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Poética das viagens museológicas
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Diário de Bordo1
Damos início neste número à publicação dos Diários de Investigação. Inicialmente
publicados no nosso blog “Cadernos de Investigação” na plataforma Hypotheses. .
São notas tomadas na espuma dos dias, sobre os quais mais tarde construímos
reflexões de pesquisa. Tratam-se portanto de textos em bruto, com uma edição
mínima.
Em relação ao projeto publicado na plataforma, trata-se duma iniciativa recente,
que corresponde a componente de divulgação do nosso projeto de Investigação
“Heranlas Globais. Ele pode ser consultado em
http://globalherit.hypotheses.org/diario-de-bordo.
Neste número apresentamos dois Cadernos. O de Moçambique (parte 1) e o da
Raia Transfronteiriça (parte 1).
1 Pedro Pereira Leite- CES-UC
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Moçambique
r
No Caderno de Investigação Moçambique (parte 1) apresentamos os resultados dos
nossos trabalhos de investigação realizados em Moçambique. Neles contamos com
o apoio da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, com particular destaque
do nosso amigo José Teixira; da ONG Vida, através da Patrícia Maridalho e da Filipa
Zacarias; e como sempro da Isa e do Sérgio, quer criaram as condições logísticas
no terreno. No texto, para respeito com a privacidade dos protagonistas os nomes
são alterados.
Fly TAP 281 From Lis-Mpt
A 31 mil pés de altitude em rota de cruzeiro de
789 Km/h. Estamos mais ou menos em cima do
Atlas sobre o continente africano. Esperam-me
dez horas de viagem. São 11 horas e tenho
chegada prevista para as 21:00. Em Maputo serão
10 da noite.
No aeroporto ficaram os sorrisos de despedida da
Ana, do Gabriel e do Santiago. A apreensão de
mais uma viagem a Moçambique. Talvez mesmo
algum ciúme de ficar. São sempre as mesmas
queixas de ser mal-amada. Deixei para trás a
cidade de Lisboa mergulhada na Crise.
O avião está cheio. Alguns passageiros com
crianças de colo ajeitam-se como podem. Pobres
coitados. São horas de tormento para quem está
fechado num espaço minúsculo. Eu estou nas
cadeiras do meio. Aqueles bancos de quatro
lugares. Mas sobre a coxia o que dá jeito para de
vez em quando me levantar para esticar as
pernas.
É tempo de olhar par o que vou fazer. Os
objetivos da viagem estão estabelecidos. Recolher
informações, fazer contactos, organizar ações de
investigação. Levo na bagagem Paul Ricoeur. A
memória, o silêncio e o esquecimento. Vai-me
acompanhar nesta viagem.
Reencontro com José Forjaz- O homem,
o arquiteto e o professor.
Saio de manhã cedo e sinto de novo o cheiro da
cidade das acácia vermelhas. Dormi apenas
algumas horas. Após a chegada a I e C estavam à
espera no aeroporto e fomos comer qualquer
coisa rápida. Depois pusemos as conversas em
dia. S está a descer da Ilha e Y de regresso a
Maputo para repensar os objetivos. Saio para
comprar um cartão de telemóvel. A Ana trocou-
me o meu velho cartão de Moçambique com o de
São Tomé. Um dos meus trabalhos será sentir a
poética da cidade. Vaguear pelas ruas. Sentir os
seus movimentos. Os seus cheiros.
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Logo à saída do Centro Comercial Polana, passo
pelo atelier do Arquiteto JF e marco uma reunião
com a secretária. Levo de Coimbra o pedido de
recolher alguma informação sobre a obra do
arquiteto.
Prossigo pela cidade. No palácio dos casamentos a
música invade o ar. É sexta-feira e é sempre um
dia de muitos casamentos. Foi uma ideia
importada dos antigos países de leste após a
independência. Funciona como um registo. Em
Maputo é uma ocasião para ver ao vivo a cor e o
som.
Continuo pela Julius Nyerere. Entro no Centro
Cultural Português, no piso térreo da embaixada
de Portugal. Apresenta uma exposição de
fotografias sobre o lixo de Maputo. A lixeira de
Maputo é um ponto de atracão para crianças à
procura de alimentos. É um olhar sobre a miséria
que nos é proposto. Par uns é um modo de vida,
para os europeus é uma mostra do atraso. Uma
narrativa que nos remete para a passividade da
contemplação. É uma exaltação do lixo.
Sigo a minha busca do sabor da terra. Procuro o
perfume das acácias rubras. Sigo para o Jardim
dos namorados. Toca o novo telefone. É uma
chamada o atelier do Arquiteto Forjaz a marcar a
reunião para o meio-dia. Regresso a casa
apresado para apanhar o gravador.
Ao meio-dia entro na vivenda ao lado do Polana.
José Frojaz recebe-me de camisa branca. É a
segunda vez que o visito, depois de em 2009 ter
trabalhado nos seus arquivos. Tem um Mac em
cima da mesa. Conversamos sobre a exposição.
Exlico-lhe que pertendia uma entrevista para
construir um guião. Ele mostra-me o livro “José
Forjaz” que foi feito pela Escola Portuguesa. Tem
uma compilação da sua obra. Oferece-me o livro.
Diz.me que tem uma exposição organizada por
um amigo. O arquiteto Keil do Amaral (o Pitum de
Canas de Senhorim). Tenho os contatos. Logo no
primeiro dia tenho matéria para trabalhar.
A exposição, marcada para dezembro em
Coimbra. O livro que me oferece chama-se a
“Poética do Espaço”. Curioso não é. A arquitecto
contina a rabiscar nos esquiços que tem em cima
da mesa. É um mestre da arquitetura.
Será que as palavras mudam o mundo?
O dia amanheceu ventoso. Sento-me a trabalhar
na varanda sobre a baía de Maputo. Tenho a
cidade e os seus sons a meus pés.
