leitura critica por oscar lopes - hemeroteca...

1
Jose Cardoso· «Balada da Praia dos Caes» leitura critica por Oscar Lopes E urn romance que nao ape- nas nos amarra a le-lo de urn folego, mas imediatamente nos coage a rele-lo, e cuja leitura, a partir de certo estonteamento inicial, se vai desdobrando numa especie de polifonia a, pelo me- nos, quatro naipes orquestrais, que alternam no primeiro plano e nos sucessivos pianos da nossa aten9{1o. Com efeito, e muito provavel que o leitor atento sinta cada vez melhor a diferenc;:a en- tre: 1) o naipe da intriga policia- lesca, comandada por indicios, pistas, deixas da investiga9{1o ou perplexidades a pedir res- posta ou soluc;:ao, e urn rosario de pseudo-soluc;:6es ate che- garmos a certas surpresas finals; 2) o naipe que acompanha o pro- cesso psiquico (veremos que, no fundo, psicossocial) de deses- pero, mitomania e desejo in- consciente de morte no aparente protagonista, urn conspirador isolado, porque persuadido de que poderia derrubar o fascismo com urn simples golpe militar, e cuja degrada9{1o mental preci- pita o seu assassinio por tres companheiros de refugio: a amante, urn cabo e urn oficial miliciano; 3) urn naipe feito de tensao mais radical e generali- zada entre o amor, a morte e uma . especie de ressurreic;:ao, tensao que de facto se estende, virtual- mente, a todo o elenco de perso- nagens e a varios n iveis da pro- pria narra9{1o; 4) e urn naipe per- corrido como que por urn vento de plebeismo carnavalesco sub- vertendo a aparente objectivi- dade dos factos com eficazes mutac;:6es de humor, grac;:as a uma linguagem aparentemente muito oral e figurativa, grac;:as a sobreposic;:6es de imagens e tempos, e, sobretudo, grac;:as a alternancia entre varios discur- sos pessoais bern audiveis, e claramente em conflito. Dados e testemu- nhos reais E 6bvio que Cardoso Pires se inspira num caso real, em dados e testemunhos reais, e que a· efabulac;:a 0 do romance (alias « dissertac;:ao sobre urn crime,) encontra no trabalho e nas diva- gac;:6es do chefe Elias, da Judi- ciaria, urn pretexto para comuni- car. o proprio fiat, o proprio fazer-se do romance,. entre do- cumentos, depoimentos e hipo- teticas reconstituic;:6es do crime . lsso presta-se a efeitos roma- nescos: ha varias cenas inaudi- tas , e mesmo chocantes, ou simples alus6es sibilinas, que s6. depois (pouco, ou muito, depois) se compreendem, ou «normali- zam»; o leitor e constantemente balanceado entre secos autos de inqUtnc;:ao e romanceac;:6es ideadas por urn investigador afectivamente empenhado, com transic;:6es ironicas, e tamoom com descontinuidades flagran- tes, entre os dois estilos. Mais ainda: ha referencias a pessoas reais e ainda hoje vivas, que o autor exp6e em pelourinho his- torico, sobretudo em notas de rodape e em Apendice final, ac- tuando como travagens subitas na imagina9{1o romanceante. Eo jeito de redigir autos e esquemas de interrogatorio generaliza-se a coisas que ja nao tern directa- mente que ver com o crime in- vestigado: certas personagens sao caracterizadas por fichas biograficas, varias cenas ou cir- cunstancias estao anotadas de urn modo que lembra andaimes para a propria constru9{1o do ro- mance, e varias falas ou cenas particularmente vividas parecem simplesmente montadas por urn mixer de gravac;:6es ou videota- pes a pensar numa emissiio, num espectaculo ou num brie- fing de instruc;:ao. Acontece mesmo o seguinte: ao proces- so-crime esta apenso urn exem- plar da tradu9{1o 0 Lobo do Mar de Jack London; alguem sublinhou, nesse exemplar, umas !rases que aproximam o seu protagonista do proprio ofi- cial canspirador, ambos carac- terizados por urn inconsciente desejo suicida; e paira ao Iongo de quase todo o romance de Cardoso Pires a duvida sobre qual dos comparsas do crime teria feito tais sublinhados - como se a propria narra9{1o qui- sesse deixar suspensa a desco- berta de qual o grau em que per- sonagens, reais ou ficticias, as- sassinado, assassinos, inquiri- dores, o autor, Jack London, o leitor, a tradic;:ao historica e/ou literaria particlpam na vida e estrutura deste romance-disser- ta9{1o. Urn impulso de morte Sem dar por isto, estivemos a fazer uma modulac;:ao desde o naipe policialesco para o se- gundo naipe do livro. De facto, o comportamento do Major conspi- rador, no seu valhacouto com mais tres auxiliares, e norteado por um impulso de morte, com que ele tamoom visa a amante e a perdi9{1o de todo o grupo. Essa pulsao de morte e, contudo, mais do que individual. 