo do

general Ernesto Geisel (1974-1978) como distensão lenta, gradual e restrita, além

de controlar o processo político de constituição da Nova República, Governo

Sarney até a promulgação da Constituição Federal (1988). No cerne desse projeto

encontrou-se a proposta de retorno paulatino às liberdades institucionais, tais

como retorno do habeas corpus, fim da censura prévia à imprensa, eleição para

governadores estaduais e em capitais e, no final da linha, eleição presidencial.

Como verificamos, esse projeto de transição do regime ditatorial para a

democracia liberal desenvolveu-se entre 1974 e 1988.

Diversos autores consideram que se abriu naquele momento uma crise de

hegemonia, pois vários setores do empresariado e da classe média gradualmente

se distanciaram do bloco de poder, ou passaram a manifestar suas discordâncias.

Diz Sallum Jr que, no meio empresarial, o alvo mais constante da crítica

referia-se a ampliação da participação do Estado e, especialmente, das empresas

estatais no processo de desenvolvimento12. Na primeira metade do governo

Geisel, entre 1975 e 1976, chegou até a haver uma campanha contra a

“estatização”. Esta campanha pela “desestatização” tinha como modelo, ao menos

12 Brasílio Sallum Jr., Labirintos: dos generais à Nova República, São Paulo: Hucitec, 1996.

Lamericas.org 11

implícito, uma política mais privatista que preservasse os poderes já estabelecidos

no mercado, fossem poderes setoriais fossem regionais.

A partir da segunda metade dos anos 1970, por exemplo, campanha contra

a estatização promovida durante o governo militar. Inicialmente ocorreu, em

1974, a eleição pela revista Visão, de Eugênio Gudim – o pai do neoliberalismo

tupiniquim – como Homem do Ano, enquanto em 1975 o jornal O Estado de São

Paulo publicava uma série de reportagens sobre os caminhos da estatização.

Depois disso, foi desencadeada uma campanha velada contra a estatização movida

por empresários. Em realidade, não se tratava da defesa de uma economia com

menos intervenção, mas a pressão política por participação nas decisões

econômicas governamentais, especialmente no caso do Conselho de

Desenvolvimento Econômico (CEDE), que era somente formado pelo Presidente

da República e ministros13.

De fato evidenciava-se para setores do empresariado (nacional e

internacional), como para seus intelectuais orgânicos, o crescimento das empresas

estatais na economia brasileira. Os dados de Diniz e Lima Jr possibilitam nos

aproximarmos desse fenômeno naquele período. Em números gerais, por

exemplo, passaram de 35 empresas em 1939 para 440 em 1983. Esse crescimento

foi acentuado entre a década de 1960 e 1970. Em 1950 eram 66 empresas públicas;

em 1960, 128 públicas; em 1970, 267 empresas públicas; e em 1980 chegavam a

431 empresas estatais, “incluindo empresas públicas propriamente ditas, sociedades

de economia mista, subsidiárias e empresas controladas direta e indiretamente,

autarquias e fundações instituídas ou mantidas pelo poder público”14

Da metade para o final do governo Geisel, por sua vez, emergira com alguma

força um movimento empresarial orientado por uma opção de “ajuste

macroestrutural” oposto politicamente à alternativa “desestatizadora”. A

tendência nascera, no meio empresarial, em torno da exigência de uma política

industrial e culminou, no final do governo Geisel, na defesa da indústria contra a

“ciranda financeira” e na aproximação de setores empresariais ao antigo MDB.

13 Márcio Pochmann, O trabalho sob fogo cruzado. Exclusão, desemprego e precarização no final do

século, São Paulo: Contexto, 2000, p.38. 14 Diniz Eli e Oliveira Lima Jr., Modernização autoritária: o empresariado e a intervenção do Estado na

economia, Brasília: Ipea/Cepal, 1986, p.28.

Lamericas.org 12

Tratava-se, no entanto, de tendência minoritária que, de forma geral, pode ser

situada no âmbito da estratégia de desenvolvimento e de institucionalização que

propunha o regime militar.

Na oposição de esquerda (comunista), por sua vez, a questão estratégica

central seria isolar o regime militar de sua base social e política. Vianna (1976)

considerava que a unidade do “sistema de poder”, consolidado no período de

Garrastazu Médici (1969-1973), não se reproduziu unicamente pela repressão às

“classes subalternas”, mas também através de um projeto de expansão nacional

que visava a inclusão do país no sistema capitalista internacional. Essa tendência

manteria a política de “grandeza nacional” aliada ao imperialismo. Com a falência

da política econômica do regime militar, acentuada a partir de 1973, ainda para

Vianna, dissolver-se-ia o consenso reinante, ocorrendo uma separação no próprio

“sistema de poder”. A partir de então, através das frações da classe dominante em

oposição, abre-se a denúncia contra a “estatização”. Às disputas e aos conflitos

no bloco de poder colocar-se-ia uma “fração burguesa” oposta, que serviria ao

imperialismo e seus agentes econômicos e sociais internos para recuperar o

controle da política do Estado15.

A movimentação oposicionista de setores empresariais contra a estatização,

no momento em que se abria a crise econômica, seguia uma dinâmica e

preocupação mais geral do próprio imperialismo estadunidense (e suas empresas),

no sentido da autonomia política e econômica crescente que o regime militar

desenvolvera.

O fim do milagre econômico brasileiro e a vitória eleitoral do MDB em 1974

trouxeram para o restrito cenário político o início da crise do regime ditatorial. A

crise econômica levava ao progressivo isolamento do regime militar, pois as

“frações burguesas” desfavorecidas com a política econômica “pró-monopolista e

pró-imperialista” estariam passando para a oposição.

Esses seguimentos empresariais apresentaram a questão do “democrático”,

na ótica do liberalismo clássico (séc. XVIII), procurando disputar a hegemonia das

forças que a ele se opõem em nome do modelo liberal. Nesse sentido, encontrar-

se-ia a agitação realizada através da grande imprensa contra a “estatização,

15 Luis Wanderley Vianna, A classe operária e a abertura, São Paulo: Cerifa, 1983, p.59.

Lamericas.org 13

tecnocracia, disfuncionalidade do poder burocrático, o caráter despótico do

Estado Leviatã”16. O ideário liberal resumiria o programa apresentado pela

burguesia dissidente do regime, com a finalidade de isolá-lo e atrair apoio de

outros segmentos sociais descontentes.