Tomo o pequeno-almoço. Um croisant tostado e
um sumo de laranka servido por A a cozinheira de
mão leve da tia I.. Trago na bagagem um texto
para finalizar sobre a poética da
intersubjectividade. Escrevo toda a manhã. O
texto fica vançado.
Por volta da hora de almoço chega I. Temos um
caril de amendoim. Conversamos longamente no
terraço.
Por volta das três horas I regressa ao trabalho e
eu volto ao texto. Há que finalizar as memórias de
São Brás. Anoitece rápido sobre a cidade.
Tia I regressa com a proposta de jantar de Salada
de Marisco no porto. Saímos os três. Eu I e C.
Conversas sobre os destinos cruzados da vida. Os
filhos crescido, os que estão a crescer. Depois do
jantar uma visita à noite de Maputo. Passamos
pelo bar Shima na MaoTse-Tung. Estranho nome
este para uma avenida. Afinal era o nome que
existia em 1975, que depois mudou para Mao-
Tse-Dong. Enfim afinal ninguém liga aos nomes
das ruas na noite de Maputo. A avenida está na
fronteira com o Caniço. Os frequentadores dos
dois lados da avenida misturam-se aqui no bar.
Une-os a cerveja e o gosto pela música.
Ao fim de algumas horas regressamos a casa de
C. Mais umas horas de conversa. Olhamos paras
os cruzamentos da vida sobre vários pontos de
vista. Por vezes parece que estamos em circuito
fechado tal é a redundância. Parece que
queremos mudar o mundo com as palavras. Será
que as palavras mudam o mundo? Há que
procurar os traços da mudança.
Palavras ditas e não ditas
Amanheceu cinzento e chuvoso. Acordo à nove
horas e leio um bocado na cama. Sinto o silêncio
da cidade domingueira. A cabeça pesa um bocado
das Laurentinas e sabe bem este descanso.
Temos marcado o mata-bicho para a Baixa. A
Cristal. Damos uma volta pela cidade. Vamos ao
Shopright fazer compras para C que mudou de
casa. Vive agora numa vivenda ao pé da
residencial Palmeiras. Vamos almoçar um
esplêndido cozido à portuguesa na Matola.
Estamos em território do pai de I O avô C é uma
personagem curiosa que foi para Moçambique nos
anos cinquenta. Por lá ficou com muitas histórias
para contar. Passou pela independência. Lá ficou.
Sempre na Matola.
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Chegamos ao restaurante. O ambiente está tenso
e cheio de tugas. Não deixa de ser curioso comer
o cozido, na matola, num sítio cheio de Tugas.
Aliás isto está cheio de tugas. Vamos ver o que aí
vem. As tensões são razões familiares. Caminhos
cruzados que pouco interessam à investigação.
Mas a suas histórias de vida são um aspeto
importante para a compreensão destas
cartografias urbanas que vou construindo.
Voltemos ao cozido. A refeição estava boa. Mas é
curioso como as tensões rapidamente tomaram
conta do ambiente. A conversa azeda nos
detalhes e acusações mútuas. Há palavras que
ditas magoam. Há palavras que não são ditas e
que também magoam. Cada um faz um juízo do
que deve ser ou não dito. Mas cada um também
acha que há coisas que não devem ser ditas. Num
tempo de inflação da palavra e da imagem a
realidade multiplica-se aos nossos olhos. Os reais
e os irreais misturam-se. Torna-se difícil marcar
uma linha de rumo.
E a propósito…Onde está o meu passaporte. Não
me digam que perdi o passaporte?
O Caminho de Djavula
Saída às 7 da madrugada para Djavula. Regresso
às 19:30, já noite dentro. Debaixo de trovoada
tropical sob Maputo acabei por gastar 200 paus
em táxi mas valeu a pena.
O dia foi espectacular. Atravessado o rio Maputo
no batelão logo pela manhã pudemos observar a
azáfama no cais. Do Catembe chegam rios de
gente para a grande cidade. Um dia de pequenos
negócios. Produtos da horta, carvão em sacas.
Todos se dirigem apressadamente para as ruas
perdendo-se no cinzento da chuva. No Catembe a
lama forma lagoas. No cais as vendedeiras de
pescado oferecem os seus produtos. Espero pelo
jeep debaixo do telheiro duma cantina.
Espero pela boleira de F á saída do cais. Encontro
dois espanhóis que vão visitar o projeto de
Djabula. Arrancamos pela picada. A estrada
nacional 201 em direcção a Bela Vista.
Atravessamos a ponte sobre o rio Tembe e
passamos por Salamanga. O grande templo Hindu
do Sul de Moçambique.
Pelo caminho fomos conversando sobre o projeto.
Os seus vários problemas e as oportunidades de
futuro. Chegados ao de Formação descemos do
Todo o Terreno. Debaixo dum embondeiro a Filipa
fez um briefing. Depois visitamos a oficina, o
velho galinheiro onde foi ensaiada uma criação de
galinhas e ovos para venda em Maputo, um
projeto que não resultou devido à distância ao
mercado. Uma oficina de mel. Olhamos a horta.
Foquei com a sensação de que o projeto está num
impasse.
Regressamos por Bela Vista. No caminho o jipe
tem um furo. Macaco com pouco balanço. O
suporte a entrar-se na lama. Falta altura.
Demorará duas horas até mudar o peneu.
Persistência e desenrascanço. Finalmente com
roda seguimos. Em Bela Vista um almoço já pela
tarde dentro de frango assado. Encanto
partilhamos uma 2M anoitece. Cheira a chuva. O
céu escurece e rebenta a chuva. Fazemos o resto
do caminho na lama, debaixo de intensa chuva.
Apanho o último batelão por uma unha negra.
Nem compro o bilhete. Vai cheio de gente.
Encontro um lugar no convés. Atravesso debaixo
duma grande agitação. Três travestis seguem no
convés para a noite da Bagamoio. Loiraças
vistosas que agitam o barco.
