a política externa de defesa lula e fhc

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Observador On-line | v.2, n.12 dez. 2007 |

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A Política Externa de Defesa Lula e FHC

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  • Observador On-line

    | v.2, n.12 dez. 2007 |

  • Observatrio Poltico Sul-Americano Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ/UCAM

    http://observatorio.iuperj.br

    Observador On-line (v.2, n.12 dez. 2007)

    ISSN 1809-7588

    Neste nmero

    A poltica externa e a poltica de defesa dos governos FHC e Lula: uma reflexo sobre a proeminncia de atores e a abertura do debate democrtico Ana Claudia J. Pereira 1 Parlamento do Mercosul: forma de organizao e perspectivas participao social e s polticas pblicas Elisa de Sousa Ribeiro, Helena Martins e Maurcio Santoro 27

    http://observatorio.iuperj.br/

  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    A Poltica Externa e a Poltica de Defesa dos governos FHC e Lula: uma

    reflexo sobre a proeminncia de atores e a abertura do debate

    democrtico

    Ana Claudia J. Pereira Pesquisadora do Opsa

    Apesar de o termo segurana estar presente nos discursos de poltica interna e

    externa de todos os Estados, sua definio substantiva no feita de forma

    automtica e objetiva. No existindo uma definio a priori, na prpria interao

    entre os atores aos quais se atribui a responsabilidade de zelar pela existncia e

    pela estabilidade do Estado e seu pblico-alvo especificamente no que se refere

    fala que enuncia a tentativa de promoo da segurana - que a percepo das

    ameaas segurana construda. Conquanto os temas militares tenham recebido

    tradicionalmente destaque nas agendas de segurana, no raro que estas

    abranjam questes econmicas, polticas, sociais e ambientais1.

    A defesa, desta forma, um dos setores nos quais a segurana pode ser

    subdividida, cuja peculiaridade referir-se segurana militar externa, e uma

    poltica de defesa constitui uma poltica pblica voltada garantia da segurana na

    esfera militar. A conexo entre poltica externa e poltica de defesa resulta do papel

    de equilbrio das relaes de fora entre Estados no plano internacional

    desempenhado pela ltima, ademais de estruturao das Foras Armadas como

    instrumento de poder poltico nacional2. Cabe poltica de defesa apontar os

    parmetros para o funcionamento das Foras Armadas, estruturar seu comando,

    estabelecer a institucionalidade governamental para a defesa e produzir uma

    poltica declaratria voltada visibilidade internacional3.

    Nos Estados modernos ocidentais, as aes de promoo da segurana

    internacional normalmente so excetuadas dos procedimentos democrticos

    habituais que caracterizam o tratamento poltico de um problema coletivo em

    poliarquias institucionalizadas. Inserida na categoria de poltica de Estado, a

    poltica de defesa, ainda que persiga objetivos de longo prazo e formule metas

    relacionadas sobrevivncia do Estado, espelha, como qualquer outra poltica

    pblica, negociaes e tenses entre atores internos. A subjetividade da definio

    de ameaa a expe provisoriedade e oscilao de objetivos de acordo com a

    1 BUZAN, B.; WAEVER, O.; WILDE, J. de, 1998: 21-23. 2 ALSINA Jr, J. P. S., 2003: 4. 3 PROENA Jr., D; DINIZ, E. P., 1998: 63.

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    composio e configurao de foras no cenrio poltico domstico4. De maneira

    similar, a poltica externa est intrinsecamente atada aos objetivos perseguidos por

    atores internos aos Estados e s possibilidades vigentes neste cenrio. A anlise

    que se segue aponta similaridades e dissonncias entre a poltica externa e a

    poltica de defesa5, ressaltando a participao de atores internos proeminentes em

    sua formulao, tanto durante o governo Fernando Henrique Cardoso FHC -

    (1995-2002) quanto no primeiro mandato de Luiz Incio Lula da Silva (2003-2006).

    Governo FHC

    A Poltica Externa: o paradigma da autonomia pela integrao

    Ao longo do perodo ditatorial brasileiro, o Itamaraty consolidou-se como o rgo

    produtor de decises de poltica externa, contribuindo para sedimentar o

    argumento de que as relaes exteriores do pas deveriam estar imunes a variaes

    poltico-eleitorais6. A proeminncia da instituio responsvel pela formao do

    corpo diplomtico na formulao da poltica externa foi acompanhada do aumento

    gradual do interesse da sociedade pelo tema durante o governo FHC, impulsionada

    pelos enormes efeitos que crises econmicas externas tiveram sobre o Brasil e pela

    crescente abertura econmica promovida pelo governo. Contudo, a poltica externa

    do perodo no dissociou suas decises do Itamaraty de onde provieram os

    ministros de Relaes Exteriores Luiz Felipe Lampreia e Celso Lafer - e da tradio

    poltica por ele defendida.

    A linha decisria adotada pela pasta de Relaes Exteriores do perodo ancorou-se

    em uma anlise das relaes internacionais que acreditava na emergncia, ao fim

    da Guerra Fria, de um sistema de concerto entre as grandes potncias, que

    promoveria a defesa da democracia, dos direitos humanos e do livre-mercado7. A

    noo de rigidez bipolar cedeu lugar possibilidade de arranjos mltiplos de poder,

    marcado pela gravitao das potncias menores em torno do plo de poder militar,

    os Estados Unidos, e tambm em torno de mltiplos plos de poder econmico

    Estados Unidos, Japo e Europa Ocidental. Diante da reestruturao do sistema

    internacional, as estratgias para garantir ao Brasil uma maior insero em mbito

    4 Idem: 38. 5 Em decorrncia da limitao da anlise, o artigo prioriza a anlise de fatores internos, sem deixar de mencionar a influncia do meio internacional. 6 SARAIVA, M. G.; ALMEIDA, F. R. F., 1999: 138. 7 FONSECA Jr., G. In: DUPAS, G.; VIGEVANI, T. (orgs.), 1999: 31.

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    mundial foram nomeadas pelo prprio governo FHC paradigma da autonomia pela

    integrao.

    Mesmo tendo origem na interpretao de que o mundo era diverso daquele da

    Guerra Fria, o paradigma da autonomia pela integrao no abandonou diretrizes

    tradicionais da poltica externa brasileira8. Durante os dois mandatos de Fernando

    Henrique Cardoso, a conduta brasileira nas relaes com outros Estados esteve

    pautada no pacifismo, na obedincia ao direito internacional, na defesa da

    autodeterminao e da no-interveno e no pragmatismo na defesa dos interesses

    do pas. Porm, a pouca especificidade contida nestes conceitos deu margem a sua

    flexibilizao e adaptao conforme a necessidade do governo, facilitando, de

    acordo com as mudanas histricas e conjunturais, o espao para inserir

    mecanismos de adaptao a novas realidades ou a uma compreenso de mundo

    distinta 9.

    A idia de continuidade da tradio da poltica externa mediante adequaes para

    torn-la factvel em um cenrio diverso foi formulada por seus prprios condutores.

    Luiz Felipe Lampreia, que esteve frente do Ministrio das Relaes Exteriores de

    1995 a 2000, responde indagao de como o Brasil deseja relacionar-se com a

    comunidade internacional evocando princpios que tradicionalmente tm orientado

    a nossa poltica externa como os de no interveno, respeito autodeterminao,

    no ingerncia em assuntos internos, e soluo pacfica de controvrsias 10. Neste

    mesmo texto, o ministro esclareceu que a utilizao dos conceitos citados requer

    sua atualizao combinada com a preservao de sua essncia. Para Cardoso, para

    Lampreia e para Lafer, o qual chefiou o Ministrio das Relaes Exteriores em 2001

    e 2002, mirar o futuro era indispensvel e, para tanto, a diplomacia deveria atuar

    em longo prazo, adequando-se s necessidades momentneas do contexto

    internacional.

    As linhas gerais da poltica externa do governo Fernando Henrique Cardoso foram

    traadas ainda durante o governo Collor de Mello (1990-1992) e desenvolveram-se

    com certa timidez no mandato de Itamar Franco (1993-1994)11. Entretanto, foi

    durante o governo de Cardoso que o modelo de autonomia pela integrao foi

    consolidado. Este paradigma teve origem na adeso idia liberal que a abertura

    da economia do pas proporcionaria o crescimento da produo articulado com os

    mercados externos, estimulando a renovao do parque produtivo nacional e

    8 Para exemplo de pronunciamento no qual o governo prega a necessidade de continuidade da poltica externa, ver BRASIL, 1996. 9 VIGEVANI, T.; OLIVEIRA, M. F.; CINTRA, R., 2003: 31. 10 LAMPREIA, L. F., 1998: 10-11. 11 VIGEVANI, T.; OLIVEIRA, M. F.; CINTRA, R., 2003: 33.

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    originando uma insero competitiva na economia internacional12. Na opinio dos

    responsveis pela formulao da poltica externa, permanecer fechado s foras

    econmicas externas fadaria o pas ao atraso13.

    A gesto de Collor de Mello representou um ponto de inflexo na poltica externa

    brasileira. A estratgia na qual se baseou este governo determinou o abandono de

    queixas em relao economia internacional e ditou uma reaproximao dos

    Estados Unidos, que nada teve a ver, todavia, com um alinhamento incondicional. A

    percepo que norteou o governo brasileiro foi a de que a maior proximidade com a

    principal potncia mundial ajudaria a transformar o pas em um interlocutor

    relevante do cenrio internacional. Portanto, o Brasil incluiu em sua agenda

    internacional os novos temas em discusso nos foros multilaterais e melhorou suas

    relaes com os Estados Unidos14.