Ainda para Vianna, a solução da crise deveria ser democrática, não seria por

outorga como propunha o regime, nem orientada por “concepções golpistas” que

identificavam a luta pelas liberdades democráticas como bandeira tática, etapa de

acumulação de forças para o enfrentamento político-militar do Estado burguês. A

solução política oposicionista ocorreria por meio de uma “frente democrática e

do movimento de massa”.

As análises sobre a natureza da crise do regime militar, isto é, suas origens,

causas e desdobramentos políticos, eram expressadas também por posições de

algumas correntes e intelectuais marxistas. Essas correntes, mesmo considerando as

mudanças de fundo na economia brasileira e a hegemonia monopolista no Estado,

procuravam evidenciar a existência de frações burguesas desprivilegiadas das

decisões político-econômicas e, portanto, com potencial oposicionista ao regime

militar. Especialmente reconheciam um campo oposicionista à ditadura militar, os

setores da burguesia para uma frente oposicionista democrático, ou simplesmente

para o campo democrático.

Essa passagem política, no entanto, somente acontecia porque, por um lado,

a guerrilha urbana e rural fora derrotada, o que possibilitou ampliar a margem de

manobra da oposição liberal e, por outro lado, a desaceleração econômica

aumentara a dificuldade de setores burgueses submetidos ao capital monopolista

por meio de política de preços, creditícia, tributária, cambial e outras. Desta

maneira, “setores expressivos do médio capital industrial e da média propriedade

agrícola passam, desde então, a manifestar, de modo mais ou menos aberto, sua

oposição ao caráter ‘antinacional’ e pró-monopolista da política de

desenvolvimento executada pela ditadura militar”17.

O projeto político de abertura gradual e controlada, no entanto, pretendia

dividir os setores oposicionistas, atraindo politicamente a oposição “burguesa-

16 Idem, ibidem, p.66-5. 17 Décio Saes, Classe média e sistema político no Brasil, São Paulo: T.A. Queiroz, 1985, p. 219.

Lamericas.org 14

latifundiária”, como Tancredo Neves, e neutralizar o que ele compreendia como

uma oposição burguesa nacional-reformista, naquele momento em torno do

PTB18. Dessa maneira procurava desagregar e isolar a oposição liberal. Diz: “Se o

regime conseguir levar essa tática até o fim, os militares poderão voltar aos

quartéis, devolver o governo a líderes civis conservadores e estabelecer um tipo

de democracia burguesa-latifundiária forte, sob tutela militar e com a manutenção

de várias restrições constitucionais às liberdades e de vários instrumentos de força

criados nos últimos anos”19

Pereira considerava que as forças populares e operárias que estravam na cena

política com suas reivindicações eram ainda frágeis organizativamente; nesse

sentido, o projeto de transição do regime militar teria possibilidade de se

concretizar. De certa maneira, o que ocorreu no transcurso da década de 1980 foi

de encontro ao que o autor afirmara em 1979, mas com algumas correções. A base

que resultou da transição foi a manutenção do bloco de poder baseado no capital

financeiro e em setores monopolistas. Não era possível, naquele momento,

caracterizar as possibilidades do surgimento de um Partido dos Trabalhadores (PT),

por dentro da reformulação partidária que estava acontecendo, por onde fossem

canalizadas muitas das forças sociais que vinham emergindo naquele período, por

meio das greves e movimentos sociais em várias partes do país. De fato, a frente

oposicionista liberal não foi dividida naquele processo; ao contrário, tal frente foi

engrossada até o último momento pelas dissidências do regime militar. Neste

sentido, o regime militar que de fato se isolou politicamente nesse processo.

O eixo analítico que se apresentava em intelectuais como Vianna, Pereira,

Saes mantinha a ênfase no fortalecimento do campo democrático-popular que

articularia um leque de forças sociais entre setores oposicionistas burgueses, classes

médias e operário-popular. No entanto, uma nova correlação de forças emergiu

no país em meio aos confrontos entre burguesia e proletariado, através do ciclo

de greves aberto em 1978, no ABC Paulista, que se alastrou por diversas categorias

profissionais no país, no transcorrer da década de 1980. São inúmeros movimentos

reivindicatórios populares, as lutas contra o desemprego, os movimentos de

18 Duarte Pereira, “A abertura é real”, in jornal Movimento, 3 a 9 de setembro de 1979. 19 Idem, ibidem, p.8.

Lamericas.org 15

trabalhadores rurais e trabalhadores sem terra, por onde a mediação política e o

confronto ocorreu com a burguesia e com o Estado.

Essa nova correlação de forças implicou diretamente em importante processo

de reorganização político e sindical que se desenvolvia com relativa intensidade,

especialmente em muitas capitais dos estados da federação. As novas formas de

organização e relações políticas que se colocaram na sociedade, a exemplo das

inúmeras organizações de base popular espalhadas pelo território nacional,

também envolviam indefinições, reorganização e reestruturação de projetos

políticos e culturais na sociedade, principalmente entre meados da década de 1980

e 2005. Exemplo muito saliente desse novo quadro refere-se à esquerda política e

intelectual.

O cenário político aberto pelas lutas sociais retirou, ou não mais deixou

limitada, a discussão sobre a transição política no âmbito da oposição liberal e

regime militar.

A “crise do poder burguês” repôs o circuito histórico do pré-196420

, porque

as classes dominantes saíam desmoralizadas na entrada da década de 1980 e as

classes trabalhadoras empunhavam novas bandeiras pois exigiam de imediato que

a sociedade capitalista não fosse apenas a pátria do grande capital, mas que

contemplasse o trabalho com todas as garantias sociais, jurídicas e políticas que lhe

foram sonegadas, negadas ou proibidas. Essas forças sociais que estavam naquele

momento desgastando a “contra-revolução” e conduziam o governo ditatorial a

reduzir suas margens de manobras eram forças sociais espontâneas que emergiram

das alterações do regime de classes e da luta de classes.

