política externa do governo fhc: da literatura aos fatos

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1 Política Externa do governo FHC: da literatura aos fatos Jacqueline Haffner 1 Fernanda Wenzel 2 1. Introdução O governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) é descrito pela maioria dos autores como um período de consolidação da ideologia neoliberal no Brasil. Estes mesmos autores, no entanto, discordam em relação à intensidade desta adesão e ao modo como ela se refletiu na política externa brasileira. Silva (2008), por exemplo, descreve o governo FHC como o período da emergência, auge e declínio do neoliberalismo no Brasil. Já Amado Cervo tem uma visão bastante crítica do governo tucano, que ele descreve como uma dança de paradigmas: “o desenvolvimentista que ele que ele se compraz em ferir gravemente sem matar, o normal que emerge de forma prevalecente e o logístico que ensaia como outra via” (CERVO, 2008, p.82). Como neoliberalismo, entende-se uma série de medidas tanto internas como externas. No plano doméstico, destacam-se as privatizações, a abertura do mercado aos produtos estrangeiros e a redução do papel do Estado na condução da economia. No plano internacional, o neoliberalismo se caracteriza pela aproximação econômica e diplomática dos países ricos (em especial os Estados Unidos) e uma tentativa de adaptação às regras do sistema internacional, em especial dentro de instituições como a ONU e a OMC. Neste trabalho, o foco está no segundo aspecto: a atuação internacional do Brasil durante o governo FHC. Estas questões serão analisadas a partir de dois vieses: teórico e prático. Primeiramente, será feita uma revisão bibliográfica a respeito da política externa do governo Cardoso, apresentando a visão de diferentes autores a este respeito. Nesta seção, serão descritos a estratégia da “autonomia pela participação”, o processo de “normalização” e adesão ao neoliberalismo, a relação com os Estados Unidos e a inflexão ao final do segundo mandato, com a denúncia da “globalização assimétrica”. Na sequência, serão analisados dois elementos que revelam a prática da política 1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS

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Política Externa do governo FHC: da literatura aos fatos

Jacqueline Haffner1

Fernanda Wenzel2

1. Introdução

O governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) é descrito pela maioria dos

autores como um período de consolidação da ideologia neoliberal no Brasil. Estes

mesmos autores, no entanto, discordam em relação à intensidade desta adesão e ao

modo como ela se refletiu na política externa brasileira. Silva (2008), por exemplo,

descreve o governo FHC como o período da emergência, auge e declínio do

neoliberalismo no Brasil. Já Amado Cervo tem uma visão bastante crítica do governo

tucano, que ele descreve como uma dança de paradigmas: “o desenvolvimentista que

ele que ele se compraz em ferir gravemente sem matar, o normal que emerge de

forma prevalecente e o logístico que ensaia como outra via” (CERVO, 2008, p.82).

Como neoliberalismo, entende-se uma série de medidas tanto internas como

externas. No plano doméstico, destacam-se as privatizações, a abertura do mercado

aos produtos estrangeiros e a redução do papel do Estado na condução da economia.

No plano internacional, o neoliberalismo se caracteriza pela aproximação econômica

e diplomática dos países ricos (em especial os Estados Unidos) e uma tentativa de

adaptação às regras do sistema internacional, em especial dentro de instituições como

a ONU e a OMC. Neste trabalho, o foco está no segundo aspecto: a atuação

internacional do Brasil durante o governo FHC.

Estas questões serão analisadas a partir de dois vieses: teórico e prático.

Primeiramente, será feita uma revisão bibliográfica a respeito da política externa do

governo Cardoso, apresentando a visão de diferentes autores a este respeito. Nesta

seção, serão descritos a estratégia da “autonomia pela participação”, o processo de

“normalização” e adesão ao neoliberalismo, a relação com os Estados Unidos e a

inflexão ao final do segundo mandato, com a denúncia da “globalização assimétrica”.

Na sequência, serão analisados dois elementos que revelam a prática da política

1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS

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externa deste período: as viagens presidenciais e os discursos de FHC. O

levantamento das viagens revela quais as regiões do globo que receberam maior

atenção do Presidente, lembrando que FHC ficou conhecido pela intensidade de sua

“diplomacia presidencial”. Já os discursos, proferidos em diversas ocasiões, revelam

qual a mensagem que Cardoso buscava passar ao mundo a respeito da inserção do

Brasil no sistema internacional.

Ao cruzar a bibliografia com a prática, será possível verificar em que medida as

prioridades e estratégias descritas na literatura encontram respaldo na prática

diplomática, seja no que diz respeito à aproximação com determinados países, à

adesão a determinados valores e às críticas ao sistema internacional. Dessa forma,

será possível compreender em que medida a literatura é coerente com os fatos

descritos, e obter um entendimento mais amplo deste período.

2. A Política Externa Brasileira até os anos 1990

A política externa é entendida como uma das esferas estatais menos sujeitas a

alterações bruscas resultantes de trocas de comando na esfera governamental

brasileira. Isso se deve a uma série de valores que norteiam a atuação do Paísno

sistema internacional. Segundo Amado Cervo (2008, p.27), o Brasil possui certos

padrões de conduta há muito arraigados, que “resistem ao tempo, portanto, e exibem

traços de continuidade inerentes à política exterior”. Entre os elementos elencados

por Cervo, destacam-se: a) autodeterminação, não intervenção e solução pacífica de

controvérsias; b) juridicismo; c) multilateralismo normativo; d) ação externa

cooperativa e não-confrontacionista; e) parcerias estratégicas; f) realismo e

pragmatismo; g) cordialidade oficial no trato com os vizinhos; h) desenvolvimento

como vetor; i) independência de inserção internacional.

Acima de todos estes padrões, estaria o grande desígnio da política externa

brasileira. Da mesma forma como o manifestdestiny norte-americano e o

granddessein francês são exemplos de desígnios incrustados na política exterior, no

Brasil “a experiência histórica permite construir o conceito de projeto nacional de

desenvolvimento, definido como desígnio nacional e vetor da ação externa” (CERVO,

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2008, p.10). Ou seja, a política externa sempre foi vista como uma forma de promover

o desenvolvimento do País.

Apesar destes elementos de continuidade, é natural encontrar alterações

dentro deste mesmo padrão, com maior ou menor ênfase a cada um dos valores

acima descritos. Cervo (2008) demostra estas alterações através do conceito de

paradigma, entendido como uma forma de explicar e ordenar a política externa

brasileira. Ele descreve quatro os paradigmas: Liberal-conservador,

Desenvolvimentista, Neoliberal e Logístico.

Pecequilo (2012), por sua vez, organiza a política externa brasileira a partir de

duas tradições calcadas nos mesmos valores descritos por Cervo: bilateral-

hemisférica e global-multilateral. Segundo a autora, estas tradições compuseram a

base da política externa durante todo o século XX, e continuam exercendo influência

no mundo pós-Guerra Fria.

