política e retórica no humanismo do renascimento. helton adverse

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Helton Adverse* Política e retórica no humanismo do Renascimento 1 * 1 Professor do Departamento de Filosofia da UFMG. O presente texto é uma versão modificada do terceiro capítulo de meu livro: (Maquiavel. Política e retórica, 2009). Agradeço a editora pela autorização de sua publicação. Resumo O artigo aborda o problema das relações entre retórica e política no chamado “hu- manismo cívico” do Renascimento italiano. Seu objetivo é demonstrar a imbricação entre o discurso retórico e a ação política em um contexto marcado pela retomada do ideário republicano. Palavras-chave: Retórica . humanismo cívico . política . Renascimento Abstract This paper is a study on the relations concerning rhetoric and politics in the so called “civic humanism” of the Italian Renaissance. Its main purpose is to demonstrate the mutual implication connecting rhetorical discourse and political action in a republican context. Keywords: Rhetoric . civic humanism . politics . Renaissance Como observou J. Hankins (2007, p.3), os estudos mais recentes sobre o Re- nascimento colocaram em foco três grandes “tradições” filosóficas que teriam marcado o período: a primeira delas remonta à Idade Média, isto é, trata-se da Escolástica; a segunda, à qual darei atenção, é a chamada de “humanismo”; por fim, a terceira seria a “filosofia nova”, que ganharia maior desenvolvimen- to a partir do século XVI.

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H. Adverse

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  • Helton Adv

    erse*

    Poltica e retrica no humanismo do Renascimento1

    *1

    Professor do Departamento de Filosofia da UFMG.O presente texto uma verso modificada do terceiro captulo de meu livro: (Maquiavel. Poltica e retrica, 2009). Agradeo a editora pela autorizao de sua publicao.

    Resumo

    O artigo aborda o problema das relaes entre retrica e poltica no chamado hu-manismo cvico do Renascimento italiano. Seu objetivo demonstrar a imbricao entre o discurso retrico e a ao poltica em um contexto marcado pela retomada do iderio republicano.

    Palavras-chave: Retrica . humanismo cvico . poltica . Renascimento

    Abstract

    This paper is a study on the relations concerning rhetoric and politics in the so called civic humanism of the Italian Renaissance. Its main purpose is to demonstrate the mutual implication connecting rhetorical discourse and political action in a republican context.

    Keywords: Rhetoric . civic humanism . politics . Renaissance

    Como observou J. Hankins (2007, p.3), os estudos mais recentes sobre o Re-nascimento colocaram em foco trs grandes tradies filosficas que teriam marcado o perodo: a primeira delas remonta Idade Mdia, isto , trata-se da Escolstica; a segunda, qual darei ateno, a chamada de humanismo; por fim, a terceira seria a filosofia nova, que ganharia maior desenvolvimen-to a partir do sculo XVI.

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    Em linhas gerais, em que consistiu o humanismo do Renascimento? Pri-meiramente, vale observar que o termo que circulava no perodo era hu-manista e seu significado remonta Idade Mdia. Com efeito, esta era um designao comum que colocava sob a mesma categoria personagens to dspares quanto professores universitrios e do que hoje chamaramos de nvel mdio e funcionrios pblicos, como os chanceleres das cidades italianas. No que concerne aos primeiros, o termo humanista, segundo P. O. Kristeller, deriva do linguajar dos estudantes das universidades italianas:

    Um humanista era um professor ou estudante dos studia humanitatis, das humanidades distintos de um jurista, por exemplo. E os studia humani-tatis, embora o termo fosse emprestado dos autores antigos e fosse conscien-temente adotado para uma nfase programtica sobre os valores humanos e educacionais dos estudos assim designados, permaneceu desde o comeo do sculo XV para um ciclo bem definido de objetos de ensino listados como gramtica, retrica, poesia, histria e filosofia moral, todos eles baseados na leitura dos autores clssicos gregos e latinos.2

    Importa observar aqui que o termo humanista no tem originalmente seu significado vinculado a um conjunto de valores, mas a uma grade de estu-dos que remonta ao perodo medieval. Contudo, o que ir conferir um rosto prprio ao humanismo ser uma nova relao como o conhecimento (que deve ser orientado para a realidade social e poltica e no apenas atender aos interesses especulativos), assim como uma renovao na grade curricular her-dada, dando grande importncia retrica. precisamente essa nfase na uti-lidade prtica do conhecimento que ir permitir ao humanismo ultrapassar as fronteiras do mbito acadmico e se tornar a corrente intelectual adotada por parte significativa dos homens polticos dessa poca. Encontramos a a gnese daquilo que H. Baron chamou de humanismo cvico (Baron, 1956).

    Neste contexto, a valorizao da retrica concomitante ao novo status concedido vita activa. Isso significa que a retrica parece recuperar a proe-minncia poltica que lhe fora concedida na Antigidade e negada durante a Idade Mdia. Originalmente, a retrica no apenas a arte da persuaso pelo discurso, mas a forma mesma do discurso poltico. A oratria no se reduz a

    (Kristeller, Humanist learning in the Italian Renaissance In: 1990, p. 3). Em estudo mais recente, C. Celenza retratou o cenrio social e poltico em que viviam os humanistas e demonstrou que a presena dos studia humanitatis nas universidades italianas apenas estava assegurada em meados do sculo XV (Celenza, 2004). Ainda sobre o significado do termo, ver : (Bignotto, 2001, pp. 17-8).

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    uma tcnica com a qual obtemos a vitria no debate pblico: ela configura o bom uso da palavra que deve permitir aos cidados resolver suas diferenas em nome do bem comum. A retrica, portanto, a linguagem da poltica que vincula o homem sua cidade e o capacita para a ao coletiva no espao pblico. O discurso retrico o sinal claro de que os cidados no podem ser coagidos pela fora ou pela violncia, mas que devem ser considerados iguais perante a lei. Ora, exatamente essa associao entre retrica e poltica que parece enfraquecida na Idade Mdia.

    Claro que est que os medievais reservavam um lugar especial para a ret-rica. Por um lado, ela est intimamente ligada teologia, sob a forma daquilo que A. Michel (seguindo Flon de Alexandria) chamou de potica de Deus (Michel, 1997), o que manifesta o estreitamento do lao, na cultura crist, entre a sabedoria e a eloqncia. A linguagem, em sua forma mais acabada, deve ser a expresso da beleza do logos divino. Por isso, entre a sabedoria e a eloqncia a relao de complementaridade e de mtua dependncia. Como vemos em Joo de Salisbury (que retoma Ccero):

    Da mesma forma que a eloqncia no somente temerria, mas mesmo cega se a razo no a esclarece, da mesma forma a sabedoria tambm, quando ela no se aproveita do uso da palavra, no somente dbil, mas, de certa maneira, capenga (manchote). (Joo de Salisbury, Metalogicon, I, 1. In: A. Michel, op. cit., p. 454).

    Contudo, essa implicao mtua da palavra e da sabedoria encontra sua ori-gem em uma razo mais profunda: trata-se, em suma, da retrica ou da palavra de Deus e dos meios que os homens e ele encontram para instituir um dilogo.3 A beleza da palavra o sinal, ento, da unio dos homens com Deus, que se revela, ele tambm, na forma do belo e do sublime. Por isso, A. Michel pde observar a presena de um elemento mstico que compe, na longa Idade Mdia, a relao entre teologia e retrica: a beleza da palavra o anncio de sua deposio, de que o conhecimento da verdade no pode ser expresso por ela e que Deus o incognoscvel.

    Por outro lado, necessrio lembrar que a retrica vai encontrar uma recepo mais fria nos meios escolsticos, que prezaro a busca da verdade por meio da lgica e da dialtica. No campo das prticas educativas, por exemplo, a retrica perder gradativamente seu prestgio. Primeiro por causa

    (Michel, op. cit., p. 9). Ver tambm do mesmo autor, La parole et la beaut, 2000.

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    da gramtica (entre os sculos VII e XII) e, em seguida, a partir do sculo XIII, ter de ceder lugar lgica4. Embora dispusessem de boa parte dos textos clssicos (como a Retrica de Aristteles, o De inventione e, posterior-mente, fragmentos do De oratore e do Orator de Ccero, e ainda parte da Institutio oratoria de Quintiliano, apenas para citar os mais importantes), os escolsticos reservaram eloqncia um papel mais restrito ou, ainda, se serviam dos textos de retrica para fins no-retricos. Por exemplo, utili-zavam a Retrica de Aristteles como um texto de psicologia ou de filoso-fia moral, pois era o nico lugar em que o Estagirita discutia as emoes. 5

    No obstante, a retrica na Idade Mdia no pode ser considerada apenas do ponto de vista educativo ou do uso que os escolsticos fizeram dela. O surgimento das cidades-estados no norte da Itlia a partir do sculo XI trou-xe de volta, com suas novas instituies, o uso secular da oratria (tambm conhecida ento por ars arengandi) e essa prtica estaro na origem da com-posio de tratados concernentes teoria e forma dos discursos pblicos. E juntamente com a oratria secular encontramos na Idade Mdia a chamada ars dictaminis, isto , a tcnica de escrever cartas e documentos oficiais, am-plamente divulgada na Itlia e nas regies para alm dos Alpes, que data pelo menos do sculo XI, quando Alberico de Montecassino escreve um tratado sobre o assunto. Essas duas atividades retricas (que, fundidas e ao lado do estudo da lei romana, iro constituir as razes do humanismo) sero determi-nantes para a reavaliao da oratria realizada pelos humanistas a partir do final do sculo XIV.6

    Se por um lado perfeitamente legtimo reconhecer a dvida dos huma-nistas do Renascimento para com os retricos e dictatores medievais7, por ou-tro preciso destacar a inovao que trouxeram para o domnio da oratria:

    A respeito, ver: (Struever, 1970, pp. 33-4) e (Monfasani, Humanism and Rhetoric, p. 173). Para uma viso diferente do problema da retrica na Idade Mdia, ver: Michel, La Rhtorique, sa Vocation et ses Problmes: Sources Antiques et Mdivales. In (Fumaroli, 1999, pp. 17-44).(Monfasani, art. cit., p. 174). Como precisa Kristeller, a Retrica de Aristteles, embora bastante difundida, era estudada pelos filsofos escolsticos como uma parte da filosofia moral (P. Kris-teller, Rhetoric in Medieval and Renaissance Culture, op. cit., p. 231). Ver tambm: (Battistini; Raimondi, 1990, p. 77.Na verdade, a ars aregandi acabou por se tornar a contraparte da ars dictaminis, pois eram estuda-das e ensinadas pelas mesmas pessoas (P. Kristeller, Rhetoric in Medieval and Renaissance Cul-ture, art. cit., p. 239). Ao lado dessas atividades retricas importante lembrar duas influncias medievais: o estudo da gramtica latina (sobretudo nas escolas francesas) e o estudo da literatura grega clssica, uma tradio bizantina. (Ver Kristeller, Humanist Learning in Italian Renaissance, art. cit., pp. 4-5) Sobre a ars dictaminis e o humanismo no sculo XII, vale ainda a referncia a N. Mann, The Origins of Humanism. In: (Kraye, 1996, pp. 1-19).A respeito ver a primeira parte do livro de Q. Skinner, 1996.

