poetas o último romance de josé cardoso pires portuenses...

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Poetas p ortuenses QUI cerca de sessenta anos , mais exactamente em 1928 e . o intelectual portuense João Pau- ire (Mário) fez publicar no Porto, conta própri a, pelo que se depreen- falta de referências , para além das itantes à composição e impressão 1pografi a Civilização, e à distribui- .atribuída a uma livraria da cidade, gredior , uma antologia chamada s Portu enses, em dois volumes. uer de st es volumes muito que areteu das livrarias, certamente, e h oje. no máximo , encontrável em bistas. Não será propriamente o uma superior exigência qualitativa ria classificar de preciosidade . uma raridade . É, pelo menos, uma que ainda hoje nos pode suscitar a curiosidade. Veremos porquê. ·o Paulo Freire (Mário), um nome não de todo caído no esquecimen- Autor duma obra vasta em diversos 'n ios: a poesia. a prosa, a camilia- Tudo mai s ou menos esquecível, z. embora não tanto o feito nos nos da crítica e d.a actualidade, que a ·idade jornalística proporcionou ou ocou. pelo empenho nos problemas 'cos. sociais e culturais do tempo, 10 e 20. neste século. e que terá, 's. alguma importância, pelo menos u mental. A maior parte desta obra, porém, é iso dizer que nem a conhecemos, logo pP.la sua vastidão. A relação titulos pode ver-se em qualquer dos ·mos livros que o autor publicou. nos ·s volumes · desta antologia, por mplo. Mas supomos que não se trata últimas obras do autor: João Paulo ·re. pseudónimo Mário, polígrafo e lista . dizem-nos os livros que nas- em 1885 e viveu até 1953. Poetas Portuenses , no primeiro vo- figuram 53 poetas. seriados por mcronológica , de Diogo e 's Pereira Brandão a Ramalho Orti- , e Sousa Viterbo e Vaz Passos, ou · . do classicismo quinhentista até à !idade de então, anos 20 deste sé- . A maior parte é do século XIX, ou ·.do Romantismo, e, principalmen- do Ultra-Romantismo que, como é 'do, conheceu no Porto larga e <le- da voga. Avultam, naturalmente, como Tomaz António Gonzagà, xandre Braga , Almeida Garrett, Plácido , Coelho Lousada, Pinheiro Idas, António Nobre, Augusto Luso, aldo Gama, Faustino Xavier de vais, Guilherme Braga, Júlio Diniz, s de Passos, Agostinho de Cam- , Alberto Pimentel, Ramalho Orti- . , embora nem todos por motivos que prendem com o significado ou a re- sentatividade da obra poética que i xaram legada à posteridade. Gonza- , Garrett, Soares de Passos e António re , por exemplo, são referências agáveis da história da poesia portu- a. Outros terão feito coisas mais portantes noutros domínios, e nem to , ou menos, no domínio da poesia: ·o Paulo Freire (Mário) incluiu-os, mente porque as intenções e os que nortearam o seu trabalho · tinham muito a ver com maiores igências. Visar-se-ia apenas reunir livro autores de poesia que tivessem Con1inua n<i p;íg . J SUPLEMENTO SEMANAL DO «DIÁRIO DE LISBOA». SAI ÀS QUINTAS-FEIRAS. NÃO PODE VENDER-SE SEPARADAMENTE DO RESTO DA EDIÇÃO. CORRES- RUA LUZ SORIANO 44 , 1200 LISBOA . TELEF. 32 02 71/32 02 72. O último romance de José Cardoso Pires J •• N." 336 «Alexandra Alpha» e o desmantelar dos mitos lusitanos por Urbano Tavares Rodrigues SUPERIOR a «Ü Delfim »? Diferente, mas ao mesmo nível. Após a secura deliberada de . «A Balada da Praia dos Cães», José Cardoso Pires escreve um romance onde a invenção estilística e verbal é permanente, onde a análise da realidade portuguesa, dos seus grandes mitos, os seus lugares-comuns, dos seus deuses tutelares é levada a cabo por um humor ora acerbo ora despejadamente chocarreiro, que tudo revolve e subverte. « Alexandre Alpha » é uma longa , densa, céptica narrativa circular que caldeia a ironia e a ternura, o sar- casmo e o encantamento e faz evo- luir no tempo e com ele mudar, desabrochar, definir-se, ao sabor dos ses meandros e dos seus preci- pícios, uma mão-<:heia de persona- gens paradigmáticas. Um início poético e dramático, de estonteante beleza, um final igualmente dramá- tico, tocado de fervor e de grandeza, como o começo. Da queda do anjo vermelho, que se esmaga nos ro- chedos da Ponta do Arpoador à as - censão e à morte das duas «manas » numa avioneta de asa delta, pilotada por um padre revolucionário, trans- corre o dia-a-dia de um país e de uma cidade, cuja vida morna é so- bressaltada por uns quantos factos marcantes - a queda de Salazar da cadeira, a morte do pai e o velório em Beja, a fuga de um cineasta vigarista, a prisão do faquir, o arqui- tecto Nuno agarrado pela PIDE. O mais são rumores do Maio francês, bebedeiras do Opus Night, conver- sas do bar Crocodilo ou de salão (caricaturas, aliás, fabulosas). Até que - e as frases ganham então uma frescura luminosa - chegam os dias novos de Abril: as horas do Largo do Carmo, o abrir das pri- sões, tudo o que se seguiu, a louca fraternidade dos cravos, o teatro na rua, a esperança