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Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 76 Poética das viagens museológicas

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Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 76

Poética das viagens museológicas

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Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 77

Diário de Bordo1

Damos início neste número à publicação dos Diários de Investigação. Inicialmente

publicados no nosso blog “Cadernos de Investigação” na plataforma Hypotheses. .

São notas tomadas na espuma dos dias, sobre os quais mais tarde construímos

reflexões de pesquisa. Tratam-se portanto de textos em bruto, com uma edição

mínima.

Em relação ao projeto publicado na plataforma, trata-se duma iniciativa recente,

que corresponde a componente de divulgação do nosso projeto de Investigação

“Heranlas Globais. Ele pode ser consultado em

http://globalherit.hypotheses.org/diario-de-bordo.

Neste número apresentamos dois Cadernos. O de Moçambique (parte 1) e o da

Raia Transfronteiriça (parte 1).

1 Pedro Pereira Leite- CES-UC

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Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 78

Moçambique

r

No Caderno de Investigação Moçambique (parte 1) apresentamos os resultados dos

nossos trabalhos de investigação realizados em Moçambique. Neles contamos com

o apoio da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, com particular destaque

do nosso amigo José Teixira; da ONG Vida, através da Patrícia Maridalho e da Filipa

Zacarias; e como sempro da Isa e do Sérgio, quer criaram as condições logísticas

no terreno. No texto, para respeito com a privacidade dos protagonistas os nomes

são alterados.

Fly TAP 281 From Lis-Mpt

A 31 mil pés de altitude em rota de cruzeiro de

789 Km/h. Estamos mais ou menos em cima do

Atlas sobre o continente africano. Esperam-me

dez horas de viagem. São 11 horas e tenho

chegada prevista para as 21:00. Em Maputo serão

10 da noite.

No aeroporto ficaram os sorrisos de despedida da

Ana, do Gabriel e do Santiago. A apreensão de

mais uma viagem a Moçambique. Talvez mesmo

algum ciúme de ficar. São sempre as mesmas

queixas de ser mal-amada. Deixei para trás a

cidade de Lisboa mergulhada na Crise.

O avião está cheio. Alguns passageiros com

crianças de colo ajeitam-se como podem. Pobres

coitados. São horas de tormento para quem está

fechado num espaço minúsculo. Eu estou nas

cadeiras do meio. Aqueles bancos de quatro

lugares. Mas sobre a coxia o que dá jeito para de

vez em quando me levantar para esticar as

pernas.

É tempo de olhar par o que vou fazer. Os

objetivos da viagem estão estabelecidos. Recolher

informações, fazer contactos, organizar ações de

investigação. Levo na bagagem Paul Ricoeur. A

memória, o silêncio e o esquecimento. Vai-me

acompanhar nesta viagem.

Reencontro com José Forjaz- O homem,

o arquiteto e o professor.

Saio de manhã cedo e sinto de novo o cheiro da

cidade das acácia vermelhas. Dormi apenas

algumas horas. Após a chegada a I e C estavam à

espera no aeroporto e fomos comer qualquer

coisa rápida. Depois pusemos as conversas em

dia. S está a descer da Ilha e Y de regresso a

Maputo para repensar os objetivos. Saio para

comprar um cartão de telemóvel. A Ana trocou-

me o meu velho cartão de Moçambique com o de

São Tomé. Um dos meus trabalhos será sentir a

poética da cidade. Vaguear pelas ruas. Sentir os

seus movimentos. Os seus cheiros.

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Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 79

Logo à saída do Centro Comercial Polana, passo

pelo atelier do Arquiteto JF e marco uma reunião

com a secretária. Levo de Coimbra o pedido de

recolher alguma informação sobre a obra do

arquiteto.

Prossigo pela cidade. No palácio dos casamentos a

música invade o ar. É sexta-feira e é sempre um

dia de muitos casamentos. Foi uma ideia

importada dos antigos países de leste após a

independência. Funciona como um registo. Em

Maputo é uma ocasião para ver ao vivo a cor e o

som.

Continuo pela Julius Nyerere. Entro no Centro

Cultural Português, no piso térreo da embaixada

de Portugal. Apresenta uma exposição de

fotografias sobre o lixo de Maputo. A lixeira de

Maputo é um ponto de atracão para crianças à

procura de alimentos. É um olhar sobre a miséria

que nos é proposto. Par uns é um modo de vida,

para os europeus é uma mostra do atraso. Uma

narrativa que nos remete para a passividade da

contemplação. É uma exaltação do lixo.

Sigo a minha busca do sabor da terra. Procuro o

perfume das acácias rubras. Sigo para o Jardim

dos namorados. Toca o novo telefone. É uma

chamada o atelier do Arquiteto Forjaz a marcar a

reunião para o meio-dia. Regresso a casa

apresado para apanhar o gravador.

Ao meio-dia entro na vivenda ao lado do Polana.

José Frojaz recebe-me de camisa branca. É a

segunda vez que o visito, depois de em 2009 ter

trabalhado nos seus arquivos. Tem um Mac em

cima da mesa. Conversamos sobre a exposição.

Exlico-lhe que pertendia uma entrevista para

construir um guião. Ele mostra-me o livro “José

Forjaz” que foi feito pela Escola Portuguesa. Tem

uma compilação da sua obra. Oferece-me o livro.

Diz.me que tem uma exposição organizada por

um amigo. O arquiteto Keil do Amaral (o Pitum de

Canas de Senhorim). Tenho os contatos. Logo no

primeiro dia tenho matéria para trabalhar.

A exposição, marcada para dezembro em

Coimbra. O livro que me oferece chama-se a

“Poética do Espaço”. Curioso não é. A arquitecto

contina a rabiscar nos esquiços que tem em cima

da mesa. É um mestre da arquitetura.

Será que as palavras mudam o mundo?

O dia amanheceu ventoso. Sento-me a trabalhar

na varanda sobre a baía de Maputo. Tenho a

cidade e os seus sons a meus pés.

