política da estética

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Política da estética Preâmbulo. A política molda a sociedade. Bem como as artes. Quando as artes moldam, elas fazem política. Elas o fazem da mesma forma que a política faz. Não obstante, as artes deveriam ser diferentes de outras ações e atividades humanas. Isso deveria significar que elas resistem à essa tendência de moldagem. Como? Fazendo o oposto, desmoldando. Qualquer atividade molda e é moldada também. Essa mutualidade é comum para o processo de moldagem. Como toda cerca limita as fronteiras do interior, bem como do exterior. As artes são moldadas (ou eu deveria dizer domadas), por exemplo, pelo status que a sociedade as concede. Isso complica a possibilidade das artes de serem diferentes. Moldagem. a. Política Digamos que a política é a arena que distribui nosso espaço e tempo comuns. Política é a batalha sobre o material perceptivel/sensível disponível. Nesse sentido, a batalha pode ser considerada uma batalha estética. Ela lida com o que vemos, sentimos e ouvimos. A política fixa qual espaço em qual tempo pode ser usado, ou deveria ser usado para determinada atividade. Isso é um parque, aqui um hospital, lá uma rua, aqui um parquinho, lá um teatro, um monte de bares no centro, boates no subúrbio, quarteirões de casa aqui, ruas comerciais aqui, um estádio de futebol próximo ao jardim zoológico e ao metrô etc, etc. A política organiza nosso senso comum, distribuindo-o. A área comum é dividida em partes diferentes. A questão é: quem pode tomar parte, quem tem uma parte, quem é contado, quem não é contado. Quem é incluído e quem é excluído. Em outras palavras: quem tem uma parte maior e quem tem uma parte mais limitada nas muitas partes. b. Artes A arte molda através do consenso de seu regime estético. Ela molda pelo que os artistas e o meio consideram como feio ou belo, “tocante” ou “pensante”, emocianante ou entediante, dinâmico ou lento, engraçado ou triste, novo ou velho, reconhecível ou irreconhecível, confirmador ou não confirmador, de bom ou mau gosto, etc, etc. Ela molda através desse sistema de leis. Gosto é o resultado de um complexo de leis, de princípios. Gostar ou desgostar de algo é o resultado de uma precisa cadeia de reações, que finalmente culminam em um Weltbild, uma visão de mundo individual que se reduz em um estado ontológico de uma posição inequívoca. As coisas são assim, pensa-se, e as coisas devem se assim. Quase um tipo de crença. Confirma-se o Weltbild pelo que se gosta. Gosta-se de algo porque isso se encaixa na cadeia de reações particular e complexa, porém estereotípica, do indivíduo. Gostar da harmonia e do harmonioso encaixa-se com uma necessidade de equilíbrio, uma necessidade pelo complementar, não apenas na música, mas também em muitos aspectos sociais.

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Política Da Estética

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Page 1: Política Da Estética

Política da estética

Preâmbulo.

A política molda a sociedade.

Bem como as artes.

Quando as artes moldam, elas fazem política. Elas o fazem da mesma forma que a política faz.

Não obstante, as artes deveriam ser diferentes de outras ações e atividades humanas. Isso deveria significar que elas resistem à essa tendência de moldagem. Como?

Fazendo o oposto, desmoldando.

Qualquer atividade molda e é moldada também. Essa mutualidade é comum para o processo de moldagem. Como toda cerca limita as fronteiras do interior, bem como do exterior. As artes são moldadas (ou eu deveria dizer domadas), por exemplo, pelo status que a sociedade as concede.

Isso complica a possibilidade das artes de serem diferentes.

Moldagem.

a. Política

Digamos que a política é a arena que distribui nosso espaço e tempo comuns. Política é a batalha sobre o material perceptivel/sensível disponível. Nesse sentido, a batalha pode ser considerada uma batalha estética. Ela lida com o que vemos, sentimos e ouvimos.

A política fixa qual espaço em qual tempo pode ser usado, ou deveria ser usado para determinada atividade. Isso é um parque, aqui um hospital, lá uma rua, aqui um parquinho, lá um teatro, um monte de bares no centro, boates no subúrbio, quarteirões de casa aqui, ruas comerciais aqui, um estádio de futebol próximo ao jardim zoológico e ao metrô etc, etc.

A política organiza nosso senso comum, distribuindo-o. A área comum é dividida em partes diferentes.

A questão é: quem pode tomar parte, quem tem uma parte, quem é contado, quem não é contado. Quem é incluído e quem é excluído. Em outras palavras: quem tem uma parte maior e quem tem uma parte mais limitada nas muitas partes.

b. Artes

A arte molda através do consenso de seu regime estético. Ela molda pelo que os artistas e o meio consideram como feio ou belo, “tocante” ou “pensante”, emocianante ou entediante, dinâmico ou lento, engraçado ou triste, novo ou velho, reconhecível ou irreconhecível, confirmador ou não confirmador, de bom ou mau gosto, etc, etc. Ela molda através desse sistema de leis. Gosto é o resultado de um complexo de leis, de princípios. Gostar ou desgostar de algo é o resultado de uma precisa cadeia de reações, que finalmente culminam em um Weltbild, uma visão de mundo individual que se reduz em um estado ontológico de uma posição inequívoca. As coisas são assim, pensa-se, e as coisas devem se assim. Quase um tipo de crença. Confirma-se o Weltbild pelo que se gosta. Gosta-se de algo porque isso se encaixa na cadeia de reações particular e complexa, porém estereotípica, do indivíduo. Gostar da harmonia e do harmonioso encaixa-se com uma necessidade de equilíbrio, uma necessidade pelo complementar, não apenas na música, mas também em muitos aspectos sociais.

