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6º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais 25 a 28 de julho de 2017 Área Temática: Análise de Política Externa P39 O Social na Definição de Política Externa POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E DIREITOS HUMANOS: A INFLUÊNCIA DE NOVOS ATORES DOMÉSTICOS DURANTE OS GOVERNOS FHC, LULA E DILMA ROUSSEFF GABRIELLA NUNES DA SILVA Universidade Federal do Pará (UFPA) BELO HORIZONTE MG 2017

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6º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais

25 a 28 de julho de 2017

Área Temática: Análise de Política Externa

P39 – O Social na Definição de Política Externa

POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E DIREITOS HUMANOS:

A INFLUÊNCIA DE NOVOS ATORES DOMÉSTICOS DURANTE OS GOVERNOS

FHC, LULA E DILMA ROUSSEFF

GABRIELLA NUNES DA SILVA

Universidade Federal do Pará (UFPA)

BELO HORIZONTE – MG

2017

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POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E DIREITOS HUMANOS:

A INFLUÊNCIA DE NOVOS ATORES DOMÉSTICOS DURANTE OS GOVERNOS

FHC, LULA E DILMA ROUSSEFF

Gabriella Nunes da Silva1

RESUMO

A intensificação do processo de globalização nas últimas décadas tem levado a política externa a tratar os grandes temas estratégicos de segurança internacional de forma cada vez mais integrada a novos temas na agenda internacional, como direitos humanos, meio ambiente, migração, entre outros. O surgimento de novos temas na agenda global deu vazão ao surgimento de novas vozes e pressões, geralmente associado ao aprofundamento do processo democrático doméstico. Este artigo tem por objetivo analisar a ampliação da participação de novos atores nos processos decisórios da política externa brasileira no campo dos direitos humanos e como esses novos agentes influenciam o comportamento do Estado na defesa dos direitos humanos no cenário internacional, durante os governos de Fernando Henrique Cardoso (1995 – 2002), Luís Inácio Lula da Silva (2003 – 2010) e Dilma Rousseff (2011- 2014). Para isso, aborda-se o conceito de política externa sob o viés de política pública, que enfatiza a complexificação das agendas de política externa e a necessidade de maior diálogo entre o Ministério das Relações Exteriores e setores especializados nas mais diversas áreas sociais. Além disso, este trabalho fundamenta-se nas contribuições de James Rosenau sobre governança global e sobre a capacidade de influência de atores e fatores domésticos na formulação da política externa. Considerando o objetivo a que o trabalho se propõe, utiliza-se uma abordagem qualitativa, fundamentada por meio de pesquisa bibliográfica. Também se configura como uma pesquisa documental, uma vez que se realiza análise de relatórios e outros documentos de organizações independentes, como a ONG Conectas - Direitos Humanos. Por fim, destacam-se as principais semelhanças e diferenças entre as diretrizes da política externa de direitos humanos dos governos analisados e como estes lidaram com a crescente pluralidade de vozes e demandas que povoaram as agendas de política externa na arena dos direitos humanos.

Palavras-chave: Política Externa Brasileira. Direitos Humanos. Governança Global. Atores Não-estatais. 1 INTRODUÇÃO

O processo de globalização tem gerado alterações profundas nas relações sociais

entre os indivíduos, mas também nas diversas instâncias estatais e em suas relações

internacionais. A política externa, tradicionalmente responsável por lidar com temas de grande

relevância estratégica, tem se visto obrigada a ampliar seus horizontes e a tratar temas como

os de segurança internacional de forma cada vez mais integrada a novas temáticas na agenda

internacional, como direitos humanos, meio ambiente, migração, entre outros.

O surgimento de novos temas na agenda global, associado ao aprofundamento do

processo de democratização em países como o Brasil, tem favorecido o aparecimento e a

transnacionalização de ações coletivas organizadas pela sociedade civil, que demandam

maior participação nos processos decisórios das políticas públicas, inclusive no âmbito da

1 Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade da Amazônia (UNAMA) e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Pará (PPGCP/UFPA).

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política externa. Esta, por sua vez, em virtude da ampliação temática da agenda global,

também passa a necessitar cada vez mais de canais de diálogo com outros setores da

sociedade.

Este artigo, portanto, tem por objetivo analisar a ampliação da participação de novos

atores nos processos decisórios da política externa brasileira no campo dos direitos humanos

e como esses novos agentes influenciam o comportamento do Estado na defesa dos direitos

humanos no cenário internacional, durante os governos de Fernando Henrique Cardoso (1995

– 2002), Luís Inácio Lula da Silva (2003 – 2010) e Dilma Rousseff (2011- 2014).

O trabalho se divide em outras três seções, além desta introdução. Em um primeiro

momento, discute-se os reflexos da globalização no surgimento de novas agendas e atores

na política externa, assim como o entendimento desta sob a perspectiva de uma política

pública. Em seguida, apresenta-se as principais características das agendas de direitos

humanos durante as gestões de Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e

Dilma Rousseff. Na seção seguinte, analisa-se a participação de entidades da sociedade civil,

atuantes na defesa dos direitos humanos, e como estas atuaram no que diz respeito à política

externa desses governos. Por fim, apresenta-se as principais conclusões a que se chegou

após a realização deste breve estudo.