    A implementao do Plano Real durante o governo de Itamar Franco, no ano de

    1994, quando Cardoso ocupava o cargo de ministro da Fazenda, e sua manuteno

    durante o restante dos anos 90 representaram esforos de abertura da economia

    brasileira e intensificaram a busca por maior credibilidade externa do pas. O Plano

    baseou-se na abertura do mercado brasileiro s importaes como forma de

    promover a estabilidade interna dos preos15. Com uma maior circulao de

    produtos importados em seu mercado, o Brasil procurou impulsionar a atividade de

    seu parque industrial atravs das exportaes, que se depararam com as barreiras

    protecionistas encontradas em diversos pases, muitos dos quais defensores da

    retrica liberal. Mais do que simples obstculos comercializao de produtos

    brasileiros, as barreiras protecionistas frustravam a prpria estratgia de insero

    internacional brasileira, que se baseava prioritariamente na dimenso comercial.

    Desde a concepo do paradigma da autonomia pela integrao, os entraves ao

    livre-comrcio mundial foram levados em conta como uma adversidade a ser

    combatida. A percepo do governo Cardoso era de que caberia ao Brasil lutar pela

    instituio de mecanismos que ampliassem sua capacidade de atuao

    internacional, fugindo tanto de alinhamentos automticos quanto de posturas no

    pragmticas. Para isso, a orientao da poltica externa conduzia formao de

    alinhamentos variveis de acordo com o tema em pauta e adeso aos regimes

    internacionais sobre temas que estavam na ordem do dia. Ainda que atuasse de

    forma crtica, a opo brasileira guiou-se pela reduo de conflitos nas relaes

    12 SARAIVA, M. G.; TEDESCO, L., 2001: 137. 13 CARDOSO, F. H. , 2001: 7. 14 SARAIVA, M. G.; TEDESCO, L., 2001: 136. 15 LAMPREIA, L. F. 1998: 7.

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    com outros pases. As eventuais crises deveriam ser negociadas quando fosse

    possvel. Quando no, deveriam ser solucionadas no seio das instituies

    multilaterais competentes, garantindo sua legitimao perante a comunidade

    internacional.

    De acordo com as premissas da autonomia pela integrao, o Brasil deveria

    estancar os problemas internos atravs de uma participao ativa na elaborao da

    ordem mundial ps-Guerra Fria. A atuao afirmativa do pas na definio das

    normas internacionais daria condies para produzir um ambiente mais favorvel

    ao desenvolvimento interno. Desta forma, durante todo o governo Cardoso, a

    bandeira da atuao externa do Brasil pautou-se na tentativa de consolidar normas

    e regimes internacionais com vistas a promover um ambiente internacional o mais

    institucionalizado possvel16, retomando como objetivo do pas algo que governos

    brasileiros anteriores j haviam declarado uma das metas mais importantes da

    poltica externa: a autonomia17.

    A institucionalizao seria o caminho para submeter todos os pases s regras,

    impedindo aes unilaterais por parte das maiores potncias. Ela seria obtida

    atravs da aliana com outros pases com os quais o Brasil dividisse interesses

    da a importncia da flexibilidade das alianas e que tambm seriam favorecidos

    pela diminuio da assimetria nas relaes internacionais. Neste sentido, a adeso

    brasileira aos regimes internacionais criaria a oportunidade de transformao da

    realidade internacional atravs daquilo que foi chamado pelo ministro Lampreia de

    convergncia crtica: por um lado, o pas acompanhava as tendncias mundiais

    em um contexto de globalizao, abrindo sua economia, discutindo novos temas e

    aderindo aos regimes, ou seja, seguindo o mainstream; por outro, a diplomacia

    brasileira assumia o papel de ativista, denunciando e combatendo, at onde lhe era

    possvel, distores e incoerncias em relaes ao direito internacional18.

    Entretanto, a partir de 1999, possvel notar que ocorrem alteraes na percepo

    do perfil do processo da globalizao, passando de um certo otimismo reformista

    para uma tnica mais crtica do protecionismo exercido pelas grandes potncias,

    aps alguns insucessos brasileiros na reformulao das regras do comrcio

    internacional no seio da Organizao Mundial do Comrcio (OMC).

    O paradigma que teve sua implementao iniciada com Collor almejava a conquista

    de autonomia para que o Brasil fosse capaz de dirigir suas escolhas internacionais.

    Entretanto, esta autonomia esteve norteada pela idia de integrao, que se

    16 VIGEVANI, T.; OLIVEIRA, M. F.; CINTRA, R. 2003: 32. 17 LAMPREIA, L. F. 1998: 8. 18 LAMPREIA, L. F.,1999.

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    concretizava nas opes pelo universalismo e pelo multilateralismo. O primeiro j

    constava na histria das relaes exteriores brasileiras, mas ganhou novo flego ao

    incluir o conceito de global trader. A adio deste conceito explicitou que o Brasil

    assumia interesses globais, a serem materializados por meio de agenda e parceiros

    mltiplos e no excludentes. Bernal-Meza19 utiliza o conceito de universalismo

    seletivo para descrever as aproximaes estratgicas com potncias regionais

    semelhantes, empreendidas pelo Brasil. Sua articulao no seio de foros

    multilaterais, por outro lado, era tida como o meio de ao cabvel aos Estados

    desprovidos de poder.

    Assim, a retomada do projeto de aproximao regional foi de suma importncia,

    conquanto se considerasse que seu desenrolar deveria ser cauteloso. O

    fortalecimento das relaes regionais no se ops noo do Brasil como um global

    player e sim a complementou, uma vez que ambas seguiram os moldes das

    polticas econmicas neoliberais20, que nos anos 90 guiaram os governos do Brasil

    e da Argentina. No mosaico da poltica externa brasileira, o Mercado Comum do Sul

    (Mercosul) encaixar-se-ia como uma plataforma de insero competitiva no plano

    mundial que, para no se contradizer com a prpria finalidade de sua criao, no

    deveria ser excludente. No por outro motivo que o regionalismo vigente no Cone

    Sul foi denominado, por Bernal-Meza, regionalismo aberto21 e encontrou resistncia

    institucionalizao por parte do Brasil. Ainda que o pas o tenha tratado com

    ateno prioritria, no houve interesse em arcar com os custos da consolidao

    institucional do Mercosul22.

    A idia de uma integrao mais ampla, que teria como base toda a Amrica do Sul,

    revigorou-se no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, perseguindo

    metas semelhantes s do Mercosul23, conquanto sua operacionalizao tenha sido

    menor e a resistncia institucionalizao da parte brasileira tenha sido maior

    ainda. A aproximao sul-americana surgiu como uma opo frente s crises no

    seio do Mercosul e gerou como principais atividades a I Reunio de Presidentes da

    Amrica do Sul, no ano de 2000, promovida pelo prprio presidente da Repblica

    brasileiro, e a II Reunio de Presidentes da Amrica do Sul, em 2002. Privilegiou-se

    ainda o dilogo com pases considerados estratgicos como China, ndia, Rssia,

    Portugal, Cuba, Mxico, Japo e com a Comunidade dos Pases de Lngua

    Portuguesa (CPLP) com a finalidade de, em alguns casos, ampliar o leque de

    19 BERNAL-MEZA, R., 2002: 40. 20 Para influncia do modelo neoliberal nos governos de Brasil e Argentina, ver: BERNAL-MEZA, 2002. 21 BERNAL-MEZA, R., 1999: 42. 22 VIGEVANI, T.; OLIVEIRA, M. F.; CINTRA, R., 2003: 35. 23 VIGEVANI; OLIVEIRA; CINTRA, 2003: 39

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    alianas pontuais em foros multilaterais e, em outros, intensificar o intercmbio

    comercial e poltico.

    Coerentemente com as diretrizes do paradigma escolhido para a conduo dos

    assuntos externos do pas, tambm na esfera da segurana internacional o perfil

    brasileiro esteve relacionado adeso do mainstream internacional. O mesmo trato

    multilateral das questes econmico-comerciais foi dado aos assuntos de

    segurana, reforando o carter pacifista e a adeso aos acordos internacionais de

    desarmamento. A tnica do discurso brasileiro centrou-se na ausncia de conflitos

    na Amrica do Sul e enxergou na presena da superpotncia em seu continente um

    limitador da projeo de poder do Brasil. Desta forma, restaria ao pas promover a

    paz na regio sul-americana, que o Brasil procurou demarcar como rea de

    influncia24. O uso da fora foi desqualificado como meio de ao da Poltica

    Externa em prol de uma viso norteada pelo idealismo kantiano25 e pelo padro

    grotiano cooperativo.

    No sentido de aumentar a credibilidade de um pas em busca de reconhecimento

    internacional, a adeso aos principais acordos internacionais de desarmamento,

    segundo Lampreia, funcionaria como um resgate de hipotecas diplomticas. A

    ratificao do Tratado de No-Proliferao de Armas Nucleares (TNP), em especial,

    serve como exemplo ilustrativo da conduta brasileira. O Brasil havia assinado o

    tratado em 1968, mas relutava em ratific-lo por encar-lo como um mecanismo de

    congelamento do poder nuclear nas mos das grandes potncias. Sem renunciar a

    esta acusao, o pas ratificou TNP em 1998, assumindo o discurso de que a

    proibio de desenvolvimento de armas nucleares j havia sido instituda por meio

    da Constituio brasileira26.

    Desta inflexo na postura do Ministrio das Relaes Exteriores diante dos temas

    de segurana, resultou a assinatura de inmeros regimes e acordos, dos quais os

    mais importantes foram: Regime de Controle de Tecnologia de Msseis (MTCR), em

    27 de outubro de 1995; Conveno sobre Proibies ou Restries ao Uso de Certas

    Armas Convencionais que Podem ser Consideradas Excessivamente Danosas ou ter

    Efeitos Indiscriminados, em outubro de 1995; adeso ao Grupo de Supridores

    Nucleares (NSG), em abril de 1996; adeso Organizao para a Proibio das

    Armas Qumicas (Opaq), em abril de 1997; Tratado para Proibio Completa dos

    Testes Nucleares (CTBT), em 24 de julho de 1998.