Tomo o pequeno-almoço. Um croisant tostado e

um sumo de laranka servido por A a cozinheira de

mão leve da tia I.. Trago na bagagem um texto

para finalizar sobre a poética da

intersubjectividade. Escrevo toda a manhã. O

texto fica vançado.

Por volta da hora de almoço chega I. Temos um

caril de amendoim. Conversamos longamente no

terraço.

Por volta das três horas I regressa ao trabalho e

eu volto ao texto. Há que finalizar as memórias de

São Brás. Anoitece rápido sobre a cidade.

Tia I regressa com a proposta de jantar de Salada

de Marisco no porto. Saímos os três. Eu I e C.

Conversas sobre os destinos cruzados da vida. Os

filhos crescido, os que estão a crescer. Depois do

jantar uma visita à noite de Maputo. Passamos

pelo bar Shima na MaoTse-Tung. Estranho nome

este para uma avenida. Afinal era o nome que

existia em 1975, que depois mudou para Mao-

Tse-Dong. Enfim afinal ninguém liga aos nomes

das ruas na noite de Maputo. A avenida está na

fronteira com o Caniço. Os frequentadores dos

dois lados da avenida misturam-se aqui no bar.

Une-os a cerveja e o gosto pela música.

Ao fim de algumas horas regressamos a casa de

C. Mais umas horas de conversa. Olhamos paras

os cruzamentos da vida sobre vários pontos de

vista. Por vezes parece que estamos em circuito

fechado tal é a redundância. Parece que

queremos mudar o mundo com as palavras. Será

que as palavras mudam o mundo? Há que

procurar os traços da mudança.

Palavras ditas e não ditas

Amanheceu cinzento e chuvoso. Acordo à nove

horas e leio um bocado na cama. Sinto o silêncio

da cidade domingueira. A cabeça pesa um bocado

das Laurentinas e sabe bem este descanso.

Temos marcado o mata-bicho para a Baixa. A

Cristal. Damos uma volta pela cidade. Vamos ao

Shopright fazer compras para C que mudou de

casa. Vive agora numa vivenda ao pé da

residencial Palmeiras. Vamos almoçar um

esplêndido cozido à portuguesa na Matola.

Estamos em território do pai de I O avô C é uma

personagem curiosa que foi para Moçambique nos

anos cinquenta. Por lá ficou com muitas histórias

para contar. Passou pela independência. Lá ficou.

Sempre na Matola.

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Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 80

Chegamos ao restaurante. O ambiente está tenso

e cheio de tugas. Não deixa de ser curioso comer

o cozido, na matola, num sítio cheio de Tugas.

Aliás isto está cheio de tugas. Vamos ver o que aí

vem. As tensões são razões familiares. Caminhos

cruzados que pouco interessam à investigação.

Mas a suas histórias de vida são um aspeto

importante para a compreensão destas

cartografias urbanas que vou construindo.

Voltemos ao cozido. A refeição estava boa. Mas é

curioso como as tensões rapidamente tomaram

conta do ambiente. A conversa azeda nos

detalhes e acusações mútuas. Há palavras que

ditas magoam. Há palavras que não são ditas e

que também magoam. Cada um faz um juízo do

que deve ser ou não dito. Mas cada um também

acha que há coisas que não devem ser ditas. Num

tempo de inflação da palavra e da imagem a

realidade multiplica-se aos nossos olhos. Os reais

e os irreais misturam-se. Torna-se difícil marcar

uma linha de rumo.

E a propósito…Onde está o meu passaporte. Não

me digam que perdi o passaporte?

O Caminho de Djavula

Saída às 7 da madrugada para Djavula. Regresso

às 19:30, já noite dentro. Debaixo de trovoada

tropical sob Maputo acabei por gastar 200 paus

em táxi mas valeu a pena.

O dia foi espectacular. Atravessado o rio Maputo

no batelão logo pela manhã pudemos observar a

azáfama no cais. Do Catembe chegam rios de

gente para a grande cidade. Um dia de pequenos

negócios. Produtos da horta, carvão em sacas.

Todos se dirigem apressadamente para as ruas

perdendo-se no cinzento da chuva. No Catembe a

lama forma lagoas. No cais as vendedeiras de

pescado oferecem os seus produtos. Espero pelo

jeep debaixo do telheiro duma cantina.

Espero pela boleira de F á saída do cais. Encontro

dois espanhóis que vão visitar o projeto de

Djabula. Arrancamos pela picada. A estrada

nacional 201 em direcção a Bela Vista.

Atravessamos a ponte sobre o rio Tembe e

passamos por Salamanga. O grande templo Hindu

do Sul de Moçambique.

Pelo caminho fomos conversando sobre o projeto.

Os seus vários problemas e as oportunidades de

futuro. Chegados ao de Formação descemos do

Todo o Terreno. Debaixo dum embondeiro a Filipa

fez um briefing. Depois visitamos a oficina, o

velho galinheiro onde foi ensaiada uma criação de

galinhas e ovos para venda em Maputo, um

projeto que não resultou devido à distância ao

mercado. Uma oficina de mel. Olhamos a horta.

Foquei com a sensação de que o projeto está num

impasse.

Regressamos por Bela Vista. No caminho o jipe

tem um furo. Macaco com pouco balanço. O

suporte a entrar-se na lama. Falta altura.

Demorará duas horas até mudar o peneu.

Persistência e desenrascanço. Finalmente com

roda seguimos. Em Bela Vista um almoço já pela

tarde dentro de frango assado. Encanto

partilhamos uma 2M anoitece. Cheira a chuva. O

céu escurece e rebenta a chuva. Fazemos o resto

do caminho na lama, debaixo de intensa chuva.

Apanho o último batelão por uma unha negra.

Nem compro o bilhete. Vai cheio de gente.

Encontro um lugar no convés. Atravesso debaixo

duma grande agitação. Três travestis seguem no

convés para a noite da Bagamoio. Loiraças

vistosas que agitam o barco.