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    eles tentaram recapturar no apenas o contedo, mas igualmente o esprito da eloqncia clssica modificando sua aplicao. No que diz respeito aos dictatores, devemos lembrar que eles no eram estudiosos dos clssicos latinos e gregos e no empregaram modelos clssicos para as suas composies (Kristeller, 1992, p. 20), como demonstrou este autor.8 Assim, o contributo de novidade dos humanistas consistiu em introduzir a convico de que para falar e escrever bem era necessrio estudar e imitar os antigos (Kristeller. O Movimento Humanstico, art. cit., p. 20). Alm do mais, distanciando-se da concepo retrica escolstica e condenando a predominncia da lgica, os humanistas propuseram um novo sistema educacional (os studia humanitatis) que privilegiava a literatura clssica e transformava a retrica na principal arte do discurso9, mas de um discurso que deve ter efetividade na vida prti-ca, isto , na poltica ( bom lembrar, mais uma vez, que o aparecimento dessa classe de homens de letras se deve primeiramente s necessidades de admi-nistrao e comrcio das cidades-estados do norte da Itlia); (Mann, art. cit., p. 5). Quentin Skinner observa que o estudo da retrica, juntamente com o da filosofia antiga, era parte integrante da perspectiva educacional humanista que visava recuperar o ideal ciceroniano do vir virtutis (Op. cit., p. 109). De acordo com essa perspectiva, a dialtica escolstica, ao mesmo tempo em que havia negligenciado o cuidado com a expresso do saber, se detinha em ques-tes de pouca ou nenhuma importncia para a vida comum, ao passo que a filosofia que interessava aos humanistas deveria ser aplicada vida ativa. O mtodo de argumentao escolstico, com suas disputas e silogismos, mos-trava-se incapaz, do ponto de vista dos humanistas, de atingir o esprito dos homens que vivem na cidade. Por isso, a crtica que os humanistas dirigiam aos lgicos medievais e a seus herdeiros era no tanto de carter epistemolgi-co quanto de carter tico: eles exigiam um mtodo capaz de ser aplicado nas

    A tese de Kristeller, que encontrou grande aceitao, afirma que os humanistas realizaram em seu tempo as mesmas funes que os dictatores no deles, isto , a de professores de retrica e de membros das chancelarias que compunham suas obras dentro de dois gneros literrios: a eps-tola e a orao. A maior diferena que separava os humanistas dos dictatores era que os primeiros escreviam tomando por modelos os textos clssicos e sofreram alm do mais as influncias de que falamos acima. (Ver Kristeller, op. cit., pp. 85-105). Para uma crtica da posio de Kristeller e uma viso diferente da relao entre os humanistas e os dictatores, ver Witt, Medieval Ars Dictaminis and the Beginnings of Humanism: A New Construction of the Problem. In: Renaissance quarterly, vol. 35, n 1, 1982, pp. 1-35. Witt acredita que a definio de humanista dada por Kristeller no pode ser aplicada a alguns humanistas do Trecento como Petrarca e Boccaccio que no desempe-nharam cargo pblico e nesse perodo a ars dictaminis ainda controlava a oratria e a epistolografia oficial. Somente no Quattrocento os humanistas vo alargar seu campo de atuao e adquirir ver-dadeiramente a hegemonia no terreno da oratria.(Monfasani, art. cit., p. 171)

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    tomadas de decises, no nas disputas acadmicas; eles exigiam argumentos efetivos antes do que formalmente vlidos, concluses para as quais o ouvinte daria seu assentimento no apenas cerebral, mas tambm emocional porque este ltimo se traduzia em ao mais rapidamente (Rummel, 1995, p. 155). A gerao de humanistas que se seguiu a Salutati (chanceler da Repblica de Florena entre 1375 e 1406) est inteiramente convencida da necessidade de unio entre sabedoria e eloqncia10, o que, para eles, significava a mais fe-cunda aproximao entre teoria e prtica (Skinner, op. cit., pp. 109 e ss). No se trata, portanto, de assegurar somente o refinamento intelectual dos jovens, mas de prepar-los para o exerccio da vida pblica. Fama, glria e boa fortuna esto espera daqueles que na cidade e pela cidade utilizam seus talentos. A definio da excelncia implica, assim, a habilidade na expresso aplicada aos afazeres cvicos. O homem ideal , como havia afirmado Quintiliano (a exem-plo de Ccero), o orador.11 Essa perspectiva humanista encontra correspondn-cia na nova organizao poltica e social das cidades italianas. Por exemplo, nas assemblias polticas de Florena as pratiche a eloqncia era fundamental, mesmo que essas assemblias tivessem apenas um carter consultativo.

    O estreitamento do lao entre retrica e poltica resulta de um processo de revalorizao da retrica que tem seu incio, como vimos, no sculo XIV e do qual uma das figuras emblemticas Petrarca. Este poeta e literato estava con-vencido de que o tempo em que vivia era o da decadncia de uma civilizao em seus fundamentos, em suas formas e tradies, em suas ordens religiosa, civil, poltica e filosfica e que exigia, portanto, uma completa renovao do saber e da cultura que apenas poderia se concretizar com o retorno a suas fon-tes mais puras e antigas (Vasoli, 1996, pp. 77-8). Petrarca iniciar a polmica com a cultura escolstica, denunciando no apenas a pobreza especulativa dos modernos (que, diz ele em uma carta dirigida a Boccaccio, preferem aos clssicos mestres dos quais no possvel nem ao menos pronunciar o nome), mas tambm a barbrie de sua tcnica sofstica que perturbou as artes do discurso e quase destruiu o tesouro do conhecimento humano (Idem, p. 80).

    Em uma carta a Ludovico degli Alidosi, provavelmente de 4 de dezembro de 1402, Salutati afirma que a sabedoria e a eloqncia so os dotes prprios dos homens e por eles que possvel no apenas distingui-los dos animais, mas reconhecer sua superioridade (C. Salutati. Epistolrio, 1896, 3 vol., p. 599).(Quintiliano, Institutio oratoria, II, 16, 12). J no promio o autor afirmava que vir ille vere civilis (...) non alius sit profecto quam orator (Utilizamos a edio americana com a trad. de H. E. Butler. Loeb Classical Library. Cambridge: Harvard University Press, 1995). Evidentemente, no basta a eloqncia para se atingir a excelncia. O vir virtutis deve ainda possuir outros atributos, como as virtudes j listadas pelos antigos. Todas elas, contudo, encontram-se ligadas, assim como a arte de falar, atividade poltica.

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    O retorno aos autores da Antigidade clssica deveria obedecer a um cri-trio de leitura diferente do adotado pela tradio medieval. Embora no des-conhecesse o valor da obra de Aristteles, Petrarca se interessava mais por uma filosofia que se expressasse de modo a provocar uma renovao interior do homem12, isto , uma filosofia que se mostrasse eloqente. Como observa E. Rummel, Petrarca media a utilidade de uma disciplina por seu impacto moral (Rummel, op. cit., p. 31). A crtica que Petrarca dirigia aos escolsticos se centrava na pretenso dos ltimos de estender seu mtodo dialtico a todos os campos do saber sem levar em considerao que a eficcia do discurso depende de sua capacidade de atingir a alma do homem: os escolsticos no compreendiam que somente a partir da que se obtm uma adeso completa e consciente.13 O mtodo escolstico, na viso de Petrarca, consiste em uma gi-nstica com as palavras, no em uma autntica busca da verdade e do conheci-mento (e por isso a filosofia dialtica, assim como a filosofia natural e moral de Aristteles, pareciam a Petrarca incapazes de satisfazer plenamente as exign-cias de um saber verdadeiro).14 Os dialticos, como os eristas, se interessam apenas em ganhar as discusses que travam com seus adversrios. Seu saber , porm, vazio, pois preocupam-se com as palavras em detrimento das coisas. Uma vez deixada de lado a res, a vitria em uma discusso escolstica nada mais do que uma amostra da destreza verbal do dialtico: sua excelncia era intelectual antes do que tica e, assim, deficiente (Rummel, op. cit., p. 31).

    A verdadeira eloqncia, ainda segundo Petrarca, aquela que ao mesmo tempo em que mostra a verdade visa a modificao da alma do homem, con-duzindo-o em direo a seu aprimoramento moral (a moral que Petrarca de-fende , bem entendido, a moral crist catlica. A admirao pelos escritores antigos sempre temperada pela f crist. Apesar da contribuio valiosa que os filsofos podem dar formao do homem, preciso lembrar que somente a revelao divina fornece o verdadeiro conhecimento15). Essa perspectiva

    Ver a esse respeito Petrarca. De suius ipsius et multorum ignorantia e uma carta enviada a Tommaso da Messina. In: Le familiari, I, 9. (Roma: Archivio Guido Izzi, 1991). Esta carta foi traduzida para o portugus por N. Bignotto e se encontra em Origens do republicanismo moderno, op. cit., pp. 223-6. Ver tambm C. Vasoli, Petrarca e i Filosofi del suoTempo, art. cit., p. 90).C. Vasoli, LHumanisme Rhtorique en Italie au XVe sicle. In: (Fumaroli, op. cit., p. 50). Para um exame detalhado da querela entre os humanistas e os escolsticos nos sculos XV e XVI ver: (Rummel, op. cit.).A respeito, ver C. Trinkaus, The Question of Truth in Renaissance Rhetoric and Anthropology. In: (Murphy, 1983, p. 212).Como ele afirma no De suius ipsius et multorum ignorantia, 66 e inmeras outras passagens, das quais vale a pena destacar o final de De otio religioso onde reafirma a importncia da leituras dos textos sagrados e enaltece a obra de Agostinho. Sobre essa passagem, ver: (Dotti, 2006, pp. 50-8).

