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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES NO BRASIL DE 1985 A 2016: UMA ANÁLISE SOBRE SUJEITOS Raissa Barbosa Araujo 1 Karla Galvão Adrião 2 Resumo: Trata-se de um exercício de inspiração genealógica que buscou desenvolver uma analise sobre as políticas para mulheres no Brasil. A partir de reflexões sobre diferentes concepções sobre os sujeitos da política pública brasileira, tem-se como objetivo identificar momentos de continuidades e descontinuidades. Para tal, dois conceitos elaborados por Michel Foucault foram fundamentais: biopolítica e governamentalidade. A partir desses dois conceitos as políticas para as mulheres foram compreendidas no bojo das tecnologias biopolíticas, uma vez que parecem estar afinadas com o propósito da maximização da vida e produtividade das mulheres. Esse trabalho foi produzido a partir de referências acadêmicas, reportagens jornalísticas, bem como publicações oficiais do Governo Federal. Foi realizado um resgate da atuação política das mulheres brasileiras ao longo do século XX e utilizou-se o ano de 1985 como marco de criação do primeiro equipamento político exclusivo para as mulheres, a Delegacia da Mulher. O percurso do estudo passou pela criação da Secretaria de Política para as Mulheres da Presidência da República e realização das Conferências Nacionais. O marco final do estudo foi ano de 2016, quando a política para as mulheres foi deslocada para o Ministério da Justiça e Cidadania. Observou-se mudanças no que se refere ao sujeito da política pública para as mulheres no Brasil, que circulam entre sujeitos da cidadania e sujeitos vítima de violência. Palavras-chave: Mulheres. Políticas Públicas. Sujeito. Cidadania. Violência. Através desse texto realizamos um exercício que buscou desenvolver uma analítica sobre sujeitos das políticas públicas para mulheres no Brasil entre os anos de 1985 e 2016. A partir de reflexões sobre diferentes concepções de sujeitos dessa política, temos como objetivo identificar momentos de continuidades e descontinuidades. Para tal, utilizamos dois conceitos elaborados por Michel Foucault: biopolítica e governamentalidade. Importante destacar que o contexto de nossa produção foi marcado pelas provocações da disciplina de Poder e Modos de Subjetivação - do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco. Também foram incorporadas reflexões ao longo do primeiro ano de doutorado da primeira autora desse texto, cujo projeto de pesquisa tem por objetivo compreender como têm sido definidos os sujeitos para quem as políticas públicas municipais para as mulheres estão sendo desenvolvidas em cidades de diferentes regiões do Estado de Pernambuco. 1 Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife, Brasil. 2 Professora do Departamento de Psicologia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife, Brasil.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES NO BRASIL

DE 1985 A 2016: UMA ANÁLISE SOBRE SUJEITOS

Raissa Barbosa Araujo1

Karla Galvão Adrião2

Resumo: Trata-se de um exercício de inspiração genealógica que buscou desenvolver uma analise

sobre as políticas para mulheres no Brasil. A partir de reflexões sobre diferentes concepções sobre

os sujeitos da política pública brasileira, tem-se como objetivo identificar momentos de

continuidades e descontinuidades. Para tal, dois conceitos elaborados por Michel Foucault foram

fundamentais: biopolítica e governamentalidade. A partir desses dois conceitos as políticas para as

mulheres foram compreendidas no bojo das tecnologias biopolíticas, uma vez que parecem estar

afinadas com o propósito da maximização da vida e produtividade das mulheres. Esse trabalho foi

produzido a partir de referências acadêmicas, reportagens jornalísticas, bem como publicações

oficiais do Governo Federal. Foi realizado um resgate da atuação política das mulheres brasileiras

ao longo do século XX e utilizou-se o ano de 1985 como marco de criação do primeiro

equipamento político exclusivo para as mulheres, a Delegacia da Mulher. O percurso do estudo

passou pela criação da Secretaria de Política para as Mulheres da Presidência da República e

realização das Conferências Nacionais. O marco final do estudo foi ano de 2016, quando a política

para as mulheres foi deslocada para o Ministério da Justiça e Cidadania. Observou-se mudanças no

que se refere ao sujeito da política pública para as mulheres no Brasil, que circulam entre sujeitos da

cidadania e sujeitos vítima de violência.