0 Major repu- dia qualquer ligac;:ao com movi- mentos revolucionarios, alheios a area restritamente castrense, e nomeadamente com os cornu- - nistas, que eram indiscutivel- mente, em 1960, a grande forc;:a organica resistente. 0 Major esta fora daquela como que circula- c;:ao de sangue social que consti- tui o sentir mais expansive e os projectos mais viaveis de uma QUINTA-FEIAA, 6_ DE JANEIRO DE 1982 epoca: a epoca Major Dantas ja, afinal; morrera, e fora ados anjos rebeldes da tropa, a dos pais e senhores dos soldados, execu- tores inspirados e armados dos destinos patrios. E por isso his- toricamente exemplar o pro- cesso de mitomania do Major Dantas C, que se traduz em pro- jectos cada vez mais utopicos, como se o unico magal? aliciado na sua fuga do forte de Elvas se pudesse multiplicar em miss6es e posic;:6es de com bate, como se toda a salva9{1o pudesse vir de urn arranque como o do «Santa Maria», e de uma rede cada vez mais imaginaria de conspira9{1o com que os quatro refugiados da Casada Vereda se entre-anima- vam e entre-enganavam. em inconvicta colagem de carta- zes patrioteiros contra a ocupa- c;:ao indiana de Goa; a retorica difamatoria. especialmente anti- comunista, do Diario da Manha; esmaltes acacianos de discur- sos oficiais - coisas que a dis- tancia de 20 anos ja nos soam incriveis, como lazaros de re- pente ressuscitados, para fazer companhia a engulhada figura de Freitas do Amaral ou as proenc;:ais campanhas da TV an- tipolaca e antiafagnistanica de todos os noticiarios. Neste con- texte, podemos compreender a insistencia de tantas imagens funereas ou decrepitas da Lis- boa de entao, dos Prazeres as lojas ortopedicas da Aua da Ma- dalena, ou a uma transfigura9{1o cemiterial do Chiado. 0 «reino cadaveroso» E eis que nos sentimos a pas- sar ao que ciesignamos como terceiro naipe nas leituras deste livro. Porque, no fundo, ao Iongo do livro sentimo-nos a operar uma cartarse de certo desejo de morte inerente ao nosso peculiar fascismo portugues, dos seus avatares militaristas-colonialis- tas e daquilo que ainda repre- Jose Cardoso Pires 14 enos: depols de «0 Delflm••, <<A Baled ada Praia dos eaes.. - Mas esta atmosfera espectral integra-se, afinai, contrapolar- mente, na espectralidade do mundo oficial portugues de 1960, cujo ridiculo anacronico o livro evoca em fiagrantes relan- ces: o retrado do chefe nas re- partic;:6es; legionaries de noite, senta a continuidade do «reino cadaveroso». Esse desejo de morte nao incarna apenas no Major Dantas C, mas tamoom, e inseparavelmente, no investiga- dor criminal, o chefe Elias San- tos, sob a forma comum de uma virilidade sexual que se sente em apagamento e se distancia do seu mais natural objecto de in- vestimento na vida real. Divor- ciado da realidade do seu tempo, . o Major exaure- se em fixac;:6es eroticas sobre a sua amante que sao cada vez mais marginal- mente sadomasoquistas, cada vez mais dependentes de uma realimentac;:ao pelo ciume, quer dizer, pelo alinhamento sobre o desejo vindo de outrem, ate che- gar ao anti-Eros, ao niilismo que tende a destruir, quer o objecto, quer o sujeito do amor. Ora Filo- mena, ou Mena, nao e apenas o ultimo objecto de que 0 desejo do Major sente despegar-se; o in- vestigador Elias participa ele proprio na tragedia do Major, no seu desejo moribundo por Mena, mas a um nivel indirecto e espec- tadorista de simples voyeur. Todos os exames e interrogato- ries de Mena por parte do chefe E,lias estao carregados de urn Eros indirecto e triste: a pujanc;:a fisica e institinta, a naturalidade segura da moc;:a, a sua total de- sinibic;:ao erotica sao pasta de urn sonho sem fundo num policia es- pecial isla em homicidios, guar- diao de um Livro dos Mortos, ele mesmo, por alcunha " o Covas", funcionando como antecamara em que Eros progressivamente se perverte e converte em Morte -tanto mais que e ele o narrador virtual de quase toda a historia. E · e curioso observar que este su- cedaneo de Aqueronte, o bar- queiro dos defuntos, se reve num lagarto que, na sua casa solita- ria, parece petrificado na sua gaiola envidrac;:ada, sobre areia sempre fria, porque de outro