Discursos Cruzados

Começo o dia com uma reunião na Eduardo

Mondlane na Karl Marx, por cima da Livraria

Universitária. No edifício parece existir uma

residência universitária e uma cantina. É muito o

movimento de jovens. Pelo contrário, a livraria

parece estar em processo de dissolução. Poucos

livros nas prateleiras. Subo ao 2º andar, onde

está o escritório de AC.

Enquanto espero olho para o espaço de exposição

de arte. Entretenho-me a folhear o jornal

comemorativo dos 50 anos da UEM. Olhos os

discurso do Prof. Manuel Garrido Araújo. Professor

de Geografia e docente da UEM. Representa a

geração do 8 de Março, a geração que em 1977

toma conta da Universidade na sequência do

discurso de Samora Machel afirma que a

Universidade tem que estar ao serviço da

construção do socialismo. A questão que o jornal

levanta é procurar como é que essa geração

macrou os destinos da universidade. Um discurso

que contrasta com o discurso atual da busca de

Excelência. De procurar ligar a investigação ao

trabalho. Como é se se liga o m undo do trabalho

à universidade.

A conversa decorre com afabilidade. Falamos dos

projetos. Da questão da Rota dos Escravos da

UNESCO. A propósito de exposições conversamos

sobre a exposição “os filhos da Lua” que levou

milhares de pessoas à fortaleza de Maputo. Mais

tarde encontrarei o catálogo. Foi uma exposição

interessante que levou milhares de pessoas à

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Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 81

fortaleza e que ilustra as novas dinâmicas da zona

portuária. Com a instalação do novo museu das

pescas e a criação de uma zona de animação

turística o centro vai ter uma nova centralidade.

Será curioso saber o que vai acontecer à urna do

Gugunhanha, o herói nacional moçambicano no

interior do museu. Ficará ou será remetido para o

cemitério.

Olhares exteriores

O passaporte desapareceu. Depois da declaração

à polícia local, ala para o consulado na busca de

solução. O Consulado de Portugal em Maputo é

um edifício na Mao-Tse-Tung. É interessante

entrar no espaço e observar os funcionários.

Todos eles matem o ar de cansados como

estivessem em Portugal, o que contrasta com a

alegria de viver em Maputo que todos mostram.

Visita ao espaço de CES Aquino de Bragança.

Situado numa rua paralela á 24 de Julho, numa

vivenda ao estio colonial, é um edifício sóbrio,

limpo com guardas afáveis. Parece que se procura

uma legitimidade perdida. Uma busca às origens.

O problema da cooperação entre países é o da

aplicação dos modelos. A aplicação de modelos

exteriores sem levar em consideração as

dinâmicas instaladas leva à construção de novas

realidades. Realidade diferente das projetadas,

altaraçoes das tradições. Ligar capacidades das

pessoas é afinal isso mesmo.

Ao fim da tarde mais uma reunião sobre Roteiro

da Escravatura em Moçambique. C é um indivíduo

afável. Cortez e simpático que rapidamente se

prestou a manter uma conversa sobre a

actualização da investigação. O relatório sobre

Moçambique data de 1981 ou 91. Entretanto na

Ilha foi feito o projeto de Sidel Fumá “o Jardim da

Memória. Uma exposição que está também

presente no Museu de Arte de Maputo.

No Boletim do Arquivo Histórico de Moçambique,

no nº 8 encontra-se bastante trabalho sobre a

escravatura na Ilha. Quase tudo o que existe foi

feito por Gerad Lizang e Luís Filipe Pereira. No

entanto os estudos sobre a escravatura em

Moçambique têm um problema de base. O silêncio

sobre os traficantes. Quase todos os que têm

possibilidade de se dedicar ao estudo da

escravatura são descendentes de traficantes.

Em Inhambane encontram-se ligações entre os

libré-engagés e o envio de negros para as ilha

reunião no Indico. A banja, era o momento em

que os chefes locais e os comerciantes

portugueses que desciam de Quelimane fazia

negócios. Era entre 1727 e 17989. Ver o número

da revista do Arquivo Histórico de Moçambique

sobre Inhambane.

As culturas na Cidade

Ontem, em casa da I. Jantamos como o Z e a I O

jantar foi esmerado. Entradas de geleia com atum

e prato principal de camarão no forno.

Saio de manhã para a cidade. Inicio a busca da

Poética. Andar pela cidade. Fazer a sua

cartografia. As ruas da cidade de Maputo são

coloridas. É curioso como as capulanas estão a

desaparecer da cidade. Em vez das roupas

coloridas, das longas peças de tecido enroladas ao

corpo da mulher e das camisas tropicais dos

homens, surgem agora os fatos cinzentos dos

executivos. As mulheres, é certo, ainda ostentam

a sua africanidade nos penteados elaborados.

Aproximam-se da imagem sul-africana. Mas a

concentração urbana e o delírio do excesso e do

consumo passaram a ser um sinal característico

da cidade.

Há uma grande carga energética no ar. Os

fenómenos concentram energia. São mais visíveis

do espaço e menos duradouros no tempo. Tudo

passa rapidamente. Procuramos na cidade olhar

para alem dos olhos. Escutar o som da cidade.

Olhar para o movimento. Sentir os cheiros da

cidade.

Á porta da pastelaria Surf sou quase atropelado

por um todo o terreno vermelho. Para em cima do

passeio. Sai uma negrinha formosa. Voluptuosa

nas formas. Roupas finas ondulando ao vento.

Transporta a arrogância de quem sabe que

concentra os olhares. Será a amante do ministro?

Mas para além da ostentação da riqueza há ainda

a ostentação da pobreza. Não será bem

ostentação. Será mais um novo tipo de pobreza.

No Norte do País foi criado num Fundo de

Desenvolvimento Local com sete milhões de U$

para fazer as populações de Cabo Delgado saírem

da pobreza absoluta. Os pescadores e os

comerciantes de peixe são os beneficiários. O

objetivo é ajudar na compra de motores e novas

artes de pesca.Mas quem acaba por beneficiar são

os comerciantes, porque acabam por ter

condições para aceder aos projetos.