A tradição bilateral hemisférica tem suas origens nos tempos do Barão de Rio

Branco, e dominou o campo diplomático entre 1902 e 1961. A ênfase está nos âmbitos

hemisférico e regional, com especial destaque para os Estados Unidos:

A centralidade aos EUA era atribuída devido à alteração do equilíbrio de poder mundial, com a ascensão norte--americana consolidando-se diante da hegemonia britânica. Em suas origens, o estabelecimento da aliança especial é percebido de um ponto de vista de autonomia, reforçando o poder de barganha brasileiro nas Américas. Este fortalecimento nacional no subcontinente é interpretado por algumas correntes como de um possível subimperialismo brasileiro na América do Sul, mas que se sustenta na premissa do Brasil como potência regional (PECEQUILO, 2012, p.202).

A partir dos anos 1960, ganha força a segunda tradição descrita por Pecequilo.

Desenvolvida nos governos de Jânio Quadros e João Goulart, a tradição global

multilateral está ligada à Política Externa Independente (PEI) e se desenvolve a partir

do desenvolvimento industrial do País. A busca por autonomia e de novas parcerias

no sistema internacional atinge seu ápice no governo Geisel, através do Pragmatismo

Responsável e Ecumênico do Chanceler Azeredo da Silveira (1974/1979):

O salto qualitativo da agenda internacional consubstancia-se na exploração de um conjunto abrangente de oportunidades nas relações estatais e no multilateralismo. Este conjunto explora parcerias ao Norte e ao Sul, ao Leste e ao Oeste, compondo a tradição global multilateral em sua expressão mais bem acabada até então (PECEQUILO, 2012, p.208).

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Como bem descrito por Cervo, o pano de fundo destas variações na política

externa brasileira é seu desígnio maior: o desenvolvimento. Este pode ser relacionado

tanto à tradição bilateral hemisférica quanto à tradição global multilateral. No primeiro

caso, nos referimos ao modelo de desenvolvimento associado, que vê na relação

especial com os Estados Unidos o caminho mais curto para o desenvolvimento. Já a

segunda tradição associa-se ao nacional desenvolvimentismo.

Esta ideia de um projeto autônomo de desenvolvimento é o ponto de encontro

entre a tradição global multilateral de Pecequilo e o paradigma desenvolvimentista de

Amado Cervo. Ambos fazem referência a uma política econômica que muito

influenciou (e segue influenciando) os dirigentes brasileiros: o desenvolvimentismo.

Segundo Fonseca (2014), o desenvolvimentismo como pensamento econômico

teórico se consolidou nas décadas de 1950 e 1960, com a criação da Comissão

Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e os trabalhos de Raul Prebish,

Celso Furtado, Aníbal Pinto, Osvaldo Sunkel, Maria da Conceição Tavares e José

Medina Echevarría. Na pratica, entende-se por desenvolvimentismo:

(...) a política formulada e/ou executada, de forma deliberada, por governos

(nacionais ou subnacionais) para, através do crescimento da produção e da

produtividade, sob liderança do setor industrial, transformar a sociedade com vistas

a alcançar fins desejáveis, destacadamente a superação de seus problemas

econômicos e sociais, dentro dos marcos institucionais do sistema capitalista

(FONSECA, 2014, p.59).

Ou seja, trata-se de uma estratégia para superar o desenvolvimento através da

industrialização. Apesar de ser identificado como uma política econômica de Estado,

o desenvolvimentismo está relacionado ao comportamento e aos objetivos do país no

sistema internacional. A partir desta ótica, a assimetria entre os mundos desenvolvido

e subdesenvolvido remonta ao processo histórico de evolução do capitalismo, quando

alguns países se diferenciaram através de avanços científicos, tecnológicos e de

capital. Neste contexto, “resolver o problema da relação entre o interno e o entorno,

com base nessas vantagens comparativas intangíveis, significa resolver o problema

do desenvolvimento” (CERVO, 2008, p.24).

Segundo Pecequilo (2012), é por isso que o período entre as décadas de 1960

e 1980 é marcado por dois movimentos paralelos no Brasil. Internamente, o País

buscava se industrializar a partir Planos Nacionais de Desenvolvimento e de pesados

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investimentos em infraestrutura nos setores de energia, transportes,

telecomunicações e educação (entre os projetos mais simbólicos deste período estão

Itaipu, Transamazônica e desenvolvimento de C&T). Externamente, o País buscava

diversificar suas parcerias a partir da PEI.

O projeto desenvolvimentista de fato mostrou sua efetividade, com o Brasil

alcançando altas taxas de crescimento e expandindo seu parque industrial. Este

crescimento, no entanto, ocorreu às custas de volumosos empréstimos internacionais.

Nos anos 1980, os credores batiam às portas do País dando origem à “década

perdida”.

Segundo Berringer (2014) dois processos importantes marcaram este período.

Por um lado, a queda abrupta do PIB em 1981 representou um trauma histórico para

os empresários brasileiros. Diante do fracasso dos Planos Cruzados I e II a

estabilidade monetária surgia como o anseio maior da população,empurrando o País

rumo às políticas neoliberais. Paradoxalmente, esta mesma crise econômica deu

origem aos movimentos populares que iriam fazer resistência ao projeto do Estado

mínimo. Entre eles destacam-se o Partido dos Trabalhadores (PT), o Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT).

Graças às estas resistências:

O Brasil foi um dos últimos países da América Latina a implantar o neoliberalismo.

Isso se deve, sobretudo, ao forte movimento grevista do final dos anos 1970 e início

dos anos 1980, e à resistência por parte do Estado e de setores da burguesia interna

brasileira que se beneficiavam do modelo desenvolvimentista (BERRINGER, 2014,

p. 77)

O agravamento da crise da dívida externa, no entanto, aumentou a pressão de

organismos como o FMI e Banco Mundial, que em troca de novos empréstimos

impunham condicionalidades como a liberalização do setor de informática, de

fármacos e de serviços (CERVO, 2008, CASARÕES, 2011, apud BERRINGER, 2014).

Em 1987, o governo brasileiro chegou a decretar a moratória da dívida, mas voltou

atrás diante da pressão de diversos setores brasileiros, temerosos das possíveis

retaliações econômicas por parte dos Estados Unidos.

Segundo Pecequilo (2012), o agravamento da crise econômica (com a

explosão dos juros da dívida e a hiperinflação), o fracasso dos planos de ajuste, o

encaminhamento do fim da Guerra Fria e as pressões da comunidade internacional

nos campos do meio ambiente, direitos humanos, comércio e tecnologiascompunham

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a sensação de perda de lugar no mundo e a emergência de uma postura defensiva

durante o governo do Presidente Sarney, que assumira o Executivo após a morte de

Tancredo Neves. Neste contexto, o presidente inicia um movimento de reaproximação

com os EUAe dá os primeiros passos da “limpeza de agenda” que seria intensificada

por Fernando Collor (PECEQUILO, 2012, p.213).