Nesse sentido, diz Florestan:

O regime e seus condutores não enxergam a profundidade do precipício e se

iludem quando pensam que ‘tudo está sob controle’... A oposição, por sua vez,

tanto a conservadora e liberal quanto a de esquerda, ignora ou subestima as

vantagens desse terreno movediço para os que detêm o controle arbitrário das

decisões políticas vitais e da força bruta, ou seja, as vantagens de uma estática

política que acaba tomando o lugar do movimento histórico e perpetuando o

monstro que já poderia estar enterrado. Não se aventura ao combate decisivo

(aberto, direto e permanente), deixando as iniciativas à ditadura e permitindo

que esta substitua com atrevimento o ativismo democrático por sua própria

20 Florestan Fernandes, A questão da ditadura, 1981, p.8.

Lamericas.org 16

forma de gradualismo. A oposição cede até no campo ideológico. Não

desmascara a ditadura, não desmistifica o seu ‘gradualismo democrático’.21

A partir do questionamento de Fernandes sobre os limites e vacilações da

oposição liberal e de esquerda, podemos problematizar que a discussão sobre a

transição política no país manteve-se encerrada nos limites somente do retorno

aos espaços institucionais democrático-liberais22

. Isso quer dizer que não tomaram

para si incorporando a defesa das bandeiras e reivindicações das lutas sociais de

assalariados e camadas sociais populares. Discussões de fundo sobre o

endividamento externo, política salarial, reforma agrária, entre outros, não foram

incorporados na discussão e programa. A pergunta de Fernandes é parte da nossa

indagação principal sobre o processo de transição política no país, basicamente em

torno da questão de como uma ditadura “tão exclusivista e intolerante” conseguira

apossar-se da palavra de ordem de transformação democrática da sociedade. E,

desta maneira, tenha conseguido, em meio à profunda crise, manter-se na direção

de tal processo, enquanto as oposições liberais e de esquerda (em sua maioria)

vergaram-se timidamente nesse processo.

Essa longa transição política, se considerarmos as propostas de distensão no

período Geisel (1974-1978), pode ser resumida da seguinte maneira:

a) nasceu e se desenvolveu em meio a uma crise econômica de vastas

proporções (recessão, inflação permanente, tendência à desindustrialização); b)

não conheceu a emergência de um movimento de massas impetuoso,

organizado e autônomo em relação ao Estado; c) não adquiriu uma dinâmica

radical ou acelerada, ajustando-se ao ritmo de auto-reforma do próprio regime.

A construção da democracia será vivenciada por uma sociedade dilapidada pela

crise, composta por tempos históricos diversos, mal articulada politicamente e

despreparada para imprimir uma rápida ruptura com o autoritarismo. Assim

limitada, a transição legou uma pesada tarefa para o futuro, já que a edificação

de uma nova institucionalidade passou a ser buscada num quadro político-social

21 Idem, ibidem, p.9. 22 Para ilustrar essa perspectiva reducionista de democracia, podemos citar a Carta Eleitoral de Franco

Montoro (PMDB), para as eleições a governador do Estado de São Paulo, em 1982: “A democracia que

ajudaremos o Brasil a construir pressupõe: 1º) Eleições livres e realmente representativas em todos os

níveis, o que é só possível com liberdade para os partidos; 2º) Funcionamento dos poderes legislativo e

judiciário; 3º) Liberdade de expressão, sem censura prévia, às manifestações artísticas e culturais, à

imprensa e aos demais meios de comunicação; 4º) Uma repartição mais justa da renda proporcionando o

acesso equitativo da sociedade aos bens materiais, à educação, saúde, cultura e lazer; 5º) Descentralização

do Poder, reconhecendo-se a autonomia e competência específica dos órgãos de representação da sociedade

civil e dos diferentes movimentos sociais; 6º) Participação de todos os setores da comunidade nas decisões

de interesse comum; 7º) Plena garantia dos direitos e prerrogativas do cidadão nos tempos consagrados pela

Declaração Universal dos Direitos do Homem” (Proposta de Governo).

Lamericas.org 17

bem mais tenso e complexo, determinado por uma complicada combinação de

crises e problemas: não só prosseguiriam os problemas econômicos

(estagflação) e sociais (miséria e exclusão), como também iria se repor, de modo

dramático, a crise de governabilidade que já se manifestara no regime militar

(governo Figueiredo), mas que agora seria potencializada por uma categórica

“deslegitimação” presidencial.23

Nogueira apresenta como condicionamento político na relação de forças

de então a ausência de radicalidade (e negação) do processo de transição política

como se desenvolveu naquele período.

Consolidada a partir do apoio maciço da burguesia à candidatura Tancredo

Neves, a transição política teve sua estratégia apontada para dois objetivos

principais: a) administrar a crise econômica no país; b) e principalmente atrair para

um “pacto político e social” as massas populares, tentando conter a radicalização

contra a miséria, utilizando algumas medidas institucionais no plano social. Tais

objetivos nortearam a maioria da burguesia naquele período. Ao contrário de uma

certa euforia “democrática” que se estabeleceu em diversos setores da sociedade,

a base hegemônica na economia continuou sendo a que fora consolidada no

período militar. Além do que a transição política no país foi inteiramente calibrada

pelo escalão superior das FFAA, mesmo depois do final do regime militar. Houve

uma estratégica retirada das tropas do campo de batalha, mantendo posições vitais

no aparelho de Estado, calibrando a tomada de terreno dos adversários,

mantendo figuras proeminentes de seu staff em postos de comando.

A análise de Nogueira não está longe das conclusões a que chega Fernandes,

quinze anos: “nascido de um vasto acordo de cúpula apenas em parte

condicionado pela pressão popular e obrigado a diversos compromissos e

acomodações com setores do antigo regime”24

.

A crítica ao aliancismo de classe

A transição política até a vitória presidencial, via Colégio Eleitoral, de

Tancredo Neves, amalgamou diversos setores empresariais, as forças armadas, os

23 Marco Aurélio Nogueira, As possibilidades da política. Idéias para a reforma democrática do Estado,

São Paulo: Paz e Terra, 1998, p.157-8. 24 Idem, ibidem, p.109.

