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COLEÇÃO ABIA POLÍTICAS PÚBLICAS, N o 3 O K AMASUTRA DE BUSH: MUITAS POSIÇÕES SOBRE O SEXO Implicações Globais das Políticas sobre Sexualidade do Governo dos Estados Unidos ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA INTERDISCIPLINAR DE AIDS RIO DE JANEIRO 20 FRANÇOISE GIRARD

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COLEÇÃO ABIA

POLÍTICAS PÚBLICAS, No 3

O KAMASUTRA DE BUSH:MUITAS POSIÇÕES SOBRE O SEXO

Implicações Globais das Políticas sobreSexualidade do Governo dos Estados Unidos

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA INTERDISCIPLINAR DE AIDSRIO DE JANEIRO

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FRANÇOISE GIRARD

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É permitida a reprodução total ou parcial do artigo desta publicação, desde que citadas a fonte e a autora.

Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS - ABIARua da Candelária, 79/10o andar - CentroCEP: 20091-020 - Rio de Janeiro - RJTelefone: (21) 2223-1040 Fax: (21) 2253-8495E-mail: [email protected] http://www.abiaids.org.br

DIRETORIA

Diretor-Presidente: RICHARD PARKER

Diretora Vice-Presidente: REGINA MARIA BARBOSA

Secretária Geral: MIRIAM VENTURA

Tesoureiro: JOSÉ LOUREIRO

Coordenação Geral: MARIA CRISTINA PIMENTA E VERIANO TERTO JR.

REVISÃO TÉCNICA: Sonia Corrêa, Veriano Terto Jr.Angela Collet, Ivia Maksud

TRADUÇÃO: Sonia Corrêa e Juan Carlos RaxachPROJETO GRÁFICO: Wilma Ferraz e Juan Carlos RaxachEDITORAÇÃO ELETRÔNICA: Wilma Ferraz

APOIO:

IMPRESSÃO: Gráfica ReproarteTIRAGEM: 2 mil exemplares

Este texto foi originalmente publicado pelo Grupo de Trabalho Internacional sobre Sexualidade e Política Social como título “Global Implications of U.S. Domestic and International Policies on Sexuality” no IWGSSP Working Papers,n. 1, junho de 2004. New York, NY – USA.

CIP-Brasil. Catalogação na Fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

G434k

Girard, FrançoiseO Kamasutra de Bush : muitas posições sobre o sexo : implicações globais das políticas sobresexualidade do governo dos Estados Unidos / Françoise Girard ; tradução de Sonia Corrêa,Juan Carlos Raxach. - Rio de Janeiro : ABIA, 2005

52p. - (Coleção ABIA. Políticas públicas ; n.3)

Tradução de: Global implications of U.S. domestic and international policies on sexualityInclui bibliografiaISBN 85-88684-20-9

1. Sexo - Estados Unidos. 2. Sexo - Política governamental - Estados Unidos. 3. Papel sexual -EstadosUnidos. 4. Sexo e direito – Estados Unidos. 5. Saúde reprodutiva - Política governamental - EstadosUnidos. 6. AIDS (Doença)- Política governamental - Estados Unidos. 7. Direitos reprodutivos.I. Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS. II. Título. III. Série.

04-3431. CDD 306.70973CDU 392.6

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 5

INTRODUÇÃO 9

DEFINIÇÕES E DIFERENÇAS 10

ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DAS POLÍTICAS DE BUSH SOBRE SEXUALIDADE 12

AS POLÍTICAS 15

Educação em sexualidade 15

Prevenção, tratamento e atenção ao HIV 23

Casamento e família 29

GLBT e diversidade sexual 33

Aborto e outros serviços de saúde reprodutiva 35

FNUAP - Fundo de População das Nações Unidas 41

Pesquisa sobre conduta sexual, especialmente GLBT etrabalhadores(as) do sexo 43

Tráfico e trabalho sexual 45

CONCLUSÃO 49

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APRESENTAÇÃO

Com grande prazer, a ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinarde AIDS, em parceria com o Grupo Internacional de Trabalho sobre Sexualidade e Políticas Sociais (GITSPS), apresenta ao público

brasileiro o estudo elaborado por Françoise Girard “O Kamasutra de Bush:Muitas Posições sobre o Sexo – Implicações Globais das Políticas sobreSexualidade do Governo dos Estados Unidos”. O relatório, originalmentelançado em inglês e espanhol, em junho de 2004, em San Juan de Porto Rico– por ocasião da sessão do Comitê Especial sobre População e Desenvolvi-mento da Comissão Econômica para América Latina (CEPAL), comemora-tiva dos 10 Anos da Conferência Internacional de População e Desenvolvi-mento (Cairo, 1994) na América Latina – traz os resultados de um primeiroesforço de investigação do GITSPS em relação às políticas públicas sobresexualidade no âmbito global. Trata-se da primeira etapa de um esforço depesquisa mais amplo que, a partir de 2005, irá se desdobrar numa série deestudos em países e arenas políticas globais selecionadas.

Em 2002, quando o GITSPS foi criado, já podiam-se identificar sinaisde que o governo ultraconservador de George W. Bush, do Partido Republi-cano, faria da sexualidade um alvo estratégico. Desde então, a agenda con-servadora de Bush neste campo se ampliou e ganhou visibilidade para alémdas fronteiras que definem o campo de atuação de ativistas e setores acadê-micos envolvidos com os direitos reprodutivos e sexuais e questões relacio-nadas ao HIV/AIDS. A eleição presidencial norte-americana de 2004 é ailustração mais contundente desta tendência. Como bem analisaram cente-nas de observadores(as), os resultados eleitorais de 2004 não foram deter-minados pelos efeitos dramáticos da Guerra do Iraque ou pelo desempenhoda economia, mas sim pelas ditas “questões morais”, ou seja, o aborto e aagenda de direitos de gays, lésbicas, transgêneros, travestis, trabalhadores(as)do sexo, em especial o chamado “casamento gay”.

Neste contexto, a pesquisa desenvolvida por Françoise Girard, ao iden-tificar conexões entre políticas aparentemente desarticuladas, traz uma con-tribuição fundamental para compreensão da agenda “sexual” de George W.Bush e seus aliados e de seus impactos dentro e fora dos Estados Unidos.Girard constata que os efeitos perniciosos do primeiro mandato de Bushsão extensos e profundos e, sobretudo, que são de longo prazo. Ainda queos resultados das eleições de 2004 tivessem sido diferentes, esses efeitos nãoseriam eliminados, rápida e facilmente, por uma eventual administração do

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Partido Democrata, pois muitas medidas adotadas, entre 2001 e 2004, seenraízam em definições do Congresso, algumas delas aprovadas durante osanos Clinton.

A reeleição de Bush, lamentavelmente, amplia o significado dessa aná-lise, pois tudo indica que a agenda de Bush para sexualidade será intensifica-da nos próximos quatro anos. Sinais deste recrudescimento já se fazem visí-veis. Em novembro de 2004, logo após as eleições, uma rádio pública doEstado da Carolina do Norte recusou-se a divulgar um anúncio pago doIPAS, ONG internacional que trabalha com direitos reprodutivos e aborto eque também atua no Brasil. Segundo a direção da rádio, não era adequadodisseminar o termo “direitos reprodutivos” em razão de seu “conteúdo ide-ológico”. O anúncio só seria aceito se o texto se limitasse a usar o termosaúde reprodutiva.

Além disto, as mudanças em curso na composição da equipe de Bushtampouco sugerem uma evolução positiva. Por exemplo, Tommy Thompsonatual Secretário para Serviços Humanos e de Saúde será substituído porMichael Leavitt que foi diretor da Agência de Proteção Ambiental (EPA) noprimeiro mandato. Leavitt é mórmon e pai de cinco filhos. Sua gestão naEPA foi marcada pelo esforço sistemático em desmontar a regulaçãoambiental paulatinamente construída desde os anos 1980 nos EUA. RandallTobias, assessor de Bush para HIV/AIDS – cujas idéias e feitos são extensa-mente analisados por Girard – é apontado, hoje, como um candidato fortepara substituir James Wolfensohn na presidência do Banco Mundial.

Uma compreensão mais acurada das políticas de Bush no campo dasexualidade é também fundamental para organizações da sociedade civil,setores acadêmicos e meios de comunicação brasileiros. As questões que têmsido transformadas em alvo de ataque por parte da direita norte-americanasão também temas importantes no debate publico e na pauta nacional depolíticas públicas: aborto, união civil entre pessoas do mesmo sexo, trabalhosexual, tráfico de pessoas, HIV/AIDS. No Brasil, estas também são alvosprediletos do conservadorismo moral, cuja presença e influência se amplia-ram substantivamente, na sociedade e no aparelho político, ao longo da últi-ma década. Sobretudo, é crucial não perder de vista os efeitos – nem sempredebatidos ou antecipados – da cooperação técnica e financeira norte-ameri-cana no que diz respeito a estas várias questões.

Diferentemente de outros países em desenvolvimento, já há alguns anoso Brasil não recebe recursos da USAID para saúde reprodutiva e planeja-mento familiar. Neste sentido, as ações governamentais e não governamen-tais não têm sido nem serão afetadas pela chamada Regra Global da Morda-ça que restringe atividades relacionadas ao aborto. Entretanto, contamos comum volume importante de fundos da USAID para financiar ONGs que atuamno campo da prevenção do HIV/AIDS. Vale lembrar que, em setembro

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de 2003, um editorial do New York Times informou haver riscos de que osrecursos da USAID para HIV/AIDS no Brasil fossem suspensos em razãoda divergência entre as diretrizes brasileiras de prevenção e a prioridade dapromoção de abstinência preconizada pelo governo Bush. O acordo querege o ciclo atual de financiamento, depois de muitas idas e vindas, está pau-tado pelos princípios e critérios da política brasileira de prevenção. Entre-tanto, ele se encerra em 2005, e não é absurdo prever que em negociaçõesfuturas, a USAID – contaminada pelo clima “moral” do segundo mandatode Bush – poderá ser muito mais impositiva no que diz respeito à agenda daabstinência, por exemplo.

Uma segunda área que merece atenção é a da cooperação bilateralBrasil–Estados Unidos em relação a outros países em desenvolvimento.Girard, inclusive, faz uma breve análise crítica do acordo firmado em 2003entre os dois países para cooperação com os países africanos no campo doHIV/AIDS, que foi assinado quando da visita de Lula a Washington em ju-nho de 2003. Significativamente, o acordo não inclui recursos para preven-ção, pois isto implicaria em divergências de agendas. Num texto publicadona Folha de São Paulo – antes da reeleição de George Bush – o Embaixadornorte-americano no Brasil, Jonh Danilovich, mencionava o HIV/AIDScomo área prioritária para expansão da cooperação entre os dois países nospróximos anos.

Outro campo em que as posições norte-americanas podem afetar apolítica brasileira de resposta ao HIV/AIDS diz respeito à implementaçãodo Artigo 6 da Declaração de DOHA, que trata da flexibilização das regrasda OMC para propriedade intelectual (Acordo TRIPS) no caso específicode medicamentos, sempre e quando necessidades e emergência nacionais desaúde pública assim o exigirem. A possibilidade da quebra de patentes elicenciamento compulsório de antiretrovirais ganhou grande visibilidadeno contexto nacional após as declarações do coordenador do Programa Na-cional de DST e AIDS, Pedro Chequer – por ocasião do Dia Internacionalda AIDS de 2004. Segundo Chequer, a sustentabilidade da política brasileiraexige medidas drásticas nesta direção. Em seguida, ficou evidente não haverainda um consenso governamental robusto em relação à proposta. Este“impasse” pode ser instrumentalizado pelos grandes laboratórios farma-cêuticos que foram grandes financiadores da campanha de Bush, têm sidoclaramente beneficiados pela política norte-americana para o HIV/AIDS, etiveram o valor de suas ações aumentado na Bolsa de Nova York tão logo osresultados eleitorais de 2004 foram anunciados.

Finalmente, é preciso examinar mais de perto o debate e as políticasnacionais de intervenção no âmbito do tráfico de pessoas, em especial otráfico sexual. Esta é outra área de colaboração bi-lateral mencionada peloEmbaixador Danilovich como sendo prioritária. E, basta ler os jornais diá-

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rios para perceber o quanto, nos últimos dois anos, se intensificou a inter-venção do Estado neste campo, assim como que estas intervenções nemsempre se pautam pelo respeito aos direitos fundamentais dos atores envol-vidos, sejam eles vítimas ou perpetradores.

É, portanto, nossa expectativa que este relatório contribua para ummelhor conhecimento das inquietantes tendências observadas nos EUA emrelação às políticas de Bush para sexualidade. Mas também esperamos quesua leitura estimule o interesse e atenção no que diz respeito a efeitos nãoantecipados dessas mesmas políticas no contexto brasileiro.

Richard Parker(a), Sonia Corrêa(b),Cristina Pimenta(c) e Veriano Terto Jr.(d)

(a) Diretor-presidente da ABIA. Professor e chefe do departamento de Ciências Sóciomédicas na Escola de Saúde Pública daUniversidade de Columbia - Nova Iorque. Co-coordenador do Grupo Internacional de Trabalho sobre Sexualidade e PolíticasSociais (GITSPS ).(b) Coordenadora de Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos da Rede DAWN – Alternativas de Desenvolvimento com Mulheres por umaNova Era (Projeto associado ABIA/Dawn). Co-coordenadora do Grupo Internacional de Trabalho sobre Sexualidade e PolíticasSociais (GITSPS ).(c) Coordenadora geral da ABIA.(d) Coordenador geral da ABIA.

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O KAMASUTRA DE BUSH:MUITAS POSIÇÕES SOBRE O SEXO

RANÇOISE GIRARD*

INTRODUÇÃO1

A administração Bush chegou ao poder emjaneiro de 2001, empenhada em implementar umprograma moralista e ultradireitista em relaçãoà sexualidade e outros assuntos relacionados como tema. De fato, a primeira medida adotada peloPresidente Bush ao assumir a presidência foi res-tabelecer a “Regra Global da Mordaça” (Glo-bal Gag Rule – GGR), a qual exige que as orga-nizações não-governamentais de outros paísesneguem informação às mulheres grávidas sobreserviços de aborto legal e sacrifiquem seu direi-to de intervir no debate público sobre o aborto,sob pena de perder os recursos da cooperaçãonorte-americana para financiamento de ativida-des de planejamento familiar.

Durante as décadas anteriores, os setoresconservadores atuantes no Congresso já haviamimplementado parte desta agenda, freqüente-mente com apoio dos autoproclamados “mo-

derados” (como o Presidente Clinton). Seufoco, naquele momento, assim como agora, énormatizar e controlar expressões de sexualidade poucoortodoxas – ou seja, qualquer coisa que não seja aspráticas heterossexuais com o cônjuge oficial –,enfatizando papéis de gênero tradicionais. Ospobres, marginalizados e pessoas negras eram, econtinuam sendo, alvos especiais destas políticas.

As políticas voltadas para o controle dasexualidade, especialmente no caso dos gruposmais pobres, têm um longo precedente históri-co nos EUA. Um dos muitos exemplos é a Emen-da Hyde que, em 1973, suprimiu o financiamen-to federal para a maioria dos abortos, três me-ses após a Corte Suprema dos Estados Unidoster reconhecido o direito das mulheres ao abor-to no caso conhecido como Roe v. Wade.2 Po-rém, após as eleições parlamentares de 1994,quando ambas as casas do Congresso foram con-troladas pelos Republicanos, elementos adicio-

2 Para uma análise mais detalhada desta longa história, verRosalind Petchesky, Abortion and Woman’s Choice, 1990; LindaGordon, Woman’s Body and Woman’s Choice, 1990.

Implicações Globais das Políticas sobreSexualidade do Governo dos Estados Unidos

* Doutora em direito e especialista em direitos humanos.1 O trabalho neste texto foi completado em 4 de março de2004.

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nais do programa da direita para sexualidadeseriam adotados através da ação legislativa, comconsentimento dos Democratas. A Reforma daSeguridade Social, aprovada em 1996, se torna-ria a brecha mais utilizada para implementar estaestratégia, pois permitia focalizar os pobres, asmulheres e meninas solteiras (descritas como aspessoas com mais alto risco de ter filhos fora docasamento), assim como criaria medidas que pro-moveriam o casamento tradicional e abririamcaminho para a promoção da abstinência sexualantes do casamento.

Desde que o Presidente Bush chegou aopoder, em 2001, a Casa Branca passou a adotarpolíticas e regulamentos adicionais que, tanto noplano nacional quanto no plano internacional,reforçam as medidas existentes e comprometemsistematicamente os direitos humanos, no que serefere a questões da sexualidade. Foi necessário,contudo, algum tempo, antes que a amplitude eos efeitos negativos dessas políticas começassema ser plenamente compreendidos, inclusive porobservadores especializados. Porém, ao longodo ano de 2004, alguns aspectos do impulso“fiscalizador” de Bush em relação a questõessexuais se tornariam mais nítidos, entre outrasrazões, porque foram intensificados como parteda estratégia para mobilizar as bases políticasreligiosas e conservadoras para as eleições pre-sidenciais.

Este documento identifica e analisa as po-líticas e iniciativas da Administração Bush comrelação à sexualidade no plano doméstico norte-americano e no plano internacional. Ainda quemuitas destas medidas tenham sido propostaspelo Executivo, outras têm sido promovidas por“aliados” de Bush que atuam no Congresso (de-terminados deputados Republicanos fazem istoregularmente), com apoio da Casa Branca. Aanálise aqui desenvolvida também visa demons-trar como algumas políticas transversais da Ad-ministração Bush –, tais como a ênfase em servi-

ços prestados por iniciativas baseadas na fé (faith-based initiatives) –, amplificam o impacto das polí-ticas da Administração Bush no campo da sexua-lidade. O documento busca extrair, sobretudo,as implicações internacionais dessas políticas nosníveis nacionais e locais, e nas arenas políticasestratégicas – como é caso do Sistema das Na-ções Unidas –, para informar o trabalho dos ato-res sociais e políticos de outros países que estãocomprometidos com uma agenda de direitoshumanos e sexualidade.

DEFINIÇÕES E DIFERENÇAS

Esta análise se baseia nas definições sobresexualidade, saúde sexual e direitos sexuais uti-lizadas pela Organização Mundial de Saúde,3 asquais se fundamentam no direito internacional,4

em acordos internacionais sobre direitos sexuais,saúde reprodutiva e os direitos da mulher;5 e notrabalho de especialistas e organizações queatuam no campo da sexualidade. Essas defini-ções adotam um enfoque integral sobre a sexuali-dade e incluem temas como a orientação sexual,educação em sexualidade, reprodução e casamen-to. Com base nessas definições, este documento,portanto, abrange uma ampla gama de temas.

3 World Health Organization, Tenical Consultation on SexualHealth, Working Definitions, Geneva, 2002. Disponibilizado em:< w w w. w h o . i n t / r e p r o d u c t i v e - h e a l t h / g e n d e r /sexual_health.html#2>, consultado em 4 de setembro de 2003.4 Especificamente, o Pacto Internacional de Direitos Políticos eCivis de 1966, o Pacto Internacional de Direitos Sociais e Cultu-rais de 1966, e a Convenção Para a Eliminação da DiscriminaçãoContra a Mulher de 1979, e o Comentário Geral No 14 sobre odireito ao mais alto nível de saúde atingível, emitido pelo Co-mitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU em2000.5 Mais especificamente, o Programa de Ação da Conferência In-ternacional de População e Desenvolvimento de 1994 e a Plata-forma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher.Pequim, 1995.

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As definições da OMS (2002)

SexualidadeA sexualidade é uma dimensão central dos seres hu-manos ao longo de seu ciclo de vida. O conceitocontempla sexo, identidade e papéis de gênero, ori-entação sexual, erotismo, prazer, intimidade e repro-dução. A sexualidade é experimentada através dospensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes,valores, condutas, práticas, papeis e relações. No en-tanto, nem sempre todas essas dimensões são experi-mentadas ou expressadas. A sexualidade é influencia-da pela interação de fatores biológicos, sociológicos,sociais, econômicos, políticos, culturais, éticos, legais,históricos, religiosos e espirituais.

Saúde SexualA saúde sexual é um estado de bem-estar físico, emo-cional, mental e social relacionado à sexualidade; nãoé somente a ausência de doença, disfunção ou enfer-midade. A saúde sexual requer um enfoque positivoe de respeito à sexualidade e relações sexuais, assimcomo a possibilidade de viver experiências seguras,livres de coerção, discriminação e violência. Para quea saúde sexual seja alcançada e sustentada, os direitossexuais de todas as pessoas devem ser respeitados,protegidos e implementados.

Direitos SexuaisOs direitos sexuais abrangem direitos humanos re-conhecidos nas leis nacionais, documentos internaci-onais sobre direitos humanos e outros documentosde consenso internacional. Incluem que, todas as pes-soas possam, livres de coerção, discriminação e vio-lência, ter direito a:- Ao mais alto nível de saúde atingível com relação à

sexualidade, incluindo o acesso a saúde sexual (in-clusive os serviços de saúde reprodutiva);

- Procurar, receber e disseminar informação em re-lação à sexualidade;

- Educação em sexualidade;- Respeito pela integridade corporal;- Opção de parceiro(a);- Decidir sobre ser ou não sexualmente ativo(a);- Relações sexuais consensuais;- Uniões consensuais;- Decidir ter ou não filhos, e quando tê-los; e- Procurar uma vida sexual satisfatória, segura e

prazerosa.

O exercício responsável dos direitos humanos requerque todas as pessoas respeitem os direitos das outras.