3. A Política Externa do governo FHC (1995-2002): a literatura

Para entender a política externa do governo de Fernando Henrique Cardoso,

primeiro é preciso voltar aos presidentes que o antecederam, a fim de desenhar o

contexto político e econômico de sua ascensão ao poder. Em 1989, o Brasil realizava

as primeiras eleições presidenciais diretas após a ditadura militar. Mais do que dois

candidatos, disputavam o Palácio do Planalto duas ideologias e dois projetos

antagônicos. Para a esquerda, representada pelo candidato Luiz Inácio Lula da Silva

(PT), a solução para a crise estava em “desprivatizar o Estado, (...) a fim de colocar o

Estado a serviço de um modelo de desenvolvimento calcado na desconcentração da

renda e da riqueza, e na afirmação do país como ator autônomo no cenário

internacional”. Para a direita, encabeçada pelo candidato Fernando Collor de Melo

(PRN), “a solução dos problemas nacionais estava em remover os entraves colocados

pelo Estado ao funcionamento do mercado, privatizar empresas públicas, atrair

capitais estrangeiros, expor o sistema produtivo à concorrência internacional” (CRUZ,

2001, apud BERRINGER, 2014, p.79 e 80).

Collor fora o vencedor deste embate, que sacramentou também a vitória do

projeto neoliberal, baseado no tripé “juros altos, câmbio fixo (até 1999) e superávit

primário” (BERRINGER, 2014, p.81). Na visão de Pecequilo (2012), trata-se do

retorno da tradição bilateral hemisférica, com foco na relação com os Estados Unidos.

O governo Collor tomou uma série de medidas no sentido de abrir rapidamente o

mercado brasileiro ao exterior e eliminar os principais contenciosos com os EUA.

Algumas destas medidas, no entanto, dividiam a base de sustentação do governo, em

especial as privatizações, a abertura comercial e a desregulamentação financeira.

Para Boito Jr. (1999, apud BERRINGER, 2014, p.82) “havia uma divisão no bloco de

poder entre neoliberais ortodoxos e neoliberais moderados”.

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Esta divisão foi se intensificando ao longo dos anos 1990, culminando com a

renúncia do Presidente em 29 de dezembro de 1992, seguida de um processo de

impeachment. Antes, porém, Collor deu o primeiro passo para o processo de

integração regional que iria se tornar uma das prioridades da política externa

brasileira. Ao assinar o tratado de Assunção, em 26 de março de 1991, ao lado dos

presidentes da Argentina, Uruguai e Paraguai, Collor comprometia o Brasil com o

processo de constituição do Mercosul.

Em meio à grave crise política, assume a presidência o vice de Collor, Itamar

Franco. Seu governo teve Fernando Henrique Cardoso (1992/1993) e Celso Amorim

(1993/1994) à frente do Ministério das Relações Exteriores, e retomou a tradição

global multilateral através da intensificação das parcerias Sul-Sul e com outras

potências em desenvolvimento. No espaço regional, o Presidente deu continuidade

ao Mercosul, institucionalizado pelo Protocolo de Ouro Preto em dezembro de 1994.

Propôs ainda novos projetos de integração como a ALCSA (Área de Livre-comércio

Sul-Americana) e o Merconorte (Mercado Comum do Norte) (PECEQUILO, 2012). O

Brasil passou a participar mais ativamente da ONU e a defender de forma mais

veemente a candidatura a um assento permanente no Conselho de

Segurança(PECEQUILO, 2012).Para Berringer (2014, p.82), Itamar “tentou, em certa

medida, conter o avanço do neoliberalismo no Brasil a fim de acalmar a crise política

que o levou a assumir a presidência da República”.

Passada a crise, FHC retomaria as políticas neoliberais.O político e sociólogo

assumiu a presidência em janeiro de 1995, após ter sido Ministro das Relações

Exteriores (1992-1993) e Ministro da Fazenda (1993-1994) do Presidente Itamar

Franco. Como Ministro da Fazenda, fora responsável pelo Plano Real, criado em

1994, que levou ao fim da hiperinflação que assolava o Brasil há 15 anos. Ao mesmo

tempo, a economia brasileira passava por um processo de reintegração ao mercado

internacional, graças à renegociação da dívida externa no contexto do Plano Brady

(1994) (LOPREATO, 2014).

No plano internacional, o mundo ainda vivia os reflexos do período Pós-Guerra

Fria, em que vigorava o consenso em relação a uma “Nova Ordem Mundial”. Esta

ordem era sustentada na hegemonia norte-americana, na governança multilateral e

no Consenso de Washington.Luiz Felipe Lampreia, que fora Ministro de Relações

Exteriores de FHC entre 1995 e 2001, descreve como o governo brasileiro via o mundo

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em 1998: 1) além do fim do conflito Leste-Oeste, o fim da Guerra Fria significa o “fim,

também, como conceito para ação, do denominado conflito Norte-Sul”; 2) a

convergência no campo de valores (democracia, direitos humanos, meio ambiente,

etc) e também na esfera econômica, com a vitória da livre inciativa, da disciplina fiscal

e monetária e do livre comércio; 3) manutenção e até aumento das desigualdades

sociais dentro e entre os países; 4) “presença de uma única superpotência econômico-

militar, que compartilha a cena da política mundial com potências militares e

econômicas de categorias distintas”; 5) necessidade de reformulação das instituição

internacionais tanto na esfera econômica quanto política; 6) restrição da autonomia

decisória dos governos nacionais em função das restrições internacionais impostas

por tratados, regras e regimes internacionais (LAMPREIA, 1998, p. 5 e 6).

Apesar de apontar as restrições e assimetrias do sistema internacional,

Lampreia é otimista em relação à inserção do Brasil. Para o Ministro, o País finalmente

havia conquistado duas credenciais importantes no cenário internacional -

estabilidade econômica e democracia - e seria “em certa medida, um dos grandes

beneficiários da chamada globalização, de sua face mais positiva, embora também

tenhamos sofrido com os aspectos adversos do processo” (LAMPREIA, 1998, p.7).

Lampreia dá ainda um recado aos desenvolvimentistas, ao afirmar que “acabaram-se

os tempos do isolacionismo e da auto-suficiência” (LAMPREIA, 1998, p.8).

No Brasil (assim como em grande parte dos países latino-americanos) estas

transformações marcaram a transição do paradigma desenvolvimentista de

substituição de importações para o paradigma neoliberal. Ou, como coloca Silva

(2012), o governo FHC marca a substituição da “autonomia pela distância”,

característica do período desenvolvimentista, pela “autonomia pela integração”, cujas

prioridades eram a aplicação de reformas políticas e econômicas, a participação em

organizações multilaterais como a ONU e o GATT, a adesão ao Consenso de

Washington e o abandono do discurso terceiro-mundista. Apesar das mudanças, Silva

destaca que este processo foi menos intenso no Brasil do que nos demais países da

região, em parte devido àsresistências do empresariado nacional e da classe

trabalhadora.

Ainda assim, o primeiro mandato de FHC (1995-1998) é tido como o período

de hegemonia da ideologia neoliberal no Brasil. Segundo Lopreato (2014) o sucesso

do Plano Real em terminar com a hiperinflação, aliado à grave crise orçamentária

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vivida em todos os níveis da administração pública, garantiu ao presidente o apoio

necessário para a execução de uma série de reformas internas, entre elas o

ajustefiscal, a privatização de grandes empresas estatais (como a Telebrás,

Companhia Vale do Rio do Doce, a Usiminas e diversos bancos estaduais) e um novo

pacto federativo, que aumentava os encargos dos Estados e municípios.