Lamericas.org 18

políticos liberais e uma ampla base dos estratos médios da população e também

das camadas sociais populares. A Aliança Democrática, como lembrou Florestan

Fernandes, empenhava-se em conciliar os anseios democráticos do povo brasileiro

com a “vocação liberal-conservadora”. Ou seja, deslocava para o “topo” os

processos cruciais de decisão política e, ao mesmo tempo, fazer da então futura

assembleia constituinte uma fachada. Desta maneira, esse “biombo parlamentar”

possibilitaria às elites das classes dominantes e dirigentes “preservar em bloco o

seu poder real, manter ou ampliar o monopólio do poder político

institucionalizado e exercer, por dentro e através de um Estado aparentemente

democrático, uma ditadura mesquinha e covarde”.

Essa hegemonia burguesa procura se construir tendo como base os anseios

populares, principalmente a partir do final da década de 1970, passando pela

vitória oposicionista nas eleições de 1982 e, posteriormente, neutralizando as

energias e forças sociais destampadas com a campanha pelas Diretas-Já,

canalizando-as institucionalmente para o Colégio Eleitoral. Dentro da perspectiva

de institucionalização política, em moldes liberal-conservador, portanto, ocorreu

a passagem de uma forma de dominação política para outra, que levou em

consideração a necessidade da “democratização” de mecanismos liberais para as

disputas eleitorais e, por outro lado, a necessidade de criar mecanismos que

envolvessem o conjunto da sociedade nessa perspectiva, evitando assim espaço

para o desenvolvimento de uma perspectiva classista (ou democrático-popular,

para muitos) na transição política de então.

A questão apresentada é importante porque questiona como condicionante

político a ausência de radicalidade (e negação) do processo de transição política

como se desenvolveu naquele período. Talvez o melhor exemplo dessa situação

relacione-se ao Colégio Eleitoral, no qual disputaram indiretamente a eleição

presidencial Tancredo Neves versus Paulo Maluf, em 1984. Nessa situação parte

significativa da esquerda negou-se a ir além dos limites impostos pelos setores

liberal-conservadores e burgueses, embora existisse um movimento social no qual

ela pudesse se apoiar. Tal opção política expressou não somente o limite das forças

sociais proletárias que emergiram naquele período, mas também o rebaixamento

das forças políticas de esquerda ao “realismo político”. A maioria das oposições

Lamericas.org 19

partidárias e civis refletiu sobre a impossibilidade de ir adiante, em torno da

bandeira de “Só Diretas”, depois da votação da emenda Dante de Oliveira, em 25

de abril de 1984. Nesse sentido dariam razão às proposições daqueles que

defendiam um “governo de transição”, na figura de Tancredo Neves. Fernando

Henrique Cardoso, por exemplo, comparou tal transição política a uma “guerra

de cerco”, na qual a “sociedade civil cercara a fortaleza do Poder”, no entanto

nenhum dos dois lados tinha força para o golpe final25.

Neste sentido, compreende-se o êxito em torno da construção da Aliança

Democrática (1984) sobre um quadro de forças de esquerda, que se dividiu em

dois grandes blocos: os setores de esquerda, especialmente PCB, PCdoB, MR-8 e

uma expressiva parcela da intelectualidade brasileira, que apoiaram a ida ao

Colégio Eleitoral e a constituição da Nova República; e, por outro lado, as diversas

organizações de esquerda situadas dentro do Partido dos Trabalhadores que se

negaram naquele momento a legitimar aquele processo político.

Nesse contexto, Fernandes ainda analisava os desdobramentos políticos

dessa transição política desenvolvida, especialmente o papel da força oposicionista

principal naquele processo:

... O PMDB pode colocar-se em máscara diante do espelho e decidir se quer

continuar a ser um partido da ordem, quando deveria ser um partido de ‘frente

popular’. E, por sua vez, a composição das cúpulas nasceu condenada pela

Nação, que abomina a ‘transição conservadora’ – com tudo que levou a ela e

tudo que ela gerou. (...).

A ordem ilegal que sobreviveu à ditadura, seu sistema de partidos e a

despolitização da pugna eleitoral produziram uma situação artificial,

inteiramente desfavorável à manifestação, à organização e à participação dos

oprimidos e dos setores radicais mais firmes e decididos. (...).

O que se destroçou? A ilusão de que um país como o Brasil possa expungir-se

de iniqüidades seculares por meios pacíficos [...]. A democracia exige uma

revolução social. Uma revolução social rebenta de baixo (ao contrário da contra-

revolução) e vai da sociedade para o sistema do poder (e a forma política do

Estado). (...).

Os caminhos pacíficos estão bloqueados e que as `esquerdas` que ‘ganharam

mas não levaram’, precisam aprender a avançar revolucionariamente na direção

de sua organização institucional. (...). É preciso enraizar os desenraizados em seus

partidos, em suas organizações de luta, em seus meios ideológicos e políticos de

atuação defensiva e ofensiva.26

25 Fernando Henrique Cardoso, “Aventura da mudança”, Folha de São Paulo, 10 de março de 1985, p.5

(Folhetim). 26 Florestan Fernandes, “Quem ganhou?”, Folha de São Paulo, 25/11/1985, p.3.

Lamericas.org 20

A divisão desse campo político-ideológico manifestou diferenças em relação

às práticas e concepções sobre a natureza da transição política, níveis de aliança

política e práticas sindicais, como também a própria perspectiva de democracia.

Desta maneira foi impedida a construção naquele período de um pólo operário-

popular. Parte significativa da intelectualidade de esquerda e social-democrata,

como também de esquerda política, comunistas especialmente, foi levada para tais

deslocamentos em razão da pressão e orientação que o regime militar ainda

mantinha, mas por outro lado em razão das matrizes ideológicas e políticas em

relação à perspectiva de conciliação de classes, como também da maneira de

repensar a chamada questão da “sociedade civil” e da democracia no país.

Transição política conservadora e hegemonia burguesa

A construção da hegemonia burguesa, no período entre 1980 e 1995, não

esteve separada da vitória política e ideológica que as classes dominantes

obtiveram no processo de transição política no país, sobre as lutas sociais e as

diversas tendências de esquerda.