em chama, a revo- lução autêntica cercada de ameaças e algum carnaval (até em volta de Alexandra, na Alpha Linn) a miná- -la. São vários os processos de enun- ciação que José Cardoso Pires aqui · adopta. um narrador heterodie- gético responsável pelo fluxo nar- rativo, mas com ele concorrem fitas gravadas, apontamentos ocasionais da personagem nuclear - os «pa- péis de Alexandre Alpha » -, mi- cronarrativas da responsabilidade de outros agentes diegéticos (as fotos de Diogo Sena, a Parábola da Mulher Dragão, etc.). E fichas de relatório policial (como na Balada): assim nos é contada a noite da prisão do Nuno L. Certa familiaridade com o ro - mance norte-americano pelo documento (Truman Capote no seu melhor) pressente-se nesta arte efabulatória, embora a originali- dade do talento de Cardoso Pires se afirme vigorosamente na utilização e na reformulação desses recursos narrativos e, de um modo a que o leitor experiente tem de render-se, no discurso espirituoso e incisivo, na técnica de bem contar com a palavra justa. Da língua comum, que Cardoso Pires bem conhece, língua dos bares e das ruas, dos bêbados, das putas, dos marginais impressionante, de resto, o poder mimético que o autor exibe neste livro), arranca ele o seu estilo pessoalíssimo. Diz Mikhail Bakhtine que «O estilo individual de um escritor nasce e desenvolve-se ( ... )no fervilhar da vida ideológica. A sua dinâmica é, antes de mais, a transformação, na história, de ava- liações geradoras de formas » (1 ). Conceitos que se aplicam exem- plarmente ao texto de Cardoso Pi- res. Se o riso é progressista, como garantia Brecht, Alexandra Alpha ilustra bem esse princípio. Mas im- porta acrescentar que esse riso tem quase sempre um reverso ou um eco amargo. Neste romance de cópulas e copos em que os heróis matam o tempo ranhoso da ordem superior- mente fixada nas salas de descon - versar e nos círculos de mijar fine- zas culturais (Bernardo Bernardes, mestre da palavra barthesiana, se- nhor de muitas subtilezas e de uma informação riqu1ss1ma, intima- mente troçado por Alexandra Alpha: « Luís de Camões ou Luís de Camus?» ), as personagens constroem -se pelos comportamen- tos e pelo discurso próprio. É um idiolecto, por vezes à beira do dia- lecto, que o transmontano Opus Night fala, código de bar, machista, da noite boémia, salpicado de pro- vérbios, figuras pitorescas da direita « torta ». Inexcedível de goro e de significado a cena em que, humi- lhado e atordoado, ele contempla, numa rua da wna do Cais do Sodré, um mural de Abril, na companhia casual de um ébrio que lamenta o canário perdido e invectiva uma au- sente interlocutora. São os oportunistas, nem nem lá, sempre na crista da onda cultural (Sena, Fragoso, Bemardes)osalvos mais directos das setas envenenadas QUINTA-FEIRA, 7 DE JANEIRO DE 1988 - e não esqueçamos que Alexan- dra, a do «Corpo ingrato », é quem melhor os vê, quem detém por mais tempo o foco narrativo, embora Sofia Bonifrates , outra prodigiosa escultura verbal, amorosamente, isto é, sardonicamente, composta, ou recomposta, atravesse amiúde o texto e o encha por vezes com a sua presença tão anos sessenta (pes- quisa etnográfica, subsídios, dormir com o povo na cama, fintas ao risco da prisão ... ) O sério e o jocoso andam tanto de mãos dadas neste livro que nele a anedota é por vezes tristíssima e o sublime roça pela caricato. Bonecos de ouro e lama : João de Berlengas, duro como uma estaca, generoso e agiota, com os seus coelhos licomes e o fantasma da cadela caçadora . Romance de mil estórias , mas sem intriga clássica, centra boa parte do seu discorrer no tempo em tomo da invenção ou da descoberta do Menino das Bruxas, ou Doutor- -Soldado, que comove a carne de Alexandra e volta impotente da guerra, até que o 25 de Abril o restitui à acção, colocando-0 no lugar exacto. Vários feixes digéticos vão ilu- minando a complexa relação entre Alexandra e Beto, em que há, por parte dela, a saudade de W aldir, o· amante perfeito, e marcas dúbias da maternidade; do lado dele, a busca da identidade, entre o afecto e a rejeição da mana madrasta, o pudor que se enfurece e a sombra do in- cesto, a esquivança da adolescên- cia, tanta coisa mais, apenas suge- rida, insinuada. Aliás, que de identidade falá- mos, diga-se que Alexandra Alpha, discurso sobre dois tempos históricós, é - Cardoso Pires o adiantou numa entrevista (2) - uma metáfora de Portugal. Um desmantelar da feira dos mitos. E também um hino à Mulher, à mulher como Alexandra , com o seu fervor de liberdade, o seu «Corpo sem me- mória ». E ainda, por entre uma flo- resta de acesas gargalhadas, a evo- cação luminosa e nostálgica da Re- volução perdida . (1) Todorov, Bakhtine - Le Príncipe Dialogique, Editions du Seuil, Paris, 1981, p.p. 256,257. 2) Entrevista de Francisco José Viegas no primeiro número de « Ler Livros e Leito- res». Ler Escrever Pág. 1

