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1 POESIA E SENSIBILIZAÇÃO: A POESIA COMO INSTRUMENTO PARA A FORMAÇÃO DE LEITORES DE LIVROS E DA REALIDADE NO SEGUNDO ANO DO ENSINO MÉDIO. 1 Carlos Henrique de Fresta dos Santos 2 Resumo O presente artigo relata as experiências vivenciadas a partir de uma proposta de ensino de Língua Portuguesa, elaborada no decorrer do PDE. Trata-se da busca de respostas às questões que se levantam com as constantes transformações da sociedade, suscitadas no debate didático-pedagógico no âmbito da escola pública. Além de propor uma linha de trabalho que visa atrair a atenção e a concentração dos jovens e combater arduamente o fracasso escolar, o objetivo central está na emancipação do estudante, na instrumentalização do sujeito para o exercício da cidadania. Explorou-se a poesia na perspectiva de apresentar o debate entre a teoria e a prática educativa, a partir de leituras e discussões realizadas no PDE 2007, e na aplicação de uma proposta lúdica e inovadora de trabalho que possibilitasse a empatia e identificação dos alunos. Propõe- se, nesta pesquisa, o trabalho com uma linguagem viva e dinâmica, aproximando com isso os alunos dos sentidos que a linguagem tem nas suas vidas. Língua Portuguesa – Poesia – Cidadania Abstract This article reports the experiences from a proposal for teaching of Portuguese Lan- guage, developed during the PDE. This is the search for answers to questions that arise with the constant changes of society, raised in the discussion, didactic teaching within the school. Besides proposing a line of work that aims to attract the attention and con- centration of young and fighting hard school failure, the central goal is the emancipation of the student, the instrumentation of the subject for the exercise of citizenship. Ex- plored to make poetry from the perspective of the debate between theory and education- al practice, from readings and discussions in the PDE in 2007, and implementation of innovative and entertaining a proposal to allow the work of empathy and identification of students. It is proposed in this research, working with a language alive and dynamic, bringing with it the students the sense that language has on their lives. Portuguese Language - Poetry - Citizenship 1 Trabalho realizado por ocasião da conclusão do PDE 2007, sob a orientação do Professor Doutor Altair Pivovar. 2 Professor PDE, Licenciado em Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa, Especialista em Literatura e Professor QPM do Estado do Paraná.

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POESIA E SENSIBILIZAÇÃO: A POESIA COMO INSTRUMENTO PARA A

FORMAÇÃO DE LEITORES DE LIVROS E DA REALIDADE NO SEGUNDO

ANO DO ENSINO MÉDIO.1

Carlos Henrique de Fresta dos Santos2

ResumoO presente artigo relata as experiências vivenciadas a partir de uma proposta de ensino de Língua Portuguesa, elaborada no decorrer do PDE. Trata-se da busca de respostas às questões que se levantam com as constantes transformações da sociedade, suscitadas no debate didático-pedagógico no âmbito da escola pública. Além de propor uma linha de trabalho que visa atrair a atenção e a concentração dos jovens e combater arduamente o fracasso escolar, o objetivo central está na emancipação do estudante, na instrumentalização do sujeito para o exercício da cidadania. Explorou-se a poesia na perspectiva de apresentar o debate entre a teoria e a prática educativa, a partir de leituras e discussões realizadas no PDE 2007, e na aplicação de uma proposta lúdica e inovadora de trabalho que possibilitasse a empatia e identificação dos alunos. Propõe-se, nesta pesquisa, o trabalho com uma linguagem viva e dinâmica, aproximando com isso os alunos dos sentidos que a linguagem tem nas suas vidas.

Língua Portuguesa – Poesia – Cidadania

Abstract

This article reports the experiences from a proposal for teaching of Portuguese Lan-guage, developed during the PDE. This is the search for answers to questions that arise with the constant changes of society, raised in the discussion, didactic teaching within the school. Besides proposing a line of work that aims to attract the attention and con-centration of young and fighting hard school failure, the central goal is the emancipation of the student, the instrumentation of the subject for the exercise of citizenship. Ex-plored to make poetry from the perspective of the debate between theory and education-al practice, from readings and discussions in the PDE in 2007, and implementation of innovative and entertaining a proposal to allow the work of empathy and identification of students. It is proposed in this research, working with a language alive and dynamic, bringing with it the students the sense that language has on their lives.

Portuguese Language - Poetry - Citizenship

1Trabalho realizado por ocasião da conclusão do PDE 2007, sob a orientação do Professor Doutor Altair Pivovar.2Professor PDE, Licenciado em Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa, Especialista em Literatura e Professor QPM do Estado do Paraná.

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1. INTRODUÇÃO

As constantes transformações da sociedade suscitam uma série de interrogações

para o ser humano. Para aqueles que exercem o magistério, surgem inúmeras questões:

onde se posiciona o ensino nesse novo tempo e espaço? Como oferecer uma educação

transformadora, desafiadora e libertadora? Quem ou o que será o protagonista dessas

mudanças? As respostas estão presentes, mesmo que não tão evidentes, no cotidiano dos

professores que procuram realizar a mudança para a construção da sonhada escola

pública de qualidade. Apesar disso, na maioria das vezes, os docentes encontram a

frustração da reprovação, da evasão e da falta de interesse por parte dos alunos.

Contudo, é perceptível a preocupação objetiva de muitos educadores em desenvolver

métodos, ambientes e projetos pedagógicos para atrair a atenção e a concentração dos

jovens, em combater arduamente o fracasso escolar.

O profissional da educação engajado trava o enfrentamento do complexo

contexto social e econômico atual, reconhecendo o aprendizado como resultado direto

da práxis humana, considerando a necessidade de liberdade, de expressão e de

realização dos anseios de cada educando. Compreender que uma das mais importantes

referências pedagógicas no processo de educação reside nas experiências pessoais dos

próprios alunos, em suas histórias de vida e impressões sobre o mundo é o primeiro

passo no sentido de concretizar um trabalho significativo que atinja o objetivo final da

escola: ensinar e aprender. Assim, o educador termina por se comprometer com a

emancipação humana e a transformação social.

Em se tratando do ensino de Língua Portuguesa, a poesia pode desempenhar um

importante papel na administração dessa vontade, porém buscar uma proposta

pedagógica inovadora exige que se mergulhe na vida da comunidade escolar e no seu

ambiente sociocultural como um todo. Portanto, apesar de nos faltarem respostas

objetivas e sobrarem dúvidas subjetivas, o fato é que o modelo de ensino de Língua

Portuguesa vem se mostrando arcaico, apesar da boa vontade de todos os educadores,

principalmente e mais especificamente no trabalho com poesia e com a arte de modo

geral.

A pretensão deste artigo é apresentar o debate entre a teoria e a prática

educativa, no tocante ao trabalho com a poesia, a partir de leituras, discussões realizadas

no PDE 2007 e na aplicação de uma proposta lúdica e inovadora de trabalho com a

poesia, que possibilitasse a empatia e identificação dos alunos. Propõe-se, nesta

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pesquisa, o trabalho com uma linguagem viva e dinâmica, aproximando com isso os

alunos dos sentidos que a linguagem tem nas suas vidas.