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    ser definitiva no projeto petrarquiano de renovao cultural que ir exercer forte influncia durante todo o Renascimento italiano. Como escrever a seu respeito L. Bruni, Petrarca ressuscitou os estudos liberais (studia humanitatis) j extintos e abriu a via para a nossa formao cultural.16 Segundo J. Seigel, essa declarao significa o reconhecimento, da parte dos humanistas do Quat-trocento, de que Petrarca redescobriu, no que concerne relao entre retrica e filosofia, o modelo ciceroniano, e assim tornou possvel para a retrica tornar-se mais uma vez a via de acesso cultura geral e especialmente para o conhecimento da filosofia moral, o que ela tinha sido na poca de Ccero.17

    Mas para compreender melhor essa retomada do modelo ciceroniano, vale a pena retraar, em suas linhas gerais, a relao que Ccero estabeleceu entre retrica e filosofia.

    A obra de Ccero, lida durante o perodo medieval sem despertar grande ad-mirao, ou mutilada de seu sentido cvico18, ir exercer, no Renascimento, uma forte influncia que pode ser compreendida sob um duplo aspecto: em primei-ro lugar, na relao entre retrica e filosofia e, em segundo lugar, no campo do pensamento moral e poltico. Um lugar muito especial ser ocupado pelos textos em que o orador romano trata da retrica (sobretudo o De oratore, des-coberto em 1421)19 e em que trata do tema moral (especialmente o De officiis).

    L. Bruni, Ad Petrum Paulum Histrum dialogus. A cura di S. U. Baldassarri. Florena: Leo Olschki, 1994. Utilizamos na citao a traduo de N. Bignotto, Dilogo para Pier Paolo Vergerio publicado como anexo em N. Bignotto, op. cit., p. 280.(Seigel, op. cit., pp. 31-2). A respeito, essas linhas de C. Vasoli so esclarecedoras: Com efeito, a defesa zelosa do discurso eloqente, que ocupa um lugar to decisivo no De sui ipsius et aliorum ignorantia, antes de tudo a apologia d euma cultura que, sobre o exemplo de Ccero, se confia ao poder da arte oratria porque ela est convencida do lugar central que o homem ocupa em todas as formas ou todos os modelos de saber e porque ela cr necessrio que o discurso filosfico atinja um pblico cada vez mais amplo, estranho s linguagens dos especialistas e curiositas do enciclopedismo escolstico (C. Vasoli, art. cit., p. 50).Sobre as formas de compreenso do pensamento de Ccero na Idade Mdia e no Renascimento, ver H. Baron, The Memory of Ciceros Roman Civic Spirit in the Medieval Centuries and in the Florentine Renaissance In: (vol. I, 1988)Vale ainda lembrar a influncia indireta de Ccero sobre a moral clerical no incio da Idade Mdia. Nesse perodo, a tradio romana de bom comportamento havia sido reconstruda para o clero e o texto fundamental nesse processo de reconstruo foi escrito por Santo Ambrsio, bispo de Milo, que aconselhava seus sacerdotes a demonstrarem recato (...) em todos os seus gestos. Como sugere seu ttulo, De officiis clericorum, o tratado de Ambrsio era essencialmente uma rees-critura de Ccero, seguindo seu modelo em muitos aspectos, at mesmo no conselho sobre como andar nas ruas nem muito rpido nem muito lento (Burke, 1997, p. 23).O De inventione e a Rhetorica ad Herennium reconhecida como de autoria de Ccero no Renasci-mento at esta ser colocada em xeque em 1491. P. Mack, Humanism Rhetoric and Dialectic. In: (Kraye, op. cit., p. 83) exerceram grande influncia sobre a cultura retrica humanista. Porm, a partir do incio do Quattrocento, os humanistas daro mais ateno aos textos da maturidade de Ccero. A respeito, ver J. O. Ward, Renaissance Commentators on Ciceronian Rhetoric. In: (Murphy, op. cit., pp. 126-73.

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    O De oratore um dilogo escrito em 55 a.C. que tem como data dra-mtica o ano de 91 a.C. (perodo em que o autor era adolescente) e no qual so colocados em cena alguns dos mais conhecidos e admirados homens p-blicos da poca (Crassus, Antonius, Mucius Scaevola o Augrio). Ccero examina a relao entre retrica e filosofia a fim de mostrar que uma no pode dispensar a outra, como pareciam acreditar boa parte dos filsofos20; do lado dos retores, sua crtica se dirigia prtica mecnica, sem reflexo nem aprofundamento terico, que esses ensinavam a seus alunos (Ccero, De oratore, livro I, 5, 19, p. 14). O dilogo se centrar sobre o seguinte tema: a retrica uma tcnica sem contedo, simplesmente um conjunto de receitas, ou seria ela uma arte completa que colocaria em jogo todas as qualidades da pessoa, que suporia, atravs da expresso, uma sabedoria e um saber e que exerceria, por fim, sua eficcia persuasiva apoiando-se sobre valores? (Pernot, 2000, p. 155)

    Alm de se mostrar ineficaz, a retrica desprovida de conhecimento no est altura de sua tarefa que, segundo Ccero (que fala atravs de Crassus), a de reunir os homens sob as regras em uma cidade, retirando-os da vida grosseira e selvagem, e de assegurar a manuteno das leis (Ccero, De oratore, livro I, 8, 32). Quando, no De inventione, examina o modo como se iniciaram as comunidades, Ccero supe que em certa poca os homens viviam dis-persos pelos campos e escondidos nas florestas e que provavelmente surgiu um homem ao mesmo tempo poderoso e sbio que percebeu que os ho-mens poderiam, se reunidos em sociedade, realizar coisas imensas, desde que modificassem seu estilo de vida embrutecido (Ccero, De inventione, I, II, 2 citado por Skinner, 1997, p. 130). Na figura desse legislador se fundem sabedoria e eloqncia e a elas se acrescenta sua alta qualidade moral. A elo-qncia, assim, no pode ser reduzida a uma tcnica praticada nos tribunais e nas assemblias, embora seja a que ela deva ser em geral exercida. Sem desvincular a arte de falar de seu carter utilitrio (Michel, 1960, p. 44), Ccero desloca a discusso sobre a eloqncia para o campo poltico e tico ao retomar um lugar-comum da cultura antiga: Nossa maior superioridade sobre os animais a de poder conversar uns com os outros e de traduzir pela palavra nossos pensamentos.21 Afastando-nos da bestialidade, ratio e oratio so igualmente responsveis pela coeso social, so os laos (uinculum)

    Ccero, De oratore, livro I, 11, 45-7 (utilizamos a edio francesa com a traduo de E. Courbaud. 1985).Ccero, De oratore, livro I, 8, 32., p. 18. Ccero faz igualmente referncia a esse lugar-comum no De officiis, livro I, 16, 50.

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    que unem os homens. A vida em sociedade requer, tanto em seu surgimento quanto em sua manuteno, a habilidade oratria. Essa habilidade no pode vir desacompanhada, como veremos, das virtudes morais nem da sabedo-ria. O homem eloqente deve cultivar uma gama de virtudes morais sem as quais sua oratria vazia; em contrapartida, suas qualidades morais no tm utilidade para a cidade se no forem acompanhadas da eloqncia. No possvel separar o problema da virtude do tema da eloqncia: o vir bonus aquele que sabe expressar-se. Mas o saber se expressar deve ser acompanhado de sabedoria (sapientia), isto , habilidade tcnica deve ser unida a nobreza e a profundidade de pensamento. Ccero se volta ento para a filosofia (me de todas as artes22), pois apenas ela capaz de promover a conciliao, na sabedoria, entre a virtude e a arte (Michel, Rhtorique, op. cit., p. 70). A fi-losofia, conhecimento dos princpios gerais, imprescindvel para o orador que no pode, da perspectiva ciceroniana, se contentar em enunciar discur-sos sem considerao pelo contedo: apenas a forma no suficiente para a verdadeira retrica; igualmente necessrio o fundo. Seja qual for o assunto de que trate o orador, seu discurso deve ser fundamentado no conhecimento:

    Pois a excelncia no discurso supe necessariamente, naquele que fala, o exame anterior e a cada vez aprofundado do assunto de que fala. Por con-seguinte, se Demcrito soube se exprimir com elegncia sobre questes de fsica, como se diz e como eu reconheo, a matria pertencia ao fsico, a maneira ornada e brilhante, ao orador. (Ccero, De oratore, livro I, 11, 48-9, pp. 23-4)

    Para que o orador atinja o pice da arte de bem falar, Crassus propor que ele domine os mais variados campos do conhecimento, ou seja, sua forma-o dever lhe proporcionar uma cultura geral (Idem, I, 16, 71-2, p. 30). Embora o discurso de Antonius apresente as dificuldades e os limites de tal formao23, o ncleo das propostas de Crassus defendido at o fim do di-logo. Antes de mais nada, o conhecimento conhecimento dos princpios e preciso desconfiar dos saberes que se prendem a detalhes, pois sinal de superficialidade. A filosofia , por isso, a mais importante forma de saber para o orador, embora no seja a nica. Ele necessita igualmente conhecer as belas letras e como sua atividade desenvolvida nos domnios deliberativo,

    Ccero, De oratore , 3, 9, p. 10.Antonius visa antes o orador disertus do que o eloquens ( Ccero, De oratore, 21, 94, p. 37).