Para Berringer, o governo FHC promoveu a internacionalização da economia

brasileira, em um processo iniciado ainda no governo Collor. Entre os anos de 1989 e

2000, a participação das empresas estrangeiras entre as maiores do Brasil passou de

30% para 48%. As companhias internacionais se tornaram responsáveis por 56% do

faturamento, 49% das importações e 67,2% das exportações brasileiras (SARTI &

LAPLANE, 2003, apud BERRINGER, 2014).O que para alguns é sinal de retrocesso,

para outros representava um avanço. Em artigo publicado em 1998, Lampreia

exaltava a retomada do crescimento e o volumoso ingresso de IEDs, responsáveis

pela modernização da infraestrutura e do parque produtivo nacionais:

Além disso, a tendência de liberalização comercial, que o Brasil passou a seguir desde o início dos anos noventa, ajudou a consolidar a estabilidade de preços interna, embora tenha submetido a nossa indústria a uma pressão à qual ela não estava acostumada. Nesse processo, houve vencedores e perdedores (LAMPREIA, 1998, p.7).

Além da abertura dos mercados, o governo FHC buscou uma participação mais

ativa nos foros internacionais. Este engajamento se dá pela participação direta do

Presidente na política externa, através da Diplomacia Presidencial. Segundo Barnabé,

este engajamento é verificado a partir do grande número de viagens internacionais e

de sua presença em encontros regionais e bilaterais.

A experiência que Fernando Henrique já possuía tanto no planejamento da política externa, quanto com relação ao exercício da diplomacia – atuando inclusive como Chanceler do Presidente Itamar Franco – e seu reconhecimento acadêmico internacional balizaram a consolidação da Diplomacia Presidencial que passou a ser a marca maior de seu governo (BARNABÉ, 2010, p.40).

Para Pecequilo (2012), Cardoso retoma a tradição bilateral hemisférica iniciada

por Collor, que fora brevemente interrompida pelo governo Itamar:

Embora de uma forma mais equilibrada do que Collor e outros governos latino-americanos, FHC investiu na tática da “integração” ao sistema via credibilidade e legitimação nacional por meio da adesão aos regimes internacionais e a retomada dos processos de abertura e privatização interrompidos por Itamar. A visão do Brasil como um país do Terceiro Mundo ou periférico foi trocada pelo ideário do Primeiro Mundo e de uma nova era da política mundial sustentada nas premissas do neoliberalismo e da governança mundial. (PECEQUILO, 2012, p.218).

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Na prática, esta inflexão resultou na participação do Brasil na criação da OMC,

no encerramento da Rodada do Uruguai do GATT (Ata de Marrakesh), na adesão ao

MTCR (Regime de Controle de Tecnologias de Mísseis)e na aprovação das Leis das

Patentes (1996) e da Cultivares (1997) (PECEQUILO, 2012). Também houve ações

de cunho multilateral, como o reconhecimento da Corte Interamericana de Direitos

Humanos (1997) e do Tribunal Penal Internacional, a adesão ao protocolo de Kyoto

(1997), a participação nas missões humanitárias no Timor Leste (a partir de 1999) e a

busca por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU

(BERRINGER, 2014). Destaca-se ainda a participação efetiva do Brasil na Terceira

Missão de Verificação das Nações Unidas em Angola, para a qual o Brasil enviou

4.174 soldados e 48 policiais entre 1995 e 1996; e na Operação das Nações Unidas

em Moçambique, que contou com a participação de 218 soldados e 16 policiais

brasileiros entre 1992 e 1994 (FONTOURA, 2005, apud BRACEY, 2011). Mas o

movimento mais simbólico deste processo de “normalização” da agenda brasileira foi

a ratificação do TNP, o Tratado de Não-Proliferação Nuclear, em 1998 (PECEQUILO,

2012).ParaLampreia, a adesão ao TNP é um exemplo da “autonomia pela integração”:

Ao aderir ao TNP (...) cumpriu-se o objetivo prioritário do Presidente Fernando Henrique Cardoso de resgatar as ‘hipotecas’ que ainda pesavam sobre a credibilidade externa do País, como também ocorreu com nossa adesão ao CTBT (Tratado para a Proibição Completa de Testes Nucleares) e a decisão de submeter ao Congresso a aceitação pelo Brasil da competência jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos. (LAMPREIA, 1998, p.13).

Para Berrringer (2014), no entanto, a assinatura do TNP é apenas mais uma

prova da postura de subordinação aos EUA assumida pelo governo brasileiro. Para

fortalecer sua tese, a autora cita ainda: o consentimento para que agentes dos EUA

estivessem presentes dentro da Polícia Federal brasileira, sob pretexto de combater

o narcotráfico; a adesão ao Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (MTCR), a

escolha da empresa norte-americana Raytheon para executar o Sistema de Vigilância

da Amazônia; a celebração do Protocolo 505 em abril de 2000 quecedia o controle da

Base Alcântara no Maranhão aos Estados Unidos; a não oposição à destituição de

Maurício Bustani do cargo de diretor-geral da OPAQ em 2002.

Pecequilo (2013) concorda que o governo FHC foi marcado por um

realinhamento com os EUA. No entender da autora, esta postura foi resultado de um

erro de interpretação a respeito do mundo pós-Guerra Fria, entendido como um

sistema unipolar dominado pelos norte-americanos. Além disso, os países latino-

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americanos eram seduzidos pela Iniciativa para as Américas, lançada nos anos 1990,

que reafirmava a América Latina como zona preferencial dos EUA.

Apesar da tendência ao alinhamento, as relações entre Brasil e Estados Unidos

também tiveram entraves durante o governo FHC. Um importante foco de

divergências foi a OMC, sobretudo no que diz respeito à quebra da patente dos

remédios para AIDS, à abertura do painel do algodão em 2001 e às queixas formais

apresentadas pelo Japão (1996) e pelos Estados Unidos (1997) contra o acordo

automotivo brasileiro.As negociações envolvendo a ALCA, no entanto, foram as que

mais despertaram antagonismos:

Enquanto os EUA defendiam a diluição dos acordos regionais preexistentes, o Brasil optava por sua preservação (buildingblocks). Ao negociar, os EUA desejavam implementar os acordos paulatinamente (earlyharvest) e descolados da OMC, e o Brasil insistia em um projeto fechado dentro do acordo multilateral (single harvest). Persistiam discordâncias sobre quais mercados abrir e como: os EUA desejavam a liberalização dos industriais e de serviço, o Brasil defendia regras diferenciadas de abertura dependendo do tamanho e nível de produtividade das economias (e apoio aos países mais pobres com ajuda ao desenvolvimento inspirado na integração europeia), abertura de setores agrícolas e a revisão de subsídios e medidas protecionistas. (PECEQUILO, 2013, p.76).