2. A POSTURA DOCENTE NO TRABALHO COM A LITERATURA: ATITUDE

DE FACILITAÇÃO OU CASTRAÇÃO DA CAPACIDADE CRIADORA?

O trabalho criativo com literatura, principalmente com a poesia, pode viabilizar

a maior participação de todos os envolvidos no processo ensino-aprendizagem e agir

diretamente na qualidade do ensino de Língua Portuguesa oferecido, na formação de

leitores e, principalmente na formação de cidadãos críticos, conscientes de sua condição

social. A expressão da emoção presente nas artes aproxima as pessoas e facilita a

interação entre professor e aluno, a troca de experiências e de idéias. Amplia a

possibilidade de aprendizado de todo o grupo. Contudo, não há trabalho inventivo que

se sustente com a realidade na qual estão inseridos alunos e professores da Rede

Estadual de Ensino, com suas (tantas) limitações financeiras e estruturais.

No estado do Paraná, muito tem sido feito no sentido de melhorar as condições

do trabalho docente, a exemplo da implantação da TV pen-drive, a expansão dos

Laboratórios de Informática das Unidades de Ensino, a criação da Biblioteca do

Professor, o Projeto Folhas, a elaboração do Livro Didático Público pelos próprios

professores da rede e mesmo o PDE3. No entanto, ainda há muito o que avançar na

questão de materiais didáticos e de apoio à prática docente, no acervo das bibliotecas e

na formação continuada dos profissionais da educação, que são elementos básicos no

suporte da prática educativa diária.

A reflexão reside no fato de que, se o trabalho do educador é complexo,

dependente de tantos fatores externos e internos do sistema de ensino, abordar a poesia

vai além, pois lida diretamente com a sensibilidade, com a criatividade e com a emoção.

Isso é o que faz a iniciativa ser tão delicada e subjetiva. A meta a ser atingida por meio

da sensibilização é a formação plena dos alunos, por isso exige muita dedicação, uma

profunda concentração e um ambiente propício, que possibilite a participação nas

atividades.

Todavia, o cotidiano escolar ainda não contribui para o sucesso dos trabalhos

inovadores: as salas de aula superlotadas, com alunos desmotivados e muitas vezes

3Maiores informações acerca das iniciativas do Governo do Estado do Paraná são encontradas no Portal Dia-a-Dia Educação, no endereço www.diaadiaeducacao.pr.gov.br.

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abandonados pela família; os professores sobrecarregados com a burocracia que os

afunda numa quantidade cada vez maior de papéis a serem preenchidos; e a falta de

segurança que permite que a violência e as drogas invadam o cotidiano de muitas

escolas. Há iniciativas de fomentar uma evolução dos meios tecnológicos, mas ainda há

que se investir em tempo e em recursos no desenvolvimento humano do processo

educacional, temos uma longa caminhada até romper os paradigmas de manutenção do

status quo.

Tudo isso nos transporta para o círculo vicioso do famoso pacto da

mediocridade, no qual o professor finge que ensina e o aluno finge que aprende, pois o

professor que trabalha com uma carga horária extensa, sem atualização acadêmica

constante e com seu tempo ocupado por excesso de atividades alheias ao processo

educativo, termina por ministrar uma aula castradora, que limita a produção de

conhecimento, transformando o cotidiano escolar numa monotonia infinita e fatigante,

que é produto e reprodutora do sistema alienante posto.

Nesse quadro, não é surpreendente que o ensino se torne inoperante, nem que

aflore a questão da indisciplina generalizada tão prejudicial ao trabalho em sala de aula.

No caso da poesia, podemos observar que muitas vezes os alunos não se percebem

amantes da leitura, mas alguns deles até são freqüentadores ou escritores de blogs na

Internet, autores de rimas em letras de RAP de qualidade, apesar de sofrerem

diariamente a castração de sua criatividade no âmbito da escola. É a negação das

limitações impostas pelo ambiente escolar, de suas amarras e da constante “tentativa” de

institucionalizar o aluno e cortar-lhe as possibilidades de criação.4

Ao analisar o trabalho com a literatura nas escolas, faz-se necessário considerar

que há um desinteresse da grande maioria dos alunos pela prática da leitura, mais

notadamente quando se trata do texto poético. Assim, justifica-se a pesquisa voltada

para a discussão de estratégias metodológicas que possam contribuir para a reversão

dessa realidade, visando à elaboração de propostas que partam da realidade objetiva da

comunidade escolar, da valorização da capacidade criadora do grupo e da consideração

dos aspectos sócio-econômico-culturais que interagem dialeticamente com o espaço

escolar. Nessa medida, leva-se em consideração a totalidade de categorias que formam a

visão de mundo do educando, sabendo-se que a sociedade é tocada pelo processo

4 AVERBUCK, Ligia Morrone (p. 65). in ZILBERMAN, R. Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.

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educacional e por ele é determinada, ao mesmo tempo em que o determina e dita seu

tom.

O trabalho com a literatura não pode se ater à mera prática de decorar e declamar

poesias de forma mecânica, descontextualizada, sem sentido nem sentimento, como

bem afirma Drummond: "Sei que se consome poesia na sala de aula, que se decoram

versos e se estimulam pequenas declamadoras, mas será isto cultivar o núcleo poético

da pessoa?” 5

Ler não é uma tarefa fácil, especialmente quando o alvo é o jovem que, muitas

vezes, encontra nos meios de comunicação de massa um atrativo muito maior que a

leitura proposta pela escola. Tendo em vista essa problemática, faz-se necessária a

ressignificação do trabalho com a poesia, de modo que esse gênero textual possa ser

utilizado como recurso cognitivo e comunicativo. Ou seja, fazer ver que a poesia pode

ser um lugar de resistência, de fomento de idéias, se vivenciada a partir de um trabalho

pedagógico que possibilite recuperar a expressão do aluno.

Nessa medida, enfocamos o papel da emoção no aprendizado. Sem emoção não

há criação. A certeza é que é através da descoberta do prazer de um bom texto que se

adquire o hábito de leitura e de que essa descoberta se dará mais facilmente na infância

e, provavelmente, na escola6. O texto literário possibilita um conhecimento pleno e

interpretativo da realidade do ser humano, em oposição ao saber fragmentado, alienado

e manipulador que pode estar presente em outros tipos de textos. Portanto, nesse

contexto, urge trabalhar a poesia e, a partir dela, abrir as portas para todas as leituras

que se apresentam em nosso dia-a-dia, convidando o leitor a participar e a emitir

opiniões, levando-o a sentir as emoções presentes nos diversos textos, cultivando nos

jovens o gosto pela arte e pela descoberta do novo.