De acordo com os regulamentos, um pescador

pode candidatar-se a um apoio até 200.000

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Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 82

meticais para comprar o novo motor ou arte. No

entanto, como o valor é dividido por todos os

candidatos, acaba por receber apenas ¼ do que

solicita. Fica com uma dívida. Como o dinheiro

não chega para investir, acaba por gastar noutras

coisas e fica mais pobre. Antes eram pobres e

sem dívidas. Agora são pobres com dívidas.

O fundo acaba apenas por beneficiar uns quanto.

“O fundo é para os amigos”. Os pescadores são

marginalizados. Pouco são os projetos viáveis, e

quando eles surgem, são apropriados pela “máfia”

que se instala entre os dadores e os beneficiados.

Por exemplo, o caso da bomba de gasolina

apresentado em Q. foi regeitado, para um ano

mais tarde ser apresentado pelo governador de C.

que assim se apoderou dum projeto feito e pago

por outro.

Há discursos sobre o silêncio. Vozes que não se

ouvem. Ouvimos estas palavras a caminho do

complexo industrial de Salamanga. Falara A e K.

Ambos são dirigentes associativos e sentem os

problemas.

Porque é que as pessoas pobres são alegres.

Perguntou F à entrada do barco quando

regressamos de Catembe. Fiquei com a pergunta

no ar enquanto olhava ao longe os prédios de

Maputo e sentia a brisa do mar a bater-me no

rosto.A minha volta sentia a concentração de

gente. Olhei os seus rostos sorridente. F tinha

razão, eles mostram-se felizes. Vinham de muitos

lados, juntavam-se ali, naquele momento e

naquele barco, para logo que chegarem a terra

partirem lestos à procura do seu destino. Eis um

pergunta a que tenho que tentar responder.

Nessa noite fomos ao bar da estação. Estava

cheio de tugas à procura dos corpos das miúdas.

Encontros com álcool e tabaco. Fumo e ritmo. A

emergência do corpo. Realça-se o contraste com

os que vinham no barco. Há aqui uma opção de

investigação que é necessário seguir.

Participação

Trabalho em casa. Finalizo os textos sobre a

“Memória de São Brás” e o texto sobre as

“Estratégias de mediação”2. Preparo as propostas

para apresentar em Moçambique sobre os

trânsitos dos africanos pelas suas memórias.

Heranças e História. Ouço ecos de Portugal. O

encontro de Setúbal e das vontades da L. de

colocar as suas vontades sobre todas as outras.

Parece que fica demonstrado a incapacidade de

2 Publicados no nº1 desta Revista, Dezembro 2012

entender o que é participar. Vamos jantar a casa

de C frango assado com Piri-piri.

Marracuene

Domingo de manhã vamos ao Marracuene. Vamos

mata bichar numa nova padaria duns tugas. Em

Maputo abrem-se novas padaria. Os tugas quando

chegam gostam de instalar padarias. Há uma

padaria no novo Centro Comercial ao pé do

Tribunal Administrativo que tem um pão bem

tuga. Nas padarias estabelecem-se diálogos. A

reprodução dum país através dos seus gestos

como estratégia de sobrevivência. Conversas

sobre os negócios. O patrão sempre de olho

atento no balcão.

Saímos pela EN 1 em direção ao Xai-Xai. Mais ou

menos a 25 de distância surge a FACIL. Na

estrada, de início, a habitual confusão de

domingo.

A história dos Moçambicanos é igual a tantas

outras. Famílias desestruturadas. Estamos

perante 3 gerações. Uma que aqui chega, na

época colonial, para procurar sobreviver. Outra,

nacional, nasce em Moçambique e faz toda a sua

vida em Moçambique. Está hoje bem na vida e

sabe mexer-se no território, aproveitar as

oportunidades e evitar as dificuldades. A terceira

geração vive os tempos da globalização. Nasceu

em Moçambique mas tem os olhos postos no

mundo. Tem acesso ao mundo, mas não sabe

muito bem distinguir o real do virtual. São sinais

dos tempos. Uns assistiram e fizeram construir

uma nação. Criaram afilhados. Viram chegar e

partir muita gente. Uns chagavam cheios de

esperança. De vontade de fazer. Outros

chegavam com vontade de ganhar. Partiam. Uns

com saudades, outros sem vontade de voltar.

A emergência duma nação foi feita numa aliança

entre os combatentes do norte e os aculturados

do sul. A influência sul-africana vai emergindo

como contágio. O lodge sul-africano marca a

paisagem no Marracuene. Piscina, e bungalaws no

meio do mato. O mato é ainda um espaço

selvagem.

Estávamos sentados. De repente a I. levanta-se e

exclama: - Uma cobra! Uma Mamba. Rápido, dois

rapazes saltam para a estrada. Com dois paus

esmigalham a cabeça do pobre bixo que se

aventurara nos domínios dos veraneantes. Estava

à hora errada no locar errado. Não tinha

estabelecido alianças duradouras.

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Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 83

Descansado, mergulho no Indico. – Olha lá tem

cuidado com os Tubarões! Gritam-me. Este é sem

dúvida um mundo perigoso Regresso. Sento-me

numa cadeira à conversa com C Olhamos para o

mar. Ele diz-me: “sou capaz de estar uma tarde a

olhar para as ondas.“

No bar há um emregado que não fala. Ele passa

silencioso por entre as pessoas, diligente. Tem

uma estratégia de sobrevivência que passa por

não se fazer notado. Acabamos a almoçar pizza.

Regressamos atravessando o Nikomati numa

lancha. Na saída vendedores de camarões e

amendoins enxameiam o espaço. No caís uma

rapariga no bar. Um bar vazio. O que é que há de

estranho no bar vazio. Será uma estratégia de

sobrevivência.