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Page 1: Poetas O último romance de José Cardoso Pires portuenses ...hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/EFEMERIDES/josecardosopires/Rece… · O sério e o jocoso andam tanto de mãos dadas

Poetas portuenses QUI há cerca de sessenta anos , mais exactamente em 1928 e . o intelectual portuense João Pau­ire (Mário) fez publicar no Porto,

conta própria, pelo que se depreen­falta de referências , para além das itantes à composição e impressão

1pografia Civilização, e à distribui­.atribuída a uma livraria da cidade,

gredior, uma antologia chamada s Portuenses, em dois volumes. uer destes volumes há muito que areteu das livrarias , certamente, e hoje. no máximo , encontrável em bistas. Não será propriamente o

uma superior exigência qualitativa ria classificar de preciosidade . uma raridade . É, pelo menos, uma que ainda hoje nos pode suscitar a curiosidade. Veremos porquê.

·o Paulo Freire (Mário), um nome não de todo caído no esquecimen-

Autor duma obra vasta em diversos 'nios: a poesia. a prosa, a camilia­Tudo mais ou menos esquecível, z. embora não tanto o feito nos nos da crítica e d.a actualidade, que a

·idade jornalística proporcionou ou ocou. pelo empenho nos problemas 'cos. sociais e culturais do tempo, 10 e 20. neste século. e que terá,

's. alguma importância, pelo menos umental. A maior parte desta obra, porém, é

iso dizer que nem a conhecemos, logo pP.la sua vastidão. A relação

titulos pode ver-se em qualquer dos ·mos livros que o autor publicou. nos ·s volumes · desta antologia, por mplo. Mas supomos que não se trata últimas obras do autor: João Paulo ·re. pseudónimo Mário , polígrafo e

lista . dizem-nos os livros que nas-em 1885 e viveu até 1953.