    24 OLIVEIRA, A. J.; ONUKI, J., 2003: 110-111. 25 CERVO, A. L.; BUENO, C., 2002: 469-470. 26 BRASIL, 1997; CARDOSO, F. H. 2001: 7.

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    No se pode deixar de mencionar, ainda, a reapresentao da candidatura do Brasil

    a uma cadeira no Conselho de Segurana da Organizao das Naes Unidas

    (ONU). Como um interlocutor importante para a redefinio da ordem mundial, o

    pas seria, naturalmente, um candidato a ocupar um lugar de destaque junto ONU

    no caso de uma eventual reforma do Conselho de Segurana. Enfatizou-se que, se

    ocorresse uma reforma, os pases em desenvolvimento no poderiam ser deixados

    de fora, ou, como preferia dizer o ministro Lampreia, discriminados27. Como a

    estrutura do Conselho no foi modificada, a campanha brasileira no rendeu muitos

    frutos alm de suscitar a desconfiana da Argentina. Contudo, o projeto viria a

    figurar novamente na agenda do governo Lula.

    O lanamento da Poltica de Defesa: metas e contra-sensos

    No Brasil, o primeiro documento oficial com a finalidade de trazer a pblico as

    diretrizes de ao e os objetivos da poltica de defesa foi lanado apenas em 1996.

    Quando FHC assumiu o controle do pas, considerou-se que o grande nmero de

    ministrios responsveis pela administrao da Defesa Nacional - ministrios da

    Aeronutica, da Marinha, do Exrcito, Estado-Maior das Foras Armadas (Emfa) e

    Gabinete Militar da Presidncia - dificultava o monitoramento pelos civis das

    questes de defesa e constitua um entrave sua administrao. A soluo

    encontrada pelo governo foi a fuso dos ministrios da Aeronutica, da Marinha, do

    Exrcito e do Estado-Maior das Foras Armadas em um nico rgo pblico: o

    Ministrio da Defesa.

    Ciente da oposio militar idia, FHC informou os ministros militares sobre suas

    intenes antes destes assumirem seus cargos28. Ainda que a orientao de FHC

    tenha sido de que a mudana deveria ocorrer de forma gradual para no criar

    contendas com as Foras Armadas, no se pode dizer que a aceitao dos militares

    ao projeto tenha sido ampla. Contribuiu para uma adeso mais abrangente o

    resultado de estudos desenvolvidos pelo Emfa: em uma pesquisa com 179 pases,

    23 no tinham um ministrio da Defesa e, entre as naes mais ricas, o rgo

    inexistia apenas no Mxico, no Brasil e no Japo. preciso ressaltar a exclusividade

    conferida aos militares no processo de recolhimento de dados para os trabalhos que

    embasaram a organizao institucional do futuro ministrio, a qual gerou atrasos

    em sua criao devido ao comportamento inercial das trs armas. Esta resistncia

    pode ser ilustrada pelo episdio no qual um conselho militar encarregado de chegar

    27 BRASIL., 1997. 28 ALSINA Jr., J. P. S., 2003: 11-12.

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    a uma posio comum sobre o assunto apresentou um documento afirmando que a

    implantao do Ministrio da Defesa seria invivel.

    O quadro de negociaes evoluiu mediante a criao da Cmara de Relaes

    Exteriores e Defesa Nacional (Creden) no seio do Conselho de Governo, reunindo os

    ministrios das Relaes Exteriores, da Justia, da Marinha, da Aeronutica, o

    Emfa, a Casa Civil, a Casa Militar e a Secretaria de Assuntos Estratgicos (SAE), no

    dia 06 de maio de 1996. Sua criao foi determinada pelo chefe do governo aps

    um episdio de turbulncia entre a Marinha e a Aeronutica decorrente da falta de

    unidade de seus projetos. Tentando instituir uma referncia comum para o

    planejamento e a ao militar e eliminar as divergncias interforas, Cardoso

    ordenou Creden que elaborasse um documento pblico sobre a poltica de defesa,

    em setembro de 1996. Durante os trabalhos da Comisso, o diplomata Ronaldo

    Sardenberg, ento Secretrio de Assuntos Estratgicos e pea chave no

    desenvolvimento da Poltica de Defesa Nacional (PDN), lanou a sugesto de que as

    Foras Armadas deveriam apoiar a diplomacia brasileira e produzir, em conjunto

    com esta, anlises do quadro estratgico internacional. Outra inovao foi a

    introduo do conceito de defesa sustentvel como aquela que adequava o

    aparato militar do pas aos recursos disponveis29. Nota-se a proeminente atuao

    deste membro da corporao diplomtica brasileira na definio da poltica de

    defesa e de conceitos que seriam repetidos durante todo o governo Cardoso.

    Ambas a rapidez da elaborao da PDN, que durou apenas dois meses, e a

    persistncia da postura resistente das Foras Armadas contriburam para que o

    resultado final estivesse impregnado das tradicionais convices militares e

    diplomticas, forjando um consenso bastante superficial, uma vez que as vises

    destes grupos quanto interface entre a poltica externa e a poltica de defesa

    eram conflitantes. Do lado dos diplomatas, que respaldaram a SAE, prevaleceu a

    coerncia com a proposta pacifista para a poltica externa. Logo, sua influncia foi

    determinante para que a tnica do documento recasse sobre a cooperao, a

    democracia, a paz e a integrao regional. Para a diplomacia, no se tratava de

    substituir a lgica de insero internacional pacfica, que optava pelo dilogo e pela

    cooperao, por outra na qual a Defesa Nacional teria papel relevante, e sim de

    adequar o pas s tendncias do ps-Guerra Fria e reiterar posies, com especial

    preocupao de desqualificar a fora como meio de resoluo de conflitos entre os

    pases.

    29 ALSINA Jr., J. P. S., 2003: 15.

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    Entre os militares, a falta de diretrizes slidas que guiassem sua conduta resultou

    em interpretaes divergentes sobre as incipientes orientaes existentes, de forma

    que cada uma das Foras possua sua prpria noo de como a poltica externa e a

    poltica de defesa deveriam se articular. Contudo, uma tendncia comum aos trs

    ministrios militares era a certeza de que a fora uma varivel imprescindvel na

    equao do poder nacional frente s relaes exteriores, ao contrrio da tica

    diplomtica que exclua a fora como opo nas manobras estratgicas30.

    O lanamento da PDN foi fundamental para a criao do Ministrio da Defesa, em

    1999. Conforme o esperado por FHC, a constituio do documento logrou instituir

    uma base comum a partir da qual foi possvel avanar neste processo, sem que,

    contudo, incoerncias e tenses acerca do papel da fora nas relaes exteriores

    presentes no documento passassem despercebidas. J em 1999, o ento presidente

    ressaltou em alguns discursos a necessidade de reformular a PDN, alegando que a

    mutao permanente e clere da cena internacional pode tornar ultrapassados os

    conceitos de defesa, ensejando a sua reinterpretao peridica para que se

    produzam, assim, polticas e estratgias setoriais capazes de superar novos

    bices31. Tentando minimizar uma possvel reao negativa dos militares, as falas

    presidenciais enfatizavam a grande participao que estes teriam na formulao de

    novos conceitos e na evoluo da estrutura do Ministrio da Defesa e lhes garantia

    que a integrao e a racionalizao de atividades no teriam como custo a

    demolio de tradies prprias de cada Fora32.

    Aps a rpida passagem de lcio lvares pelo Ministrio da Defesa (1999), no incio

    do ano 2000 a pasta foi assumida pelo ministro Geraldo Magrela da Cruz Quinto,

    tambm defensor de reformulaes da PDN. Sua justificativa se fundamentou na

    necessidade de um debate que abrangesse diversos setores da sociedade. Neste

    ano, o Ministrio da Defesa deu incio a reunies de ministros e ex-ministros de

    Estado, acadmicos, jornalistas especializados, diplomatas, parlamentares e ex-

    militares para um exerccio crtico, cuja finalidade seria recolher massa crtica de

    idias que permita oxigenar antigos preceitos e conferir maior legitimidade aos

    novos referenciais estratgicos que venha a ser adotados pelo pas33. Apesar da

    Mensagem ao Congresso Nacional do ano de 2002 ter publicado a previso de que

    o Livro Branco da Defesa Nacional, fruto do referido debate, seria editado em

    200234, o governo Cardoso encerrou-se sem o cumprimento desta meta.

    30 ALSINA Jr., J. P. S., 2003: 19. Para uma crtica da PDN, ver: PROENA Jr., D.; DINIZ, E. Poltica de defesa no Brasil. Braslia: Nova Braslia, 1998. 31 CARDOSO, F. H., 1999. 32 CARDOSO, F. H., 2000. 33 BRASIL., 2001. 34 BRASIL., 2002.

    10

  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    Em um discurso proferido aos alunos do Instituto Rio Branco - responsvel pela

    formao dos diplomatas brasileiros -, por ocasio de discusses sobre a

    reestruturao operacional das Foras Armadas, Quinto levou a pblico seu

    desconforto quanto postura da chancelaria em relao considerao do

    componente militar no planejamento diplomtico:

    Nas ltimas dcadas, a sociedade civil brasileira, amortecida por 130 anos sem conflito armado com os pases vizinhos, sem contemplar inimigos evidentes e havendo vivenciado 25 anos de regime autoritrio, perdeu o contato com o tema da defesa. Nota-se, portanto, que o componente militar do poder nacional deixou de ser levado em conta pelo planejamento diplomtico, a no ser em questes especficas, como as misses de paz. O monoplio que os militares exerceram por muito tempo sobre temas relacionados segurana impediu a formao de uma "cultura de defesa" tanto nas reas que deveriam ter vnculo direto com o assunto, como a Chancelaria e o Congresso, quanto nas que poderiam contribuir com novas idias e abordagens, como as universidades e a imprensa35.