Cai a noite em Maputo. Nesta altura do ano cai

rápida. Vamos jantar ao alentejano. J. e a sua

mulher macua vão apresentar o filho da Ilha. O

problema é sempre o visto. Aparentemente um

alemão não pode ter um filho moçambicano. Um

filho moçambicano não pode ter um visto

moçambicano para visitar a Alemanha num

passaporte alemão. A Alemanha não pevê a dupla

nacionalidade. A mulhar macua ostenta o seu

orgulho swahili.

Memorando

Mais uma reunião na UNESCO. Sou bem recebido.

Sinto o calor e o afeto dos participantes. Termino

a reunião e regresso a pé. Passo pela cooperação

holandesa. Tem como lema “Ligar as capacidades

das pessoas”. Como se ligam fragmentos de vida

perdidos. No passado domingo, quando fomos a

Marracuene assitimos a um acidente na EN1. A

dada altura, na passagem dum cruzamento, um

carro vermelho destravado atravessa-se na

estrada levando vários indivíduos pela frente e

passando por cima de outros. No carro vejo o

barulho. Corpos projetados no ar. Corpos a

controcer-se no chão. O carro perde-se no meio

da multidão. Um bramido de gente acompanha o

louco. Nós seguimo em frente. A imagem do

acidente fica. Lamentos que ecoam.

Durante a reunião caio-me a haste dos óculos.

Aproveito para procurar um oculista. Paaso pela

embaixada para saber do passaporte e ao lado

encontro um É uma loja moderna na avenida

Mao-Tsé-Tung onde fui arranjar as hastes dos

óculos. Tipo simpático. Não levou nada. Deixo

ficar quinhentos paus à mulatinhas. Frescas na

manhã abafada de Maputo. Atenderam-se com

um sorriso franco. A amante do patrão, roliça, de

pequena estatura torce o nariz à rapariga macua

de nariz largo. Presente que tem que dominar a

rapariga. Evitar que a sua frescura contagio o

entusiasmo que o patrão lhe dirigir. A vida é uma

competição.

A loja está vazia. Fresca. Mas lá fora a cidade

move-se. O movimento da rua pressente-se. O

ruído entre por entre as frestas das portas. A

frescura ordenada da loja contrasta com o bulício

da cidade. Este é um mundo isolado.

Artificializado pelo ar condicionado. O telefone

toca. A patroa atende. A rapariga macua mete

conversa comigo. Mexe em diversos objetos. Ri-

se. Levanta-se da mesa e passa à frente. Olhar

guloso por se mostrar.

Hoje janta-se em casa. De regresso passo pelo

museu de de Arte. Esqueço-me que está fechado

à segunda-feira. Tenho que lá voltar noutro dia

para ver a exposição sobre a ilha de Moçambique.

Vou visitar o Muzarte e ver se encontro alguma

coisa. Está encerrado para obras. Azar. Volto para

casa trabalhar.

O jardim da Memória

Trabalho sobre o memorando de entendimento.

Escrevo as suas linhas principais e envio por email

e saio para dar uma volta. Passo pelo museu de

geologia à procura do seu diretor. Prece que tem

um museu em mãos lá para os lados de Tete. Não

tenho sucesso. Sigo para o museu de Arte para

visitar a exposição sobre a Ilha de Moçambique. O

Jardim da memória. Olha para a exposição, tiro

umas fotos e trago os folhetos de Informação.

Sigo para a Bagamoio na baixa. Procuro a Escola

de Artes. Deixo o telefone. Regresso a casa para

trabalhar. Procura estratégias alternativas.

A noite cai depressa. Troveja e relampeja. Falta a

energia durante um bom pedaço de tempo.

Passamos o serão a jogar às cartas.

Os círculos da memória

Ainda não recebi notícias do protocolo. Vou ao

CES Aquino de Bragança, e passo pelo consulado.

De caminho encontro o Centro de Estudos

Estratégicos da CPLP. Converso com o diplomata.

Trata-se dum espaço, duma vivenda à procura de

um uso mais intenso. Não havia luz e net. O

diplomata escritor estava com os nervos em

franja. Estava com ar de quem não queria estar

por ali.

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Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 84

Regresso pela Nekrumah, onde está instalado o

quartel ao pé das construções de Pancho Guedes

e regresso pela 24 de Julho. Volto a trabalhar em

casa.Tento alguns contactos e não encontro

niguem. É o fim do mês será por causa disso que

não encontro ninguém.

Há noite fui jantar a casa do L e I Estava lá dois

colegas. Falamos da exposição da ilha, dos

círculos da memória. O W, o chato do W sempre a

brincar. Porque é que os manequins são brancos?

O Jardim da memória está construído em círculos.

O círculo íntimo, da família, o círculo do grupo, e

o círculo do mundo. A escravatura é uma

experiencia limite de ultrapassagem dos círculos

de sobrevivência.

A dualidade

Acordo cedo e leio um pouco a saborear o tempo

da manhã. Tomo banho e desço ao Natilus para

comer o croissant prensado e um sumo de

laranja. Encontro Z. Conversamos sobre Maputo.

O Z é uma personagem atenta da vida de Maputo.

Olhar arguto observa o que se está a passar.

Tenho que me despachar porque fiquei de ir à

fortaleza falar com M. Z dá-me boleia até à baixa.

Entramos na estação para beber uma Manica. É

cedo e nunca bebo antes do meio-dia, mas o bar

da estação tem aquele encanto. Aproveito par ver

a exposição sobre o Museu dos Caminhos de Ferro

que se anuncia e olhar para a galeria

Kulungwana. Tem uma exposição sobre viagens.

Trânsitos e inquietações. Conversamos

amenamente. O telemóvel toca. Era M a

perguntar se podemos alterar o encontra para a

tarde. Continuamos na conversa. Uma conversa

agradável que corro sobre o que é Moçambique,

como são os Moçambicanos.