Poetas Portuenses , no primeiro vo­figuram 53 poetas. seriados por

mcronológica , de Diogo ~randão e 's Pereira Brandão a Ramalho Orti­, e Sousa Viterbo e Vaz Passos, ou

· . do classicismo quinhentista até à !idade de então, anos 20 deste sé­. A maior parte é do século XIX, ou

·.do Romantismo, e, principalmen­do Ultra-Romantismo que, como é 'do, conheceu no Porto larga e <le-

da voga. Avultam, naturalmente, como Tomaz António Gonzagà,

xandre Braga, Almeida Garrett, Plácido , Coelho Lousada, Pinheiro

Idas, António Nobre, Augusto Luso, aldo Gama, Faustino Xavier de

vais, Guilherme Braga, Júlio Diniz, s de Passos, Agostinho de Cam­

, Alberto Pimentel, Ramalho Orti­. , embora nem todos por motivos que prendem com o significado ou a re­sentatividade da obra poética que ixaram legada à posteridade. Gonza­, Garrett, Soares de Passos e António

re , por exemplo, são referências agáveis da história da poesia portu­a. Outros terão feito coisas mais

portantes noutros domínios, e nem to , ou menos, no domínio da poesia: ·o Paulo Freire (Mário) incluiu-os,

mente porque as intenções e os ~ctivos que nortearam o seu trabalho · tinham muito a ver com maiores igências. Visar-se-ia apenas reunir livro autores de poesia que tivessem

C on1inua n<i p;íg . J

SUPLEMENTO SEMANAL DO «DIÁRIO DE LISBOA». SAI ÀS QUINTAS-FEIRAS. NÃO PODE VENDER-SE SEPARADAMENTE DO RESTO DA EDIÇÃO. CORRES­POND~NCIA: RUA LUZ SORIANO 44, 1200 LISBOA . TELEF. 32 02 71/32 02 72.

O último romance de José Cardoso Pires

J ••

N." 336

«Alexandra Alpha» e o desmantelar dos mitos lusitanos

por Urbano Tavares Rodrigues

SUPERIOR a «Ü Delfim »? Diferente, mas ao mesmo nível. Após a secura deliberada de . «A Balada da Praia dos Cães», José Cardoso Pires escreve um romance onde a invenção estilística e verbal é permanente, onde a análise da realidade portuguesa, dos seus grandes mitos, os seus lugares-comuns , dos seus deuses tutelares é levada a cabo por um humor ora acerbo ora despejadamente chocarreiro, que tudo revolve e subverte.

«Alexandre Alpha» é uma longa, densa, céptica narrativa circular que caldeia a ironia e a ternura, o sar­casmo e o encantamento e faz evo­luir no tempo e com ele mudar, desabrochar, definir-se, ao sabor dos ses meandros e dos seus preci­pícios, uma mão-<:heia de persona­gens paradigmáticas. Um início poético e dramático, de estonteante beleza, um final igualmente dramá­tico, tocado de fervor e de grandeza, como o começo. Da queda do anjo vermelho, que se esmaga nos ro­chedos da Ponta do Arpoador à as­censão e à morte das duas «manas» numa avioneta de asa delta, pilotada por um padre revolucionário, trans­corre o dia-a-dia de um país e de uma cidade, cuja vida morna é so­bressaltada por uns quantos factos marcantes - a queda de Salazar da cadeira, a morte do pai e o velório em Beja, a fuga de um cineasta vigarista, a prisão do faquir, o arqui­tecto Nuno agarrado pela PIDE. O mais são rumores do Maio francês, bebedeiras do Opus Night, conver­sas do bar Crocodilo ou de salão (caricaturas, aliás, fabulosas). Até que - e as frases ganham então uma frescura luminosa - chegam os dias novos de Abril: as horas do Largo do Carmo, o abrir das pri­sões, tudo o que se seguiu, a louca fraternidade dos cravos, o teatro na rua, a esperança em chama, a revo­lução autêntica cercada de ameaças e algum carnaval (até em volta de Alexandra, na Alpha Linn) a miná­-la.

São vários os processos de enun­ciação que José Cardoso Pires aqui · adopta. Há um narrador heterodie­gético responsável pelo fluxo nar­rativo, mas com ele concorrem fitas gravadas, apontamentos ocasionais da personagem nuclear - os «pa­péis de Alexandre Alpha» -, mi­cronarrativas da responsabilidade de outros agentes diegéticos (as fotos de Diogo Sena, a Parábola da Mulher Dragão, etc.). E fichas de relatório policial (como na Balada): assim nos é contada a noite da prisão do Nuno L.

Certa familiaridade com o ro ­mance norte-americano fasc~nado pelo documento (Truman Capote no seu melhor) pressente-se nesta arte efabulatória, embora a originali­dade do talento de Cardoso Pires se

afirme vigorosamente na utilização e na reformulação desses recursos narrativos e, de um modo a que o leitor experiente tem de render-se, no discurso espirituoso e incisivo, na técnica de bem contar com a palavra justa.