Entre 1994 e 1999 ocorreram cinco Reuniões Ministeriais da Alca - Denver

(1996), Cartagena (1996), Belo Horizonte (1997), Costa Rica (1998) e Toronto (1999)

- e uma Cúpula, em 1998, em Santiago. Ainda assim, não foi possível avançar nestes

temas. Às divergências em relação à ALCA somaram-se as frustações pela falta de

apoio dos EUA ao Brasil durante mais uma onda de reformas do Conselho de

Segurança da ONU (1995) e a estagnação das negociações da OMC, que terminaram

sem acordo em Cingapura, em 1995, e na Rodada do Milênio em Seattle, em 1999

(PECEQUILO, 2013). A instalação de bases militares no continente sul-americano a

partir do Plano Colômbia (2000) e o aumento do unilateralismo dos EUA após os

atentados de 11 de setembro aumentaram a insatisfação do governo FHC e levaram

a uma revisão de sua política externa e um retorno ao viés autonomista. A

globalização, antes vista como um processo benéfico para o desenvolvimento da

economia brasileira, passa a ser descrita como uma “globalização assimétrica”, cujos

frutos são distribuídos de forma desigual entre países ricos e em desenvolvimento.

Segundo Pecequilo (2012), esta inflexão é agravada pela estagnação e

instabilidade da economia brasileira e a necessidade de correção de rumos do Plano

Real em 1999 - com a adoção do câmbio flutuante - logo após a reeleição de FHC. A

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crise de desvalorização do real ocorreu na esteira das crises asiática (1997) e russa

(1998). Neste contexto, revela-se uma tendência à recuperação da tradição global

multilateral através de parcerias com a Rússia, China e Índia, e de uma postura mais

reivindicatória na ONU e principalmente na OMC.

Berringer, por sua vez, discorda deste entendimento, e afirma que a relação de

subordinação do Brasil em relação aos EUA inclusive se intensificou neste período.

Como exemplos desta subordinação, ela cita:

[...] a declaração de que o Brasil apoiaria os Estados Unidos em uma guerra

contra os responsáveis pela queda das Torres Gêmeas; a tentativa de

reativação do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca da OEA

(TIAR) como instrumento de defesa continental; a afirmação de que a ida de

Bush à Assembleia Geral da ONU para tentar legitimar a invasão ao Iraque

teria sido positiva [...]; o não enfrentamento à deposição do embaixador José

Mauricio Bustani do cargo de diretor-geral da Organização para a Proibição

de Armas Químicas (OPAQ) quando os Estados Unidos o acusaram

injustamente de corrupção” (BERRINGER, 2014, p.114).

Berringer (2014) lembra ainda a instauração da Lei da Mordaça, uma circular

que proibia os diplomatas brasileiros de expressarem publicamente qualquer opinião

sobre a condução da política externa brasileira, e que levou à demissão do

embaixador Samuel Pinheiro Guimarães da Presidência do Instituto de Pesquisa de

Relações Internacionais (IPRI) do Itamaraty, em 2001. A própria autora, no entanto,

confirma que o Brasil buscou novas parcerias com países asiáticos, e destaca a

criação, em 1996, da Comunidade de Países da Língua Portuguesa (CPLP).

Para Pecequilo (2012), mesmo no primeiro mandato de FHC, quando

predominou a dimensão vertical da política externa, houve focos de resistência da

tradição global multilateral. Isso ocorre principalmente na questão da integração

regional, que sempre fora umaprioridade da política externa do governo FHC. Mesmo

em meio às crisesbrasileira e argentina na virada do século, Cardoso fez questão de

reafirmar seu compromisso com a integração regional. Em 2000, o governo brasileiro

promoveu a Cúpula de Brasília, que contou com a presença de mais onze presidentes

da América do Sul. Além de discutir a fusão entre Mercosul e Comunidade Andina das

Nações (CAN), o encontro resultou na criação da IIRSA (Integração da Infraestrutura

Regional Sul Americana) e foi a base para as futuras propostas da CASA e da

UNASUL (BERRINGER, 2014).

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Em função desta diversidade de inciativas, ora autonomistas ora de

alinhamento com a grande potência, a política externa do governo Cardoso é descrita

por Amado Cervo como uma “dança de paradigmas”: “o desenvolvimentista que ele

se compraz em ferir gravemente sem matar, o normal que emerge de forma

prevalecente e o logístico que ensaia como outra via” (CERVO, 2008, p.82). Silva

(2008), por sua vez, entende o governo FHC como o período da ascensão, auge e

declínio do neoliberalismo no Brasil. Para Berringer (2014), a crescente insatisfação

da população com as políticas neoliberais (inclusive por parte do empresariado), levou

ao desgaste do governo FHC e sedimentou o caminho para o projeto

neodesenvolvimentista de Lula em 2002.

4. A Política Externa do governo FHC (1995-2002): os fatos

O objetivo desta seção é analisar dados sobre os oito anos de governo do

Presidente Cardoso, para depois confrontá-los com a revisão bibliográfica descrita na

seção anterior. Para isso, vamos considerar os seguintes dados: dias dispendidos

viagens internacionaise discursos proferidos pelo Presidente FHC.

a. Viagens internacionais

Em relação às viagens, um levantamento realizado a partir dos relatórios do

Instituto Fernando Henrique Cardoso mostra que ao longo dos 1461 dias do primeiro

mandato presidencial (1º janeiro de 1995 a 1° janeiro de 1999), o Presidente passou

173 dias em agenda internacional. No segundo mandato (1º janeiro de 1999 a 1°

janeiro de 2003) este número sobe para 193. Somando os oito anos, temos um total

de 366 dias de agenda internacional ao longo de 2922 dias de mandato. Na tabela

abaixo, descrimina-se os destinos destas viagens de acordo com cada região do

globo:

Dias viajados por FHC

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Período Am. Norte (EUA)

Am. Sul

Am. Central

Europa África Ásia Oriente Médio

TOTAL

1° mandato 29 (22) 60 0 61 5 18 0 173

2° mandato 31 (17) 58 16 67 9 12 0 193

Fonte: Instituto Fernando Henrique Cardoso

A partir desta análise, a primeira coisa que chama atenção é o fato de os países

europeus serem os mais visitados pelo Presidente nos dois mandatos, seguidos pelos

países sul-americanos. Já os EUA, apontado como um aliado especial por alguns

autores, aparece em terceiro lugar entre as prioridades da agenda externa de

Fernando Henrique em ambos mandatos. O Oriente Médio, por sua vez, não recebe

nenhuma visita do Presidente ao longo dos oito anos.

Quando se observam apenas os primeiros quatro anos de governo, chama

atenção a total ausência de viagens à América Central, assim como a reduzida

atenção dedicada à África. A Ásia, continente mais distanciado do Brasil do que os

anteriores, seja geograficamente ou culturalmente, foi visitado pelo Presidente durante

18 dias.