modo o calor agita-io-ia como urn afrodisiaco. Lembra aquela lagartixa imovel que, em 0 Del- tim, serve de emblema as eras sepultadas da arqueologia e da paleontologia; e lembra o Dino- s8urio Excelentissimo com que Cardoso Pires estimatizou o anacronismo mesozoico da era salazarenta que Deus haja. o anacronismo mesoz6ico da era salazarenta que Deus haja. Ora para Mena (secundaria- mente, tamoom, para os dois companheiros mais jovens de re- fugio e de cumplicidade criminal) a entrega a policia e a confissao exacta e sem pejo e, sim, uma «entrega a morte», e uma morte, mas morte apenas de uma lase da vida: a morte de uma subjec- tividade que se larga e renova pela palavra, pela comunicac;:ao,> por urn banho lustral de objecti- vidade, tal como certas bichas largam uma pele ou uma cara- - pac;:a ja .i_mprestavel. 0 «discurso vivido Resta agora falar daquilo que - faz a maior forc;:a deste livro. Ca- racterizarei esse quarto e mais poderoso naipe como sendo urn efeito da generaliza9{1o daquilo que e costume designar como «discurso indirecto livre», e a que os iinguistas alemaes dao o nome mais flagrante de «dis- curse vivido ». Cardoso Pires · con segue reaimente coiher nos depoimentos de Mena, ou de uma outra jovem muito livre e cheia de caracter (Norah), de uma porteira, de uma vende- deira-Proprietaria, e em !rag- menlo!': de dialooo de diversas girias ou registos mais esponta- neos do portugues falado popu- lar, urn grande numero de recur- sos que permitem bruscos res- saltos de humor - e nao ha como esta mestria da comuta9{1o hu- moral para descobrir novas an- gulos de realidade. Por vezes, como Ec;:a ja o fez quanto a media e alta burguesia lisboeta do seu tempo, isso permite, s6 por si, o desenho firme de caracteres psi- cossociais. Este uso de vocabulario e de giros de frase quotidianos e/ou populares apresenta por vezes caracteristicas de uma fuga per- tinaz a expressao convencional e cansada, que tanto lembra a prosa maneirista das cartas de Cam6es ou da comedia Eufro- sina como certos (digamos) bar- roquismos de Fialho ou Aquilino. Ha uma profusao de alcunhas pitorescas, de construc;:6es nao-oracionais de frase, de humor rabelaisiano anti-esta- blishment, num movimento sustido de humor de que se de- sentranha uma linguagem inten- samente figurativa, mosqueada de ironia policroma, urn regalo para recolha e teoriza9{1o de fi- chas linguisticas e estilisticas .. (Por exempio, eu recolhi deze- nas de construc;:6es com «Ca» e - .. ,a .. , do tipo de «isso e ca uma destas bocas" ou «ele Ia conse- guiu o que queria», que me su- geriram uma hip6tese sabre uma coisa pouco estudada em portu- gues: a chamada voz medio- -passivc( que, entre outras coi- sas, exprime uma certa esfera de intimidade ou participa9{1o e que, se calhar, extravasa da simples conjuga9{1o verbal). Mas tal estilistica nao tern apenas que ver com este naipe do discurso vivido: tern tamoom que ver, por exemplo, com o lilaipe da narrac;:ao , por<iue con- tribui para uma constante e por vezes multipla sobreposic;:ao de pianos vivenciais. Por exemplo: a brigada da Judiciaria esta a reconstituir a fuga dos conspira- dores de Elvas atraves do Alen- tejo; a certa altura, «nem de pro- p6sito, estavam duas bicicletas a espera deles» - esta saborosa observac;:iio ocorre, no gabinete de investigac;:ao, numa lase em que, ao mesmo tempo, estamos a seguir a fuga, o seu rastreio por pesquisas poiiciais in loco, a sua reconstituic;:ao global peios agen- tes, e a sua reduc;:ao a autos, com o bater das maquinas de escre- ver em sincronia imaginaria com as pedaladas dos fugitives. Outro exemplo: em duas admira- veis paginas (51 e 52) assistimos a uma transfigurac;:ao em que uma sala burocratica da Judicia- ria: na imaginac;:ao ensonada de Elias, se transmuta em aquario «com os sacanas dos agentes a darem a cauda de boca aberta", sob urn zunido que tanto e dos tubos de neon como das boihi- nhas ascensionais de oxigenio na agua- e, sempre insensivel- mente, o investigador-chefe pensa em Mena, evoca leituras de Jack London, e esta a ver focas, esta a ver caes, e caes- -focas, esta a sentir-se como urn cao que idealize a «sereia ca- nina, o milo da cadeia dos ma- res». Duvidar-se-a, agora, de que a arte do romance seja uma forma (ou varias) da arte poetica em gerai? Oscar Lopes PAGINA 15