Palavras-chave: Mulheres. Políticas Públicas. Sujeito. Cidadania. Violência.

Através desse texto realizamos um exercício que buscou desenvolver uma analítica sobre

sujeitos das políticas públicas para mulheres no Brasil entre os anos de 1985 e 2016. A partir de

reflexões sobre diferentes concepções de sujeitos dessa política, temos como objetivo identificar

momentos de continuidades e descontinuidades. Para tal, utilizamos dois conceitos elaborados por

Michel Foucault: biopolítica e governamentalidade.

Importante destacar que o contexto de nossa produção foi marcado pelas provocações da

disciplina de Poder e Modos de Subjetivação - do Programa de Pós Graduação em Psicologia da

Universidade Federal de Pernambuco. Também foram incorporadas reflexões ao longo do primeiro

ano de doutorado da primeira autora desse texto, cujo projeto de pesquisa tem por objetivo

compreender como têm sido definidos os sujeitos para quem as políticas públicas municipais para

as mulheres estão sendo desenvolvidas em cidades de diferentes regiões do Estado de Pernambuco.

1 Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife,

Brasil. 2 Professora do Departamento de Psicologia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de

Pernambuco (UFPE). Recife, Brasil.

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Atentas a importância de pensarmos macropolíticas em diálogo com contextos locais,

entendemos esse texto como um dos primeiros produtos de uma pesquisa que segue em

desenvolvimento.

Biopolítica, governamentalidade e políticas públicas para as mulheres

No curso ‘Em defesa da sociedade’, ministrado no ano de 1976 no Collège de France, foram

apresentadas algumas reflexões a respeito de mecanismos, técnicas e tecnologias de poder que

ganharam força no século XIX a partir de uma ‘assunção da vida pelo poder’ (FOUCAULT, 2010,

p. 201). Segundo o autor, esse fenômeno foi viabilizado diante da formação dos Estados Nação,

quando passaram a ser utilizadas medições estatísticas e surgiram as primeiras demografias. Nessa

conjuntura emerge a noção de população.

Foucault (2010, p. 206) afirma que ‘a biopolítica lida com a população, e a população como

problema político, como problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e

como problema de poder’. Trata-se de mecanismos reguladores dos processos de vida que têm por

objetivo a manutenção de uma média, um equilíbrio da população. Esses mecanismos devem estar

atentos aos acidentes, às enfermidades e às anomalias diversas.

Há, portanto, uma transformação das tecnologias do poder marcada por uma

intencionalidade que se afina com a necessidade de otimizar a população e potencializar as riquezas

dos Estados. A partir disso, um novo direito se instala; fazer viver e deixar morrer. Desse modo, a

vida biológica e a saúde da população entram nos cálculos do poder político. Nesse sentido, devem

ser eliminados todos os fenômenos populacionais que subtraiam forças, diminuam o tempo, baixem

a energia e/ou gerem custos. Todo esse aparato biopolítico se justifica pela ‘segurança do conjunto

em relação aos seus perigos internos’ (FOUCAULT, 2010, p. 209).

Foucault diferencia a biopolítica do poder disciplinar, que caracterizou uma forma de poder

que o autor nomeou como pastoral. Segundo essa perspectiva, o poder disciplinar opera através de

uma tecnologia de treinamento, enquanto a biopolítica, através de uma tecnologia de previdência,

ou regulamentadora. Ambas passam pelo corpo, mas a primeira trata do corpo como um organismo

treinável e individualizado, enquanto na tecnologia de previdência os corpos compõem processos

biológicos de conjunto. O Estado torna-se atento à conduta da população (FOUCAULT, 2010).