Quando se olha para os últimos quatro anos de governo, a primeira coisa que se

percebe é o aumento no número de dias passados em viagens internacionais em

relação ao primeiro mandato (de 173 para 193). Ainda assim, o número de viagens

para os EUA cai de 22 para 17, o que pode refletir o crescente descontentamento do

Presidente FHC em relação aos EUA apontado na seção anterior. A Europa, por sua

vez, ganha ainda mais espaço na agenda presidencial (de 61 para 67 dias), enquanto

as visitas à América do Sul se mantêm relativamente estáveis (de 60 para 58 dias). O

Presidente também parece disposto a se redimir pela falta de atenção despendida à

América Central ao longo do primeiro mandato, e passa 16 dias na região. A África

também ganha um pouco mais espaço neste período (9 dias), mas ainda assim é o

segundo continente menos visitado pelo Presidente, à frente apenas do Oriente

Médio. Já a Ásia assume uma posição intermediária entre as prioridades da agenda

brasileira (12 dias).

Ou seja, a partir da análise das viagens internacionais do governo Fernando

Henrique entre 1995 e 2002 chega-se às seguintes conclusões: 1) do primeiro para o

segundo mandato houve um leve aumento no número de dias viajadospara outros

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países; 2) a Europa desponta como a prioridade da agenda externa brasileira ao longo

dos oito anos, seguida da América do Sul; 3) EUA ocupa a terceira posição nas

viagens internacionais, com uma leve queda no segundo mandato; 4) a partir de 1999,

o Presidente busca estar mais presente na América Central e na África; 6) ainda

assim, a África é o segundo continente menos visitado no segundo mandato; 7) a Ásia

mantém uma posição de relativa importância na agenda externa brasileira ao longo

dos oito anos; 8) o Oriente Médio em nenhum momento é incluído na agenda do

Presidente FHC.

Para fins de análise, é interessante também verificar quando foi a primeira

viagem do Presidente para cada uma destas regiões. As datas estão dispostas na

tabela abaixo em ordem cronológica:

Data da primeira viagem para cada região

Regiões 1ª viagem Local

América do Sul 01/03/1995 Montevideo, Uruguai

América do Norte 19/04/1995 Nova York, EUA

Europa 05/05/1995 Londres, Reino Unido

Ásia 11/12/1995 Pequim, China

África 24/11/1996 Luanda, Angola

América Central 13/11/1999 Santo Domingo, República Dominicana

Oriente Médio - -

Fonte: Instituto Fernando Henrique Cardoso

Observa-se que o primeiro país visitado pelo Presidente após a posse foi o

Uruguai, seguido pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido. A primeira viagem à Ásia

ocorreu ao final do primeiro ano de mandato. A África, por sua vez, só entraria na

agenda presidencial em novembro de 1996. Já a América Latina só seria visitada em

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novembro de 1999, ou seja, ao final do primeiro ano do segundo mandato de FHC. A

partir deste levantamento observa-se claramente que os países menos desenvolvidos

e em desenvolvimento não foram prioridades da agenda externa do Presidente FHC,

com a importante exceção do entorno regional.

b) Discursos presidenciais

A fim de analisar o discurso do Presidente Fernando Henrique Cardoso no que

diz respeito às prioridades de sua política externa, foram separados alguns trechos

dos principais discursos de FHC que fazem referência ao tema. Em primeiro lugar,

observa-se este trecho do discurso de posse do Presidente, em 1° de janeiro de 1995:

Vamos valorizar ao máximo a condição universal da nossa presença tanto política como econômica, condição que tanto nos permite aprofundar-nos nos esquemas de integração regional, partindo do Mercosul, como explorar o dinamismo da Europa unificada, do Nafta, da Ásia, do Pacífico. E, ainda, identificar áreas com potencial novo nas relações internacionais, como a África do Sul pós-apartheid.Sem nos esquecermos das nossas relações tradicionais com ocontinente africano e de países como a China, a Rússia e a Índia, que, por sua dimensão continental, enfrentam problemas semelhantes aos nossos no esforço pelo desenvolvimento econômico e social (BRASIL, 2009, p.14).

O Mercosul é o primeiro processo de integração a ser citado por Cardoso, como

a base de onde devem partir os demais projetos de integração regional. Ou seja, mais

uma vez vemos o Mercosul como dimensão prioritária da política externa. Na

sequência, o presidente se volta para a União Europeia, para a Nafta e a Ásia, o que

reflete a posição destas regiões entre os principais destinos do presidente ao longo

de seu governo. A África do Sul é vista como uma área promissora para a política

externa brasileira, enquanto os emergentes asiáticos são apontados como parceiros

tradicionais.

No discurso de posse do segundo mandato, em 1° de janeiro de 1999, FHC faz

clara defesa da autonomia pela integração. Na sequência, reforça a importância do

Mercosul e dá maior ênfase à necessidade de diversificação de parcerias:

O interesse nacional, hoje, não se coaduna com isolamento. Afirmamos nossa soberania pela participação e pela integração, não pelo distanciamento. É o que estamos fazendo no Mercosul – dimensão prioritária e irreversível de nossa diplomacia. É o que estamos realizando com a criação de um espaço integrado de paz, democracia e prosperidade compartilhada na América do Sul. É o que se reflete em nossa visão da integração hemisférica e de laços mais sólidos com a União Europeia, a Rússia, a China e o Japão, sem detrimento para os nossos vínculos históricos com a África. O Brasil está assim consolidando uma inserção ativa e soberana no sistema internacional (BRASIL, 2009, p.47).

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Chama a atenção o uso da palavra irreversível para falar sobre o Mercosul. É

preciso lembrar que nesta época (1999) o processo de integração era abalado pela

crise da desvalorização do real e que em 2000 FHC convocaria um encontro em

Brasília para reafirmar o compromisso com o bloco. Percebe-se também o uso das

palavras “ativa” e “soberana”, refletindo uma postura menos passiva e mais assertiva

do presidente no segundo mandato.

Em 20 de abril de 2001, Fernando Henrique vai discursar na abertura da III

Reunião de Cúpula das Américas Québec, no Canadá. FHC fala da necessidade de

maiores investimentos nos países mais pobres da região e de maior acesso aos

mercados e tecnologias. O Presidente também fala da necessidade de cooperação

no combate à AIDS, e que não se pode deixar de utilizar os recursos existentes para

amenizar a doença (BRASIL, 2009). Nota-se uma clara referência ao embate com o

governo norte-americano no que diz respeito à quebra das patentes dos

medicamentos para portadores de HIV. A seguir, o Presidente se volta para o tema

da ALCA:

Não há pensamento único que possa ditar os rumos das nações. O livre-comércio é um dos instrumentos. A eliminação progressiva dos obstáculos às trocas comerciais pode desempenhar um papel decisivo na criação de oportunidades para o crescimento econômico e para a superação das desigualdades. Assim concebemos no Brasil a possibilidade de uma ALCA. Assim temos realizado, com êxito, a construção do MERCOSUL, que para o Brasil é uma prioridade absoluta, uma conquista que veio para ficar, e que não deixará de existir pela participação em esquemas de integração de maior abrangência geográfica (BRASIL, 2009, p.55).