2 GLOBALIZAÇÃO E O SURGIMENTO DE NOVAS AGENDAS E ATORES NA POLÍTICA

EXTERNA

2.1 A Globalização e seus Reflexos na Política Externa

No estudo político das Relações Internacionais, a predominância do paradigma realista

por muito tempo distinguiu temas de interesse e competência dos Estados entre High Politics

e Low Politics.

Entendia-se que à diplomacia e à política externa competia apenas as high politics,

isto é, questões de maior sensibilidade política, geralmente referente a temas de teor

estratégico para a sobrevivência do Estado nacional, como segurança e defesa. A política

doméstica, por outro lado, se encarregava das demais questões, das dimensões da

segurança humana e social, consideradas low politics.

Em outras palavras, a política externa era vista de forma desconectada da política

doméstica e, conforme Milani e Pinheiro (2011), “a política externa começaria onde terminasse

a política doméstica”.

Contudo, com a intensificação do processo de globalização, tem se tornado cada vez

mais difícil distinguir tais conceitos. Um número cada vez maior de questões até então

consideradas de “baixa política” tem assumido um caráter cada vez mais estratégico, cujos

efeitos permeiam as áreas tradicionais da “alta política” e vice-versa.

A separação entre high politics e low politics deixou de existir e novos itens passaram a ocupar lugar de destaque: meio ambiente, narcotráfico, as novas

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bases da competitividade internacional, direitos humanos, conflitos étnicos-religiosos, entre outros. Na verdade, as questões relativas à segurança estratégica não deixaram de ocupar posição de destaque, mas passaram a ser vistas de modo cada vez mais integrado a esses novos temas da agenda internacional (SATO, 2000. p. 139).

Lima (2000) afirma que os efeitos da globalização podem gerar “consequências”

democratizantes no processo decisório da política externa, especialmente em países que

concentram o poder de decisão no Executivo, como o Brasil. A aparição de novos temas na

agenda global deu vazão ao surgimento de novas vozes e pressões, geralmente associado

ao aprofundamento do processo democrático doméstico.

Os processos de globalização e democratização do Estado, somados à ampliação do

leque de questões englobadas pelas relações internacionais e pela política externa dos países

demandam conhecimentos e expertises cada vez mais específicas, o que, de acordo com

Milani e Pinheiro (2011), obriga os agentes da política externa à consulta de especialistas das

mais diversas áreas da sociedade.

Além disso, implicam numa densa diversidade de atores cada vez mais

institucionalizados envolvidos em temas internacionais, como empresas, Organizações Não-

Governamentais (ONGs), movimentos sociais, organismos públicos, entre outros. Conforme

Milani e Pinheiro (2011), esses novos personagens atuam internacionalmente de forma mais

articulada, em nome de causas políticas variadas ou de interesses privados, muitas vezes à

revelia da ação do Estado.

Observa-se, portanto, uma necessidade cada vez maior de atenção ao plano

doméstico – em especial ao processo decisório – para compreender o comportamento dos

Estados no âmbito internacional. Milani e Pinheiro (2011) explicam que já em 1954, Snyder,

Bruck e Sapin consideravam o plano doméstico como variável explicativa para a atuação

estatal no cenário internacional. Em 1956, Margaret e Harold Sprout já se debruçavam sobre

a importância das percepções sobre o contexto internacional dos indivíduos e grupos que

formam a arena decisória para explicar a política externa.

Mas é James Rosenau quem dá um pouco mais de visibilidade à questão, ao advogar

em favor da relevância de atores não-estatais enquanto agentes influentes na política

internacional, como efeito das mudanças provocadas pela globalização.

Antes mesmos da intensificação do processo de globalização após o fim da Guerra

Fria, o autor já discutia em meados da década de 1960 as relações entre questões domésticas

e internacionais, o que chamou de linkage politics, isto é: “políticas de ligação” ou “políticas

de vínculo”, em tradução livre. As linkage politics, de acordo com Rosenau (1967), referem-

se à ligação entre a política interna e a política internacional, onde atores e fatores domésticos

são tão relevantes para a formulação da política externa quanto o contexto internacional.

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Assim, Milani (2011) destaca que os principais efeitos do aprofundamento dos

processos de globalização para a politização do campo da política externa podem ser

analisados a partir de duas perspectivas: de um lado, a da ampliação e complexificação das

agendas de política externa, de forma que as ações externas passam a influenciar de maneira

mais evidente a vida cotidiana da sociedade; de outro, a do aumento da demanda por

participação nos processos de formulação e implementação de políticas no campo da política

externa e do Estado em geral.

Tais processos culminam na percepção cada vez mais nítida da conexão entre

problemas internacionais e temas de natureza doméstica, e contribuem para a integração de

temas tradicionalmente pertencentes à “baixa política” na agenda de discussões prioritárias

da política externa.

2.2 Política externa: do conceito tradicional à percepção como política pública

O conceito tradicional de política externa remete ao “conjunto de atividades políticas,

mediante as quais cada Estado promove seus interesses perante outros Estados”

(WILHELMY, 1988. p. 148). Milani (2011) aponta para o fato de que definições como essa

frequentemente retratam o Estado como ator predominante:

Do ponto de vista conceitual, há autores que definem a política externa como uma junção de comportamentos que traduzem as preocupações de um Estado no plano internacional (Breuning, 2007). [...] Outros ainda a definem como o conjunto de orientações, engajamentos e ações que caracterizam o âmbito nacional de um Estado (Hoslti, 2001). Nessas concepções, o que se pode perceber é a concordância em torno da proeminência do Estado como ator preponderante, se não exclusivo, do processo de formulação e implementação da política externa (MILANI, 2011. p. 37).