    Neste mesmo discurso, o ministro alertou para as incertezas provenientes de uma

    ordem mundial incerta, a qual, segundo seu entendimento, obrigava os pases a

    manterem uma atitude de prudncia diante na reformulao das organizaes

    militares. Seu diagnstico apontou que o contexto de adensamento da integrao

    e consolidao da paz observado na Amrica do Sul no permitia dispensar uma

    estrutura militar apta a conter eventuais aventuras de parte de algum regime com

    mpeto belicoso que venha a surgir.

    Como no caso das discusses que precederam a publicao da PDN, transpareceu

    uma ntida diferena entre o entendimento que diplomatas e responsveis pela

    formulao e aplicao da poltica de defesa fazem quanto ao uso da fora nas

    relaes internacionais. De forma sutil, porm inquestionvel, Quinto, nos trechos

    supracitados, argumenta a favor da fora como um respaldo da poltica externa e

    indica, inclusive, uma situao em que a ameaa externa exigiria o emprego das

    Foras Armadas.

    No que se refere promoo do dilogo com outros pases, a evoluo das

    parcerias no mbito da defesa foi considerada um sucesso resultante da

    implementao do Ministrio da Defesa, que racionalizou o dilogo interinstitucional

    e criou grupos de trabalho com ministrios de pases vizinhos, conforme a

    orientao da Poltica Externa naquele momento36. Os moldes do dilogo seguiram

    a frmula de no-institucionalizao como autonomia e excluiu-se, portanto, a

    conformao de uma aliana na regio. Aos entendimentos na Amrica do Sul

    somou-se a aproximao estratgica com Reino Unido, Frana, ndia, China, Coria

    e CPLP.

    35 QUINTO, G., 2000, grifos meus. 36 QUINTO, G. 2000.

    11

  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    Convergentemente com a diplomacia, o Ministrio da Defesa foi incisivo na

    insistncia da identidade estratgica da Amrica do Sul. As diferenas na natureza

    estratgica das trs Amricas, reiteradas constantemente na fala de representantes

    brasileiros nos foros de defesa continental, foram enfatizadas com vistas a

    descartar a conformao de um sistema interamericano de defesa, proposto pelos

    Estados Unidos37. Tambm foi respaldada pelo Ministrio da Defesa a adeso a

    regimes internacionais de no-proliferao e eliminao de armas de destruio em

    massa, de proscrio de armas consideradas excessivamente danosas ou cruis e

    de controle da exportao de itens sensveis38.

    De forma bastante resumida, pode-se concluir que o paradigma da autonomia pela

    integrao influenciou a conduo dos assuntos de defesa nacional em trs sentidos

    principais: em primeiro lugar, deu impulso aproximao das instituies da defesa

    brasileira com novos e numerosos parceiros; em segundo lugar, absorveu as

    intenes de cooperao sul-americana como um contrapeso s posies norte-

    americanas; finalmente, promoveu a incorporao, no plano domstico, de

    parmetros dos regimes internacionais de desarmamento e controle de armas,

    alm de bloquear a opo de uso da fora como um recurso soluo de

    controvrsias entre pases.

    Governo Lula

    A Poltica Externa: o protagonismo engajado

    No primeiro governo Lula, a composio do quadro de atores formuladores da

    poltica externa foi algo modificada pelo aumento da influncia e da atuao do

    secretrio-geral das Relaes Exteriores, Samuel Pinheiro Guimares, ao lado do

    ministro das Relaes Exteriores, Celso Amorim. Todavia, a reincidncia da

    indicao de um diplomata para ocupar a pasta de Relaes Exteriores, bem como

    a reafirmao de linhas tradicionais da poltica externa brasileira, indicam o elevado

    grau em que a formulao e execuo da mesma esteve vinculada ao Itamaraty.

    Participaram tambm da concepo e at da conduo dos assuntos internacionais

    os assessores presidenciais, com destaque especial para o assessor Especial da

    37 BRASIL., 2001; 2002. 38 Para uma descrio detalhada, ver: BRASIL. Mensagem ao Congresso Nacional 2000. Braslia: Secretaria de Comunicao Social, 2000.

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  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    Presidncia para Assuntos Internacionais, Marco Aurlio Garcia, figura proeminente

    no PT39.

    Apesar de o Itamaraty continuar a ocupar a posio central na definio da poltica

    externa, notou-se uma crescente interao entre poltica domstica e contexto

    internacional e, conseqentemente, o deslocamento para a esfera pblica da

    discusso da poltica internacional, at ento considerada como prerrogativa nica

    do Poder Executivo por meio de sua burocracia especializada: o corpo

    diplomtico40. Por esse motivo, aumentou a mobilizao da sociedade em torno de

    questes pertinentes s relaes exteriores, sem que isso tenha excludo o impacto

    de presses provenientes de grupos de interesse sobre o poder executivo.

    A execuo da poltica externa esteve relacionada idia de que esta constitua

    uma pea-chave para o sucesso da economia nacional. No interior da conduta

    macroeconmica adotada pelo governo Lula, considerou-se que, atravs dela,

    novas vias comerciais seriam abertas e novas parecerias consolidadas, de forma a

    impulsionar as exportaes nacionais, ou seja, acoplou-se a poltica de comrcio

    exterior poltica externa para amenizar as vulnerabilidades do pas e impulsionar

    a recomposio da poupana interna41. Com a manuteno de altos ndices de

    exportao, acreditava o governo, o setor produtor brasileiro, tanto industrial

    quanto agrcola, seria estimulado e cresceria, gerando empregos, elevando a renda

    da populao e proporcionando a gerao de supervits na balana comercial do

    pas. Para que a estratgia fosse bem-sucedida, o Brasil deveria, de acordo com a

    lgica governamental, manter a inflao sob controle, utilizando-se das taxas de

    juros, e manter o servio da dvida para no suscitar desconfiana nos investidores

    internacionais. Desta forma, buscou-se a preservao de boas relaes com

    instituies financeiras internacionais, com a comunidade bancria e de negcios,

    com proeminentes parceiros comerciais e com os pases dos quais partiam crdito

    privado e fluxos de investimento dos quais o Brasil no poderia prescindir42.

    O temor de investidores internacionais de que a ascenso de um governo de

    esquerda no levasse adiante iniciativas que tornavam possvel o servio da dvida

    e de que chegasse, mesmo, situao extrema de decreto de moratria amenizou-

    se gradualmente aps a posse de Lula, em 2003. O governo do PT provou na

    prtica que, de acordo com as promessas eleitorais, havia de fato abandonado sua

    averso reforma liberal, o repdio ao Fundo Monetrio Internacional (FMI) e a

    39 ALMEIDA, P. R., 2004: pp. 164-165; 177. 40 OLIVEIRA, M. F., 2005. 41 AMORIM, C., 2003a. 42 PERRY, W., 2003: 2.

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  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    defesa da moratria, defendidos pelo partido antes do incio campanha presidencial

    de 2002. Com os esforos macroeconmicos que se desenvolveram no sentido de

    reconquistar a confiana do mercado internacional de capitais, de controlar a

    inflao atravs da manuteno de taxas de juros elevadssimas e de conter a

    dvida pblica a exemplo da administrao Cardoso e em acordo com as

    recomendaes do FMI o pas logrou voltar a receber investimentos externos e

    neutralizou a desconfiana internacional. O cmbio na orientao econmica do

    governo foi explicado pelo PT como uma medida necessria para abrandar a

    vulnerabilidade do pas em um contexto internacional incerto43.

    O governo Lula tomou como ponto de partida para elaborao de sua poltica

    externa a noo de que a globalizao e a liberalizao econmica, da maneira

    como se deram at ento, geravam excluso e disseminavam a fome e a pobreza,

    em particular nos pases considerados subdesenvolvidos ou em desenvolvimento44.

    As exigncias das grandes potncias de que os demais pases abrissem suas

    economias concorrncia internacional, enquanto elas prprias criavam barreiras

    para proteger sua produo interna, representavam um entrave ao crescimento das

    economias menores. No mbito interno aos pases, os problemas sociais

    resultariam de aes governamentais que dissociavam o desenvolvimento

    econmico do desenvolvimento social, sendo o primeiro priorizado. Ao dar mais

    importncia a medidas de defesa da estabilidade econmica, os governos estariam

    relegando a sustentabilidade social a segundo plano.

    As crticas dinmica internacional evidenciaram que o governo Lula entendia as

    relaes internacionais como relaes hierarquizadas, no mbito das quais as

    grandes potncias mobilizavam-se para, fazendo proveito de sua situao de

    vantagem poltica e econmica, impor seus interesses ao restante do sistema. Entre

    os setores no qual a atuao das grandes potncias limitou o desenvolvimento dos

    demais atores, destacou-se o setor comercial, no qual, de acordo com o ministro

    das Relaes Exteriores, as barreiras e subsdios distorciam brutalmente o comrcio

    e privavam os pases em desenvolvimento de vantagens comparativas naturais ou

    obtidas atravs do esforo e do engenho criativo45.

    No governo Lula, a convergncia da influncia do Itamaraty na anlise do contexto

    internacional com a similaridade da agenda internacional durante o governo FHC e

    com a opo por uma poltica econmica que em grande medida repetia frmulas

    de seu predecessor foi refletida em traos de continuidade da poltica externa,

    43 PERRY, W., 2003: 2. 44 SILVA, L. I. L., 2004a; AMORIM, C., 2003a. 45 AMORIM, C., 2003a.

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  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    combinada, contudo, com novas formas de tratamento de temas que tambm

    estiveram na pauta da gesto precedente. Neste sentido, Amorim reiterou

    princpios e linhas de ao que j fazem parte da ndole brasileira, como o respeito

    soberania dos Estados e a soluo pacfica de controvrsias, ou, ainda, a defesa

    do multilateralismo46. A ascenso de um governo de esquerda no determinou,

    portanto, o abandono das chamadas linhas tradicionais da poltica externa

    brasileira. Similarmente ao governo FHC, a pouca especificidade dos termos

    utilizados para caracterizar as diretrizes tradicionais da poltica externa brasileira

    permitiram sua aplicao de forma flexvel.