Da língua comum, que Cardoso Pires bem conhece, língua dos bares e das ruas, dos bêbados, das putas, dos marginais (é impressionante, de resto, o poder mimético que o autor exibe neste livro), arranca ele o seu estilo pessoalíssimo. Diz Mikhail Bakhtine que «O estilo individual de um escritor nasce e desenvolve-se ( ... )no fervilhar da vida ideológica. A sua dinâmica é, antes de mais, a transformação, na história, de ava­liações geradoras de formas » (1 ). Conceitos que se aplicam exem­plarmente ao texto de Cardoso Pi­res. Se o riso é progressista, como garantia Brecht, Alexandra Alpha ilustra bem esse princípio. Mas im­porta acrescentar que esse riso tem quase sempre um reverso ou um eco amargo.

Neste romance de cópulas e copos em que os heróis matam o

tempo ranhoso da ordem superior­mente fixada nas salas de descon -versar e nos círculos de mijar fine­zas culturais (Bernardo Bernardes, mestre da palavra barthesiana, se­nhor de muitas subtilezas e de uma informação riqu1ss1ma, intima­mente troçado por Alexandra Alpha: «Luís de Camões ou Luís de Camus?» ), as personagens constroem-se pelos comportamen­tos e pelo discurso próprio. É um idiolecto, por vezes à beira do dia­lecto, que o transmontano Opus Night fala, código de bar, machista, da noite boémia, salpicado de pro­vérbios, figuras pitorescas da direita «torta». Inexcedível de goro e de significado a cena em que, humi­lhado e atordoado, ele contempla, numa rua da wna do Cais do Sodré, um mural de Abril, na companhia casual de um ébrio que lamenta o canário perdido e invectiva uma au­sente interlocutora.

São os oportunistas, nem cá nem lá, sempre na crista da onda cultural (Sena, Fragoso, Bemardes)osalvos mais directos das setas envenenadas

QUINTA-FEIRA, 7 DE JANEIRO DE 1988

- e não esqueçamos que Alexan­dra, a do «Corpo ingrato », é quem melhor os vê, quem detém por mais tempo o foco narrativo , embora Sofia Bonifrates , outra prodigiosa escultura verbal, amorosamente, isto é, sardonicamente, composta, ou recomposta, atravesse amiúde o texto e o encha por vezes com a sua presença tão anos sessenta (pes­quisa etnográfica, subsídios, dormir com o povo na cama, fintas ao risco da prisão ... )

O sério e o jocoso andam tanto de mãos dadas neste livro que nele a anedota é por vezes tristíssima e o sublime roça pela caricato. Bonecos de ouro e lama: João de Berlengas, duro como uma estaca, generoso e agiota, com os seus coelhos licomes e o fantasma da cadela caçadora.

Romance de mil estórias , mas sem intriga clássica, centra boa parte do seu discorrer no tempo em tomo da invenção ou da descoberta do Menino das Bruxas, ou Doutor­-Soldado, que comove a carne de Alexandra e volta impotente da guerra, até que o 25 de Abril o restitui à acção, colocando-0 no lugar exacto.

Vários feixes digéticos vão ilu­minando a complexa relação entre Alexandra e Beto, em que há, por parte dela, a saudade de W aldir, o· amante perfeito, e marcas dúbias da maternidade; do lado dele, a busca da identidade, entre o afecto e a rejeição da mana madrasta, o pudor que se enfurece e a sombra do in­cesto, a esquivança da adolescên­cia, tanta coisa mais, apenas suge­rida, insinuada.

Aliás, já que de identidade falá­mos, diga-se que Alexandra Alpha, discurso sobre dois tempos históricós, é - já Cardoso Pires o adiantou numa entrevista (2) -uma metáfora de Portugal. Um desmantelar da feira dos mitos. E também um hino à Mulher, à mulher como Alexandra, com o seu fervor de liberdade, o seu «Corpo sem me­mória». E ainda, por entre uma flo­resta de acesas gargalhadas, a evo­cação luminosa e nostálgica da Re­volução perdida.

(1) Todorov, Mikhai~ Bakhtine - Le Príncipe Dialogique, Editions du Seuil, Paris, 1981, p.p. 256,257.

2) Entrevista de Francisco José Viegas no primeiro número de «Ler Livros e Leito­res».

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