Porém, a partir de Hill (2005), já se nota uma sutil mudança na concepção de política

externa, na qual o contexto de globalização exerceu fundamental influência. O autor entende

a política externa como o somatório das relações exteriores oficiais, realizadas por um ator

independente – geralmente o Estado – nas relações internacionais.

Esta é uma definição inovadora de política externa, dado que não limita a capacidade

de ação somente ao Estado. Ela admite a possibilidade de se repensar a política externa com

a participação de atores não-estatais, que possuam também estruturas de governo e

responsabilização.

Milani (2011) corrobora com essa reflexão ao destacar que o uso da expressão

“relações oficiais” faz total diferença, uma vez que pode se referir às várias instâncias do

Estado ou do operador empresarial. Da mesma forma, a expressão “ator independente” pode

fazer referência ao Estado, mas também pode fazer alusão a outros tipos de sujeitos do direito

internacional, a exemplo de blocos econômicos como o Mercosul ou a União Europeia.

Assim, a política externa se mostra como “o resultado de iniciativas tomadas por

diferentes atores em interação com o ambiente internacional” (MILANI; PINHEIRO, 2011, p.

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17), sendo o Estado o ator principal, embora não exclusivo. Logo, para compreender a política

externa no contexto atual é necessário avaliar também os diversos atores no estudo de seu

processo decisório.

Essa diversidade de atores, com maior atuação no plano internacional, resultante da

intensificação do processo de globalização, assim como a expansão da agenda global no

contexto externo, abrangendo temas que exigem cada vez mais conhecimentos específicos e

expertise, faz com que as decisões no âmbito da política externa afetem uma quantidade cada

vez maior de setores da sociedade.

Desta maneira, assim como já ocorre nas políticas públicas de âmbito doméstico, os

atores tradicionais da política externa são levados a considerar cada vez mais as visões e as

demandas de atores não-centrais e não-estatais nos processos decisórios, conforme Milani

(2011).

Neste estudo, busca-se compreender e analisar a política externa brasileira como uma

política pública, entendendo, a partir de Milani (2011), que existe um gradual processo de

abertura e politização do campo da política externa, na medida em que os processos de

globalização e democratização permitiram maior impacto da política externa na vida de

parcelas significativas da população, assim como o aumento do interesse e do debate público.

É importante ressaltar neste momento que, tradicionalmente, não há uma definição

única, nem melhor de política pública. Em seu levantamento da literatura a respeito de política

pública, Souza (2006) mostra que em 1980, L. E. Lynn definiu política pública como um

conjunto de ações do governo que irão produzir efeitos específicos. Em 1984, Dye sintetizou

como apenas o que um governo escolhe fazer ou não fazer. Para G. Peters, 1986, tratava-se

da “soma das atividades dos governos, que agem diretamente ou através de delegação, e

que influenciam a vida dos cidadãos” (SOUZA, 2006. p. 24).

A autora, porém, ressalta que tais definições, ao concentrarem o foco no papel dos

governos, além de deixarem de lado os limites que cercam as decisões dos governos, também

ignoram as possibilidades de cooperação que podem ocorrer entre os governos e outras

instituições e grupos sociais.

Dessa forma, neste trabalho, adota-se a definição de política pública como sendo:

[...] o conjunto das atividades do governo que, agindo direta ou indiretamente (por exemplo, por delegação ou pela ação de agentes não governamentais), acabam por influenciar o cotidiano dos cidadãos. Tais ações do governo se inspiram em um modelo institucional e em uma tradição histórica de Estado (MILANI, 2011, p. 36).

De acordo com esta definição, pode-se enxergar a política exterior como política

pública, sobretudo após os efeitos da globalização, ao implicar um maior intercâmbio entre o

plano doméstico e a política externa e no maior impacto desta última no cotidiano de setores

da sociedade.

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O aumento de interesse e o debate público podem conduzir a um processo lento e

gradual de abertura e politização do campo da política externa. Neste sentido, de acordo com

Lima (2000), a liberalização política e a abertura econômica deram início a uma nova fase da

política externa do Brasil. A política externa, antes caracterizada pela condução de políticas

sem efeito distributivo2, passou a contemplar interesses setoriais, inserindo-se diretamente no

conflito distributivo interno.

Para Lima (2000), a politização da política externa e a influência da política doméstica

na sua formação dependem da geração de impactos distributivos internos, que ocorrem

quando os resultados da ação externa passam a ser assimétricos para os diversos segmentos

sociais. Caso contrário, quando os custos e benefícios não se concentram em segmentos

específicos, ou quando os resultados da ação externa são neutros do ponto de vista do conflito

distributivo interno, a política externa produz bens coletivos, aproximando-se do seu papel

clássico, isto é, de defesa do interesse nacional ou do bem-estar da coletividade.