Sobre a formação dos Estados, Foucault apresenta o conceito de governamentalidade como:

o conjunto construído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos

e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de

poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia

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política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança (FOUCAULT,

2009, p. 143, grifos nossos).

Como efeito da noção de população, questões relacionadas à administração do Estado

tornaram-se foco de reflexões políticas e econômicas. O autor se refere ao surgimento de uma arte

de governar, associada a uma racionalidade própria do Estado, que passou a ter a população como

fim e instrumento do governo.

Dito isto, importante registrar que aqui estamos considerando as políticas públicas para as

mulheres no bojo das tecnologias biopolíticas, como uma estratégia de governamentalidade. Abaixo

apresentaremos as perspectivas metodológicas que viabilizaram nossas reflexões, em seguida uma

breve explanação das políticas para as mulheres no Brasil e, por fim, algumas considerações. Nossa

escrita é construída a partir de um posicionamento ético político feminista situado em um campo

discursivo que compreende as produções acadêmica como estratégica no que se refere às disputas

dos regimes de verdade (HARAWAY, 1995).

Estratégias e perspectivas metodológicas

Para produzirmos nossas reflexões utilizamos referências acadêmicas, reportagens

jornalísticas e publicações oficiais do Governo Federal – o que inclui documentos de domínio

público, relatórios técnicos e notícias veiculadas pelo site da Presidência da República. Todo esse

material foi apreciado a partir de uma perspectiva genealógica.

A genealogia não corresponde a um método, nem mesmo a um conjunto de técnicas, é uma

perspectiva atenta à natureza histórica dos discursos e à compreensão que estes produzem efeitos de

verdade. Importante destacarmos que esse olhar se opõe a idéia de que há uma única narrativa da

história sobre a origem dos acontecimentos. As perspectivas genealógicas questionam a lógica de

verdade científica e proporcionam a criação de análises que se assumem como situadas,

fragmentárias e transformáveis (FOUCAULT, 1986).

Assim, as genealogias aos moldes foucaultianos propõem reflexões sobre relações de poder

e, embora possam se utilizar também de produtos históricos, devem ser úteis não só para conhecer

acontecimentos passados, mas sobretudo, para produzir analíticas sobre modos que criarmos e

damos sentido ao presente.

Sujeitos das políticas para mulheres no Brasil

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Ana Alice Costa (2005) afirma que na primeira década do século XX existiam no Brasil

organizações feministas socialistas, anarquistas e liberais, assim como em outros países da América

Latina. Na maioria desses países, os processos de organização das mulheres ocorreram

simultaneamente à organização das classes populares, influenciadas por referências socialistas.

Na segunda metade do século XX, no ano de 1964, ocorreu no Brasil o Golpe Militar, que

deixou em suspenso uma série de direitos civis. Portanto, estavam ameaçados todos os direitos

relacionados à cidadania. Importante registrar que entendemos por cidadania o gozo dos direitos de

participação da vida política do Estado, bem como o direito à educação, ao trabalho e a saúde

(mental e física) de forma integral.

Muitas pessoas, em especial as articuladas em movimentos sociais e partidários, iniciaram

uma forte oposição à Ditadura Militar e muitos dos atos de resistência passaram a ser

criminalizados. Segundo Cynthia Sarti (1988), foi nesse contexto que, no ano de 1975, foi criado o

Movimento Feminismo pela Anistia. Nesse mesmo ano, houve o lançamento da Década

Internacional da Mulher, promulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Nessa

conjuntura, os movimentos feministas brasileiros passaram a dialogar com instâncias de ação

internacional de forma mais fortalecida.