Discursos Cruzados
Começo o dia com uma reunião na Eduardo
Mondlane na Karl Marx, por cima da Livraria
Universitária. No edifício parece existir uma
residência universitária e uma cantina. É muito o
movimento de jovens. Pelo contrário, a livraria
parece estar em processo de dissolução. Poucos
livros nas prateleiras. Subo ao 2º andar, onde
está o escritório de AC.
Enquanto espero olho para o espaço de exposição
de arte. Entretenho-me a folhear o jornal
comemorativo dos 50 anos da UEM. Olhos os
discurso do Prof. Manuel Garrido Araújo. Professor
de Geografia e docente da UEM. Representa a
geração do 8 de Março, a geração que em 1977
toma conta da Universidade na sequência do
discurso de Samora Machel afirma que a
Universidade tem que estar ao serviço da
construção do socialismo. A questão que o jornal
levanta é procurar como é que essa geração
macrou os destinos da universidade. Um discurso
que contrasta com o discurso atual da busca de
Excelência. De procurar ligar a investigação ao
trabalho. Como é se se liga o m undo do trabalho
à universidade.
A conversa decorre com afabilidade. Falamos dos
projetos. Da questão da Rota dos Escravos da
UNESCO. A propósito de exposições conversamos
sobre a exposição “os filhos da Lua” que levou
milhares de pessoas à fortaleza de Maputo. Mais
tarde encontrarei o catálogo. Foi uma exposição
interessante que levou milhares de pessoas à
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fortaleza e que ilustra as novas dinâmicas da zona
portuária. Com a instalação do novo museu das
pescas e a criação de uma zona de animação
turística o centro vai ter uma nova centralidade.
Será curioso saber o que vai acontecer à urna do
Gugunhanha, o herói nacional moçambicano no
interior do museu. Ficará ou será remetido para o
cemitério.
Olhares exteriores
O passaporte desapareceu. Depois da declaração
à polícia local, ala para o consulado na busca de
solução. O Consulado de Portugal em Maputo é
um edifício na Mao-Tse-Tung. É interessante
entrar no espaço e observar os funcionários.
Todos eles matem o ar de cansados como
estivessem em Portugal, o que contrasta com a
alegria de viver em Maputo que todos mostram.
Visita ao espaço de CES Aquino de Bragança.
Situado numa rua paralela á 24 de Julho, numa
vivenda ao estio colonial, é um edifício sóbrio,
limpo com guardas afáveis. Parece que se procura
uma legitimidade perdida. Uma busca às origens.
O problema da cooperação entre países é o da
aplicação dos modelos. A aplicação de modelos
exteriores sem levar em consideração as
dinâmicas instaladas leva à construção de novas
realidades. Realidade diferente das projetadas,
altaraçoes das tradições. Ligar capacidades das
pessoas é afinal isso mesmo.
Ao fim da tarde mais uma reunião sobre Roteiro
da Escravatura em Moçambique. C é um indivíduo
afável. Cortez e simpático que rapidamente se
prestou a manter uma conversa sobre a
actualização da investigação. O relatório sobre
Moçambique data de 1981 ou 91. Entretanto na
Ilha foi feito o projeto de Sidel Fumá “o Jardim da
Memória. Uma exposição que está também
presente no Museu de Arte de Maputo.
No Boletim do Arquivo Histórico de Moçambique,
no nº 8 encontra-se bastante trabalho sobre a
escravatura na Ilha. Quase tudo o que existe foi
feito por Gerad Lizang e Luís Filipe Pereira. No
entanto os estudos sobre a escravatura em
Moçambique têm um problema de base. O silêncio
sobre os traficantes. Quase todos os que têm
possibilidade de se dedicar ao estudo da
escravatura são descendentes de traficantes.
Em Inhambane encontram-se ligações entre os
libré-engagés e o envio de negros para as ilha
reunião no Indico. A banja, era o momento em
que os chefes locais e os comerciantes
portugueses que desciam de Quelimane fazia
negócios. Era entre 1727 e 17989. Ver o número
da revista do Arquivo Histórico de Moçambique
sobre Inhambane.
As culturas na Cidade
Ontem, em casa da I. Jantamos como o Z e a I O
jantar foi esmerado. Entradas de geleia com atum
e prato principal de camarão no forno.
Saio de manhã para a cidade. Inicio a busca da
Poética. Andar pela cidade. Fazer a sua
cartografia. As ruas da cidade de Maputo são
coloridas. É curioso como as capulanas estão a
desaparecer da cidade. Em vez das roupas
coloridas, das longas peças de tecido enroladas ao
corpo da mulher e das camisas tropicais dos
homens, surgem agora os fatos cinzentos dos
executivos. As mulheres, é certo, ainda ostentam
a sua africanidade nos penteados elaborados.
Aproximam-se da imagem sul-africana. Mas a
concentração urbana e o delírio do excesso e do
consumo passaram a ser um sinal característico
da cidade.
Há uma grande carga energética no ar. Os
fenómenos concentram energia. São mais visíveis
do espaço e menos duradouros no tempo. Tudo
passa rapidamente. Procuramos na cidade olhar
para alem dos olhos. Escutar o som da cidade.
Olhar para o movimento. Sentir os cheiros da
cidade.
Á porta da pastelaria Surf sou quase atropelado
por um todo o terreno vermelho. Para em cima do
passeio. Sai uma negrinha formosa. Voluptuosa
nas formas. Roupas finas ondulando ao vento.
Transporta a arrogância de quem sabe que
concentra os olhares. Será a amante do ministro?
Mas para além da ostentação da riqueza há ainda
a ostentação da pobreza. Não será bem
ostentação. Será mais um novo tipo de pobreza.
No Norte do País foi criado num Fundo de
Desenvolvimento Local com sete milhões de U$
para fazer as populações de Cabo Delgado saírem
da pobreza absoluta. Os pescadores e os
comerciantes de peixe são os beneficiários. O
objetivo é ajudar na compra de motores e novas
artes de pesca.Mas quem acaba por beneficiar são
os comerciantes, porque acabam por ter
condições para aceder aos projetos.