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    judicirio e laudativo, ele deve receber uma formao poltica, isto , hist-rica e jurdica.24

    A concepo de retrica que Ccero apresenta no De oratore (e tambm em seus demais escritos sobre retrica, como o Brutus e o Orator) no separa a retrica da filosofia, pois uma est ligada a outra como a forma ao fundo (De oratore, livro III, 141). Essa fuso resulta da exigncia de conferir, por um lado, beleza de expresso ao pensamento e, por outro, de suportar a eloqn-cia com o conhecimento do verdadeiro; nesse caso, uma exigncia marcada-mente platnica (Fedro, 270 d-e.). Como um cidado romano, Ccero no podia deixar de valorizar a eficcia do discurso nas causae civis, porm insiste em que esse benefcio, sem o acompanhamento da sabedoria, no poderia ser seno aparente. Os homens sbios, por sua vez, devem manifestar um cuida-do esttico na exposio de seu conhecimento (no apenas para provocar o agrado nos ouvintes, mas porque a prpria beleza um elemento persuasivo) (Pernot, op. cit., p. 158). A persuaso no pode ser desprovida de informa-o, nem a ratio da oratio. Apenas obedecendo a esses preceitos o orador poder fazer com que seu discurso seja capaz de probare, delectare e movere.

    Ao lado da concepo ciceroniana de retrica, foi igualmente importante para os humanistas a doutrina moral que o orador romano apresentou no De officiis.25 Ccero acredita que a melhor forma de vida para o homem a vida pblica e essa convico vigorosamente expressa no livro ser determinante para assegurar o sucesso da obra entre os humanistas. A revalorizao da retrica no pode ser desvinculada da valorizao da atividade poltica ou, ainda, da vida ativa. Se durante a Idade Mdia, sob a influncia de Agostinho, a vita activa era geralmente considerada com desprezo (ou de qualquer forma lhe era sempre reservado um lugar inferior ao da vita contemplativa), a partir do Renascimento sua dignidade novamente reconhecida, a exemplo do que ocorria na Antigidade. O De officiis, nesse contexto, pode ser de grande au-xlio para quem deseja, apoiando-se na cultura clssica, encontrar o suporte filosfico para uma concepo moral e poltica que confere grande valor atividade do homem de estado. Com efeito, no livro I do De officiis, Ccero afirma que a vida dos que se dedicam coisa pblica mais proveitosa para

    A. Michel, La Thorie de la Rhtorique chez Cicron: loquence et Philosophie. In: (Reverdin;Vanouvres, 1982. p. 134).O livro, escrito em 44 a.C. e dedicado ao filho do autor, exerceu grande influncia ao longo dos sculos que antecedem e sucedem o Renascimento e durante esse perodo sua popularidade atestada pela espantosa quantidade de cpias do manuscrito (cerca de 700, quase todas feitas nos sculos XIV e XV). Cf. A. R. Dyck, A commentary on Cicero, De officiis. Detroit: The University of Michigan Press, 1996, p. 44.

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    o gnero humano (e mais gloriosa para o prprio homem) do que a vida afas-tada dos negcios da cidade.26 O homem bem-educado tem por obrigao se ocupar dos afazeres de estado, civis ou militares, a no ser, diz Ccero (no sem uma ponta de ironia), que se trate de um esprito excelente (excellenti ingenio) que se dedica ao aprendizado ou de algum que seja impedido por sua sade fraca; estes estaro desculpados por deixar para outros a glria da administrao pblica.27 De qualquer maneira, Ccero no tece crticas con-trrias ao gnero de vida filosfico no De officiis, mas insiste na superioridade da vida pblica. O homem de estado, dotado das mesmas qualidades morais que o filsofo, encontra na atividade poltica um campo de provao para suas virtudes; por isso, mais do que ao filsofo, lhe so necessrias a grandeza de alma (magnificentia) e a indiferena s circunstncias externas, assim como a serenidade (tranquilitas) e firmeza (securitas) de esprito.28 Se as exigncias s quais deve fazer face so maiores, maior tambm seu valor. No bastasse a superioridade do homem de estado no prprio terreno do filsofo (a expe-rincia moral), ela mais uma vez confirmada por causa dos benefcios que a atividade poltica assegura aos homens: somente ela pode garantir a presena da justia e de seus efeitos duradouros na cidade. As atividades mais impor-tantes, que so o sinal mais evidente de um grande esprito, so realizadas pelos homens que dirigem a coisa pblica; pois tais atividades tm o mais amplo objetivo e afetam a vida de muitos.29 Da mesma forma que a atividade do poltico mais importante que a do filsofo, a justia, virtude social, su-perior sabedoria. Os deveres que decorrem da justia devem ter precedncia sobre os que decorrem da sabedoria, uma vez que nada mais sagrado do que o bem-estar dos concidados.30 Por isso, Ccero afirma que os que se dedicam busca do saber e da cincia devem colocar seu conhecimento prtico a ser-vio da comunidade. As exigncias da vida social e os laos que mantm os homens unidos tm a preferncia na ordem dos deveres.

    Sem retirar o valor da vida do filsofo, distanciada da cidade e de seus afazeres, Ccero no hesita, portanto, em conceder o primeiro prmio ao po-

    Ccero, De officiis, I, 21, 70, p. 72. Ccero, De officiis, I, 21, 71. A ironia, esclarece A. R. Dyck, se encontra na suspeita de que muitos otiosi utilizam o desprezo da glria como uma desculpa para mascarar sua falta de vontade de se empenhar em um trabalho rduo ou de encarar a possibilidade de derrota inerente vida poltica (op. cit., p. 200).Ccero, De officiis, I, 21, 72.Ibidem, I, 26, 92, p. 95. Ibidem, I, 43, 155, p. 158.

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    ltico (assim como sua grande fonte de inspirao no De officiis, Panaetius31). De acordo com N. Bignotto, esse um dos aspectos determinantes para a aceitao de Ccero pelos humanistas:

    Ccero oferecia, assim, para Petrarca, e depois para Salutati e seus se-guidores, um guia perfeito de uma filosofia moral que, sem entrar em contradio total com os valores associados vida contemplativa, to caros ao cristianismo medieval, mas tambm aos filsofos esticos, propunha uma viso altamente positiva das atividades na cidade.32

    Ainda de acordo com N. Bignotto, a ferramenta til para os humanistas consistia na oposio, explorada no De officiis, entre o interesse privado e o interesse pblico que os permitia enfrentar o dilema da escolha entre vida ativa e vida contemplativa.33 Na perspectiva ciceroniana o conflito entre os dois interesses, quando examinado com ateno, se revela aparente. Assim como o amor pela ptria envolve e supera as demais espcies de amor, a obrigao moral para com ela est acima e inclui as demais34, argumento este que permite dissolver a contradio entre interesse privado e pblico. Par-tindo do mesmo princpio, Ccero (adotando, como j vimos, a perspectiva estica) resolver no livro II, e sobretudo no livro III, do De officiis a oposi-o entre o utile e o honestum35. Aqueles que se propem a se encarregar da administrao do governo deveriam ter em mente duas regras de Plato: a primeira os incita a manter o bem do povo sempre em vista de modo a colocar em segundo plano seus interesses pessoais e a segunda a cuidar do corpo poltico em sua integridade, sem favorecer nenhuma das partes que o compem.36 Mas a observncia dessas regras depende da boa ordenao

    Panetius (ou Pancio) reconhecia a legitimidade tanto da vita activa quanto da vita contemplativa, mas dizia que a primeira era o pr-requisito para a megalopsichia ou grandeza de alma. Cf. A. R. Dyck, op. cit., p. 200.N. Bignotto, Origens do republicanismo moderno, op. cit., pp. 90-1.N. Bignotto, Origens do republicanismo moderno, op. cit., p. 91.Ccero, De officiis, I, 17, 57-8, pp. 58-60.A vinculao entre o utile e o honestum est intimamente ligada prpria concepo de retrica de Ccero, para quem os fins do gnero retrico deliberativo so eminentemente morais. Sobre a importncia dessa perspectiva no humanismo e em Maquiavel, ver V. Cox, Machiavelli and the Rhetoric ad Herennium. Deliberative Rhetoric in The prince. In: Sixteenth century journal. Vol. XVIII, n 4, 1997.Ccero, De officiis, I, 25, 85. Ver tambm N. Bignotto, Origens do republicanismo moderno, op. cit., p. 91. Segundo Q. Skinner, os escritores pr-humanistas (como Giovanni da Viterbo e Brunetto Latini) j demonstravam em seus textos a completa adeso a essas duas regras (Q. Skinner, The Rediscovery of Republican Values. In: Visions of politics, vol. II. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 25).

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    moral do prprio poltico. A harmonia na coisa pblica ser assegurada somente se os homens que dela se ocupam so capazes de imprimi-la em suas prprias vidas. Em outros termos, a justia (que Ccero compreende como a virtude que assegura a coeso social) no pode ser concebida sem a moderao, que se mani-festa sob a forma do decorum, a convenincia que confere beleza, estabilidade, constncia e ordem nas aes de um homem.37 O decorum o elemento esttico que deve se fazer presente tanto no domnio moral quanto no poltico, indisso-ciavelmente ligados. E como a vida moral e poltica no pode atingir seu pleno desenvolvimento sem a eloqncia, o decorum igualmente necessrio para o orador. Escolher o estilo certo para cada situao, estar atento correspondncia entre o pensamento, a linguagem e o tema so cuidados que no podem ser des-prezados pelo homem que deseja alcanar a verdadeira eloqncia. Esse cuidado esttico se estende s demais artes e, como Ccero demonstra no Orator, jamais desvinculado da esfera moral, pois deve servir como regra geral para a vida.38 A beleza que o decorum visa ser ao mesmo tempo ideal e modelo para a vida prtica e para a atividade tcnica. Esse o ltimo aspecto da obra de Ccero que gostaramos de destacar porque exerceu forte influncia sobre os humanistas.39

    *O modelo ciceroniano que os humanistas adotaram resolvia a querela entre filosofia e retrica ao reconhecer a necessidade da formao filosfica para o orador, por um lado, e, por outro, ao exigir do filsofo o cuidado com a forma na expresso de seu pensamento. A concepo que Ccero apresenta-va da retrica levava em considerao sua necessidade para todos os nveis da vida do homem e pelo mesmo motivo a formao que propunha para o orador envolvia os aspectos filosfico, tico e poltico da existncia humana. A concepo de retrica dos humanistas revelar a completa absoro desses preceitos. Tambm para Petrarca, Salutati e seus seguidores a eloqncia ser acompanhada pelo saber filosfico e o pensamento dever ser expresso com beleza. Para tanto, o princpio do decorum ser igualmente importante.40 Sob

    A. Michel, Rhtorique et philosophie chez Cicron, op. cit., pp. 131-2.... in omini parte orationis ut vitae quid deceat est considerandum. (Ccero, Orator, XXI, 71, p. 358. Utilizamos a edio americana. Orator. Loeb Classical Library. Cambridge: Harvard Univer-sity Press, 1997, 7 edio.Sobre a importncia do decorum para o humanismo renascentista, ver H. Gray. Renaissance huma-nism. The pursuit of eloquence. In: Journal of the history of ideas, no 24, 1963, p. 506.N. Struever, The language of history in Renaissance, op. cit., pp. 61-7. No apenas na composio dos textos, mas igualmente nas artes plsticas e na arquitetura a convenientia desempenhar um papel crucial no Renascimento (ver tambm C. A. L. Brando, Quid tum? 0 combate da arte em Leon Battista Alberti. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000).