Às duas horas despeço-me de Z e atravesso a

Bagamoio Falamos dos públicos. Dos problemas,

dos recursos disponíveis. Da motivação para fazer

coisas. Como gerir um espaço museológico de

natureza militar, que concentra heranças

coloniais, objetos de memória da libertação. A

estratégia passa por se assumir como um centro

de arte contemporânea. A fortaleza como uma

porta de entrada para a cidade. Não há galerias

em Maputo.

Saio e regresso a casa. Passo pelo CES Aquino de

Bragança. Encontro-me como J. Falamos sobre as

questões das estratégias para o Indico. Uma

conversa amena que poderá ser recuperada mais

tarde. Passo pela livraria Conhecimento na 24 de

Julho. A velha livraria Europa-America

desapareceu. Transformou-se numa loja de

decorações. Compro um livro do José Luís Cabaço

sobre a Luta de Independência. A dualidade de

Simmel A dualidade resulta das energias que se

confrontam. Uma dialéctica interpretativa do real.

Penso na questão da dualidade. Partindo duma

determinada posição, no espaço e no tempo cada

um depende do outro para observar. A

observação individual está em contexto (depende

do social). Logo os olhares são transcalares e

transtemporais. –A relação de subordinação, que

emerge da relação social potencia ou a ordem ou

a subversão da ordem. A transtemporalidade

como subversão da ordem. A tatuagem e os

piecingos como marcas do tempo. Donde que

resulta que ordem e poder é uma oraganização do

espaço e do tempo.

O silêncio das palavras escritas

Olhar para o tempo que passa. Andar por aí a

olhar o tempo. As coisas estão aqui mesmo à

nossa frente. Nós é que não as vemos. Nós não

vemos o que não perguntamos. Olhar para o

silêncio das palavras escritas. Está na altura de

criar a poética do café. Quem faz o quê e como

faz?

As personagens do Nautilus

A pastelaria Nautilus, nas esquina da 24 de Julho

com a Julius Nyerere é uma pastelaria de

monhés. Durante o dia são várias as personagens

que por aí passam. Ensaio um retrato social da

cidade.

A matrona de calças largas, longos cabelos

negros, caídos em caracóis sobre as costas, entra

apressada no café e corra para o banheiro. Está

certamente apertada com alguma inconveniência.

A cooperante, que não copera mas dá lições de

inglês e uma mulatinha de cara espantada. Ao

lado, um casal misto. Ela moreninha. Esguia. De

linhas direitas. Elástica como uma gazela. De

bunda redondinha e cheia. Ele com ares de tuga.

Com aquele ar mal-encarado, com uma espécie

de buço sobre o lábio. De camisa aos quadrados

por fora das calças, à moda dos trópicos, testa

enrrugada, franja sebenta a cair para o lado.. A

qualquer momento parece que vai cantar o fado.

A barriga já sobressai. Toma o pequeno almoço

tardio. Nos olhos pressente-se a noite escaldante

entre lençóis.

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Mais ao lado, uma consultora financeira. Branca e

loura, de fato de executivo entre apressada. Que

diabo quem se lembra de andar de fato de

executivo com este calor. Tem, é certo, uma

camisa branca. Mas uma saia travada e uma

casaquinha cinzenta retiram-lhe o sal. Usa colar

de metal e tem um olhar sem brilho. Triste!. De

quem passa horas e horas a olhar para números.

Sente-se uma ausência de vida. Está a viver

angustiada em África. Não entende a sua poética.

Será que trabalha para o FMI ou para o Banco

MUndial

Entra um casal com uma criança. Sentam-se

numa mesa e pedem sumo para a criança, bolo e

cafés para eles. Tem ar de quem vem de viagem.

Devem viver longe, no mato e parecem

incomodados com o movimento da cidade.

Sentem prazer no ar condicionado do café. A

criança faz uma birra. A birra é um sinal do seu

incómodo. Não está habitada ao frio do ar

condicionado.

Reparo que lá na montra está uma mulatinha.

Ponto estratégico para observar. Dedilha

freneticamente mensagens no telemóvel. Entra

um militar e encontra-se com ela. São dois

jovens. Ele é militar graduado com ar de que foi

tratar de qualquer assunto ao ministério enquanto

ela esperava. Têem o mundo e o tempo pela

frente.

É curioso como dentro do espaço do Nautilus os

fregueses de organizam no espçao. Os africanos

ficam à janela. No balcão. Os indianos preferem

juntar-se do lado direito de quem entra. Lá fora,

na esplanada, juntam-se da tarde as senhoras da

terra. Com o decorrer da tarde vão sendo

substituídas pelos homens. Com eles o fumo toma

conta do espaço. Os estrangeiros flutuam como

borboletas, sem saber onde cair. Em regra caiem

na primeira mesa vaga.

Em Maputo os modos de vestir mostram quem

são. Na pastelaria Nautilus, no cruzamento da 24

de Julho com a Julius Nyerere o espaço é um

ponto de encontro. Os empregados são todos

negros. Atrás do balcão, estão os donos.

Indianos. Cada um assume a sua posição no

espaço com um ar distinto. Assumir o papel diria

eu.

Os pilares da museologia informal

O Puto S faz hoje 4 anos. Estas doem.Estou de

novo à mesa do Nautilus. Hoje não tenho nada

marcado e vou perder-me pela cidade. Percorrer

as ruas de Maputo. Procurar fazer um retrato das

suas gentes e dos seus movimentos. Vou até ao

mercado do pau. A cor das gentes. O movimento.

Entro outra vez na fortaleza. O que fazer da

fortaleza. A fortaleza é um ponto de encontro e

um ponto de memórias.

De tarde sento-me no terraço a escrever. Revejo

os sete pilares do saber do Eduardo Morin.