Portanto, a maior herança que a educação escolar pode deixar a um aluno é o

que visa esse projeto – a capacidade de ler, o gosto pela leitura – pois se ele passar pela

escola e aprender pouco, mas for um bom leitor, terá nos livros, revistas, sites da

Internet e outros materiais um prolongamento da sua formação e poderá desenvolver-se

muito além do que a escola esperaria de um aluno ideal. Dessa forma, o trabalho segue

no sentido de que todos possam assumir os compromissos sociais e participar

ativamente da construção da história.

5 ANDRADE, Carlos Drummond de. A educação do ser poético. In: Arte e Educação, 19746 Maior aprofundamento teórico acerca do tema na produção de AVERBUCK, Ligia Morrone (p. 65). in ZILBERMAN, R. Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.

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Além disso, a poesia é um elemento importante a ser utilizado como suporte da

formação da personalidade, da estruturação do indivíduo e de seu autoconhecimento. A

individualidade afirma-se e reafirma-se na possibilidade de expressar-se por meio da

poesia, ao identificar-se com a obra lida. A experiência libertadora e lúdica de poder

compor, de manifestar-se por meio da linguagem, faz da poesia um elemento

fundamental de comunicação e auxilia na formação do senso estético7. Trabalhar a

poesia e, a partir dela, abrir as portas para as várias leituras que se apresentam em nosso

dia-a-dia, faz sentido quando a proposta é a de educar para o mundo.

Esse processo se dá no convite ao leitor para que participe ativamente,

emitindo opiniões, o que termina por levá-lo a sentir emoções presentes nos diversos

textos para buscar informações práticas, satisfazer curiosidades, informar-se sobre o que

acontece no mundo, divertir-se, relacionar-se.

A gama de diferentes emoções que a poesia traduz é o que seduz para o

verdadeiro aprendizado. E a poesia fruto da sensibilidade do poeta visa à sensibilidade

do leitor através da palavra que, dita na hora certa ou trabalhada no momento adequado,

pode transformar uma situação. Ser íntimo das palavras, possuí-las como um recurso, é

um direito fundamental de todos. E a poesia, arte das palavras, possibilita a conquista de

uma nova realidade, porém sem compromisso com aspectos morais ou instrutivos. A

possibilidade de trazer novos significados às palavras, de reinventar seu sentido em um

contexto pessoal, faz da poesia uma forma de expressão diferente, cheia de simbologias

que são passíveis de diferentes interpretações.8

O sentimento é a matéria-prima fundamental na composição poética. O arranjo

das palavras, a estruturação do texto, da rima e da métrica são apenas os elementos

facilitadores da composição, da comunicação. O leitor se identifica com o texto e o

interpreta de acordo com sua experiência pessoal, cria gosto e lê aquilo que se faz a real

expressão do que pensa e do que sente. Por isso é que a poesia é um meio de se chegar

ao aprendizado através da emoção e da sensibilidade, não um conteúdo a mais em uma

longa lista a ser memorizada.

Não se trata de afirmar que a poesia é a panacéia da educação, longe disso, ela

é mais um meio pelo qual o educador pode iniciar um trabalho significativo que toque

7AVERBUCK, Ligia Morrone (p. 69). in ZILBERMAN, R. Leitura em crise na escola: as alternativas do

professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.8PAIXÃO, Fernando. O que é poesia? Coleção primeiros passos. São Pulo Editora Brasiliense: 1991.

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aos alunos, que os faça sentir impulsionados ao ato de aprender, refletir e crescer.

Sabendo que a escola representa para alguns alunos a única oportunidade de ler, faz-se

necessário propiciar nas salas de aula a dinamização da cultura viva, diversificada e

criativa, que representa o conjunto de formas de pensar, agir e sentir das pessoas.

Tendo em vista que o atual modelo de ensino da língua materna vem se

mostrando arcaico e desmotivador, levando principalmente os filhos de classes menos

favorecidas a evadirem-se da escola ou a permanecerem “estudando” sem interesse,

propõe-se um trabalho diferenciado, lúdico, através da poesia, para mobilizar os jovens

a participarem como protagonistas do seu próprio aprendizado.

A poesia perdeu-se no tempo e no espaço escolar. Urge resgatá-la. Não se trata,

porém da escola assumir a responsabilidade de fazer poetas: sua responsabilidade é a de

proporcionar o acesso ao conhecimento e ao prazer de conhecer textos poéticos. Foi o

que buscou-se na elaboração dessa proposta de ação.

3. MATRIZES TEÓRICAS UTILIZADAS: A BASE PARA A ELABORAÇÃO

DA PROPOSTA

Para o planejamento da intervenção prática, utilizou-se os textos Ciclos de

Aprendizagem: uma proposta para a elaboração de materiais didáticos9, de Christiane

Gioppo e Uma Didática para a Pedagogia Histórico-Crítica10, de João Luiz Gasparin.

Ambos materiais que propõem alternativas para a estruturação do trabalho docente,

desde o planejamento até a avaliação, conforme pode-se ver a seguir:

Considerações sobre Ciclos de Aprendizagem: uma proposta para a elaboração

de materiais didáticos

A metodologia de Gioppo, apresentada nesse texto adaptado de A Avaliação em

Ciências Naturais11, se divide em cinco estágios de atuação em sala de aula, o que

facilita a explicação didática de sua teorização. Todas as fases da estratégia de trabalho

proposta são permeadas pela avaliação diagnóstica e cumulativa, objetivando o

acompanhamento do desenvolvimento do educando em todo o decorrer do processo

9 GIOPPO, C; Silva. Ciclo de Aprendizagem: uma proposta para a elaboração de matérias didáticos. Texto adaptado. GIOPPO, C; Silva R. V. e BARRA V. M. M. A Avaliação em Ciências naturais. Curitiba: Editora da UFPR/ MEC, 200610GASPARIN, João Luiz. Uma Didática para a Pedagogia Histórico-Crítica. São Paulo: Autores Associados, 2003.11 GIOPPO, C; Silva R. V. e BARRA V. M. M. Op.cit.

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pedagógico. Essa avaliação é subsidiada por perguntas reflexivas, propostas nos temas

para debates, que reforçarão conceitos, conteúdos e produções do processo inteiro. A

diagnose do quadro se dá a partir da argumentação presente no discurso utilizado, que

revela a abstração individual, a desenvoltura na generalização dos conceitos e no avanço

para a transposição dos conhecimento adquiridos para a sua realidade concreta.

No primeiro estágio, denominado Envolvimento, os alunos têm o primeiro

contato com a metodologia de trabalho e seus objetivos. O professor explicita o que é

esperado para a aprendizagem e faz uma avaliação diagnóstica do grupo para conseguir

reconhecer o entendimento dos alunos sobre o tema a ser tratado e, assim, traçar a

estratégia para a abordagem do assunto de forma que pareça atrativa ao grupo.

O estágio de Exploração, que vem em seguida, busca engajar os alunos em

investigações cooperativas, atividade de pesquisa em grupos e debates, que levam a

turma à construção de uma experiência comum em relação ao objeto do estudo o que,

segundo a autora, permite o estabelecimento de um conhecimento mínimo, o

compartilhamento dos diferentes entendimentos presentes na turma.

