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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Andréia de Fátima Monteiro Gil Poesia e Pantanal: o olhar mosaicado de Manoel de Barros MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA SÃO PAULO 2011

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Page 1: Poesia e Pantanal: o olhar mosaicado de Manoel de Barros de Fatima... · Manoel de Barros encena a heterogeneidade do espaço pantaneiro, procurando colocar em realce a extrema diversidade

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Andréia de Fátima Monteiro Gil

Poesia e Pantanal: o olhar mosaicado de Manoel de Barros

MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

SÃO PAULO

2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Andréia de Fátima Monteiro Gil

Poesia e Pantanal: o olhar mosaicado de Manoel de Barros

MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Literatura e Crítica Literária, sob orientação da Profa. Dra. Maria Aparecida Junqueira.

SÃO PAULO

2011

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Banca examinadora

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AGRADECIMENTOS

À Deus, pela bênção e pela sabedoria luminosa.

À professora doutora Maria Aparecida Junqueira, pela orientação dedicada e

iluminadora.

Aos professores doutores Edilene Dias Matos e Fernando Segolin, pelas

palavras elogiosas e pelas valiosas sugestões apontadas no exame de

Qualificação.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica

Literária da PUC-SP, pelas aulas instigantes e reveladoras.

Aos colegas do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica Literária

da PUC-SP, pelo compartilhamento de ideias, receios e conquistas.

À minha avó, Maria Rosa, pela força e ternura eternas.

Aos meus pais, Francisco e Elizabete, pelo apoio e afeto incondicionais e

constantes.

Ao meu futuro esposo, Eduardo, pela presença, pelo incentivo e pelo amor

inspirador.

À Lourdes e Irene, pelo precioso encorajamento.

Ao meu Paquinho, pelo companheirismo brincalhão.

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“No garfo da árvore seca uma casa de amassa-barro!

Ele edifica com lama.

A gula do podre

influi em seus traços. Porém. No que edifica o

sol tem raios túrgidos”.

Manoel de Barros

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GIL, Andréia de Fátima Monteiro. Poesia e Pantanal: o olhar mosaicado de

Manoel de Barros. Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-

Graduados em Literatura e Crítica Literária. Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo, SP, Brasil, 2011.

RESUMO

O objetivo central desta pesquisa é investigar como a obra poética de

Manoel de Barros redimensiona o Pantanal. Especialmente interroga o

“espaço”, isto é, pergunta como a poesia deste poeta reconfigura a geografia

pantaneira e como reordena pessoas, animais e coisas ao inscrever o Pantanal

em sua poética. Para conduzir nossa reflexão acerca da criação poética de

Manoel de Barros, tecemos considerações sobre poesia e poética,

examinamos as especificidades do Pantanal e tomamos de empréstimos, de

outras áreas do conhecimento, diversas noções de espaço. Adotamos como

foco iluminador da análise a obra Livro de pré-coisas, colocando-a em relação

com outras obras do autor. Como hipótese, propusemos que a linguagem

poética de Manoel de Barros é revelada de modo plural e sem limites tal como

o Pantanal apresenta-se diverso e ambíguo. Os resultados da pesquisa

ressaltam que Manoel de Barros transfaz o espaço pantaneiro, desarticulando-

o para instaurar uma nova realidade. A sua linguagem poética assume o

caráter de mosaico e põe em cena palavras com alta força imagética e

densidade sensorial.

Palavras-chave: Manoel de Barros, Livro de pré-coisas, poesia, espaço,

mosaico.

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GIL, Andréia de Fátima Monteiro. Poetry and Pantanal: the mosaic view of

Manoel de Barros. Master’s degree dissertation. Program of Pos-Graduate

Studies on Literature and Literary criticism. Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo, SP, Brazil, 2011.

ABSTRACT

The main objective of this research is to investigate how Manoel de

Barros’ poetry redesigns Pantanal. Especially, it interrogates the “space”, that

is, it questions how the poet’s poetry reconfigures Pantanal’s geography and

how it reorganizes human beings, animals and things, inscribing Pantanal on

his poetry. To guide our reflection upon Barros’ poetic creation, we take studies

about poetry into consideration, we examine Pantanal’s specifications, we grasp

concepts of space from other knowledge areas. We focus our analysis on Livro

de pré-coisas, relating it with other works of the poet. As hypothesis, we

propose that the poetic language of Manoel de Barros is revealed plural without

limits as Pantanal is shown diverse and ambiguous. The research results

reinforce that Manoel de Barros (trans) creates Pantanal’s space, rearranging it

in order to establish a new reality. His poetic language retains mosaic features

and stages poetic imagery and sensory words.

Keywords: Manoel de Barros, Livro de pré-coisas, poetry, space, mosaic.

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LISTA DE ABREVIATURAS

PCP Poemas Concebidos sem pecado – 1937/ 2010

CUP Compêndio para uso dos pássaros – 1960/ 2010

GEC Gramática expositiva do chão– 1966/ 2010

MP Matéria de poesia – 1970/ 2010

APA Arranjos para assobio – 1980/ 2010

LPC Livro de pré-coisas – 1985/ 2010

GA O guardador de águas – 1989/ 2010

CCA Concerto a céu aberto para solos de ave – 1991/ 2010

LI O livro das ignorãças – 1993/ 2010

RAC Retrato do artista quando coisa – 1998/ 2010

EF Ensaios fotográficos – 2000/ 2010

TGG Tratado geral das grandezas do ínfimo – 2001/ 2010

PR Poemas rupestres – 2004/ 2010

MII Memórias inventadas: a infância – 2007

MM Menino do Mato – 2010

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 10

CAPÍTULO 1 – A corporificação poética do espaço ................................... 16

1.1 Espaço e literatura ................................................................................... 16

1.2 Espaço e corpo ........................................................................................ 29

1.3 Espaço e poesia ...................................................................................... 33

CAPÍTULO 2 – Manoel de Barros e Pantanal: o estado de pré-coisa ....... 38

2.1 À luz da crítica, a poesia ......................................................................... 38

2.2 Em sintonia, poesia e vida ...................................................................... 45

2.3 “Antesmente”, poesia e pré-coisa ........................................................ 53

CAPÍTULO 3 – Pantanal e Poesia: homologias e transfigurações ............ 56

3.1 Reespacialização pelo olhar ................................................................... 56

3.2 Criação pelo sentir ................................................................................... 70

3.3 Mosaico espacial ..................................................................................... 75

3.4 Personagens-trastes: poéticos e pantaneiros ...................................... 86

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ 94

REFERÊNCIAS ............................................................................................... 97

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INTRODUÇÃO

Pensar o espaço na literatura obriga-nos a reportar-nos ao problema da

representação. Segundo Aristóteles (2004, p. 30), a mímese serve como ponto

de partida para toda construção artística. O filósofo grego reconhece a

tendência para a imitação como instintiva no homem: “Pela imitação adquire

seus primeiros conhecimentos, por ela todos experimentam prazer”.

Esse impulso mimetizante não deve ser entendido, no entanto, no

sentido de reprodução, mas no de criação. Aristóteles concebe o gesto criador

do poeta como instaurador de realidades possíveis. O poeta quer representar,

pela palavra, o real. Representar não no sentido de substituir, mas no sentido

de presentificar, tornar presente. Por meio da palavra poética, o espaço do

objeto artístico procura instituir novas realidades.

A busca por uma palavra capaz de ser e não de dizer o objeto exprime a

necessidade do poeta de pertencer à “coisa cantada”. O poeta não se

conforma em nomear e descrever o objeto de seu interesse, mas aspira a que

o poema seja o próprio objeto sem poder sê-lo. Cortázar confirma tal ideia ao

dizer:

Cantar a coisa (...) é unir-se, no ato poético, a qualidades ontológicas que não são as do homem, qualidades essas que o homem, descobridor maravilhado, anseia atingir e ser na fusão do poema, que o amalgama ao objeto cantado, cedendo-lhe entidade deste e enriquecendo-o (CORTÁZAR, 1974, p. 98).

A poesia de Manoel de Barros “canta a coisa” ao explorar não só o

espaço das palavras em seu percurso de rastreamento das coisas ínfimas do

chão, mas também a posição do poeta-criador e seu papel diante da estrutura

da obra. A natureza do Pantanal é transposta em palavras e o poema almeja

ser a própria natureza pantaneira nessa tradução. Tal fato indica que o pensar

sobre o fazer poético é evidenciado e a busca por palavras-ícones que tragam

o objeto mais próximo é constantemente empreendida.

Manoel de Barros expõe em sua obra poética seu desejo de tornar-se

parte da natureza e do Pantanal. O poeta, nascido e criado nas proximidades

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do Pantanal mato-grossense, expressa o desejo de inscrever esse Pantanal

vivido nos seus poemas autobiográficos, como em “Autorretrato falado”:

Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas. Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da

Marinha, onde nasci. Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios.

(...) Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me

sinto como que desonrado e fujo para o Pantanal onde sou abençoado a garças.

(...) No meu morrer tem uma dor de árvore (LI, p. 324)1.

Conhecer, então, o Pantanal, “adentrar o improvável universo de terra e

água (...) reouvir vaqueiros, boiadeiros, campeiros, rememorando o episódio

épico de cada trajetória pantaneira” (Nogueira, 1990, p. 60), estudar sua

constituição física e geográfica, sua diversidade de flora e fauna, sua fluidez e

ambigüidade, sua cultura, bem como seus fortes contrastes e aspectos míticos

(Leite, 2003), possibilitará o estabelecimento de correlações mais amplas entre

o universo pantaneiro e o universo poético de Manoel de Barros.

Planície inundável que apresenta pequenas elevações, o Pantanal é

reconhecidamente plural: “O Pantanal são vários pantanais” (Nogueira, 1990,

p. 60). Manoel de Barros encena a heterogeneidade do espaço pantaneiro,

procurando colocar em realce a extrema diversidade do ecossistema que

interrelaciona elementos e conjuntos para a manutenção do equilíbrio. O

criador mato-grossense faz com que seres e coisas saiam de suas existências

ordinárias em direção a algo indefinível, metamorfoseando, assim, o conhecido.

O anseio de Manoel de Barros por refazer o real, o mundo, a linguagem,

para edificar, pela palavra, um real transfigurado, um mundo novo e, desse

modo, apresentar uma linguagem renovada, é possivelmente despertado pelo

próprio Pantanal, que deixa visível um mundo em permanente mutação.