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    a influncia de Ccero, os humanistas desejam a unio entre sabedoria e elo-qncia e, no mpeto de materializar essa aliana, no hesitam em recorrer potncia da forma.41 A sensibilidade esttica de que fazem prova (e que ser uma das caractersticas mais marcantes do Renascimento) aliada consci-ncia do poder persuasivo da beleza e da forma do discurso. Como observar a respeito N. S. Struever, o pensamento humanista cada vez mais tender a afirmar que a eloqncia, no o conhecimento, poder.42 Se a funo da retrica mover os homens, os humanistas esto convencidos de que o nico meio possvel para faz-lo a conformao esttica do discurso: a sensibili-dade do ouvinte um fator determinante na apresentao do pensamento, o que significa que a fecundidade das palavras um efeito de sua capacidade de emocionar o esprito. O discurso deve ser expresso de forma artstica se deseja conduzir a vontade.43 Obedecendo a esse preceito, os escritos dos humanistas iro se servir do poder persuasivo da forma. Vale a pena lembrar que o poder persuasivo do discurso retrico est relacionado, na perspectiva humanista, com a semelhana de natureza entre a retrica e a poltica (uma percepo, a bem da verdade, no de todo estranha a Aristteles). Como observa V. Kahn, para muitos dos humanistas do Renascimento h uma espcie de homologia entre a poltica, como o reino contingente dos afazeres humanos, e a retrica, como o estudo dos argumentos da probabilidade, como uma persuaso lgica em vez da certeza apodtica.44 No que diz respeito relao entre retrica e filosofia, de Salutati a L. Valla podemos constatar a passagem de um ponto de vista que defende a submisso da primeira segunda ao ponto de vista contrrio, como bem demonstrou Seigel.45

    Nos escritos de Salutati, a eloqncia geralmente concebida como de-pendente da sabedoria (o que, como observa J. Seigel, no deixava de colo-car uma srie de problemas para um retrico46). Diferentemente de Petrarca, que tanto admirava, Salutati no mantinha um relacionamento hostil com os dialticos modernos e concedia mais valor a seus estudos de filosofia. Em uma carta de 1404, endereada ao mdico Francesco Casini (um ho-mem de formao escolstica), ele o elogia pela sutileza de sua argumen-

    O que no significa, na viso de um conhecedor refinado como R. Klein, privilgio absoluto da forma sobre a idia que expressa (R. Klein, A forma e o inteligvel. Trad. de C. Arena. So Paulo: Edusp, 1998, p. 160).N. Struever, The language of history in Renaissance, op. cit., pp. 61 e 72.Ibidem, p. 61.V. Kahn, Machiavellian rhetoric. From the Counter-reformation to Milton. Princeton: Princeton Uni-versity Press, 1994, pp. 5-6. J. Seigel, Rhetoric and philosophy in Renaissance Humanism, op. cit.Ibidem, p. 80.46

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    tao ao mesmo tempo em que afirma, a exemplo de Plato no Fedro e de Ccero no De oratore, a importncia para o orador de conhecer profun-damente o assunto do qual fala.47 Em outra carta, de 1400, Salutati cha-mava a ateno do notrio Pietro di ser Mino para o abuso da eloqncia:

    Nade pelo mar da eloqncia sem abandonar a verdade. Pois o ocea-no da eloqncia torna-se infinito e intransponvel se voc perder de vista a verdade. As coisas verdadeiras so firmes, determinadas, de modo que aquele que as segue sempre est em terreno slido.48

    Porm, como j sabemos, a submisso da retrica filosofia no deve fazer com que percamos de vista sua aplicao na vida pblica. Para Salutati, a eloqncia tanto meio de expresso do pensamento quanto instrumento para a poltica. A teoria poltica republicana que comea a ser elaborada no Trecento necessitar da retrica para sua exposio de duas maneiras diferentes e, no entanto, intrinseca-mente relacionadas: a retrica deve proporcionar a boa conformao do pensa-mento ao mesmo tempo em que deve ser til para sua divulgao e consolidao. Se por um lado a profundidade do contedo requer a sofisticao da forma, por outro a disposio da forma imprescindvel para a afirmao do pensamento. Em outros termos, a retrica transforma-se em meio de expresso e em arma de combate poltico. Um bom exemplo da utilizao poltica da retrica, em Salutati, a Invectiva contra Antonio Loschi de Vicenza. A carta uma exaltao da liberdade florentina apresenta alguns temas que sero cruciais para o pensamento republi-cano humanista (dentre eles o tpico da origem da cidade de Florena) seguindo procedimentos retricos tradicionais como a desvalorizao do interlocutor e a ironia. Sua funo poltica era evidente: em um momento em que a cidade se en-contrava sob a ameaa de ser invadida, a defesa da repblica no plano das idias era to importante quanto a guarnio de um exrcito.49 Tratava-se, portanto, de apresentar uma imagem poltica de Florena como a defensora da doce liberda-de. Na construo dessa imagem, Salutati se servia de um procedimento tipica-mente retrico: o contraste, a oposio. Assim, o retrato de Florena to mais radiante e luminoso quanto for sombrio e obscuro o de Milo, cidade que vive sob governo tirnico e a qual Loschi havia colocado seus servios disposio.50

    Petrarca, Epistolario, vol. IV, op. cit., p. 37.Ibidem, vol. III, p. 424.A respeito, ver E. Garin, La Prose Latine du Quattrocento. In: Moyen Age et Renaissance. Trad. de C. Carme. Paris: Gallimard, 1969, p. 95.Entre 1391 e 1406. A seu respeito, ver P. MAck, Humanism Rhetoric and Dialectic, art. cit., p. 84.

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    O vnculo entre retrica e poltica iria se estreitar ainda mais no pensa-mento de Leonardo Bruni, discpulo direto de Salutati e, como ele, chanceler da Repblica Florentina (entre 1427 e 1444). Diferentemente de seu mestre, Bruni parece no ter jamais colocado em questo a harmonia entre filosofia e retrica e em momento algum fez da sabedoria a regra para a eloqncia. Des-sa forma, sua atitude com relao busca da eloqncia sempre foi afirmativa e sua f na unio entre eloqncia e sabedoria foi incomparvel,51 como podemos ver na carta que escreve senhora Battista Malatesta de Montefeltro.

    Esse texto constitui, na verdade, um pequeno tratado de educao, apre-sentando as linhas gerais de um currculo que visa a formao de um homem erudito (uma vez que o texto dirigido a uma mulher, preciso tomar o termo homem em sua acepo genrica). Alis, vale a pena precisar o que Bruni entende por erudio: Por erudio no entendo aquela vulgar e con-fusa que possuda pelos que professam teologia, mas aquela legtima e libe-ral que une habilidade literria (litterarum peritia) com conhecimento factual (rerum scientia).52 No difcil reconhecer nesses dois elementos destacados por Bruni a presena do ideal ciceroniano. Alis, a ele ser clara referncia um pouco mais tarde: O conhecimento das letras sem o conhecimento das coisas estril e intil; e o conhecimento das coisas, embora seja elevado, sem o esplendor das letras se apaga nas sombras.53

    Bruni, como os demais humanistas de seu tempo, foi fortemente influen-ciado pelo modelo de orador que Ccero apresenta no De oratore. Um ponto que o diferencia de seus antecessores, no entanto, foi ter acreditado encontrar em Aristteles a realizao desse modelo. Conhecedor do grego, tradutor de Aristteles, Bruni acredita que o Estagirita soube unir perfeitamente sabedo-ria e eloqncia, o que poderia ser comprovado a partir da leitura de seus textos no original. A tradio escolstica, segundo Bruni, teria distorcido o pensamento do filsofo com tradues que tornavam seus textos speros, de-sagradveis e apresentavam sua filosofia desprovida de ornamentos e beleza que lhe eram prprios: tratava-se de um empobrecimento da obra de Arist-teles que deveria ser corrigido com o auxlio de novas tradues.54 Atacando os escolsticos em seu prprio terreno, Bruni estava convencido de que a eloqncia no seria mais vtima dos ataques desferidos por aqueles que de-nunciavam a falta de rigor filosfico da oratria. A confiana na unio entre

    J. Seigel, Rhetoric and philosophy in Renaissance Humanism, op. cit., p. 103. L. Bruni, De studiis et litteris lber ad Baptistam de Malatesta. In : Humanist educational treatises. C. Kallendorf (org.). Cambridge : Harvard University Press, 2002, p. 94.Ibidem, p. 122.A respeito, ver J. Seigel, Rhetoric and philosophy in Renaissance Humanism, op. cit., pp. 115-36.