Page 2: Política Da Estética

As formas-de-arte (música, pintura, literatura, etc.) moldam através da distinção entre arte e outras atividades e elas moldam dentro da arte por suas categorias distintivas (a redefinição entre arte representativa, decorativa e conceitual).

As artes moldam também por sua natureza alegórica e artificial. Arte é sujeita à tradução, transposição, transformação, transmutação. A apreciação do jogo da arte, tanto para o artista quanto para o consumidor-de-arte é esse jogo de transferência. Um tipo de enganação: aparência é não o que parece ser e aparência é parecer ser o que não é. Da mesma forma que em todos os outros jogos, como futebol ou xadrez, deve-se estar habilitado a conhecer e apreciar as regras desse jogo complexo.

As artes moldam, bem como, no nível da representação de princípios estruturais e construturais. Veja o balé clássico, a representação de um corpo de baile em perfeito uníssono foi a representação e celebração perfeitas de uma sociedade fordista que necessitava de uma força de trabalho operando em uníssono e necessitava dessa força de trabalho e um gerenciamento acreditando nisso. A política não é apenas refletida na representação, mas também na forma como a arte é produzida, na forma como o poder é distribuído no processo de construção. As fortes relações de trabalho hierárquicas quase feudais na produção do balé clássico, em especial, e em muitas grandes produções em artes performáticas, cinematográficas e musicais (as artes não-individuais, as artes que exigem cooperação) refletem essa tão respeitada máquina de poder, fazendo da arte e dos artistas, objetos de admiração.

E atualmente, as múltiplas unidades de produção flexíveis e em pequena escala que produzem numerosos estilos e solicitações de representações altamente diferenciadas e variadas das artes e dos artistas, refletem a perfeita representação para uma sociedade que necessita de uma força de trabalho independente e flexível.

A relação das artes com a economia é tão forte que parece quase impossível não pensar na arte como sendo servil à política.

Política

A arte possui uma dimensão política, visto que suas formas sugerem, materialmente, os paradigmas da comunidade. Livros, teatro, orquestra, coros, dança, pinturas ou murais são modelos de moldagem ou desmoldagem de (aspectos de) uma comunidade. Elas moldam na medida em que reconhecem o que um livro, um teatro, uma orquestra, etc., é ou tem que representar. Elas desmoldam quando questionam essas funções. Elas desmoldam quando repensam os parâmetros de tal forma-de-arte ou quando repensam os paradigmas da comunidade. Pode-se dizer que toda arte que o fez para tornar-se famosa, repensou os parâmetros daquilo que deveria ser, e/ou o que deveria representar, seja isso um filme, uma peça de museu ou uma partitura musical.

Não a artesanalidade, o trabalho manual, o nível técnico, mas o salto, é o salto para fora do molde que finalmente foi valorizado. O salto abre um território. Fornece não raramente, ou mesmo literalmente, outra perspectiva. Geralmente após ser negada e oposta no princípio. O que antes pensava-se ser subversivo é apropriado por uma comunidade através da validação, o que é não raramente expresso através de elevados meios financeiros. O salto originalmente revolucionário é incorporado na economia de uma sociedade que valoriza a singularidade do primeiro que ousa saltar. A desmoldagem é moldada novamente. Mas onde as artes se tornam políticas? A arte é considerada política quando seu assunto é político. Isso é, quando seu assunto representa a posição de certas partes. Geralmente partes que são privadas de partes substanciais do senso comum. Partes que não tomam parte. Mulheres, homossexuais, pobres, desabrigados, negros, minorias excluídas, classe trabalhadora, etc. A arte é considerada política quando tenta politizar, a fim de autorizar os excluídos a exigirem sua fatia do bolo comum. A fim de estimulá-los a lutar por seus direitos.

Page 3: Política Da Estética

Desta forma, poderia se dizer, a arte faz política.

Da mesma forma que a arte ensina ou proclama.

Em ambos os casos não faz arte, faz política ou ensino.

Faz política mas não é político.

A arte faz política porque seu intúito é claramente a redistribuição do bolo comunal. Seu intúito não é repensar as formas como organizamos a vida e/ou as formas como vivemos em grupo. Ela apenas reorganiza e redistribui a partição já aceita. Ela não nos faz ver, sentir ou falar o espaço e tempo comunais de forma diferente. Ela não torna acessíveis partes do espaço comunal por repensar a forma como este tem sido concebido e utilizado. Ela não define ou torna acessível o espaço comum de forma que mais pessoas podem tomar parte ou mais pessoas podem compartilhar partes.

A arte pode ser política ao repensar as formas e as condições nas quais ela produz, distribui e apresenta seus produtos.

A arte é política quando torna acessível a participação de mais partes no senso comum.

A arte é política quando faz as pessoas verem, escutarem ou lerem uma parte do senso comum de forma diferente.

A arte é política quando faz as pessoas tomarem parte de forma diferente em partes do senso comum.

A arte é política na medida em que desmolda a forma como percebemos o senso comum e a forma como tomamos parte nele.