                                                            

1 BARROS, Manoel de. Poesia completa/ Manoel de Barros. São Paulo: Leya, 2010. Deste ponto em diante, adotaremos abreviaturas para os títulos das obras reunidas nesse volume, conforme Lista de Abreviaturas. Os excertos citados, após a abreviatura, serão seguidos apenas do número de página.

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O interesse da Literatura em estudar o espaço não é novo. Todavia, tais

estudos se concentraram no campo narrativo. Celina Leal dos Santos (2006),

por exemplo, procurou observar como os múltiplos espaços influenciam nos

elementos composicionais de Os Sertões, de Euclides da Cunha e Grande

Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. No campo poético, os trabalhos

mostram-se escassos; no entanto, podemos citar Marinei Almeida Lima que

questionou, comparativamente nas obras de Manoel de Barros e Eduardo

White, a função do espaço-tempo mítico como um dos fatores determinantes

da revisão dos limites e fronteiras dos gêneros literários.

A preocupação em examinar como o espaço se constrói nas obras

literárias foi revelada, também, em diversos debates promovidos pelo Itaú

Cultural. O evento “Encontros de Interrogação” (2009)2 reuniu escritores e

especialistas para discutir os espaços da e na Literatura. Nesse contexto,

Ronaldo Cagiano (2009), poeta, ensaísta e crítico cataguasense, buscou definir

território como lugar onde a alma do escritor habita e que carrega relações

ancestrais, vivências da infância, experiências afetivas, sensoriais e

escalonamento de valores. Para Cagiano, a “geografia” é constituída de um

componente onírico e anímico. Assim, a “geografia do escritor” revela-se

múltipla, física e perceptiva. Cagiano explicou, ainda, que a Literatura promove

uma transposição do real e uma incorporação de cenários.

Compreendendo o Pantanal como um lugar edênico, adâmico, Manoel

de Barros integra sua poética com o meio em que cresceu e vive. Explica que a

gênese de sua sensibilidade provém da criação primitiva que lhe foi

dispensada:

Fui criado em chão de acampamento, no meio de lagartixas, lagartos, sapos, mosquitos. Vivi nos brejos, lugares úmidos que custam muito a secar. Eu convivi muito com essas palavras que aparecem em mim. Na hora de escrever um verso, essas

                                                            

2 Os debates, intitulados Encontros de Interrogação, foram promovidos no mês de Maio de 2009 pelo Itaú Cultural com o intuito de problematizar o espaço da/ na literatura, seja ele físico ou virtual, real ou imaginário, do escritor ou do leitor. O evento abordou o tema, O espaço geográfico: como falar do enraizamento para além do regionalismo?, que serviu de reflexão para nossa investigação.  

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palavras brotam em mim naturalmente. É o lastro ‘brejal’ que não perdi (BARROS, apud CASTELLO, 1996b).

Ao reverenciar o natural, ressaltar a beleza original da flora e da fauna,

compartilhar seus versos com árvores, anhumas, garças, araras, beija-flores-

de-rodas vermelhas, pacus, formigas, lesmas, caramujos, seres ínfimos, ciscos

e inutilezas, Manoel de Barros redimensiona o espaço pantaneiro, criando e

recriando o real, incitando a palavra a provocar estranheza, libertando-se dos

condicionamentos sociais que bloqueiam a espontaneidade das vivências,

inspirando-se em personalidades reais, autodidatas, para afirmar que o

verdadeiro conhecimento está na leitura sensível do mundo, da natureza. O

poeta promove esse redimensionamento, valendo-se da potencialidade da

linguagem e da dinamização dos sentidos.

Manoel de Barros compreende e constrói o espaço pantaneiro por meio

das coisas ainda não configuradas. No Livro de pré-coisas (1985/ 2010), o

poeta faz a anunciação do Pantanal, com recursos lingüísticos, formais e

simbólicos em formação.

O poeta anuncia o Pantanal por meio de manchas, “nódoas de imagens

e festejos de linguagem” (LPC, p. 197). Nesse sentido, tanto o espaço do

Pantanal quanto o do próprio livro vão se revelar singulares dentro do conjunto

da obra do poeta. A natureza que o rodeia, por exemplo, é recriada pela

linguagem, e o poeta oferece ao leitor a oportunidade de enxergar

diferentemente e a crer nesse novo mundo. O criador mato-grossense nos

ensina que “beleza e glória das coisas o olho é que põe. (...) É pelo olho que o

homem floresce” (LPC, p. 224).

Com o Livro de pré-coisas, Roteiro para uma excursão poética no

Pantanal (1985/ 2010), Manoel de Barros quer dar a conhecer, por meio de

uma linguagem poética singular, as “pré-coisas”, as essências, as

insignificâncias, as paisagens e os seres do Pantanal de modo inaugural e

transfigurador.

O livro é dividido em quatro partes: “Ponto de partida”, “Cenários”, “O

personagem” e “Pequena história natural”. Na primeira parte, indica por qual

caminho o leitor/ viajante deve percorrer para descobrir o Pantanal: rumo à

liberdade inventiva. Na segunda, transforma a paisagem pantaneira e a

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representa de acordo com sua percepção única. Na terceira, seleciona uma

figura desimportante do Pantanal, Bernardo, e expõe sua trajetória de vida: “no

presente”, “no serviço”, “no tempo de andarilho”, “na mocidade”. O poeta

transcreve, ainda, a “voz interior” da personagem, desvendando os mistérios de

sua essência. Na última parte, ao tratar do “socó-boca-d’água”, do “urubu”, do

“quero-quero” e da “garça”, Manoel de Barros “transvê” a realidade e conjuga

reflexão crítica com prática poética.

À luz dessas considerações, esta pesquisa interroga especialmente o

“espaço”, isto é, pergunta-se como a obra de Manoel de Barros reconfigura a

geografia pantaneira ao espacializar poeticamente a região e sua cultura e

como o poeta reordena imaginariamente pessoas, animais e coisas ao

inscrever o Pantanal em sua poética.

Para testar esta questão-problema, selecionamos as hipóteses:

1. A plasticidade da palavra, o rompimento com a linguagem convencional,

o imbricamento prosa/ poesia, as metáforas, as justaposições, as

ambigüidades revelam correlações plurais entre Pantanal e poesia, entre

Pantanal e homem. O Pantanal apresenta-se múltiplo, em

transformação, em movimento e a linguagem poética assume tal

aspecto, mostrando-se sem limites.

2. O Pantanal de Manoel de Barros privilegia, assim, o espaço sobre o

tempo ao fundar sua poesia numa lógica espacial.

3. Criando micro-espaços poéticos que desdobram o macro-espaço

pantaneiro, o poeta sugere a noção de “Pantanal-em-processo”.

4. Manoel de Barros reconstrói o espaço do Pantanal pelo confronto tenso

entre pares opositivos – grandeza/ pequenez; interior/ exterior;

continente/ conteúdo; palavra/ “despalavra” – que suscitam sentidos

espaciais.

Para compreendermos a obra poética de Manoel de Barros, norteamos

nossa reflexão em três eixos teóricos fundamentais: estudos envolvendo

poesia e poética; investigações sobre o Pantanal e suas especificidades; e a

exploração sobre conceituações de espaço.

Refletir sobre o conceito de mímese (Aristóteles, 2004), sobre o método

analógico que atrai o poeta para a direção contrária ao modo de pensar

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comum, levando-o a construir sentidos improváveis (Cortázar, 1974), e sobre a

contribuição da imaginação para a produção da sensação do novo (Baudelaire,

1993), permite o entendimento da voz renovadora da poesia de Manoel de

Barros. Adentrar o espaço polêmico pantaneiro possibilita o estabelecimento de

relações entre o Pantanal e a poética de Manoel de Barros. Tomar contato com

diferentes concepções de espaço auxilia na descoberta de como Manoel de

Barros materializa poeticamente a reconfiguração do Pantanal.

Este trabalho divide-se em três capítulos. O primeiro capítulo, intitulado

“A corporificação poética do espaço”, investiga as concepções de espaço

adotadas em diferentes áreas do conhecimento e examina as relações entre

espaço e literatura, espaço e corpo, espaço e poesia. Concomitantemente,

verifica em que medida os poemas de Manoel de Barros manifestam tais

conceituações. Em seguida, ao identificar os recursos que o poema de Manoel

de Barros utiliza para traduzir a própria natureza do Pantanal e os

procedimentos que permitem, ao poeta, o redimensionamento e a recriação

desse espaço pantaneiro, colocando as pré-coisas em destaque, procura

construir o conceito de espaço em sua poesia. O segundo capítulo,

denominado “Manoel de Barros e Pantanal: o estado de pré-coisa”, levanta

alguns posicionamentos da crítica em relação à poesia de Barros e tenta

elaborar um método para análise de seus inusitados poemas. Aborda, também,

a trajetória poética de Manoel de Barros e sua intrigante busca pelo

“antesmente verbal”, pelo “restolho”, pela “pré-coisa” e pela inauguração de um

novo espaço. O terceiro capítulo, nomeado “Pantanal e Poesia: homologias e

transfigurações”, analisa o corpus, tomando por base os vários modos de

espacialização poética eleitos por Manoel de Barros: por estruturas

fragmentárias, pelo olhar, pelo sentir, por personagens que se metamorfoseiam

no ambiente natural, pelo imbricamento de componentes físicos, culturais e

simbólico-espirituais.

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CAPÍTULO 1 – A corporificação poética do espaço

1.1 Espaço e Literatura

O que é espaço? Pode o espaço natural servir de força motriz para a

criação de um estilo de escrita? Como a linguagem poética de Manoel de

Barros “traduz” o espaço pantaneiro? Para tentar elucidar estas indagações

instigantes, buscamos auxílio de teóricos que fornecem subsídios para uma

reflexão ante o conceito de espaço, suas particularidades e relações com o

fazer poético.

A inexistência de um significado unívoco de espaço faz com que o

conceito assuma aspectos diversos em contextos teóricos específicos. Na

Teoria da Literatura, essa problemática também se faz presente. Há quatro

modos de abordagem do espaço na literatura: representação do espaço;

espaço como forma de estruturação textual; espaço como focalização;

espacialidade da linguagem.

De acordo com o primeiro modo de abordagem, representação do

espaço, não há o questionamento sobre o que é espaço, pois este é “dado

como categoria existente no universo extratextual” (BRANDÃO, 2007, p. 208),

mas interroga-se em que medida, “na operação interpretativa, os espaços

podem ser transfigurados, reordenados, transgredidos” (BRANDÃO, 2007, p.