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    retrica e filosofia, fortalecida pela obra de Aristteles, acompanhada pelo reconhecimento de sua enorme importncia na vida pblica. s imagens do orador e do filsofo ir se fundir a do homem poltico que atua na cidade e que coloca seu saber a servio do ideal republicano.55 Como observa Witt, Bruni, a exemplo dos outros humanistas, tambm se dedicava aos studia humanitatis, mas subordinava os aspectos gramticos e filolgicos do humanismo s tare-fas do orador; para Bruni, o orador deveria dedicar sua vida a servir e preser-var uma sociedade de homens livres atravs de sua formao e eloqncia.56

    Essa acentuada politizao do papel do orador ser um dos traos que compem a nova figura do humanista no Quattrocento. Mas bom lembrar que a ruptura com o Trecento se d inicialmente no prprio domnio dos stu-dia humanitatis, isto , a gerao seguinte de Petrarca, embora reconhea a inestimvel contribuio deste ltimo, reivindicar para si uma proximidade maior com a retrica clssica, um domnio mais completo de sua oratria e uma retomada mias fidedigna de seu estilo.

    Um testemunho da poca: no final da dcada de 1495, Flavio Biondo escreve o seguinte:

    Primeiramente, Francesco Petrarca, um homem de grande talento e indstria, comeou a despertar a poesia e a eloqncia, mas naquela poca em que ns censuramos a escassez e a falta de livros mais do que de gnio, ele no atingiu a flor da eloqncia ciceroniana que adorna muitos que ns vemos neste sculo. Pois ele prprio, embora tenha se vangloriado de ter encontrado as cartas de Ccero escritas a Lentulus e a Vercelius, no conhecia os trs livros do De oratore de Ccero, e as Instituitiones de Quintiliano apenas em forma fragment-ria, e, da mesma forma, o Orator maior e o Brutus de oratoribus claris, livros de Ccero, no chegaram a seu conhecimento. Giovanni de Ra-venna conheceu Petrarca quando menino, e ele no tinha esses livros mais do que Petrarca, nem sequer escreveu qualquer coisa da qual tenhamos conhecimento.57

    N. Struever chega a afirmar que o cerne da posio de Bruni o dito de Aristteles de que o homem um animal poltico. A virtude provada no o bastante; a esfera pblica contm possi-bilidades para a virtude e a felicidade que a esfera privada no contm (N. Struever, The language of history in Renaissance, op. cit., p. 111). Por outro lado, no podemos esquecer que o ideal do orador que parece inspirar Bruni encontra sua formulao mais completa em Ccero, como vimos acima. R. Witt, Medieval Ars Dictaminis and the Beginnings of Humanism, art. cit., p. 35.F. Biondo, In Italiam illustratam, citado por R. Witt, In the footsteps of the ancients. The origins of humanism from Lovato to Bruni, Leiden: Brill, 2000, pp. 340-1.

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    Porm, no preciso esperar o fim do sculo quinze para que esse veredicto seja pronunciado. A mesma idia est presente nos Dialogi ad Petrum Paulum Histrum, de Bruni. Vamos nos deter um pouco sobre esse texto para que possamos compreender a novidade trazida pelos humanistas do Quattrocento.

    Bruni escreveu esses dois dilogos no incio dos anos 1400. A cena que descreve no primeiro deles se passa na casa de Collucio Salutati, durante as festividades da Pscoa de 1401. O segundo dilogo apresenta a continuao das discusses do dilogo anterior, mudando o cenrio para a casa de Roberto Rossi e a data para o dia seguinte. Na primeira cena, vemos Niccol Niccoli colocar em xeque o mrito dos trs grandes poetas florentinos (Dante, Pe-trarca e Boccacio). Quando comparados aos do passado (Homero e Virglio), sua deficincia se torna evidente. Contudo, Niccoli no se apia sobre a me-todologia comparativa. Vai aos prprios textos desses autores para mostrar sua debilidade artstica. Na segunda cena, o mesmo Niccoli far a defesa dos poetas florentinos, mostrando a inconsistncia das acusaes que havia con-tra eles lanado.

    Muito j se discutiu acerca do sentido desses dilogos, de sua estrutura e data de composio. Segundo o que informa Stefano U. Baldassarri em sua edio do texto58, esse debate ganha flego a partir de um artigo de E. Santini, publicado em 1912, no qual o autor desacredita a tese de que os dilogos se-riam apenas uma pea de retrica cuja finalidade seria o elogio das trs coro-as florentinas. Para Santini, trata-se de uma defesa conduzida por um Bruni temeroso de ser envolvido juntamente com Niccoli nas crticas que contra este ltimo eram lanadas pelos admiradores do Trecento.59 Como no nos interessa recompor aqui a histria dessas interpretaes, chamamos a ateno apenas para um aspecto da leitura de Santini que acreditamos ser relevante para nossa anlise: sua interpretao deixa transparecer o esprito crtico que acomete a gerao de leitores que segue a de Salutati e precisamente esse esprito crtico que vemos fortemente presente no final do sculo XV, como indica a passagem de Biondo citada acima.

    Um topos recorrente da crtica que os humanistas do Quattrocento dirigem a seus antecessores consiste precisamente em seu conhecimento exguo dos textos clssicos. Assim, o Niccoli de Bruni no deixa de observar que nasceu em uma poca de confuso (perturbatio) e de falta de livros.60 Praticamente

    L. Bruni, Dialogi ad Petrum Paulum Histrum. A cura de S. U. Baldassarri. Florena: Leo S. Olscki, 1994.Ibidem, p. 7.Ibidem, p. 241.

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    no mesmo momento em que Bruni escreve essas linhas, o destinatrio de seus dilogos, Pier Paolo Vergerio, afirma que a excelncia e o valor daquilo que sobreviveu [os fragmentos das obras do passado] torna a perda do resto difcil de suportar, muito embora tenhamos recebido muitas das obras sobrviventes em um estado de tal forma corrompido, mutilado e misturado que quase teria sido melhor se nada delas tivesse sobrevivido.61 A denncia do prprio tempo no novidade no humanismo. Petrarca j havia recorrido ao mesmo expediente para enfatizar a necessidade de recuperao da cultura clssica. Mas no incio do Quattrocento est em questo a ruptura com os primeiros hu-manistas e a concomitante afirmao da exigncia de uma apropriao mais pura, mais rigorosa dos autores antigos.

    Alm disso, esse afastamento com relao ao humanismo do Trecento en-contra igualmente uma motivao poltica, e no somente epistemolgica. Como observa R. Witt, o jovem Vergerio (j em 1391) deslocou o novo ci-ceronismo da sala de aula para a arena pblica: Agindo assim, ele transps o abismo entre o humanismo do Trecento, que geralmente se mantinha no mbito da vida privada, e o mundo da poltica e do poder. E Witt comple-ta: Como conseqncia, o movimento humanista assumiu maior relevncia para um pblico mais amplo, e dentro de alguns anos comeou a atrair os filhos da elite urbana para seu programa educacional.62 No deve surpreen-der, ento, que a importncia que Vergerio concede eloqncia na formao do homem pblico esteja atrelada sua crtica ao desaparecimento da retrica no espao pblico:

    Muito embora em tempos j idos ela costumasse ser amplamente estudada como parte da educao de um homem nobre, a retrica caiu agora quase totalmente em desuso. Ela foi completamente exi-lada dos procedimentos legais, onde as partes disputantes no usam mais de longos discursos, mas antes aduzem leis uma contra a outra dialeticamente em apoio de seus casos. Na retrica judicial, muitos jovens romanos adquiriam grande glria, seja denunciando o culpa-do, seja defendendo o inocente. Tambm no gnero deliberativo no h lugar para a retrica entre prncipes e senhores h muito tempo, uma vez que eles querem uma opinio explicada em poucas palavras

    P. P. Vergerio, Ad Ubertinum de Carrara de Ingenius moribus et liberalibus adulescentiae studiis lber. In: Humanist educational treatises, op. cit., p. 46.R. Witt, In the footsteps of the ancients, op. cit., p. 370.

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    e argumentos simples para serem levados aos conselhos; nos regimes populares, so considerados os mais brilhantes oradores aqueles que falam sem arte e copiosamente. Resta apenas o gnero demonstrativo, o qual, embora jamais tenha sado de uso, raras vezes usado corre-tamente nos dias de hoje.63

    Voltando a Bruni, a leitura dos textos de Bruni nos permite constatar que o pensamento poltico republicano e a retrica estiveram efetivamente unidos no Quattrocento. Esse pensamento poltico, que deseja abertamente se dife-renciar do pensamento medieval reatando com a tradio clssica, vai encon-trar uma forma de expresso privilegiada no gnero retrico epidtico, isto , o gnero do louvor e da censura. A Invectiva de Salutati pode ser considerada um exemplar do gnero, assim como a Laudatio florentinae urbis e a Oratio in funere Iohannis Strozae equitis florentini de Bruni. Uma vez que os humanistas, em sua maioria, ocupavam um cargo pblico, ou seja, estavam a servio de uma comunidade (que era governada oligarquicamente), a utilizao do g-nero epidtico parece perfeitamente compreensvel. Ao mesmo tempo em que pode servir como pea de propaganda, o panegrico pode aconselhar, pois, como esclarece Aristteles, o elogio e o conselho so de uma mesma espcie. Se o contedo dos conselhos permanece o mesmo e se modifica apenas a for-ma, temos os panegricos.64 Assim, a Laudatio de Bruni (escrita provavelmente em 140465) simultaneamente um instrumento para a exposio de suas con-vices republicanas, um conjunto de argumentos que serve para justificar o regime republicano e suas aspiraes expansionistas e uma injuno aos cida-dos e classe governante de Florena para que mantenham a integridade do regime. O ncleo da argumentao de Bruni a filiao de Florena Roma. Transformando a cidade italiana na colnia herdeira da Roma republicana e

    P. P. Vergerio, Ad Ubertinum de Carrara de Ingenius moribus et liberalibus adulescentiae studiis lber. In: Humanist educational treatises, op. cit., pp. 50-2.Uma vez ento que ns sabemos quais aes devemos realizar e qual carter devemos ter, preciso mudar a expresso e convert-la (Aristteles, Retrica, 1368 a, p. 64). Ver tambm H. Mansfield, Bruni and Machiavelli on Civic Humanism. In: J. Hankins (org.). Renaissance civic hu-manism. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 230. Sobre a relao entre os gneros e o carter persuasivo do panegrico, ver A. K. Varga, Rhetoric, a Story or a System? In: J. Murphy (org), Renaissance eloquence, op. cit., pp. 87-8.Para uma recente discusso acerca da data e do contexto histrico e ideolgico da redao da Lau-datio, ver J. Hankins, Rhetoric, History and Ideology: The civic Panegyrics of Leonardo Bruni. In: Renaissance civic humanism, op. cit., pp. 143-78.