De acordo com os regulamentos, um pescador
pode candidatar-se a um apoio até 200.000
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meticais para comprar o novo motor ou arte. No
entanto, como o valor é dividido por todos os
candidatos, acaba por receber apenas ¼ do que
solicita. Fica com uma dívida. Como o dinheiro
não chega para investir, acaba por gastar noutras
coisas e fica mais pobre. Antes eram pobres e
sem dívidas. Agora são pobres com dívidas.
O fundo acaba apenas por beneficiar uns quanto.
“O fundo é para os amigos”. Os pescadores são
marginalizados. Pouco são os projetos viáveis, e
quando eles surgem, são apropriados pela “máfia”
que se instala entre os dadores e os beneficiados.
Por exemplo, o caso da bomba de gasolina
apresentado em Q. foi regeitado, para um ano
mais tarde ser apresentado pelo governador de C.
que assim se apoderou dum projeto feito e pago
por outro.
Há discursos sobre o silêncio. Vozes que não se
ouvem. Ouvimos estas palavras a caminho do
complexo industrial de Salamanga. Falara A e K.
Ambos são dirigentes associativos e sentem os
problemas.
Porque é que as pessoas pobres são alegres.
Perguntou F à entrada do barco quando
regressamos de Catembe. Fiquei com a pergunta
no ar enquanto olhava ao longe os prédios de
Maputo e sentia a brisa do mar a bater-me no
rosto.A minha volta sentia a concentração de
gente. Olhei os seus rostos sorridente. F tinha
razão, eles mostram-se felizes. Vinham de muitos
lados, juntavam-se ali, naquele momento e
naquele barco, para logo que chegarem a terra
partirem lestos à procura do seu destino. Eis um
pergunta a que tenho que tentar responder.
Nessa noite fomos ao bar da estação. Estava
cheio de tugas à procura dos corpos das miúdas.
Encontros com álcool e tabaco. Fumo e ritmo. A
emergência do corpo. Realça-se o contraste com
os que vinham no barco. Há aqui uma opção de
investigação que é necessário seguir.
Participação
Trabalho em casa. Finalizo os textos sobre a
“Memória de São Brás” e o texto sobre as
“Estratégias de mediação”2. Preparo as propostas
para apresentar em Moçambique sobre os
trânsitos dos africanos pelas suas memórias.
Heranças e História. Ouço ecos de Portugal. O
encontro de Setúbal e das vontades da L. de
colocar as suas vontades sobre todas as outras.
Parece que fica demonstrado a incapacidade de
2 Publicados no nº1 desta Revista, Dezembro 2012
entender o que é participar. Vamos jantar a casa
de C frango assado com Piri-piri.
Marracuene
Domingo de manhã vamos ao Marracuene. Vamos
mata bichar numa nova padaria duns tugas. Em
Maputo abrem-se novas padaria. Os tugas quando
chegam gostam de instalar padarias. Há uma
padaria no novo Centro Comercial ao pé do
Tribunal Administrativo que tem um pão bem
tuga. Nas padarias estabelecem-se diálogos. A
reprodução dum país através dos seus gestos
como estratégia de sobrevivência. Conversas
sobre os negócios. O patrão sempre de olho
atento no balcão.
Saímos pela EN 1 em direção ao Xai-Xai. Mais ou
menos a 25 de distância surge a FACIL. Na
estrada, de início, a habitual confusão de
domingo.
A história dos Moçambicanos é igual a tantas
outras. Famílias desestruturadas. Estamos
perante 3 gerações. Uma que aqui chega, na
época colonial, para procurar sobreviver. Outra,
nacional, nasce em Moçambique e faz toda a sua
vida em Moçambique. Está hoje bem na vida e
sabe mexer-se no território, aproveitar as
oportunidades e evitar as dificuldades. A terceira
geração vive os tempos da globalização. Nasceu
em Moçambique mas tem os olhos postos no
mundo. Tem acesso ao mundo, mas não sabe
muito bem distinguir o real do virtual. São sinais
dos tempos. Uns assistiram e fizeram construir
uma nação. Criaram afilhados. Viram chegar e
partir muita gente. Uns chagavam cheios de
esperança. De vontade de fazer. Outros
chegavam com vontade de ganhar. Partiam. Uns
com saudades, outros sem vontade de voltar.
A emergência duma nação foi feita numa aliança
entre os combatentes do norte e os aculturados
do sul. A influência sul-africana vai emergindo
como contágio. O lodge sul-africano marca a
paisagem no Marracuene. Piscina, e bungalaws no
meio do mato. O mato é ainda um espaço
selvagem.
Estávamos sentados. De repente a I. levanta-se e
exclama: - Uma cobra! Uma Mamba. Rápido, dois
rapazes saltam para a estrada. Com dois paus
esmigalham a cabeça do pobre bixo que se
aventurara nos domínios dos veraneantes. Estava
à hora errada no locar errado. Não tinha
estabelecido alianças duradouras.
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Descansado, mergulho no Indico. – Olha lá tem
cuidado com os Tubarões! Gritam-me. Este é sem
dúvida um mundo perigoso Regresso. Sento-me
numa cadeira à conversa com C Olhamos para o
mar. Ele diz-me: “sou capaz de estar uma tarde a
olhar para as ondas.“
No bar há um emregado que não fala. Ele passa
silencioso por entre as pessoas, diligente. Tem
uma estratégia de sobrevivência que passa por
não se fazer notado. Acabamos a almoçar pizza.
Regressamos atravessando o Nikomati numa
lancha. Na saída vendedores de camarões e
amendoins enxameiam o espaço. No caís uma
rapariga no bar. Um bar vazio. O que é que há de
estranho no bar vazio. Será uma estratégia de
sobrevivência.