Embora recente e não consensual dentro da academia, a perspectiva da política

externa como política pública é interessante aos estudos da agenda de Direitos Humanos na

política externa brasileira, especialmente por gerar um “debate mais abrangente sobre a

autoridade (a capacidade do exercício do poder) e a responsabilidade dos agentes envolvidos

no processo de formulação e implementação da política externa no campo dos direitos

humanos” (MILANI, 2011. p. 43), além de implicar em maior credibilidade da política externa

brasileira no que se refere aos Direitos Humanos, frente à comunidade internacional de países

e outros atores relevantes para a promoção dos Direitos Humanos em âmbito nacional e

global.

3 A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA DE DIREITOS HUMANOS (PEB-DH) EM

RETROSPECTO

O processo de redemocratização política brasileira nas últimas décadas do século XX

foi de fundamental importância para a retomada das pautas de Direitos Humanos no âmbito

da Política Externa Brasileira. Quase inexistente durante os regimes militares, foi somente a

partir de 1985 que o país começou a dar os primeiros indícios de retomada da agenda, ao

comunicar na Assembleia Geral das Nações Unidas daquele ano a decisão de aderir a dois

importantes Pactos Internacionais e à Convenção contra a Tortura3.

2 De acordo com Souza (2006), políticas distributivas correspondem a decisões tomadas pelo governo que desconsideram a questão dos recursos limitados. Costumam gerar mais impactos individuais que universais, uma vez que privilegiam certas regiões e certos grupos sociais em detrimento do todo. 3 Conforme Castilho (2003), Pactos Internacionais da Nações Unidas sobre Direitos Civis e Políticos;

Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes e sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

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O principal marco, no entanto, veio com a Constituição Federal Brasileira de 1988, que

em seu art. 4º estabelece os princípios que regem a política exterior do país, destacando no

inciso II o princípio de prevalência dos Direitos Humanos (BRASIL, 1988). A partir daí, explica

Alves (1994), a consolidação gradativa do processo de redemocratização nacional permitiu

que a Política Externa Brasileira retomasse um caminho mais progressista, embora ainda

cauteloso.

3.1 A Política de Direitos Humanos na Era FHC (1995-2002)

Algumas das principais iniciativas da nova PEB-DH tomaram forma durante os

mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) entre 1995 e 2002.

Segundo Castilho (2003), a Convenção de Viena de 1993 inspirou uma série de

medidas no governo FHC, tais como a criação de um órgão específico para o tratamento de

questões de direitos humanos, o Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais, sob a

gestão do então Ministro das Relações Exteriores Luís Felipe Lampreia, em 1995. O

departamento nasce com o objetivo de coordenar a participação do Brasil nas conferências

internacionais da ONU, assim como de promover a implementação das resoluções e

recomendações das mesmas no plano interno.

Mas o maior destaque na agenda de Direitos Humanos durante os anos de governo

FHC, ainda em consonância com a Convenção de Viena, foi a criação do Programa Nacional

de Direitos Humanos, em 1996. Sendo o primeiro programa de promoção de direitos humanos

da América Latina e o terceiro do mundo, é considerado um dos principais avanços a favor da

democratização da agenda de direitos humanos, uma vez que foi elaborado contando com a

participação de iniciativas da sociedade civil.

De acordo com Neto e Pinheiro (1997), o Programa foi elaborado entre outubro de

1995 e maio de 1996, período no qual o governo federal recebeu contribuição de diversas

ONGs, universidades, centros de pesquisa, recolhidas por meio do Núcleo de Estudos de

Violência da Universidade de São Paulo (USP). Além disso, promoveu uma série de

seminários regionais com o objetivo de discutir o esboço do projeto do Programa e que

contaram com a participação de mais de 200 entidades de direitos humanos.

O processo de elaboração do Programa, recebido com entusiasmo entre as

organizações de direitos humanos, evidenciava a intenção de se estabelecer uma relação

clara entre democracia e direitos humanos, não se tratando de deliberações tomadas em

gabinetes fechados, mas abrindo espaço para críticas e sugestões. Sendo assim, o resultado

final é composto por uma significativa colaboração da sociedade civil ao conteúdo do

Programa, que discorre sobre políticas públicas para a proteção e promoção dos direitos

humanos no Brasil, proteção do direito a tratamento igualitário perante a lei, educação e

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cidadania para uma cultura de direitos humanos e ações internacionais para a proteção e

promoção dos direitos humanos (BRASIL, 1997).

Em 1997 foi criada a Secretaria Nacional de Direitos Humanos junto à Presidência da

República, com o objetivo de coordenar e monitorar o Programa Nacional de Direitos

Humanos, em consonância com as entidades da sociedade civil. No final do segundo

mandato, em 2002, também foi lançada a segunda versão do Programa, abarcando novos

parâmetros e temas referentes aos direitos humanos, acompanhando a evolução dos debates

nessa seara desde o lançamento da primeira versão do Programa.

Também foi no mandato de FHC que houve a aprovação de leis importantes como “a

Lei concernente aos desaparecidos políticos n. 9140/95; a Lei de crime militar n. 9299/96; e a

Lei que constitui crime de tortura n. 9455/97; tal como a Lei do Refúgio no Brasil n. 9474/97”

(NEVES, 2014. p. 54).

Além disso, outras medidas significativas para a pauta dos direitos humanos que

merecem ser mencionadas foram o reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de

Direitos Humanos em 1998 e a assinatura do Estatuto de Roma em 2000 – e sua posterior

ratificação em 2002 –, que deu origem ao Tribunal Penal Internacional.