    A definio das diretrizes da poltica externa, entretanto, baseou-se na vontade de

    reverter posturas do governo anterior que foram consideradas por demais reativas

    e defensivas e na opo por reintroduzir alguns valores tradicionais e dimenses

    que, de alguma forma, haviam sido negligenciados ou pouco explorados pela

    administrao FHC. Com efeito, o governo Lula adotou uma atitude mais agressiva

    no que diz respeito defesa da reorganizao do sistema internacional para

    benefcio dos pases em desenvolvimento. Neste sentido, anunciou a [...]

    determinao de traduzir em ao concreta a viso de uma ordem internacional

    mais justa e democrtica [...]47 e defendeu uma ordem mundial regida pela

    observncia do direito internacional e exercida por meio de um sistema multilateral

    equilibrado e justo48.

    A falta de reciprocidade no comrcio internacional foi escolhida como smbolo das

    injustias presentes no sistema internacional. O Brasil, pelo papel que ocupava no

    mundo, deveria ser protagonista do processo de reformulao da ordem comercial.

    Por esse motivo, o presidente Lula afirmou, durante o Frum Econmico Mundial de

    2005, que assumiu a administrao brasileira com a misso de transformar a

    geografia comercial do mundo, idia relacionada ao fortalecimento dos laos

    comerciais e econmicos entre os pases do Sul, sem, contudo, descartar as

    oportunidades oriundas do Norte. Naquela ocasio, o presidente esclareceu que o

    cerne de sua proposta de reformulao do comrcio global no estava situado na

    contraposio aos Estados Unidos e Unio Europia, e sim no estabelecimento de

    uma poltica de similaridade49, baseada na aliana com potncias emergentes,

    que levou formao do Grupo dos 20 (G-20).

    46 AMORIM, C., 2005b: 2. Grifo meu. 47 AMORIM, C., 2005b: 2. 48 SILVA, L. I. L., 2003a. 49 SILVA, L. I. L., 2005a.

    15

  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    A capacidade brasileira de promover uma ordem mais justa e democrtica estaria

    ligada tanto relevncia do pas - um pas de grandes dimenses, populao e

    atividade poltica - quanto coordenao poltica com atores de destaque na

    poltica internacional, por meio de alianas pontuais para tratar de temas que

    comportassem interesses em comum, sem que houvesse obrigatoriedade, no

    entanto, de que as parcerias abrangessem a totalidade das agendas.

    Enquanto o governo FHC optou por diversificar os pases com os quais mantinha

    relaes, o governo Lula apostou em um nvel de proximidade maior, melhor

    classificado como parceria do que como simples aproximao. Alm de

    estabelecer parcerias com pases situados em sua regio e com grandes potncias e

    blocos, o Brasil voltou-se conformao de relaes privilegiadas com pases

    independentes do mundo em desenvolvimento, como ndia, China, frica do Sul e

    Argentina, sem deixar, contudo, de manter boas relaes com pases desenvolvidos

    e pobres.

    Conquanto no tenha deixado de figurar no topo da agenda da poltica externa

    brasileira, o entendimento entre os pases do Mercosul encontrou inmeras

    dificuldades, mergulhando o bloco em uma crise profunda. Na poltica externa do

    primeiro mandato de Lula, o Mercosul tinha o papel estratgico de constituir uma

    base material para a unio poltica da Amrica do Sul, alm de representar um

    contrapeso influncia norte-americana, conformando um modelo de regionalismo

    no-excludente. Todavia, desentendimentos comerciais e polticos demonstram que

    os laos constitudos no seio do bloco eram ainda precrios. A crise no Mercosul no

    impediu que o governo brasileiro continuasse a defender a integrao dos pases da

    Amrica do Sul e adotasse iniciativas polticas que demonstrassem que o Brasil

    considerava a regio estratgica. Entre as medidas que visavam impulsionar a

    integrao esteve o estabelecimento de negociaes para a criao de um acordo

    comercial entre o Mercosul e a Comunidade Andina de Naes (CAN), tendo em

    vista o avento da rea da Livre Comrcio Sul-Americana (ALCSA). Paralelamente, o

    Mercosul logrou produzir entendimentos comerciais com Peru, Colmbia, Venezuela

    e Equador. O investimento em infra-estrutura para viabilizar o comrcio regional foi

    priorizado pelo governo, ainda que as restries financeiras do pas tenham imposto

    entraves a sua execuo.

    Como o governo FHC, o governo Lula apostou no multilateralismo como o meio de

    ao privilegiado dos pases em desenvolvimento, capaz de resguard-los dos

    abusos de poder e das imposies advindas de atores de maior poder. O discurso

    assumido pelos condutores da poltica externa brasileira associou o multilateralismo

    16

  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    ao sistema democrtico de governo no mbito interno dos Estados. Por meio da

    associao entre multilateralismo e democracia, buscou-se cobrar das grandes

    potncias democrticas uma atuao em mbito mundial que no contradissesse

    grosseiramente seus valores internos e suas recomendaes aos pases em

    desenvolvimento.

    Outro recurso retrico empregado foi a apresentao da liberalizao comercial

    como um instrumento de combate concentrao de renda e s desigualdades

    sociais em mbito mundial. A considerao de que as barreiras comerciais impostas

    pelos pases ricos contribuam de maneira significativa para disseminar a pobreza e

    a misria estendeu-se, ainda, ao campo da segurana internacional, uma vez que

    as proposies brasileiras buscaram aliar a justia social construo de uma

    ordem global mais estvel e segura50. O governo brasileiro lanou mo do

    argumento de que o desenvolvimento econmico estava intimamente relacionado

    ao fomento da paz internacional, enfatizando sua compreenso de que as questes

    estritamente relacionadas segurana no deveriam predominar na agenda

    internacional. Segundo esta associao entre paz e segurana, solues para

    conflitos internacionais que no considerassem o combate s assimetrias seriam

    precrias e no poderiam produzir estabilidade duradoura.

    Tambm no campo da segurana, os formuladores da poltica externa pautaram-se

    no multilateralismo, no fortalecimento das organizaes internacionais e no direito

    autodeterminao. A incapacidade da ONU de frear a interveno militar dos EUA

    no Iraque, ao evidenciar fragilidades e limites na atuao da organizao, deu

    margem para que o Brasil, em conjunto com outras potncias, revigorasse sua

    campanha por um assento permanente dentro do Conselho de Segurana51. A

    demanda do Brasil seria coerente com a obsolescncia da estrutura da ONU e com

    a necessidade de adequ-la s transformaes do sistema internacional.

    Juntamente com a Alemanha, o Japo e a ndia, o Brasil formou, em setembro de

    2004, o G-4, com a finalidade de consolidar o apoio recproco para a entrada no

    Conselho na condio de membros permanentes. No intuito de demonstrar sua

    aptido para intervir positivamente na ordem internacional, o Brasil disps-se a

    comandar a misso de estabilizao da ONU Haiti para conter a guerra civil

    instaurada naquele pas, iniciada em 2004.

    A soma dos ideais pacifistas busca de autonomia poltica pode ser ilustrada pelo

    discurso assumido pelo Brasil no que tange ao desenvolvimento nuclear. A face

    50 AMORIM, C., 2005b. 51 SILVA, L. I. L. 2004f.

    17

  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    pacifista da poltica externa foi evidenciada pela reivindicao do cumprimento dos

    acordos de desarmamento e no-proliferao nuclear. Por outro lado, o vis

    autonomista esteve presente no argumento de que a reduo do potencial militar

    nuclear no deveria servir de pretexto para impedir o desenvolvimento de

    tecnologias nucleares para uso pacfico por aqueles pases que ainda no as

    detinham, como no caso brasileiro52. Coerentemente com este discurso, o Brasil

    condenou a Coria do Norte por retirar-se do TNP53 ao mesmo tempo em que se

    contraps presso do Departamento de Estado dos EUA para que o Brasil

    assinasse o Protocolo Adicional de Inspees da Agncia Internacional de Energia

    Atmica (AIEA) da ONU. Os esforos norte-americanos, respaldados pela AIEA, em

    abril de 2004, tiveram como resposta a afirmao do governo brasileiro de que o

    pas no precisaria assinar o Protocolo Adicional que permite inspees profundas

    e sem aviso prvio uma vez que j fiscalizado pela Agncia Brasileiro-Argentina

    de Contabilidade e Controle (ABACC) e pela AIEA desde 1994, e que jamais foram

    levantadas quaisquer suspeitas acerca de seu compromisso com o desarmamento e

    a no-proliferao. A polmica teve fim em outubro, com a declarao do ento

    secretrio de Estado norte-americano, Colin Powell, de que o desenvolvimento

    nuclear brasileiro no preocupava os Estados Unidos e foi definitivamente

    encerrada com a aprovao, pela AIEA, do plano de inspeo da fbrica de

    enriquecimento de urnio de Resende, no Rio de Janeiro, proposto pelo governo

    brasileiro, que comprovou que o processamento destinava-se a fins pacficos.

    Os formuladores e executores da poltica externa brasileira entenderam que o

    exerccio da autonomia poltica deveria consolidar-se atravs de um protagonismo

    engajado termo empregado pelo ministro das Relaes Exteriores - ou seja, uma

    postura que colocasse o Brasil como um ator relevante para as decises mundiais e

    que tambm demonstrasse comprometimento com os valores aclamados pela

    tradio da poltica externa e com os interesses nacionais 54.