Cai a noite em Maputo. Nesta altura do ano cai
rápida. Vamos jantar ao alentejano. J. e a sua
mulher macua vão apresentar o filho da Ilha. O
problema é sempre o visto. Aparentemente um
alemão não pode ter um filho moçambicano. Um
filho moçambicano não pode ter um visto
moçambicano para visitar a Alemanha num
passaporte alemão. A Alemanha não pevê a dupla
nacionalidade. A mulhar macua ostenta o seu
orgulho swahili.
Memorando
Mais uma reunião na UNESCO. Sou bem recebido.
Sinto o calor e o afeto dos participantes. Termino
a reunião e regresso a pé. Passo pela cooperação
holandesa. Tem como lema “Ligar as capacidades
das pessoas”. Como se ligam fragmentos de vida
perdidos. No passado domingo, quando fomos a
Marracuene assitimos a um acidente na EN1. A
dada altura, na passagem dum cruzamento, um
carro vermelho destravado atravessa-se na
estrada levando vários indivíduos pela frente e
passando por cima de outros. No carro vejo o
barulho. Corpos projetados no ar. Corpos a
controcer-se no chão. O carro perde-se no meio
da multidão. Um bramido de gente acompanha o
louco. Nós seguimo em frente. A imagem do
acidente fica. Lamentos que ecoam.
Durante a reunião caio-me a haste dos óculos.
Aproveito para procurar um oculista. Paaso pela
embaixada para saber do passaporte e ao lado
encontro um É uma loja moderna na avenida
Mao-Tsé-Tung onde fui arranjar as hastes dos
óculos. Tipo simpático. Não levou nada. Deixo
ficar quinhentos paus à mulatinhas. Frescas na
manhã abafada de Maputo. Atenderam-se com
um sorriso franco. A amante do patrão, roliça, de
pequena estatura torce o nariz à rapariga macua
de nariz largo. Presente que tem que dominar a
rapariga. Evitar que a sua frescura contagio o
entusiasmo que o patrão lhe dirigir. A vida é uma
competição.
A loja está vazia. Fresca. Mas lá fora a cidade
move-se. O movimento da rua pressente-se. O
ruído entre por entre as frestas das portas. A
frescura ordenada da loja contrasta com o bulício
da cidade. Este é um mundo isolado.
Artificializado pelo ar condicionado. O telefone
toca. A patroa atende. A rapariga macua mete
conversa comigo. Mexe em diversos objetos. Ri-
se. Levanta-se da mesa e passa à frente. Olhar
guloso por se mostrar.
Hoje janta-se em casa. De regresso passo pelo
museu de de Arte. Esqueço-me que está fechado
à segunda-feira. Tenho que lá voltar noutro dia
para ver a exposição sobre a ilha de Moçambique.
Vou visitar o Muzarte e ver se encontro alguma
coisa. Está encerrado para obras. Azar. Volto para
casa trabalhar.
O jardim da Memória
Trabalho sobre o memorando de entendimento.
Escrevo as suas linhas principais e envio por email
e saio para dar uma volta. Passo pelo museu de
geologia à procura do seu diretor. Prece que tem
um museu em mãos lá para os lados de Tete. Não
tenho sucesso. Sigo para o museu de Arte para
visitar a exposição sobre a Ilha de Moçambique. O
Jardim da memória. Olha para a exposição, tiro
umas fotos e trago os folhetos de Informação.
Sigo para a Bagamoio na baixa. Procuro a Escola
de Artes. Deixo o telefone. Regresso a casa para
trabalhar. Procura estratégias alternativas.
A noite cai depressa. Troveja e relampeja. Falta a
energia durante um bom pedaço de tempo.
Passamos o serão a jogar às cartas.
Os círculos da memória
Ainda não recebi notícias do protocolo. Vou ao
CES Aquino de Bragança, e passo pelo consulado.
De caminho encontro o Centro de Estudos
Estratégicos da CPLP. Converso com o diplomata.
Trata-se dum espaço, duma vivenda à procura de
um uso mais intenso. Não havia luz e net. O
diplomata escritor estava com os nervos em
franja. Estava com ar de quem não queria estar
por ali.
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Regresso pela Nekrumah, onde está instalado o
quartel ao pé das construções de Pancho Guedes
e regresso pela 24 de Julho. Volto a trabalhar em
casa.Tento alguns contactos e não encontro
niguem. É o fim do mês será por causa disso que
não encontro ninguém.
Há noite fui jantar a casa do L e I Estava lá dois
colegas. Falamos da exposição da ilha, dos
círculos da memória. O W, o chato do W sempre a
brincar. Porque é que os manequins são brancos?
O Jardim da memória está construído em círculos.
O círculo íntimo, da família, o círculo do grupo, e
o círculo do mundo. A escravatura é uma
experiencia limite de ultrapassagem dos círculos
de sobrevivência.
A dualidade
Acordo cedo e leio um pouco a saborear o tempo
da manhã. Tomo banho e desço ao Natilus para
comer o croissant prensado e um sumo de
laranja. Encontro Z. Conversamos sobre Maputo.
O Z é uma personagem atenta da vida de Maputo.
Olhar arguto observa o que se está a passar.
Tenho que me despachar porque fiquei de ir à
fortaleza falar com M. Z dá-me boleia até à baixa.
Entramos na estação para beber uma Manica. É
cedo e nunca bebo antes do meio-dia, mas o bar
da estação tem aquele encanto. Aproveito par ver
a exposição sobre o Museu dos Caminhos de Ferro
que se anuncia e olhar para a galeria
Kulungwana. Tem uma exposição sobre viagens.
Trânsitos e inquietações. Conversamos
amenamente. O telemóvel toca. Era M a
perguntar se podemos alterar o encontra para a
tarde. Continuamos na conversa. Uma conversa
agradável que corro sobre o que é Moçambique,
como são os Moçambicanos.