Os resultados eleitorais da campanha presidencial em 1989, primeira depois

de 1962, expressaram o significativo avanço organizativo dos assalariados e setores

populares por meio da constituição da Frente Brasil Popular (FBP). Esse momento

indicou a profunda e rápida erosão das ilusões que foram construídas em torno da

chamada Nova República, e também o profundo descontentamento com os

rumos finais do Governo Sarney. Para diversas forças políticas dentro do PT

indicou um deslocamento ideológico, porque passaram a considerar um limite

estratégico a composição da aliança em torno da Frente Brasil Popular. As derrotas

eleitorais nas eleições presidenciais em 1989, 1994 e 1998, por um lado, e o

crescimento eleitoral em executivos municipais e legislativo, por outro lado, foram

indicando que a composição de alianças deveriam se ampliar. Esse deslocamento

político e ideológico, em torno das alianças políticas e concepção de Estado e

administração pública, encontrou no período de constituição da hegemonia

Lamericas.org 21

liberal-conservadora, sobre a qual se estendeu a transição política no país e que,

nos anos 1990, desembocou na década do neoliberalismo27

.

Quando o governo da Aliança Democrática convocou a Assembléia Nacional

Constituinte, através do Congresso Nacional eleito em 1986, evidenciavam-se os

compromissos com o regime militar. O congresso eleito foi regido pelos

mecanismos e leis ditatoriais elaboradas naqueles últimos 21 anos (Fausto, 1996).

Tais mecanismos estabeleciam: manutenção dos 21 senadores biônicos indicados

indiretamente em 1982 pelo então general presidente João Baptista de Figueiredo

e com mandato até 1988; desproporcionalidade de deputados por estado; além

da restrição ao acesso dos partidos aos meios de comunicação e impossibilitar a

representação dos partidos de esquerda. A Lei de Segurança Nacional manteve-se

em pé, como também o Serviço Nacional de Informação (SNI) e outros aparatos

de repressão política. Ou seja, a convocação da Assembléia Nacional Constituinte

ocorreu em estreitíssimos limites políticos.

Essa transição consistiu na eliminação dos aspectos principais do regime

militar, quanto à sua forma jurídico-política e, em seu lugar, a instauração de

mecanismos que possibilitassem a democracia liberal, mas essencialmente

resguardando os interesses que se encrustaram no aparelho de Estado.

Tal afirmação é possível verificar no que transcorreu ao chamado Plano de

Estabilização Econômica, de 27 de fevereiro de 1986, conhecido como Plano

Cruzado.

A palavra chave da Nova República, em fevereiro daquele ano, foi

“congelamento” de preços. Retirada dos anseios populares, suas propostas

serviram como imã para a criação provisória de uma base social e política do

27 A doutrina neoliberal, conforme nos informa Anderson (1995), nasceu após a Segunda Guerra Mundial.

Reação teórica e política contra o Estado intervencionista e de bem-estar social. Friedrich Hayek,

intelectual exponencial dessa tendência, tendo como principal pressuposto o que ele chamou de

“liberalismo neutralizado”. No transcorrer do século XX, inúmeros intelectuais e políticos seguiram seus

pressupostos filosóficos e políticos, entre os quais pode-se citar o grupo constituído com os seguintes

nomes: Milton Friedman, Karl Popper, Michael Polanyi, entre outros. Para as posições neoliberais, a

distribuição de riquezas sociais, possibilitada pelo Estado, destruía a liberdade dos indivíduos e

desvitalizava a competitividade. De fato, essas propostas retomam o mito da liberdade de mercado

preconizada pelo liberalismo econômico do século XVIII e XIX. Ela se fundamenta na idéia de que as

crises econômicas e os processos recessivos decorrem do déficit público, originado principalmente das

políticas públicas sociais. O agigantamento do déficit público seria ocasionado por uma crescente pressão

reivindicativa dos movimentos sociais, especialmente do movimento sindical. Outra dimensão desse déficit

se encontraria na intervenção estatal na economia através de suas empresas.

Lamericas.org 22

Governo Sarney. Propagandeada amplamente algumas particularidades do

decreto-lei, como o caso da nova moeda (Cruzado), o tabelamento dos preços e

o salário-desemprego de quatro meses. As medidas econômicas adotadas traziam

em si duas questões centrais para a população: inflação e desemprego.

Em meio a esse cenário, a prisão de gerentes de supermercados, o

fechamento temporário de estabelecimentos comerciais, a criação dos “fiscais do

Sarney” e listas e mais listas com tabelas de conversão da moeda cruzeiro para

Cruzado. Antes de 27 de fevereiro de 1986, a Central Única dos Trabalhadoras

(CUT) ameaçava com a proposta de greve geral que se apoiava em seis

reivindicações básicas: trimestralidade; jornada semanal de trabalho de 40 horas;

reforma agrária sob controle dos trabalhadores; salário mínimo real e

congelamento de preço dos produtos de primeira necessidade.

O congelamento de preços, no Plano Cruzado, tendeu aparentemente a

favorecer o conjunto das classes populares e médias às classes proprietárias, os

devedores perante os credores e os setores econômicos de pequeno porte -

pequenas empresas e produtores autônomos, incluídos profissionais liberais – em

relação às empresas de grande porte, modernas e burocratizadas, constrangidas

mais facilmente a obedecer os preços oficiais.

O congresso constituinte, formado com base na legislação ditatorial, uma vez

que surge das eleições nacionais de 1986, manteve uma bancada majoritariamente

conservadora28

. Em novembro daquele ano, as eleições se realizaram para o

Congresso Nacional e para os governos estaduais. Mas os partidos de esquerda,

especialmente o Partido dos Trabalhadores, conseguem com uma pequena

bancada marcar nítidos direitos sociais na Constituição promulgada em 1988. Para

os setores da esquerda, a Constituinte estava na centralidade da luta por

ampliação de espaços políticos e direitos coletivos; neste sentido, para tais setores

28 Das 487 vagas na Câmara Federal, o PMDB conseguiu 261 e o PFL, 116. No senado, o PMDB conquistou

38 vagas das 49 vagas que se encontravam em disputa, ficando assim com 45 cadeiras das 75 cadeiras do

senado. Dentro de um arco político de esquerda, considerado aqui setores nacionalistas, social-democratas,

marxistas e cristãos, de acordo com levantamento realizado por Retrato do Brasil, na edição de 19 a 25 de

fevereiro de 1987, 97 constituintes foram eleitos: PSB (2), PCB (3), PCdoB (6), PDT (10), PT (16),

PMDB (60).