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    florescente66, ele acredita ter encontrado o aparato histrico e conceitual ne-cessrio para a expresso do pensamento poltico republicano que, ao mesmo tempo, deve despertar nos cidados o desejo e as paixes que podem assegu-rar a manuteno dos costumes e das instituies de sua cidade. Para atingir esses objetivos, Bruni passa deliberadamente ao lado da verdade histrica e por cima das dissenses que se proliferam dentro da cidade.67 A Histria no tem por finalidade a apresentao da verdade objetiva, mas possibilitar a construo de uma realidade poltica de acordo com os preceitos defendidos por Bruni. Da mesma forma, quando descreve (com exagero, evidentemente) as maravilhas de Florena, ele deseja atingir o espritos dos cidados para que o quadro construdo no discurso possa enfim encontrar sua efetivao. Bruni est perfeitamente consciente de que Florena no a repblica em que o direito e a liberdade imperam em todos os nveis da vida civil, mas acredita que ao apresent-la dessa maneira incentiva os cidados a zelar pelas insti-tuies e costumes que podem garantir minimamente sua presena no seio da comunidade. O povo florentino que, na Laudatio, cuida incansavelmente para que o santssimo direito esteja presente na cidade e que no suportaria viver sem a liberdade deve ser a imagem na qual os cidados de Florena iro se espelhar para orientar suas aes.

    Quase trs dcadas mais tarde, Bruni voltaria a se servir desse procedi-mento em outro texto epidtico, a Oratio in funere Iohannis Strozze equitis flo-rentinis, composta por ocasio da morte do general Nanni Strozzi, em 1427.68 O carter retrico da composio evidente, assim como a inteno poltica de Bruni. Mais uma vez, Florena associada Roma e apresentada como a grande defensora da liberdade na Itlia. Sua forma de governo estabelece o mximo possvel de liberdade e igualdade entre os cidados e, diz Bruni, uma forma de governo que completamente igual para todos chamada de

    Bruni afirma que, por um direito hereditrio, compete aos florentinos o domnio sobre todo o mundo e que toda guerra travada por Florena justa, uma vez que justa a guerra motivada ou pela defesa dos bens ou pela sua recuperao. Mas necessrio definir em que perodo Florena foi fundada pelos romanos. Bruni no tem dvidas a respeito: Florena foi construda na poca mais gloriosa de Roma, isto , antes que Csar e seu sucessores (sceleratissimis latronibus) lhe roubassem a liberdade (L. Bruni, Laudatio florentinae urbis. In: Opere letterarie e politiche di Leonardo Bruni. Organizado por P. Viti. Torino: UTET, 1996, pp. 596-8).Florena , na Laudatio, admirvel no apenas por suas aes externas mas tambm pelas inter-nas, isto , pela ordem e harmonia que prevalecem em seu interior (Laudatio florentinae urbis, pp. 632-4)De origem florentina, Strozzi morreu em combate liderando as tropas de Ferrara na luta contra Filipo Visconti, Duque de Milo e inimigo de Florena.

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    popular.69 Alm do mais, a virtude e a honestidade imperam na cidade e esta as cultiva em seus cidados com seus bons costumes e com suas insti-tuies polticas que asseguram o governo dos idneos e dos justos. No h espao para a arrogncia, as leis obrigam os soberbos a abaixarem o nariz e a se igualar gente comum, de modo que os cidados no precisam temer a ofensa de ningum e esto seguros de que dispem de igual direito de par-ticipar do governo. Como na Laudatio, Florena igualmente admirvel por sua beleza arquitetnica e pelo cultivo das artes e letras (dentre seus mritos est o ter ressuscitado a eloqncia70). A apresentao dessa imagem radiante da cidade visa mais uma vez atingir o esprito dos cidados, ligando-os a um passado glorioso e oferecendo-lhes um futuro no menos magnfico sob a condio de absorverem os valores cvicos:

    Para ele (Bruni), uma orao fnebre valia por ter uma funo cvica, assim como tinha sido para Tucdides, por dirigir-se a uma platia em busca de uma identidade coletiva e, por isso, disposta a ouvir um dis-curso cujo registro era explicitamente poltico e no terico. O que se esperava era a fala de um orador que buscasse os efeitos de uma fala pblica e no a de um humanista desejoso de convencer a seus pares. Acreditamos, portanto, que o retrato de Florena que nos oferecido na Oratio deve ser tomado como um ideal prtico, dependente ele mesmo do impacto que as imagens e figuras retricas empregadas ti-vessem sobre a audincia. O texto consolida, assim, uma imagem, um iderio e acompanha o prprio processo de secularizao da poltica que caracterizou a formao do republicanismo moderno.71

    A gerao seguinte de Bruni tender a conceder maior importncia ao as-pecto esttico da retrica, dando nfase forma do discurso ou ainda, numa radicalizao do ideal ciceroniano, transformar a retrica no fundamento do saber, como foi o caso de Lorenzo Valla.

    *Como demonstra J. Seigel, Valla estabelecer sobre novas bases a relao entre retrica e filosofia. Embora pertencesse mesma tradio ciceroniana dos ou-

    L. Bruni, Oratio in funere Iohannis Strozze equitis florentinis. In: Opere letterarie e politiche di Leonardo Bruni, op. cit., p. 716.Ibidem, p. 720.N. Bignotto, Origens do republicanismo moderno, op. cit., p. 142.

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    tros humanistas e compreendesse as duas disciplinas, em geral, nos mesmos termos de Ccero e Petrarca, a combinao que realizar delas ser sensivel-mente diferente da de seus antecessores. Ele tentar, diz Seigel, uni-las de maneira a garantir que a liberdade e o prestgio do orador no fossem jamais ameaados pelas reivindicaes do filsofo.72 Como vimos, desde Petrarca os humanistas se empenhavam em consolidar a posio da retrica frente dialtica escolstica e, em ltima instncia, frente prpria filosofia. Com Valla, a possibilidade de oposio entre eloqncia e sabedoria dissolvida na formao de um novo saber, de uma teoria geral que absorve os ensinamentos filosficos aps submet-los crtica filolgica que os libera de seus erros e ambigidades. De acordo com C. Vasoli, no se trata de uma submisso da filosofia retrica (como havia afirmado Seigel), mas da constituio de um saber que engloba toda forma de fala, e sob o controle do qual nenhum discurso pode se subtrair se ele deseja ser realmente significante.73 A retrica se transforma, por fim, em fundamento de um saber filolgico e crtico.74 Por outro lado, Valla permanece extremamente fiel perspectiva ciceroniana segundo a qual o orador deve desempenhar um papel crucial na cidade e que somente so capazes de levar a cabo essa tarefa aqueles que em sua vida pessoal se comportam de forma digna. No caso de Valla, cristo fervoroso75, o orador deve possuir uma santidade de vida associada uma dignidade de esprito excepcional, assim como elegncia do corpo e da voz. O orador de fato velut rector ac dux populi.76 Se no mais repblica que serve a orat-ria77 isso no significa que sua funo social perdeu importncia. Na verdade, seu papel educacional tende a se ampliar na medida em que penetra mais profundamente nas escolas e universidades onde a prtica pedaggica passa a ser orientada pelo ideal humanista do homo eloquens, isto , do homem de

    J. Seigel, Rhetoric and philosophy in Renaissance Humanism, op. cit., p. 168.C. Vasoli, LHumanisme Rhtorique en Italie du XVe sicle, art. cit., p. 60. Ver tambm do mesmo autor La dialettica e la retorica dellumanesimo. Invenzione e Metodo nella cultura del XV e XVI secolo. Milo: Feltrinelli, 1968.Ibidem, p. 77.Sobre a preocupao com a conciliao entre retrica clssica e cristianismo em Valla, ver seu In quartum librum elegantiarum praefatio. In: E. GArin (org.). Prosatori latini del Quattrocento, pp. 612-23, p. 620. Um bom comentrio encontramos em SEIGEL. Rhetoric and philosophy in Renaissance Humanism, op. cit., p. 154 e M. Fumaroli, LAge de lloquence. Genebra: Droz, 2002, p. 78, nota 68. Ver tambm C. Celenza, The lost Italian Renaissance. Humanists, historians, and latins legacy. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2004, pp. 85-100.C. Vasoli, LHumanisme Rhtorique en Italie du XVe sicle, art. cit., p. 65.Na poca de Valla a associao entre retrica e vida poltica republicana, tpica do perodo pr-mediceano, est enfraquecida, como veremos a seguir.

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    bem que habilidoso com as palavras (o uir bonis dicendi peritus de Quinti-liano). O que sofrer alterao a partir de Valla , sobretudo, a natureza da funo do orador e da eloqncia na vida pblica.