214).

Já no segundo modo de ocorrência, espaço como forma de estruturação

textual, considera-se de “feição espacial todos os recursos que produzem o

efeito de simultaneidade” (BRANDÃO, 2007, p. 209), efeito este obtido a partir

de recursos como a fragmentação, a combinação de elementos textuais

dispersos, a fluidez dos sentidos e a variabilidade de leituras.

Na terceira maneira de especulação, espaço como focalização, por sua

vez, compreende-se que “é de natureza espacial o recurso que, no texto

literário, é responsável pelo ponto de vista, focalização ou perspectiva”

(BRANDÃO, 2007, p. 211). Vê-se o espaço como resultado relacional das

várias visões apreensíveis no texto.

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Por último, na quarta vertente de compreensão, espacialidade da

linguagem, afirma-se que “a palavra é também espaço” (BRANDÃO, 2007, p.

211) e considera-se a linguagem literária como espacial uma vez que é

composta de signos que possuem materialidade “cuja função intelectiva jamais

oblitera totalmente a exigência de uma percepção sensível no ato de sua

recepção” (BRANDÃO, 2007, p. 213).

O conceito de espaço na poesia de Manoel de Barros leva em

consideração os modos de abordagem acima. Sistematizado simbolicamente, o

poeta promove a experimentação sensorial do Pantanal. O entorno é

percebido, incorporado ao ser que contempla para então ser recomposto e

transposto em palavras.

Como o espaço, em Manoel de Barros, é pensado em sua

multiplicidade, faz-se necessário criar um modo de apresentação que

acompanhe suas transformações contínuas. Uma escrita poética fluida, com

significados móveis, fragmentados e novas formas de (des) dizer o real,

manifesta uma ambição declarada de Manoel de Barros de reordenar o espaço

complexo circundante para transpô-lo em poesia. O espaço e os seres que

nele habitam são identificados globalmente para, em seguida, serem

desidentificados em suas particularidades. A anunciação do Pantanal se faz de

modo metafórico e imagético. O silêncio, os ventos, o rio, o tempo e as águas

são instituídos como sujeitos da ação, como nos versos:

Ia o silêncio pelas ruas carregando um bêbedo.

Os ventos se escoravam nas andorinhas.

Estamos por cima de uma pedra branca enorme que o rio Paraguai, lá embaixo, borda e lambe. (LPC, p. 197)

O tempo e as águas esculpem escombros nos sobrados anciãos. (LPC, p.198)

Se é tempo de chover desce um barrado escuro por toda a extensão dos Andes e tampa a gema. - Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem – o menino falou (LPC, p. 199).

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Manoel de Barros, assim como o menino do poema, ao descrever

poeticamente os cenários, “entorta a bunda da paisagem” (LPC, p. 199). O que

importa ao poeta é revelar sensações, visões sem máculas do ver acostumado,

“festejos de linguagem” (LPC, p. 197):

Vem um cheiro de currais por perto. Posso ver uma casa nascendo.

Insetos compostos de paisagem se esfarinham na luz. Suspensas sobre o sabão das lavadeiras, miúdas borboletas amarelas:

- Buquê de rosas trêfegas... (LPC, p. 200)

O poeta expõe uma forma poética narrativa multiperspectivada,

movente, que tenta adotar todos os pontos de vista possíveis para apreender a

totalidade: primeiro, reconfigura o espaço panoramicamente para, depois, se

aproximar, observar os detalhes e metamorfoseá-los. Convida o leitor a

acompanhá-lo nessa “excursão poética”: “Estamos no zamboada”; “Deixamos

Corumbá tardeando” (LPC, 1985/ 2010: 198- 199).

Nos poemas de Manoel de Barros, o Pantanal torna-se espacialidade,

na qual as interações simbólicas e imaginárias, situadas fisicamente,

temporalmente, existencialmente ou como formas de expressão, emolduram e

são emolduradas pela paisagem. No Livro de pré-coisas (1985/ 2010), o

poeta propõe o conhecimento do Pantanal a partir de uma viagem por

caminhos irrealizados e insuspeitados. Ao poetar, procura sair de si e trazer o

espaço pantaneiro para dentro de si. O poeta encontra no universo visível um

depósito de imagens e sinais no qual a imaginação deve interferir,

transformando, representando/ recriando os objetos segundo a apreensão

subjetiva feita pelos seus sentidos. Sobre esse aspecto da imaginação,

Bachelard (apud PESSANHA, 1999, p. 153) esclarece que “ela é a faculdade

de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade”.

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Manoel de Barros perscruta a linguagem da natureza para reconstruí-la

simbólica e esteticamente. Cria suas próprias formas e normas, deixa-se guiar

pelos deslimites, produz enunciados “constativos”, fundamentando-se no fato

de que “no Pantanal ninguém pode passar régua” (LPC, p. 206).

As pré-coisas de poesia são dadas, mostram-se observáveis e como

possibilidades. O prefixo indicativo de anterioridade deixa claro que o poeta

quer recuperar um mundo anteriormente “encantado”. A partir de imagens que

povoam seu imaginário, Manoel de Barros não descansa seu olhar sobre a

paisagem contínua de um espaço inteiramente articulado, mas se enreda nos

interstícios de extensões descontínuas para transcriar o espaço pela

linguagem:

Por aqui é tudo plaino e bem arejado pra céu. Não há lombo de morro pro sol se esconder detrás. Ocaso encosta no chão. Disparate de grande este cortado. Nem quase não tem lado por onde a gente chegar de frente nele. Mole campanha sem gumes. Lugares despertencidos. Gente ficava isolado. O brejo era bruto de tudo. Notícias duravam meses. Mosquito de servo era nuvem. Entrava pela boca do vivente. Se bagualeava com lua. Gado comia na larga. (LPC, p. 224).

A noção de espaço enquanto “conjunto de indicações – concretas ou

abstratas – que constitui um sistema variável de relações” (SANTOS e

OLIVEIRA, apud CORNELSEN, 2007) de ordem geográfica, histórica, social,

discursiva, leva-nos a refletir sobre outras categorias, tais como: topografia,

memória, sociedade, mimese.

O espaço na literatura implica, ainda, a maneira como o autor pretende

criar sua obra em relação à realidade. Segundo Santos e Oliveira (apud

CORNELSEN, 2007, p. 83), a relação do ficcional com a realidade pode se

estabelecer de duas formas: “a literatura se apresentaria ou como ‘um espelho

plano, alimentando a ilusão de que é capaz de mostrar a realidade como ela é’

ou como ‘espelho deformante, com a intenção de deslocar a imagem que a

sociedade tem de si mesma’”.

Manoel de Barros liga-se à segunda maneira de apresentar sua obra em

relação à realidade. Cria, recria, inventa o real. Inventa não no sentido de

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“propor uma ordem falsa, incompatível com a ordem do real”, mas de “afetar o

real, explorar o que o real tem de maleável, ampliando as margens de sua

mutabilidade” (SANTOS e OLIVEIRA, apud CORNELSEN, 2007, p. 84).

Especialmente na segunda parte do Livro de pré-coisas (1985/ 2010),

o poeta imagina “cenários” que não servirão apenas de pano de fundo para a

encenação inaugural da linguagem poética, mas também explicitarão

mananciais imagéticos e ideológicos. O espaço (re) construído por Manoel de

Barros, “em estado de poesia”, revela imagens, cores, sensações em

formação. Por meio deste espaço, o poeta elabora conceitos e desenvolve

reflexões sobre seu fazer poético:

Hoje estou comparado com árvore. Sofrimento alcandorou-me. Meu olho ganhou dejetos. Vou nascendo de meu vazio. Só narro meus nascimentos. Sou trinado por lírio como os brejos. Eu tenho pretensões pra tordo. É nos loucos que grassam luarais. Sei de muitas coisas das cousas. Hai muitas importâncias sem ciência. Sei que os rios influem na plumagem das aves. Que as vespas de conas frondosas produzem mel azulado. E as casas com rio nos fundos adquirem gosto de infância. (LPC, p. 225)

Manoel de Barros inscreve-se na natureza e compara-se à árvore, aos

brejos, ao tordo para deles adquirir saberes sensíveis. Narra o nascimento de

um eu insuspeitado, descobridor de um mundo nunca antes observado, e de

um espaço que influi na caracterização dos seres e no posicionamento do

poeta diante de sua obra. Redimensiona, assim, o sentido de espaço.

O estudo do espaço também gerou produções relativamente amplas que

incluem tanto esforços de interpretação quanto de avaliações críticas. Bakhtin

(2003) fornece material a respeito do imbricamento do tempo e do espaço na

arte, fazendo especulações e análises das obras de Goethe. Milton Santos

(2007), por seu turno, embora apresente similitudes com a visão apresentada

por Bakhtin, firma seu discurso em três pontos fundamentais para a

compreensão do espaço. Douglas Santos (2002) corrobora com tal

pensamento e enfatiza a relação entre espacialidade e sociedade. No campo

filosófico, Bachelard (1974/ 1993) também delineia o entrecruzamento do ser

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com o entorno a fim de conciliar interior e exterior. Já Tassinari (2001)

diferencia e aproxima o espaço artístico ao espaço do mundo em comum.

Em Bakhtin (2003), observamos que, na Literatura, a visão sobre o

espaço constituiu-se de modo singular. Bakhtin (2003) atestou que o espaço

precisava ser percebido como um todo em formação e não como um dado

acabado e imóvel. Atentou para o fato de que Goethe, para reconstruir

imagética e verbalmente um local que lhe marcara a memória, procurava

mesclar, na folha de papel, o esboço do desenho figurativo da região com

palavras essenciais e sintéticas que trouxessem, com precisão, a descrição do

local. Nesse sentido, “os híbridos artísticos” produzidos traziam-lhe a

visibilidade necessária para alcançar o sentimento do tempo, seu caráter cíclico

na natureza e nos momentos diversos da vida humana, e percebê-lo no todo

espacial do mundo. Bakhtin (2003) investigou, pois, pontos relevantes:

visibilidade do tempo no espaço; inseparabilidade entre o tempo do

acontecimento e o lugar concreto de sua realização; relação essencial entre os

tempos (presente e passado).