    Poltica de Defesa: novos rumos?

    A criao do Ministrio da Defesa durante o governo FHC foi recebida com

    entusiasmo pelo PT. Entretanto, no momento da implementao da pasta da

    Defesa, a oposio no se furtou a destacar limitaes do projeto do governo, que,

    em seu entendimento, deixou de incorporar sugestes enumeradas durante os

    52 AMORIM, C., 2005a. 53 MINISTRIO DAS RELAES EXTERIORES, 2003. 54 AMORIM, C., 2005b: 6.

    18

  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    debates que a precederam55. A percepo dos membros do partido era de que

    havia necessidade de aprofundar o carter civil do Ministrio da Defesa, ou seja,

    minar a autonomia dos comandantes militares, aumentar, entre os parlamentares

    brasileiros, a conscincia de que a defesa constitui uma questo civil e no militar56

    e proibir o emprego das Foras Armadas na administrao da ordem pblica. A

    ascenso do candidato do PT Presidncia da Repblica deu margem expectativa

    de que as sugestes feitas ao governo anterior fossem finalmente incorporadas.

    Todavia, uma vez no poder, o PT reviu sua orientao anterior, conforme ilustrou a

    aprovao do Decreto 4.735, em 2003, o qual instituiu que os cargos de secretrios

    e diretores de Departamento do Ministrio da Defesa somente poderiam ser

    ocupados por oficiais generais ativos, impedindo, portanto, a atuao de civis. Este

    mesmo decreto permitiu que as Foras Armadas atuassem na garantia da lei e da

    ordem, ou seja, instituiu legalmente a interveno militar na vida poltica nacional.

    O primeiro ministro a ocupar a pasta da Defesa durante o governo Lula foi Jos

    Viegas Filho, diplomata experiente no tratamento de temas de Segurana

    Internacional. Sua permanncia no ministrio foi marcada pela continuidade de

    algumas diretrizes adotadas pelo ministro anterior, como o caso da campanha

    pelo aumento salarial dos militares, a realizao de exerccios e operaes militares

    conjuntas, a priorizao da Amaznia como espao estratgico da atuao das

    Foras Armadas brasileiras e a manuteno de atividades militares visando

    garantia da ordem pblica. Destacaram-se as tentativas de atender s demandas

    das tropas sem que fossem permitidas, contudo, maiores manifestaes que

    pudessem denotar a falta de controle civil sobre os militares. Foram ainda alvo das

    atenes do ministrio a operacionalizao da Lei do Abate, a represso aos

    delitos transnacionais, a aproximao como os pases da Amrica do Sul, a Fora de

    Paz da ONU no Haiti, a questo oramentria e o reaparelhamento das Foras57.

    Durante a permanncia de Viegas no Ministrio da Defesa, foram constantes as

    reclamaes das trs Foras a respeito do nvel salarial dos militares,

    acompanhadas por manifestaes promovidas por mulheres de militares. O reajuste

    salarial foi encarado pelo ministro da Defesa como uma questo financeira e

    poltica. Por esse motivo, Viegas proibiu os comandantes do Exrcito, da Marinha e

    da Aeronutica de fazer comentrios ou reivindicaes pblicas e colocou-se como

    nico negociador do assunto junto ao governo58.

    55 GENONO apud MARQUES, A. A., 2004: 40. 56 MARQUES, A. A., 2004: 40. 57 VIEGAS, J. 2004a. 58 COTTA, E., 2004.

    19

  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    O reaparelhamento do Exrcito, da Marinha e da Aeronutica esteve em discusso

    e motivou o pronunciamento dos comandantes, a despeito das dificuldades

    oramentrias enfrentada pelo ministrio. Entre 2003 e 2004, o oramento do

    ministrio aumentou em 70% e os programas de reaparelhamento das Foras

    voltaram a receber recursos59. Com o objetivo de reforar a atuao coordenada do

    Exrcito, da Marinha e da Aeronutica, possibilitando uma elevao substancial da

    integrao entre as Foras e dinamizando a eficincia operacional dos meios

    militares brasileiros, foram realizadas as operaes conjuntas Timb I, Timb II,

    Timb III e Jauru as duas ltimas aps a demisso de Viegas.

    Em reforo segurana do territrio nacional, especialmente das regies de

    fronteira, foi aprovada a chamada Lei do Abate, que autorizou a derrubada de

    avies que adentrassem o espao areo brasileiro sem se identificar e responder a

    ordens de identificao ou pouso. O texto do decreto que criou a lei foi redigido em

    conjunto pelo Ministrio da Defesa, Ministrio da Justia, Ministrio das Relaes

    Exteriores e pelo Gabinete de Segurana Institucional.

    Crticas ao uso do Exrcito para o patrulhamento urbano, o reconhecimento da

    necessidade de reformular o documento de Poltica de Defesa Nacional estabelecido

    no governo Cardoso e questionamentos quanto ao posicionamento do Brasil frente

    a questes de segurana internacional e desenvolvimento blico impulsionaram,

    durante a gesto de Viegas, a realizao do Ciclo de Debates Atualizao do

    pensamento brasileiro em matria da Defesa e Segurana, que reuniu acadmicos,

    militares, diplomatas, jornalistas, polticos etc., na cidade de Itaipava.

    A poltica externa de Lula teve importantes reflexos sobre as opes do Ministrio

    da Defesa, alimentando a cooperao entre os pases do Mercosul e entre os pases

    sul-americanos no campo da segurana e da defesa. Em diversos pronunciamentos,

    o ministro comunicou a inteno de aprofundar as medidas de confiana mtua

    entre as Foras Armadas de pases vizinhos, bem como a necessidade de

    incrementar os exerccios militares conjuntos, visando uma maior articulao militar

    na regio60. Entretanto, a promoo da confiana mtua no seio do Mercosul no

    resultou na criao de um projeto slido de cooperao permanente em defesa,

    limitando-se esta a ocasies isoladas. Viegas mostrou-se hesitante a respeito da

    criao de um mecanismo de defesa no mbito do Mercosul em curto prazo,

    defendendo a opo de priorizar os entendimentos comerciais no seio do bloco. O

    desenvolvimento de estruturas mais rgidas de integrao poltico-militar seria a

    59 VIEGAS, 2004a. 60 VIEGAS, J., 2004b.

    20

  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    fase final do processo de cooperao, que por ora deveria limitar-se ao

    estabelecimento de vnculos especficos61. Por outro lado, o governo impulsionou

    a integrao das indstrias de armamentos militares na regio, destacando os

    benefcios que o pas ganharia no que tange a acesso a mercados.

    A principal medida adotada no campo da defesa foi a busca de um dilogo

    interinstitucional mais denso com alguns pases, atravs do estabelecimento dos

    Grupos de Trabalho Bilaterais em matria de defesa com a Argentina, a Bolvia, o

    Chile, o Peru e o Uruguai. Ademais, o ministro da Defesa empenhou-se em

    organizar reunies com seus homlogos sul-americanos. Tais reunies, que tiveram

    incio em Braslia, em 2003, e voltaram a acontecer em duas outras ocasies,

    tiveram por finalidade construir consensos mnimos entre os governos. Tanto

    quanto no caso do Mercosul, a agenda do governo brasileiro no campo da

    segurana relacionada Amrica do Sul foi tomada por os assuntos relacionados a

    ameaas no-tradicionais, como o trfico de drogas, crimes ambientais e furtos de

    automveis. De fato, membros da diplomacia e do governo brasileiro reconheceram

    a importncia de se buscar um dilogo maior na Amrica do Sul em assuntos de

    defesa e segurana internacional, sem que, contudo, se almejasse sua

    institucionalizao. A proposta brasileira para a regio em que o pas est inserido

    limitou-se a medidas de promoo de confiana mtua no campo da poltica militar

    e das Foras Armadas, implantadas especialmente com a Argentina, com os demais

    pases do Mercosul e da Amrica do Sul em geral.

    O episdio que culminou com pedido de demisso do ministro Jos Viegas, por sua

    vez, permitiu vislumbrar dificuldades na tentativa de submeter totalmente as

    Foras Armadas ao controle civil. A instabilidade poltica finalizada por sua sada do

    governo teve incio com a divulgao, no ltimo semestre de 2003, de fotos oficiais

    que retratavam o jornalista Vladimir Herzog em condies humilhantes no interior

    de uma cela mantida pelo Exrcito, durante o perodo ditatorial62. A divulgao das

    fotos fomentou o descontentamento das tropas e do prprio comandante do

    Exrcito, general Francisco Albuquerque, que emitiu uma nota exaltando a atuao

    das Foras Armadas durante o perodo de ditadura (1964-1985)63. O presidente

    Lula desaprovou a medida e exigiu uma retratao pblica, efetuada por meio da

    emisso de uma nova nota. A retratao foi condenada publicamente por militares

    61 VIEGAS, J., 2004b. O ministro Viegas reiterou este posicionamento aps o pronunciamento do ento ministro da Casa Civil Jos Dirceu a favor da integrao militar na Amrica do Sul. Viegas respondeu afirmando que os pases da Amrica do Sul deveriam estar aptos a prescindir de qualquer ajuda externa para sua Defesa. 62 O jornalista foi preso durante a ditadura militar e apresentado como suicida em 25 de outubro de 1975, sob fortssimas suspeitas de ter sido torturado e assassinado por militares. 63 ALBUQUERQUE, F. R., 2004.

    21

  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    da reserva, que alegaram que a medida fragilizava a imagem da Fora. O embate

    poltico entre os oficiais do Exrcito e o Ministrio da Defesa resultou no pedido de

    demisso do ministro Viegas, que avaliou em sua carta de demisso no ter sido

    respaldado de forma adequada pela Presidncia da Repblica, uma vez que esta

    manteve o comandante em seu cargo e nenhum dos responsveis pela emisso da

    nota foi punido.