No processo de redemocratização do país, nos anos de 1980, muitas mulheres filiaram-se a

partidos políticos (especialmente ao Partido dos Trabalhadores (PT) e ao Partido do Movimento

Democrático Brasileiro (PMDB) – oposições à Ditadura) e disputaram eleições com o propósito de

lutar a favor de uma política feminista. Além da inclusão das mulheres como beneficiárias das

políticas públicas, as mulheres pleitearam a inclusão entre ‘os atores' que participam da formulação,

da implementação e do controle dessas políticas (SARTI,1988; FARAH, 2004).

Em 1983, foi lançado pelo Ministério da Saúde o Programa de Assistência Integral à Saúde

Mulher (PAISM). Esse foi apresentado como uma nova e diferenciada abordagem da saúde por

propor uma atenção especial à saúde reprodutiva. O PAISM constitui-se como uma ação pioneira

através da qual o Estado brasileiro atentava-se para as mulheres (OSIS, 1998).

Além de uma inegável importância histórica em defesa da saúde das mulheres, destacamos

com alguma criticidade, que não parece ser da ordem do acaso que esse Programa compreende as

mulheres como sujeitos da reprodução biológica. Ao pensarmos a partir da perspectiva da

biopolítica, podemos inferir que a saúde das mulheres (especialmente aquelas em idade reprodutiva)

é de fundamental importância para os mecanismos reguladores dos processos de vida.

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Também nos ano de 1980, grupos feministas de Belo Horizonte (MG) foram pioneiros na

organização do Centro de Defesa dos Direitos da Mulher. Essa iniciativa foi repetida em outras

cidades do país. Espaços como esse passaram a exercer uma função de controle social no sentido de

reivindicar uma atenção às pautas das mulheres dentro da estrutura administrativa do Estado. Cinco

anos depois, em 1985, foi criada a primeira Delegacia de Defesa da Mulher, como uma iniciativa do

Conselho Estadual de São Paulo e Secretaria de Segurança Pública do Estado (SARTI, 1988). Essa

Delegacia tinha por objetivo coibir as discriminações e violências contra as mulheres.

Como afirmou Cynthia Sarti (1988), as Delegacias da Mulher tornaram-se marco histórico,

uma vez que foram os primeiros equipamentos dentro da estrutura administrativa dos Estados com

essa função. Foi portanto, por meio da mulher sujeito vítima de violência que o Estado passou a

desenvolver uma política pública voltada exclusivamente às mulheres de forma independente de

processos ligados à reprodução (que envolvem, além das mulheres mães, bebês e crianças).

A criação das Delegacias foi compreendida como uma resposta às estatísticas que

apontavam para um número elevado de mulheres que adoeciam, ou morriam, por sofrer violência

(até os dias de hoje). Portanto, a criação desses equipamentos foi justificada por uma razão de

Estado, ou seja, uma governamentalidade, que visa eliminar todos os fenômenos populacionais que

subtraiam forças, diminuam o tempo, baixem a energia e/ou gerem custos.

De acordo com Brasil (2011), também em 1985, foi instalado o Conselho Nacional dos

Direitos da Mulher (CNDM). Vinculado ao Ministério da Justiça, esse era um órgão da sociedade

civil de caráter consultivo que tinha por objetivo promover um olhar para as questões das mulheres.

No ano de 1987, a Assembléia Nacional Constituinte mobilizou as mulheres feministas a

lançarem a campanha ‘Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher’. Foram denunciadas

desigualdades de classe e pleiteado o direito à creche, ao trabalho, à saúde sexual, à saúde

reprodutiva, ao aborto legal, ao combate à violência de gênero, dentre outras questões (ADRIÃO,

2008; COSTA, 2005; FARAH, 2004).

Nesse sentido, é possível observar que os movimentos feministas e de mulheres tinham

como demanda a atenção do Estado a outras possibilidades de sujeitos da política - que vão muito

além da mulher sujeito da reprodução biológica e/ou da mulher sujeito vítima de violência.