Em seguida, se inicia o estágio de Explicação, que consiste na discussão

mediada pelo educador, que deverá auxiliar na interpretação dos pontos levantados

pelos alunos, nos dados que coletaram e na descrição da investigação feita. Esse estágio

visa o início da superação do senso comum, a elaboração dos conteúdos e leitura a

crítica do aprendizado.

Os conhecimentos adquiridos são reforçados e reelaborados, mediante a práxis

pedagógica do educador, no estágio de Elaboração ou Aprofundamento, o quarto

momento do processo. Neste ponto, os conceitos científicos são transpostos para a

realidade concreta dos alunos, que podem fazer generalizações a partir do conhecido,

conferindo uma maior significação prática ao conteúdo abordado. São debatidas

questões sociais da realidade dos educandos, a partir da leitura e releitura de mundo, sob

a luz dos conceitos apreendidos nas leituras, pesquisas, debates e exposições que

ocorreram em todo o processo.

A Avaliação Final, que é o quinto e último estágio da proposta, é o ponto

culminante, em que se verifica a elaboração do tema, o estabelecimento de conexões

entre o conteúdo apreendido e a sua aplicação em situações cotidianas, a possibilidade

de retomada de alguns de seus pontos ou a total reestruturação dos trabalhos a partir de

outras estratégias. É o procedimento por meio do qual o professor acompanha o

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desenvolvimento do aprendizado dos alunos e efetiva o aprimoramento do seu próprio

trabalho pedagógico.

Considerações sobre Uma Didática para a Pedagogia Histórico-Crítica

O método desenvolvido por Gasparin se baseia no método dialético de

construção do conhecimento prática-teoria-prática e nos passos da pedagogia histórico-

crítica propostos por Saviani em Escola e Democracia12. O autor apresenta cinco

capítulos divididos em três partes, a saber:

A Parte I, denominada Prática Social: Nível de desenvolvimento atual do

educando, aborda a ação prática do professor que apresenta os conteúdos e estabelece

um diálogo em que os alunos expressam a sua vivência pessoal sobre o assunto. Ela é

composta pelo capítulo Prática Social Inicial do Conteúdo: O que os alunos a o

professor já sabem, que afirma que o primeiro passo do trabalho pedagógico

caracteriza-se como uma mobilização do aluno para a construção do conhecimento

escolar. Nesse momento parte-se da realidade objetiva do entorno dos educandos e faz-

se um contato inicial com o tema a ser estudado, motiva-se o estudante a participar do

processo e busca-se dar significado aos conteúdos a serem abordados, conforme afirma

Gasparin: “Uma das formas para motivar os alunos é

conhecer sua prática social imediata a respeito do

conteúdo curricular proposto. Como também ouvi-los

sobre a prática social mediata, isto é, aquela prática

que não depende diretamente do indivíduo, e sim das

relações sociais como um todo. Conhecer essas duas

dimensões do conteúdo constitui uma forma básica de

criar interesse para uma aprendizagem significativa do

aluno e uma prática docente também significativa.”13

Ou seja, esse é o ponto de partida para uma pedagogia que privilegia a relação

significativa entre conhecimento e prática social, que se pretende fazer relevante para os

sujeitos envolvidos.

Já a Parte II, Teoria: Zona de desenvolvimento imediato do educando, constitui

a teorização metodológica do processo de trabalho com o conteúdo escolar e

12 SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. Campinas: Autores Associados, 1999.13 GASPARIN, João Luiz. Uma Didática para a Pedagogia Histórico-Crítica. São Paulo: Autores Associados, 2003.

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compreende quatro capítulos: Problematização: Explicitação dos principais problemas

da prática social, Instrumentalização: Ações didático-pedagógicas para a

aprendizagem, Catarse: Expressão elaborada da nova forma de entender a prática

social e Prática Social Final do Conteúdo: Nova proposta de ação a partir do conteúdo

aprendido.

Na etapa Problematização: Explicitação dos principais problemas da prática

social, o autor aponta a problematização como tarefa fundamental para o

encaminhamento de todo o processo de trabalho educativo, uma vez que ela representa

um elemento-chave na transição entre a prática e a teoria, entre o fazer cotidiano e a

cultura elaborada.

O objetivo é elencar problemas relevantes na prática social, que precisam ser

resolvidos no cotidiano das pessoas ou da sociedade, mas que estabelecem relação com

conteúdo a ser trabalhado, bem como a investigação de alternativas para solucionar

essas questões.

No momento da Instrumentalização: Ações didático-pedagógicas para a

aprendizagem, o docente age em conjunto com o grupo para a construção do

conhecimento científico, no sentido da elaboração da aprendizagem, com a apresentação

sistemática do conteúdo por parte do professor e por meio da ação intencional dos

alunos de se apropriarem desse conhecimento. De acordo com o autor, isso é o que

possibilita a aprendizagem do conhecimento científico, a apropriação dos saberes

sistematizados pela humanidade ao longo da história.

O próximo passo é a Catarse: Expressão elaborada da nova forma de entender

a prática social, que tem a síntese como operação fundamental. Nesse instante o

estudante é desafiado a demonstrar o quanto se aproximou da solução dos problemas

levantados, sistematizando e manifestando o que assimilou no decorrer das aulas, por

meio do seu discurso e/ou suas produções.

Por fim, a Parte III, Prática Social: Nível de desenvolviemnto atual do

educando, apresenta o capítulo Prática Social Final do Conteúdo: Nova proposta de

ação a partir do conteúdo aprendido, no qual é tratado o resultado objetivo de toda a

jornada. De acordo com o autor, é o ponto de chegada do processo pedagógico na

pedagogia histórico-crítica

Esse passo da metodologia é caracterizado pelo retorno à prática social, a

transposição do teórico para o prático. Levando-se em consideração que “Prática Social

Inicial” e “Prática Social Final” constituem um todo dialético, freqüentemente

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contraditório, no qual se evidencia uma luta constante entre o velho e o novo”,

conforme Gasparin, essa fase de maior clareza deve transformar a visão de mundo de

todos aqueles que se envolveram nos trabalhos. Cabe ao educador, conduzir o

fechamento das atividades com uma proposta de ação efetiva que anteveja o que cada

um poderá transformar na sua realidade, assumindo compromissos com a sociedade,

agora que está de posse de novos conceitos.

4. A EXPERIÊNCIA NO PDE COMO OPORTUNIDADE PARA O

EMBASAMENTO DA PROPOSTA: NOVOS DEBATES E NOVAS IDÉIAS A

PARTIR DA ORIENTAÇÃO DA PESQUISA

Aparentemente o que tem tornado o trabalho com Língua Portuguesa difícil e

desmotivador são as amarras que prendem professores, alunos, pais de alunos e, de certa

forma, a escola ao passado, mesmo que contra a vontade de todos e apesar da

consciência do fato. O tempo passa e a escola que sonhamos parece estar cada vez mais

distante.