3.2 O Governo Lula (2003-2010) e a Agenda de Direitos Humanos

Muitas medidas referentes aos direitos humanos inauguradas nos anos de governo

FHC foram continuadas, aperfeiçoadas e ampliadas nos anos que seguiram, com a

presidência de Luís Inácio Lula da Silva (2003 – 2010), cujo governo foi marcado por uma

forte agenda social. Ainda assim, tal direcionamento não isenta a gestão Lula de algumas

controvérsias e posicionamentos ambíguos em questões de direitos humanos, especialmente

no plano das relações exteriores do país.

De acordo com González (2010), no plano interno, a política de direitos humanos do

governo Lula concentrou-se no combate à pobreza extrema, através de políticas sociais de

combate à fome e distribuição de renda, como os programas Fome Zero e Bolsa Família.

Além disso, também voltou sua atenção para grupos específicos, como negros e mulheres.

Vale ressaltar, porém, que tais ações eram promovidas de forma dissociada ao discurso de

direitos humanos – este último, restringia-se a ações da Secretaria Especial de Direitos

Humanos (SEDH) e do Ministério da Justiça.

Quanto ao Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-II), reformado em sua

segunda versão ao final do governo FHC, este permaneceu em vigência durante boa parte do

governo Lula sob responsabilidade da SEDH. Contudo, segundo González (2010), recebeu

menor destaque em função de outros programas, como o Plano Nacional de Educação em

Direitos Humanos (PNEDH), que obteve maior atenção e divulgação midiática no dado

período.

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A reformulação do PNDH-II só viria a ocorrer posteriormente sob coordenação da

SEDH, na 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos em 2008. Da Conferência resultou

a proposta do PNDH III, reconhecida em 2009, com eixos orientadores mais abstratos e

amplos, refletindo a pluralidade dos movimentos e organizações da sociedade civil,

abrangendo desde temáticas tradicionais de direitos humanos até as mais recentes como

meio ambiente e sexualidade, conforme González (2010).

Todavia, a inclusão de novas questões levantou críticas e oposição, especialmente de

setores mais conservadores da sociedade. A pressão desses setores e a ampla cobertura

nacional levaram a realizar alterações significativas no texto original.

No plano internacional, a atuação do Brasil obteve maior destaque, obtendo o status

de global player e sendo marcada por uma diplomacia presidencial. No que tange aos direitos

humanos, de acordo com Mahlke (2011), o Brasil ratificou uma série de tratados internacionais

referentes aos direitos humanos, além de participar ativamente de uma diversidade de

convenções, implementar projetos de direitos humanos previstos pela ONU, ligados à cultura,

meio ambiente, direito humanitário, entre outros.

Ademais, o Brasil evidenciou sua posição a favor de reformas nas instituições

internacionais de maneira que estas representem melhor as novas configurações do sistema

internacional. Parte dos esforços brasileiro em prol dessas reformas residiam no interesse em

ampliar a participação do país nessas instituições, como reconhecimento de uma atuação

mais ativa e relevante no cenário internacional.

Para Milani (2011), o empenho na seara dos direitos humanos, intensificados ainda no

governo FHC, garantiram ao Brasil o reconhecimento de que o país desempenha papel de

relativo destaque no regime internacional de direitos humanos. Para o autor, contribuíram para

isso o padrão qualitativo de adesão do Brasil ao regime multilateral – que se compara ao de

algumas superpotências e potências médias –, assim como o fato do país ser signatário e já

ter ratificado praticamente todos os instrumentos internacionais no campo dos direitos

humanos.

Também merece destaque a atitude brasileira de manter em aberto o convite a todos

os relatores especiais da Comissão de Direitos Humanos da ONU, ainda que, durante no

governo Lula, tenham ocorrido alguns episódios de atrito entre autoridades brasileiras e

relatores especiais.

Além de ocasionais tensões envolvendo relatores especiais, a PEB-DH de Lula

também foi pontuada por episódios controversos, os quais geraram críticas internas –

principalmente por parte de entidades defensoras dos direitos humanos -, e também

suscitaram desconfianças no meio internacional.

De acordo com a ‘Conectas – Direitos Humanos’ (2009), uma das principais ONGs

brasileiras de defesa dos direitos humanos, a atuação brasileira na Assembleia Geral da ONU

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(AG/ONU) e no Conselho de Direitos Humanos foi marcada por posicionamentos ambíguos e

especialmente condescendente com países denunciados por casos de graves violações dos

direitos humanos.

Pode-se mencionar como exemplos: diversas abstenções brasileiras na AG/ONU em

relação às preocupações com violações de direitos humanos e liberdades fundamentais no

Irã (CONECTAS, 2008/2009); abstenção brasileira na AG/ONU e no Conselho de Direitos

Humanos referente à preocupação com relatos de tortura e tratamentos ou penas cruéis, além

de punições coletivas e manutenção de campos de prisioneiros na Coreia do Norte em 2009

(CONECTAS, 2010); ou ainda a abstenção do Brasil em relação às emendas propostas pela

União Europeia sobre graves violações de direitos humanos durante o conflito armado no Sri

Lanka (CONECTAS, 2010).