Upload: others

Post on 25-Jul-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: leitura critica por Oscar Lopes - Hemeroteca Digitalhemerotecadigital.cm-lisboa.pt/EFEMERIDES/josecardosopires/Rece… · na imagina9{1o romanceante. Eo jeito de redigir autos e esquemas

Jose Cardoso· Pire~

«Balada da Praia dos Caes» • leitura critica por Oscar Lopes

E urn romance que nao ape­nas nos amarra a le-lo de urn folego, mas imediatamente nos coage a rele-lo, e cuja leitura, a partir de certo estonteamento inicial, se vai desdobrando numa especie de polifonia a, pelo me­nos, quatro naipes orquestrais, que alternam no primeiro plano e nos sucessivos pianos da nossa aten9{1o. Com efeito, e muito provavel que o leitor atento sinta cada vez melhor a diferenc;:a en­tre: 1) o naipe da intriga policia­lesca, comandada por indicios, pistas, deixas da investiga9{1o ou perplexidades a pedir res­posta ou soluc;:ao, e urn rosario de pseudo-soluc;:6es ate che­garmos a certas surpresas finals; 2) o naipe que acompanha o pro­cesso psiquico (veremos que, no fundo, psicossocial) de deses­pero, mitomania e desejo in­consciente de morte no aparente protagonista, urn conspirador isolado, porque persuadido de que poderia derrubar o fascismo com urn simples golpe militar, e cuja degrada9{1o mental preci­pita o seu assassinio por tres companheiros de refugio: a amante, urn cabo e urn oficial miliciano; 3) urn naipe feito de tensao mais radical e generali­zada entre o amor, a morte e uma . especie de ressurreic;:ao, tensao que de facto se estende, virtual­mente, a todo o elenco de perso­nagens e a varios n iveis da pro­pria narra9{1o; 4) e urn naipe per­corrido como que por urn vento de plebeismo carnavalesco sub­vertendo a aparente objectivi­dade dos factos com eficazes mutac;:6es de humor, grac;:as a uma linguagem aparentemente muito oral e figurativa, grac;:as a sobreposic;:6es de imagens e tempos, e, sobretudo, grac;:as a alternancia entre varios discur­sos pessoais bern audiveis, e claramente em conflito.