Às duas horas despeço-me de Z e atravesso a
Bagamoio Falamos dos públicos. Dos problemas,
dos recursos disponíveis. Da motivação para fazer
coisas. Como gerir um espaço museológico de
natureza militar, que concentra heranças
coloniais, objetos de memória da libertação. A
estratégia passa por se assumir como um centro
de arte contemporânea. A fortaleza como uma
porta de entrada para a cidade. Não há galerias
em Maputo.
Saio e regresso a casa. Passo pelo CES Aquino de
Bragança. Encontro-me como J. Falamos sobre as
questões das estratégias para o Indico. Uma
conversa amena que poderá ser recuperada mais
tarde. Passo pela livraria Conhecimento na 24 de
Julho. A velha livraria Europa-America
desapareceu. Transformou-se numa loja de
decorações. Compro um livro do José Luís Cabaço
sobre a Luta de Independência. A dualidade de
Simmel A dualidade resulta das energias que se
confrontam. Uma dialéctica interpretativa do real.
Penso na questão da dualidade. Partindo duma
determinada posição, no espaço e no tempo cada
um depende do outro para observar. A
observação individual está em contexto (depende
do social). Logo os olhares são transcalares e
transtemporais. –A relação de subordinação, que
emerge da relação social potencia ou a ordem ou
a subversão da ordem. A transtemporalidade
como subversão da ordem. A tatuagem e os
piecingos como marcas do tempo. Donde que
resulta que ordem e poder é uma oraganização do
espaço e do tempo.
O silêncio das palavras escritas
Olhar para o tempo que passa. Andar por aí a
olhar o tempo. As coisas estão aqui mesmo à
nossa frente. Nós é que não as vemos. Nós não
vemos o que não perguntamos. Olhar para o
silêncio das palavras escritas. Está na altura de
criar a poética do café. Quem faz o quê e como
faz?
As personagens do Nautilus
A pastelaria Nautilus, nas esquina da 24 de Julho
com a Julius Nyerere é uma pastelaria de
monhés. Durante o dia são várias as personagens
que por aí passam. Ensaio um retrato social da
cidade.
A matrona de calças largas, longos cabelos
negros, caídos em caracóis sobre as costas, entra
apressada no café e corra para o banheiro. Está
certamente apertada com alguma inconveniência.
A cooperante, que não copera mas dá lições de
inglês e uma mulatinha de cara espantada. Ao
lado, um casal misto. Ela moreninha. Esguia. De
linhas direitas. Elástica como uma gazela. De
bunda redondinha e cheia. Ele com ares de tuga.
Com aquele ar mal-encarado, com uma espécie
de buço sobre o lábio. De camisa aos quadrados
por fora das calças, à moda dos trópicos, testa
enrrugada, franja sebenta a cair para o lado.. A
qualquer momento parece que vai cantar o fado.
A barriga já sobressai. Toma o pequeno almoço
tardio. Nos olhos pressente-se a noite escaldante
entre lençóis.
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 85
Mais ao lado, uma consultora financeira. Branca e
loura, de fato de executivo entre apressada. Que
diabo quem se lembra de andar de fato de
executivo com este calor. Tem, é certo, uma
camisa branca. Mas uma saia travada e uma
casaquinha cinzenta retiram-lhe o sal. Usa colar
de metal e tem um olhar sem brilho. Triste!. De
quem passa horas e horas a olhar para números.
Sente-se uma ausência de vida. Está a viver
angustiada em África. Não entende a sua poética.
Será que trabalha para o FMI ou para o Banco
MUndial
Entra um casal com uma criança. Sentam-se
numa mesa e pedem sumo para a criança, bolo e
cafés para eles. Tem ar de quem vem de viagem.
Devem viver longe, no mato e parecem
incomodados com o movimento da cidade.
Sentem prazer no ar condicionado do café. A
criança faz uma birra. A birra é um sinal do seu
incómodo. Não está habitada ao frio do ar
condicionado.
Reparo que lá na montra está uma mulatinha.
Ponto estratégico para observar. Dedilha
freneticamente mensagens no telemóvel. Entra
um militar e encontra-se com ela. São dois
jovens. Ele é militar graduado com ar de que foi
tratar de qualquer assunto ao ministério enquanto
ela esperava. Têem o mundo e o tempo pela
frente.
É curioso como dentro do espaço do Nautilus os
fregueses de organizam no espçao. Os africanos
ficam à janela. No balcão. Os indianos preferem
juntar-se do lado direito de quem entra. Lá fora,
na esplanada, juntam-se da tarde as senhoras da
terra. Com o decorrer da tarde vão sendo
substituídas pelos homens. Com eles o fumo toma
conta do espaço. Os estrangeiros flutuam como
borboletas, sem saber onde cair. Em regra caiem
na primeira mesa vaga.
Em Maputo os modos de vestir mostram quem
são. Na pastelaria Nautilus, no cruzamento da 24
de Julho com a Julius Nyerere o espaço é um
ponto de encontro. Os empregados são todos
negros. Atrás do balcão, estão os donos.
Indianos. Cada um assume a sua posição no
espaço com um ar distinto. Assumir o papel diria
eu.
Os pilares da museologia informal
O Puto S faz hoje 4 anos. Estas doem.Estou de
novo à mesa do Nautilus. Hoje não tenho nada
marcado e vou perder-me pela cidade. Percorrer
as ruas de Maputo. Procurar fazer um retrato das
suas gentes e dos seus movimentos. Vou até ao
mercado do pau. A cor das gentes. O movimento.
Entro outra vez na fortaleza. O que fazer da
fortaleza. A fortaleza é um ponto de encontro e
um ponto de memórias.
De tarde sento-me no terraço a escrever. Revejo
os sete pilares do saber do Eduardo Morin.
Conhecer para além da paralaxe; Conhecimento
pertinente; Responder à condição humana;
Reconhecer a identidade de terceiros; Enfrentar
as incertezas; Compreender por meio do diálogo;
Exercitar a ética. Cruzo isso com um texto sobre
os “tempos do presente” do Miguel. Um tempo
social, de ostracismo; um tempo público que é
cada vez mais reduzido; um tempo científico que
procura relevância; um tempo de intervenção,
que procura novos caminhos; um tempo de
memória que procura a criatividade; um tempo de
parceria que procura novos parceiros.