Conhecer para além da paralaxe; Conhecimento

pertinente; Responder à condição humana;

Reconhecer a identidade de terceiros; Enfrentar

as incertezas; Compreender por meio do diálogo;

Exercitar a ética. Cruzo isso com um texto sobre

os “tempos do presente” do Miguel. Um tempo

social, de ostracismo; um tempo público que é

cada vez mais reduzido; um tempo científico que

procura relevância; um tempo de intervenção,

que procura novos caminhos; um tempo de

memória que procura a criatividade; um tempo de

parceria que procura novos parceiros.

Bem-vindo ao nosso mundo

Cruzamos Maputo em direção à Matola á procura

dum restaurante no campo de tiro. No caminho

fala-se da esperteza moçambicana. Um polícia

manda parar o carro e pede pela inspeção. O

carro novo, com menos dum ano, não precisa.

Resultado. Um estrangeiro incauto paga uma

multa sem saber. O restaurante estava fechado

para obras.

Regressamos para Maputo em direção ao mercado

do peixe, com as suas cores garridas, à procura

de caranguejo. Decidimos almoçar em casa. No

caminho olho para o movimento do espaço. Olho

para as esquinas de Maputo. Trata-se dum

modelo de venda. O monhé, com supermercado

aberto, distribui uma determinada quantidade de

mercadoria a pequenos vendedores para

venderam nas ruas da cidade. Multiplicam-se os

pontos de venda No espaço e não há faturação.

Ao invés de se concentrar numa superfície,

distribui-se. Porque é que o museu não se

constitui como uma rede de pontos de memória

ao invés de procurar concentrar. O que é que está

a desaparecer. São as donas que vendiam gasosa

na marginal A marginal, a rota do domingo está a

desaparecer.

S fez um caranguejo à moda dos Capelas. Parte-

se caranguejo em pedaços. Pica-se cebola e

cebolinho e frita-se juntamente com os pedaços

do caranguejo. Coloca-se um copo de uísque, um

piripiri. O segredo está em escolher os

caranguejos com ovas. As fêmeas não estão

secas. Almoçamos do Terraço, com vista para a

cidade. Foi um bom repasto e um fim de tarde

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fantástico. Lá mias para o fim, as tensões do clã

saltaram. Não há bom sem mau.

Hoje consome-se o imaterial. Na parede do

prédio, lá longe em letras garrafais a Vodacom

escreveu “bem-vindo ao nosso mundo”. Reflexos

da construção do mundo como um momento.

A borboleta da Nelson Mandela

No final da tarde viajamos à Matola para visitar a

casa-museu da A onde está uma belíssima

coleção de pinturas de Malagatana e Noémia de

Sousa. Retenho uma homenagem a Nelson

Mandela. Uma belíssima borboleta.

A senhora da fortaleza

A questão da cooperação portuguesa, neste

mundo de interesse parece que tem andado a

apanhar bonés. É certo que tem havido vários

projetos. Mas tenho a sensação de que em vez de

olhar para a realidade, deixa-se levar pela teoria.

Se é que tem teoria. Trabalhar com as

associações de camponeses é um desafio

interessante. Ouvir as histórias contadas pelos

mais velhos. Vozes de experiencia de vidas,

contadas na primeira pessoa, através das quais

ressoam os dramas coletivos. Histórias à volta da

fogueira são sons que falam dos tempos. Da

experiencia do passado. Dos olhos do presente.

Dos desejos de futuro.

Em Maputo ando a circular entre a Urbanidade, a

Sub-urbanidade e a agricultura. Há que pensar se

a questão da dualidade social não é uma ilusão se

não incluirmos a uma terceira dimensão A poética

como gramática do tempo e do espaço

Entre histórias de vida, regresso à fortaleza para

conversar com M a senhora da fortaleza. Formada

em gestão de eventos culturais, dedica-se à

medicina tradicional. De cabelos vermelhos, cara

jovem e arguta. Procura modernidade no

trabalho. Formada em História na Eduardo

Mondlane, tem formação em Conservação e

gestão do Património da Unesco. Dualidade entre

a tradição e a modernidade.

Mostra uma boa capacidade de fazer uma leitura

do que é a realidade em Moçambique. Tem

algumas ideias para desenvolver na Fortaleza.

Uma liga de amigos. Olha para o monumento

como um monumento património moçambicano,

Assume a sua herança. Defende que os museus

podem ser mediadores entre as universidades e

os públicos. Os monumentos devem alargar a sua

intervenção aos estudantes. A construção da

identidade moçambicana como representação

social. Procura resolver a questão de como os

maputenses se podem apropriar da fortaleza.

Interroga-se sobre o que fazer para programar.

Defende que a fortaleza deve deixar de ser um

espaço cultural aleatório. Faria falta um curso de

curta duração sobre gestão de monumentos e

conservação de objetos. Fiquei de fazer um

seminário.

Depois, da fortaleza, vamos falar com J da escola

de Artes. J tem colaborado com o Museu de Arte à

mais de 10 anos. Tem feito um trabalho com

escolas. Foi o trabalho com as escolas que levou

aos museus públicos diferentes. O problema é

fazer trabalho em dois espaços diferentes. Há que

pensar em questões com interesse para os alunos

se puderem motivar. Agora está com um projeto

para as comemorações dos 35 anos da

independência. Procura utilizar estudantes em

estágio. Vão procurar levar objetos, replicas, para

os visitantes tocarem. Algumas Histórias de vida

que vão sendo registadas.

As narrativas de Maputo

O dia amanheceu claro. O ruído da cidade invade

lentamente o quarto e insinua-se pelas cortinas.

Estou quase a terminar o livro do José Luís

Cabaço sobre os contextos da independência de

Moçambique e sobre os seus primeiros anos. O

dia anterior correu bem.

Ontem à noite apareceu lá em casa L uma

massagista Reiki. Ia fazer umas massagens, de

modo informal. Ficamos horas na conversa. A

ideia do Reiki é a busca das energias do corpo.