Dados e testemu­nhos reais

E 6bvio que Cardoso Pires se inspira num caso real , em dados e testemunhos reais, e que a· efabulac;:a0 do romance (alias «dissertac;:ao sobre urn crime,) encontra no trabalho e nas diva­gac;:6es do chefe Elias, da Judi­ciaria, urn pretexto para comuni­car. o proprio fiat, o proprio fazer-se do romance,. entre do­cumentos, depoimentos e hipo­teticas reconstituic;:6es do crime. lsso presta-se a efeitos roma­nescos: ha varias cenas inaudi­tas, e mesmo chocantes, ou simples alus6es sibilinas, que s6. depois (pouco, ou muito, depois) se compreendem, ou «normali­zam»; o leitor e constantemente balance ado entre secos autos de inqUtnc;:ao e romanceac;:6es ideadas por urn investigador

afectivamente empenhado, com transic;:6es ironicas, e tamoom com descontinuidades flagran­tes, entre os dois estilos. Mais ainda: ha referencias a pessoas reais e ainda hoje vivas, que o autor exp6e em pelourinho his­torico, sobretudo em notas de rodape e em Apendice final , ac­tuando como travagens subitas na imagina9{1o romanceante. Eo jeito de redigir autos e esquemas de interrogatorio generaliza-se a coisas que ja nao tern directa­mente que ver com o crime in­vestigado: certas personagens sao caracterizadas por fichas biograficas, varias cenas ou cir­cunstancias estao anotadas de urn modo que lembra andaimes para a propria constru9{1o do ro­mance, e varias falas ou cenas particularmente vividas parecem simplesmente montadas por urn mixer de gravac;:6es ou videota­pes a pensar numa emissiio, num espectaculo ou num brie­fing de instruc;:ao. Acontece mesmo o seguinte: ao proces­so-crime esta apenso urn exem­plar da tradu9{1o d~ 0 Lobo do Mar de Jack London; alguem sublinhou, nesse exemplar, umas !rases que aproximam o seu protagonista do proprio ofi­cial canspirador, ambos carac­terizados por urn inconsciente desejo suicida; e paira ao Iongo de quase todo o romance de Cardoso Pires a duvida sobre qual dos comparsas do crime teria feito tais sublinhados -como se a propria narra9{1o qui­sesse deixar suspensa a desco­berta de qual o grau em que per­sonagens, reais ou ficticias, as­sassinado, assassinos, inquiri­dores, o autor, Jack London, o leitor, a tradic;:ao historica e/ou literaria particlpam na vida e estrutura deste romance-disser­ta9{1o.

Urn impulso de morte

Sem dar por isto, estivemos a fazer uma modulac;:ao desde o naipe policialesco para o se­gundo naipe do livro. De facto, o comportamento do Major conspi­rador, no seu valhacouto com mais tres auxiliares, e norteado por um impulso de morte, com que ele tamoom visa a amante e a perdi9{1o de todo o grupo. Essa pulsao de morte e, contudo, mais do que individual. 0 Major repu­dia qualquer ligac;:ao com movi­mentos revolucionarios, alheios a area restritamente castrense, e nomeadamente com os cornu-

- nistas, que eram indiscutivel­mente, em 1960, a grande forc;:a organica resistente. 0 Major esta fora daquela como que circula­c;:ao de sangue social que consti­tui o sentir mais expansive e os projectos mais viaveis de uma

QUINTA-FEIAA, 6_DE JANEIRO DE 1982

epoca: a epoca Major Dantas ja, afinal; morrera, e fora ados anjos rebeldes da tropa, a dos pais e senhores dos soldados, execu­tores inspirados e armados dos destinos patrios. E por isso his­toricamente exemplar o pro­cesso de mitomania do Major Dantas C, que se traduz em pro­jectos cada vez mais utopicos, como se o unico magal? aliciado na sua fuga do forte de Elvas se pudesse multiplicar em miss6es e posic;:6es de com bate, como se toda a salva9{1o pudesse vir de urn arranque como o do «Santa Maria», e de uma rede cada vez mais imaginaria de conspira9{1o com que os quatro refugiados da Casada Vereda se entre-anima­vam e entre-enganavam.