A integridade corporal mencionada na de-finição de direitos sexuais é fundamental para aliberdade sexual e reprodutiva. Pode ser defini-da como “o direito à segurança e controle sobrenosso corpo”, incluindo “um direito afirmativode gozar do total potencial de nosso corpo, sejapara a saúde, procriação ou sexualidade”.6

A sexualidade deve ser diferenciada dogênero; e o gênero, das mulheres. O que consti-tui o “gênero” é ainda, hoje, objeto de muitosdebates conceituais. Um dos enfoques mais in-fluentes e conhecidos define gênero como a cons-trução social e cultural do sexo, ou seja, o quesignifica ser homem ou mulher em um determi-nado momento e lugar, e quais atributos, papéise condutas são designados e esperados de cadasexo em contextos específicos.7 A sexualidade eo gênero interagem e, inclusive, se sobrepõem.No entanto, sexualidade e gênero devem ser ana-lisados de forma separada de modo a permitir,por exemplo, que possam ser analisadas as ma-neiras pelas quais as normas sexuais afetam a ex-periência de ser homem ou de ser mulher e, reci-procamente, compreender como os papéis degênero afetam a sexualidade.8 Essa distinção éfundamental, entre outras coisas por que obser-va-se uma tendência crescente, por parte de co-mentaristas e pesquisadores, no sentido de utili-zar “gênero” como sinônimo de “mulher”, ofus-cando portanto a experiência dos homens, bem

6 Sonia Corrêa e Rosalind Petchesky, “Reproductive and SexualRights: A Feminist Perspective”, in: Gita Sen, AdrienneGermain, Lincoln C. Chen (eds.). Population Policies Reconsidered,1994, p. 113.7 A formulação de que existem apenas “dois gêneros” tem sidocriticada como sendo simplista. Com certeza, parece inadequadapara tratar a realidade dos transgêneros. A análise de gênerotambém pode borrar as diferenças entre as mulheres, a não serque esteja acompanhada pela análise de outros fatores como oestado sócio-econômico, raça, orientação sexual, idade ou nacio-nalidade.8 Ver, e.g., Carole S.Vance (ed.), Pleasure and Danger; ExploringFemale Sexually, Routledge and Kegan Paul, 1984, p. 9.

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como das pessoas cuja identidade e experiênciasexual não coincide com a dicotomia da normaheterossexual.9

As políticas desenhadas para promover aheterossexualidade compulsória no casamentofreqüentemente estão relacionadas a políticasdirecionadas para reforçar ou reativar os papéistradicionais de gênero. Mas há diferenças impor-tantes quando se examinam mais de perto as ini-ciativas que vêm sendo tomadas com este obje-tivo. Por exemplo, existem políticas que buscamreforçar as noções tradicionais da masculinida-de e feminilidade, mas que não consideram umproblema o fato que homens casados tenhamrelações extra-maritais. Já as políticas mais con-servadoras promovem ativamente as relaçõesmonogâmicas mútuas dentro do casamento, querseja para as mulheres, quer seja para os homens.As políticas da Administração Bush combinamambas orientações.

ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DAS POLÍTICAS

DE BUSH SOBRE SEXUALIDADE

Defensores dos direitos reprodutivos nosEstados Unidos, e no mundo, têm sido bem su-cedidas na denúncia quanto as implicações daspolíticas de Bush no que diz respeito à auto-de-terminação reprodutiva das pessoas, como é ocaso dos ataques da direita contra o aborto ouda suspensão dos recursos financeiros para oFNUAP. Contudo, muitos ataques da direita emrelação, mais especificamente, à sexualidade nãotêm sido objeto do escrutínio público. A dimen-são mais surpreendente destes ataques, inclusive

para observadores bem informados, é a sua am-plitude e profundidade. Outro aspecto funda-mental é que as estratégias de Bush neste campoforam se conformando a partir de políticas pre-viamente legitimadas. A política atual da CasaBranca tem sido extremamente ativa no que diz res-peito a uma gama variada de temas que direta ouindiretamente, estão relacionados à sexualidade:a educação em sexualidade, a prevenção do HIV,o casamento e o tráfico sexual. Novas medidas eepisódios relacionados a estes temas podem seridentificados, na mídia e na Internet, a cada diaque passa. Basta examinar o que ocorre em rela-ção ao tráfico sexual, para verificar que existemdezenas de iniciativas e medidas que estão sendoadotadas pela administração Bush e seus aliados.Quando se trata de sexualidade, praticamentenenhuma área ou aspecto foi excluído da atualagenda de políticas públicas dos EUA.

Os autores destas medidas têm sido recor-rentemente as mesmas instituições e pessoas, den-tre elas:

• A própria Casa Branca, com Karl Rove, asses-sor especial de Bush, como o principal prota-gonista;

• Importantes membros da Administração noperíodo 2002–2004 como, por exemplo: o Se-cretário de Saúde e Serviços Humanos TommyThompson, e seus assessores Bill Steiger (As-sessor Especial), Claude Allen (Subsecretáriode Saúde Adjunto e Serviços Humanos) e WadeHorn (Secretário de Benefícios Sociais, descri-to geralmente como o “guru matrimonial” daAdministração Bush);

• O Representante Christopher Smith (Republi-cano – Nova Jersey), Joseph R. Pitts (Republi-cano da Pensilvânia), Marelyn Musgrave (Re-publicana do Colorado), Patrick Toomey (Re-publicano da Pensilvânia), Melissa Hart (Repu-blicana – Pensilvânia) e Mark Souder (Repu-blicano – Indiana);

9 Ver Gary W. Dowsett, “Some Consideration on Sexuality andGender in the Context of AIDS”, Reprodutive Health Matters203; 11(22): 21-29, sobre o predomínio da análise hétero-normativa de “dois gêneros” na atual compreensão do HIV, esua ênfase na transmissão heterossexual e a vulnerabilidade dasmulheres as infecções, em detrimento de uma análise dos inte-resses sexuais, culturas sexuais e economias sexuais como fato-res em jogo na disseminação da epidemia.

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• O Senador Rick Santorum (Republicano daPensilvânia, declarado opositor do aborto edos direitos para lésbicas e gays).

Contribuições na mesma direção têm sidoavançadas pelas mais diversas organizações dasociedade civil como é o caso de:

• O Conselho de Pesquisa sobre Família (FamilyResearch Council), Foco na Família (Focus onthe Family), a Coalizão para os Valores Tradi-cionais (Traditional Values Coalition), as Mu-lheres Preocupadas da América (ConcernedWomen of América), o Foro Wilberforce e osMinistérios Congregacionais para as Prisões(que são muito ativos em relação ao casamen-to gay e ao aborto);

• A hierarquia da Igreja Católica norte-america-na e a Santa Sé;

• John Klink, o principal estrategista da Santa Séna Conferência Mundial sobre População eDesenvolvimento em 1994 (CIPD), na IV Con-ferência Mundial sobre a Mulher, em 1995, nasnegociações da CIPD +5, Pequim +510 assim comonas revisões de dez anos das mesmas conferên-cias. Klink é também membro do Comitê Na-cional Republicano e no momento um integran-te habitual das delegações dos Estados Unidosque participam de negociações na da ONU;

• Grupo Internacional das Pesquisas sobre Po-pulação (Population Research International),um pequeno grupo de pesquisa contra o pla-nejamento familiar que criou e legitimou as afir-mações falsas de que o FNUAP promoviaabortos forçados na China;

• Vida Humana Internacional (Human LifeInternational), agressivo grupo antiaborto eanti-semita, cujo braço na ONU é o InstitutoCatólico para a Família e os Direitos Humanos

(Catholic Institute for the Family and HumanRights também conhecido como C-Fam).

As conexões íntimas entre a Administra-ção Bush, a extrema direita e grupos religiososconservadores, alavanca uma agenda extensa eintensa de ataque aos direitos sexuais e a igualda-de de gênero. Não se trata apenas, como suge-rem as análises correntes, de uma “preocupaçãomoral” em relação a temas considerados contro-vertidos como o aborto e o casamento gay. Noâmbito doméstico norte-americano a coalizão dedireita reúne interesses múltiplos, num espectrovai dos bispos católicos aos pequenos gruposlocais “pró-família”. No âmbito internacional, asexualidade e os direitos da mulher também seconverteram, em anos recentes, em objeto deataque por parte de atores muito díspares, numarco amplo de alianças que vai do Papa aos re-presentantes diplomáticos do Egito e Irã.

Embora as ações da Administração Bushsejam sistematicamente agressivas tanto no nívelnacional quanto no nível internacional, as infor-mações sobre o assunto e as reações dos meiosde comunicação norte-americanos têm sido mui-to débeis e brandas. De maneira geral, a retóricada mídia tem se caracterizado seja pela dissimu-lação, seja por um apelo aos valores tradicionaisque muitos americanos apóiam. Por exemplo,quando o Presidente Bush propôs mudar a Cons-tituição com o objetivo de proibir permanente-mente o casamento gay, a mídia deu grande des-taque ao fato de que ao fazer esta proposta, Bushhavia invocado a dignidade individual e expres-sado sua angústia por ter sido obrigado a atuardrasticamente, em resposta aos “juízes ativistas”(que estavam autorizando o casamento gay emalguns Estados). Da mesma forma, a campanhade mídia patrocinada pelo Partido Republicanocontra o aborto tardio (Partial Birth Abortion)fazia menção a “crianças que estavam a poucoscentímetros do nascimento”, quando, de fato, se

10 Revisão de cinco anos da IV Conferência Mundial sobre aMulher, realizada em Pequim, China, em 1995.

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trata de fetos não viáveis, inclusive por que emmuitos casos padecem de anomalias incompatí-veis com a vida.

Esse discurso sórdido, acoplado às políti-cas de guerra e ao abandono quase absoluto deposições progressistas por parte da representa-ção democrata no parlamento tem dificultado otrabalho das e dos ativistas norte-americanos emfavor dos direitos reprodutivos e sexuais. Paraativistas de outros países, é ainda mais difícil de-cifrar o impacto das políticas norte-americanaspara sexualidade sobre o trabalho que desenvol-vem, quer seja no que diz respeito aos constran-gimentos implícitos em financiamentos oferecidospela Agência Internacional para o Desenvolvi-mento dos Estados Unidos (USAID), quer sejano que se refere ao ambiente político mais am-plo em que atuam.

É preciso dizer ainda que a estratégia daadministração Bush para a sexualidade se arti-cula com outras premissas de sua filosofia ultra-conservadora, como por exemplo a idéia de queos pobres são responsáveis por sua situação eque, por esta razão, a assistência do Estado aosgrupos excluídos deve ser reduzida ao mínimo.É, de fato, marcante como os ultra-conservado-res têm utilizado os programas federais deseguridade social e de saúde destinados às pes-soas de baixa renda como à plataforma a partirda qual vão sendo implementados projetos decontrole da sexualidade. Em tal contexto, a pro-moção do casamento heterossexual não tem ape-nas a intenção de reativar um modelo moralistaem relação à sexualidade. Visa também excluiras mulheres chefes de domicílios (solteiras) e seusfilhos dos programas sociais. Em lugar de bene-fícios, a política preconiza o casamento. A estra-tégia de Bush se apóia em noções tradicionaissobre os papéis dos homens e mulheres na famí-lia e na sociedade. Essa perspectiva afirma queas mulheres e crianças devem depender econo-micamente dos homens para seu sustento, e que

o anseio principal das mulheres deve ser “vivercomo esposas e mães”. Um exame mais fino dasposições de Bush sugere que essa “crença” é, defato, a motivação principal subjacente ao ataquecontra o casamento entre pessoas do mesmosexo, à restrição ao aborto e ao acesso àanticoncepção (que permite a homens e mulhe-res controlar suas vidas sexuais), assim como àsmedidas de repressão do trabalho sexual.

As estratégias de Bush sobre a sexualidadetambém se combinam com outras agendasprioritárias do pensamento ultra-conservador. Amais conhecida é aquela que emana dos gruposreligiosos, mas ela não é a única. Para a Casa Bran-ca, tão importante quanto responder a demandados grupos fundamentalistas nacionais é atenderos interesses financeiros das corporações. A ilus-tração mais evidente desta “afinidade eletiva”pode ser identificada na iniciativa global de res-posta ao HIV/AIDS, aprovada pelo Congressoem julho de 2003. A iniciativa enfatiza o acesso atratamento e, por esta razão, foi muito bem re-cebida pelo público em geral. Porém, a política,de fato, beneficia as companhias farmacêuticasna medida em que define recursos financeirospara a aquisição de fármacos de marca, em de-trimento dos genéricos. Por outro lado, nas me-didas de prevenção, privilegia a abstinência e su-tilmente ataca práticas sexuais não maritais e nãoheterossexuais.

Finalmente, a Administração Bush vem re-petidamente recusando evidencias cientificas quecontradizem sua agenda moralista conservado-ra. O governo tem pressionado cientistas e pes-quisadores que desenvolvem trabalhos cujos re-sultados divergem de suas orientações morais.Esta frente de embates é possivelmente aquelaonde se revela com maior clareza a natureza ide-ológica da agenda governamental que pode edeve ser caracterizada como parte de uma cam-panha sistemática para controlar a sexualidadedentro e fora dos EUA.

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No cômputo final, esta “campanha” abran-ge um vasto conjunto de políticas, cobrindoáreas tão diversas quanto a saúde, a educação, osbenefícios sociais, o comércio e a cooperaçãoexterna. Suas conseqüências irão afetar, duranteos próximos anos, cidadãs e cidadãos norte-ame-ricanos e de outros países. Resistir a estas políti-cas e, mais especialmente, reverter seus efeitosnefastos vai requerer muito tempo, investimentosfinanceiros volumosos e muita energia política.

AS POLÍTICAS

Educação em sexualidade

Na frente nacional, a administração Bushadotou, de forma enérgica, políticas de promo-ção da abstinência.11 Para citar a Claude Allen,Subsecretário de Saúde e Serviços Humanos:

Acreditamos que todos os jovens devem se abster dosexo até o casamento. Se isso falha, a fidelidade é asegunda proteção para não contrair doenças, a últimaopção é o uso de preservativo.12

Nos EUA, políticas de abstinência foraminicialmente implementadas em 1981 sob a Ad-ministração Reagan quando se aprovou a Leisobre a Vida Familiar dos Adolescentes(Adolescent Family Life Act, AFLA). Duranteo governo Clinton, a política seria ampliada pe-los Republicanos – que controlaram a Câmara

de Deputados a partir de 1994 – sob o guardachuva da reforma da seguridade social aprova-da em 1996, a qual, deve-se dizer, foi sancionadasem maiores problemas pelo executivo.13 O arti-go da reforma da seguridade social federal quetrata da abstinência-até-o-casamento foi incluído naseção 510(b) da Lei da Previdência Social. O tex-to obriga os estados que aceitem financiamentofederal a aderir a uma definição estrita de oitopontos referentes à promoção da abstinência.Entre outras coisas, o documento recomendaensinar que a atividade sexual fora do casamentopode ter efeitos nocivos, exclui informaçõesquanto aos benefícios que os anticoncepcionais,incluídos os preservativos, podem ter para a saú-de, ou seja, a prevenção da gravidez indesejada edas doenças sexualmente transmissíveis (DSTs),e do HIV/AIDS (ver quadro abaixo).

Seção 520(b) do Capítulo da Lei de SeguridadeSocial, P.L. 104-193Para os objetivos desta seção, o termo “educaçãosobre abstinência” significa programas educativos ede motivação que:A) Tenham como propósito exclusivo ensinar as van-

tagens sociais, psicológicas e de saúde que se al-cançarão com a prática da abstinência sexual;

B) Ensinam que a prática da abstinência sexual forado casamento é o que se espera de toda criançaem idade escolar;

C) Ensinam que a abstinência sexual é a única formasegura de evitar a gravidez fora do casamento, asdoenças sexualmente transmissíveis e outros pro-blemas de saúde correlatos;

D) Ensinam que a fidelidade mútua no contexto docasamento é a norma esperada enquanto ativida-de sexual;

E) Ensinam que é provável que a atividade sexualfora do casamento tenha efeitos psicológicos efísicos negativos;

F) Ensinam que é provável que, ter filho fora docasamento, trará conseqüências nefastas para a cri-ança, os pais e a sociedade;

G) Ensinam aos jovens como rechaçar insinuaçõessexuais e como o álcool e as drogas aumentam avulnerabilidade a assédios sexuais, e

H) Ensinam a importância de ser auto-eficaz antesde se envolver em atividades sexuais.

11 A política Gente Saudável 2010 (Healthy People) da Administra-ção Bush, coordenada pelo Departamento de Saúde e Serviços,adotou vários objetivos nacionais sobre abstinência. Por exemplo,procura aumentar a porcentagem de adolescentes de 15 a 17 anosque praticam abstinência; a meta é 75% para ambos os sexos, emcomparação com uma linha base definida em 1995 de 57% e62% respectivamente. Ver <www.healthypeople.gov> e para asmetas, <www.wonder.cdc.gov/data2010/focus.htm> sob oobjetivo 09, Planejamento Familiar para Adolescentes e Jovens.12 Washington Post, “Bush Policies Huert AIDS Prevention,Groups Say Administration Accused of Disinformation onCondom Use, Harassment Audist of Education Programs”,October 1, 2002, página A06.

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Esse dispositivo da reforma da seguridadesocial restringe diretamente a habilidade dos edu-cadores para oferecer aos jovens uma educaçãointegral sobre sexualidade. Este efeito, inclusive,era exatamente o que os autores, liderados peloRepresentante da Flórida, E. Clay Shaw, tinhamem mente quando propuseram esse conteúdo:

Independentemente do que se pense quanto à norma deque não se deve fazer sexo fora do casamento,acreditamos que a linguagem legal e... a intenção doCongresso (são) claras... Essa norma visa posicionar oCongresso do lado da tradição social – pouco importaque alguns observadores acreditem que hoje esta tradiçãoestá fora de moda – segundo a qual o sexo deve serconfinado às relações entre pessoas casadas. O ponto emquestão é exatamente que as práticas e normas em usoem muitas comunidades do país estão em conflito com opadrão exigido pela lei.14

Quando se considera que, 52% dos ado-lescentes solteiros entre 15 e 19 anos têm rela-ções sexuais nos Estados Unidos,15 e que a idademédia para o primeiro casamento é 28,6 para oshomens e 26,6 para as mulheres,16 os comentári-os do Representante Shaw ilustram o caráter fun-damentalmente religioso e antidemocrático des-tas políticas. Os arquitetos da reforma daSeguridade Social desconsideraram expressa-mente os padrões e práticas sexuais atuais sim-plesmente por que pretendem impor seus pró-

prios pontos de vista morais e religiosos sobre atotalidade da sociedade.

Em 2000, o Congresso acrescentou US$ 50milhões para os programas de abstinência-até-o-casamento (para um período de dois anos), sob oprograma “Projetos Especiais Comunitários deEducação para a Abstinência de RelevânciaNacional e Regional (SPRANS)” operados peloBureau de Saúde Materno-Infantil do Depar-tamento Serviços Humanos e de Saúde(Department of Health and Human Services). OsSPRANS também incluem uma definição res-trita de oito pontos sobre a promoção da absti-nência, mas obrigam a uma aderência mais estritaquanto à “ensinar” os oito pontos. O programafocaliza especificamente adolescentes entre 12 a18 anos. Também, desconsidera os Estados, re-passando recursos diretamente aos grupos co-munitários, incluindo-se aqueles organizados combase na fé (faith-based organizations). Não surpre-endentemente, os SPRANS se converteram naplataforma favorita dos conservadores para pro-mover a abstinência sexual.

Outro grande perigo é que a educação paraa abstinência nega aos jovens liberdade de infor-mação e expressão, e limita seu acesso aos servi-ços de saúde. Também desestimula entre os jo-vens o uso de anticoncepcionais, pois discute osmétodos modernos enfatizando suas taxas de fra-casso e de risco (freqüentemente exagerados) ecensurando a informação sobre o uso correto eefetividade.

Uma tática muito usada pelos partidáriosda educação para a abstinência é vincular o fra-casso do preservativo frente à prevalência relati-

13 Em 1995, Representantes Republicanos na Câmara apresen-taram seu projeto de lei de reforma da Seguridade Social (H.R.4) para se contrapor ao projeto original de Clinton, e sua versãose converteu no esboço da legislação finalmente aprovada (Leide Reconciliação de Responsabilidade Pessoal e Oportunidadede Trabalho de 1996, H.R. 3739, Lei Pública 104-193, “Lei deReforma de Seguridade Social de 1996”).14 R. Hanskins, C.S. Bevan, Implementing the Abstinence EducationPorvision of the Wekfare Reform Legislation. Escrito por pessoasdo Congresso para autores da legislação. Washington, DC:Capitol Hill, 1996; citado em Marcela Howell, “The Future ofSexuality Education: Science or Politics?” Transition, Volume12, No 3, Março 2001, disponível em <www.advacatesforyouth.org/publications/transitions/transitions12031.htm>, revisa-do em 13 de outubro de 2003.

15 J.C. Abma, F.L. Sonenstein, Sexual Activity and ContraceptivePractices Among Teenagers in the United State, 1988 and 1995,National Center for Health Statistics, Vital Health Statistics 23(21), 2001.16 R. Schoen, N. Standish, “The retrenchment of marriage:results from marital status life tables for the United State, 1995”,Poppulation Development Review 2001; 27:553-63.

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vamente alta do vírus do papiloma humano(HPV) em pessoas sexualmente ativas.17 No en-tanto, lançar mão do HPV para atacar aefetividade do preservativo é uma estratégiaenviesada, pois o HPV genital pode ser transmi-tido por exposição a superfícies como a pele oumucosas infectadas, que ficam expostas e quenão são protegidas pelo preservativo. Ospartidários da abstinência focalizam essa supos-ta incapacidade do preservativo para protegerdo HPV como argumento para questionar aefetividade do preservativo para proteger con-tra HIV.18 Esse tipo de argumento é particular-mente chocante quando se sabe que a efetividadedos preservativos para prevenir a infecção peloHIV foi cientificamente comprovada.19 O HPV,que já era tema favorito de grupos religiosos dedireita nos Estados Unidos há algum tempo, setornaria, em anos recentes um tópico de desta-que na página web do Centro de Controle e Pre-venção de Doenças (CDC).20

Essas afirmações sem fundamento estãosendo utilizadas pelos defensores da educaçãopara a abstinência quando argumentam que osexo fora do casamento tem efeitos nocivos. Elasestigmatizam as jovens lésbicas, gays, bissexuaise transexuais (GLBT) (que não podem casar-secom as pessoas que amam), assim como crian-ças, pais e mães solteiros e adolescentes que têmexperiências sexuais, pois segundo a ótica con-servadora, estas pessoas são vistas como “fra-cassadas”, já que não conseguiram se manter cas-tas. Vale lembrar, inclusive, que a norma propostapelos defensores da abstinência, não coincide,evidentemente, com a conduta de um númerosignificativo de adultos – incluindo-se aí os mem-bros do Congresso, Presidentes e ex-Presiden-tes, membros do Gabinete e suas famílias.