A título de exemplificação, tomemos alguns excertos de poemas de

Manoel de Barros para constatarmos a abordagem proposta por Bakhtin. Nos

versos “empeixado e cor de chumbo, o rio Paraguai flui/ entre árvores com

sono...” (LPC, p. 199), obtemos, a partir de contemplações sensíveis do

espaço, informações sobre o tempo – “Corumbá está tardeando” (LPC, 1985/

2010: 199) –, o que nos leva a apreender o segundo aspecto, traçado por

Bakhtin (2003), que sugere a estreita conexão entre o tempo do evento e o

local de sua efetivação. No interior do Livro de pré-coisas (1985/ 2010),

reconhece-se essa relação entre tempo e ambiente natural a partir, por

exemplo, da ação de um pássaro típico da região, em que se evidencia, no

entanto, o predomínio de componentes espaciais frente aos temporais:

Natureza será que preparou o quero-quero para o mister de avisar? No meio-dia, se você estiver fazendo

sesta completa, ele interrompe. (LPC, 1985/ 2010: 233)

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Temos, ainda, que observar a relação entre tempos, pois

acontecimentos anteriores influem nos posteriores, provocando um efeito de

devir no texto poético. Enxergar, na atualidade, a manifestação da diversidade

de tempos permite-nos relacionar formações do passado a embriões do futuro.

Compreender o “lugar necessário desse passado na série contínua do

desenvolvimento histórico” faz-se imprescindível para a determinação do

presente, para a antecipação do futuro, bem como para se obter a “plenitude

do tempo” (Bakhtin, 1998: 235). Os versos exemplificam: “Alegria é de manhã

ter chovido de noite!” (LPC, p. 206).

Goethe (apud BAKHTIN, 2003), sensível aos sinais da natureza,

desenvolveu a hipótese de que, objetos naturais que nos parecem inertes,

atuam “velada e secretamente” em mudanças espaço-temporais. Montanhas,

contempladas inocentemente como imutáveis, trazem em seu interior

pulsações permanentes que causam alterações climáticas substanciais. Para

um observador comum, tal constatação parece inconsistente, no entanto, a

visão peculiar de Goethe retrata a mobilidade criadora presente em toda parte.

O que era aparentemente imutável aparece, agora, como agente iniciador e

organizador do movimento do enredo.

Em Manoel de Barros, podemos ilustrar esse “imobilismo movente” com

o poema “Carreta pantaneira”:

As coisas que acontecem aqui, acontecem paradas. Acontecem porque não foram movidas. Ou então, melhor dizendo: desacontecem.

Dez anos de seca tivemos. Só trator navegando, de estadão, pelos campos.

Encostou-se a carreta de bois debaixo de um pé de pau. Cordas, brochas, tiradeiras – com as chuvas, melaram (...)

À sombra do pé de pau a carreta se entupia de cupim. A mesa, coberta de folha e limos, se desmanchava, apodrecente. (...) Enchia-se o rodado de pequenas larvas, que ali se reproduziam, quentes. (...) E a carreta ia se enterrando no chão, se desmanchando, desaparecendo.

Isso fez que o rapaz, vindo de fora pescar, relembrasse a teoria do Pantanal estático. Falava que no Pantanal as coisas não acontecem através de movimentos, mas sim do não movimento.

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A carreta pois para ele desaconteceu apenas. Como haver uma cobra troncha. (LPC, p. 207-208)

O poeta nos indica que, diante de uma aparente estaticidade, há uma

mobilidade pungente tanto no Pantanal quanto no poema. O advérbio “aqui”

abre-se semanticamente não só para o espaço pantaneiro, mas também para o

espaço do poema, onde as coisas “desacontecem”. A secura, local e poética,

sugere uma pausa, que, no entanto, não provoca interrupções, mas permite um

movimento intervalar de reflexão. Na carreta, encostada “debaixo de um pé de

pau”, vê-se um pulsar vital de movimentos: o bulir dos cupins, o menear quente

das larvas, o entregar-se inteiramente ao chão. O pretenso “não movimento”,

portanto, possibilita o “desacontecimento”, exprime a negação a

acontecimentos comuns, estagnados pela convenção, e desenreda os

discursos usuais.

Segundo demonstrou Bakhtin (2003), as abordagens espaciais na obra

de arte tendem a ser revalorizadas. A necessidade, a busca da totalidade, a

sensação do novo aferem-se pelo movimento contínuo e pelo questionamento

do espaço que deixa de ser tomado como algo acabado.

Milton Santos (2007), que propôs uma renovação crítica da Geografia,

apresenta similaridades ao pensamento de Bakhtin ao conceituar paisagem

como resultado da acumulação de tempos que nada tem de fixo, de imóvel: “os

lugares – combinações localizadas de variáveis sociais – mudam de papel e de

valor à medida que a história se vai fazendo” (SANTOS, 2007, p. 57).

Incorporando um pensamento filosófico, o geógrafo indicou a

importância de se investigar o espaço com base em três pilares fundamentais –

forma, estrutura e função – que interrelacionam objetos naturais a objetos

sociais:

A diferenciação entre lugares serve de base à diferenciação de conteúdos, isto é, do Eu, do Você e do Outro, de uma parte, e dos objetos físicos, de outra parte. A crítica geral do conhecimento nos ensina que o ato da posição e da diferenciação espacial é a condição indispensável para o ato de objetivação em geral, desde que se estabeleça uma relação entre o objeto e sua representação (CASSIRER, apud SANTOS, 2007).

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Santos (2007) concluiu, portanto, que modificações nas relações entre

componentes da sociedade acarretam alterações de processos e de funções e,

por conseguinte, causam mudanças de valores das formas geográficas.

Reafirmando o pensamento do geógrafo, Douglas Santos admitiu que

o que pensamos de espaço jamais poderá ser compreendido sem que se reflita sobre o próprio movimento que cria, recria, nega e, pela superação, redefine a espacialidade dos próprios homens. Espaço e tempo, considerados aqui como categorias básicas da ciência moderna, são, na verdade, redimensionados na medida em que as sociedades se redimensionam (SANTOS, 2002, p. 23).

Concluímos que a construção do espaço liga-se à construção cultural da

humanidade que, por conseguinte, se empenha na construção de sua

geografia. Barros considera o Pantanal não como um lugar pronto e acabado,

mas como lugar de possibilidade de relacionar e transfigurar o natural e o

humano. Acredita que a ele não se pode impor limites. Vale-se, portanto, da

forma do fragmento para compor seus poemas, estruturando-os de modo

aparentemente aleatório a fim de materializar a complexidade pantaneira e

demonstrar que aquele espaço pode-nos ensinar a enxergar o mundo sob

novos aspectos para promover redimensionamentos.

O poeta, então, integra sua poética com o espaço que contempla. Em

Barros, há uma sedução edênica do/ e pelo mundo da palavra, em que se

vislumbra uma paisagem iniciática do gênesis, ao mesmo tempo em que há o

entendimento do Pantanal como um lugar adâmico, primário, sem feições

definitivas, que está na origem do mundo. Dessa maneira, o poeta supera a

dualidade entre sujeito e objeto, entre o mundo dos símbolos e das coisas, do

imaginário e do real, aproximando sua criação ao conceito, postulado por

Baudelaire (1993, p. 149), de “arte pura”: “magia sugestiva que contenha ao

mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo externo ao artista e o próprio

artista”. O “ser abrigado”, como diz Bachelard (1993, p. 25), que “sensibiliza os

limites do seu abrigo”.

A propósito disso, Bachelard (1974), ao refletir sobre os lugares, o

cenário, os móveis como representações figurativas que transmitem, nas obras

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de arte filosóficas, significados outros em adição ao literal, ensaiou uma

abordagem mais ampla a respeito da dialética do exterior e do interior,

descortinando a tentativa de reunir ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o

mundo externo ao artista e o próprio artista.

Em um estudo psicológico sistemático dos locais de nossa vida íntima,

topoanálise, o fenomenólogo perscruta a “concha inicial” em toda moradia. A

imagem da casa reaviva o conflito integrador entre realidade e virtualidade,

memória e imaginação, pois aumenta os valores da topografia de nosso ser

íntimo.

Dado esse pressuposto, Bachelard (1974/ 1993, p. 494) volta-se ao

domínio da linguagem e explica que o exterior da palavra funda-se no seu

interior e que, por vezes, as palavras internamente se desligam. Dessa forma,

a linguagem pelo sentido se fecharia e pela expressão poética se abriria:

“fechado no ser, será necessário sempre sair dele. Mal saído do ser será

preciso sempre voltar a ele”.

Para compreendermos melhor essas formulações, atentemos para este

poema de Manoel de Barros:

Se no tranco do vento a lesma treme, no que sou de parede a mesma prega; se no fundo da concha a lesma freme, aos refolhos da carne ela se agrega; se nas abas da noite a lesma treva, no que em mim jaz de escuro ela se trava; se no meio da náusea a lesma gosma, no que sofro de musgo a cuja lasma; se no vinco da folha a lesma escuma, nas calçadas do poema a vaca empluma! (LPC, p. 219)

Barros trabalha a palavra não só explorando suas potencialidades

sonoras (ritmo, rima, musicalidade), mas também ressaltando sua dimensão

plástica. A partir da escolha dos elementos “lesma” / “gosma”, “musgo” /

“lasma”, o poeta revela a viscosidade e flexibilidade da palavra poética. Com os

termos “fundo”, “refolhos”, “jaz”, “vinco”, Manoel de Barros dá ideia de

profundidade e concretiza seu anseio de chegar à essência das coisas. Por

acreditar que as palavras são “conchas de clamores antigos”, Barros (MII,

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2007, p. I) investiga “oralidades remontadas e muitas significâncias

remontadas” para escutar os “primeiros sons” e descobrir o “primeiro esgar de

cada palavra”.

A fim de incitar sentimentos e deixar marcas, o poeta vale-se dos termos

“treme” / “freme”, “prega” / “agrega”. Ao afirmar “sou de parede” e “sofro de

musgo” “nas calçadas do poema”, o poeta enfatiza o poder da palavra poética

de criar novas realidades e de conciliar o ser do homem ao ser do mundo.