em inconvicta colagem de carta­zes patrioteiros contra a ocupa­c;:ao indiana de Goa; a retorica difamatoria. especialmente anti­comunista, do Diario da Manha; esmaltes acacianos de discur­sos oficiais - coisas que a dis­tancia de 20 anos ja nos soam incriveis, como lazaros de re­pente ressuscitados, para fazer companhia a engulhada figura de Freitas do Amaral ou as proenc;:ais campanhas da TV an­tipolaca e antiafagnistanica de todos os noticiarios. Neste con­texte, podemos compreender a insistencia de tantas imagens funereas ou decrepitas da Lis­boa de entao, dos Prazeres as lojas ortopedicas da Aua da Ma­dalena, ou a uma transfigura9{1o cemiterial do Chiado.

0 «reino cadaveroso»

E eis que nos sentimos a pas­sar ao que ciesignamos como terceiro naipe nas leituras deste livro. Porque, no fundo, ao Iongo do livro sentimo-nos a operar uma cartarse de certo desejo de morte inerente ao nosso peculiar fascismo portugues, dos seus avatares militaristas-colonialis­tas e daquilo que ainda repre-

Jose Cardoso Pires 14 enos: depols de «0 Delflm••, <<A Baled ada Praia dos eaes.. -

Mas esta atmosfera espectral integra-se, afinai, contrapolar­mente, na espectralidade do mundo oficial portugues de 1960, cujo ridiculo anacronico o livro evoca em fiagrantes relan­ces: o retrado do chefe nas re­partic;:6es; legionaries de noite,

senta a continuidade do «reino cadaveroso». Esse desejo de morte nao incarna apenas no Major Dantas C, mas tamoom, e inseparavelmente, no investiga­dor criminal, o chefe Elias San­tos, sob a forma comum de uma virilidade sexual que se sente em

apagamento e se distancia do seu mais natural objecto de in­vestimento na vida real. Divor­ciado da realidade do seu tempo, . o Major exaure-se em fixac;:6es eroticas sobre a sua amante que sao cada vez mais marginal­mente sadomasoquistas, cada vez mais dependentes de uma realimentac;:ao pelo ciume, quer dizer, pelo alinhamento sobre o desejo vindo de outrem, ate che­gar ao anti-Eros, ao niilismo que tende a destruir, quer o objecto, quer o sujeito do amor. Ora Filo­mena, ou Mena, nao e apenas o ultimo objecto de que 0 desejo do Major sente despegar-se; o in­vestigador Elias participa ele proprio na tragedia do Major, no seu desejo moribundo por Mena, mas a um nivel indirecto e espec­tadorista de simples voyeur. Todos os exames e interrogato­ries de Mena por parte do chefe E,lias estao carregados de urn Eros indirecto e triste: a pujanc;:a fisica e institinta, a naturalidade segura da moc;:a, a sua total de­sinibic;:ao erotica sao pasta de urn sonho sem fundo num policia es­pecial isla em homicidios, guar­diao de um Livro dos Mortos, ele mesmo, por alcunha "o Covas" , funcionando como antecamara em que Eros progressivamente se perverte e converte em Morte -tanto mais que e ele o narrador virtual de quase toda a historia. E

· e curioso observar que este su­cedaneo de Aqueronte, o bar­queiro dos defuntos, se reve num lagarto que, na sua casa solita­ria, parece petrificado na sua gaiola envidrac;:ada, sobre areia sempre fria, porque de outro modo o calor agita-io-ia como urn afrodisiaco. Lembra aquela lagartixa imovel que, em 0 Del­tim, serve de emblema as eras sepultadas da arqueologia e da paleontologia; e lembra o Dino­s8urio Excelentissimo com que Cardoso Pires estimatizou o anacronismo mesozoico da era salazarenta que Deus haja.

o anacronismo mesoz6ico da era salazarenta que Deus haja.

Ora para Mena (secundaria­mente, tamoom, para os dois companheiros mais jovens de re­fugio e de cumplicidade criminal) a entrega a policia e a confissao exacta e sem pejo e, sim, uma «entrega a morte», e uma morte, mas morte apenas de uma lase da vida: a morte de uma subjec­tividade que se larga e renova pela palavra, pela comunicac;:ao,> por urn banho lustral de objecti­vidade, tal como certas bichas largam uma pele ou uma cara-

- pac;:a ja .i_mprestavel.