Lamericas.org 23

não haveria condições para a radicalização das lutas, uma vez que o espaço

constitucional estava colocado.

Enquanto setores políticos ligados ao PMDB29

, como Ulisses Guimarães,

defendiam a manutenção do Estado em áreas da economia, renegociação da

dívida externa, estabelecimento da lei de reserva de mercado, como o da

Informática, opostamente setores do PFL defendiam uma profunda desestatização

da economia, a manutenção do pagamento da dívida externa, liberação do

mercado interno para importação e fabricação de produtos por empresas

estrangeiras, em ramos de produção. Essa diferenciação passa por uma série de

mediações e propostas intermediárias, pois o PMDB não manteve uma

definição precisa de propostas e programas concretos. De qualquer maneira,

ambos se colocavam como projetos políticos para um novo salto de acumulação

de capital no país. Esses projetos foram sendo definidos, discutidos e disputados

no interior do aparelho de Estado, sendo diretamente influenciados pelos

monopólios, nacionais e estrangeiros, pelo FMI, pelo Alto Comando das Forças

Armadas, ou seja, por setores fundamentais da ditadura militar, e que se

renovaram através da Nova República.

As críticas à aliança de setores da esquerda à Nova República, considerando

que o fracasso das políticas de Dílson Funaro e Luiz Carlos Bresser é menos um

fracasso das avaliações que o PMDB fazia dos erros da política econômica da

ditadura do que o fracasso das avaliações que o PMDB assumiu para governar com

Sarney. E que, por inconsistência e debilidade, a heterogênea frente peemedebista

não pode assumir com decisão - e muito menos impor à Aliança Democrática -

um plano de reformas econômicas efetivas que deslindasse os problemas da

economia nacional a partir da crítica feita, com propriedade, à política da

29 A avaliação que o PMDB fez antes de assumir o controle da economia foi expressa no discurso Travessia,

que Ulisses Guimarães redigiu com a ajuda de Luís Gonzaga Belluzzo, João Manuel Cardoso de Mello e

Dílson Funaro, após consulta ao partido, já em plena campanha por eleições diretas, em 1983. O PMDB

defendia então no campo econômico: 1) reformas no modelo econômico do país, em especial as reformas

agrária e urbana; 2) a desmontagem da “ciranda financeira” em que o país estava enredado, e que era, então,

o principal fator de aceleração inflacionária. Nesse discurso de Ulysses Guimarães, apresentava dois

problemas centrais na economia: a) a dívida externa como problema central, por isso a proposta de

“moratória”; b) o endividamento externo porque o estado assumia a dívida externa dos particulares e tinha

de lançar mão de maciça emissões de títulos públicos, a fim de comprar os dólares de exportadores.

Lamericas.org 24

ditadura30

. Nesse sentido, as propostas do PMDB referiam-se às reformas da

estrutura econômica, à dívida externa e dívida interna, mas não estavam definidas

em um plano de prioridades.

Outro aspecto visível nesse processo político foi o papel que, na Nova

República, os militares tiveram. O “Palácio fardado”, na expressão de Dreifuss31,

não se fez somente pela presença do ministro do Exército, general Leônidas Pires

Gonçalves. No Planalto, eram sete cargos militares: ministério do Exército, da

Marinha e da Aeronáutica; o Estado Maior das Forças Armadas (Emfa), a Casa

Militar, o Serviço Nacional de Informação (SNI) e a Secretaria de Assessoramento

da Defesa Nacional (Saden). Este último criado como órgão de assessoramento da

Presidência, logo militarizado em sua composição e atuação. Além do mais, a

composição militar mantinha-se de outras maneiras:

Dos 1900 funcionários da presidência da República, 250 são militares

da ativa. Depende deles praticamente todo o funcionamento da

máquina administrativa. Na lista oficial de autoridade da presidência,

há 54 com patentes militares contra 129 civis. E se, porventura, o

presidente José Sarney resolvesse dispensar os militares lotados no

Palácio do Planalto, perderia seus trinta auxiliares pessoais, ficando sem

comida, locomoção, segurança e tratamento médico, sem carregador e

até sem o servente do cafezinho. Mais: Sarney ficaria sem pastor, pois

até as missas domingueiras são rezadas por um capelão militar.32

Nesse sentido compreendemos a idéia de transição política realizada com os

militares e não contra eles, sendo que o papel desses encontrava-se

antecipadamente definido entre os dirigentes da Aliança Democrática e o Alto

Comando das Forças Armadas. Ou seja, o fiel da balança no processo político

desencadeado com a transição política teve uma das pontas articuladas com as

Forças Armadas. Ilustrativa dessa condição foi a negociação de Tancredo Neves

com setores militares, para a neutralização de um suposto golpe militar, o que

30 Retrato do Brasil, 22 de janeiro a 02 de fevereiro de 1988, p.7. 31 René Dreifus, O jogo da direita, Petrópolis: Vozes, 1989. 32 Idem, ibidem, p.39.

Lamericas.org 25

levou ao afastamento do então general e chefe do Serviço Nacional de Informação

(SNI), Newton Cruz33

.

Em meio ao processo constituinte, os partidos burgueses e o governo não

disporiam de autonomia política plena para decidirem sobre temas relevantes, sem

o aval das altas esferas militares. As Forças Armadas mantiveram completa

liberdade de iniciativa nos assuntos referentes à “defesa interna”; os postos

estratégicos da administração nos vários ramos do aparelho de Estado

permaneceriam ocupados por militares.

Os militares não se apresentaram somente no aparelho de Estado. Sua

presença se fez em inúmeras ocasiões, através da repressão aos movimentos sociais

na Nova República, especialmente às greves de trabalhadores de diversas

categorias. O exemplo mais evidente, entre tantos outros, foi a invasão pelo

Exército na Siderúrgica de Volta Redonda na greve que os trabalhadores da

empresa realizavam.