Nesse sentido, podemos relacionar tal proposta aos pensamentos

kantianos acerca da categoria de espaço:

O espaço não é um conceito empírico, extraído de experiências externas. Efetivamente, para que determinadas sensações sejam relacionadas com algo exterior a mim (isto é, com algo situado num outro lugar do espaço, diferente daquele em que me encontro) e igualmente para que as possa representar como exteriores [e a par] umas das outras, por conseguinte não só distintas, mas em distintos lugares, requere-se já o fundamento da noção de espaço. Logo, a representação de espaço não pode ser extraída pela experiência das relações dos fenômenos externos; pelo contrário, esta experiência externa só é possível, antes de mais nada, mediante essa representação (KANT, apud SANTOS, 2002, p. 180-181).

Tassinari (2001) assinalou, nas artes plásticas, esse confronto

conciliador entre ser e espaço. Segundo nos informa o artista e crítico, o

mundo da obra atrai e repele o mundo concreto. Isto porque o mundo da obra

requer o mundo concreto para se justificar enquanto obra e reiterar sua

especificidade, porém não deseja conformar-se a uma dimensão meramente

imitativa. Esse aspecto duplo da arte contemporânea permite ao observador

perceber que a obra está ligada ao espaço habitual em que vive, mas não o

imita, na medida em que provoca alterações nesse espaço pelo seu fazer.

Emergindo do espaço cotidiano, a obra dá novas configurações ao já

conhecido e acrescenta-lhe outros sentidos.

Tassinari complementa ao dizer que, na arte contemporânea, o espaço

em obra comunica-se com o espaço do mundo em comum, modificando-o e ao

mesmo tempo deixando-o inalterado:

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Uma obra contemporânea não transforma o mundo em arte, mas, ao contrário, solicita o espaço do mundo em comum para nele se instaurar como arte (TASSINARI, 2001, p. 76).

No tocante a esse aspecto, Manoel de Barros, ao longo de sua trajetória

poética, procura relacionar seus poemas ao ambiente natural em que vive de

modo paradoxal: o poeta ora torna o espaço comum parte do espaço da obra,

ora adota uma postura crítica com relação à realidade, à linguagem poética, à

exploração e interpretação do estar no mundo.

Em “Postais da cidade” (PCP, p. 19), Manoel de Barros procura

“fotografar” pontos e personagens depreciados da cidade. O poema “O

escrínio” constrói um detalhado conjunto imagético da cidade, representando-a

como um cofre de bugigangas: “rio com piranhas camalotes, pescadores e

lanchas carregadas de couros vacuns”; “sobrados remontados na ladeira,

flamboyants, armazéns de secos e molhados”; “turcos babaruches”; “estátua de

Antônio Maria Coelho, herói da Guerra do Paraguai, cheia de besouros na

orelha”; “cinema Excelsior”.

Já em “Dona Maria” (PCP, p. 22), o poeta, apontando para uma lírica

social, discute de modo crítico e contundente a questão da indigência:

- Entendo. A senhora vai ficar sentada na calçada, de vestido sujo, cabelos despenteados, esquálida, a soprar uma gaitinha rouca, não é?

Depois as pessoas ficarão com pena da sua figura esfarrapada, tocando uma gaitinha rouca, e jogarão moedas encardidas em seu colo encardido, não é?

Para Manoel de Barros, o que importa, pois, não é o mero registro

descritivo de lugares, bichos, coisas da natureza de um determinado espaço,

mas, sim, a maneira de se “mexer com as palavras” para promover, com elas,

a renovação do mundo em comum e desvelar realidades deixadas à margem.

No Livro de pré-coisas (1985/ 2010), Manoel de Barros (p. 197) realiza

uma “anunciação do Pantanal”, uma visitação por meio de “nódoas de

imagens”. O poeta não se ocupa em delinear, com traços nítidos e precisos, a

exuberância do local, nem se interessa pela tematização pitoresca do que há

no Pantanal, mas, sim, em inventar e revelar o ambiente natural por meio de

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manchas. Essas manchas, que poderiam ser consideradas como defeitos,

deixam vislumbrar um mundo às avessas em que seres ínfimos e coisas

desimportantes têm real importância e assumem posição central em sua

criação poética. Barros reitera:

A partir dos defeitos de uma pedra é que o escultor começa seu trabalho. A partir de um visgo de borboleta na tela, Miró podia começar algum deslumbramento plástico. A partir de uma palavra torpe, pode chegar-se ao balbucio dela, ao seu murmúrio nupcial. (...) É preciso que as palavras nelas mesmas se inaugurem (BARROS, apud MULLER, 2010, p.84).

Nesse sentido, Barros quer criar, com palavras, “uma naturezinha/ particular,

até onde o seu pequeno lápis poderia alcançar” (PR, p. 439).

A cidade de Corumbá é, portanto, recriada: “ia o silêncio pela rua

carregando um bêbado; os ventos se escoravam nas andorinhas”; “arbustos de

espinhos com florimentos vermelhos/ desabrem nas pedras”; “as ruínas dão

árvores; nossos sobrados enfrutam” (LPC, p. 197-198). O espaço da obra, no

entanto, guarda resquícios do espaço em comum: o poeta deixa com que o

Pantanal possa ser reconhecido, mas também provoca estranheza com relação

ao local. Os aspectos cotidianos tornam-se experiências estéticas que

compõem um espaço artístico inusitado.

Retomando nossas questões iniciais, concluímos que, para Manoel de

Barros, o espaço natural define-se como lugar de possibilidades para

transfigurações da linguagem e da visão perante a poesia e o mundo. Seu

estilo de escrita embebe-se de uma retórica de pantanal: repleta de

descontinuidades, instabilidades metamorfoseantes, fragmentações. A cerca

disso, diz o poeta:

Do meu estilo não posso fugir. Ele não é só uma elaboração verbal. É uma força que deságua. A gente aceita um vocábulo no texto não porque o procuramos, mas porque ele deságua das nossas ancestralidades. O trabalho do poeta é dar ressonância artística a esse material (BARROS, apud MULLER, 2010, p. 28-29).

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Sua linguagem, pois, embrenha-se no espaço pantaneiro para “traduzi-

lo”: faz-se complexa ao construir uma rede de relações inovadoras entre seres

e termos; configura-se ora rica de adjetivações ora plena unicamente de

substantivos para materializar os períodos de cheia e de estio da região;

liberta-se das convenções para criar.

1.2 Espaço e corpo

Ao tratarmos da compreensão e incorporação de certo espaço, temos

que nos referir obrigatoriamente ao corpo. Isto porque, desde a infância,

procuramos desbravar o mundo e possuí-lo pelos sentidos. As cores, os sons,

os cheiros, as texturas são pouco a pouco reconhecidos pelo corpo. Até

mesmo a poesia – que, segundo Manoel de Barros (AA, p. 178) “não é para

compreender, mas para incorporar” –, passa a ser absorvida por meio de

“percepções da sensibilidade” (MÜLLER, 2010, p. 162).

Zumthor (2005, p. 90) reflete sobre o comprometimento do corpo na

percepção do poético: “o texto poético significa o mundo. É pelo corpo que o

sentido é aí percebido”. Para autor, “o mundo que me significa o texto poético é

necessariamente da ordem do sensível: do visível, do audível, do tangível”. A

pluralidade de sensações, despertadas pela leitura poética, é, pois, a

manifestação da “presença do corpo inteiro no funcionamento de cada sentido”

(ZUMTHOR, 2005, p. 90-94).

Manoel de Barros desvela a presença do corpo ao ver, ouvir, tocar o

Pantanal com/ pelas palavras. O poeta vê o amanhecer, as andorinhas e as

garças, pois encontra no amanhecer, o despertar para um outro mundo; nas

andorinhas, a possibilidade de migração constante, de viagens lingüísticas

imprevisíveis; e nas garças, a elaboração de iluminuras que colorem

originalmente o poema.

Observa com atenção o rio, os brejos, as rãs, os sapos, os canoeiros, os

bêbedos carregados pelo silêncio e as pessoas cheias de prenúncios que

“chegam de ver pregos nadar e bugio pedir a bênção” (LPC, p. 198). Olha,

pois, o rio por reconhecer seu caráter fecundante e renovador; os brejos, por

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neles perceber ambiente propício para instauração de um novo cosmo; os

sapos vegetais, por querer promover a fusão dos reinos naturais; os canoeiros

e bêbedos, por serem tipos desprestigiados que tem o dom de enxergar o lado

intocado das coisas.

Contempla, também, os arbustos espinhentos que furam as convenções

e geram a novidade no poema com seus florimentos cor de sangue, os

sobrados com paredes podres, as ruínas que compõem um novo mundo, uma

nova poesia. O poeta escuta o silêncio, o galo que ainda não se arriscara, o

gorjeio dos pássaros, o apito da lancha. A não palavra, “o som que ainda não

deu liga”, a “palavra sem pronúncia, ágrafa” (RAC, p. 368), o ruído

desarticulado interessam, portanto, ao poeta e ao poema.

O poeta toca o Pantanal ao compor, por exemplo, uma analogia entre o

“Rio desbocado” e o poema. Assim como seu poema, o rio “inventa novas

margens”, “erra pelos cerrados”, “prefere os deslimites do vago” (LPC, p. 201).

Como o rio que abraça e cheira a terra, Manoel de Barros quer friccionar, com

sua mão criadora, as palavras para devolvê-las, ao poema, revigoradas. Seu

toque, primeiramente firme e ríspido, amaina-se:

Esfrega o rosto na escória. E invade, em estendal imprevisível, as terras do Pantanal.

Depois se espraia amoroso, libidinoso animal de água, abraçando e cheirando a terra fêmea. (LPC, p. 201)

Na poesia de Manoel de Barros, os sentidos são tomados como órgãos

coletores de conhecimento. Por meio do ver, ouvir, tatear, instala-se uma

“acumulação memorial do corpo”:

Barulhinho vermelho de cajus e o riacho passando nos fundos do quintal... Dali se escutavam os ventos com a boca como um dia ser árvore. Eu era lutador de jacaré. As árvores falavam. Bugre Teotônio bebia marandovás.

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Víamos por toda parte cabelos misgalhadinhos de borboletas... Abriu-se uma pedra certa vez: os musgos eram frescos... As plantas Me ensinavam de chão. Fui aprendendo com o corpo. Hoje sofro de gorjeios Nos lugares puídos de mim. Sofro de árvores. (CUP, p. 114-115)

Com “barulhinho vermelho”, “se escutavam os ventos com a boca” e “as

plantas me ensinavam de chão”, Manoel de Barros desenvolve criações

sinestésicas reveladoras: relaciona ouvir/ ver, ouvir/ saborear, ouvir/ tatear de

modo integrador para reconfigurar o espaço.