Neste contexto, a aprovação da reformada Seguridade Social teve um feito imediato.Enquanto em 1988 apenas 2% dos professoresde educação em sexualidade ensinavam a absti-nência como a única maneira de prevenir a gra-videz ou as doenças sexualmente transmissíveis,em 1999 este percentual atingia 23%.21 Atualmen-te, todos os estados, excluindo a Califórnia, soli-citaram e receberam fundos destinados a pro-mover a abstinência segundo a regulamentaçãoda nova Lei da Seguridade Social. O orçamentofeito por Bush para o ano fiscal 2003 solicitouum aumento de 33 milhões de dólares paraSPRANS. Este patamar foi mantido para o anofiscal 2004, elevando-se o total dos recursos fe-derais para os programas de abstinência-até-o-casamento para 135 milhões de dólares.22

20 Por exemplo o Fact Sheet “Genital HPV Infection”, publica-do em maio de 2001. <www.cdc.gov/nchstp/dstd/Fact_Sheets/FactsHPV.htm>, e diferentes News Updates querecalcam a abstinência como a única maneira segura de evitarVHP, como <www.thebody.com/cdc/news_updates_archive/oct8_02/arizona_hpv.html>, publicado em outubro de 2002.21 E. Darroch, et al. “Changing Emphases on SexualityEducation in U.S. Public Secondary Schools, 1988-1999”, FamilyPlanning Perspectives, vol. 32, no 5, p. 204-211, 265.

17 A prevalência mundial de HPV é estimada em 9 e 13%, ou630 milhões de casos, sendo a mais comum das doenças sexu-almente transmitidas. Cinco, dentre as 30 variantes de HPVgenital, demonstram atividade pré-cancerosa, que poderia deri-var em câncer cervical se não detectado por exame Papanicolause feitos tratamentos preventivos. O câncer cervical tem umaincidência anual de 470000 casos, sendo que 80% em países emdesenvolvimento onde o Papanicolaus e o tratamento preven-tivo não estão disponíveis. Workd Health Organization, VaccinesAgaints Human Papillomavirus, disponível em: <www.who.int/vaccines/en/hpvrd.shtml>, consultado em 14 de fevereiro de2004. Contudo é preciso dizer que grande parte das infecçõespor HPV tem regressões espontâneas e não deriva em câncercervical.18 C. Wetztein, “Unfamiliar sexual disease has no cure, spreadseasily”, Washington Times, Nov. 7, 2002 (argumentando o casocontra os preservativos); L. Marr, Sexually Transmitted Diseases:A Physician Tells You What You Need to Know, Baltimore, Md:Johns Hopkinns University Press, 1998 (argumento pro- pre-servativos).19 World Health Organization, Effectiveness of male latex condomsin protecting against pregnancy and sexually transmitted infection, Factsheet No 243, June 2000, disponível em: <www.who.int/mediacentre/factsheets/fs243/en/print.html>, consultado em10 de fevereiro de 2004.

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De outro lado, grupos que se opõem à pers-pectiva da abstinência e que promovem a educa-ção integral para a sexualidade, seja no nívelnacional, seja no nível internacional, têm sidosubmetidos pela Casa Branca de Bush a “audito-rias”. Em 2003, a ONG “Advogados da Juven-tude” (Advocates for Youth), foi investigada emtrês ocasiões, duas vezes pelo Centro de Con-trole e Prevenção de Doenças (CDC) e uma vezpelo Bureau Geral de Auditoria. O CDC inves-tigou, aparentemente, acusações de “possível usoinadequado dos fundos para fazer lobby”. Istose deu em resposta às queixas do DeputadoJoseph R. Pitts (Republicano da Pennsylvania) –,um reconhecido partidário de programas de abs-tinência –, sobre uma página web que argumentacontra o aumento dos fundos para programas deabstinência. A ONG, por sua vez, informa queantes de 2003, durante quinze anos, haviam rece-bido fundos do CDC sem nenhuma solicitaçãode investigação ou auditoria. O Conselho de In-formação e Educação em Sexualidade nos Esta-dos Unidos (SIECUS) também foi objeto de umaauditoria federal pela primeira vez em 2003.23

O próprio CDC tem estado sob investiga-ção por parte da direita. Em 2002, o CDC mo-dificou informações oferecidas na sua página webpara satisfazer as preferências da Casa Branca noque diz respeito à educação para a abstinência.A primeira modificação foi retirar uma páginasobre “Programas que Funcionam”, um recursoelaborado para educadores no qual se descreviamdiferentes programas de educação em sexualida-de para adolescentes. A segunda modificação sedeu em relação a “Dados sobre Preservativos eseu uso na Prevenção da Infecção pelo HIV”,

um texto que ficou fora da página por várias se-manas, antes de reaparecer com mudanças signi-ficativas. A página original descrevia como usaro preservativo adequadamente e discutia a eficá-cia de diferentes tipos de preservativos. Já a ver-são revisada começa com uma declaração sobreabstinência e omite instruções sobre o uso dopreservativo. Mas, ainda assim, afirma que ospreservativos são altamente efetivos contra a in-fecção pelo HIV.24

Vale lembrar ainda que antes de Bush apolítica da abstinência, na prática, se restringia àpolítica nacional, mas depois de 2001, debutariacomo componente da política externa dos Esta-dos Unidos. Isto acorreu por ocasião da SeçãoEspecial da Assembléia Geral da ONU sobreHIV/AIDS (UNGASS) em julho de 2001, sen-do que a mesma agenda seria retomada na SeçãoEspecial sobre a Infância (processo de revisãode dez anos da Cúpula da Infância) em maio de2002. Durante ambas as negociações, a delega-ção dos Estados Unidos, trabalhando em parce-ria com a Santa Sé, fez inúmeras tentativas paraincluir nos textos finais, linguagem de promoçãoda abstinência, que excluía outras modalidadesde educação em sexualidade. Neste esforço, osEstados Unidos se aliaram a países como Sudão,Líbia, Egito, Síria e Iran. A delegação norte-ame-ricana tinha conseguido incluir a abstinência emum parágrafo da Declaração de Compromissossobre HIV/AIDS. Mas, em contrapartida, foiobrigada a aceitar uma referência explícita ao usodos preservativos masculinos e femininos.25 O Pla-no de Ação que resultou da Revisão de Dez Anosda Cúpula da Infância, não menciona a abstinên-cia, mas, nesta oportunidade, os EUA criaram um

22 <www.nfprha.org/pac/factsheets/absunlessmarried.asp>,and <www.whitehouse.gov/omb/budget/fy2004/pdf/budget/hhs.pdf>.23 <www.washingtonpost.com/wp-dyn/articles/A551-2001Aug15.html> e <story.news.yahoo.com/news?tmpl=story&u=/ap/20030816/ap_on_he_me/aids_condoms_1>.

24 <www.house.gov/reform/mim/inves_admin_hhs_info.htm> e <www.cdc.gov/hiv/facts/condoms.htm, consul-tada em 15 de outubro de 2003.25 United Nations, Declaration of Commitment on HIV/AIDS: Global Crisis – Global Action, 2001, Doc. A/RES/S-26/2, para.52.

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grande quid pro quo em relação às poucas recomen-dações gerais sobre a saúde sexual e reprodutivados adolescentes que constam do documento.

Entre 2002 e 2004 ocorreram uma dezenade negociações na ONU, nas quais a administra-ção Bush promoveu sistematicamente a abstinên-cia como estratégia para prevenção do HIV/AIDS. Até o momento os EUA têm tido poucoêxito em legitimar esta pauta em documentosintergovernamentais. Mas, ao final de cada umadessas muitas negociações, suas delegações apre-sentaram longas declarações de reserva aos tex-tos adotados. Por exemplo, ao final da V Confe-rência sobre População da Ásia e do Pacíficorealizada em Bangkoc em dezembro de 2002, adelegação norte-americana leu uma declaraçãoonde, entre outras coisas, se afirma que:

Os Estados Unidos compreendem que qualquerrecomendação de promoção do uso do preservativo ou deoutros métodos de planejamento familiar paraadolescentes, neste ou em qualquer outro documento daONU ou resultante de conferências da ONU devemser interpretados no contexto do apoio à e da promoçãoda abstinência como a opção preferencial, maisresponsável e saudável, para adolescentes solteiros.

A abstinência como política internacionaldos Estados Unidos se tornaria ainda mais pal-pável desde a aprovação, em maio de 2003, dalei que estabelece prioridades e critérios paracooperação financeira ao combate do HIV/AIDS, Tuberculose e Malaria e outros Propósi-tos (Lei HIV/AIDS).26 A legislação em questãodesigna US$ 15 bilhões para a prevenção e trata-mento do HIV/AIDS na África e Caribe, cum-prindo as promessas do Presidente Bush no seudiscurso sobre o Estado da Nação, pronuncia-do em 23 de fevereiro de 2003. A legislação de-fine as bases para o “Plano de Emergência do

Presidente para Ajuda contra a AIDS”(PEPFAR), divulgado por ocasião do discurso.

A Casa Branca de Bush tem utilizado,deliberadamente, o exemplo da Uganda como“demonstração” de que a abstinência é a chavepara a prevenção do HIV. A Lei HIV/AIDS in-clui as seguintes conclusões sobre a situação deUganda e sua política sobre HIV:

Seção 2 Conclusões

(20) (A) Uganda experimentou a diminuição maisimportante na taxa de HIV em relação a quaisquerpaíses da África, incluindo uma diminuição na taxaentre mulheres grávidas de 20,6% (em 1991) para7,9% (em 2000).

(B) Uganda realizou essa importante mudança porqueo Presidente Yoweri Museveni desde muito cedo foi vocal,quebrou tabus culturais de décadas e mudou arraigadaspercepções sobre a doença. Sua liderança serve comomodelo para líderes políticos africanos e para outrospaíses em desenvolvimento sobre como mobilizar suasnações, incluindo organizações civis, associações deprofissionais, instituições religiosas, empresas etrabalhadores para combater o HIV/AIDS.

(C) O bem sucedido programa de tratamento e prevençãoda AIDS em Uganda é conhecido como o modelo ABC(Abstain, Be faithful, use Condoms): “Abstenha-se, sejafiel, e use preservativo”, nessa ordem de prioridade. AJamaica, a Etiópia e o Senegal também vêm aplicandocom êxito o modelo ABC. Desde 1986, a Ugandaconseguiu mudanças significativas na conduta sexual.Desenvolveu um programa de baixo custo com amensagem: “Deixe de ter múltiplos parceiros, seja fiel.Adolescentes, esperem até o casamento para praticar sexo”.

(D) Em 1995, 95% das pessoas em Ugandainformavam ter tido apenas uma ou nenhuma parceriasexual durante o último ano, e a proporção dos jovenssexualmente ativos diminuiu significativamente entrefinais dos anos 80 e meados dos anos 90. A maiordiminuição percentual de infecções de HIV e demudanças no comportamento sexual aconteceu na faixaetária de 15 a 19 anos. O êxito de Uganda demonstraque a mudança comportamental, através do modeloABC é uma estratégia bem sucedida para prevenir apropagação do HIV.

26 Act to Provide Assistence to Foreing Countries to CombatHIV/AIDS, Tuberculosis and Malaria, and a for OtherPurposes, Public Law 108-25 (“HIV/AIDS Act of 2003”).

20

A partir das evidências atualmente dispo-níveis, todos os analistas concordam que Ugandaconseguiu uma significativa diminuição naprevalência e incidência do HIV desde a décadade 1980. Contudo, o texto da Lei HIV/AIDS deBush distorce a situação de Uganda de modo apromover os objetivos dos partidários de “abs-tinência-até-o-casamento” e da monogamia. Da-dos estatísticos enviesados são utilizados parafomentar essa agenda ideológica e obscurecer seusverdadeiros propósitos.

Por exemplo, a conclusão do parágrafo A,transcrito acima, que se refere a taxas de HIVem mulheres grávidas, não especifica se tratamde taxas de prevalência ou de incidência,27 e su-gere que os números relativos às mulheres grávi-das seriam representativos do total da população.Além disto, é preciso dizer que vários investiga-dores, e respeitadas organizações de saúde têmadvertido contra o uso de dados coletados nasclínicas pré-natais da Uganda como uma demons-tração da magnitude do êxito da resposta deUganda frente ao HIV/AIDS. SegundoPankhurst, por exemplo:

Tem sido difícil precisar o nível e magnitude da reduçãona prevalência e incidência para Uganda como um todo,pois as medições para o período inicial da epidemiaforam coletadas em alguns poucos sítios de vigilânciaepidemiológica situados em áreas urbana, que forneciamdados sobre mulheres grávidas examinadas em clinicasdurante o pré-natal... Porém, esses níveis não podemser generalizados para toda Uganda porque as mulheresque vão a clinicas de pré-natal não são representativasda população geral e, porque medidas tomadas nocontexto urbano não são representativas de um paísonde 85% das pessoas vivem nas áreas rurais. Asmedidas de prevalência para o HIV, coletadas em locaisde vigilância epidemiológica, situados no mundo rural,publicadas a finais dos anos 90, são menores, sugerindoque a prevalência nacional de HIV teria sido muitomais baixa a inícios dos anos 90.28

O parágrafo C da lei, também citado aci-ma, sobredimensiona a importância de “um pro-grama de baixo custo” que tem como única men-sagem a abstinência e a monogamia. Atribuir aredução da prevalência do HIV a uma ou duasintervenções governamentais, é hoje uma inter-pretação freqüente, mas equivocada acerca daexperiência de Uganda. Isto por que desde osanos 1980 a resposta ao HIV/AIDS tem envol-vido “centenas de organizações não-governamentais, gru-pos religiosos e ativistas comunitários...”, uma lideran-ça política explícita e uma gama variada de ou-tras medidas, que vão muito além do “ABC”29.

Neste sentido, Parkhurst também assi-nala que:

O governo (de Uganda) tem oferecido não apenas serviçoscomo educação e testagem do sangue em todo o país,como também, e o que é mais interessante, implementadouma política com enfoque criativo e estratégico quepermite aos atores não-governamentais a possibilidadede trabalhar com mensagens individualizadas deprevenção.30

Este fato é parcialmente reconhecido noparágrafo B que ressalta a importância de traba-lhar com diferentes atores. O texto, porém, eludeque a prevenção é feita a partir de enfoques di-versos e específicos. Já a afirmação do parágrafoD – segundo a qual em 1995, 95% dos ugandensesdiziam ter tido apenas uma ou nenhuma parceriasexual no ano anterior –, utiliza as estatísticasnacionais de maneira insólita. Estão disponíveis

27 Prevalência é a proporção de pessoas que estão infectadas emum determinado momento, enquanto a incidência é o número

de novos casos por ano, expressa geralmente como novos casosdiagnosticados para cada 1.000, no conjunto do grupo.28 Susheela Singh, Jacqueline E. Darroch and Akinrinola Bankole,A, B and C in Uganda: The Roles of Abstinence, Monogamy andCondom Use in HIV Decline, Alan Guttmacher Institute, OccasionalReport No 9, December 2003, p. 10; ver também Justin O.Parkhurst, “The Ugandan success story? Evidence and claimsof HIV-1 prevention”, Lancet 2002; 360: 78.29 Parkhurst, op. cit. note 26, p. 79.30 Ibid.

21

dados nacionais sobre o número de relações eparceiros sexuais durante 1995 que não confir-mam essa conclusão. A Pesquisa Nacional emDemografia e Saúde de 1995 (DHS–PNDS),somente apresenta informação sobre o númerode parcerias sexuais durante os últimos seis me-ses anteriores ao trabalho de campo. Mas aPNDS para o ano 2000 recompilou essa infor-mação para os 12 meses anteriores, concluindoque 3% das mulheres entre 15 e 49 anos, casadasou solteiras, informaram ter tido dois ou maisparceiros sexuais, um percentual que cresce para16% entre os homens.31

Uma outra fonte, o Survey do ProgramaGlobal para AIDS (GPA) da UNAIDS de 1995,também reuniu informações sobre o ano anteri-or, utilizando uma mostra exclusivamente urba-na. Os dados do GPA demonstram que, de fato,a população de mulheres sexualmente ativas (ca-sadas e solteiras, de 15 a 49 anos) que tiverammais de um parceiro durante o último ano caiude 12% em 1989 para 3% em 1995; para os ho-mens as cifras caíram de 35% para 11%.32 Con-tudo, isto não permite concluir que 95% das pes-soas tiveram menos de duas parcerias sexuais.Para tanto, seria preciso supor que as crianças de0 a 14 anos e os adultos com mais de 49 anostenham sido incluídos na pesquisa.

Os parágrafos C e D atribuem o êxito deUganda à ampliação da prática de abstinência emonogamia na população geral (incluindo jo-vens), porém, não mencionam o uso do preser-vativo, e isto contradiz os resultados da DHS edo GPA. Essas duas pesquisas nos dizem que emUganda três tendências foram observadas entre 1988 e2000. A primeira delas foi o incremento da ida-de em que se dá o início das relações sexuais tan-to para os homens quanto para as mulheres. Con-tudo, não foi constatado o aumento da prática

de abstinência entre jovens ou adultos de ambosos sexos com experiência sexual. Se por um ladohouve uma significativa diminuição no númerode homens e mulheres que têm múltiplos parcei-ros, por outro, observou-se um significativo au-mento de uso do preservativo entre mulheres ehomens solteiros sexualmente ativos.33 Sobretu-do, a evidência disponível não permite concluirque uma única dessas tendências tenha sido maisimportante que as demais.34

O Diretor do Instituto de Saúde Públicada Uganda, David Serwadda, em uma entrevistarecente, afirma que a chave do êxito de Ugandaé a abordagem múltipla utilizada pela campanhade prevenção, na qual o preservativo teve e temum importante papel. “Não devemos esquecer que nemsempre a abstinência pode ser adotada por pessoas emsituação de maior vulnerabilidade; especialmente as mu-lheres africanas… Muitas mulheres, simplesmente, nãotêm opção de iniciar a vida sexual mais tarde ou limitaro número de parcerias sexuais”.35 Serwadda, tambémassinala “fatores socioeconômicos” (como apobreza) e a tradição que favorece o casamentoentre mulheres muito jovens e homens mais ve-lhos: “Cinqüenta por cento das novas infecções, por ano,ocorrem em uma relação onde uma pessoa é positiva e aoutra negativa... Na prática, no cotidiano, as mulheresnão podem se abster de relações sexuais quando sãocasadas”.36

Os comentários de Serwadda realçam oquanto as mensagens enfatizadas pela políticaABC, simplificam a realidade das relações degênero e da sexualidade, ignorando especialmente

31 Singh, Darroch and Bankole, op.cit. note 26, p. 37.32 Singh, Darroch and Bankole, op.cit. note 26, p. 38.

33 Singh, Darroch and Bankole, op.cit. note 26, pp. 20-21. Sobrea importância do uso do preservativo, ver também WHO,Uganda reverses the tide of HIV/AIDS, disponível em:<www.who.int/infnew/aids.htm>, consultado em 4 de feve-reiro de 2004.34 Singh, Darroch and Bankole, op.cit. note 26, p. 5.35 Uganda’s Health Chief Warns Against Abstinence-OnlyApproach, UN Wire, 21 July 2003.36 National Public Radio, “The ABCs of AIDS in Africa”, Trans-crição de To The Point, transmitido em 8 de julho de 2003.

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a situação das mulheres. Um viés que se aplicatambém a outros segmentos da população afri-cana, ou seja, pessoas sexualmente ativas, mas quenão querem, ou não podem, ser celibatárias oumonogâmicas.

Apesar destas muitas evidências, a LeiHIV/AIDS continua apregoando a promoçãoda abstinência e clamando para que os progra-mas de prevenção de AIDS incluam, nessa or-dem de prioridades, as seguintes mensagens:

...atrasar a iniciação sexual, optar pela abstinência,fidelidade e monogamia, reduzir parcerias sexuaiscasuais, diminuir a violência sexual e a coerção,incluindo-se o casamento infantil, o levirato e a poligamiae, onde e quando seja apropriado, usar o preservativo.

A lei estabelece que para os anos fiscais de2006 a 2008, não menos de 33% dos recursosalocados, conforme autorização das apropria-ções definidas pelo Congresso para cada ano fis-cal, devem ser gastos em programas de “absti-nência-até-o-casamento”.37 Como a lei não incluium parâmetro comparável para a distribuição depreservativos ou outras estratégias de prevenção,teoricamente todos os recursos poderão seralocados para programas de abstinência.

Além disso, os grupos que não querem tra-balhar o tema da sexualidade ou promover o usodo preservativo, são explicitamente protegidospela legislação:

“Uma organização que, por outras vias, é elegível dereceber assistência... para prevenir, tratar, ou monitoraro HIV/AIDS, não será solicitada, como uma condiçãopara receber a assistência, a apoiar ou utilizar umdeterminado método de prevenção ou um programamultisetorial de tratamento em relação aos quais aorganização tenha objeções morais ou religiosas” .38

Considerando-se essas circunstâncias, emjaneiro de 2004, registrou-se um episódio “posi-tivo”. Quando o Congresso discutiu a propostade orçamento para o Ano Fiscal de 2004 apre-sentada pelo Executivo, foi feita a solicitação quenos programas a serem apoiados pelo PEPFAR,toda e qualquer informação sobre preservativosdeveria ser completa e correta do ponto de vistamédico. Entretanto, não foi dito que esta infor-mação correta deveria ser sempre oferecida, nemtampouco o texto determina um padrão de pre-cisão médica a ser adotado.39 Os conservadores,certamente, vão responder a este dispositivo legaluma vez mais utilizando dados pseudocientíficospara apoiar suas opiniões. As afirmações recentesdo Cardeal Trujillo, chefe do Bureau do Vaticanopara a Família em relação à permeabilidade dospreservativos de látex para o vírus HIV,40 dãouma indicação do tipo de informação que deter-minados grupos estão dispostos a disseminar sobo manto da ciência.

Deve-se dizer também que os programasque promovem a “abstinência-até-o-casamento”,

37 HIV/AIDS ACT of 2003, op.cit. note 24, Title IV, Section403(a), Allocation of Funds.38 HIV/AIDS ACT of 2003, op.cit. note 24, Title III, section.104A. Assistance to combat HIV/AIDS, (d) Eligibility forAssistance.