O ensino de Língua Portuguesa, quando voltado para a gramática normativa, não

dá conta da expectativa dos educandos, muito menos de suas necessidades práticas, e

não resolve o problema da leitura e da escrita na escola. Em contrapartida, temos a

linguagem artística, que entra no terreno do imprevisível, prima pela criatividade. Abre

caminhos, tocando a sensibilidade e liberando emoções no leitor.

É em resposta a este desafio que se propõe uma atividade que se baseia no aporte

teórico levantado e na observação diária do trabalho educativo, para propor a utilização

da poesia como meio para conferir significado ao trabalho com Literatura em Língua

Portuguesa.

Para que se fizesse a delimitação do objeto de estudo da pesquisa e do

referencial teórico para fundamentar o seu desenvolvimento, aconteceram quatro

encontros de orientação. Ficou determinado que a pesquisa estaria voltada para o

resgate do trabalho com a poesia, mais especificamente o texto poético como estratégia

para formação de leitores a partir da quinta série do ensino fundamental, porém

propondo uma renovação no modo como esse tipo de gênero textual vem sendo

trabalhado tradicionalmente. Nesse sentido, o conhecimento das terminologias técnicas

como rima, ritmo e quadras, passaria a ter apenas uma função secundária ou

complementar nessa proposta. Posteriormente, o projeto passou a ter seu foco em três

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turmas do ensino médio do Colégio Estadual Papa João Paulo I, onde o autor da

pesquisa atua como docente de Língua Portuguesa e Literatura. Tal alteração no campo

de pesquisa ocorreu pela necessidade de adaptação da proposta às turmas em que

lecionava. Foram feitas alterações nas atividades trabalhadas para que ficassem de

acordo com a faixa etária e o nível de conhecimento que os alunos do ensino médio já

possuem.

Foi elaborado o material para o Projeto Folhas14 com algumas atividades

pertinentes ao trabalho com a poesia e estas, além de outras tantas, foram aplicadas no

universo de pesquisa delimitado, buscando-se elementos práticos que subsidiassem a

escrita deste artigo.

Também se determinou a estruturação de um trabalho com o GTR15, para que os

professores participantes estivessem sensibilizados em relação ao texto poético, o que é

fundamental para o êxito dessa iniciativa, uma vez que é preciso sentir a necessidade e

reconhecer a relevância do ato de ler para poder incentivar o hábito da leitura em seus

alunos, principalmente no caso da poesia. O trabalho com a emoção pressupõe plena

dedicação. Desse modo, a discussão esteve centrada no estudo da poesia como um meio

para a sensibilização do aluno, a partir da sensibilidade do professor e do artista. Em

outras palavras, a poesia pode mostrar que o objeto de ensino para a disciplina de

Língua Portuguesa é mais atraente ou motivador quando se percebe que a língua é

trabalhada artesanalmente. Esse trabalho foi mais uma via de auxílio nos

ecaminhamentos da pesquisa, pois permitiu a interação com outros educadores da área e

seus pareceres a respeito da a proposta.

5. PROPOSTA PARA O TRABALHO COM POESIA: UMA ALTERNATIVA DE

TRANSFORMAÇÃO DA PRÁXIS DOCENTE

A elaboração de uma proposta educativa com poesia, na perspectiva de

emancipação do leitor busca incentivar o hábito da leitura, desenvolvendo o senso

crítico, a criatividade e o contato com poesias através de uma metodologia diferenciada,

inserindo os alunos do ensino médio no universo poético, familiarizando-os com a

linguagem poética e com a forma gráfica dos textos.

14Para aprofundar o conhecimento sobre esta proposta e conhecer as produções dos professores da rede Estadual de Ensino do Estado do Paraná, pode-se visitar o site http://www.diaadia.pr.gov.br/projetofolhas.15 Maiores informações sobre o GTR em: http://www.pde.pr.gov.br.

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Trata-se de oportunizar aos alunos uma nova perspectiva de apropriação do

conhecimento da literatura como forma de complementação e incentivo à leitura, nesse

caso, também de proporcionar a expansão e expressão de sentimentos, conforme afirma

Paulo Freire16, “Queremos uma pedagogia que, sem renunciar à exigência do rigor,

admita a espontaneidade, o sentimento, a emoção, e aceite, como ponto de partida, o

que eu chamaria de ‘o aqui e o agora’ perceptivo, histórico e social dos alunos”. O

resultado almejado é a emancipação do leitor/escritor, o desenvolvimento do raciocínio,

a concentração, a percepção sensorial, o pensamento reflexivo e o senso estético os

quais têm oportunidade de se tornarem uma base sólida na formação do educando.

Na proposta de ação elaborada, o primeiro contato dos alunos com a

metodologia adotada se dá quando o professor apresenta os conteúdos objetivos a serem

trabalhados o que, de acordo com Gasparin17, auxilia os educandos a assumirem uma

maior um comprometimento com o encaminhamento do processo pedagógico e seus

objetivos.

A metodologia de trabalho se dividiu em quatro momentos, com objetivos

ligados à questão social, à reflexão acerca da realidade objetiva que os alunos vivenciam

e ao conhecimento e sensibilização por meio da poesia com vistas à exploração da

expressão escrita, conforme descrito a seguir:

• conhecer as semelhanças entre poesia e música (letras de músicas), como formas

de expressão;

• reconhecer e utilizar diferentes formas de expressão escrita;

• refletir acerca da sociedade e da realidade socioeconômica vivenciada

diariamente;

• compreender a construção histórica de alguns conceitos sociais atuais;

• produzir e interpretar resultados de pesquisas bibliográficas e de campo;

• desenvolver e aprimorar formas de expressão oral em debates e apresentações

em seminários;

• debater sobre a exclusão social de etnia, cor, gênero, econômica e cultural.

• reconhecer as características de alguns poemas – rima, estrutura, métrica.

A primeira parte dos trabalhos compreendeu um bloco de quatro horas/aula, que

se iniciou com um conjunto de aulas expositivo-dialógicas, permeadas pelo debate 16 FREIRE, P & CAMPOS, M. O. Leitura da Palavra... leitura do mundo. Rio de Janeiro: O Correio da Unesco, vol. 19, n. 2, 1991.17 GASPARIN, João Luiz. Uma Didática para a Pedagogia Histórico-Crítica. São Paulo: Autores Associados, 2003.

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provocado pela leitura da citação de Albert Einstein, que diz: “Época triste a nossa em

que é mais difícil quebrar um preconceito do que um átomo”, do texto do Gênesis 1. 1-

26, da Bíblia Sagrada18, do poema “Significado”, de Helena Kolody19. do Artigo I da

Declaração Universal dos Direitos Humanos20 e do trecho da Lei nº 7.716/89, com a

Redação dada pela Lei nº 9.45921 que versa:

“ Art 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Art. 20º Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Pena: reclusão de um a três anos e multa.”

Foi encaminhada uma reflexão acerca daquilo que é ponto comum e o que é

específico na temática abordada nesses textos, com a abertura de espaço de debate entre

o grupo para a troca de idéias e impressões.

Foram escolhidos, entre o grupo, alguns alunos relatores, para acompanhar todo

o processo e fazer o registro escrito de todos os momentos do projeto, até a avaliação.