Além desses, merecem destaque o questionável apoio ao governo de Hugo Chávez

na Venezuela – mesmo diante de medidas antidemocráticas por parte do líder venezuelano,

como a supressão de oposicionistas internos e de meios de comunicação –, além do apoio

ao regime cubano, que já enfrentava críticas referente a violações dos direitos humanos, entre

elas a perseguição de opositores políticos.

Para Neves (2014), esses episódios ao longo dos dois mandados de Lula evidenciam

um caráter pragmático, no qual o discurso dos direitos humanos era empregado quando

existia a necessidade de promover o Brasil no cenário internacional, enaltecendo seu status

de potência emergente e garantir novas oportunidades na dinâmica dos organismos

multilaterais. Por outro lado, o país ocasionalmente assumia um discurso menos altivo, mais

condescendente, apaziguador e pró-diálogo, visando diversificar parceiros e se inserir em

novos mercados.

3.3 A Política Externa de Direitos Humanos de Dilma Rousseff (2011 – 2014)

O governo de Dilma Rousseff tinha como missão dar continuidade ao legado de Lula

e às estratégias da gestão anterior na política externa. Isto é, “uma trajetória revisionista das

instituições internacionais, uma atuação ativa em fóruns multilaterais, colocando-se como

representante dos países do Sul global, e uma orientação proativa para a dimensão sul-

americana” (SARAIVA, 2014. p. 25).

Mas a prática evidenciou desde muito cedo diferenças que foram se ampliando ao

longo de seu mandato. Como mostra Silva (2015), a nova presidente deixou claro a intenção

de dar continuidade, ressaltando, porém, que dar continuidade não era o mesmo que “se

repetir”. Assim, explica Saraiva (2014), a diplomacia presidencial fora abandonada, assim

como a vontade política demonstrada pelo presidente anterior de projetar a influência do país

no cenário internacional e o estímulo à construção de uma liderança regional não teve

continuidade na gestão Rousseff.

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A presidente Rousseff mostrou sua preferência pela solução dos problemas internos, junto com seu pouco interesse por temas externos, particularmente aqueles que apresentassem ganhos difusos, não tangíveis em um curto prazo. (...) O Itamaraty, como defensor de uma política externa com ganhos progressivos através de um aumento constante de participação do Brasil nos debates de diferentes temas da política global foi perdendo espaço (SARAIVA, 2014. p. 27).

No entanto, a preferência pelo tratamento de assuntos internos não impossibilitou

posicionamentos mais firmes da política externa de Rousseff contra violações de direitos

humanos no plano internacional. Nesse aspecto, o governo de Dilma Rousseff divergiu

notavelmente do anterior, demonstrando um direcionamento próprio, que em parte pode ser

explicado pela experiência pessoal da presidente como vítima de tortura durante a juventude,

no período de Regime Militar no Brasil.

De acordo com Silva (2015), evidenciam essa direção própria da PEB-DH de Rousseff

episódios como o voto brasileiro favorável ao envio de um inspetor da ONU, com o objetivo

de averiguar possíveis violações de direitos humanos no Irã em 2011. Outro exemplo reside

o posicionamento contrário da presidente ao apedrejamento da iraniana Sakineh Astiani –

assunto que fora evitado pelo governo Lula.

Ressalta-se ainda que este último episódio veio acompanhado de uma dura crítica,

feita pelo então Ministro das Relações Exteriores de Rousseff, no que diz respeito à

seletividade de casos considerados violações de direitos humanos pela comunidade

internacional, comparando o referido caso iraniano com o uso de pena de morte nos Estados

Unidos e reiterando que o Brasil condena todas as formas de violação aos direitos humanos,

conforme Silva (2015).

Para Saraiva (2014), a despeito desse tipo de divergência em comparação ao governo

anterior, nos parâmetros do multilateralismo, as posições da política externa brasileira se

mantiveram contínuas, inclusive com discordâncias com os posicionamentos de potências

ocidentais e convergências com as posições de outros países emergentes. A política externa

de Rousseff manteve a defesa de reformas de instituições multilaterais internacionais, como

o Conselho de Segurança da ONU. Para a autora, também houve certa preocupação de

resguardar o país de críticas e pressões por desrespeito aos direitos humanos em

determinadas situações internas, como no caso do sistema prisional brasileiro.

4 PEB-DH: NOVOS ATORES NO JOGO

O processo de redemocratização política no Brasil e a gradativa percepção da política

externa como política pública a partir do final do século XX trouxe consequências profundas

e importantes para a política externa brasileira, em especial no que se refere a agenda de

direitos humanos.

Inseridos num contexto de intensificação da globalização, além da diversificação das

questões concernentes às relações internacionais à política externa dos países, a Política

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Externa passa, de acordo com Milani (2011), a gradativamente necessitar de um maior diálogo

com especialistas de diferentes áreas da sociedade, a fim de adquirir conhecimentos e

expertises necessários para atender às demandas de um sistema internacional cada vez mais

complexo.

Essa nova realidade traz também como característica o espraiamento de gama variada

de atores cada vez mais institucionalizados e envolvidos em temas internacionais. No campo

da defesa dos direitos humanos, destaca-se a atuação de organizações - intergovernamentais

e não-governamentais – e movimentos sociais, articulados em redes cada vez mais densas,

imergindo como novas forças de pressão para uma participação mais integrada e democrática

nos processos decisórios de políticas públicas.