39 CONSOLIDATED APPROPRIATIONS BILL, H.R.2673,Division D, Foreign Operations, Export Financing and RelatedPrograms Appropriations, 2004, Title II, Bilateral EconomicAssistance – Child Survival and Health Program Fund: “…ainformação oferecida sobre uso do preservativo como parte deprojetos ou atividades que são financiadas por fundos concedi-dos por essa Lei, devem ser medicamente corretas e devemincluir os benefícios de saúde pública e as taxas de fracasso deesse uso”.40 Joseph Horowitz, “Italy: Cardinal Warns on Condoms”,New York Times, 14 October 2003, p. A6; Catholic Family andHuman Rights Institute, Friday Fax, “BBC Accuses Church ofWorldwide Condom Misinformation Campaign”, October 17,2003, Volume 6, Number 43, cita ao Cardeal Trujillo dizendo:“Eu simplesmente lhes queria lembrar ao público, secundandoa opinião de muitos especialistas, que quando o preservativo éutilizado como anticoncepcional, não é totalmente confiável, eque os casos de gravidez não são raros. No caso do vírus daAIDS, que é aproximadamente 450 vezes menor que um esper-ma, o material de látex evidentemente dá muito menos proteção.Alguns estudos revelam que a permeabilidade dos preservati-vos é entre 15% a 20% dos casos. Conseqüentemente, falar dospreservativos como ‘sexo seguro’ é uma forma de roleta russa”.

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não têm sido eficazes nem mesmo nos EstadosUnidos. A promoção da abstinência tem favore-cido a diminuição do uso de anticoncepcionais(inclusive o preservativo) entre adolescentes se-xualmente ativos, o que expõe essas pessoas àgravidez indesejada e a doenças sexualmentetransmissíveis, inclusive o HIV. Por outro lado,existem evidências científicas de que os jovensque recebem educação integral em sexualidadetendem a adiar a iniciação sexual e são mais pro-pensos a utilizar anticoncepcionais quando iniciamum relacionamento.41

A desvalorização sistemática dos preserva-tivos, disseminada pelos conservadores, é cienti-ficamente inexplicável, pois a eficácia do preser-vativo de látex masculino na prevenção da infecçãopelo HIV é hoje mais que comprovada. Por exem-plo, o CDC, na ficha técnica sobre preservativosque está disponibilizada em sua página na web42 –mesmo depois de ter incluído no texto uma seçãosobre promoção da abstinência –, afirma que:

Os preservativos de látex masculinos, quando utilizadosde forma consistente e correta, são altamente eficazesna prevenção da transmissão sexual do HIV, o vírusque causa AIDS. A AIDS é reconhecidamente a maisletal das doenças transmitidas por via sexual, e existemuita informação científica para demonstrar que opreservativo de látex é mais efetivo para prevenir ainfecção pelo HIV que para prevenir outras DSTs. Oconjunto de pesquisas sobre a efetividade do preservativode látex na prevenção da transmissão do HIV é amploe conclusivo. De fato, a capacidade dos preservativosde látex para prevenir a transmissão do HIV foi

cientificamente comprovada tanto em pesquisasrealizadas na “vida real” de casais sexualmente ativos,quanto em pesquisas de laboratório. As pesquisas delaboratório demonstraram que os preservativos de látexsão uma barreira consistentemente impermeável paraas partículas do tamanho dos agentes patogênicos dasDSTs.43

A despeito dos parâmetros definidos peloCDC, a Lei do HIV/AIDS determina que oExecutivo envie informes ao Congresso acerca“da prevalência do vírus do papiloma humano (HPV)na África Subsaariana e do impacto que o uso do preser-vativo significa para a disseminação desse vírus na Áfri-ca Subsaariana, entre outros temas”.44

Este dispositivo é apenas mais uma ilustra-ção de que o programa religioso e moral da di-reita norte-americana é mais importante, para aAdministração Bush e para o Congresso, do quea evidência epidemiológica e científica e os direi-tos e realidades das pessoas sexualmente ativas,em especial jovens e adolescentes.

Prevenção, tratamento e atenção ao HIV

A Casa Branca de Bush tem se vangloriadoda nova legislação HIV/AIDS e dos US$ 15 bi-lhões que a mesma teoricamente investirá para aprevenção e tratamento na África e Caribe. A re-tórica utilizada pela Casa Branca para promovera iniciativa é a do “conservadorismo compassi-

41 National Family Planning and Reproductive HealthAssociation, Oppose Dangerous, Unproven Abstinence-Unless-MarriedEducation Programs, available at <www.nfprha.org/pac/factsheets/absunlessmarried.asp>, consultada em: 4 fevereirode 2004; Douglas Kirby, Emerging Answers: Research Findingson Programs to Reduce Teen Pregnancy, The National Campaignto Prevent Teen Pregnancy, 2001, disponível em<www.teenpregnancy.org/resources/data/report_summaries/emerging_answers/default.asp>, consultada em 4 fevereirode 2004.42 <www.cdc.gov>.

43 Centers for Disease Control, Fact Sheet for Public HealthPersonnel: Male Latex Condoms and Sexually Transmitted Diseases,atualizada em: 23 de janeiro de 2003, disponível em:<www.cdc.gov/hiv/pubs/facts/condoms.htm>, consultadaem 10 fevereiro de 2004. <www.who.int/mediacentre/factsheets/fs243/en/print.html>, consultada em 10 de feve-reiro de 2004; UNAIDS, “The Male Condom”, TechnicalUpdate, Geneva: August 2000, pages 2-3, disponível em:<www.unaids.org/publ icat ions/documents/care/mcondoms/JC302-TU18-MaleCondom-E.pdf>, consultadaem 10 de fevereiro de 2004.44 HIV/AIDS ACT of 2003, op.cit. note 24, Title 1, Section 101,Development of a Comprehensive, Five-Year, Global Strategy,(3) (W).

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vo” (ou piedoso), a qual tem sido eficaz para me-lhorar a imagem de frieza que o Presidente haviaprojetado nos primeiros anos de seu mandato, faceàs demandas dos países pobres. No entanto, tudosugere que o compromisso da Administração paracombater o HIV/AIDS sob o PEPFAR não éexatamente o que se anuncia. O foco central naeducação para a abstinência e o ataque aos pre-servativos, discutido anteriormente, são contem-plados claramente pelas diretrizes do PEPFAR.Dois membros do Conselho Consultivo da Pre-sidência para o HIV/AIDS45 são Tom Coburn,um ex-Deputado Republicano, declaradoopositor do planejamento familiar e de outrosserviços de saúde reprodutiva – que tem contes-tado publicamente “o enfoque nacional sobre ouso do preservativo para prevenir a propagaçãodo HIV”; e Joe McIlahey – Diretor do InstitutoMédico para Saúde Sexual (Medical Institute forSexual Health) – que realiza estudos para, supos-tamente, produzir evidencias cientificas sobre aineficácia do preservativo na prevenção do HIV.

Além disto, contrariamente à promessa fei-ta pelo Presidente durante sua viagem a África,em julho de 2003, de que o Executivo iria atuarcom decisão e rapidez na transferência de recur-sos para combater a AIDS, a Casa Branca temretardado a obtenção dos fundos necessários paracumprir sua retórica. Embora a lei HIV/AIDStenha autorizado 3 bilhões de dólares para gas-tos em programas globais de HIV/AIDS duranteo Ano Fiscal de 2004, o Presidente Bush solici-tou apenas 2 bilhões, o que representa apenas 500milhões adicionais em relação aos investimentosrealizados em 2003 e, mais importante, significaum déficit de 1 bilhão entre o que foi prometidoe o que está sendo desembolsado. Segundo in-formações, a Casa Branca, “teve uma queda de braço

com o Congresso para que o orçamento do programa deHIV/AIDS fosse reduzido” 46. Concretamente, de-pois de idas e vindas, o Congresso, sob pressãode ativistas de luta contra a AIDS e grupos desaúde, terminou aprovando 2,4 bilhões de dóla-res para HIV/AIDS e outras doenças infecciosasa nível global, dos quais US$ 2,1 bilhões estãodestinados para HIV/AIDS, incluídos nesta con-ta 546 milhões de dólares para o Fundo Globalpara o Combate ao HIV/AIDS, a Malária e aTuberculose.47

Outras escolhas feitas pela AdministraçãoBush demonstram que, de fato, neste campo nãohá “urgência”. A lei criou uma nova instânciaburocrática no Departamento de Estado paragerenciar o programa – o Bureau do Coordena-dor Global de AIDS –, a qual apenas em 2004,estava preparada para iniciar suas atividades edesembolsar os recursos do PEPFAR. Além dis-to, alguns analistas afirmam que a Casa Brancapoderia ter solicitado recursos adicionais para ofinanciamento do Fundo Global para o Comba-te do HIV/AIDS, a Malária e a Tuberculose, masnão fez, limitando assim as possibilidades de sal-var vidas imediatamente.48

A eleição de Randall Tobias como Coor-denador Global de AIDS também levanta in-terrogações de fundo quanto às verdadeiras inten-ções da Administração Bush em relação ao tra-tamento do HIV. O Sr. Tobias foi, até poucosanos, o diretor de Eli Lilly & Company, uma gran-

45 International Women’s Health Coalition, “Bush’s Other War:The Assault on Women’s Sexual and Reproductive Health andRights”, disponível em: <www.iwhc.org>.

46 New York Times, “Betraying the Sick in Africa”, 4 October2003, p. A18.47 Consolidated Appropriations Bill, H.R.2673, Division D,Foreign Operations, Export Financing and Related ProgramsAppropriations, 2004, Title II, Bilateral Economic Assistance –Child Survival and Health Program Fund; ver tambémCongressional Research Service, “ HIV/AIDS InternationalPrograms: Appropriations, FY2002 - FY2004”, 28 January 2004,disponível em: <http://fpc.state.gov/documents/organization/28757.pdf>, consultado em 16 de fevereiro de 2004.48 New York Times, “Bush’s AIDS Initiative”, 16 February 2004,p. A18.

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de companhia farmacêutica. Nas audiências deratificação de sua nomeação que tiveram lugarno Senado em 30 de setembro de 2003, Tobiasafirmou que renunciaria a seu cargo na diretoriade Eli Lilly. Disse também que venderia as açõesde outras companhias farmacêuticas, mas não asações da Eli Lilly, já que a companhia não pro-duz remédios para HIV/AIDS. Contudo, a EliLilly produz dois remédios para tratar algumasformas de tuberculose, uma enfermidade quetambém é objeto do PEPFAR e, sobretudo, con-tribui com a PHARMA, o grupo de defesa dosinteresses comerciais e corporativos que tentouobstaculizar o acesso a remédios antiretroviraisgenéricos. Na audiência, Tobias também afirmouque o “principal obstáculo” para implementarum programa de antiretrovirais na ÁfricaSubsaariana é a falta de infra-estrutura de saúdelocal e não a falta de remédios disponíveis.49 Estetem sido um argumento favorito das companhi-as farmacêuticas nos seus embates no campo doHIV/AIDS, que, entretanto, tem sido desacre-ditado pelos programas bem sucedidos de res-posta à epidemia, como, por exemplo, progra-ma brasileiro de resposta a epidemia.

O Sr. Tobias, mais recentemente, tem ma-nifestado um pouco mais de entusiasmo em re-lação a oferta de antiretrovirais nos países emdesenvolvimento.50 Essa mudança de posiçãopode estar relacionada ao dispositivo da lei doHIV/AIDS segundo a qual nos anos de fiscais2006–2008, pelo menos 55% dos orçamentosanuais do PEPFAR devem ser gastos em trata-mento de pessoas infectadas com HIV, sendo que

pelo menos 75% dos recursos devem ser desti-nados à aquisição e distribuição de remédiosantiretrovirais.51 Este volume de recursos é mui-to significativo para quem produz e vende asdrogas em questão. Assim, não chega a ser umasurpresa que o bureau do Sr. Tobias tenha infor-mado que não iria comprar antiretrovirais gené-ricos para implementar a lei.52

A lei busca proteger os interesses das com-panhias farmacêuticas quando dispõe que a Ad-ministração informe ao Congresso sobre “estra-tégias específicas para assegurar que os benefícios extraor-dinários dos remédios para HIV/AIDS (especialmenteantiretrovirais) não sejam diminuídos através da falsifi-cação ilícita dos remédios e sua venda no mercado ne-gro”.53 Ao mesmo tempo, a lei debilita o apelo àoferta de tratamento quando pede que o Presi-dente informe ao Congresso “estratégias específicasdesenvolvidas para promover a sustentabilidade de ofer-ta dos remédios para HIV/AIDS (inclusiveantiretrovirais) e também quanto aos efeitos de resistênciaaos medicamentos experimentados por parte de pacientesHIV/AIDS”. Como se sabe, esses têm sido osdois argumentos mais utilizados pela Big Pharmae outros atores para contestar a viabilidade deoferecer tratamento para o HIV/AIDS nos paí-ses em desenvolvimento.54

Esses dispositivos estão em consonânciacom a posição adotada pelos Estados Unidos –tanto pela administração de Clinton quanto deBush – até setembro de 2003 no sentido deobstacularizar repetidamente, em nome das“preocupações da indústria farmacêutica, o acor-do proposto na Organização Mundial do Co-mércio (OMC) de que as regras TRIPS sobre pa-

49 Kaisernetwork.org Daily HIV Reports, “Global AIDSCoordinator Nominee Randall Tobias Says Drug Industry TiesCould Help ‘Get a Better Deal’ on Antiretrovirals”, Oct 01,2003 disponível em: <www.kaisernetwork.org/daily_reports/rep_index.cfm?DR_ID=20119>.50 Remarks at the American Enterprise Institute by Randall L.Tobias, 5 fevereiro de 2004, disponível em: www.state.gov/s/gac/rl/rm/2004/29181.htm, consultada em 15 fevereiro de 2004.

51 HIV/AIDS ACT of 2003, op.cit. note 24, Title IVAuthorization of Appropriations, Section 403 Allocation ofFunds.52 “Bush’s AIDS Initiative”, op.cit. note 45.53 HIV/AIDS ACT of 2003, op.cit. note 24, Title I, PolicyPlanning and Coordination, sec. 101 (b) (3).54 Ibid.

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tente devem estar subordinadas a necessidades eemergências de saúde pública experimentadaspelos países. O acordo finalmente acertado emagosto de 2003, e adotado na Reunião Ministeri-al da OMC em Cancún, abre a possibilidade deque os países em desenvolvimento lancem mãodo licenciamento compulsório para produção emesmo exportação de medicamentos genéri-cos.55 Os Estados Unidos, como condição paraaderir ao consenso, exigiram que as solicitaçõesde importação sejam “de boa fé” e “não visem olucro comercial” e também que os remédios ge-néricos exportados sejam embalados eetiquetados de forma diferente para evitar suareexportação. Essas condições têm sido muitocriticadas pois criam obstáculos burocráticos àexportação e importação dos medicamentos.56

Deve-se dizer que novas restrições em re-lação à produção de medicamentos genéricosforam introduzidas nas negociações do Acordode Livre Comércio da América Central(CAFTA)57 com os Estados Unidos. Dentre ou-tras coisas, uma das imposições do CAFTA é deque Costa Rica, EL Salvador, Guatemala,Honduras e Nicarágua ampliem para mais de 20anos – prazo estabelecido pela OMC – o períodode direito assegurado sobre patentes. O CAFTAtambém obriga a pequenas companhias farma-cêuticas que fabricam genéricos a refazer estu-dos muito custosos para obter a aprovação paracomercialização e proíbe que elas utilizem os re-sultados dos estudos realizados pelas grandescompanhias, pelo menos durante um período decinco anos. Disposições similares, que extrapolamo estabelecido pela OMC, estão no projeto do

Acordo de Livre Comércio das Américas(ALCA) que, a despeito de muitos impasses, con-tinua em pauta.58

A Casa Branca também tem manifestadouma razoável animosidade em relação ao FundoGlobal para o Combate do HIV/AIDS, a Ma-lária e a Tuberculose. Esta atitude coloca emquestão o compromisso dos EUA para com ospaíses que definem suas próprias prioridades deresposta à epidemia, e contrasta com o apoio ofe-recido aos países cujos programas convergemcom a perspectiva do governo Bush. Neste sen-tido, não surpreende, que o Sr. Tobias apóie aproposta de que os recursos da Lei HIV/AIDSsejam prioritariamente canalizados através deprogramas bilaterais, e não através do FundoGlobal que é uma instância multilateral.

Num discurso feito no América EnterpriseInstitute – um think-thank da ultra-direita – o Sr.Tobias disse ter solicitado aos embaixadoresnorte-americanos nos “países foco” que desen-volvam planos nacionais para implementação doPEPFAR e que “liderem pessoas e organizações doGoverno norte americano em operação nestes países paraassegurar sua implementação”.59 Prioridades que sãofixadas desta maneira – ou seja, por organiza-ções e funcionários norte-americanos – podemfacilmente entrar em conflito com as diretrizesque os países eventualmente desejem adotar, masque não coincidam com as orientações doPEPFAR.

Os números relativos ao financiamento re-velam uma clara ilustração da preferência pelosprogramas bilaterais. Para o ano fiscal de 2004,como vimos anteriormente, Bush solicitou 2 bi-

55 Como já estava disposto na Declaração de DOHA, assinadapelos países membros da OMC em novembro de 2001.56 New York Times, “Mixed View of a Pact for Generic Drugs”,29 August 2003, p. C3.57 CAFTA, ainda não foi apresentado ao Congresso dos Esta-dos Unidos para sua aprovação, e existem indícios que a aprova-ção será difícil de obter em um ano eleitoral.

58 Médecins sans Frontières, Provisions in CAFTA RestrictAccess to Medicines, Latin American and Caribbean CountriesUrged Not to Include Such Provisions in FTAA, 3 February,2004, disponível em: <www.accessmedmsf.org/prod/publications.asp?scntid=42200410494&contenttype=PARA&>;para ver o texto completo consultar <www.ustr.gav/new/fta/cafta/text/>.59 Comentários de Randall L. Tobias, op.cit. nota 47.

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lhões de dólares para combater o HIV/AIDSdos quais apenas 100 milhões se destinam aoFundo Global. O orçamento preliminar para2005 prevê 200 milhões nesta rubrica. A Admi-nistração e o Sr. Tobias justificam estes valoresreduzidos afirmando que o Fundo tem mais di-nheiro do que é capaz de gastar. Esta afirmaçãocontradiz informes recentes segundo os quais oFundo está contendo solicitações de financia-mento devido a um déficit orçamentário. Emjunho de 2003, o Fundo Global anunciou quenecessitaria mais US$ 700 milhões para financiarprojetos que seriam aprovados naquele ano.60

A opção preferencial pela ajuda bilateralsubverte a lógica multilateral de enfrentamentoda epidemia num momento crucial em que oFundo Global apenas inicia suas atividades. Aassistência bilateral, sobretudo, tende a ser umaferramenta mais eficaz para firmar os requisitosda “política sexual conservadora” de Bush parao mundo. Um exemplo é o programa de coope-ração com o Brasil para tratamento, atenção eprevenção do HIV/AIDS na África de línguaportuguesa que foi anunciado em junho de 2003,logo após a visita de Lula à Casa Branca. O anún-cio do acordo postado na página da Casa Bran-ca evita cuidadosamente mencionar a educaçãoem sexualidade e os preservativos com relação aprevenção do HIV.61 Fontes ligadas ao Ministé-rio de Saúde do Brasil informam que os Esta-dos Unidos insistiram na política de abstinênciacomo padrão para o programa bilateral e que,por esta razão, o Brasil optou por excluir o com-ponente de prevenção para poder garantir osrecursos.

Finalmente, a Lei HIV/AIDS faz 16 men-ções a “organizações baseadas na fé” (faith-basedorganizations) o que sugere que muitos dos recur-sos do PEPFAR poderão ser canalizados paragrupos ultraconservadores que enfocam a pre-venção e tratamento do HIV a partir do pontode vista da religião.62 Como já observamos, nãose exige destas organizações que utilizem umenfoque integral na prevenção e tratamento doHIV/AIDS e elas podem invocar suas crençasreligiosas para se negar a discutir temas e ques-tões e executar ações, como, por exemplo, infor-mar sobre e oferecer preservativos. O financia-mento desses grupos, por sua vez, irá reduzir osfundos disponíveis para organizações que ofere-cem informação, educação e serviços integraisem saúde e sexualidade.63

Neste sentido, a legislação do HIV apenasreflete a política mais geral da Casa Branca, noque diz respeito a favorecer grupos religiososcomo prestadores de serviços sociais. Em de-zembro de 2002, o Presidente Bush promulgouum Decreto do Executivo que visa garantir “Pro-teção Eqüitativa perante as Leis para as Organi-zações Comunitárias e aquelas “baseadas na fé”no que se refere à obtenção de recursos federais.No texto em questão, a Casa Branca nem mes-mo disfarça sua determinação no sentido de au-torizar grupos religiosos a manifestar suas cren-

60 Kaisernetwork.org Daily HIV Reports, “Global Fund To ConsiderDelaying Grant Applications in Light of Funding Shortage”,October 14, 2003, available at <www.kaisernetwork.org/daily_reports/rep_hiv.cfm#20315>.61 “U.S.-Brazil Joint Venture on HIV/AIDS in LusophoneAfrica”, 20 June 2003, at <www.whitehouse.gov/news/releases/2003/06/20030620-14.html>.

62 Uma oficina em Washington D.C. em novembro de 2003,organizada por USAID e chamada “Trabalhando com USAID.Uma Oficina Introdutória para Organizações Comunitárias e“baseadas na fé”, reuniu mais de 150 grupos, muitos com ex-periência de trabalho no exterior ou em HIV/AIDS. O relató-rio da oficina pode ser consultado em: <www.usaid.gov/our_work/global_health/aids/TechAreas/community/fbo_wrkshp.html>.63 O New York Times informa em um editorial do início de2003 que a USAID “negou fundos a um respeitado progra-ma na África para entregar o dinheiro a uma cooperativa degrupos evangélicos cuja proposta foi considerada deficienteem mérito, mas cujo líder tinha vínculos com um influenteconservador no Congresso”. New York Times, “Misguided Faithon AIDS”, 15 October 2003, p. A18.