Segundo Costa (2005), em 1987, as mulheres se organizaram regional e nacionalmente para

sistematizar propostas que foram apresentadas por meio da Carta das Mulheres à Assembléia

Constituinte. Através de uma ação direta de convencimento de parlamentares que ficou conhecida

como Lobby do Batom, foi garantida a aprovação de 80% das solicitações. Assim, o texto final da

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Constituição Federal de 1988 foi fortemente influenciado pela ação das mulheres. Não por acaso, a

‘Constituição Cidadã’ (como ficou conhecida), foi a primeira a considerar mulheres e homens

iguais perante a lei.

Nos anos de 1990, ocorreram grandes conferências mundiais disparadas pela Organização

das Nações Unidas (ONU). A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, em 1993; a

Conferência sobre População e Desenvolvimento, em 1994; e a Conferência Mundial sobre a

Mulher, em 1995. Essas conferências apresentaram impactos significativos para as políticas para as

mulheres, uma vez que provocaram grande influência nas relações políticas globais nos anos 90 e

2000 (ALVAREZ, 1998; ADRIÃO, 2008).

Aqui é importante destacar o contexto de epidemia da AIDS que assombrava as populações

mundiais nos anos de 1990 (CORREA, 2004). Não por acaso, as mulheres que vivenciavam sua

sexualidade, especialmente as jovens (que podiam engravidar), tornaram-se alvo de tecnologias

biopolíticas através de projetos sociais ligados aos direitos sexuais e reprodutivos3.

Em 1993, ocorreu no Estado do Pará a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e

Erradicar a Violência contra a Mulher, que ficou conhecida como ‘Convenção de Belém do Pará’.

Representantes de diferentes países americanos reuniram-se com o objetivo traçar metas que

buscassem o fim da violência contra mulher (BRASIL, 2011). Uma perspectiva de caráter punitivo

fica evidenciada já no nome dessa Convenção. Está posta aí uma lógica de governamentalidade que

prevê a segurança do conjunto em relação aos seus perigos internos.

Em Agosto de 1996, o Senado Federal promulgou a Convenção no Brasil. Já em seu

Capítulo I (Definição e Âmbito de Aplicação), no Artigo 1, o texto da convenção apresenta:

Para os efeitos desta Convenção deve-se entender por violência contra a mulher

qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento

físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado.

Com os grifos acima destacamos uma forma própria de governar que passa a atentar para

condutas no sentido de eliminar riscos à população.

Os relatórios das Conferências referidas acima determinaram os caminhos de recursos

internacionais que passaram a ser executadas pela sociedade civil organizada através das

Organizações Não Governamentais (ONG) no Brasil, na América Latina e em outros ditos ‘países

em desenvolvimento’ (ALVAREZ, 1998; ADRIÃO, 2008).

3 Segundo Correa (2004) esse termo, que associa sexualidade à reprodução, foi forjado no contexto das referidas

Conferências Mundiais dos anos de 1990 através de ‘guerras semânticas’ entre feministas e forças conservadoras.

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Foi no contexto pós-Conferências que os recursos financeiros para a execução da política

para mulheres tornaram-se mais robustos, devido à cooperação internacional. Esse período, no

contexto nacional, se afina com os anos de governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), do

Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Entre os anos de 1997 e 2003 houve o

crescimento de uma lógica de ampliação das iniciativas privadas e enfraquecimento das políticas

públicas.

No ano de 1999, entrou em vigor, pelo Ministério da Saúde, uma Norma Técnica para

prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual. Esta Norma Técnica exige o

atendimento a mulheres vítimas de violência sexual nos serviços de saúde, com o propósito de

efetivar medidas que devem ser adotadas para reduzir os danos decorrentes dessa violência

(BRASIL, 1999). Através dessa Norma observamos uma articulação entre dispositivos de saúde e

dispositivos de segurança.