A citação de Ítalo Moriconi22 aborda a fusão conceitual entre poesia e canção,

conforme pode-se observar:

“Na verdade, a indistinção e até certo ponto a fusão conceitual entre poesia e canção tem uma longa historia em nossa cultura literária. Foi exatamente nesse ponto de confluência que começou a tradição poética na língua portuguesa. As medievais cantigas de amor e de amigo, que inauguraram a poesia sentimental lusa, eram letras de composições musicais, como seus nomes bem indicam – cantigas. Pois suas melodias perderam-se no tempo e as letras sobreviveram, viraram literatura pura, literatura de livro. Literatura é texto que se guarda.”

Este é o ponto de partida para atividades com as duas linguagens, tendo como

objeto de mobilização inicial a letra da música Todo Camburão Tem um Pouco de

Navio Negreiro23, de Marcelo Yuka, do grupo musical O Rappa. O trabalho é conduzido 18 Gen 1. 1-26, Bíblia Sagrada.19 Poema “Significado” em Kolody, Helena. Sinfonia da vida. Paraná. Org.Tereza Hatue de Rezende: Pólo Editorial do Paraná, 1997.20 Artigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948.21 Lei Nº 7.716/89 Redação dada pela Lei Nº 9.459, de 15/05/97).22 MORICONI, Ítalo. Como e por que Ler: Poesia Brasileira do Século XX. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.23 Música “Todo Camburão Tem Um Pouco de Navio Negreiro”, de Marcelo Yuka do grupo musical O Rappa.

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para a reflexão sobre a existência da discriminação racial no Brasil e no mundo. Esse foi

um momento determinante para o projeto, pois ligar o conteúdo à realidade diária do

grupo faz-se fundamental para a mobilização inicial, que dita o envolvimento dos

educandos e seu compromisso com a proposta de trabalho, conforme afirma

Vasconcellos24:“Conhecer a realidade dos educandos implica

em fazer um mapeamento, um levantamento das

representações do conhecimento dos alunos sobre o

tema de estudo. A mobilização é o momento de solicitar

a visão/concepção que os alunos têm a respeito do

objeto (senso comum, 'síncrese')” 25

A música é apresentada em CD e, após as considerações do grupo, se apresenta a

poesia Navio Negreiro, de Castro Alves, para que se faça um paralelo entre as duas,

observando as semelhanças de tema, o contexto histórico em que cada uma foi escrita,

as transformações sociais que ocorreram no período histórico entre uma e outra

composição e o que ainda perdura daquela realidade da colonização do Brasil.

Os alunos respondem a algumas questões escritas de cunho reflexivo a respeito

da escravidão, dos aparelhos de repressão, da reprodução de modelos antigos na

sociedade atual e da relação entre os textos apresentados com a sua realidade

quotidiana.

Os alunos destacaram o caso dos brasileiros que foram barrados na Espanha,

durante a discussão, já que esta era uma notícia recente. Foi interessante ver como se

desenvolveu um discurso contra a xenofobia, um tema sobre o qual eles disseram nunca

ter refletido antes. Outros alunos aprofundaram o tema relatando que as leis que

envolvem direitos humanos não são muito conhecidas pelas pessoas mais humildes e

nem respeitadas por todos, sendo que algumas delas só estão no papel ou beneficiam os

poderosos. Todos pareceram concordar.

Uma aluna comentou o casamento de uma moça branca e rica com um rapaz

negro e morador de favela, que apareceu em uma novela e que foi tratado como sendo

polêmico. Para ela o fato do casamento de pessoas de etnias diferentes não é algo nada

assustador, mas afirmou que julgava fantasioso demais o jeito que a mídia aborda este

24VASCONCELlOS, Celso dos S. Construção do Conhecimento em Sala de Aula. São Paulo: Libertad, 1993.25 VASCONCELlOS, Celso dos S. Construção do Conhecimento em Sala de Aula. São Paulo: Libertad, 1993.

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tema. Parece que esta opinião foi consensual, pois a maioria dos alunos concordou ou

com gestos ou com palavras afirmativas.

Em seguida, os alunos foram fazer uma pesquisa individual em jornais, revistas,

livros; para colher histórias, depoimentos com seus pais, avós, vizinhos, amigos sobre

os assuntos: discriminação étnica, violência policial, desigualdade social. Eles

produziram textos que expressaram as suas conclusões sobre o assunto.

Neste ponto foram formados grupos de três ou quatro participantes, para que

elaborassem um trabalho a ser apresentado oralmente para o grande grupo, com cartazes

ilustrados com imagens, poesias, letras de músicas, desenhos e/ou colagens a serem

expostos posteriormente para todo o Colégio. Todo o trabalho de preparação do

seminário e da exposição foi acompanhado pelo professor, que auxiliou na

sistematização e montagem das falas e dos cartazes para que a ortografia, a questão

visual e a informação fossem observadas. A pesquisa proposta, na qual foram

levantados poemas já conhecidos por eles, suas famílias, pessoas da comunidade, em

livros e na Internet, teve a socialização dos resultados em um momento de apresentação

e debate no grande grupo. A avaliação se deu pela observação constante e anotações no

decorrer das apresentações dos resultados. Nessa fase deve ocorrer a apreensão “dos

instrumentos teóricos e práticos necessários ao equacionamento dos problemas

detectados na prática social”, conforme Saviani26

Em virtude disso, os educandos, com auxílio e orientação do professor,

apropriam-se do conhecimento socialmente produzido e sistematizado para enfrentar e

responder aos problemas levantados.

A avaliação27 adotada é processual, diagnóstica e cumulativa, observando o

desenvolvimento individual de cada aluno, com base na participação nos debates, nas

respostas das atividades escritas propostas, na pesquisa realizada, na apresentação oral e

escrita do seminário.

SEGUNDO MOMENTO:

No segundo momento, com duração de três horas/aula, foi retomado o trabalho

comparativo entre a música Todo Camburão tem um Pouco de Navio Negreiro e o

poema O Navio Negreiro28, de Castro Alves. A gravação de Caetano Veloso e Maria

26 SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. Campinas: Autores Associados, 1999. 27 Mais informações a respeito em: LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação da Aprendizagem Escolar: estudos e proposições. São Paulo: SP: Cortez, 2003.28 Poema “O Navio Negreiro” in ALVES, Castro in: Espumas flutuantes, 1870.

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Betânia, na qual esse poema em ritmo de Rap29, foi apresentada à turma e se recuperou

tal paralelo traçado anteriormente.

O professor fez uma exposição reforçando as condições precárias de transporte

dos escravos, levantadas nas pesquisas dos alunos e citadas no trecho do Navio

Negreiro que foi musicado, a crítica a um comportamento social negativo por parte das

autoridades policiais, da imprensa e da omissão das pessoas apresentados na música

Todo Camburão Tem um Pouco de Navio Negreiro, d`O Rappa, relacionando os

múltiplos significados assumidos pela palavra “camburão”, a partir da sua comparação

com um navio negreiro.