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ças específicas quando executam programas so-ciais financiados pelo governo.64 Essa “abertu-ra” para as organizações religiosas é descrita pelopróprio Presidente como parte de uma mudan-ça cultural mais ampla e profunda que está emcurso no governo:

...oficinas (devem ser) estabelecidas em cada Ministériopara assegurar que os programas baseados na fé tenhamuma “escuta amiga” quando fizerem uma solicitação;que esses programas não enfrentem o pântano burocráticode sempre; que tenham boas-vindas... Não apenas deveser permitido que estas pessoas venham, façam seus apelose tenham ajuda na obtenção de doações, mas nós tambémlhes garantimos que o governo não os obrigará a mudarseus hábitos, sua forma de ser, nem tampouco sua razãode existir.

E já começamos a ver algum progresso. Devagar, masde maneira segura, estamos transformando a cultura.Em breve vamos completar a elaboração de regras queirão disponibilizar muito dinheiro para os programasbaseados na fé...65

Em contraste, o Congresso e a Casa Brancatêm assediado grupos nacionais que trabalham emHIV/AIDS e que não se guiam por mensagensmoralistas sobre sexualidade. O Inspetor Geralde Serviços Humanos e de Saúde investigou vá-rios programas nacionais de AIDS para compro-var “se o conteúdo sexual é demasiadamente explícito ouse os mesmos estimulam a atividade sexual ”.66 Os gru-pos de AIDS informam que a fiscalização reali-

zada pela Administração tem provocado um efei-to nocivo sobre seus programas e que hoje elestemem perder os fundos federais.67 O InspetorGeral ainda em 2001 havia publicado um infor-me sobre a ONG Stop AIDS de São Francisco,no qual se afirma que os programas da organiza-ção dirigidos a homens gays promoviam o sexo,e que possivelmente eram obscenos. O documen-to utilizava como exemplo desta afirmação umprograma chamado “Oficina Sobre Sexo Gos-toso” (Great Sex Workshop), que examina for-mas de diminuir a propagação do HIV ao mes-mo tempo que explora as possibilidades deque o sexo seja “seguro, divertido, entretido egratificante”.68 A Diretora do CDC, Dra. JulieGerberding que foi chamada a se manifestar sobreo caso, contestou o informe do Inspetor Geral,dizendo que “o desenho e realização das ativida-des de prevenção do Stop AIDS estavam funda-mentadas em teorias aceitas pelas ciências docomportamento no campo da promoção de saú-de.69 No entanto, quatro meses mais tarde, a mes-ma Gerberding enviou uma carta a Stop AIDSdizendo que algumas “oficinas de prevenção”realizadas pela ONG violavam o conteúdo daLei de Serviços de Saúde Pública que proíbe oencorajamento da atividade sexual. A mesmacarta solicitava que o grupo interrompesse asoficinas sob a ameaça de perder US$ 500 mil emfinanciamentos federais.70

67 Washington Post, “Bush Policies Hurt AIDS Prevention,Groups Say Administration Accused of Disinformation onCondom Use, Harassment Audits of Education ProgramsTuesday”, October 1, 2002; Pag. A06.68 Kaisernetwork.org, Daily Reports, “San Francisco AIDS GroupUsing CDC Prevention Funds for ‘Sexually Explicit’ Programs,HHS Inspector General Report Says”, November 16, 2001, dis-ponível em: <www.kaisernetwork.org/daily_reports/rep_index.cfm?hint=1&DR_ID=8058>.69 Kaisernetwork.org, Daily Reports, “CDC Deems Appropriate‘Controversial’ Content of Federally Funded Stop AIDS ProjectPrograms”, February 14, 2003, disponível em: <www.kaisernetwork.org/daily_reports/rep_index.cfm?hint=1&DR_ID=16063>, consultado em fevereiro de 2004.

64 Executive Order on the Equal Protection of the Laws forFaith-based and Community Organizations, 12 December2002, section 2 (f).65 Discurso do Presidente Bush na Celebração do Décimo Ani-versário do Power Center, Houston Texas, 12 de setembro de2003, disponível em: <www.whitehouse.gov/news/releases/2003/09/20030912-14.html>, consultado em 16 de setembrode 2003.66 Kaisernetwork.org, Daily Reports, “All CDC-Funded HIV/AIDSPrograms Currently Under Bush Administration Review”, FoxNews Reports, July 31, 2002, disponível em: <www.kaisernetwork.org/dailyreports/rep_index.cfm?hint=1&DR_ID=12614>.

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A Administração Bush tem utilizado asqueixas feitas por seus aliados no Congressocomo argumento fácil para justificar essas audi-torias. Além de levantar constantemente denún-cias sobre ONGs que trabalham com AIDS eeducação em sexualidade, os membros Republi-canos do Congresso também se queixaram aoDepartamento de Serviços Humanos e de Saú-de que a Conferência Internacional de AIDS, emBarcelona 2002, não havia dado atenção sufici-ente ao papel dos grupos religiosos na preven-ção ao HIV, exigindo, inclusive, que o Departa-mento de Saúde compartilhasse formalmenteessas preocupações com os organizadores daConferência.

Casamento e família

É possível compreender por que muitaspessoas tenham pensado que a Lei de Reforma daSeguridade Social de 1996 dizia respeito essencial-mente à substituição de benefícios sociais porprogramas de trabalho. Mas este não era exata-mente o caso. Como já observamos, a Lei deReconciliação e Responsabilidade Pessoal eOportunidade de Trabalho foi, de fato, o veícu-lo utilizado pelos conservadores para injetarmilhões de dólares na educação pró-abstinência.

Contudo, a lei tem outra grande ambição:a promoção do casamento heterossexual, espe-cialmente para os pobres e a classe trabalhado-ra. O debate nacional norte-americano sobre ca-samento e união civil entre pessoas do mesmosexo demonstra que os conservadores conside-ram a defesa do casamento heterossexual comoestratégia mais eficaz para limitar os direitosdos(as) GLBTs.

A Lei de Reconciliação e Responsabili-dade Pessoal e Oportunidade de Trabalhocomeça com as seguintes afirmações:

(1) O casamento é o fundamento de uma socie-dade bem sucedida.

(2) O casamento é uma instituição essencial deuma sociedade bem sucedida, que promoveos interesses das crianças.71

A lei declara que existe “uma crise em nos-sa Nação” e o texto se segue estabelecendo umvínculo entre benefícios sociais e outros fenôme-nos vagamente relacionados, sem deixar claro,entretanto, qual deles seria o problema fundamen-tal: “gravidez das adolescentes solteiras”, “filhosnascidos de mulheres solteiras”, “nascimentosocorridos fora do casamento”, “famíliasmonoparentais”, “(falta) de responsabilidademasculina”, “práticas sexuais predatórias de ho-mens mais velhos”, “mulheres chefes de domicí-lios com filhos menores de 18 anos”, “mães quenunca se casaram”, e “mulheres jovens que têmfilhos antes de concluir o secundário”.

Esse amplo leque de “problemas” é o quejustifica a alocação de financiamentos para queos Estados cumpram os quatro objetivos listadosabaixo. Muito embora os pobres sejam a justifi-cativa e foco principal desse esforço legislativo,é relevante destacar que os dois últimos objeti-vos se aplicam a todas as mulheres (e homens), enão somente aos que recebem benefícios daseguridade social:

(1) Oferecer assistência a famílias necessitadaspara que os filhos possam ser cuidados emseus próprios lares ou de familiares;

(2) Eliminar a dependência de benefícios gover-namentais por parte de mães e pais carentespromovendo capacitação para o emprego, otrabalho e o casamento;70 Kaisernetwork.org, Daily Reports, “CDC Asks Stop AIDS Project

To Discontinue ‘Controversial’ HIV Prevention Programs,”June 16, 2003, disponível em: <www.kaisernetwork.org/daily_reports/rep_index.cfm?hint=1&DR_ID=18279>, con-sultado em 4 de fevereiro de 2004.

71 Welfare Reform Act of 1996, op.cit. note 11, section. 101.Findings.

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(3) Prevenir e diminuir a incidência da gravidezfora do casamento e estabelecer metas anu-ais para prevenir e diminuir a incidênciasdestas gestações; e

(4) Incentivar a formação e manutenção de fa-mílias com pai e mãe.72

No conjunto, a lei contempla pelos menos15 disposições direta ou indiretamente orienta-das a “diminuir a ilegitimidade ”. As mais impor-tantes delas são: alocar 50 milhões de dólares porano para a educação para a abstinência; um bô-nus em dinheiro (“bônus de ilegitimidade”) demais de US$ 25 milhões para os estados que di-minuam as taxas de nascimentos ilegítimos e oaborto; uma doação em bloco para a AssistênciaTemporária a Famílias Necessitadas (TemporaryAssistance to Needy Families – TANF) quepermite aos estados negar benefícios aos pais emães que tenham filhos enquanto estão receben-do benefícios da Seguridade Social Federal; re-quisitos de comprovação de paternidade na par-te da legislação que regulamenta a sustentaçãodas crianças, com vistas a fazer com que os paisde crianças que nascem fora do casamento pa-guem o sustento de seus filhos.

Ao solicitar uma nova autorização peloCongresso para as regras definidas em 1996, aAdministração Bush publicou um Documentointitulado “Trabalhando para a Independência”(Working for Independence),73 no qual se espe-cifica que “a coabitação não é equivalente ao casamentoquando se trata de promover o bem-estar dos filhos... Aos16 anos de idade, três quartos das crianças que nascemcom pais que vivem em união terão visto seus pais se sepa-rarem, em comparação a apenas um terço filhos que nas-cem de pais casados ”.

Ora, se o objetivo destas diretrizes era ga-rantir que os pais e guardiões se mantivessemjuntos para assegurar o bem-estar das crianças, aadministração deveria, presumivelmente, apoiaro “casamento gay”. Mas, ao perceber que o ob-jetivo da TANF no sentido de estimular famíliascompostas por pai e mãe não encorajava neces-sariamente o casamento per se e poderia, inclusi-ve, mobilizar o surgimento de famílias com “paie mãe” do mesmo sexo, a Administração termi-naria por revelar o caráter homofóbico de suaproposta esclarecendo que o dispositivo visaencorajar a formação e manutenção de famíliassaudáveis compostas por genitores casados assim comoa paternidade responsável”.74

O documento também se queixa de que osEstados parecem não ter feito muito, desde 1996,para promover o casamento: “...os esforços dosEstados no sentido de fomentar casamentos sadios repre-sentam apenas 1% do total dos gastos dos programasTANF. A limitada atenção dedicada à formação defamílias se deve, em parte, a falta de conhecimento sobrecomo executar programas bem sucedidos de formação defamílias e de casamentos”. Por esta razão, a adminis-tração se propõe a oferecer aos Estados menosentusiasmados mais de US$ 200 milhões anual-mente, com vistas a conduzir pesquisas e proje-tos demonstrativos, oferecer assistência técnica,e “desenvolver enfoques inovadores para a pro-moção do casamento sadio e a diminuição denascimentos fora do casamento”. É solicitado queos Estados produzam descrições explícitas quan-to aos esforços realizados no campo da forma-ção de famílias e promoção dos casamentos sa-dios, incluindo-se indicadores quantitativos dedesempenho; e relatórios sobre os benefícios al-

74 <www.whitehouse.gov/news/releases/2002/02/welfare-reformannouncement-book-all.html>. A palavra “saudável”aparentemente tem a intenção de neutralizar a acusação que asmulheres estão sendo alentadas a ficar em relacionamentosabusivos.

72 WELFARE REFORM ACT OF 1996, op.cit. note 11, Part ABlock grants to States for Temporary Assistance for NeedyFamilies, section 401, Purpose.73 <www.whitehouse.gov/news/releases/2002/02/welfare-reformannouncement-book-all.html>.

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cançados.75 Espera-se que alguns Estados bus-quem fundos próprios para resistir a estas orien-tações, assim como já vem acontecendo no caso doprograma federal de educação para a abstinência.

Um outro projeto de lei para re-autorizara reforma da seguridade social está tramitandono Senado desde 2002. Com um novo nome –Lei de Promoção de Responsabilidade Pessoal,Trabalho e Família do ano 2003 (título que járevela os objetivos do projeto legislativo), a ini-ciativa reitera a agenda da Casa Branca para afamília e, aparentemente, não foi questionadapelos senadores Democratas. O novo projeto delei enumera várias sugestões para a “promoçãodo casamento sadio”, como por exemplo: cam-panhas públicas sobre o valor do casamento e ashabilidades que são necessárias para aumentar aestabilidade matrimonial e a saúde; educação nasescolas de nível secundário sobre o valor do ca-samento, habilidades para se relacionar, e pro-gramas de capacitação para relacionamentos, quepodem incluir habilidades sobre ser pai/mãe,administração financeira, resolução de disputas,como progredir no trabalho e carreira profissi-onal para mulheres solteiras grávidas e para jo-vens solteiros que “esperam um bebê”; progra-mas de redução de divórcio que ensinem habili-dades relacionais; programas de mentoria queutilizam casais como modelos ideais ou comoinstrutores em comunidades de risco.76

Com a esperança de impulsionar esse pro-jeto, a Administração anunciou em janeiro de2004, uma iniciativa de 1,5 bilhões de dólares (emcinco anos) para promover o casamento. A CasaBranca esperou um momento propício para fa-zer o anúncio dessa iniciativa de maneira a agra-dar grupos de direita que reivindicavam uma

emenda constitucional para proibir o “casamen-to gay”. Wade F. Horn, Secretário Adjunto Ser-viços Humanos e de Saúde para Crianças e Fa-mílias, declarou que o dinheiro federal para a pro-moção do casamento será destinado exclusiva-mente a casais heterossexuais.77

Além de demonstrar grande temor frenteàs formas não tradicionais de família, incluindofamílias de casais homossexuais, o novo esforçoé emblemático do “ideal” que a direita religiosaalimenta em relação ás mulheres, o qual preconi-za que, caso estejam casadas com um homem,devem ser mães; e, caso não estejam casadas, de-vem se abster de sexo. Os alvos desse experi-mento são, sobretudo, as pessoas pobres, jovense minorias raciais, em especial as comunidadesafro-americanas.

Mas a lei apresenta contradições. Por exem-plo, não esclarece exatamente o que os legisla-dores pretendem, se querem apenas evitar a gra-videz na adolescência – o que significaria apoiaro acesso a anticoncepcionais e serviços de abor-tos –, ou simplesmente promover a ideologia docasamento. De outro lado, ao permitir que osEstados neguem benefícios a mulheres queengravidam quando estão recebendo benefíciosda Seguridade Social, a lei pode inclusive esti-mular essas mulheres a recorrerem ao aborto.Como a maioria das beneficiárias são afro-ame-ricanas, é possível inferir que, para os autores dalegislação, os abortos de mães afro-americanasque recebem benefícios sociais, talvez não sejamassim tão “indesejáveis”. Mas como os fundospúblicos para serviços de aborto têm sido dras-ticamente reduzidos, caso desejem abortar, es-tas mulheres terão que utilizar seus próprios re-cursos, ou então levar a gravidez a termo, umresultado que a lei pretende coibir.78

75 <www.whitehouse.gov/news/releases/2002/02/welfare-reformannouncement-book-all.html>.76 The Personal Responsibility, Work, and Family PromotionAct of 2003, H.R. 4, section 103 Promotion of FamilyFormation and Healthy Marriage, (b).

77 New York Times, “Bush Plans $1.5 billion Drive for Promotionof Marriage”, January 14, 2004, p. A1.

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A obsessão de Bush por “famílias” compos-tas de pai e mãe heterossexuais casados tambémtem sido levada pelos EUA às negociações daONU, onde, como se sabe, a Santa Sé, a bastantetempo luta para que acordos intergovernamentaisadotem uma mesma e única definição de “famí-lia”. No nível internacional, as muitas tentativasde definir a “família” como a família nuclearocidental, cristã, heterossexual tem fracassado atéo momento, entre outras razões, por entrar emconflito com formações familiares que predomi-nam em outras culturas (como, por exemplo, apoligamia). A definição que continua válida noplano internacional é aquela adotada pela CIPDem 1994, segundo a qual “em diferentes sistemassociais, políticos e culturais, existem diferentes formasde família ”.

Em negociações recentes acontecidas naONU a Administração Bush tem feito reservasem relação a esta definição, as quais são muitosimilares aos argumentos que tradicionalmenteo Vaticano levanta. São declarações que enfatizamo casamento entre um “homem e uma mulher”,o controle dos pais sobre os filhos, e a “estabili-dade” da família. A declaração feita pela delegaçãonorte-americana na Conferência de PopulaçãoÁsia-Pacífico em dezembro de 2002, é, nestesentido, exemplar:

(3) A Família

Os Estados Unidos reafirmam que: “A Família é aunidade natural e fundamental da sociedade e tem odireito de ser protegida pela sociedade e pelo Estado”(Declaração Universal de Direitos Humanos): “Osdireitos de homens e mulheres em idade de casar –se eformar família serão reconhecidos” (Pacto Internacionalde Direitos Civis e Políticos, Artigo 23, 1-2); e que a

“Maternidade e a Infância têm o direito à atenção eajuda especial” (Declaração Universal de DireitosHumanos, Artigo 25, 2). Os Estados Unidosenfatizam que os governos podem ajudar as famíliaspromovendo políticas que fortaleçam a instituição docasamento e ajudem os pais a criar seus filhos de formapositiva e saudável, reafirma a importância da famíliae o papel do tanto dos pais quanto das mães, e incentivaos pais a se comunicar com seus filhos sobre uma condutasexual responsável e sobre a necessidade de retardar ainiciação da atividade sexual.

Em relação aos “direitos reprodutivos” das crianças eadolescentes, os Estados Unidos entendem que essesdireitos estão vinculados aos direitos, deveres er e sponsabi l idade dos pais , os quais t êm aresponsabilidade primária da educação e bem-estar deseus filhos. Em relação a isso, os Estados Unidosreafirmam a importância do envolvimento dos pais nasdecisões que afetam as crianças e adolescentes em todosos aspectos de saúde sexual e reprodutiva, e em outrosaspectos da vida e educação das crianças em relação asquais os genitores têm a responsabilidade primária.79

Nas negociações da ONU sobre saúde, aAdministração Bush também vem adotando amesma tática utilizada pelo Vaticano de substi-tuir a saúde das pessoas ou indivíduos (especifi-camente sua saúde reprodutiva), por “saúde dafamília” e para tanto invoca discursos suposta-mente científicos. Assim, em uma reunião doConselho Diretivo da Organização Pan-Ameri-cana da Saúde (OPS) em setembro de 2003, osEstados Unidos apresentaram uma resoluçãosobre “Saúde da Família” visando reorientar otrabalho da organização.80 A resolução reafirmaa “importância da família, como o contexto onde pela

79 Economic and Social Commission for Asia and the Pacific,Report of the Fifth Asian and Pacific Population Conference, Doc.E/ESCAP/1271 (March 2003), Annex III (b), U.S. GeneralReservation, issued 17 December 2002, disponível em:<www.unescap.org>.80 Pan American Health Organization, Proposed resolution offamily health by the United States, CD44/PR.2, 23 September2003.

78 Essas contradições são antigas na política social dos EstadosUnidos ver, e.g. Linda Gordon, Women’s Body, Women’s Choice,1990; Rosalind Petchesky, Abortion and Woman’s Choice, rev.ed.1990;Rickie Solinger, Beggars and Choosers, How the Politics of ChoiceShapes Adoption, Abortion, and Welfare in the United States, 2001.

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primeira vez se estabelecem as condutas saudáveis...”, ofato de que a “ciência esteja agora revelando como asfamílias fortes incrementam a promoção e proteção de suaprópria saúde”... e de como as “condutas não saudá-veis que ocorrem dentro de um contexto familiar – abusoinfantil, abandono, violência conjugal e doméstica e o aban-dono de pessoas idosas – são ocorrências comuns e decrescente importância para a saúde pública”. A pro-posta de resolução norte-americana sobre “Saú-de da Família” tentava impor um enfoque que,na verdade, oculta e dilui os interesses e necessi-dades dos membros individuais das famílias.Objeções feitas do Canadá evitaram que os Es-tados Unidos conseguissem, então, seu objetivo.

GLBT e diversidade sexual

Os direitos das lésbicas e gays e de pessoascuja sexualidades é “diferente” constituem umobjeto de preocupação urgente por parte dadireita religiosa. Ao longo de 2003 osultraconservadores ficaram muito agitados sobimpacto de uma série de decisões judiciais favo-ráveis aos direitos dessas pessoas. A primeiradelas foi a decisão da Corte de Apelações deOntário (Canadá) de junho de 2003, que assegu-ra o direito constitucional de casamento para osgays e as lésbicas. Alguns dias mais tarde a CorteSuprema dos Estados Unidos julgou o casoLawrence and Gardner v. Texas, revogando leis es-taduais de criminalização da sodomia e declaran-do que os atos sexuais privados consentidos en-tre adultos são protegidos pela Constituição dosEstados Unidos. Finalmente, ocorreu a decisãoda Corte Suprema Judicial de Massachussets, emnovembro de 2003, que dá direito, com base naConstituição do Estado, aos casais gays e lésbicosde se casarem. Coincidentemente, o Vaticano, emjulho de 2003, emitiu uma declaração convidan-do os legisladores do mundo a se oporem aocasamento entre pessoas do mesmo sexo e à ado-ção (de crianças) por parte de casais gays, no que

foi seguido por uma declaração similar do Pre-sidente Bush feita nos jardins da Casa Branca, fatoamplamente divulgado pela imprensa e televisãoao redor do mundo.

Esses acontecimentos terminariam por cri-ar uma franca polarização entre adversários epartidários do “casamento gay”. Os grupos con-servadores chegaram a afirmar que a reativaçãodo debate sobre a união entre pessoas do mes-mo sexo poderia, inclusive, obscurecer o temado aborto que até então era seu maior instru-mento de mobilização.81 Basta percorrer os sitesdos grupos de direita na Internet para confirmaristo.82

Políticos de direita e líderes religiosos ini-ciaram uma campanha para proibir o casamentoentre pessoas do mesmo sexo através de umaemenda constitucional federal. Em maio de 2003,a representante Marilyn Musgrave (Republicana– Colorado) e outros 81 co-patrocinadores apre-sentaram um projeto de lei neste sentido na Câ-mara de Deputados.83 É preciso dizer, porém,que já existe uma lei federal sobre a matéria, aLei de Defesa do Matrimônio (DOMA) tambémaprovada em 1996, durante o governo Clinton.Essa lei afirma que o casamento é uma relaçãoentre homens e mulheres, e nega qualquer pres-tação, como os benefícios para veteranos ou pen-sões, a companheiros ou companheiras do mes-mo sexo. Além disso, a DOMA permite que osestados neguem o reconhecimento de casamen-tos entre pessoas do mesmo sexo realizados emoutros estados.