Na transição política apresentou-se a questão do poder e a formulação de

diretrizes econômicas e política em um novo cenário político. Isso obrigou a

burguesia a redimensionar novas formas de participação na formulação das

diretrizes econômicas. A Nova República, o corporativismo, os “anéis

burocráticos” e os “cartórios”, que seriam “formas distintas de apropriação privada

do fundo público, deixaram de ser suficientes como garantias do controle exercido

pelo empresariado privado sobre o Estado”34

. A maneira como as associações,

federações e confederações empresariais atuavam até então, em termos

unicamente corporativos, tornaram-se insuficientes para o nível de luta política

que se abriu na transição política. As antigas formas de participar na formulação

de diretrizes, baseadas nos “contatos de primeiro grau” com ministros e burocratas

de alto escalão, tiveram que ser reequacionadas na nova conjunturas. Isto seria

observado por Antônio de Oliveira Santos, coordenador da União Brasileira de

Empresários, em pleno período da Constituinte: “Nós estamos sem experiência

do jogo democrático. Perdemos o jogo de cintura. No regime anterior, o

33 A edição especial da revista Veja, nº 854, de 16 de janeiro de 1985, com o título de capa “História Secreta

da Sucessão”, embora expressando um enfoque claramente tancredista como o grande articulador político

da transição, apresenta informações importantes sobre a relação de Tancredo Neves com os militares,

naquele momento. 34 Brasílio Sallum Jr., op.cit., p.191.

Lamericas.org 26

empresário conversava , no máximo com quatro pessoas: o Figueiredo, o Delfim,

o Galvêas e o ministro da área . Nosso grande interlocutor, agora, é o Congresso”

(Santos citado por Dreifuss, 1989). Os partidos tradicionais do conservadorismo

nacional e a sua fragmentação personalista e regional não permitiam a

construção política sistemática, atravancando as possibilidades do empresariado

de consolidar o processo político e econômico ao seu feitio. Isto ficaria

demonstrado na “batalha da Constituinte”.

Com a recomposição do sistema de dominação através do golpe de classe de

1964 pela via da intervenção militar-empresarial, a nova composição empresarial

(formada na década de 1950) controlou as rédeas da “máquina gerencial-estatal”,

formando o novo bloco de poder. A formulação de diretrizes econômicas definia-

se em um sistema fechado de decisões que caracterizava o regime ditatorial. Nesse

sentido, como nos afirma Dreifuss (1989), as associações patronais tiveram

condições de comunicar-se diretamente com os centros de exercício do poder

institucionalizado, não tendo a necessidade de enfrentar outros segmentos da

população na discussão, no debate ou na ação prática da implementação de

diretrizes. (p.41)

Tais facilidades no acesso à formulação de políticas econômicas, no momento

em que as relações passavam a se desdobrar no âmbito da política pública,

começam a prejudicar as “elites empresariais”.

Na Nova República, as iniciativas empresariais na sociedade civil com suas

bandeiras políticas e econômicas contra o Estado tendem a ganhar espaço

especialmente através dos meios de comunicação de massa. Essa nova situação

evidencia que o empresariado pensava no crescimento econômico e na redução

das tensões sociais não mais através do Estado, mas por dentro dos espaços civis,

no horizonte da democracia liberal que se abria. A burguesia foi obrigada a atuar

nesse terreno, mesmo que não tivesse disposição para tanto, pois o processo de

democratização – empurrado pelo próprio desenvolvimento capitalista e pela

força das organizações operárias35

.

Outro exemplo dessas dificuldades foi a intervenção por setores empresariais,

na defesa de seus interesses específicos, na Constituição. Em muitos casos valendo-

35 Idem, ibidem, p.192-3.

Lamericas.org 27

se de interesses setoriais, a não ser nos momentos de definição mais importantes,

e mesmo assim dinamizados pelas FFAA e o governo: reforma agrária e definição

do papel do Estado de Defesa e do papel do Conselho de Segurança Nacional,

por exemplo. Cabe ressaltar que tal projeto partia de um pólo empresarial

consensual, suficientemente forte para conseguir coordenar e operacionalizar seus

objetivos, e que tem uma grande mobilidade em ações políticas setoriais e

nacionais. E com pontos de apoio no meio sindical (“sindicalismo de resultado”),

nos partidos da ordem, nos meios de comunicação e entre os políticos burgueses

e as classes médias.

Como nos referimos em outras passagens, o período da transição política

colocou para o conjunto da burguesia tarefas essenciais no sentido de efetivação

de um projeto político e econômico que lhe permitisse a retomada do processo

de acumulação de capital no país. Com esse objetivo, FIESP, CNI, FEBRABAN e

outras entidades empresariais tentam articular um eixo de ação político-

ideológico, procurando obter o apoio de outras classes e frações de classe.

Esse projeto político global passou por vários momentos, entre os quais as

eleições presidenciais de 1989. De um lado, tentando legitimar nacionalmente um

candidato com a imagem de não-corrupção; de outro, através da criação de um

consenso social para implementar modificações quanto a algumas tarefas do

Estado.

Assim, as linhas gerais dessa articulação corresponderiam ao crescimento

econômico-industrial, estabilidade política e manutenção da ordem social.

Caberia então a um “governo forte” e legitimado popularmente: a)

“enxugamento da máquina estatal” através de cortes de gastos públicos, com

funcionalismo público e com alguns níveis de corrupção e mordomia, mas

principalmente com corte em áreas sociais (saúde, educação, previdência); b)

reequacionamento maior das verbas dos outros setores, mais ainda para os setores

monopolísticos ligados à exportação, construção civil etc; c) dinamizar uma infra-

estrutura estatal, nos setores de tecnologia de ponta e energética principalmente,

para novas bases industriais; d) privatização de empresas estatais lucrativas; e)

negociação “em bons termos” do endividamento externo.

Lamericas.org 28

Sobre a base de um programa nesses termos, setores de ponta da burguesia

se dispuseram a englobar outros setores empresariais, como também as classes

médias e assalariados.