    Caminhando em direo a sua autonomia epistemolgica, consolidando-se na prtica educativa como meio e fim da educao, a retrica, a partir de meados do Quattrocento, conhecer uma nova aplicao na vida poltica. Apesar de a ascenso dos Medici ao poder, em 1434, no ter significado o abandono dos valores republicanos (muito menos da cultura humanista78), o papel do humanista ser reformulado e a relao entre oratria e poltica tomar outra feio. Em Florena, sob o domnio de Lorenzo, o Magnfico, a prtica do mecenato, que transformar o artista em corteso, exercer um efeito imediato sobre o humanismo e os studia humanitatis: a partir de agora, tambm no ambiente da corte esse ensino e esse saber devem se apresentar; a figura do orador passa a ser igualmente associada do corteso. Quan-do comea a desvanecer a imagem da Roma republicana na qual, observa P. Galand-Hallyn, a Florena de Salutati quis se reconhecer, comea a se dese-nhar o mundo mediceano com seus jogos de influncia e seus torneios de eloqncia79. Nesse novo contexto, o humanista colocar seu conhecimento menos a servio de uma repblica do que a servio de um prncipe:

    Se todo engajamento poltico parece de agora em diante votado ao fracasso, a retrica da ordem pblica encontra, no entanto, outros meios de se exercer; a diplomacia, a literatura propagandstica, os discursos de aparato permitem ainda ao orador brilhar e adquirir um renome pessoal, manifestando, ao mesmo tempo, sua devoo causa de seu prncipe.80

    Na obra de Angelo Poliziano (ele prprio diretamente ligado Lorenzo dei Medici) poderemos encontrar alguns exemplos dessa nova configurao da retrica no final do Quattrocento. Quando Lorenzo quase foi assassinado junto com o irmo na conjurao dos Pazzi, de 1478, Poliziano, que estava pre-sente e testemunhou o ocorrido, escreve o Pactianae coniurationes commenta-riolum em que apresenta um relato que visa persuadir, mesmo deixando de

    A respeito ver M. Jurdjevic, Civic Humanism and the Rise of the Medici. In: Renaissance quar-terly, vol. LII, n 4, 1999.P. Galand-Hallyn, La Rhtorique en Italie la Fin du Quattrocento (1475-1500). In: M. Fumaroli (org.), Histoire de la rhtorique dans lEurope moderne, op. cit., p. 139.Ibidem, pp. 139-40.

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    lado a objetividade, seus leitores do carter abominvel da ao dos Pazzi e da justia e virtude dos Medici. Quatorze anos mais tarde, na carta que enderea a Iacopo Antiquario81, a descrio da morte de Lorenzo manifesta claramente a inteno do autor de apresentar a imagem de seu protetor como a de um homem dotado de inmeras virtudes e que pode servir de exemplo para os demais homens polticos de seu tempo. Trata-se, nas palavras de P. Godman, de um espelho de prncipe escrito sobre algum que, ao menos para efeito de aparncia, era um no-prncipe.82 A carta consiste em uma espcie de orao fnebre que no obedece, no entanto, a muitas das regras do gnero. Embora no possamos dizer que Poliziano defenda uma forma de governo qualquer na carta, a exaltao das virtudes de Lorenzo mais do que um simples elogio do personagem histrico: igualmente a apresentao de um ideal de homem poltico. O momento da morte (desde Plato, passando por Bocio) aquele em que o homem revela sua verdadeira tmpera, seu carter e sua fora moral; o instante em que sua virtude colocada a prova. Assim como a morte de Scrates tornou-se emblemtica para os filsofos na Anti-gidade, a morte de Lorenzo pode servir como exemplo para quem se decide a participar da atividade poltica. Por outro lado, como no poderia deixar de ser, a carta expressa as convices de Poliziano a respeito do ensino e cultivo dos studia humanitatis e mostra suas crticas e diferenas com relao a outros humanistas de seu tempo, como Pico della Mirandola.83

    No que concerne ao papel da retrica na vida da cidade, a Oratio super Fa-bio Quintiliano et Statii Sylvus, pronunciada por Poliziano em 1480 no Studio de Florena, parece distribuir seus benefcios entre a esfera pblica e a priva-da. Poliziano, a exemplo de Plato no Fedro, recorda o poder psicaggico da oratria e, a exemplo de Ccero no De oratore, afirma sua importncia para a vida pblica. Mas ao lado dessas vantagens comunitrias, a eloqncia oferece outras tantas ao indivduo. O que poderia ser to necessrio quanto ter sempre pronta a armadura e a espada da eloqncia para se proteger a si mesmo, atacar os adversrios e defender a prpria inocncia sitiada pelos malvados?84 Mais adiante, Poliziano complementa a defesa da utilidade da

    A. Poliziano, Lettera a Iacopo Antiquario. In: GARIN (org.). Prosatori latini del Quattrocento, op. cit., pp. 886-902.P. Godman, From Poliziano to Machiavelli. Florentine Humanism in the high Renaissance. Princeton: Princeton University Press, 1998, p. 7.Para uma anlise detalhada da carta, ver P. Godman, op. cit., captulo 1.A. Poliziano, Oratio super Fabio Quintiliano et Statii Sylvus. In: GARIN (org.). Prosatori latini del Quattrocento, op. cit., p. 882.

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    eloqncia para a vida privada (talvez lanando uma crtica vida poltica de seu tempo) com o elogio da beleza que ela pode conferir existncia. utilidade se sobrepe o cuidado esttico tpico da vida de corte:

    Mas se no vamos mais ao frum, aos tribunais, s conciones, o que pode ser mais belo em uma vida retirada e tranqila, que coisa mais doce, de mais adequado a um homem culto, do que usar discursos plenos de sentenas, de palavras ornadas, de faccias gentis e refi-nadas, sem nada de rude, de insosso e de rstico? No qual tudo seja pleno de garbo, de gravidade, de doura?85

    No domnio privado, Poliziano refora a estreita ligao entre retrica e estti-ca e, se seguirmos P. Galand-Hallyn86, parece associ-la ao prazer, assimilando o retor ao corteso. Na gerao seguinte de Poliziano, essa assimilao estar plenamente realizada, como exemplificar Il libro del cortegiano de Castiglio-ne. Com efeito, no apenas a aprendizagem da composio de discursos belos e ornamentados faz parte da educao do corteso, mas a prpria vida de cor-te, regulada pela opinio e aparncia, exige de seus membros o extremo cui-dado na expresso. A sprezzatura de que fala Castiglione antes de mais nada uma qualidade retrica, pois que estetizao dos gestos com a finalidade de produzir uma imagem. Alm do mais, o ideal de homem que o corteso deve encarnar no apenas moral e esttico: ele igualmente poltico na medida em que est a servio de um prncipe. M. Fumaroli chama a ateno para a influncia do De oratore e do Orator sobre o Cortegiano e, como j vimos, o uir bonus dicendi peritus ciceroniano igualmente um ativo participante da vida da cidade. O tipo do corteso ser uma variante do Orator ciceroniano.87 Assim, ao contrrio do que ser o homem de corte engenhoso espanhola... ele no vive em uma tenso melanclica entre a interioridade contemplativa e o mundo corrompido.88 Sempre segundo Fumaroli, o corteso busca uma conciliao harmoniosa entre a idia e a sociedade dos homens, onde ele se esfora em encarn-la.89 Mas sua bela natureza no poder se expressar sob a forma da eloqncia pblica. Castiglione foi um homem educado nas cortes e apreendeu o sentido do decorum prprio aos regimes monrquicos. Por

    Ibidem, p. 882.P. Galand-Hallyn, art. Cit., pp. 138-9.M. Fumaroli, LAge de lloquence, op. cit., p. 89.Ibidem, p. 90.Ibidem.89

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    outro lado, ele aprender com Ccero a confiana na possibilidade de divulgar a sabedoria em um mundo mais cego do que fundamentalmente mau. O ideal do corteso encontrar uma possibilidade de concretizao na diploma-cia que servir de terreno de encontro e de conciliao entre o humanismo douto e o servio do Prncipe.90

    A nova funo dos embaixadores vai resguardar a aplicao poltica da retrica nos ltimos decnios do Quattrocento.91 Como agora deve permanecer por um tempo mais extenso em territrio estrangeiro, o embaixador deve apresentar relatrios que descrevam, de forma elegante e elaborada, no ape-nas caractersticas fsicas e geogrficas de um pas, mas igualmente seus aspec-tos psicolgicos, culturais.92 Dentre os humanistas do perodo que trataram do assunto, o veneziano Ermolao Barbaro merece destaque. Seu De offici legati pode ser considerado um verdadeiro tratado moral que afirma a necessidade de o embaixador dedicar-se inteiramente a sua ptria e, na tradio ciceronia-na, deve encarnar o orador ideal.93 A retrica do diplomata deve expressar modstia, reserva e conciso a fim de assegurar a estima de seus anfitries.

    A relao entre retrica e poltica no Quattrocento sofreu uma significativa alterao entre o incio e o final do sculo. Colocada a servio do iderio re-publicano com Bruni, a retrica terminar, com Barbaro, por se transformar em um elemento fundamental para a prtica diplomtica. Essa inflexo no diminuir em nada sua importncia para a cultura renascentista. No sculo XVI, na obra de Erasmo, de P. Ramus, de J. Vives, a retrica se mostrar to viva (ou mais) quanto no sculo anterior, seguindo sobretudo o caminho da filologia crtica aberto por Valla e ainda sob forte influncia do ideal ciceronia-no.94 Quanto querela entre os humanistas que defendiam fervorosamente a eloqncia e os escolsticos, ela ir se prolongar at o final do sculo XVI, at que as duas tradies culturais percam importncia e cedam espao a outras correntes intelectuais no sculo XVII. No que concerne poltica, com a derrocada quase completa dos regimes republicanos compreensvel que a arte retrica passe por uma nova definio, tanto em sua natureza quanto em sua aplicao: ela ir se tornar gradativamente mais tcnica e mais importante para a formao do homem na vida privada e o novo ideal de eloqncia, como mostrou H. Baron95, ir se vincular ao regime monrquico. A partir do

    Ibidem.P. Galand-Hallyn, art. cit., p. 140.P. Galand-Hallyn, art. cit., p. 140.Ibidem, p. 140.M. Fumaroli, Lge de lloquence, op. cit., pp. 92 e ss.H. Baron, From Petrarch to Bruni. Studies in humanist and political literature, op. cit.

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    Cinquecento, a associao entre o orador e o prncipe, como a conhecemos nos sculos precedentes, desfeita (ir se transformar nos sculos seguintes em uma retomada do problema da aparncia e da dissimulao, sendo explorada, por exemplo, nos trabalhos de Torquato Accetto96). O prncipe tem de se ocu-par agora do fortalecimento de seu domnio frente a uma conjuntura poltica que se mostra cada vez mais complexa e mutvel. Ao orador ser reservado o domnio da repblica das letras: estetizao e, ao mesmo tempo, nova pro-fissionalizao do vir bonus dicendis. Assim como a nova esfera poltica exige a construo de um novo homem poltico mais tcnico, mais preciso a nova esfera cultural requer um novo homem letrado mais rigoroso, menos universal.

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