Fazer fluir as energias, criar equilíbrios. Procurar

os pontos de tensão, para os libertar. Uma busca

de soluções que andamos todos a procurar

Estou novamente no Nautilus a olhar o mundo

que aqui circula. A negra pestanuda, de ancas

largas com o branco sebento. Vermelhinho como

um tomate. Esta é um mundo interessante. A

globalização de Maputo traz uma aculturação. Na

outra mesa o grupo discute as questões da chuva

e de desentendimento que houve no dia anterior.

São fragmentos de vida que circulam no ar.

Os olhares de Maputo é um texto a construir.

Uma narrativa sobre as oralidades. As narrativas

mudam com as pessoas. Os homens com as

camisas de fora das calças estão a ser

substituídos pelos fardamentos da globalização.

Direitinhos, de fato e casaco, com mala de

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executivo, de andar apressado, sem ligar a

ninguém. São seres que vivem no seu mundo.

Imunes aos outros. Os homens de cinzento. Eles

e elas. A conquistarem o planeta. Elas de saltos

altos. Bem cheirosas. Com cuequinha de tanga

cor de laranja a sair da calça baixa. A perna bem

torneada. Cultivada em ginásios. Ao fim da tarde,

depois dos relatórios bem elaborados ao chefe. As

suas boquinhas debochadas. Sempre prontas a

chupar e o corpinho oleado pelo óleo de coco.

Assim à distância são intocáveis. Sentam-se e

cruzam a anca. Seduzem a todo o momento, com

todo o arsenal. Mas é só para ver. Não se pode

tocar. São intocáveis.

Chega o perito em agricultura para conversarmos

sobre projetos. Por exemplo o gado nguni: “Nguni

Catle Breed, é um boi sul africano. Era um gado

guardado pelos pastores, resultante da mistura de

zebus com os bois (Bos Indicus, com Bos Taurus).

Foi criado em África, mas preterido para criação.

Falamos dos problemas da agricultura em África.

Das queimadas como processo de fertilização das

terras. Do controlo das espécies. Projetos.

Histórias e sonhos constantemente revividos. Por

vezes tenho a sensação que estes fragmentos da

realidade trazem sons. Vozes do mundo em

movimento. É por isso que gosto de os escutar

Maputo tem as suas horas. A cidade tem cor e

movimento. A melhor hora do dia é as três da

tarde. Hora em que se sai do trabalho. As moças

arranjam-se e aperaltam-se. Nas sextas-feiras

pressente-se a festa no ar. Os perfumes tomam

conta das esquinas. Os vendedores agitam-se nos

preparativos para vendar os últimos produtos.

Estas tardes no Piri-piri, com uma imperial e uma

chamuça dão para observar a rua. Os aceleras de

Maputo. Os Honda Civic que aceleram à procura

do último rasto da luz verde tomada pelo

vermelho.

Olhares Índicos

Encontro-me ao princípio da manhã com JP no

CES Aquino de Bragança. A conversa corre solta.

O CES procura centrar o seu discurso na região a

sul. Falara do sul a partir do sul. Na região há um

comércio de bazar. É preciso entender as lógica

do comércio de bazar. É um “mercado” com as

suas características próprias. Diferente do

comércio “global” embora conviva e se aproveite

dele. Sem compreender isso é difícl atuar no

mundo indico. Os tugas ainda andam a sonhar

com o império perdido e não vêm claramente

isso.

A segurança do Indico está nas mãos da África do

Sul. A AS posiciona-se como guardiã do Índico e

da rota do cabo. Tem três submarinos e 4

fragatas. Tem feito exercícios com a marinha da

nato. A conceção de defesa da AS centra-se no

indico e estabelece alianças com a Europa e com

a Índia. Assumir a segurança do continente,

assegurar as rotas marítimas e os bancos de

pesca.

O Norte ainda olha o sul como espelho da culpa.

Hoje é preciso multiplicar os saberes alternativos.

O homem é como como retábulo do tempo. Umas

vezes abem-se algumas portas, noutras alturas

fecham-se. Nestes tempos vivem-se os tempos do

sul

No CES procura-se o Homem do Indico. Faz-se

uma antropologia das comunidade índicas

Seguindo algumas ideias de Omar Ribeiro

Thomaz. Os olhares Indicos de hoje são um

caminho de investigação.

Se olharmos para Maputo, que é uma cidade em

mudança, podemos escutar o eco dos sons da

construção. Mas essa construção vai dar aonde. O

que é que a história e a memória nos dizem. A

consciência duma narrativa desloca o olhar –

serve para passar a voz do outro.

Saio com estas palavras a ecoar. Os dias estão

curtos em Maputo. Escuta-se o vento do Indico. A

monção.

Dias curtos em Maputo

Passo pela Eduardo Mondlane. Ontem jantei chez

L com I e L uma rapriga maconde, nascida em

Moçambique, expatriada e dedicada à animação

teatral, retornada à busca das raízes. Falou-se da

moçambicanidade, dos retornos a Moçambique.

Aprender a reinventar a moçambicanidade

Aprender a cozinhar a cozinha do Índico. Vinda

dum colégio de freiras em Santarém, parte com

os pais para Tete. Retornada com saudades da

terra. Regesso numa noite de chuva. Amanhã

parto. Os dias da partida são curtos.

Aeroporto

Entro no aeroporto com antecedência para evitar

as confusões. Os objetivos traçados para a

viagem foram alcançados. Na bagagem mais

alguns livros, e material de investigação para os

próximos meses.

Passei a tarde a comer tapas com Z no Cantinho

dos Sabores. Pão e queijo acompanhados de

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tinto. Depois um passeio pela baixa, passagem

pelo Vida para dizer adeus. Almoçamos na cantina

dos professores em Maputo. Sopa de cozido com

piri-piri. Duas Manicas para fechar. Conversa com

S, uma arquiteta que esteve a trabalhar na Ilha.

Passeio pela cidade antes da última chamada para

o voo para Lisboa. Na bagagem levo a Poética de

Aristóteles e a História, Memória e Esquecimento

de Ricoeur, para acabar de ler sobre na passagem

sobre África. A História trata do particular. A

poética trata do Universal.