Conforme nos mostra Zumthor (2000, p. 95), então, “toda poesia

atravessa, e integra mais ou menos imperfeitamente, a cadeia epistemológica

sensação-percepção-conhecimento-domínio do mundo: a sensorialidade se

conquista no sensível para permitir, ultimamente, a busca do objeto”.

Manoel de Barros promove o conhecimento do mundo pelo corpo e

coloca em prática a ideia de Zumthor (2000, p. 90) que estabelece relações

entre corporeidade e apreensão do espaço – “os eixos espaciais direita/

esquerda, alto/ baixo e outros são apenas projeção do corpo sobre o cosmo”–

e reitera o fato de que “o corpo é ao mesmo tempo o ponto de partida, o ponto

de origem e o referente do discurso”.

O riacho que corre aos fundos da casa traz, ao poema, ares da infância,

momento inaugural em que tudo era explorado por via sinestésica e corporal. A

fantasia dá vazão à renovação sem limites e deixa ecoar sons e vozes

reveladores de um novo mundo.

Zumthor retoma a retórica difundida na Antiguidade que ensina que

para ir ao sentido de um discurso (...) era preciso atravessar as palavras; mas que as palavras resistem, elas têm uma

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espessura, sua existência densa exige, para que elas sejam compreendidas, uma intervenção corporal, sob a forma de uma operação vocal: seja aquela da voz percebida, pronunciada e ouvida ou de uma voz inaudível, de uma articulação interiorizada (ZUMTHOR, 2000, p. 89).

Assim, a leitura poética é a escuta de uma voz e “o leitor, nessa e por

essa escuta, refaz em corpo e em espírito o percurso traçado pela voz do

poeta: do silêncio anterior até o objeto que lhe é dado, aqui, sobre a página”

(ZUMTHOR, 2000, p. 102).

O efeito poético é tanto mais forte quanto melhor soa a voz: nos interstícios da linguagem imiscui-se, pela operação vocal, o desejo de se desvencilhar dos laços da língua natural, de se evadir diante de uma plenitude que não será mais do que pura presença (ZUMTHOR, 2000, p. 145).

Presença. Manoel de Barros quer presentificar sua voz. Para tanto,

investe de simbologia seres como a lesma. Em nota de rodapé poética, Barros

afirma que

a fim de percorrer uma lesma desde o seu nascer até sua extinção, terei que aprender como é que ela recebe as manhãs, como é que ela anoitece. Terei de saber como é que ela reage ao sol, às chuvas, aos escuros, ao abismo, ao alarme dos papagaios. Vou ter que encostar meu ventre no chão para o devido rastejo. Terei que produzir em mim a gosma dela a fim de lubrificar os caminhos da terra (...). Terei de aprender a marcar com a minha saliva o chão dos poemas (RAC, p. 371).

Manoel de Barros, “convê” a lesma sendo-a, expondo, assim, de modo

enfático, a necessidade de deixar-se guiar pelo corpo para conhecer o “ser das

coisas” e para levar seus leitores a sentir corporalmente seus poemas.

A poesia, pois, transcende a linguagem, “transforma-a e é transformada

por ela” (ZUMTHOR, 2000, p. 139). Em vias performáticas, o texto se

transforma em voz e provoca “uma mutação global [que] afeta suas

capacidades significantes”, modificando o seu “estatuto semiótico” e gerando

“novas regras de semanticidade” (ZUMTHOR, 2000, p. 148).

Zumthor (2000) entende, então, que a “voz emana do corpo” (p. 95) e

depois retorna a ele. Ela “desaloja o homem de seu corpo” (p. 98) para fazê-lo

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habitar sua linguagem, revelando-o um limite e dele liberando-o. Manoel de

Barros, por sua vez, tem desejo de “alcançar a voz das árvores”, o “canto

apenas”, a “despalavra” (MÜLLER, 2010, p. 145).

1.3 Espaço e poesia

Transgredir a linguagem do poder, investigar os interstícios para

descortinar saberes insuspeitados, libertar o homem para a possibilidade de

assumir seus múltiplos desejos e para (re) criar o real, conjugar de modo

irrealizado as palavras: eis alguns alvos da poesia.

Contracanto, agudo grito de revolta, antidiscurso que “enxameia o brilho

efêmero e equiprovável de múltiplas estrelas cadentes, em oposição ao brilho

fixo e estável das constelações lógicas e harmonicamente constituídas”, a

poesia quer “desnudar a falsa ordem dos discursos vigentes” e operar a

“desaprendizagem da fala” (SEGOLIN, 1983, p. 10).

Em um trabalho contra as forças coercitivas do significado, o poeta

procura instaurar uma linguagem contra os códigos consagrados. Entendida

como um ser de linguagem, que não tem compromisso com verdades

estabelecidas, que se dedica às “inutilezas” e se coloca na contramão do modo

de pensar dominante, a poesia tem, pois, como condição prévia o não-saber.

Quer libertar-se dos limites do real para superar o conhecimento estagnado e

despertar um eu insuspeitado.

Manoel de Barros, por seu gesto subversivo, dinamiza a linguagem de

modo singular. A recorrência de termos que sugerem a ideia de destruição

construtora – “escombros”; “ruínas” – é notória: o poeta desconstrói para fazer

renascer/ germinar, pela linguagem, uma nova natureza pantaneira: “as ruínas

dão árvores” (LPC, p. 198).

Procurando encenar os princípios, o poeta tenta recuperar o momento

em que “as coisas só davam aspecto/ Não davam ideias./ A língua era

incorporante” (LI, p. 318). Manoel de Barros faz com que a palavra volte à sua

função primeira, incitando-a a refazer-se. Para tanto, põe a linguagem “em

estado de emergência” (BACHELARD, 1974/ 1993, p. 11), em crise,

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mergulhando em uma viagem de retorno às fontes não contaminadas, em que

a reaparição do esquecido e a subversão do estabelecido inspiram uma

regeneração do espaço, elevando o “ser” à categoria superior em importância.

Ao refazer a ligação com as pré-coisas, Manoel de Barros revela a

essencialidade do ser. A natureza torna-se expressiva e o sentimento passa a

ser corporificado na imagem. Por ser cultor da originalidade, Manoel de Barros

assume que a imagem poética “transporta-nos a origem do ser falante”

(BACHELARD, 1974/ 1993, p. 7). O poeta fala, pois, “no limiar do ser”

(BACHELARD, 1974/ 1993, p. 2).

As imagens, inquietantes e incomuns, revestem a linguagem de

conteúdos formalizados alógicos e primam por (re) descobrir a essência das

coisas. Apelando para a sensação e dando nova existência à realidade, Barros

desidentifica os objetos para criar novos seres e novas possibilidades de

conhecimento. Para compreendermos melhor tal procedimento, tomemos uma

reflexão do pintor Lapicque:

Se, por exemplo, pinto a passagem do rio em Auteuil, espero que a minha pintura me traga tanto imprevisto, embora de outro gênero, quanto o que me trouxe o curso d’água verdadeiro que vi. Nem por um instante, se trata de refazer exatamente um espetáculo que já pertence ao passado. Mas necessito revivê-lo inteiramente, de uma maneira nova e pictórica desta vez, e assim fazendo, dar a mim mesmo a possibilidade de um novo choque (LAPICQUE, apud BACHELARD, 1974/ 1993, p. 17).

Choque, estranhamento. Manoel de Barros igualmente apropria-se de

uma imagem da realidade para transpô-la em imagem poética. O Pantanal

captado pela visão revela-se inesperado em sua complexidade e exige do

poeta a criação de um efeito de espanto para que se sinta, por meio do

rearranjo inusitado das palavras, um “novo choque”. O poeta deseja que os

leitores possam refazer a imagem que o tocou e sentir efetivamente, pela

poesia, as sensações que o maravilharam.

O objeto, portanto, dá-se, entrega-se enquanto aparência, aparece à

visão. Cabe ao poeta, pela linguagem, criar algo que pareça com aquilo que lhe

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apareceu. Formada, a imagem busca aprisionar a alteridade estranhas das

coisas e dos homens. Segundo Bosi,

a imagem não decalca o modo de ser do objeto, ainda que de alguma forma o apreenda. Porque o imaginado é, a um só tempo, dado e construído. Dado, enquanto matéria. Mas construído, enquanto forma para o sujeito. Dado: não depende da nossa vontade receber as sensações de luz e cor que o mundo provoca. Mas construído: a imagem resulta de um complicado processo de organização perceptiva que se desenvolve desde a primeira infância (BOSI, 2008, p. 22).

As imagens poéticas constroem-se por similitudes, analogias sensoriais

e suas características são estabelecidas pela qualidade dos afetos, podendo

configurar-se nítidas/ esfumaçadas, fiéis/ distorcidas. Bosi acrescenta que

a imagem é afim à sensação visual. O ser vivo tem, a partir do olho, as formas do sol, do mar, do céu. O perfil, a dimensão, a cor. A imagem é um modo da presença que tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós. O ato de ver apanha não só a aparência da coisa, mas alguma relação entre nós e essa aparência: primeiro e fatal intervalo (BOSI, 2008, p. 19).

Ainda refletindo sobre a percepção visual, Bosi (1999) nos informa que

“o olhar não está isolado, o olhar está enraizado na corporeidade, enquanto

sensibilidade e enquanto motricidade” (p. 66). Tal modo de olhar está vinculado

a um procedimento de busca do “saber verdadeiro” em que o ser “conhece

sentindo e sente conhecendo” (BOSI, 1999, p. 74).

Manoel de Barros não apenas identifica, mas também ilumina, desnuda

a coisa contemplada. O poeta (1991/ 2010) exibe imageticamente constatações

particulares advindas de uma observação sinestésica e de uma aprazível

experimentação da natureza:

Sapo de noite arregala o olho pra desmedir a/ saudade. No inverno as anhumas verdejam a voz.

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Na beira do entardecer o canto das cigarras/ enferruja. Dentro da mata no entardecer o canto dos/ pássaros é sinfônico. (CCA, p. 289, 290, 291).

O poeta apregoa, portanto, o estudo do “território” não por meio de um

método científico, rigoroso e racional, mas, sim, por meio de uma prática

poética de rigor, flexível e sensível, em que a análise se efetiva sensorialmente:

“Sabiás de outubro não delimpam seus cantos;/ os de março delimpam.