    Aps a sada de Viegas, a pasta passou a ser ocupada pelo vice-presidente Jos

    Alencar, o qual declarou no possuir o perfil adequado para ocup-la. O vice-

    presidente tambm afirmou que a gesto do ministrio seria efetuada em conjunto

    com os comandantes militares e que no tinha qualquer pretenso de ser ministro

    da Defesa64. Neste cenrio pouco propcio a negociaes, o governo brasileiro

    aprovou o novo documento nacional de poltica de defesa, reconhecendo a

    necessidade de reviso do anterior. Destacam-se no documento, publicado em

    julho de 2005: (a) a incluso da observao de que a poltica de defesa nacional

    encontra-se em consonncia com a poltica externa brasileira; (b) a definio de

    defesa nacional como o conjunto de medidas e aes do Estado, com nfase na

    expresso militar, para a defesa do territrio, da soberania e dos interesses

    nacionais contra ameaas preponderantemente externas, potenciais ou manifestas 65; (c) o reconhecimento da necessidade de desenvolvimento da indstria blica em

    decorrncia dos entraves existentes paz mundial; (d) o reconhecimento de que a

    vertente preventiva da defesa reside na diplomacia como recurso primeiro de

    resoluo de conflitos e na capacidade dissuasria do poder militar; e,

    especialmente (e) a autorizao para a atuao das Foras Armadas na represso a

    ameaas internas. tambm expressiva a supresso do item garantia do Estado

    de Direito e das instituies democrticas, constante no documento da poltica de

    defesa publicado em 1996, dentre os objetivos institudos pelo novo documento.

    O contedo do documento mostrou-se mais adequado s prticas adotadas pelo

    governo Lula tanto no que se refere poltica de defesa quanto poltica externa.

    Os pases vizinhos foram apresentados pelo documento como parceiros e

    amistosos, mas se reconheceram as adversidades presentes no meio internacional

    e sua ameaa autonomia brasileira. Comparado poltica de defesa de 1996, o

    documento de 2005 suaviza os conceitos tipicamente esguianos, assumindo o

    carter multidimensional da segurana e reconhecendo, no entanto, que esta no

    alcanada exclusivamente atravs de meios militares.

    64 ALENCAR apud LAGE, J., 2005. 65 BRASIL, 2005.

    22

  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    O vice-presidente Alencar pediu afastamento do ministrio, em maro de 2006,

    para se candidatar s eleies de outubro e foi substitudo, em 31 de maro, por

    Waldir Pires, ex-deputado e ex-governador da Bahia ligado ao PT. O ministro havia

    integrado o primeiro escalo do governo Joo Goulart, deposto pela ditadura militar

    em 31 de maro de 1964. No dia da posse de Pires, o comandante do Exrcito,

    general Francisco Roberto de Albuquerque, publicou uma Ordem do Dia66

    enaltecendo o golpe militar que derrubou o governo de Goulart, prenunciando

    tenses que culminariam no afastamento de Pires no segundo governo Lula,

    referentes gesto da aviao civil.

    Entendeu-se, nesta administrao, que o dilogo diplomtico e a atuao militar

    defensiva estavam intrinsecamente ligados, conquanto o primeiro fosse priorizado e

    antecedesse o segundo. Apesar de o governo Lula atribuir maior valor defesa na

    conduo de suas relaes exteriores do que o governo FHC, persistiu a percepo,

    entre os formuladores da poltica externa, de que as negociaes diplomticas

    seriam capazes de suprir quase completamente as demandas das relaes

    exteriores brasileiras. Entretanto, a capacitao das Foras Armadas foi vista como

    condio para a realizao das metas brasileiras de protagonismo ativo na esfera

    global, ou seja, o fortalecimento militar foi encarado como uma necessidade, na

    medida em que permitiria ao pas participar de forma mais decisiva da poltica

    internacional.

    Consideraes finais

    A identificao dos atores domsticos proeminentes na formulao de poltica

    externa e na poltica de defesa brasileira permite no apenas explicar parcialmente

    pontos de convergncia ou de incoerncia entre ambas, como tambm d ensejo a

    reflexes sobre o grau de influncia do Itamaraty e das Foras Armadas em sua

    elaborao e implementao e sobre as dificuldades que dela emergem no que se

    refere abertura destes temas ao debate pblico. No criar mecanismos para

    contrapor a concentrao de decises nas mos de militares e diplomatas significa

    aceitar sua apropriao por grupos de interesse privilegiados, que supostamente

    teriam mais conhecimento acerca dos temas abordados neste artigo do que o

    restante da sociedade. O recurso autoridade do conhecimento deixa de explicitar,

    contudo, que as decises tomadas por tais atores so, sobretudo, polticas,

    66 ALBUQUERQUE, F. R., 2006.

    23

  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    calcadas em vises do contexto internacional e do projeto nacional impregnadas

    por concepes pessoais, escamoteadas pelo discurso da neutralidade do saber.

    Mais do que avaliar a eficincia dos caminhos percorridos para se atingir os

    objetivos propostos pelos formuladores da poltica externa e da poltica de defesa,

    este exerccio reflexivo tem o intuito de propor a abertura ao debate democrtico,

    tanto do projeto de insero internacional do Brasil, quanto de seu projeto de

    desenvolvimento, cujos efeitos se fazem sentir na sociedade como um todo.

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  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    Parlamento do Mercosul: forma de organizao e perspectivas participao social e s polticas pblicas

    Elisa de Sousa Ribeiro

    Pesquisadora do PIBIC/ CNPq Helena Martins

    Graduanda em Cincia Poltica pela UnB Maurcio Santoro

    Pesquisador do IBASE e Doutorando em Cincia Poltica no Iuperj

    Introduo

    A primeira dcada do sculo XXI marcada por mudanas no Mercosul, no sentido

    de aprofundar o processo de integrao. No enfoque do regionalismo aberto que

    havia vigorado nos anos 1990 destacava-se o aspecto da abertura comercial e da

    vinculao s reformas econmicas ento em curso. As medidas contemporneas

    ressaltam a realizao de obras de infra-estrutura (transportes, comunicaes e

    energia) e o reforo dos laos de vizinhana geogrfica na Amrica do Sul1. neste

    contexto que se fortalece a demanda por harmonizao de polticas pblicas entre

    os pases do bloco. A criao do Parlamento do Mercosul parte essencial da novo

    formato de integrao.

    medida que se fortalecem os vnculos entre os pases do bloco, o impacto da

    poltica internacional se torna mais intenso na vida cotidiana, sobretudo pelo

    aspecto da economia. Os sindicatos do Cone Sul foram desde o incio ativos nos

    parcos espaos de participao existentes no Mercosul, como o Foro Consultivo

    Econmico e Social, mas agora outros grupos de presso cidad tambm se

    mobilizam para influir na agenda regional, como organizaes de direitos humanos,

    movimentos feministas e ambientalistas. A percepo de que muitos dos problemas

    da regio s podem ser enfrentados por aes conjuntas dos Estados levou a

    demandas crescentes por maior coordenao entre suas polticas pblicas.

    Ao longo destes ltimos anos, o Poder Executivo dos pases do Mercosul abriu

    diversos espaos de participao, como as Reunies Especializadas do bloco, que

    cobrem diversos temas sociais e iniciativas lanadas pelos chefes de governo e

    pelas chancelarias2. Contudo, tais medidas no foram suficientes para lidar com as

    presses sociais. No obstante sua significante atuao para a construo de um

    rgo de representao popular, os parcos poderes da Comisso Parlamentar

    1 LIMA e COUTINHO, 2006. 2 SANTORO, 2007.

    27

  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    Conjunta tambm se mostraram incapazes de administrar as demandas legislativas

    concernentes incorporao interna das normas Mercosulinas.

    O Parlamento do Mercosul foi criado em dezembro de 2006 para tratar da agenda

    ampliada do processo de integrao e oferece perspectivas promissoras para a

    discusso dos problemas do bloco. Este artigo busca discutir trs aspectos

    principais do novo rgo: 1) sua histria e modo de organizao; 2) as ferramentas

    que oferece participao cidad; 3) as possibilidades que apresenta para a

    harmonizao de polticas pblicas entre os pases do bloco.

    Apesar de suas fragilidades institucionais, o Parlamento do Mercosul surge como

    interessante instrumento para a discusso de alternativas aos obstculos

    enfrentados no processo de integrao regional da Amrica do Sul.

    Histria da Criao do Parlamento do Mercosul

    Em 1991 o Tratado de Assuno previu a criao da Comisso Parlamentar

    Conjunta do Mercosul (CPC), para representar os parlamentos nacionais e facilitar a

    implementao e o desenvolvimento do bloco. Ela foi constituda em setembro do

    mesmo ano, no mbito da II Reunio Parlamentar do Mercosul quando se

    manifestou pela primeira vez em um documento a deciso de criar futuramente um

    Parlamento Regional.

    Posteriormente, o Protocolo de Ouro Preto, instrumento que definiu a estrutura

    institucional do Mercosul e lhe deu personalidade jurdica, conferiu CPC a funo

    de acelerar a tramitao das normativas mercosulinas nos respectivos Poderes

    Legislativos e o papel de harmonizar as legislaes nacionais. Formada por

    parlamentares designados por seus respectivos Estados, a CPC se dividia em

    Sees Nacionais, que atuavam dentro dos legislativos promovendo a anlise e

    acompanhamento das normativas que necessitassem de aprovao. Desde sua

    criao at a sua extino, a CPC teve grande importncia para viabilizar o dilogo

    interparlamentar que gerou as bases polticas para a criao do Parlamento do

    Mercosul.