Em abril de 2002, poucos meses do fim do mandato de oito anos, o então Presidente do

Brasil, FHC, criou a SEDIM – Secretaria Nacional dos Direitos das Mulheres, vinculada ao

Ministério da Justiça (SARDENBERG & COSTA, 2011). A escolha de vincular às políticas para as

mulheres ao Ministério da Justiça sugere uma tendência que retoma a mulher sujeito vítima de

violência. Além do notório apelo eleitoreiro, a SEDIM parece ter cumprido uma função de

assessoria da Presidência, aos moldes do caráter consultivo do CNDM (criado ainda em 1985).

Também no ano de 2002, na perspectiva de preparação para as eleições, as feministas se

reuniram na Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras e produziram um documento nomeado

como Plataforma Política Feminista (PPF), que foi encaminhado para as pessoas candidatas aos

poderes executivo e legislativo (ADRIÃO, 2008). Nesse mesmo ano, foi confirmada a eleição de

Luis Inácio Lula da Silva (PT), que assumiu a presidência em janeiro de 2003. No Governo Lula,

foi criada a Secretaria de Política para Mulheres, que passou a ter caráter de Ministério Federal e

funções executivas.

Importante ressaltarmos que a criação de organismos de política para mulheres nos anos

2000 corresponde a uma mudança de postura do Estado, que passa a reconhecer publicamente a

existência de desigualdades sociais entre mulheres e homens ao passo que fortalece possibilidades

de execução de uma política pública estruturada.

Através de um Decreto Presidencial, em dezembro de 2003, foi convocada pelo então

presidente e pela ministra da Secretaria Especial de Política para Mulheres, a I Conferência

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Nacional de Políticas para as Mulheres, com objetivo propor diretrizes para fundamentação do I

Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM).

Paralelamente, também em 2003, foi promulgada a Lei Federal 10.778/03, que instituiu a

notificação compulsória dos casos de violência contra as mulheres atendidas nos serviços de saúde,

públicos ou privados. O caráter obrigatório desse registro pode proporcionar a produção de

estatísticas sobre a população. Os dados solicitados na notificação dizem respeito não só as

mulheres violentadas, mas também sobre quais os tipos de violência e agravos à saúde. Isso

evidencia o interesse do Estado em compreender o que há de continuidades e descontinuidades no

fenômeno da violência, bem como conhecer quais os efeitos que essas violências têm provocado em

sua população. Nesse exemplo destacamos uma economia política própria da governamentalidade

que envolve instituições, procedimentos, cálculos e análises que buscam táticas de previdência para

fenômenos populacionais.

Em abril de 2004, iniciaram-se as etapas municipais ou sub-regionais (no caso das zonas

rurais) e etapas estaduais das Conferências de Políticas para as Mulheres. Em 2005, ocorreu a etapa

nacional e desta originou-se o I Plano Nacional de Política para as Mulheres (ADRIÃO, 2008).

Os Eixos dessa primeira conferência foram: 1 – Autonomia, igualdade no mundo do

trabalho e cidadania; 2 – Educação inclusiva e não sexista; 3 – Saúde das mulheres, direitos sexuais

e direitos reprodutivas; 4 – Enfrentamento à violência contra as mulheres (BRASIL, 2004).

Os eixos 3 e 4 se afinam com o que já estava proposto no campo das políticas para as

mulheres no Brasil, enquanto os eixos 1 e 2 colocam em evidência questões demandadas pelos

movimentos feministas e de mulheres que até então não estavam sendo pautadas diretamente pelo

Estado. Direito ao trabalho, direito à cidadania, direito à autonomia, direito à educação inclusiva e

não sexista representam mudanças de padrões culturais no sentido de compreender as mulheres

como sujeitos da cidadania – para além da reprodução biológica e/ou da situações de violência.