Bem-vindo ao nosso mundo
Cruzamos Maputo em direção à Matola á procura
dum restaurante no campo de tiro. No caminho
fala-se da esperteza moçambicana. Um polícia
manda parar o carro e pede pela inspeção. O
carro novo, com menos dum ano, não precisa.
Resultado. Um estrangeiro incauto paga uma
multa sem saber. O restaurante estava fechado
para obras.
Regressamos para Maputo em direção ao mercado
do peixe, com as suas cores garridas, à procura
de caranguejo. Decidimos almoçar em casa. No
caminho olho para o movimento do espaço. Olho
para as esquinas de Maputo. Trata-se dum
modelo de venda. O monhé, com supermercado
aberto, distribui uma determinada quantidade de
mercadoria a pequenos vendedores para
venderam nas ruas da cidade. Multiplicam-se os
pontos de venda No espaço e não há faturação.
Ao invés de se concentrar numa superfície,
distribui-se. Porque é que o museu não se
constitui como uma rede de pontos de memória
ao invés de procurar concentrar. O que é que está
a desaparecer. São as donas que vendiam gasosa
na marginal A marginal, a rota do domingo está a
desaparecer.
S fez um caranguejo à moda dos Capelas. Parte-
se caranguejo em pedaços. Pica-se cebola e
cebolinho e frita-se juntamente com os pedaços
do caranguejo. Coloca-se um copo de uísque, um
piripiri. O segredo está em escolher os
caranguejos com ovas. As fêmeas não estão
secas. Almoçamos do Terraço, com vista para a
cidade. Foi um bom repasto e um fim de tarde
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 86
fantástico. Lá mias para o fim, as tensões do clã
saltaram. Não há bom sem mau.
Hoje consome-se o imaterial. Na parede do
prédio, lá longe em letras garrafais a Vodacom
escreveu “bem-vindo ao nosso mundo”. Reflexos
da construção do mundo como um momento.
A borboleta da Nelson Mandela
No final da tarde viajamos à Matola para visitar a
casa-museu da A onde está uma belíssima
coleção de pinturas de Malagatana e Noémia de
Sousa. Retenho uma homenagem a Nelson
Mandela. Uma belíssima borboleta.
A senhora da fortaleza
A questão da cooperação portuguesa, neste
mundo de interesse parece que tem andado a
apanhar bonés. É certo que tem havido vários
projetos. Mas tenho a sensação de que em vez de
olhar para a realidade, deixa-se levar pela teoria.
Se é que tem teoria. Trabalhar com as
associações de camponeses é um desafio
interessante. Ouvir as histórias contadas pelos
mais velhos. Vozes de experiencia de vidas,
contadas na primeira pessoa, através das quais
ressoam os dramas coletivos. Histórias à volta da
fogueira são sons que falam dos tempos. Da
experiencia do passado. Dos olhos do presente.
Dos desejos de futuro.
Em Maputo ando a circular entre a Urbanidade, a
Sub-urbanidade e a agricultura. Há que pensar se
a questão da dualidade social não é uma ilusão se
não incluirmos a uma terceira dimensão A poética
como gramática do tempo e do espaço
Entre histórias de vida, regresso à fortaleza para
conversar com M a senhora da fortaleza. Formada
em gestão de eventos culturais, dedica-se à
medicina tradicional. De cabelos vermelhos, cara
jovem e arguta. Procura modernidade no
trabalho. Formada em História na Eduardo
Mondlane, tem formação em Conservação e
gestão do Património da Unesco. Dualidade entre
a tradição e a modernidade.
Mostra uma boa capacidade de fazer uma leitura
do que é a realidade em Moçambique. Tem
algumas ideias para desenvolver na Fortaleza.
Uma liga de amigos. Olha para o monumento
como um monumento património moçambicano,
Assume a sua herança. Defende que os museus
podem ser mediadores entre as universidades e
os públicos. Os monumentos devem alargar a sua
intervenção aos estudantes. A construção da
identidade moçambicana como representação
social. Procura resolver a questão de como os
maputenses se podem apropriar da fortaleza.
Interroga-se sobre o que fazer para programar.
Defende que a fortaleza deve deixar de ser um
espaço cultural aleatório. Faria falta um curso de
curta duração sobre gestão de monumentos e
conservação de objetos. Fiquei de fazer um
seminário.
Depois, da fortaleza, vamos falar com J da escola
de Artes. J tem colaborado com o Museu de Arte à
mais de 10 anos. Tem feito um trabalho com
escolas. Foi o trabalho com as escolas que levou
aos museus públicos diferentes. O problema é
fazer trabalho em dois espaços diferentes. Há que
pensar em questões com interesse para os alunos
se puderem motivar. Agora está com um projeto
para as comemorações dos 35 anos da
independência. Procura utilizar estudantes em
estágio. Vão procurar levar objetos, replicas, para
os visitantes tocarem. Algumas Histórias de vida
que vão sendo registadas.
As narrativas de Maputo
O dia amanheceu claro. O ruído da cidade invade
lentamente o quarto e insinua-se pelas cortinas.
Estou quase a terminar o livro do José Luís
Cabaço sobre os contextos da independência de
Moçambique e sobre os seus primeiros anos. O
dia anterior correu bem.
Ontem à noite apareceu lá em casa L uma
massagista Reiki. Ia fazer umas massagens, de
modo informal. Ficamos horas na conversa. A
ideia do Reiki é a busca das energias do corpo.
Fazer fluir as energias, criar equilíbrios. Procurar
os pontos de tensão, para os libertar. Uma busca
de soluções que andamos todos a procurar
Estou novamente no Nautilus a olhar o mundo
que aqui circula. A negra pestanuda, de ancas
largas com o branco sebento. Vermelhinho como
um tomate. Esta é um mundo interessante. A
globalização de Maputo traz uma aculturação. Na
outra mesa o grupo discute as questões da chuva
e de desentendimento que houve no dia anterior.