    Regulamento datado de 13 de dezembro de 1997 ressaltou o objetivo de se

    fortalecer a atuao parlamentar no processo de integrao, visando futura

    instalao de um Parlamento. Para tanto, esta norma lhe conferiu a atribuio de

    desenvolver as aes necessrias para facilitar a criao do legislativo regional.

    28

  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    Os estudos e trabalhos que visavam a estabelecer agenda para a institucionalizao

    comearam em 1999, na XIV Reunio Plenria, com a Disposio n. 14/99. No ano

    seguinte, por meio da Declarao de Santa F, reafirmou-se o compromisso dos

    presentes com a democracia representativa e continuou o processo de criao de

    um rgo de representao cidad.

    Em outubro de 2003 foi apresentado o Acordo Interinstitucional entre o Conselho

    do Mercado Comum e a Comisso Parlamentar Conjunta que destacava a

    necessidade de se reforar a legitimidade democrtica do Mercosul por meio da

    construo de um Parlamento Regional, que deveria representar a vontade dos

    povos do bloco.

    Em julho de 2004, esta declarou que a reviso da estrutura institucional do

    Mercosul deveria ser promovida de forma a proporcionar maior segurana jurdica

    ao bloco, contexto no qual o Parlamento assumiria papel central, com a criao de

    direito de integrao mais slido, gerando procedimentos eficazes de internalizao

    de normas mercosulinas aos ordenamentos nacionais e estimulando a conscincia

    regional nos cidados.

    Em dezembro de 2004, foi assinada a Deciso CMC n 49/04, denominada

    Parlamento do Mercosul. Nesta oportunidade a CPC foi incumbida da tarefa de

    apresentar projeto de Protocolo Constitutivo para o Parlamento, assumindo a

    responsabilidade pelas aes necessrias para a instalao do novo rgo at a

    data limite de 31 de dezembro de 2006.

    A partir das reunies da Comisso Parlamentar Conjunta, surgiram dois projetos de

    Protocolo, um apresentado pela seo argentina e outro pela brasileira. Da

    composio analtica feita a partir de ambos, foi elaborada proposta que deu origem

    Deciso CMC n 23/05, resultando na aprovao do Protocolo Constitutivo do

    Parlamento do Mercosul.

    Organizao e Modo de Funcionamento

    rgo unicameral, cujos principais propsitos so a promoo e a defesa da

    democracia, o respeito pluralidade e diversidade cultural ideolgica e poltica, a

    promoo de desenvolvimento sustentvel com justia social e a participao da

    sociedade civil no processo de integrao, o Parlamento rege-se pela transparncia

    da informao e das decises, de forma a facilitar o envolvimento dos cidados.

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  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    Sua criao foi importante para o aprimoramento institucional do Mercosul,

    proporcionado espao de interao entre o bloco e a sociedade civil, permitindo que

    os temas ligados integrao regional pudessem ser debatidos de forma aberta e

    democrtica pelos diferentes grupos sociais.

    Esta caixa de ressonncia dos anseios dos cidados mercosulinos tem um carter

    eminentemente representativo dos povos do Cone Sul, uma vez que os

    parlamentares sero eleitos pelo sufrgio universal, direto e secreto em eleies

    que sero regidas pelas legislaes de cada Estado Partes. As regras para essa

    escolha ainda no foram definidas, mas entraro em vigor em 2010. At l, os

    mercoparlamentares sero indicados pelos Legislativos nacionais.

    O Parlamento composto por Mesa Diretora, comisses temporrias, especiais e

    permanentes, Secretaria Parlamentar, Secretaria Administrativa, Secretaria de

    Relaes Institucionais e Comunicao Social e por Secretaria de Relaes

    Internacionais e Integrao.

    Atualmente conta com as seguintes comisses: a) Assuntos Jurdicos e

    Institucionais; b) Assuntos Econmicos, Financeiros, Comerciais, Fiscais e

    Monetrios; c) Assuntos Internacionais, Inter-regionais e de Planejamento

    Estratgico, d) Educao, Cultura, Cincia, Tecnologia e Esporte; e) Trabalho,

    Polticas de Emprego, Segurana Social e Economia Social; f) Desenvolvimento

    Regional Sustentvel, Ordenamento Territorial, Moradia, Sade, Meio Ambiente e

    Turismo; g) Cidadania e Direitos Humanos; h) Infra-estrutura, Transportes,

    Recursos Energticos, Agricultura, Pecuria e Pesca; e j) Oramento e Assuntos

    Internos.

    As sesses do Parlamento do Mercosul so, em regra, pblicas e tm carter

    ordinrio ou extraordinrio. Aquelas ocorrem ao menos uma vez por ms, e as

    sesses extraordinrias podero ser convocadas por requerimento de

    parlamentares ou a pedido do Conselho Mercado Comum.

    Suas principais competncias so emitir pareceres sobre projetos de norma,

    apresentar anteprojetos que visem harmonizao das legislaes nacionais,

    promover audincias pblicas, receber peties de particulares, elaborar relatrio

    sobre a situao dos direitos humanos no bloco e realizar reunies com o Foro

    Consultivo Econmico-Social para tratar de temas ligados ao desenvolvimento do

    Mercosul.

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  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    O Parlamento do Mercosul no tem poder legiferante, ou seja, no produz direito

    positivo supranacional3, mas funciona como ponto de confluncia dos interesses

    coletivos e individuais, ao possibilitar local para a realizao de debates e definio

    de polticas setoriais, e auxiliar tambm no processo de internalizao de

    normativas.

    A respeito da emisso de pareceres sobre os projetos de norma, basta

    comentarmos que esta competncia objetiva garantir tramitao destas normas de

    forma mais clere nos Poderes Legislativos nacionais. Desta forma, o Parlamento,

    em at 90 dias aps realizao de consulta feita pelo Conselho Mercado Comum,

    elaborar parecer sobre todas as normas que necessitem de aprovao legislativa

    nos Estados do bloco.

    Se o projeto for aprovado em conformidade com seu parecer, os Poderes

    Executivos nacionais tero um prazo de 45 dias para enviar a normativa ao

    Legislativo nacional. No mbito do Congresso Nacional, obedecidas estas

    disposies, a norma mercosulina tramitar nas duas casas do Poder Legislativo

    sob procedimento preferencial, definido pela Resoluo n 1, de 24 de julho de

    2007. Conforme esta norma, caber somente representao brasileira no

    Parlamento do Mercosul e aos plenrios das casas legislativas apreci-la. Nesse

    sentido a representao avocar para si a competncia de algumas comisses,

    passando a opinar sobre mrito, juridicidade, constitucionalidade, adequao

    financeira e oramentria da matria.

    Ademais, cabe ao Parlasul elaborar estudos e anteprojetos de normas nacionais,

    que visem a impulsionar a harmonizao das legislaes, desenvolver e aperfeioar

    a cooperao com os Parlamentos nacionais, a fim de assegurar o bom

    funcionamento do processo integracionista.

    O Dficit Democrtico dos Processos de Integrao Regional

    Para compreender melhor o dficit de participao da sociedade civil e a falta de

    transparncia no processo de integrao regional sul-americano, trataremos,

    sucintamente, das potencialidades do Parlamento do Mercosul para a soluo

    desses problemas. Abordaremos o debate terico sobre dficit democrtico e

    participao da sociedade civil em acordos regionais; em seguida examinaremos as

    questes relativas ao Parlamento do Mercosul.

    3 CASAL, 2005.

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  • Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007

    As instituies e organizaes multilaterais, junto com os acordos internacionais de

    tipos variados, passaram a exercer importante papel no contexto mundial com a

    intensificao e maior abrangncia da globalizao. As decises tomadas no nvel

    internacional impactam no plano local, modificando as relaes econmicas,

    polticas e sociais. Dentro deste contexto, os processos de integrao tornaram-se

    um dos principais fenmenos da nova lgica. No entanto, o monoplio das

    informaes e tomadas de deciso pelo Poder Executivo dos pases e das prprias

    organizaes internacionais geraram, e ainda geram, crticas relacionadas ao dficit

    democrtico, isto , falta de democracia nos espaos de tomada de deciso. As

    queixas abordam a insuficiente abertura participao da sociedade civil4 nas

    organizaes internacionais como um todo, com obstculos como o difcil acesso a

    informaes, concentrao de poder no Executivo, a escassa transparncia e

    accountability, e a pouca participao do Legislativo nas deliberaes.

    O principal argumento para a concentrao de poderes no Executivo o desejo por

    parte dos governos de acelerar a tomada de decises, sob a justificativa de que a

    internalizao das decises regionais no interior da estrutura institucional de cada

    pas se d em processos lentos5. Neste sentido, podemos entender tambm a

    pouca abertura participao da sociedade civil, do Legislativo e do Judicirio, sob

    a alegao que o tornariam mais lento.

    Existe, tambm, a problemtica da legitimao. Esferas pblicas democrticas no

    interior dos Estados membros possibilitam uma integrao plural e profunda,

    tornando-se, assim, solues para essa problemtica6. No entanto, apenas os

    espaos nacionais no so suficientes para que o processo de integrao regional

    seja de fato abrangente. importante a criao de uma esfera pblica democrtica

    regional, adaptada s necessidades do processo de integrao.

    A soluo da Unio Europia foi a criao de um parlamento e de vrios rgos

    consultivos, com o objetivo de institucionalizar novos canais polticos para a

    participao, com mais legitimidade ao processo de integrao ou seja, tentativa

    de institucionalizar a esfera pblica democrtica regional. De acordo com Alemany

    e Leandro, a criao de espaos para uma participao ativa da sociedade civil

    absolutamente fundamental para que os processos de integrao sejam, alm de

    legtimos, aptos para lidar com os temas e problemas comuns entre os pases

    membros pois:

    4 Muitos so os conceitos para o termo sociedade civil. O conceito aqui adotado o considera apenas a sociedade civil organizada, isto , ONGs, sindicatos, movimentos s