Após a decisão da Corte Suprema sobre ocaso Lawrence and Gardner v. Texas, o Presidente

81 New York Times, Conservatives Using Issue of Gay Unionsas a Rallying Tool, 8 February 2004, p. 1 e 16.82 Ver Focus on the Family em: <www.family.org>; FamilyResearch Council at <www.frc.org> ou Concerned Women forAmerica, em: <www.cwfa.org>.83 Proposing an Amendment to the Constitution of the UnitedStates Relating to Marriage, H.J. Res. 56.

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Bush afirmou sua oposição frente aos resultadosdo julgamento e declarou que os advogados daCasa Branca já estavam estudando a emendaconstitucional proposta por Musgrave. A baseconservadora começou a fazer pressões para queBush anunciasse o apoio à emenda constitucio-nal. Em resposta, a Casa Branca construiu umaposição que busca defender a tradição sem, con-tudo, parecer demasiadamente intolerante comrelação aos gays e lésbicas. As afirmações doPresidente Bush sobre o casamento gay na suaMensagem do Estado da União de 2004 são, nestesentido, muito ilustrativas:

Uma América forte também deve valorizar a instituiçãodo matrimônio. Eu acredito que devemos respeitar osindivíduos ao mesmo tempo em que adotamos uma posiçãode princípio no que se refere a uma das instituições maisfundamentais e perduráveis de nossa civilização. OCongresso adotou uma posição sobre esse tema quandoaprovou a Lei de Defesa do Matrimônio, sancionadaem 1996 pelo Presidente Clinton. Esse estatuto protegeo matrimônio sob lei federal como sendo uma uniãoentre uma mulher e um homem, e declara que um estadonão pode redefinir o que é o casamento frente as normasdefinidas por outros estados. No entanto, juízes ativistasvêm redefinindo o matrimônio através de decisões judiciais,sem dar devida atenção à vontade do povo e de seusrepresentantes eleitos. Em relação a um tema tãoimportante como esse devemos escutar a voz do povo. Seos juízes insistem em impor sua vontade arbitrária sobreo povo, a única alternativa que resta é o processo derevisão constitucional. Nossa nação deve defender asantidade do matrimônio.

O resultado desse debate é importante, assim como amaneira pela qual ele deve ser conduzido. A mesmatradição moral que define o que é o casamento, tambémensina que cada pessoa tem dignidade e valor perante osolhos de Deus.84

Em fevereiro de 2004, a Casa Branca final-mente anunciou seu apoio à reforma constitu-cional proposta por Musgrave. O texto do pro-jeto afirma o seguinte: “O matrimônio nos EstadosUnidos consistirá exclusivamente da união entre um ho-mem e uma mulher. Esta Constituição ou a constituiçãode qualquer Estado, leis estaduais ou federais, não po-dem ser interpretadas no sentido de requerer que o statusmatrimonial ou incidentes legais dele derivados, sejamconferidos a casais compostos por pessoas solteiras ou agrupos”. Com base nessa redação, a emenda, por-tanto, também visa proibir uniões civis, parceri-as domésticas e alternativas ao matrimônio, sejapara casais gays e lésbicos ou heterossexuais.Assim sendo a proibição do casamento entrepessoas do mesmo sexo e a promoção do casa-mento tradicional são claramente articuladas.85

Como se sabe, após a publicação deste re-latório, em junho de 2004, o tema do casamentogay viria a se constituir numa estratégia centralda campanha eleitoral para a presidência. Emvários Estados a eleição presidencial foi combi-nada com referendos relativos à questão, com oobjetivo de arrastar votos para George Bush. Emonze unidades da federação as proposições fa-voráveis ao casamento entre pessoas do mesmosexo foram derrotadas.

A obsessão dos conservadores com omovimento GLBT e o aborto já atingiu inclusi-ve as políticas do Serviço Nacional de Parques.Sob pressão dos grupos de direita, o Serviço con-cordou em refazer a edição de um vídeo que,desde 1995, é mostrado diariamente no Monu-mento a Lincoln em Washington – documentan-do manifestações ocorridas no parque que cir-

84 A mensagem do Estado da União está disponível em:<www.whitehouse.gov/news/releases/2004/01/20040120-7.html>.

85 O Senado Norte-Americano, que fez uma emenda idêntica àde Musgrave, em novembro de 2003, mudou a versão propos-ta ao eliminar as palavras “nem as leis estaduais ou federais”,em um suposto intento para preservar as uniões civis. No en-tanto, o que deveria ter sido eliminado era a segunda frase com-pleta da emenda ou as palavras “os incidentes legais derivados”.Proposing an Amendment to the Constitution of the UnitedStates Relating to Marriage, H.J. RES. 56.

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cunda o monumento – no sentido de suprimirtoda e qualquer imagem de demonstraçõesGLBT ou favoráveis ao direito ao aborto.86

Ao mesmo tempo, na ONU, os EstadosUnidos se tornariam mais agressivos em relaçãoao tema dos “homens que fazem sexo com ho-mens”. Na Seção Especial sobre HIV/AIDS em2001, os Estados Unidos apoiaram as iniciativasde Egito, Irã, Paquistão e outros para eliminar amenção feita no texto a grupos estigmatizadosque experimentam situação de grandevulnerabilidade à infecção pelo HIV: homens quefazem sexo com homens, trabalhadores e traba-lhadoras do sexo, usuários e usuárias de drogasintravenosas. Todas as referências a recomenda-ções internacionais consagradas no que diz res-peito ao HIV/AIDS e Direitos Humanos tambémforam eliminadas da Declaração de Compromis-so final, porque aparentemente faziam mençãoexplícita aos mesmos grupos.

Durante a negociação, o Egito se opôs àparticipação de uma representante da ComissãoInternacional de Direitos Humanos de Gays eLésbicas (IGLHRC) em uma mesa redonda dediálogo entre ONGs e governos. O Canadá exi-giu uma votação sobre a questão. Enquanto Egi-to, Líbia, Irã, Sudão, Síria, Paquistão e Malásiavotaram contra a presença da IGLHRC, umamaioria de países votou a favor e a IGLHRC foireintegrada à mesa redonda. Nessa ocasião, sig-nificativamente, os Estados Unidos votaram pelareintegração da IGLHRC. Mas não se pronun-ciaram em nenhum momento para defender aparticipação, ainda que a organização seja sediadanos Estados Unidos.

As insinuações utilizadas pelos conserva-

dores para denunciar o “sexo gay” em textos in-ternacionais incluem termos como: “condutasexual de risco” e “conduta sexual responsável”.Para responder à solicitação dos Estados Uni-dos e de seus aliados islâmicos, ambas as frasesforam incluídas na Declaração de Compromis-so emitida pela Seção Especial sobre HIV/AIDSda ONU em 2001.87 Deve-se dizer que a LeiHIV/AIDS, discutida anteriormente, incluiu umarecomendação no sentido de que sejam estabe-lecidos programas que “incentivem homens a ser res-ponsáveis na sua conduta sexual, na educação dos filhos,e respeitar as mulheres.88 Quando se considera o cli-ma ideológico e a agenda de Bush em relação ahomens que fazem sexo com homens, esta reco-mendação suscita preocupações, pois o texto nãoespecifica o que é uma conduta responsável. Estaimprecisão pode fazer com que a recomendaçãose torne um instrumento contra homens que nãose comportam como “verdadeiros homens”.

Aborto e outros serviços de saúde reprodutiva

Um tema que durante muito tempo temestado na agenda da ultra-direita é o aborto, oqual também vem sendo utilizado como argu-mento principal para justificar inúmeras medi-das adotadas ou consideradas pela Administra-ção Bush. Uma análise profunda, porém, revelaque o objetivo fundamental dessas medidas nãoé prevenir ou diminuir o aborto, senão reduzir a

86 Public Employees for Environmental Responsibility,“Religion on Display in National Parks, ChristianFundamentalist Influence on Park Service Decisions, ‘Faith-Based Parks’ Decried,” 22 December 2003, disponível em<www.peer.org/press/415.html>.

87 United Nations, Declaration of Commitment on HIV/AIDS, op. cit. note 75: Para 52. Para 2005, assegura-se que: umaampla gama de programas de prevenção que tenham presentecircunstâncias locais, éticas e valores culturais, estejam disponí-veis em todos os países, especialmente nos mais afetados, in-cluindo informação, educação e comunicação, na linguagem maisentendida pela comunidade e respeitosa das culturas, focado adiminuir condutas de risco e fomentar uma conduta sexualresponsável, incluindo a abstinência e fidelidade, (...)88 HIV/AIDS ACT of 2003, op.cit. note 24, Title III BilateralEfforts, Subtitle A – General Assistance and Programs, Section.104A. Assistance to Combat HIV/AIDS. (1) Prevention (A) and (C).

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autonomia das mulheres sobre decisões que di-zem respeito a suas vidas sexuais e reprodutivas.

Na V Conferência sobre População daÁsia e do Pacífico, realizada em Bangcok emdezembro de 2002, a Casa Branca declarou, pelaprimeira vez publicamente, que “os Estados Uni-dos “apóiam a vida inocente desde a concepção até amorte natural” e assim sendo, “não apóiam, fomen-tam, favorecem abortos, serviços relacionados a aborto ouuso de remédios para abortar”.89 Esse é praticamenteum texto extraído do livro do Vaticano sobre oassunto. Isto não surpreende, pois John Klink,assessor da Santa Sé na Conferência Internacio-nal sobre População e Desenvolvimento (CIPD,1994) e na IV Conferência Mundial sobre a Mu-lher de Pequim (1995) assim como nas negocia-ções da CIPD +5 e de Pequim+5 era um mem-bro destacado na delegação norte-americana emBangkok.

A idéia de que a vida se inicia na concep-ção desde sempre tem sido a crença subjacenteàs ações da Administração, mas nunca havia sidodeclarada de forma tão explícita num fórum in-ternacional. A afirmação está, evidentemente, emcontradição aberta com a Constituição dos Es-tados Unidos, tal como interpretada pela CorteSuprema no julgamento do caso Roe vs Wade(1973) que assegurou o direito constitucional àprivacidade e, em conseqüência, à decisão dasmulheres de recorrer ao aborto (dentro de de-terminados parâmetros). A Administração Bush,evidentemente, confunde sua posição e as de seuspartidários de direita com sendo a “posição dosEstados Unidos”.

Várias conseqüências se desprendem dacrença de que a vida se inicia na concepção. Umadelas é a de que o aborto deve ser proibido oupelos menos severamente restringido. A outra éque alguns anticoncepcionais modernos, que evi-

tam (DIU) ou que podem prevenir (pílulashormonais, que se tomam como anticoncep-cional comum ou de emergência) a implantaçãode um óvulo fertilizado no útero, são considera-dos abortivos. Essa interpretação revela que oque realmente está em jogo neste debate é apossibilidade de que as mulheres possam con-trolar sua fecundidade e, conseqüentemente, suavida sexual.

Na Conferência de Bangkok, os EstadosUnidos tentaram incluir no Plano de Ação lin-guagem referente a “adoção como uma alterna-tiva ao recurso ao aborto, gestações ‘inoportu-nas’ (este termo não é o mesmo que gravidezindesejada; para os conservadores a gravidezdeve sempre ser bem-vinda), “minimizar a inci-dência do aborto” (sem precisar exatamentecomo isto deve ser feito), e “morbidade e mor-talidade relacionada a aborto” (que inclui o feto,contrariamente à frase usualmente utilizada “mor-talidade como resultado do aborto inseguro”,que focaliza a mulher). A delegação norte-ame-ricana tentou suprimir, por completo, qualquermenção aos “direitos reprodutivos” e aos “ser-viços de saúde reprodutiva”(definidos pelaCIPD como incluindo o aborto nos casos emque o procedimento é legal) e também “saúdesexual” e “serviços de saúde sexual”. Os Esta-dos Unidos também insistiram em priorizar mé-todos de planejamento familiar naturais e recu-saram uma proposta de programas que ensinamo “uso constante do preservativo”.

Significativamente, o único êxito dos Esta-dos Unidos, nesta negociação, foi a inclusão deuma referência aos métodos naturais de planeja-mento familiar, sem ênfase ou maior prioridade.As posições extremas dos Estados Unidos, suaconduta torpe e intransigente, alienaram comple-tamente as delegações da Ásia e do Pacífico. Emdecorrência, depois de alguns dias de negocia-ção, produzir-se-ia uma forte coesão entre elespara rejeitar, em bloco, as emendas propostas

89 Economic and Social Commission for Asia and the Pacific,op.cit. note 75.

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pela delegação norte-americana e confirmarapoio aos direitos reprodutivos e ao Programade Ação da CIPD. É interessante destacar queinclusive países aliados da Administração Bushna chamada “guerra contra o terror” – como oPaquistão e as Filipinas – abandonaram os EstadosUnidos, deixando-os isolados por completo.

O uso de argumentos relacionados ao abor-to para debilitar os direitos reprodutivos, na ver-dade, foi anunciado no segundo dia da Adminis-tração Bush, em 22 de janeiro de 2001, quando opresidente impôs uma vez mais a chamada “Re-gra da Mordaça Global” (Global Gag Rule –GGR). A GGR é também conhecida como a“Política da Cidade de México”, pois foi anuncia-da pela primeira vez pela Administração Reagandurante a Conferência de População de 1984 queaconteceu na Cidade do México. Essa políticarestringe as ONGs estrangeiras que recebem fun-dos de planejamento familiar da USAID a utili-zar recursos próprios ou de outras fontes – e nãoapenas fundos norte-americanos –, para ofere-cer serviços de abortos legais, fazer mobilizaçõesem seus países para que o governo reforme suasleis sobre o aborto, ou mesmo oferecer assesso-ria médica ou referenciar pacientes para servi-ços de interrupção da gravidez. O atual progra-ma de planejamento familiar da USAID conta comum orçamento de US$ 432 milhões e, ao redordo mundo, milhares de organizações dependemdestes recursos para manter suas atividades.

Recentemente o Presidente expandiu oGGR a todos os programas do Departamentode Estado para “planejamento voluntário de po-pulação oferecido a organizações não-governa-mentais”.90 Este portfólio inclui programas para

refugiados, alguns dos quais têm componentesestratégicos de saúde reprodutiva. Não se sabeexatamente quanto dinheiro está em jogo nessesprogramas, mas um ex-funcionário do Departa-mento de Estado estima que o volume total sejamenor de US$ 40 milhões, valor frequentementemencionado por grupos de direita quando tra-tam do assunto.

O uso de fundos públicos dos EstadosUnidos para serviços de abortos no exterior jáestava proibido por lei desde 1973.91 Como re-sultado, os fundos norte-americanos eram desti-nados exclusivamente a outros serviços de saúdereprodutiva, como planejamento familiar, tratamen-to de DST e atenção ao pré-natal. Assim sendo,a GGR de fato não tem grande efeito no que dizrespeito a impedir o financiamento norte-ameri-cano para serviços de abortos. Cabe perguntar,portanto, o que se pretende com aplicação deuma regra tão draconiana? A reedição da GGRindica que a Administração, na verdade, preten-de restringir outros serviços de saúdereprodutiva, assim como a liberdade de expres-são de defensores do aborto legal e o dever dosprofissionais de saúde no sentido de aconselharos pacientes sobre procedimentos médicos le-gais de aborto.

Os efeitos da GGR já estão sendo sentidosem muitos lugares. Grupos que recebem dinhei-ro da USAID, na América Latina, África e Ásianão podem participar no debate nacional sobrea reforma da lei do aborto, ou referir pacientespara abortos legais. Grupos que se recusaram aassinar a cláusula da GGR foram obrigados areduzir significativamente seus serviços de saú-de reprodutiva –, e isto provavelmente contri-buirá para aumentar a incidência da gravidez

90 Associated Press, <www.seacoastonline.com/news/08302003/world/47580.htm>, Agence France-Presse, <http://story.news.yahoo.com/news?tmpl=story&u=/afp/20030829/hl_afp/us_abortion_aid_bush_030829231126>, and Los Angeles Ti-mes (CA), <www.latimes.com/news/nationworld/world/la-fgfamily30aug30,1,6418240.story>.

91 A emenda Helms à Lei de Assistência Exterior: “nenhumdos fundos utilizáveis para executar essa parte (programas dedesenvolvimento e de assistência humanitária) podem ser utili-zados para pagar abortos como método de planejamento fami-liar ou para forçar qualquer pessoa a praticar um aborto”.

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indesejada e de abortos.92 Ou seja, o que está em jogonão é uma preocupação moral exclusiva com oaborto, mas um ataque frontal aos serviços desaúde sexual e reprodutiva no sentido amplo e adebilitação dos grupos que promovem os direi-tos sexuais e reprodutivos.

Ativistas deste campo temem, inclusive, queuma versão modificada da GGR possa ser apli-cada a alguns ou a todos os programas da lei doHIV/AIDS, comprometendo, portanto, os US$15 bilhões prometidos, o que automaticamenteimpediria várias ONGs envolvidas com os di-reitos sexuais e reprodutivos de solicitar financia-mento desta fonte. Mas até o momento o Presi-dente Bush tem descartado essa possibilidade.

Por outro lado, o orçamento do Presiden-te Bush para o Ano Fiscal 2003 reduziu em 21,5milhões de dólares a assistência internacional parao planejamento familiar e a saúde reprodutiva(US$ 425 milhões em 2003 contra US$ 446 mi-lhões em 2002). Enquanto as necessidades deplanejamento familiar continuam crescendo nomundo inteiro, o mesmo valor (US$ 425 milhões)foi mantido no orçamento de 2004,93 mas o Con-gresso conseguiu ampliar o valor total para US$432 milhões.94

No âmbito doméstico, a Lei de Proibi-ção do Aborto Tardio (Partial Birth AbortionBan Act) de 2003, patrocinada pelo Senador RickSantorum (Republicano da Pensilvânia), foi san-cionada pelo Presidente em novembro de 2003.Esta lei é assim chamada – aborto do nascimen-to parcial – em razão de um tipo de procedi-

mento médico que na verdade foi inventado eao mesmo tempo proibido pela própria lei. Alei pode, na prática, proscrever várias técnicasutilizadas para fazer abortos seguros, posterio-res ao primeiro trimestre de gravidez. Utilizan-do as estratégias do movimento antiaborto, ospartidários da Lei fizeram o possível para retra-tar fetos abortados como se fossem bebês e “se-res completos”. Como bem disse o PresidenteBush na cerimônia de assinatura da Lei:

Durante anos, uma terrível forma de violência foidirigida contra crianças que estão apenas a centímetrosde nascer, e a lei se omitia em relação a isto. Hoje,finalmente, o povo norte-americano e nosso governoconfrontaram a lei e se manifestaram para defendercrianças inocentes.95

A lei é praticamente idêntica à uma lei doEstado de Nebraska que, em 2000, foi anulada,pela Suprema Corte, por 5 votos contra quatro.O argumento dos juízes que revogaram a normaé de que a lei era ambígua e carecia de uma prer-rogativa visando preservar a saúde da mulher.Assim é possível que a nova lei federal seja de-clarada inconstitucional pela Corte Suprema – anão ser que, especialmente após a reeleição deBush em 2004, a composição da Corte seja alte-rada. O presidente tem manifestado em váriasoportunidades seu objetivo de substituir juízesliberais por juízes conservadores. Por enquanto,continuam sendo levantados questionamentosjudiciais em relação à lei e seu efeito está tempo-rariamente suspenso, mas apenas no que diz res-peito aos reclamantes diretos: as clínicas da Fe-deração de Planejamento Familiar da América(Planned Parenthood Federation of América),membros da Federação Nacional pelo Aborto(National Abortion Federation) e, alguns médi-cos de Nebraska. O Departamento de Justiça dos

92 Planned Parenthood of America, The Bush Administration,The Global Gag Rule, and HIV/AIDS Funding, June 2003, dispo-nível em: <www.ppfa.org>.93 <www.planetwire.org/wrap/files.fcgi/2282_FY2003.htm>e <www.state.gov/documents/organization/17227.pdf>.94 Consolidated Appropriations Bill, H.R.2673, Division D,Foreign Operations, Export Financing and Related ProgramsAppropriations, 2004, Title II, Bilateral Economic Assistance –Child Survival and Health Program Fund.

95 New York Times, “Bush Signes Ban on a Procedure forAbortions”, 6 November 2003, p. A1.

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Estados Unidos tomou medidas sem preceden-tes para defender a lei. Recentemente emitiumandatos judiciais para obter os prontuários clí-nicos de mulheres que fizeram abortos em pelomenos seis hospitais, supostamente para demons-trar que esse procedimento de aborto nunca énecessário para preservar a saúde da mulher.Felizmente, os tribunais negaram os mandatos.Entre muitos efeitos nocivos, a lei complicará oacesso ao aborto por parte de mulheres pobrese jovens. Sabe-se que, por temor, vergonha e fal-ta de dinheiro, as adolescentes pobres tendem aprocurar um serviços de aborto após 15 sema-nas de gravidez.96

Outras iniciativas dos opositores do direi-to ao aborto estão em trâmite no Congresso, comapoio ativo da Casa Branca. A mais destacada éa Lei das Vítimas Não Nascidas da Violência(H.R., 1997) que, sem maior precisão, visa pro-teger mulheres grávidas da violência, ao mesmotempo em que afirma que um feto ou embriãoserá considerado “um membro da espécie homosapiens, em qualquer etapa de seu desenvolvimen-to”, ou seja, uma pessoa. O projeto de lei foiaprovado pela Câmara em 26 de fevereiro de2004 e espera-se que seja aprovado pelo Senado.