Ao longo da década de 1990, em especial durante os dois mandatos do governo FHC,

observa-se um fomento real de participação de organizações da sociedade civil na definição

de políticas públicas nacionais de direitos humanos, como evidenciado a partir da elaboração

coletiva do Programa Nacional de Direitos Humanos I e II.

No plano externo, a PEB-DH de FHC não inaugura, mas fortalece e intensifica uma

tendência predominante de política externa que promove a proteção e garantia dos direitos

humanos internacionais e que busca aderir e implementar o maior número de recomendações

e princípios resultantes de discussões em foros multilaterais sobre direitos humanos.

Contudo, embora a sociedade civil tenha conquistado maior proximidade com as

esferas governamentais na agenda de direitos humanos durante esse período, sua influência

no campo da política externa ainda era relativamente incipiente até o início dos anos 2000.

Exceto em temáticas altamente específicas, a política externa era um campo ainda pouco

explorado por organizações e movimentos sociais de direitos humanos.

De acordo com a Conectas (2014), faltavam mecanismos de transparência e de

participação social, com poucos meios de controle democrático. O Itamaraty não possuía

canais consolidados para diálogo ou questionamentos da sociedade a respeito das decisões

tomadas no âmbito da política externa.

Neste sentido, a organização desenvolveu um importante papel, a partir de 2005, com

a criação do Programa de Política Externa e Direitos Humanos, o qual foi elaborado tendo

como ponto de partida o entendimento de que, em uma democracia, “a sociedade civil deve

participar de todos os níveis de atividade do Estado e deve exigir mais transparência na

formulação e implementação de políticas públicas” (CONECTAS, 2014. p. 10). Visualizando

a política externa como uma política pública, a organização entendia que era necessário que

o governo prestasse contas a respeito de suas atividades perante os cidadãos,

proporcionando mecanismos de participação social.

No período do governo Lula, o crescente prestígio internacional do Brasil, resultante

da diplomacia presidencial e dos esforços brasileiros pelo reconhecimento como potência

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regional e global player – tudo isso em meio a um amplo contexto de globalização –

intensificou o interesse e a necessidade de maior acompanhamento das decisões tomadas

no âmbito da política externa por parte da sociedade civil.

Entre as principais frentes de atuação de entidades de direitos humanos na PEB-DH,

a partir desse período pode-se citar a ampliação do acesso a informação sobre a PEB-DH,

garantida com a elaboração de relatórios e pesquisas a respeito da atuação do Brasil em

organismos multilaterais de direitos humanos – como o anuário “Direitos Humanos: O Brasil

na ONU” da Conectas, criado a partir de 2006. Trata-se de uma forma de atuação importante,

uma vez que “ajuda a compreender as dinâmicas dos processos decisórios e também permite

à sociedade civil enxergar padrões e inconsistências nas atuações internacionais de seu país

(CONECTAS, 2014. p. 14) ”.

Outras importantes formas de atuação da sociedade civil frente à PEB-DH,

intensificadas a partir do governo Lula, foram a realização de parcerias institucionais para a

criação de Conselhos e Comitês de Direitos Humanos, a exemplo do Comitê Brasileiro de

Direitos Humanos e Política Externa (CBDHPE) também criado em 2006; implementação de

estratégias de advocacy junto a instâncias dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário;

assim como estratégias de advocacy através de amplas campanhas em meios de

comunicação de massa, como a campanha via Facebook para o estabelecimento de uma

Comissão de Inquérito para a Coreia do Norte4.

Na era Dilma Rousseff, o Brasil já contava com uma rede de organizações da

sociedade civil cada vez mais engajada e atenta às pautas de direitos humanos nos

organismos multilaterais internacionais e com maior demanda por participação e

accountability das decisões tomadas no âmbito da PEB-DH. Essa nova configuração

mantinha – e mantém – na mira comportamentos ambíguos por parte da política externa

brasileira, sendo um importante meio de fiscalização e pressão, seja no plano interno, quando

no externo.

No que diz respeito às principais contribuições e diferenças nas agendas de direitos

humanos da política externa dos três governos, destaca-se o governo FHC por fincar as bases

de uma política externa pró-direitos humanos, ao tornar o Brasil signatário de praticamente

todos os acordos e tratados internacionais referentes à proteção de direitos humanos, além

de buscar implementá-los às suas diretrizes internas, dando voz e participação a iniciativas

4 A campanha desenvolvida pela Conectas em março de 2013 envolvia um vídeo onde um ativista norte-coreano,

nascido em um campo de trabalhos forçados, insistia para que o governo brasileiro votasse a favor da resolução que propunha a criação da Comissão. Além disso, a campanha também incitava a mobilização de cidadãos brasileiros, através do envio de e-mails ao Representante do Brasil na ONU. Somente no Facebook, a campanha foi vista quase 37 mil vezes, com mais de 370 compartilhamentos. No Youtube, o vídeo registrou cerca de 2 mil exibições em quatro dias (CONECTAS, 2014). Vale destacar que a Comissão de Inquérito foi aprovada, com o apoio do Brasil.

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da sociedade civil no planejamento de uma política nacional de proteção e promoção de

direitos humanos.