São fragmentos de vida que circulam no ar.
Os olhares de Maputo é um texto a construir.
Uma narrativa sobre as oralidades. As narrativas
mudam com as pessoas. Os homens com as
camisas de fora das calças estão a ser
substituídos pelos fardamentos da globalização.
Direitinhos, de fato e casaco, com mala de
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 87
executivo, de andar apressado, sem ligar a
ninguém. São seres que vivem no seu mundo.
Imunes aos outros. Os homens de cinzento. Eles
e elas. A conquistarem o planeta. Elas de saltos
altos. Bem cheirosas. Com cuequinha de tanga
cor de laranja a sair da calça baixa. A perna bem
torneada. Cultivada em ginásios. Ao fim da tarde,
depois dos relatórios bem elaborados ao chefe. As
suas boquinhas debochadas. Sempre prontas a
chupar e o corpinho oleado pelo óleo de coco.
Assim à distância são intocáveis. Sentam-se e
cruzam a anca. Seduzem a todo o momento, com
todo o arsenal. Mas é só para ver. Não se pode
tocar. São intocáveis.
Chega o perito em agricultura para conversarmos
sobre projetos. Por exemplo o gado nguni: “Nguni
Catle Breed, é um boi sul africano. Era um gado
guardado pelos pastores, resultante da mistura de
zebus com os bois (Bos Indicus, com Bos Taurus).
Foi criado em África, mas preterido para criação.
Falamos dos problemas da agricultura em África.
Das queimadas como processo de fertilização das
terras. Do controlo das espécies. Projetos.
Histórias e sonhos constantemente revividos. Por
vezes tenho a sensação que estes fragmentos da
realidade trazem sons. Vozes do mundo em
movimento. É por isso que gosto de os escutar
Maputo tem as suas horas. A cidade tem cor e
movimento. A melhor hora do dia é as três da
tarde. Hora em que se sai do trabalho. As moças
arranjam-se e aperaltam-se. Nas sextas-feiras
pressente-se a festa no ar. Os perfumes tomam
conta das esquinas. Os vendedores agitam-se nos
preparativos para vendar os últimos produtos.
Estas tardes no Piri-piri, com uma imperial e uma
chamuça dão para observar a rua. Os aceleras de
Maputo. Os Honda Civic que aceleram à procura
do último rasto da luz verde tomada pelo
vermelho.
Olhares Índicos
Encontro-me ao princípio da manhã com JP no
CES Aquino de Bragança. A conversa corre solta.
O CES procura centrar o seu discurso na região a
sul. Falara do sul a partir do sul. Na região há um
comércio de bazar. É preciso entender as lógica
do comércio de bazar. É um “mercado” com as
suas características próprias. Diferente do
comércio “global” embora conviva e se aproveite
dele. Sem compreender isso é difícl atuar no
mundo indico. Os tugas ainda andam a sonhar
com o império perdido e não vêm claramente
isso.
A segurança do Indico está nas mãos da África do
Sul. A AS posiciona-se como guardiã do Índico e
da rota do cabo. Tem três submarinos e 4
fragatas. Tem feito exercícios com a marinha da
nato. A conceção de defesa da AS centra-se no
indico e estabelece alianças com a Europa e com
a Índia. Assumir a segurança do continente,
assegurar as rotas marítimas e os bancos de
pesca.
O Norte ainda olha o sul como espelho da culpa.
Hoje é preciso multiplicar os saberes alternativos.
O homem é como como retábulo do tempo. Umas
vezes abem-se algumas portas, noutras alturas
fecham-se. Nestes tempos vivem-se os tempos do
sul
No CES procura-se o Homem do Indico. Faz-se
uma antropologia das comunidade índicas
Seguindo algumas ideias de Omar Ribeiro
Thomaz. Os olhares Indicos de hoje são um
caminho de investigação.
Se olharmos para Maputo, que é uma cidade em
mudança, podemos escutar o eco dos sons da
construção. Mas essa construção vai dar aonde. O
que é que a história e a memória nos dizem. A
consciência duma narrativa desloca o olhar –
serve para passar a voz do outro.
Saio com estas palavras a ecoar. Os dias estão
curtos em Maputo. Escuta-se o vento do Indico. A
monção.
Dias curtos em Maputo
Passo pela Eduardo Mondlane. Ontem jantei chez
L com I e L uma rapriga maconde, nascida em
Moçambique, expatriada e dedicada à animação
teatral, retornada à busca das raízes. Falou-se da
moçambicanidade, dos retornos a Moçambique.
Aprender a reinventar a moçambicanidade
Aprender a cozinhar a cozinha do Índico. Vinda
dum colégio de freiras em Santarém, parte com
os pais para Tete. Retornada com saudades da
terra. Regesso numa noite de chuva. Amanhã
parto. Os dias da partida são curtos.
Aeroporto
Entro no aeroporto com antecedência para evitar
as confusões. Os objetivos traçados para a
viagem foram alcançados. Na bagagem mais
alguns livros, e material de investigação para os
próximos meses.
Passei a tarde a comer tapas com Z no Cantinho
dos Sabores. Pão e queijo acompanhados de
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 88
tinto. Depois um passeio pela baixa, passagem
pelo Vida para dizer adeus. Almoçamos na cantina
dos professores em Maputo. Sopa de cozido com
piri-piri. Duas Manicas para fechar. Conversa com
S, uma arquiteta que esteve a trabalhar na Ilha.
Passeio pela cidade antes da última chamada para
o voo para Lisboa. Na bagagem levo a Poética de
Aristóteles e a História, Memória e Esquecimento
de Ricoeur, para acabar de ler sobre na passagem
sobre África. A História trata do particular. A
poética trata do Universal.