Na redação do I PNPM, no capítulo dedicado aos Pressupostos, Princípios e Diretrizes da

Política é possível encontrar o seguinte texto:

o Estado assume a responsabilidade de implementar políticas públicas que tenham como

foco as mulheres, a consolidação da cidadania e a igualdade de gênero [....] Reconhecemos

que a atuação do Estado, especialmente por meio da formulação e implementação de

políticas, interfere na vida das mulheres, ao determinar, reproduzir ou alterar as relações de

gênero, raça e etnia e o exercício da sexualidade. A Política Nacional para as Mulheres tem

como compromisso e desafio interferir nas ações do Estado, de forma a promover a

eqüidade de gênero, com respeito às diversidades (BRASIL, 2004, p. 31).

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Nos grifos acima buscamos evidenciar que cidadania e igualdade de gênero, raça e etnia

passam a fazer parte do repertório discursivo do Estado. Além disso, observamos que há uma

combinação de diferentes sujeitos das políticas para as mulheres, enquanto a conduta da população

e o exercício da sexualidade continuam a evidenciar que a política para mulheres está engendrada

no aparato do Estado como uma tecnologia biopolítica.

O ano de 2006 tornou-se um marco. Como efeito da pressão do movimento de mulheres, da

denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e do julgamento do Estado brasileiro em

Corte Internacional da Organização dos Estados Americanos (OEA) pelo caso de violência sofrida

por Maria da Penha, entrou em vigor a Lei Federal 11.340/06.

Essa Lei define cinco tipos de violência doméstica; além da violência física, estão previstas

na Lei, a violência psicológica, moral, sexual e patrimonial. A violência doméstica deixa de ser um

crime comum e passa a ser julgado em juizados especializados. Desde então a rede de atendimento

às mulheres passou a ser composta pelas delegacias, casas abrigo (e outros serviços

socioassistenciais), serviços de saúde e juizados especializados.

No ano de 2010, ocorreram novas eleições e em janeiro de 2011, Dilma Rousseff (PT),

tornou-se a primeira presidenta da república. O primeiro mandato foi cumprido até 2014, ano em

que foi legitimamente reeleita presidenta em um processo eleitoral que teve como característica

uma forte polarização do país. Em 2015, ela assumiu o segundo mandato e já nesse ano passam a

ocorrer fortes retaliações. Forças políticas de oposição passaram a sugerir um processo de

Impeachment. Nesse contexto político, o Governo Dilma passou a fazer uma série de concessões.

No segundo semestre de 2015 houve uma reforma ministerial e a Secretaria de Política para

Mulheres (SPM) foi fundida com a Secretaria de Política de Promoção de Igualdade Racial

(SEPPIR) e Secretaria de Direitos Humanos (SDH). Foi então criado o Ministério das Mulheres, da

Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (MMIRDH). A fusão dos ministérios foi bastante

criticada por movimentos sociais que avaliaram um significativo retrocesso político nessa ação.

Já no primeiro semestre de 2016, foi dado início ao Impeachment da presidenta. No mês de

maio, Dilma foi afastada do cargo e o vice presidente, Michel Temer (PMDB), assumiu o Governo

Federal. Muitas foram as denúncias sobre esse processo que, nacional e internacionalmente, foi

nomeado como Golpe.

Já no primeiro dia do mandato de Temer, houve uma grande reforma ministerial. A política

para as mulheres, juntamente com a política de promoção de igualdade racial e direitos humanos,

voltaram a compor o Ministério da Justiça, que passou ser nomeado como Ministério da Justiça e

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Cidadania. Essa mudança fez parte de um pacote de cortes de outros Ministérios. Além da alteração

das pastas, houve uma transformação simbólica notória. O alto escalão do poder executivo foi

composto exclusivamente por homens, foram então excluídas todas as mulheres e pessoas negras.

É possível identificar nessa ação o que Foucault (2010) nomeou como racismo de Estado.