0 «discurso vivido

Resta agora falar daquilo que -faz a maior forc;:a deste livro. Ca­racterizarei esse quarto e mais poderoso naipe como sendo urn efeito da generaliza9{1o daquilo que e costume designar como «discurso indirecto livre», e a que os iinguistas alemaes dao o nome mais flagrante de «dis­curse vivido». Cardoso Pires

· con segue reaimente coiher nos depoimentos de Mena, ou de uma outra jovem muito livre e cheia de caracter (Norah) , de uma porteira, de uma vende­deira-Proprietaria, e em !rag­menlo!': de dialooo de diversas girias ou registos mais esponta-

neos do portugues falado popu­lar, urn grande numero de recur­sos que permitem bruscos res­saltos de humor - e nao ha como esta mestria da comuta9{1o hu­moral para descobrir novas an­gulos de realidade. Por vezes, como Ec;:a ja o fez quanto a media e alta burguesia lisboeta do seu tempo, isso permite, s6 por si, o desenho firme de caracteres psi­cossociais.

Este uso de vocabulario e de giros de frase quotidianos e/ou populares apresenta por vezes caracteristicas de uma fuga per­tinaz a expressao convencional e cansada, que tanto lembra a prosa maneirista das cartas de Cam6es ou da comedia Eufro­sina como certos (digamos) bar­roquismos de Fialho ou Aquilino. Ha uma profusao de alcunhas pitorescas, de construc;:6es nao-oracionais de frase, de humor rabelaisiano anti-esta­blishment, num movimento sustido de humor de que se de­sentranha uma linguagem inten­samente figurativa, mosqueada de ironia policroma, urn regalo para recolha e teoriza9{1o de fi­chas linguisticas e estilisticas . . (Por exempio, eu recolhi deze­nas de construc;:6es com «Ca» e

-.. ,a .. , do tipo de «isso e ca uma destas bocas" ou «ele Ia conse­guiu o que queria», que me su­geriram uma hip6tese sabre uma coisa pouco estudada em portu­gues: a chamada voz medio­-passivc( que, entre outras coi­sas, exprime uma certa esfera de intimidade ou participa9{1o e que, se calhar, extravasa da simples conjuga9{1o verbal).

Mas tal estilistica nao tern apenas que ver com este naipe do discurso vivido: tern tamoom que ver, por exemplo, com o lilaipe da narrac;:ao, por<iue con­tribui para uma constante e por vezes multipla sobreposic;:ao de pianos vivenciais. Por exemplo: a brigada da Judiciaria esta a reconstituir a fuga dos conspira­dores de Elvas atraves do Alen­tejo; a certa altura, «nem de pro­p6sito, estavam duas bicicletas a espera deles» - esta saborosa observac;:iio ocorre, no gabinete de investigac;:ao, numa lase em que, ao mesmo tempo, estamos a seguir a fuga, o seu rastreio por pesquisas poiiciais in loco, a sua reconstituic;:ao global peios agen­tes, e a sua reduc;:ao a autos, com o bater das maquinas de escre­ver em sincronia imaginaria com as pedaladas dos fugitives. Outro exemplo: em duas admira­veis paginas (51 e 52) assistimos a uma transfigurac;:ao em que uma sala burocratica da Judicia­ria: na imaginac;:ao ensonada de Elias, se transmuta em aquario «com os sacanas dos agentes a darem a cauda de boca aberta", sob urn zunido que tanto e dos tubos de neon como das boihi­nhas ascensionais de oxigenio na agua- e, sempre insensivel­mente, o investigador-chefe pensa em Mena, evoca leituras de Jack London, e esta a ver focas, esta a ver caes, e caes­-focas, esta a sentir-se como urn cao que idealize a «sereia ca­nina, o milo da cadeia dos ma­res».

Duvidar-se-a, agora, de que a arte do romance seja uma forma (ou varias) da arte poetica em gerai?

Oscar Lopes

PAGINA 15