Outras medidas que estão sendo conside-radas incluem: um esforço para utilizar fundospúblicos para apoiar clínicas (“centro de crisesrelacionadas a gravidez”) cujo objetivo é o detentar convencer mulheres a não abortarem;97

proibição de que se receite anticoncepção deemergência em clínicas que estão localizadas emescolas; e uma diretriz ao Instituto Nacional deSaúde (National Institute of Health – NIH) paraque se façam pesquisas sobre a “síndrome pós-aborto” (um evento considerado fictício pelamaioria dos especialistas).

A Administração também tem pressiona-do o Instituto Nacional de Saúde (NIH) em rela-ção a pesquisas sobre outros aspectos relaciona-dos ao aborto. Em 25 de novembro de 2002, oInstituto Nacional do Câncer (INC) publicou umaficha técnica chamada “Eventos ReprodutivosPrematuros e o Câncer de Mama” cuja intençãoera a de substituir uma ficha técnica, anteriormentepostada, “Aborto e Câncer de Mama”, a qual argu-mentava existir uma correlação epidemiológicaentre o recurso ao aborto e a incidência do cân-cer de mama. A segunda ficha técnica desmasca-rava este mito construído pelos conservadorese que vinha sendo divulgado nos EUA e no mun-do há tempo. Declarava que os estudos são “in-consistentes” pois os primeiros estudos sugerin-do um vínculo entre o aborto e o câncer de mamasão cientificamente errôneos, e que estudos maisbem desenhados não encontraram nenhuma cor-relação convincente.98 A Junta de Assessores Ci-entíficos e a Junta de Conselheiros do Institutotambém concluiu, em 3 de março de 2003,99 nãohaver evidência de que o aborto aumenta o riscode câncer de mama. Muito embora este informeextenso e qualificado tenha sido publicado namesma página na web, a ficha técnica original ain-da não foi retirada ou modificada.

96 Stanley K. Henshaw, “Unintended pregnancy in the UnitedStates”, Family Planning Perspectives, 1998, 30(1): 24-29 & 46; AlanGuttmacher, Induced abortion, Fact sheet, disponível em:<www.guttmacher.org/pubs/fb_induced_abortion.html>.97 Ver H.RES.233, “Expressing the Sense of the House ofRepresentatives with Respect to Pregnancy Resource Centers”,atualmente perante o Sub-Comitê de Saúde da Câmara de Re-presentantes. A Resolução é o primeiro passo para uma nova leique daria apoio financeiro a 2500 centros de recursos para aGravidez, cuja missão explícita é aconselhar a mulheres sobre“os efeitos nocivos do aborto” e sobre “alternativas como aadoção e ser pais”.

98 World Health Organization, Abortion Does Not IncreaseThe Risk of Breast Cancer, Fact Sheet no 240, June 2000.99 Ver International Women’s Health Coalition, “Bush’s OtherWar: The Assault on Women’s Sexual and Reproductive Healthand Rights,” disponível em: <www.iwhc.org>; e <www.house.gov/reform/min/inves_admin/admin_hhs_ info.htm>,<www.cancer.gov/cancer_information/doc.aspx?viewid=8cf78b34-fc6a-4fc7-9a63-6b16590af277>, e <www.cancer.gov/cancerinfo/ere-workshop-report>.

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No esforço para negar atenção reprodutivaàs mulheres, com base no argumento de que o quese busca é reduzir a incidência do aborto, a CasaBranca tem encontrado formas muito criativaspara cristalizar na lei e nas políticas públicas aidéia de que o feto é uma pessoa. Por exemplo,em outubro de 2002, uma regulação emitida pelaAdministração no marco do Seguro Estatal deSaúde Infantil Plus (State Child Health InsurancePlus - SCHIP) estendeu a cobertura de saúde acrianças de baixa renda – para os “não nascidos,desde a concepção até a idade de 19 anos”. Poucotempo depois da adoção desta nova regulamenta-ção, a Administração retirou apoio a um projetode lei bipartidário que incluía mulheres grávidasde baixa renda no SCHIP, argumentando que estamedida já não era necessária, pois tal como definida,a cobertura estava sendo assegurada diretamenteao feto. Além disto, o tratamento de hemorragi-as durante o parto não é coberto pela nova lei100.

Da mesma forma, o Presidente Bush temdemonstrado pouco apoio aos serviços de pla-nejamento familiar tal como são tratados sob oTítulo X da Lei de Serviços de Saúde Pública,um programa que oferece assistência àanticoncepção, exames ginecológicos e de aten-ção à saúde preventiva, assim como detecção dahipertensão, da anemia, e da diabetes para maisde 4,8 milhões de norte-americanos, a maioriados quais não têm seguro de saúde. As solicita-ções orçamentárias do Presidente Bush para osanos fiscais 2003, 2004 e 2005 não incluíram ne-nhum aumento de financiamento para o progra-ma, que atualmente só recebe US$ 275 milhões.Se o orçamento desse programa tivesse sido ajus-tado pelas taxas de inflação (sem mesmo consi-derar o aumento do número de usuários) seu totaldeveria ser hoje de US$ 590 milhões101.

Finalmente, a Casa Branca nomeou um gru-po de ativistas anti-aborto para cargos impor-tantes em todos os níveis da Administração, al-guns dos quais (Claude Allen, Bill Steiger) já fo-ram mencionados. Mas é preciso mencionar tam-bém W. David Hager, médico, nomeado em de-zembro de 2002 para Assessor para Fármacosde Saúde Reprodutiva da Administração deFármacos e Alimentos (FDA). O Dr. Hager, quefoi membro do Conselho de Médicos da ONGEnfoque na Família (Focus on Family), recente-mente apoiou a Associação Cristã Médica(Christian Medical Association) numa “petiçãode cidadãos” que solicitava ao FDA reverter suaposição a respeito da mifepristona (RU-486). ODr. Hager não receita anticoncepcionais paramulheres solteiras, apóia a afirmação incorretade que os anticoncepcionais de emergência sãoabortíferos; e recomenda que as mulheres quesofrem da síndrome pré-menstrual dever ler aBíblia e rezar.

A despeito da nomeação de Hager, o Co-mitê Assessor para Fármacos de SaúdeReprodutiva do FDA tem surpreendido ao to-mar posições liberais e independentes. Em de-zembro de 2003, por exemplo, o Comitê reco-mendou numa proposta conhecida como PlanoB, que a anticoncepção de emergência102 fosse

101 National Family Planning and Reproductive HealthAssociation, “President Bush sends FY05 Budget to Congress:Flat Funding Proposed for Title X as Abstinence FundingSoars,” disponível em: <www.nfprha.org/uploads/FY2005PresidentRequest.pdf>, consultado em 10 fevereiro2004.102 As pílulas anticoncepcionais de emergência são uma dose depílulas anticoncepcionais que se são tomadas dentro das 72horas após ter relação sexual sem proteção, evitam a gravidezimpedindo a ovulação, fertilização ou prevenindo a implanta-ção do óvulo fertilizado, os anticoncepcionais de emergêncianão são RU-486, e não podem interromper a gravidez. VerOrganization, Emergency Contraception: A Guide for Service Delivery,1998. Ativistas anti-aborto afirmam que a vida começa durantea concepção e que prevenir a implantação de um óvulo fertiliza-do equivale a um aborto.

100 Ver: http://cms.hhs.gov/providerupdate/regs/cms2127f.pdfe http://bingaman.senate.gov/Issues/Health_Care/uninsured_pregnant/test_bingaman/test_bingaman.html

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disponibilizada sem receita médica. No entanto,depois disto, numa decisão insólita – atribuída apressão política dos conservadores – o FDAsubitamente anunciaria em fevereiro de 2004 queainda necessitava de mais 90 dias para comple-tar o estudo da implementação do Plano B.103

Neste terreno, o apego de Bush pela pure-za ideológica vai muito longe. A revistaNewsweek recentemente informou que a primeiraequipe de especialistas do Departamento deEstado enviado ao Iraque sob a responsabili-dade do Tenente-coronel James Garner foi inves-tigado pelos ideólogos de direita na Casa Bran-ca: “O processo de verificação” ‘foi tão severoque inclusive definiu como critério que os médi-cos enviados para reconstruir o sistema de saú-de do Iraque deveriam ser contra o aborto’, dis-se um dos integrantes da equipe Garner”.104

Muitos opositores do aborto e dos serviços desaúde reprodutiva também foram nomeadospelo Presidente Bush para o judiciário. Atéagora, o Senado não ratificou a maioria dessesnomes.105

FNUAP – Fundo de População das NaçõesUnidas

O FNUAP (UNFPA) agência das NaçõesUnidas para atividades de população que é omaior financiador mundial de planejamento fa-miliar e serviços de saúde reprodutiva, tem sidoalvo permanente de grupos religiosos eultradireitistas nos Estados Unidos.106 Desde osanos 1980, este setores tentam, conscientemen-

te, debilitar o FNUAP e a Casa Branca de Bushtem respondido positivamente a esta agenda.

Em 2001, o Congresso aprovou US$ 34milhões para o FNUAP. Poucos meses depois, oPresidente Bush pessoalmente bloqueou o de-sembolso desses fundos, com base em afirma-ções do Instituto de Pesquisa Populacional, pe-queno grupo ultraconservador que desde muitotempo afirma que o FNUAP apoiou o aborto ea esterilização forçados na China. Na ocasião, oDepartamento de Estado nomeou um seleto gru-po para investigar as acusações. A equipe nãoencontrou evidências de que o FNUAP houves-se financiado abortos forçados e recomendouque o financiamento dos EUA fosse mantido.Para não liberar os recursos, a Administraçãodesconsiderou o informe e invocou uma lei anti-ga (conhecida como a emenda Kemp Kasten, de1985) que proíbe financiar programas de abor-tos e esterilizações coercitivas.107 Também afir-mou que o simples fato de trabalhar em cola-boração com o sistema institucional de planeja-mento familiar chinês (uma colaboração que in-clusive visava persuadi-las a abandonar medidascoercitivas) era o mesmo que participar de umprograma de aborto forçado.

O uso da Kemp Kasten para obstruir ofinanciamento de FNUAP é especialmente carac-terizado pelo cinismo, pois o FUNAP vem atu-ando ativamente no sentido de persuadir ao go-verno chinês a flexibilizar a conhecida “políticado filho único” e as práticas coercitivas dela re-

103 Washington Post, “FDA Delays Decision on ‘Morning After’Pill”, February 14, 2004; Page A15.104 John Barry and Evan Thomas, “The Unbuilding of Iraq”,Newsweek, October 6, 2003, page 35.105 Para uma lista completa ver: International Women’s HealthCoalition, “Bush’s Other War: The Assault on Women’s Sexualand Reproductive Health and Rights”, disponível em:<www.iwhc.org>.

106 Ver, por exemplo, os sítios Web de Catholic Family andHuman Rights Institute at www.c-fam.org; Population ResearchInternational em: <www.pop.org>; Focus on the Family em:<www.family.org>; Family Research Council em:<www.frc.org>; ou Concerned Women for America em:<www.cwfa.org>.107 A emenda Kemp-Kasten de 1985 proíbe o financiamentocom fundos de cooperação externa a qualquer organização que,com a determinação do Presidente, “apóia ou participa na ad-ministração de um programa de aborto coercitivo ou de esteri-lização involuntária”.

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sultantes. Nos 32 distritos onde o FNUAP finan-cia programas na China, as cotas e metas de pla-nejamento familiar foram abandonadas. OFNUAP também está tentando convencer oGoverno Chinês a abandonar os elevados “pa-gamentos de compensação social” que são im-postos às pessoas que têm mais de um filho.108

Uma nota do Departamento de Estado sobre aChina, disponível atualmente na sua página web,afirma que “Esforços internacionais recentes, incluindoaqueles financiados pelo FNUAP, estão demonstrandoàs autoridades governamentais que um enfoque voluntá-rio, não coercitivo, de planejamento familiar, pode serefetivo para a promoção do crescimento sustentável dapopulação”.109

Obviamente, se a Administração Bush esti-vesse interessada em eliminar os abortos força-dos na China, deveriam financiar o FNUAP enão o contrário. O corte na contribuição norte-americana para a agência representa 12% doorçamento de FNUAP, um déficit só seriaparcialmente diminuído devido a um aumentodas contribuições européias e do setor privado.Esta é mais uma evidência de que a Casa Brancade Bush está, de fato, implementando uma agendaampla que visa debilitar os organismos queatuam em saúde reprodutiva e planejamento fami-liar, bem como a autonomia sexual e reprodutivadas mulheres, quer seja nos Estados Unidos, querseja no mundo em desenvolvimento.

Como prova adicional desta agenda, bastadizer que a Administração prometeu que os 34milhões de dólares retirados do FNUAP seriamredirecionados a programas de planejamentofamiliar em 19 países, inclusive 13 na África, atra-vés da Agência Internacional para o Desenvolvi-

mento dos Estados Unidos (USAID). No entanto,em janeiro de 2003, o Departamento de Estadoanunciou sua intenção de utilizar esses fundos paraprogramas que não são de planejamento familiar,apenas no Afeganistão e Paquistão. O PresidenteBush não solicitou financiamento para FNUAPnos anos fiscais de 2003, 2004 e 2005. O Con-gresso, divergindo da posição da Casa Branca,designaria 34 milhões dólares para a agência paraestes três anos. Contudo, a liberação desses fun-dos continua bloqueada pelo Executivo.110

A implementação da lei Kemp Kasten,num estilo “Alice no país das maravilhas “come-ça agora a afetar outros grupos e programas. Em27 de agosto de 2003, o Departamento de Esta-do suspendeu os fundos de um programa deAIDS para refugiados africanos e asiáticos,implementado por um Consórcio de SaúdeReprodutiva para Refugiados, gerenciado porsete ONGs. Uma delas, a Marie StopesInternational (MSI), tinha trabalhado com oFNUAP na China durante muitos anos. Com baseno argumento dessa colaboração e sem nenhu-ma investigação, o Departamento de Estado,subitamente, concluiu que o MSI111 apoiava abor-tos e esterilizações. Para os outros grupos doconsórcio – o Comitê Internacional de Resgate(CARE), o Comitê Americano de Refugiados(American Refugee Committee), a Comissão deMulheres para Mulheres e Crianças Refugiadas(Women´s Commission for Refugee Women andChildren), a John Snow International e o Depar-tamento de População e de Saúde Familiar daUniversidade de Columbia (Department of

110 <www.planetwire.org/details/2937>, <www.state.gov/r/pa/prs/dpb/2002/12036.htm>, <www.kaisernetwork.org/daily_reports/rep_index.cfm?DR_ID=15660>, e <www.state.gov/documents/organization/17238.pdf>.111 The Guardian, “US Ends Funds for African AidsProgramme”, August 28, 2003, disponível em: <www.guardian.co.uk/aids/story/0,7369,1030583,00.html>, consultado em 27de janeiro de 2004.

108 Catholics for A Free Choice, Report of an InterfaithDelegation to China, The United Nations Population Fund inChina: A Catalyst for Change, 2003.109 U.S. Department of State, “China: Background Note”, datedMarch 2003, disponível em: <www.state.gov/r/pa/ei/bgn/18902.htm>, consultado em 18 de fevereiro de 2004.

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Population and Family Health of the ColumbiaUniversity) foi oferecido dinheiro caso elas sedispusessem a repudiar a Mary StopesInternational. Essas instituições declinaram desta“oferta”, alegando que não iriam comprometera coesão do consórcio com base em “declara-ções infundadas”.112 Um porta-voz do Departa-mento de Estado afirmou em artigo publicadono New York Times, em 27 de agosto de 2003,o seguinte: “Estamos decepcionados que por razõesde solidariedade com a Marie Stopes International elestenham recusado nosso dinheiro. Esperávamos que essasorganizações demonstrassem mais compromisso huma-nitário”.113

Mas, sem dúvida, muita coisa ruim aindapode acontecer. A legislação do HIV, na seçãosobre cooperação bilateral, lista uma série deagências da ONU com as quais o Presidente estádisposto a cooperar – mas não menciona oFNUAP,114 e inclui uma citação verbatim da LeiKemp Kasten.115

Pesquisa sobre conduta sexual, especialmenteGLBT e trabalhadores(as) do sexo

A Administração Bush, especialmente oDepartamento de Serviços Humanos e de Saúde,assim como deputados Republicanos, vem ques-tionando agressivamente pesquisas sobre temasditos “sensíveis”. A pesquisa sobre conduta se-

xual em geral, mais especialmente sobre as práti-cas sexuais de pessoas GLBT, é seu alvo principal.O mesmo ocorre com pesquisas sobre trabalha-dores(as) do sexo. A equipe do NIH e pesquisa-dores de várias universidades norte-americanastêm sido vítimas destas pressões.

Durante o ano de 2003, Roland Foster, fun-cionário de um Comitê da Câmara de Deputadospresidido pelo Deputado Mark Souder (Republi-cano de Indiana), enviou repetidas consultas aoNIH expressando preocupação quanto a doaçõespara pesquisas relacionadas com a conduta sexuale a sexualidade.116

Um desses pesquisadores é Tooru Nemotoda Universidade da Califórnia, São Francisco(UCSF), que realiza pesquisas sobre a prevençãodo HIV em trabalhadores(as) do sexo asiáticos(as)e sobre homens transgêneros que estão planejan-do uma operação de mudança de sexo. Em janei-ro de 2003, funcionários do Departamento deServiços Humanos e Saúde entraram em contatocom Nemoto para pedir informações sobre seutrabalho e a administração de doações fornecidaspelo NIH. Poucas semanas depois, o NIH anun-ciou que várias agências planejavam uma visita insitu para discutir as doações utilizadas porNemoto – uma ação “insólita”, segundo o ad-ministrador de doações e contratos de UCSF,Joan Kaise, segundo quem essas perguntas geral-mente são feitas por carta ou telefone. Kaise tam-bém informou que, no final de março de 2003,quatro funcionários do NIH estiveram por doisdias na UCSF perguntando sobre procedimen-tos. Também percorreram toda a universidadeescutando os argumentos científicos da equipede Nemoto. Desde então os funcionários daUCSF “não receberam nenhuma comunicação”,e supuseram, portanto, que não haviam sido

112 New York Times, “US Ends Funds for AIDS Program,Provoking Furor”, August 27, 2003, disponível em: <www.nytimes.com/2003/08/27/international/asia/27AIDS.html>,consultado em 27 janeiro de 2004.113 Ibid.114 HIV/AIDS ACT of 2003, op.cit. note 24, PL 107-193, TitleIII—Bilateral efforts, Subtitle A—General Assistance andPrograms, Section. 104A. Assistance to Combat HIV/AIDS.(3)Coordination of Assistance Efforts.115 HIV/AIDS ACT of 2003, op.cit. note 24, PL 107-193, TitleIII—Bilateral efforts, Subtitle A—General Assistance andPrograms, Section. 104A. Assistance to Combat HIV/AIDS(c) Conforming Amendment.

116 Jocelyn Kaiser, “Studies of gay men, prostitutes come underscrutiny”, Science, Friday, April 18, 2003, available at<www.csis.org>.

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identificados problemas na administração dosrecursos.117

Mais tarde, em 11 de abril de 2003, o mes-mo Sr. Foster enviou uma carta ao NIH fazendoperguntas sobre outra doação feita à UCSF paraestudos sobre prevenção ao HIV entre homensgays. O memorando de Foster solicitava infor-mação detalhada sobre a doação, incluindo osnomes dos membros do comitê que havia apro-vado a pesquisa assim como a pontuação quehavia atribuído ao estudo. Foster também exigiuuma lista de todos os estudos feitos pelo NIH,durante a última década sobre prevenção doHIV/AIDS e sobre prostitutas.118 A despeito dapressão, o NIH não forneceu a lista.

Em julho de 2003, a Câmara de Deputa-dos derrotou, por uma pequena margem de vo-tos, uma emenda apresentada por PatrickToomey (Republicano da Pensilvânia) que pro-punha negar o financiamento para quatro proje-tos de pesquisas sobre sexualidade do NIH e doInstituto Nacional de Saúde Infantil e Desenvolvi-mento Humano. As doações incluíam pesquisassobre “Risco Sexual”, “Tendências Longitudinaisna Conduta Sexual de Homens mais Velhos”,“Reprodução do Risco entre Mulheres AsiáticasTrabalhadores(as) do sexo em Salões de Massa-gem em São Francisco que são usuárias de Dro-gas” (uma doação para Nemoto), e um “Surveysobre Saúde de Pessoas Gays, Lésbicas, Bissexuaise Transgêneros das comunidades Indígenas norte-americanas”.119

Finalmente, em setembro de 2003, a “Co-alizão para os Valores Tradicionais” circulou noCongresso uma lista de aproximadamente 250doações para pesquisas em sexualidade do NIH.A lista incluía doações para: educar estudantesuniversitários sobre infecções sexualmente

transmissíveis, estudos sobre preservativos femi-ninos, melhor compreensão das histórias de cân-cer em homens vivendo com HIV, prevenção desuicídio entre gays e lésbicas, identificação de fa-tores de risco para infecções sexualmentetransmissíveis, diminuição do estigma relaciona-do ao HIV e a luta contra a transmissão do HIVentre usuários de drogas na população rural. Asinstituições que patrocinavam estas pesquisaseram as universidades de Baylor, Emory,Harvard e Johns Hopkins. Citando as solicita-ções dos parlamentares Republicanos, o NIHconvocou, aparentemente, 157 pesquisadorespedindo que descrevessem os benefícios de seustrabalhos e “para informar que seus nomes esta-vam incluídos num lista que estava sendo circu-lada em Washington”.120 É provável que a listatenha sido criada pela Coalizão para os ValoresTradicionais por pessoas que trabalham no Departa-mento de Serviços Humanos e de Saúde a partir de ban-cos de dados oficiais.121

Off the record, equipes do NIH tem adverti-do aos pesquisadores que solicitam recursos doinstituto que eliminem determinados termos desuas propostas de pesquisa, como por exemplo:“eficácia do preservativo”, “transgênero”, “ho-mens que fazem sexo com homens”, “trabalha-dor sexual comercial”, “troca de agulhas” e“aborto”. A razão da recomendação, segundoum funcionário, é diminuir a visibilidade do pro-jeto frente ao escrutínio dos conservadores.122

117 Ibid.118 Ibid.119 <www.cossa.org/sexual%20research%20grants.htm>.

120 CBS News, “Sex, AIDS Research Under Scrutiny”, 28 October2003, disponível em: www.cbsnews.com/htdocs/send_article/framesource.html?story_headline=Sex, +AIDS+Research+Under+Scrutiny&story_url=http://www.cbsnews.com/stories/2003/10/28/health/main580425.shtml, consul-tado em 14 de fevereiro de 2004.121 Carta do Representante Henry Waxman ao Secretário TommyThompson, em 27 outubro de 2003, disponível em:<www.cossa.org/CPR/thompson.10.27.03.PDF>.122 Kaiser, op. cit. note 111.