Após deixar clara sua posição pela preservação do Mercosul, o presidente impõe uma série de condicionalidades ao avanço da Alca:

A ALCA será bem-vinda se sua criação for um passo para dar acesso aos mercados mais dinâmicos; se efetivamente for o caminho para regras compartilhadas sobre antidumping; se reduzir as barreiras não-tarifárias; se evitar a distorção protecionista das boas regras sanitárias; se, ao proteger a propriedade intelectual, promover, ao mesmo tempo, a capacidade tecnológica de nossos povos. E, ademais, se for além da Rodada Uruguai e corrigir as assimetrias então cristalizadas, sobretudo na área agrícola. Não sendo assim, seria irrelevante ou, na pior das hipóteses, indesejável. (BRASIL, 2009, p.56).

Vários elementos chamam atenção neste trecho. Em primeiro lugar, a defesa

ferrenha do Mercosul. Em segundo, a imposição de uma série de condicionalidades à

criação da ALCA, todas no sentido de reduzir as assimetrias entre os países e criar

condições justas de concorrência econômica. Neste discurso, Fernando Henrique

demonstra sua habilidade política quando consegue ao mesmo tempo defender a

ALCA e atacá-la por todos os lados.

Page 18: Política Externa do governo FHC: da literatura aos fatos

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As divergências com os EUA ficam mais claras no trecho a seguir, proferido

durante o discurso do Presidente Cardoso em Sessão Solene da Assembleia Nacional

da República da França, em Paris, no dia 30 de outubro de 2001, pouco após os

atentados de 11 de setembro e a invasão do Afeganistão pelos EUA. Cabe lembrar

que esta é a primeira vez que um Presidente do brasileiro se dirige à Assembleia

Nacional da França.

Neste começo de século, enfrentamos de novo a oposição entre barbárie e civilização. A barbárie não é somente a covardia do terrorismo, mas também a intolerância ou a imposição de políticas unilaterais em escala planetária. Não devemos permitir que a lógica do medo substitua a lógica da liberdade, da participação, da racionalidade (BRASIL, 2009, p.63).

FHC também fala das negociações comerciais entre o Mercosul e a União

Europeia, e afirma que “o MERCOSUL é tão importante para o Brasil quanto a União

Europeia o é para a França” (BRASIL, 2009, p.61). O Presidente explica ainda sob

que condições este acordo se daria:

Em quaisquer circunstâncias, o Brasil buscará associar-se à União Europeia e conta com o apoio da França. Cumpre estar atento ao princípio da equidade. Aos ganhos de um lado deve corresponder o atendimento às expectativas do outro. O interesse básico do MERCOSUL é de maior acesso ao mercado agrícola comum e de poder competir em igualdade de condições em terceiros mercados. (...) Se acreditamos de fato no livre comércio, cabe ao MERCOSUL e à União Europeia a adoção de medidas efetivas contra o protecionismo (BRASIL, 2009, p.62).

Percebem-se aqui dois elementos: o interesse de FHC de aproximar os

mercados europeus e sul-americanos e ao mesmo tempo a defesa dos interesses

brasileiros nesta negociação.Pouco tempo depois, em 10 de novembro de 2001,

Cardoso discursa na Abertura do Debate Geral da 56ª Sessão da Assembleia Geral

das Nações Unidas Nova York.Na ocasião, o discurso do Presidente é mais leve em

relação à reação dos EUA aos ataques de 11 de setembro. Após se solidarizar com o

povo norte-americano e defender a convocação do Tratado Interamericano de

Assistência Recíproca (TIAR) e o direito de defesa dos EUA, FHC se volta para a

questão dos direitos humanos:

Mas é importante termos consciência de que o êxito na luta contra o

terrorismo não pode depender apenas da eficácia das ações de auto-defesa

ou do uso da força militar de cada país [...]O Brasil espera que, apesar de

todas as circunstâncias, não se vejam frustradas as ações de ajuda

humanitária ao povo do Afeganistão. Mais ainda: dentro de nossas

possibilidades, estamos dispostos a abrigar refugiados que queiram integrar-

se ao nosso país. Há coisas que são óbvias, mas que merecem ser repetidas:

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a luta contra o terrorismo não é, nem pode ser, um embate entre civilizações,

menos ainda entre religiões(BRASIL, 2009, p.66 e 67).

Apesar de defender o direito de reação dos EUA, Cardoso ainda busca garantir

os direitos humanos e negar a guerra entre civilizações. O tema dos direitos humanos

também fica patente quando o Presidente se volta para os temas da AIDS e dos

conflitos na África e Oriente Médio:

Pensemos, também, em formas práticas de cooperação para amenizar o drama da AIDS, sobretudo na África. Até quando o mundo ficará indiferente à sorte daqueles que ainda podem ser salvos das enfermidades, da miséria e da exclusão? (...) O direito à autodeterminação do povo palestino e o respeito à existência de Israel como Estado soberano, livre e seguro são essenciais para que o Oriente Médio possa reconstruir seu futuro em paz. Esta é uma dívida moral das Nações Unidas. É uma tarefa inadiável. Como inadiável é a superação definitiva do conflito em Angola, que merece a oportunidade de retomar seu caminho de desenvolvimento. O mesmo futuro o Brasil deseja ao Timor Leste, que esperamos ver em breve ocupando seu assento nesta Assembleia como representação soberana (BRASIL, 2009, p.70).

Percebe-se, mais uma vez, duras críticas ao mundo desenvolvido, seja em

relação às patentes dos medicamentos para HIV como também na questão dos

conflitos Israel-Palestina e no continente africano. Por fim, o Presidente se volta para

o tema da globalização:

Pensemos na causa do desenvolvimento, um imperativo maior. Há um mal-estar indisfarçável no processo de globalização. Não me refiro a um mal-estar ideológico, de quem é contra a globalização por princípio, ou de quem recusa a ideia de valores universais, que inspiram a liberdade e o respeito aos direitos humanos. Mas ao fato de que a globalização tem ficado aquém de suas promessas. Há um déficit de governança no plano internacional, e isso deriva de um déficit de democracia. A globalização só será sustentável se incorporar a dimensão da justiça. Nosso lema há de ser o da “globalização solidária”, em contraposição à atual globalização assimétrica (BRASIL, 2009, p.68).

Aqui fica clara a frustração de FHC com o processo de globalização, referido

como um “mal-estar”. Ou seja, a partir destes discursos observa-se a defesa da

integração do Brasil ao sistema internacional, mas ao mesmo tempo uma série de

críticas a este mesmo sistema. Também ficam claras as divergências na relação com

os EUA (principalmente em relação à ALCA), a dimensão prioritária do Mercosul e o

interesse em estreitar as relações com a União Europeia.

5. Confrontando a literatura e os fatos

A partir dos levantamentos bibliográficos e dos dados explicitados nas seções

anteriores, se torna possível comparar a literatura a respeito da política externa de

Page 20: Política Externa do governo FHC: da literatura aos fatos

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FHC com aquilo que foi verificado na análise dos dados aqui proposta. O primeiro

elemento a ser analisado é o da “autonomia pela integração”, que teria substituído a

lógica da “autonomia pela distância” ao longo do governo Cardoso. O grande número

de viagens internacionais do Presidente (a cada oito dias de mandato,

aproximadamente um era gasto em viagens internacionais) reflete este desejo de

maior inserção no cenário internacional, assim como a diplomacia presidencial

descrita por Barnabé (2010). O mesmo pode ser observado a partir da análise do

discurso de posse de Fernando Henrique em 1995, quando ele diz que “o interesse

nacional, hoje, não se coaduna com isolamento” (BRASIL, 2009, p.47).