Estamos estudando a/ razão disso por lâminas de cantos” (CCA, p. 293). O

singular poeta mato-grossense ressalta que essa análise não necessita de

instrumentos precisos, pois os olhos, nus e propensos a enxergar as coisas

sob ângulos diferentes, são muito mais eficazes para a captação e a

transformação de suas essências: “As 4000 estrias de um olho de mosca no

verão/ irisam. Isso só pode ser visto sem microscópio” (CCA, p. 289).

Olhar poeticamente, então, dispensa o uso de lentes ou aparelhos de

manipulação da realidade. Requer, pois, um revisitar das imagens,

fundamentado no impacto “puro” que tal visualidade causa no poeta. A

condensação do olhar com o objeto olhado cria uma nova espacialização. Não

apenas se relata o presenciado, mas também se possibilita uma participação

efetiva no acontecimento e no espaço experimentado.

Nesse sentido, “fazer poesia é transformar o símbolo (palavra) em ícone

(figura)” (PIGNATARI, 1981, p. 14), ou seja, transfigurar o signo-para, que

conduz a algo extra-verbal e é predominantemente constituído por contigüidade

(proximidade), em signo-de, que quer ser a coisa representada, sem poder sê-

lo e é estruturado por similaridade (semelhança).

Na obra poética de Manoel de Barros (LPC, p. 198-199) é promovida a

metamorfose não só do espaço, mas também do eu-lírico: da 1ª pessoa do

plural – “Há vestígios de nossos cantos nas conchas destes/ banhados” – para

1ª pessoa do singular – “há um rumor de útero nos brejos que muito me/

repercute”. Tem-se, portanto, um voltar-se sobre si mesmo.

Isso reforça o pensamento de Bosi (2008, p. 21) quando propõe que

“quem quer apanhar para sempre o que transcende o seu corpo acaba criando

um novo corpo”. A escolha do modo verbal, a composição cíclica do poema e o

desbaste da fixidez/ rigidez da palavra deixam à mostra o exercício de

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construção de um novo Pantanal promovido pelo poeta. É, portanto, “uma alma

inaugurando uma forma” (JOUVE, P-J., apud BACHELARD, 1974/ 1993, p. 6),

um poema instaurando um outro espaço. Manoel de Barros (LPC, p. 197) faz

uso do gerúndio (“Corumbá estava amanhecendo (...). Ia o silêncio pela rua

carregando um bêbado”) para indicar um Pantanal em processo, que não está

formado. “Da penumbra/ semi-escuridão, passando pela claridade/ sol até o

lusco-fusco / pôr-do-sol”, verifica-se a busca de um conhecimento totalizante da

natureza pantaneira, da vida, da poesia. O trabalho da palavra torna-a

maleável, moldável, plástica.

A poesia de Barros percebe, então, o outro lado da realidade e convoca

a fraternidade por meio de uma outra voz. “Sua voz é outra porque é a voz das

paixões e das visões” (PAZ, 2001, p. 140) que modula a preocupação de se

conjugar a humanidade para um bem comum. Paz (2001) compreende que a

poesia “se ouve com os ouvidos, mas se vê com o entendimento” (p. 143).

Concebe, ainda, o poema enquanto “conjuro verbal que provoca no leitor, ou

no ouvinte, um fornecedor de imagens mentais” e acrescenta que “suas

imagens são criaturas anfíbias: são ideias e são formas, são sons e são

silêncio” (p. 143).

Promovendo a “loucura das palavras”, “voando fora da asa”, Barros (LI,

p.26 e p. 21) liberta-se para atingir resultados transcendentes, transfiguradores

e incomparáveis. A poética de Barros transporta-nos “para onde não se é

esperado, ou ainda e mais radicalmente, [abjura] o que se escreveu (mas não,

forçosamente, o que se pensou), quando o poder gregário o utiliza e serviliza”

(BARTHES, 1994, p. 27).

Vista enquanto potência inicial da alma, a poesia dá abertura a

ressonâncias e repercussões. No primeiro plano, ouvimos o poema e seus

efeitos dispersam-se nos diferentes níveis da vida; já no segundo, falamos o

poema, apropriamo-nos do ser do poeta que nos convida a um

aprofundamento de nossa existência. O espaço da poesia é, pois, “a figuração,

a profundidade, o lugar onde o poeta fala, no limiar da linguagem” (MUCCI,

2009, p. 46).

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CAPÍTULO 2 – Manoel de Barros e Pantanal: o estado de pré-

coisa

2.1 À luz da crítica, a poesia

O estudo da obra de Manoel de Barros requer sensibilidade. Isto porque,

ao desestruturar a linguagem, ao reinterpretar o mundo, ao associar

intimamente palavra-imagem, o poeta volta-se aos momentos iniciais da

literatura – que procurava criar e instaurar uma linguagem que fosse além da

mera veiculação de mensagens, tentava religar o homem ao cosmos e

acentuava a plasticidade e o caráter performático da palavra – e exige do leitor

uma participação efetiva e diferenciada.

Müller (2003, p. 279), por exemplo, refuta a maneira como alguns

críticos vêem a poesia de Manoel de Barros, já que “esquadrinham, analisam,

decompõem matematicamente, e nada encontram”. Propõe um novo modo de

olhar:

Será preciso talvez começar a olhar para a obra de Manoel de Barros como um todo articulado em torno de um projeto tenaz e insistente, mas cujas fronteiras (semânticas, discursivas) se movem e se deslocam constantemente, obrigando o leitor a um processo também constante de rememoração e ressignificação (MÜLLER, 2003, p. 279).

Ao analisar o conjunto da obra poética de Manoel Barros a partir do livro

Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo (2001/ 2010), Müller (2003, p. 276-

277) acredita que “todos os livros são amostras de um só livro”. Preocupado

com o modo de construção da escritura de Barros, desvela como o poeta-bugre

traça os desvios poéticos. Observa que Barros é “o poeta da natureza da

palavra (...) palavra, que não pretende descrever o real, mas fantasiar”, eis a

natureza da poesia, dos seres desimportantes, dos desheróis, da infância e do

próprio poeta.

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Descrevendo sua “caligrafia emendada e tímida”, Carpinejar (2006)

insinua qual o melhor modo de compreender/ incorporar seus poemas: “cheirar

o papel para entender o que ele escreve”. A partir de dados biográficos de

Manoel de Barros, Carpinejar (2006) reflete sobre a trajetória literária do poeta

que “adota a autenticidade dos defeitos, em vez de aceitar o polimento do

senso comum”.

Bosi (2003, p. 488) ressalta a “coerência vigorosa e serena da palavra

de Manoel de Barros, nascida em contato com a paisagem e o homem do

Pantanal e trabalhada em uma linguagem que lembra, a espaços, a aventura

mitopoética de Guimarães Rosa”.

No artigo “Manoel de Barros: o poeta universal de Mato Grosso do Sul”,

Menezes (2001a) faz um levantamento da posição da crítica diante da obra do

poeta e tece comentários sobre sua poesia. Põe em destaque comentários de

críticos como Millôr Fernandes e Geraldo Carneiro sobre sua original escrita

poética. Millôr Fernandes (apud MENEZES, 2001a) considera a obra de

Manoel de Barros como “única, inaugural, apogeu do chão”. Geraldo Carneiro

(apud MENEZES, 2001a) exalta sua poesia ao exclamar: “Viva Manoel violer

d’amores violador da última flor do Lácio inculta e bela. Desde Guimarães Rosa

a nossa língua não se submete a tamanha instabilidade semântica”. Menezes

(2001a) conclui, então, que “conhecer a obra de Manoel de Barros é deixar-se

levar pela magia de um mundo novo, um mundo no qual as coisas possuem

sentido e deixam emanar a essência vital do universo”.

Em outro artigo intitulado “A auto-reflexão em ‘estado de palavra’ na

poética de Manoel de Barros”, Menezes (2001b) reflete sobre a metalinguagem

em sua poesia. Tomando como exemplo o livro Retrato do artista quando

coisa (1998/ 2010), concebe que “a palavra é um ser ativo e dinâmico capaz

de elaborar uma nova visão do mundo” e propõe uma leitura da poesia como

“libertação da realidade” (Menezes, 2001b).

Manoel de Barros reconhece que seu livro de poemas Retrato do

artista quando coisa (1998/ 2010) é uma alusão visível ao Retrato do artista

quando jovem (1998), de Joyce, porém, admite: “só não serei jovem nos

poemas – serei coisa” (BARROS, 1998, p. 7).

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Barros (1998/ 2010) permite abertamente que os insetos, as plantas, as

aves integrem e usufruam preponderantemente seu corpo: “Insetos me

desempenham”; “tenho predomínio por lírios”; “plantas desejam a minha boca

para crescer/ por de cima”; “sou livre para o desfrute das aves” (RAC, p. 357).

O poeta torna possível subtrair-se de suas limitações humanas para elevar-se

à coisa, bem como à transmutação da realidade e de si próprio:

Uma rã me pedra (A rã me corrompeu para/ pedra. Retirou meus limites de ser humano/ e me ampliou para coisa) Um passarinho me árvore (O passarinho me/ transgrediu para árvore) Os jardins borboletam (Significa que os jardins/ se abrem agora só para o buliço das/ borboletas?) Folhas secas me outonam (Eu sou meu outono). (RAC, p. 358)

Manoel de Barros redimensiona as palavras, operando combinações

inéditas ao ponto de declarar “Já enxergo o cheiro do sol” (RAC, p. 357).

Impregnadas do poeta, as palavras chegam “enferma de suas dores, de seus/

limites, de suas derrotas” (RAC, p. 359). Assim, Manoel de Barros assevera:

“as palavras têm que adoecer de mim para que se/ tornem mais saudáveis”

(RAC, p. 360).

Com o intuito de buscar a palavra primeira, Manoel de Barros altera o

estado de calmaria, imposto pelos usos convencionais, a que estão sujeitas as

palavras, induzindo-as a dizer o que normalmente não dizem, e promove

viagens impensadas: “Bom é corromper o silêncio das palavras”; “gosto de

viajar por palavras do que de trem” (RAC, p. 358).

Compreendendo o poeta como um ser extraído das palavras, Barros

confirma que as palavras retiram com força o poeta de dentro de si mesmo:

“Será arrancado de dentro dele pelas palavras/ a torquês” (RAC, p. 359). As

palavras dominam o poeta e o conduzem à apreensão da essência das coisas.