A década de 1980 foi atravessada por contradições não resolvidas que se

acumulavam do período ditatorial, ao exemplo do endividamento público interno

e externo, da concentração de riqueza e da miséria social. Problemas estruturais,

como a questão agrária, o déficit habitacional, o caos urbano das grandes cidades,

e o endêmico desemprego, constituíram-se como determinações sociais

importantes para o desenvolvimento de conflitos políticos e polarização

ideológica na sociedade brasileira. Para as classes dominantes no país, seus

políticos, intelectuais, ideólogos e partidos, alguns problemas políticos centrais

apresentavam-se: a) dificuldade da burguesia em articular um projeto econômico

e político hegemônico de integração ao capitalismo internacional que lhe

permitisse novo patamar de acumulação no país; b) frustração de amplos setores

da população com as promessas sociais não realizadas na transição política e no

Governo Sarney que aprofundava a polarização social e configurava projetos

políticos de caráter popular. A polarização esquerda e direita apresentou-se real,

no plano político-institucional, e por aí se expressaram de maneira mais acabada

as propostas e projetos sociais.

Esse quadro evidenciou a tendência em curso entre o empresariado que se

configurava no período de transição política, especialmente no período

constitucional. Para o então presidente da FIESP, Mário Amato, as decisões

aprovadas na Constituição caminharam em sentido inverso às tendências

internacionais: “o mundo caminha para a modernização, a liberação, a

desregulamentação, a diminuição do papel do Estado” e “as economias rumam

para a internacionalização”36

. Para o então líder empresarial, os artigos

relacionados à restrição ao capital e ao investimento estrangeiro e aos direitos

sociais demonstrariam que o Brasil rumava no sentido contrário. Portanto, a Carta

Constitucional que surgia em 1988 tornava-se alvo de críticas do empresariado.

36 Mário Amato, “Um convite à irrealidade”, Senhor, 30 de maio de 1988, nº375, p.55-6. (As propostas

dos empresários).

Lamericas.org 29

Outras críticas também estiveram presentes, como a extensão do tempo de licença

maternidade e a ampliação de direitos sociais.

Considerações finais

O texto evidenciou a constituição do capital monopolista como elemento

central no bloco de poder de Estado, a partir do golpe civil-militar. Esse golpe

durou 21 anos, no entanto a estrutura política do regime ainda sim teve grande

força e poder político para se manter com centralidade política durante a Nova

República e o processo constituinte. Essa localização permitiu que resguardasse os

interesses políticos, econômicos e militares que se constituíram no período. Tal

quadro condicionou sem dúvida os rumos que se seguiram na política econômica

e na democracia liberal brasileira.

Os grupos e classes sociais que se beneficiaram com a “modernização

conservadora” brasileira certamente consideram importante aquele período. A

dimensão econômica do regime militar, no entanto, revela que o intenso processo

de acumulação de capital ocorreu sobre a superexploração do trabalho e a

criminalização da sociedade. A política salarial da ditadura militar foi o

instrumento central de acumulação, ao lado da doutrina de “segurança e

desenvolvimento”. Outros mecanismos complementares articularam-se ao

arrocho salarial: a política anti-inflacionária, a abertura da economia brasileira ao

capital imperialista, as isenções de impostos e tarifas, as facilidades creditícias, as

inversões de capital do poder público em serviços e empreendimentos infra-

estruturais, a articulação do setor produtivo estatal com os setores privados

nacional e estrangeiro, os incentivos ao crescimento do capitalismo no campo. A

repressão política contra as classes assalariadas, em geral, e o proletariado e

campesinato, ocorreu por meio da eliminação de direitos políticos e trabalhistas,

imposição de legislação antigreve, intervenção estatal em cerca de 1.202 sindicatos

de trabalhadores e eliminação de 254 entidades sindicais.

Em seus distintos matizes, a oposição política existiu desde o primeiro

momento da instalação da ditadura militar, na instância parlamentar, artística,

educacional, nos bairros, fábricas e meio rural. Essa história é uma história

Lamericas.org 30

importante. Em nenhum momento, o regime político ditatorial livrou-se das

oposições, fossem liberais, da esquerda, de setores populares e proletários, ou

estudantil. Inclusive, a opção pela luta armada foi a maior entrega da vida de

setores da juventude ao significado público doado a esse país, mesmo que

consideremos que tais análises e ações políticas estivessem deslocadas dos

trabalhadores e população. A nova configuração da classe trabalhadora e das

camadas sociais populares, decorrente do intenso e anárquico processo de

urbanização e industrialização, possibilitou o surgimento da principal oposição

política à ditadura militar. Dessa oposição proletária e popular surgiram novos

organismos e entidades políticas e sindicais com papel decisivo contra o regime

político.

Enfraquecido o regime político na década de 1980, ainda assim os militares

tiveram força para condicionar a transição política, mesmo quando já se

encontravam divididos, enfraquecidos e desmoralizados em decorrência da

retomada das mobilizações sociais, da multiplicação das oposições, além da divisão

interburguesa por causa da crise econômica e da retirada do apoio imperialista aos

regimes militares latino-americanos. Exemplo mais ilustrativo foi a ditadura lograr

manter o colégio eleitoral para a eleição presidencial. Os militares viveram na

sombra da Nova República (1985) e do processo constitucional aberto em 1986,

inclusive cerceando as representações políticas e o caráter da assembleia nacional

constituinte. Desta maneira, preservaram os interesses econômicos e políticos de

seus pares e aliados do grande capital nacional e internacional.

As oposições políticas, especialmente os setores de esquerda, não foram

suficientemente grandiosas, ou não tiveram força ou coragem, para imporem uma

derrota política definitiva ao regime ditatorial. Por isso, a transição política foi

uma “transição transada”, pois se realizou orientada pela perspectiva de acordos,

conciliação e muito “realismo” político que possibilitaram a consolidação da

hegemonia burguesa e monopolista, orientada pela perspectiva do capital

financeiro internacional. As consequências de tais arranjos fizeram-se sentir nos

anos e décadas posteriores: impunidade de ex-torturadores e seus mandantes;

arquivos militares que não foram abertos; interesses econômicos escusos

Lamericas.org 31

preservados entre setores empresariais (nacionais e estrangeiros) e regime político

etc.