O segundo elemento teórico a ser analisado diz respeito à aproximação com o

primeiro mundo, em especial com os Estados Unidos, e o abandono do discurso

terceiro mundista. A análise das viagens internacionais de fato reflete uma priorização

dos países desenvolvidos na agenda externa do Presidente. O grande destaque,

porém, não são os EUA, e sim a União Europeia. O EUA fica em terceiro lugar quando

comparado às outras regiões visitadas por FHC, e perde ainda mais espaço no

segundo mandato. Ao analisar os discursos de Fernando Henrique, percebe-se o

destaque dado às relações com a UE, e o desejo de aproximar o bloco europeu do

Mercosul. Prova desta familiaridade de Fernando Henrique com o continente europeu

(não esqueçamos que FHC se exilou na França durante a ditadura militar) é o fato de

ele ter sido o primeiro chefe de Estado brasileiro convidado a discursar diante da

Assembleia Nacional da França.

No que diz respeito especificamente à relação entre Brasil e EUA, verifica-se que

o alinhamento com os norte-americanos esteve longe da subordinação proposta por

Berringer (2014). Como apontou Pecequilo (2013), esta relação foi marcada por uma

série de divergências que ficam claras nos discursos de Cardoso. Entre os principais

pontos de atrito, destacam-se o projeto da ALCA, a quebra de patentes de

medicamentos contra a AIDS e a “Guerra ao Terror” do governo norte-americano após

o 11 de setembro.

Quanto às demais regiões do globo, as viagens internacionais de fato de

comprovam o desinteresse do governo Fernando Henrique em relação à África,

América Central e Oriente Médio, enquanto a Ásia ocupa um papel intermediário.

Percebe-se que o Presidente tenta mudar um pouco esta dinâmica no segundo

mandato, aumentando o número de viagens ao continente africano e à América

Page 21: Política Externa do governo FHC: da literatura aos fatos

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Central, enquanto o Oriente Médio continua fora da agenda brasileira. Ainda assim, o

Presidente não pratica aquilo que afirmou em seus discursos de posse, no sentido de

manter uma relação próxima ao continente africano. Chama a atenção, no entanto,

que em seu segundo mandato o Presidente Cardoso passa a defender de forma mais

enfática a solução para os conflitos no Oriente Médio e na África, assim como o auxílio

dos países desenvolvidos no combate à AIDS.

O terceiro elemento teórico a ser analisado é a postura do governo brasileiro em

relação ao Mercosul. Em relação ao processo de integração regional, a prioridade

descrita pelos autores é confirmada pelos dados analisados. Isso é observado tanto

através do número de viagens aos países sul-americanos como nos discursos do

Presidente. O processo de integração é descrito como “irreversível” no discurso de

posse de 1999, e firmemente defendido tanto nas declarações sobre a ALCA como

em relação a um acordo com a União Europeia.

Por fim, é preciso analisar se houve de fato uma inflexão do governo FHC ao final

do segundo mandato, quando a visão otimista a respeito da globalização daria lugar

às críticas contra a “globalização assimétrica”. Em relação às viagens internacionais,

verifica-se, em primeiro lugar,um leve aumento no número de dias viajados. Ou seja,

a insatisfação com o sistema internacional não reduziu, e sim aumentou o

engajamento do Presidente na política externa através das viagens ao exterior. Com

relação aos destinos, percebe-se uma leve redução no número de viagens para os

EUA, enquanto a Ásia também perde espaço na agenda presidencial. A presença na

América do Sul se mantém estável e é incrementada na América Central, África e

União Europeia. Isso demonstra uma tentativa de diversificar parcerias e um relativo

afastamento dos EUA, o que corrobora com a teoria da inflexão da política externa

brasileira neste período. A União Europeia, por sua vez, se mantém como a prioridade

da agenda de Cardoso.Nos discursos presidenciais, no entanto, se percebe

nitidamente o incremento das críticas de FHC ao sistema internacional. O Presidente

defende uma “globalização solidária” e afirma que a globalização ficou aquém do que

fora prometido.

6. Conclusão

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A partir da confrontação entre a teoria e os fatos, é possível chegar a algumas

conclusões em relação à política externa do governo Fernando Henrique Cardoso. Em

primeiro lugar, percebe-se que houve sim uma tentativa de maior integração ao

sistema internacional, o que é verificado tanto através dos discursos como do número

de viagens ao exterior realizadas pelo Presidente.

Em relação aos parceiros preferenciais do Brasil neste período, percebe-se uma

nítida ascendência de duas regiões do globo sobre as demais: Europa e América do

Sul. Isso é comprovado tanto a partir dos aspectos políticos (discursos) e diplomáticos

(viagens internacionais) aqui levantados. Especial destaque merece ser dado ao

Mercosul, entendido como a prioridade da política externa de FHC. Os EUA, ao

contrário do que fora colocado por alguns autores, não está no centro das atenções

do Brasil neste período. Pelo contrário, a relação do Brasil com a potência norte-

americana foi marcada por uma série de atritos.

A África de fato foi pouco preponderante para a política externa de FHC no que diz

respeito às viagens presidenciais. Destaque-se, no entanto, a preocupação com os

conflitos no continente e com o a AIDS demonstrada em discursos ao final do segundo

mandato. Em relação ao Oriente Médio, percebe-se o total desinteresse pela região

(com a exceção das menções do Presidente ao conflito árabe-israelense).

Por fim, a ideia de que houve uma inflexão da política externa ao final do governo

FHC fora de fato comprovada pelos dados levantados. Por um lado, verificou-se uma

tentativa de diversificar parcerias através das viagens internacionais.Por outro, os

discursos de FHC evidenciam o descontentamento com a economia internacional e

com o unilateralismo norte-americano. Ou seja, percebe-se que a inflexão de fato

ocorreu, mais como consequência da frustração com a estratégia anterior do que

como uma atitude racional de redirecionamento da política externa.

A partir desta confrontação entre teoria e prática, verificamos que dificilmente a

bibliografia consegue captar a totalidade da realidade. Como é compreensível, a

necessidade de fazer generalizações deixa escapar aspectos mais sutis, porém não

menos importantes. Apesar destas pequenas incongruências, é possível concluir que

a bibliografia acerta ao caracterizar a política externa do governo FHC como algo

mutável, seja no sentido da “dança de paradigmas” de Cervo ou das variadas matizes

do neoliberalismo propostas por Silva. Esta constante reacomodação de estratégias

é coerente com o período histórico do governo Cardoso, em que se passou da euforia

Page 23: Política Externa do governo FHC: da literatura aos fatos

23

do mundo pós-Guerra Fria à frustração com as crises econômicas e a Guerra ao

Terror.

BIBLIOGRAFIA

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