Iniciou-se nesse momento um espaço para a troca de idéias e impressões dos

alunos sobre o tema e seus conhecimentos anteriores sobre a escravidão em geral. Em

seguida, abriu-se a discussão sobre a poesia e a música, na qual houve uma participação

maior do professor, explicando e lembrando aos alunos que a poesia tem sua origem nas

cantigas trovadorescas, cujas melodias se perderam, ficando apenas o texto literário.

Essa discussão se justifica evidentemente pela proposta de atividade que virá em

seguida.

Foram respondidas algumas questões propostas pelo professor que, além de

abordar a questão da escravidão, fazem refletir sobre figuras de linguagem e sobre como

é possível escrever acerca de algo que se conhece na teoria, mesmo sem nunca ter

vivenciado tal realidade.

A avaliação diagnóstica e cumulativa foi mantida, com base no desenvolvimento

individual de cada aluno, a partir do observado nas aulas anteriores, da sua participação

nos debates e das respostas dadas nas atividades escritas propostas.

TERCEIRO MOMENTO:

O professor conduziu uma discussão a respeito da discriminação racial, abrindo

espaço para o debate entre os alunos, mediando os conflitos e aprofundando o tema ao

ampliar a discussão para outros problemas sociais como as diferenças de classe social, o

trabalho infantil, a prostituição infantil e a adulta, a corrupção em todas as esferas

públicas e em empresas privadas, a falta de policiamento adequado, a falta de um

atendimento digno de saúde pública e a mortalidade infantil, para abordar a atualidade

dos versos de Navio Negreiro30 de Castro Alves.

29 CD Livro (1998), de Caetano Veloso.30 Poema “O Navio Negreiro” in ALVES, Castro in: Espumas flutuantes, 1870.

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No debate, os alunos levantaram questões como o fato de o preconceito ter

diferentes faces, de não estar atrelado apenas à etnia. Um aluno afirmou que, na verdade

“o preconceito é muito mais social”, referindo-se ao fato de que a discriminação não

está relacionada somente à etnia, mas à classe social de quem discrimina e de quem

sofre a discriminação, principalmente no que diz respeito à justiça

Uma aluna afirmou que “O governo é negligente”, no tocante à falta de acesso à

saúde, à educação, à moradia digna, ao emprego e ao lazer que a maioria das pessoas

enfrenta.

O debate se tornou extremamente polêmico quando uma aluna levantou a

discussão que diz respeito às relações homossexuais, que estão cada vez mais em

evidência na mídia. Nesse caso, os alunos demonstraram um profundo preconceito com

opiniões que parecem não entender a condição humana dessas pessoas, negando,

portanto, seus direitos, como se essa postura fosse realmente a mais acertada. Direitos

como ao casamento homossexual, à adoção de uma criança e até mesmo à herança

foram discutidos de forma bem acalorada. Contudo, por se tratar realmente de um tema

polêmico na sociedade e na mídia, houve uma provocação do professor para que os

alunos apresentarem esse tema em seus trabalhos .

Em seguida, um aluno levantou a questão da mulher que também é discriminada

socialmente, mesmo que venha conquistando o seu espaço no mundo a cada dia. A

violência doméstica, a discriminação de gênero no mercado de trabalho, a falta de vagas

em creches, foram tópicos abordados e eles concluíram que ainda há muito o que fazer

para garantir a igualdade de oportunidades para as pessoas.

Então, o professor apresentou o poema O Bicho31, de Manuel Bandeira, e fez

com que se debatesse o seu tema, buscando aproximações entre uma e outra obra

apresentadas. Foram realizadas atividades escritas de interpretação e produção de texto,

ilustração e reflexão com base nas discussões e no poema.

Na seqüência, o tema poesia foi retomado, como forma de expressão artística,

analisando figuras de linguagem, estrutura, métrica e rimas utilizadas pelos poetas.

Foi proposta uma reflexão sobre a poesia, com base no poema Autopsicografia32,

de Fernando Pessoa, e em Os Poemas33, de Mário Quintana. Seguiu-se a proposta de

31BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 198032Poema Autopsicografia, encontrado em PESSOA, Fernando. Os melhores poemas de Fernando pessoa, seleção de Tereza Rita Lopes. São Paulo :Global, 1985.33Os poemas, poesia encontrada no livro QUINTANA, Mário. Esconderijos do tempo. Porto Alegre: L&PM,1980.

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uma atividade de pesquisa sobre poesia, em grupos de quatro ou cinco alunos, em que a

idéia é tentar lembrar-se de alguma poesia, perguntar a alguém próximo sobre alguma,

ou encontrar uma nos livros da biblioteca do colégio, registrando-a em folhas de papel

sulfite para apresentar em uma leitura em sala de aula.

QUARTO MOMENTO:

Neste último bloco de atividades, com previsão para a duração de quatro

horas/aula, o professor retomou as aulas anteriores, comentando a peculiaridade da

poesia em seu modo especial de exprimir as coisas, os sentimentos, as emoções,

definindo-a como linguagem viva, com símbolos abstratos criados por quem escreve.

Na seqüência, abordou diferentes tipos de composições em poesia, enfatizando o

soneto34 e o haikai35, solicitando aos alunos que participem interativamente, colocando

suas opiniões e impressões. Então, foi proposta uma pesquisa individual sobre o soneto

e o haikai, levantando as características que diferenciam esses dois tipos de poema entre

si e alguns exemplos de cada um para que os alunos possam refletir a respeito da

miríade de variações possíveis para expressão por meio da composição escrita.

Foi montado um debate onde todos apresentaram os resultados de suas

pesquisas, fizeram leitura dos exemplos que coletaram, discutiram as diferenças entre os

dois tipos de poesia e comentaram suas impressões.

As músicas A Novidade36, de Gilberto Gil e Comida37, de Arnaldo Antunes,

Marcelo Fromer e Sérgio Brito, foram apresentadas: primeiro em letra impressa, depois

em CD. Com base na letra das músicas, se encaminhou a discussão a respeito das

relações sociais nelas abordadas, a diferença de objetos de desejo das diferentes classes

sociais e o direito à cidadania.

Os alunos foram conduzidos à discussão sobre as necessidades e os direitos do

ser humano, colocando suas opiniões, sua visão da realidade e seus anseios. Um dos

pontos levantados por eles no decorrer da discussão foi o desconhecimento das leis

pelas camadas mais pobres da sociedade e o conseqüente favorecimento da classe mais

abastadas. Ainda levantaram a necessidade de uma educação de qualidade ofertada a

todos, para que o abismo que separa economicamente as pessoas não seja reproduzido

34Para tanto, o planejamento prevê a utilização do Soneto Conclusão, em Andrade, Carlos Drummond. O melhor da poesia brasileira. Rio de janeiro: José Olimpio:200535O exemplo utilizado no planejamento é Haikai, encontrado em Leminski, Paulo. Melhores poemas de Paulo Leminski, seleção Fred Góes, Álvaro Martins. São Paulo: Gaia, 2006.36A Novidade, música de Gilberto Gil37Comida, música de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Brito

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no campo do conhecimento, já que a ignorância da maioria faz com que as injustiças

sociais sejam ainda mais cruéis.