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Bernardine Healey, ex-diretora do NIH,analisou essas pressões num editorial recente:

A controvérsia não é sobre a investigação médica, oprocesso de revisão cientifico do NIH, ou mesmo sobreo dinheiro envolvido. Mas sim, sobre uma agenda que“transformou” as doações relacionadas à sexualidadenum “poço de luxúria”. Trata-se de um pretexto paraimpor a golpes de martelo a visão de que o sexo estáfora de controle nos Estados Unidos e que isto estáerodindo valores tradicionais, corrompendo crianças,fomentando a homossexualidade, e arruinando ocasamento.123

A intimidação feita pela Administração eseus aliados tem claramente a intenção de dissu-adir a pesquisa científica sobre sexualidade e prá-ticas sexuais. Também ameaça diretamente a tra-dição firmada pelos pareceristas científicos (peerreview) no financiamento governamental de pes-quisas, o que pode ter conseqüênciasimprevisíveis. Judy Auerbach, que trabalhou oitoanos e meio no NIH e que foi, até agosto de2003, Diretora do Programa de CiênciasComportamentais e Sociais da Unidade de Pes-quisa em AIDS do NIH, afirma que as Adminis-trações de Reagan e de Bush pai também haviamse engajado em escrutínios episódicos das pes-quisas relacionadas ao sexo. Mas ela afirma que,em trinta anos de existência, o NIH nunca expe-rimentou pressões tão extremas como as que es-tão sendo aplicadas por esta Administração:

Hoje as equipes do NIH estão muito relutantes no quediz respeito a emitir pareceres sobre pesquisas ou mesmoconvocar reuniões sobre temas percebidos como sendoaltamente sensíveis, como é o caso de microbicidas parauso em relações anais, ou prevenção ao HIV entretrabalhadores(as) do sexo. O pessoal do NIH se sentecensurado e golpeado, e os pesquisadores estão tensos.As pressões estão tendo um efeito paralisador sobretodo mundo.124

Os cientistas, porém, têm se organizadopara protestar contra as iniciativas de intimida-ção por parte da administração e vem publican-do informes e editoriais que defendem a pesqui-sa em sexualidade.125 Em janeiro de 2004, EliasA. Zerhouni, o atual diretor do NIH, emitiu umadeclaração de apoio a essa linha de pesquisa, naqual expressou sua completa confiança no pro-cesso de revisão científica do NIH.126

Tráfico e trabalho sexual

A investigação da ultradireita sobre os es-tudos de trabalhadores(as) do sexo se apóia navisão conservadora de que toda prostituição deveser erradicada porque ofende a dignidade dasmulheres. Os(as) trabalhadores(as) do sexo sãoapresentados(as) como vítimas que devem sem-pre ser resgatadas dessa forma de violência se-xual. A autonomia e o livre arbítrio das mulhe-res são consideradas como sendo inexistentes.Por exemplo, um memorando do funcionárioFoster (ver acima), enviado ao NIH em marçode 2004, argumenta que ao estudar maneiras deproteger a saúde de trabalhadores(as) do sexo,os estudos financiados pelo NIH, “procuram le-gitimar a exploração sexual comercial das mu-lheres... Isso vai contra a diretriz de fevereiro do

123 Bernadine Healey, “Smarm and the country”, US News andWorld Report, Science & Society, 2 February 2004, disponível em:<www.usnews.com/usnews/issue/archive/040202/20040202043094.php>.

124 Conversação pessoal da autora com Judy Aurbach, 28 dejaneiro de 2004.125 Ver e.g. United Press International, “Medical journal editordefends sex studies”, December 03, 2003, disponible em:<www.aegis.com/news/upi/2003/UP031201.html>, consul-tado em 14 de janeiro de 2004; Healey, op. cit. note 118; New YorkTimes, “Scientists Say Administration Distorts Facts: AccusationsInclude Suppressing Reports and Stacking Committees”,February 19, 2004, p. A18; e Union of Concerned Scientists,Scientific Integrity in Policymaking: An Investigation into the BushAdministration’s Misuse of Science, February 23004, disponívelem: <www.ucusa.org/documents/RSI_final_fullreport.pdf>.126 Carta de Elias A. Zerhouni ao Senador Judd Gregg, Presi-dente, Comitê de Saúde, Educação, Trabalho e Pensões, 26 dejaneiro de 2004, disponível em: <www.cossa.org/CPR/NIHgrantsreviewlettertoCongress.pdf>.

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Presidente Bush, de diminuir o tráfico interna-cional de pessoas por razoes sexuais”127.

A visão sobre trabalho sexual explicitadapela Casa Branca é, paradoxalmente, comparti-lhada por muitas feministas128 e homens progres-sistas129. O debate sobre se a prostituição e apornografia significam inexoravelmente servidãoe exploração ou se podem ser voluntárias temproduzido, desde algum tempo, uma flagrantedivisão no movimento mundial de mulheres. Essacontrovérsia histórica tem sido habilmente ex-plorada pela ultradireita. Uma das táticas utiliza-das pelos conservadores é exatamente igualar otráfico de pessoas com o trabalho sexual e a vi-olência sexual, obscurecendo o fato de que existemmulheres (ou homens) que cruzam fronteiras paratrabalhar sexualmente de maneira voluntária, ain-da que muitos outros fatores estejam envolvidosnestas decisão.

Não sem razão, o tráfico sexual se conver-teu em tema favorito dos ultra-conservadorestanto na Casa Branca quanto no Congresso, e teminspirado inúmeras propostas de política. O Re-presentante Christopher Smith (Republicano deNova Jersey), um ativista anti-aborto extrema-mente conservador e que tem estreitos vínculoscom a hierarquia da Igreja Católica, tem estadoativamente interessado no tema do tráfico depessoas. Embora a prostituição de menores e otráfico sexual sejam, sem dúvida, temas que me-recem investigação séria e medidas de coibição,a maneira utilizada pela ultradireita para tratarda questão faz com que este tema tenha se torna-do uma verdadeira “armadilha”.

Em fevereiro de 2003 o Presidente Bushassinou uma Diretriz de Seguridade Nacional

contra o Tráfico de Pessoas e estabeleceu um“Grupo de Trabalho Interministerial” no gabi-nete da Presidência para monitorar e combatero tráfico de pessoas. No comunicado de imprensaanunciando a Diretriz, a Casa Branca afirma que:

A prostituição e atividades conexas, que sãoinerentemente nocivas e desumanas, contribuem para ofenômeno do tráfico de pessoas, assim como o turismosexual, que se calcula ser um negocio mundial quemovimenta 1 bilhão de dólares ao ano.130

A equalização sistemática entre tráfico etrabalho sexual é uma posição compartida peloCongresso que, inclusive, adotou a seguintedefinição sobre o trabalho sexual na lei do HIVde 2003:

A prostituição e outras práticas de vitimização sexualsão degradantes para as mulheres e crianças e deveriaser política dos Estados Unidos, erradicar essaspráticas. A indústria sexual, o tráfico de pessoas paraessa indústria e a violência sexual são causas adicionaise um fator na propagação da epidemia de HIV/AIDS. Um entre nove sul-africanos tem AIDS e nestepaís a incidência de ataques sexuais cresce a cada dia,sendo que uma entre cada três mulheres já foi vítima deviolência sexual. Da mesma forma no Camboja, quase4% das prostitutas estão infectadas com HIV e o paístem a taxa mais alta de incremento da infecção de todoo Sudeste Asiático. As vítimas de episódios sexuaiscoercitivos não podem fazer escolhas sobre suas atividadessexuais.131

A Lei HIV/AIDS requer como parte desuas estratégias que se realizem esforços para“erradicar a prostituição, o comércio sexual, a violação,os ataques sexuais e a exploração de mulheres e crian-ças”132. O texto inclusive vai além, proibindo queos fundos alocados para tal sejam utilizados “para

127 Kaiser, op. cit. note 111.128 Por exemplo, Igualdade Agora e a Coalizão Contra o Tráficode Mulheres.129 Ver a série de artigos sobre o tráfico e o trabalho sexual emCamboja por Nicholas Kristof em New York Times, janeiro de2004.

130 Trafficking in Persons National Security Presidential Directive, 25February 2003, disponível em: <www.whitehouse.gov/news/releases/2003/02/20030225.html>.131 HIV/AIDS ACT of 2003, op.cit. note 24, section 2 Findings,(23).

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promover ou propor a legislação da prática de prostitui-ção ou o tráfico de pessoas com fins sexuais” e especifi-camente proíbe financiar “a qualquer grupo ou orga-nização que não tenha uma política que explicitamentese oponha à prostituição e ao tráfico de pessoas”.133 Namedida em que muitos dos grupos mais aptospara chegar as trabalhadoras(es) do sexo e mu-lheres que foram traficadas são grupos dirigidospor pessoas que são elas mesmas trabalha-dores(as) do sexo (e que provavelmente não têmuma agenda que se opõe à prostituição!), esse dis-positivo parece ter sido desenhado explicitamen-te para tornar esses grupos inelegíveis para o fi-nanciamento. As diretrizes para regular esse dis-positivo ainda estavam sendo formuladas peloDepartamento de Estado, em março de 2004.

Contudo, neste terreno a legislação chavena qual a Administração se apóia é a Lei paraCombater o Tráfico de pessoas, especialmente oComércio Sexual, Escravidão, e Serviço Domés-tico sem Consentimento, e para re-autorizar de-terminados programas federais para prevenir aviolência contra as mulheres e realizar outrosobjetivos (H 3244) do ano 2000, que foi patroci-nada pelo Representante Christopher Smith.

Significativamente, essa lei oferece umadefinição de tráfico sexual que não inclui neces-sariamente a coerção: “o recrutamento, encobri-mento, transporte, oferta ou ganho de uma pes-soa com o objetivo de um ato sexual comercial”.134

No entanto, preconiza medidas de proteção ape-nas para as vítimas das formas severas do tráficode pessoas, a saber: “(a) tráfico sexual no qual

um ato sexual comercial é induzido a força,fraudulentamente, ou sob coerção, ou no qual aspessoas induzidas a cometer tal ato não comple-taram 18 anos; ou (b) o recrutamento, encobri-mento, transporte, oferta ou obtenção a umapessoa para trabalhos ou serviços, através do usoda força, fraude, coerção, com objetivo desubmetê-la a serviços domésticos sem consen-timento, peonagem, cativeiro por dívidas, ouescravidão”.135

Os críticos da referida lei assinalam que,embora afirmando proteger as vítimas do tráfi-co de pessoas, a norma adota um modelo penalpunitivo de cumprimento da lei que é pouco útilpara as pessoas que foram traficadas. A maioriadas medidas de apoio oferecidas às vítimas nosEstados Unidos (vistos de trabalho, serviços desaúde, realocação, residência permanente) requerque elas “colaborem de alguma forma na inves-tigação e punição das formas severas de tráficode pessoas...”136 uma atitude que muitas pessoastraficadas não aceitam, por medo de represálias.

Na medida em que a Lei das Vítimas doTráfico evita qualquer distinção entre tráfico se-xual e o tráfico de pessoas, ela também ignoraum fato fundamental na vida dos trabalha-dores(as) do sexo: muito do abuso, violência erepressão que experimentam é perpetrada porpoliciais. É pouco provável que as pessoas en-volvidas no comércio sexual percebam a políciacomo uma instituição confiável e solícita. Porexemplo, a blitz anti-tráfico de pessoas realizadana Romênia em outubro de 2003 (com ajuda dosEstados Unidos) identificou 696 supostas vítimasdo tráfico de pessoas e 83 traficantes suspeitos.Mas, de todas as vítimas, segundo se informou, só67 aceitaram ser ajudadas por agentes policiais137.

135 VICTIMS OF TRAFFICKING ACT OF 2000, op. cit. note129, section 103 (8).136 VICTIMS OF TRAFFICKING ACT OF 2000, op. cit. note129, section 107 (b) (1) (E).

132 HIV/AIDS ACT of 2003, op.cit. note 24, section 101,Development of a Comprehensive, Five-Year, Global Strategy(4).133 HIV/AIDS ACT of 2003, op.cit. note 24, Title III BilateralPrograms Sec. 104A Limitation (e) and (f).134 2000 “Act to Combat Trafficking in Persons, Especially intothe Sex Trade, Slavery, and Involuntary Servitude, to ReauthorizeCertain Federal Programs to Prevent Violence Against Women,and for Other Purposes”, H. 3244, (“Victims of Trafficking Actof 2000”), section 103 (9).

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A lei autoriza que sejam alocadas quantiassubstantivas de dinheiro para a cooperação in-ternacional com os países que estejam dispostosa enfrentar as formas severas do tráfico de pes-soas, e nega cooperação humanitária e comercialaos países que, segundo a Administração, nãoestão atuando com suficiente rigor contra o trá-fico de pessoas138.

Dentre as muitas medidas adotadas pelaAdministração com base na Lei de Vítimas doTráfico de 2000 vale a pena mencionar139:

• A criação de uma Unidade Especial no De-partamento de Estado Para Monitorar eCombater o Tráfico de Pessoas que divulgaum relatório anual avaliando o progresso de165 governos comprometidos em enfrentar otráfico. Depois de muita agitação por parteda ultradireita que considerava débeis as açõesdo Departamento de Estado em relação àprostituição, o ex-deputado John Miller (De-mocrata de Washington) foi nomeado paradirigir a Unidade. Miller é conhecido pela suaposição “abolicionista” em relação ao traba-lho sexual.

• No ano fiscal de 2002, o Departamento deEstado financiou mais de 110 programas con-tra o tráfico de pessoas em 50 países.

• Entre 2001–2003, o Departamento de Justiçainformou que deteve 79 traficantes, e conde-nou 59 dos acusados. O Departamento infor-ma que existem 142 processos abertos por trá-fico de pessoas.

• O Departamento de Justiça realizou a maisextensa capacitação sobre tráfico de pessoas parafiscais federais e agentes em janeiro de 2003.Em dezembro de 2002, o Departamento deJustiça realizou sua primeira reunião sobre aproteção de crianças na prostituição.

• O serviço de emigração e naturalização emi-tiu aproximadamente 450 “visto T”, para per-mitir a vítimas do tráfico viver e trabalhar le-galmente nos Estados Unidos por três anos,enquanto seus casos são investigados e pro-cessados. O Departamento de Justiça e o De-partamento de Serviços Humanos e Saúdecertificam, conjuntamente, estas pessoas parareceber benefícios e serviços federais e esta-duais incluindo moradia e atenção médica. Oprocesso dos vistos de certificação dos bene-fícios do “visto T” requer ainda cooperaçãocom a Procuradoria Federal.

• O Departamento de Serviços Humanos e Saúde(HHS) informa que, desde 2001, desembol-sou mais de US$ 4 milhões em financiamentopara ONGs atuando em educação comunitá-ria, extensão e assistência direta às vitimas dotráfico de pessoas. Segundo o departamento,3000 pessoas foram atingidas por estes projetos.

• A USAID informa que, desde janeiro de 2001,aumentou significativamente seu financiamen-to em atividades contra o tráfico de pessoasem países em desenvolvimento e de transiçãopós-socialista. No Ano Fiscal 2002, a USAIDgastou mais de US$ 10 milhões, em mais de30 países.

• A Unidade para Monitorar e Combater o Trá-fico de Pessoas do Departamento de Estado eo Bureau de Narcóticos e Crime da ONU, es-tão colocando anúncios públicos “para esti-mular as vítimas e o público em geral para queatuem contra o tráfico de pessoas”. A Admi-nistração estabeleceu um número telefônicogratuito, a “Linha para Queixas sobre Tráficode Pessoas e Exploração de Trabalhadores”.

137 New York Times, “12 Nations in Southeast Europe PursueTraffickers in Sex Trade”, 19 October 2003, p. 8.138 VICTIMS OF TRAFFICKING ACT OF 2000, op. cit. note129, section 113.139 Para mais informação sobre as medidas adotadas, verTrafficking in Persons National Security Presidential Directive,25 February 2003, disponível em: <www.whitehouse.gov/news/releases/2003/02/20030225.html>; and letter by JohnD. Ashcroft to the editor, New York Times Magazine, 15February 2004, p. 6.

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Em junho de 2003, num projeto de lei paraapropriação de recursos para o ano fiscal 2004 e2005 nesta área,140 o Deputado Chris Smith pro-pôs proibir o uso dos fundos autorizados emprojetos que “...promovam, apóiem, ou promulguem alegalização ou práticas da prostituição”, e de evitar queos recursos sejam destinados a “qualquer orga-nização que não tenha declarado na solicitaçãode doação, no acordo de doação, ou em ambos,que não promove, apóia ou advoga a legaliza-ção ou prática da prostituição”. Isso deixa de foramuitas organizações que trabalham ou são com-postas por trabalhadores(as) do sexo e que se-rão, provavelmente, mais eficazes em abordar aspessoas afetadas. Uma vez mais prevalece a pers-pectiva moralista do trabalho sexual, em detri-mento da proteção dos direitos das verdadeirasvítimas do tráfico de pessoas.

CONCLUSÕES

Tratamos aqui apenas de algumas das polí-ticas relacionadas à sexualidade que estão sendoimplementadas pela Administração Bush. No en-tanto, mesmo num escopo relativamente limita-do, este mapa oferece uma idéia geral da ampli-tude e ambição dos “pensadores” da Adminis-tração e seus aliados no Congresso no sentidode reconstruir os Estados Unidos e o mundosegundo seus valores morais e religiosos. A pre-ocupação com a sexualidade não é uma agendasecundária e casual. Está no cerne de suas con-cepções. Grandes somas de dinheiro estão sen-do gastas para fazer transformar em realidadeuma visão mítica que mistifica um passado hete-rossexual e matrimonial.

A amplitude e a interconexão das pautasaqui analisadas demonstra que as forças progres-

sistas não poderão deter a agenda Bush a partirde uma estratégia que faz concessões em relaçãoa uma questão específica – para evitar que orestante do edifício desmorone. A direita religi-osa tem uma visão completa e consistente(holística), onde cada elemento está vinculadoaos demais componentes. Assim sendo, nos seuscânones o aborto é tão relevante quanto aclonagem e os anticoncepcionais modernos. Anoção de “dignidade da mulher” é um dictum quemotiva tanto ataques ao trabalho sexual quantoa condenação do sexo pré-matrimonial. Da mes-ma forma, a família deve ser protegida tanto dosefeitos maléficos dos serviços de saúde para ado-lescentes quanto do casamento gay.

A possibilidade de que argumentos racio-nais e científicos (saúde, eficácia, ou mesmo cál-culos de custo) possam prevalecer nas discussõescom os ideólogos religiosos que hoje detêm opoder nos EUA, perde validade quando se exa-mina o conteúdo das medidas que estão propos-tas. Pois, muito claramente, estes setores estãoconvencidos de que é melhor condenar o traba-lho sexual e os preservativos do que prevenir ainfecção pelo HIV, de que se deve promoverpolíticas de abstinência que estão condenadas aofracasso em lugar de implementar ações que pos-sam evitar a gravidez na adolescência, de que émelhor gastar o dinheiro fomentando o casamen-to do que reorganizar o sistema educacional oucriar programas efetivos de capacitaçãovocacional.

Em razão da amplitude da agenda Bushpara sexualidade, as ONGs e governos de ou-tros países devem prestar muita atenção aos ter-mos implícitos nas regras de cooperação finan-ceira oferecida pelos Estados Unidos. Por exem-plo, por que está sendo pedido a organizações (egovernos) que expressem publicamente repúdioao trabalho sexual para que as mesmas possamreceber os fundos dirigidos ao combate doHIV/AIDS? Esta sendo sugerido a ONGs que

140 An Act to authorize appropriations for fiscal years 2004 and2005 for the Trafficking Victims Protection Act of 2000, and forother purposes, H.R. 2620, section 7.

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“traiam” organizações parceiras para poder ob-ter fundos da USAID? O acesso aos recursos estáobrigando as ONGs a abdicarem de seu livredireito de expressão? Quais são os grupos “ba-seados na fé”, de origem norte-americana, quetrabalham em seu país?

Um ativista de direitos humanos daRomênia me contou, recentemente, que umainfluente ONG romena de mulheres haviaaceitado fundos de planejamento familiar daUSAID a despeito da Regra Global da Mordaça(GGR). Assim fizeram porque de nenhumamaneira podiam antecipar qualquer tipo de açãoconservadora contra o aborto no país. Isto por-que na Romênia a liberação da lei de aborto foia primeira medida legislativa adotada em 1989,imediatamente após a queda do ditador pró-natalista Cauecescu. Entretanto, no ano passado,elas se depararam com uma inesperada inicia-tiva parlamentar proposta pelo partido naciona-lista que pretendia impor “uma quarentena deespera e aconselhamento obrigatório antes doaborto”. A ONG em questão se viu, subitamen-te, “amordaçada”, pois em razão da cláusulaassinada no contrato com a USAID não podiamais expressar sua opinião sobre este retrocesso.

É também preciso sublinhar uma vez maiso vínculo existente entre as medidas de políticasdomésticas e a agenda internacional de Bushpara a sexualidade. Por exemplo, é muito difícilcompreender completamente o que significa apriorização da abstinência no texto da lei doHIV/AIDS de 2003, sem examinar mais deperto as implicações da política de promoçãoda abstinência no contexto interno dos Esta-dos Unidos.

Neste momento, torna-se urgente ampliare sustentar a cooperação e intercâmbio entre or-ganizações norte-americanas e grupos progres-sistas que atuam em outros países para permitirque estas muitas conexões e implicações sejammelhores compreendidas. Reciprocamente, asONGs de outros países que estão se confrontan-do com forças conservadoras internas podem edevem informar a seus parceiros e parceiras nor-te-americanas sobre os novos alvos escolhidospela Administração Bush e seus aliados paraampliar e aprofundar sua agenda estratégica decontrole das sexualidades.

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