A relevância de tal direcionamento na Política Externa Brasileira se mostra pertinente

quando se observa que não houve ruptura desta tendência na política externa do governo

seguinte, de Lula, que manteve os compromissos internacionais em relação às ratificações e

outros procedimentos concernentes aos direitos humanos. Milani (2011) destaca a ênfase

dada aos países emergentes e em desenvolvimento durante o governo Lula e o

enquadramento político que associou a defesa dos direitos humanos à cooperação Sul-Sul –

diferentemente do governo anterior de FHC.

Contudo, o caráter pendular da política externa do governo Lula também conferiram à

PEB-DH caráter assertivo e pragmático. Para Neves (2014), a periodicidade do movimento

pendular pode ser explicada pelo fato de que

(...) se buscava, por um lado, autonomia pela diversificação e sustentação de parceria de países, alguns dos quais, que não figuravam entre Estados democráticos liberais e não eram provedores de diretos fundamentais aos seus cidadãos, e por outro, se desprezava o discurso dos direitos humanos. A relação inversa também é verdadeira (NEVES, 2014. p. 59).

A continuidade à política externa de Lula no governo Dilma, em termos gerais,

resguardou dissidências significativas no campo dos direitos humanos. Adotando uma postura

mais firme e condenatória à países acusados de violações aos direitos humanos, a política

externa de Dilma Rousseff demonstrou maior impessoalidade, mas também maior

sensibilidade às questões associadas aos direitos humanos.

De acordo com Milani (2011), um possível fator para as mudanças no comportamento

da política externa dos governos analisados, poderia estar relacionado ao próprio regime

internacional de direitos humanos, que intensificou o processo de transnacionalização de

ações coletivas organizadas pela sociedade civil, além do processo de judicialização da

política externa.

Além disso, o aumento da participação e das demandas de ONGs nacionais e a

criação de canais de diálogos em um número cada vez maior de órgãos governamentais

também pode estar entre os fatores que influenciam o comportamento dos governos no âmbito

da PEB-DH. Para Neves (2014), o trabalho de ONGs como a Conectas – Direitos Humanos,

que possuem capacidade argumentativa e conhecimento empírico no campo dos direitos

humanos e política externa, exercem uma significativa capacidade de pressão para que

governos ajustem seus posicionamentos em consonância às demandas da sociedade civil.

Por fim, a PEB, enquanto política pública, está sujeita a mudanças nas agendas e nos

atores que a conduzem por motivos sistêmicos e em acordo com as agendas dos governos,

explica Neves (2014). Nessa emergência de novos atores a tendência é que se mude também

a problematização sobre como o comportamento internacional dos Estados na defesa dos

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direitos humanos e como essa problemática se relaciona com áreas, como segurança,

desenvolvimento, cooperação internacional, entre tantas outras.

5 CONCLUSÃO

Este trabalho teve como objetivo analisar a gradativa ampliação da participação de

novos atores nos processos decisórios da política externa brasileira no campo dos direitos

humanos e como esses novos agentes influenciaram o comportamento do Estado na defesa

dos direitos humanos no cenário internacional, durante os governos de Fernando Henrique

Cardoso (1995 – 2002), Luís Inácio Lula da Silva (2003 – 2010) e Dilma Rousseff (2011-

2014).

Neste sentido, evidenciou-se como os reflexos do processo de globalização

ocasionaram uma série de alterações em esferas dos mais diferenciados níveis do Estado-

Nação, provocando mudanças de comportamento e de dinâmicas do processo decisório da

política externa.

De um lado, temos uma realidade internacional de agendas temáticas cada vez mais

amplas e complexas, exigindo dos atores tradicionais da política externa conhecimento e

expertise em uma gama variada de temas e assuntos, o que, por sua vez, levanta a

necessidade de canais de diálogos com diversos setores da sociedade que até então não

eram levados em consideração nas decisões e posicionamentos tomados na política externa.

De outro, temos um contexto globalizado que favorece o surgimento e a

transnacionalização de organizações não-governamentais, movimentos sociais e outros tipos

de atores não-estatais. Da mesma forma, a globalização estimulou o aumento do acesso à

informação, permitindo a esses novos atores maior capacidade de acompanhar os

posicionamentos do governo nas arenas internacionais de direitos humanos, assim como

maior capacidade de pressionar em favor das demandas da sociedade.

Sendo assim, a análise da Política Externa Brasileira sobre Direitos Humanos, ao

longo dos mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso, Luís Lula da Silva e Dilma

Rousseff refletiram mudanças ocasionadas, entre outros fatores, pelo povoamento da política

externa por novos atores, não estatais, com destaque para organizações não-governamentais

de defesa dos direitos humanos como a Conectas, que acumula uma significativa experiência

em criar ferramentas de diálogo ou pressão no âmbito da política externa.

Conclui-se, assim, que, no que tange à Política Externa Brasileira de Direitos

Humanos, transformações no cenário internacional, mas sobretudo mudanças de governos e

de atores envolvidos, influenciam de maneira extremamente significativa as prioridades, os

discursos e os posicionamentos de um Estado em sua política externa. Por outro lado, o

aumento do envolvimento de entidades da sociedade civil nos assuntos de política externa,

em especial quando se tratam de direitos humanos, é de fundamental importância para o

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fortalecimento de princípios democráticos e para o atendimento de carências e demandas da

sociedade.

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