A seguir foi apresentada outra forma de escrever poesia, o acróstico. O professor

apresentou essa composição e alguns exemplos. Então, os alunos criaram acrósticos em

oficina de poesia. A escolha do acróstico possibilita a prática da produção escrita, de

forma simples, lúdica e criativa, uma vez que delimita bem o espaço de composição a

partir das letras que compõem a palavra geradora – que por ter sido escolhida a partir de

uma reflexão social pessoal, possibilita a externalização dos conceitos do meio em que

vive sob aspectos culturais, de gênero e classe, elaborados e reelaborados no decorrer de

toda a proposta.

Essa atividade serviu como fechamento dos trabalhos. Foi o momento de

reflexão acerca de toda a caminhada, da avaliação pessoal de cada um sobre o processo,

o seu desenvolvimento individual e o do grupo, dos trabalhos propostos, dos

conhecimentos e da metodologia adotada.

A avaliação final se mantave nos mesmos moldes, diagnóstica e cumulativa,

observando o desenvolvimento individual de cada aluno, a partir das aulas anteriores,

com base na participação nos debates, nas respostas das atividades escritas

desenvolvidas e na pesquisa proposta, bem como na apresentação de seu resultado para

o grande grupo.

A partir dessa experiência prática, busca-se possibilitar ao aluno compreender e

analisar a linguagem poética para desenvolver a criação de suas poesias, percebendo a

importância dos escritores consagrados na formação de leitores/escritores, ou seja, na

sua própria formação, além promover momentos de lazer por meio da leitura, da escrita

da audição e da declamação de textos poéticos. Contudo, procurando ofertar ao aluno a

oportunidade de perceber melhor sua realidade social a partir da sua sala de aula, de seu

colégio, de seu bairro e através de suas habilidades de leitor/escritor criticar, sugerir e

até interferir ativamente nas possíveis mudanças.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: O FINAL DO PERCURSO, A DESCOBERTA

DE QUE O CAMINHO ESTÁ COMEÇANDO

Qualquer trabalho em educação exige muito esforço para seu

desenvolvimento, pois romper com os paradigmas, limites e práticas cristalizadas

depende de uma abertura para o desacomodar-se. O princípio de qualquer inovação vem

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do impulso para livrar-se dos hábitos enraizados e recriar a prática docente com base em

impressões pessoais sobre a realidade, leituras acumuladas durante a trajetória de

formação, pesquisas e conclusões tiradas no cotidiano da escola.

O desafio de tentar mudar o aparentemente imutável, o que já está

estabelecido historicamente como verdade absoluta, é um nadar contra a correnteza de

rio caudaloso.

O trabalho com texto poético e a música é muito desvalorizado na sociedade

capitalista em que a lógica que impera é tão egoísta, objetiva, prática e calculista. Nessa

realidade não há espaço para o coletivo, para o respeito ao próximo, para a cidadania,

para o sentimento. Contudo, é justamente dentro desse contexto que se tornam

imprescindíveis trabalhos que mobilizem os sentimentos dos jovens, que canalizem essa

energia positiva, humanizado mais o espaço escolar. A arte tem esse poder. Foi o que se

pode constatar na implementação desse projeto.

Os resultados dos trabalhos dos alunos superaram as expectativas. Foi

gratificante. Os jovens demonstraram muito compromisso com as atividades propostas e

principalmente com a realidade social na qual estão inseridos, mostrando um profundo

conhecimento dos problemas de sua escola, de seu bairro e do seu país – a

conscientização é o primeiro passo para a tomada de atitude. Na ampla maioria das

vezes, basta o momento de reflexão para que as experiências venham à tona, para que se

sintetize uma leitura da realidade. Foi o que ocorreu, confirmando a colocação de

Gasparin:“Na Catarse o educando é capaz de situar

e entender as questões sociais postas no início e

trabalhadas nas demais fases, ressituando o conteúdo

em uma nova totalidade social e dando à aprendizagem

um novo sentido. Percebe, então, que não aprendeu

apenas um conteúdo, mas algo que tem significado e

utilidade para a sua vida, algo que lhe exige o

compromisso de atuar na transformação social. O

conteúdo tem agora para ele uma significação:

constitui-se um novo instrumento de trabalho, de luta,

de construção da realidade pessoal e social.”38

38 GASPARIN, João Luiz. Uma Didática para a Pedagogia Histórico-Crítica. São Paulo: Autores Associados, 2003.

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Os alunos se mostraram seduzidos pela proposta de trabalho, pela

consideração ao seu conhecimento prévio, e conseguiram, no geral, atingir um patamar

diferenciado em seu discurso argumentativo. Partindo do conhecido, ficou mais simples

encontrar respostas para as aflições, compreender as complexidades sociais do meio que

os circunda e superar o senso comum com a mediação do conhecimento científico. Isso

posto, a implementação dessa proposta confirma Saviani, quando fala “da apropriação

pelas camadas populares das ferramentas culturais necessárias à luta que travam

diuturnamente para se libertar das condições de exploração em que vivem” Houve um

acordar para estabelecer a relação entre o mundo e o contexto escolar, entre suas

posturas individuais e coletivas como afirmação ou negação da realidade e sua

conseqüente manutenção ou transformação.

A criatividade se demonstrou na medida em que foi possibilitado o uso de

diferentes canais de expressão. A segurança do discurso aumentou na proporção do

respeito que se dava às falas, aos posicionamentos.

Essa evolução ocorrida durante o processo de aplicação desse projeto

confirma a expectativa relativa ao potencial de compreensão e elaboração de cada

educando nos momentos de debates e na produção escrita. Essa descoberta de cada um

sobre si mesmo e seu grupo, fez com que a autoconfiança fosse a base da superação.

Ao ver-se valorizado e respeitado, cada um ampliou sua perspectiva de

análise para além dos modelos impostos pela sociedade como únicos, compreenderam e

passaram a dar ouvidos à palavra do colega. Parecem ter avançado na valorização da

cultura popular e é nesse sentido que se pode notar, já nas relações interpessoais de sala

de aula, uma nova postura de convivência e valorização dos pares, os alunos têm

demonstrado uma nova postura ante às diferenças, o que se relaciona com o objetivo de

transformação da prática social enunciado por Gasparin:

“Prática social – explicita em que consiste

o novo agir do educando, seu retorno à prática inicial,

prática essa vista agora sob uma nova perspectiva, uma

vez que passou pelo estudo teórico, implicando então

uma nova forma de ação, unindo teoria e prática. São

mostradas, ainda as intenções e os compromissos

sociais do aluno por ter aprendido o novo conteúdo.”39

39 GASPARIN, João Luiz. Ibid.

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Não se trata de uma revolução, apenas a confirmação de que a vontade pode

ser o ponto de partida para a transformação. Não é o fim do caminho, apenas um passo

de uma longa caminhada em busca de aprimoramento do ensino da Língua Portuguesa.