Esse conceito se refere à diferenciação entre o que deve viver e o que deve morrer. Como o autor

argumenta, o racismo de Estado compre duas funções:

a primeira função do racismo: fragmentar, fazer censuras no interior do contínuo biológico

a que se dirige o biopoder. De outro lado, o racismo terá sua segunda função: terá como

papel permitir uma relação positiva, do tipo: “quanto mais você matar, mais você fará

morrer”, ou “quanto mais você deixar morrer, mais, por isso mesmo, você viverá” [...] É a

relação guerreira: “para viver, é preciso que você massacre seus inimigos” (p. 214-215).

Com o Governo Temer as mulheres foram censuradas em um verdadeiro massacre político.

Nesse sentido, identificamos uma governamentalidade que coloca os direitos das mulheres – através

daquilo que os representa (um Ministério de política para as Mulheres, bem como mulheres no alto

escalão do Governo Federal) - como ameaças ao modelo Estado machista. Há, portanto, a morte das

mulheres como sujeitos políticos, como sujeitos da cidadania. Em paralelo, com o retorno da

vinculação da pasta das mulheres ao Ministério da Justiça, ressurge quase com exclusividade o

sujeito mulher vitima de violência.

Considerações finais

Afinadas com um posicionamento ético político feminista, através desse texto, propomos

denúncias. Denunciamos o Golpe de 2016 e o adjetivamos como machista. Denunciamos aqui a

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morte das mulheres, não só aquelas vítimas de violência. Denunciamos o assassinato das mulheres

como sujeitos da cidadania.

Por fim, importante sinalizarmos que as políticas públicas para as mulheres não se propõem

a ser universais, assim sempre se fará necessária a definição de quem são seus sujeitos. Nesse

sentido, muitas mulheres, especialmente as negras (com as quais o Estado tem uma inegável dívida

histórica, política e econômica), como também as prostitutas (para quem a Lei Maria da Penha não

prevê um suporte), as mulheres trans (cuja condição de mulher permanece em questão), as mulheres

usuárias de drogas, as encarceradas, dentre outros exemplos possíveis, ainda encontram muita

dificuldade de serem compreendidas como sujeitos legítimos das políticas para as mulheres. Há

então uma série de desafios que estão postos para nós feministas que queremos não só a retomada,

mas, sobretudo, a ampliação do nosso espaço no aparato do Estado.

Referências

ADRIÃO, Karla Galvão. Encontros do feminismo: uma análise do campo feminista brasileiro a

partir das esferas do movimento, do governo e da academia. Tese (Doutorado em Ciências

Humanas). Universidade de Santa Catarina, Florianópolis, 2008. 301 p.

ALVAREZ, Sônia. Los feminismos latinoamericanos se globalizan: tendências de los años 90 y

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Public policies for women in Brazil from 1985 to 2016: analysis about subjects

Astract: It is an exercise of genealogical inspiration that sought to develop an analysis on the

policies for women in Brazil. Based on reflections on different conceptions about the subjects of

Brazilian public policy, the goal is to identify moments of continuity and discontinuity. For this,

two concepts elaborated by Michel Foucault were fundamental: biopolitics and governmentality.

From these two concepts policies for women have been understood in the bosom of biopolitical

technologies, since they seem to be in tune with the purpose of maximizing the life and productivity

of women. This work was produced from academic references, journalistic reports, as well as

official publications of the Federal Government. It was realized a rescue of the political action of

the Brazilian women throughout the XX century and was used the year of 1985 like landmark of

creation of the first exclusive political equipment for the women, the Women's Police Station. The

course of the study went through the creation of the Secretary of Policy for Women of the

Presidency of the Republic and the holding of the National Conferences. The final landmark of the

study was 2016, when the policy for women was shifted to the Ministry of Justice and Citizenship.

Changes were observed in the study regarding the subject of public policy for women in Brazil,

which circulate between subjects of citizenship and subjects subjected to violence.

Keywords: Women. Public Polices. Subjects. Citizenship. Violence.