O poeta entra em “estado de palavra” e passa a enxergar as coisas ainda sem

forma, sem existência visível ou sensível:

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O que resta de grandezas para nós são os/ desconheceres; para enxergar as coisas sem feitio é preciso/ não saber nada. (...) É preciso entrar em estado de palavra (RAC, p. 363).

Desse modo, a palavra une o ser humano às coisas, conectando-o

integralmente ao universo. A reflexão sobre a palavra permite, portanto, o

levantamento e a descoberta de aspectos basilares que atravessam a obra

poética de Barros.

Ao discutir sobre o termo metalinguagem, Menezes põe em destaque a

literatura como objeto “olhante e olhado”:

Com o dom da palavra, o poeta pode, a partir da manipulação destas palavras, fazer parte da natureza. E, como parte da natureza, transmutar-se em seus diferentes reinos (MENEZES, 2001b).

Ainda guiando-se por conceitos filosóficos, Menezes explica:

Ser é igual à essência, o mais puro e límpido estágio almejado, e o homem é igual à existência, tempo de se exercer a evolução. Portanto, é no praticar a existência que se alcança o Ser, ou essência. (MENEZES, 2001b)

Utilizando um verso de Fernando Pessoa como epígrafe – “Não ser é

outro ser” (RAC, p. 357) –, Manoel de Barros observa que aquilo que não tem

existência para os olhos comuns se torna um novo ser. O poeta enxerga a

essência e o avesso do ser, transfigura-o e provoca uma sensação de

desconhecimento – não ser – para entregar ao leitor outro ser.

Moncinhatto (2009, p. 16), em seu estudo intitulado “A palavra como

processo reflexivo: a poesia da invencionice de Manoel de Barros”, investigou,

por sua vez, como a reflexão metalingüística e chistosa fundamenta o processo

criativo de Manoel de Barros na trilogia Memórias Inventadas. A autora optou

por analisar três poemas de cada obra por acreditar que tais textos poéticos

oferecem a oportunidade de reencontrar um poeta de demonstrada consciência

crítico-literária que, ao refletir sobre o ser criança e as imagens das coisas do

chão, formula sua própria leitura de mundo e concepção de poesia.

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Na poesia de Barros, as informações sobre o código são utilizadas com o intuito de ocasionar distúrbios propositais no momento de criação e da leitura. Substituir termos e dar a eles novos significados é mexer com os entremeios da metalinguagem (MONCINHATTO, 2009, p. 16).

Sávio (2004), em seu artigo “A poética de Manoel de Barros: uma

sabedoria da terra”, faz sua análise por outro viés. Observa como o poeta, por

meio de “imagens de extrema sensorialidade, volta-se para a terra e para a

natureza”, incorporando-a ao próprio texto. Para a autora, o poema torna-se o

espaço onde o homem redescobre o sentido de tudo e encontra um novo lugar

para si mesmo:

A vida surge na fermentação dos pântanos onde novas espécies estão sempre sendo gestadas. É a vida que vem da decomposição, da podridão, a ‘química do brejo’, num verdadeiro processo alquímico que ali acontece (SÁVIO, 2004).

Castro (1991, p. 12), em seu livro A poética de Manoel de Barros: a

linguagem e a volta à infância, por seu turno, percorre a obra poética de Barros

para verificar como o mundo e o Pantanal, “em todo o complexo

transformacional que, ele, o poeta, desde criança, contempla e admira” são

expressos em palavras e ganham o espaço do todo.

Tomando por base as reflexões de tais críticos, podemos captar indícios

de como a obra de Manoel de Barros necessita ser estudada. O poeta recolhe

miudezas, “inutilezas”, coisas e seres desimportantes a fim de realizar uma

reviravolta no pensar comum. O delírio do verbo pode ser experimentado

quando Manoel de Barros consubstancia criações alógicas, transfigurações

imaginativas, aproximações de realidades tensas e combinações de palavras

contraditórias para desdizer o dizível, chegar ao inefável e se apossar da

essência das coisas. Faz ele empenhadas explorações para alcançar o

“antesmente verbal”, “a despalavra” e, desse modo, encontrar as pré-coisas, as

origens.

Por ter um plano poético insistentemente perseguido – promover a

loucura das palavras para criar novos espaços poéticos –, a leitura da poesia

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de Manoel de Barros exige a percepção de que os conceitos são semoventes.

Manoel de Barros retira a palavra de seu uso acostumado, causando

estranheza e criando novas relações de sentido. O poeta quer desestruturar a

linguagem, inventar novos comportamentos para as coisas e explorar o mundo

a partir de perspectivas incomuns.

O uso recorrente do prefixo des- mostra que o poeta quer desfazer o

real, o mundo, a linguagem, para construir, pela palavra, um real transfigurado,

um mundo novo e, assim, instaurar uma linguagem renovada. Procurando

“desaprender”, “desentender”, “desexplicar”, o poeta desfigura aquilo que já

existe com o intuito de promover os “deslimites” das palavras, romper com

regras e normas e inventar “descomportamentos” para tudo que o rodeia.

Como afirmam Heloisa Godoy e Ricardo Câmara:

“Criar começa no desconhecer”. É assim que o escritor Manoel de Barros explica uma poética (...) que apreende a essência dos objetos e dos homens desautomatizando a linguagem, “desexplicando” o mundo para melhor captar – e recriar – seu mistério (GODOY e CÂMARA, 1998, p. 5).

Manoel de Barros reconhece o Pantanal como lugar em que

desenvolveu seus primeiros conhecimentos, espaço da infância, onde recebeu

as primeiras percepções do mundo, onde seu olhar “viu primeiro as coisas”,

onde suas “ouças ouviram primeiro os ruídos do mato”, onde seu olfato “sentiu

primeiro as emanações do campo”. Esse universo infantil propiciou a

apreensão de conhecimentos por meio do corpo: “O que sei e o que uso para a

poesia vêm de minhas percepções infantis” (BARROS, 2006, p.30).

As lembranças reconstruídas da infância confundidas com o presente da

escritura revelam um jogo constante entre vida/ arte, arte/ vida. Há uma

mistura, reelaboração e modificação de fatos e memórias em que o eu habita e

é habitado pela vida da escritura. Dados e vivências pessoais são projetados/

transfigurados em arte. As imagens trazidas e reconfiguradas pela memória

mostram-se polivalentes, incompletas e apelam para uma experimentação

sensorial.

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Valendo-se da tríade memória/ invenção/ recriação, o poeta promove

uma auto-representação oblíqua, em que a própria construção composicional

das obras é ambígua: a poesia é, por vezes, convertida/ transfigurada em uma

estética da prosa.

Manoel de Barros manipula, pois, espaços e pessoas que conheceu

para construir artisticamente ambientes e seres. Pela combinação de

componentes da vida real e de invenções estéticas, o poeta cria novas

realidades.

Para compreendermos a escritura de Manoel de Barros sob o ponto de

vista da presença da autobiografia, faz-se necessário definir tal produção

literária. Bakhtin (2003, p. 139) tece importantes considerações sobre a

autobiografia, concebendo-a como “forma transgrediente imediata em que

posso objetivar artisticamente a mim mesmo e minha vida”. Ao identificar o

autor da autobiografia como “aquele outro possível”, Bakhtin conclui que o

discurso autobiográfico assume sentido quando constrói unidade artístico-

biográfica.

Manoel de Barros cria textos poéticos em que procura perceber “o outro

em relação a si mesmo” (Bakhtin, 2003, p. 13). A transcriação de dados

biográficos em fatos ficcionais promove o experimentar (de) novo e reaviva

duplicidades, ambigüidades, polissemias:

Somos diferentes. Eu mexo com palavras. O outro é fazendeiro de gado. Enquanto o cidadão mantém a casa em ordem, o poeta cultiva irresponsabilidades. Eu sou rascunho de um sonho. Ele é pessoa da terra. Eu tenho um entardecer de angústias. E o outro vai pro bar se esquecer. Recebo no meu olho beijamento de águas. Me sinto um ralo de sabedoria. E o outro zomba de mim. Gosto de me multiplicar todos os dias lendo frases do Gênesis. Ele se compadece de mim. A inércia é meu ato principal. Ele mexe com bois (BARROS, apud MÜLLER, 2010, p. 25).

O poeta deixa-se reconhecer por resíduos sígnicos, breves imagens,

soluços de uma vida. Os fragmentos metonímicos selecionados de um corpo

constroem redes interpretativas de sua vida. Esses “biografemas”, conforme

revelou Barthes (1990, p.12), remetem a um todo maior que não é Manoel de

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Barros, cidadão-fazendeiro que escreve o texto, mas um outro que se incorpora

pela e na escrita à medida que esses fragmentos dão volume ao texto.

Barthes (2003, p. 108) atenta para esse aspecto de modo analógico: “os

fragmentos são então pedras sobre o contorno do círculo: espalho-me à roda;

todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê?”. Podemos

responder a esse questionamento sugerindo que no centro encontra-se o poeta

“arrancado de dentro dele pelas palavras/ a torquês” (R.A.C., p. 359), ente

“entorpecido de haver-se”, “escuro”, múltiplo, corpo constituído de linguagem,

“ser letral” que “envesga seu idioma” e deixa pedaços de si no cisco para

instaurar um novo espaço. Barthes confirma:

O autor que vem do seu texto e vai para dentro da nossa vida não tem unidade; é um simples plural de ‘encantos’, o lugar de alguns pormenores tênues, fonte, entretanto, de vivos lampejos romanescos, um canto de descontínuo de amabilidades (...); não é uma pessoa civil ou moral, é um corpo (BARTHES, 1990, p. 11).

2.2 Em sintonia, poesia e vida

A poesia de Manoel de Barros teve, fundamentalmente, seu início com o

livro Poemas concebidos sem pecado (1937). Passou, até os anos 60, por

Face Imóvel (1942), Poesias (1947) e Compêndio para uso dos pássaros

(1960). Entre os anos de 1960 e 1980, seguiu com Gramática expositiva do

chão (1966), Matéria de poesia (1970) e Arranjos para assobio (1980). A

partir dos anos 80, sua capacidade imaginativa e criadora deslanchou com as

publicações de Livro de pré-coisas (1985), O guardador de águas (1989),

Poesia quase toda (1990), Concerto a céu aberto para solos de aves

(1991), O livro das ignorãças (1993), Livro sobre nada (1996) e Retrato do

artista quando coisa (1998). Ensaios fotográficos (2000), Tratado geral das

grandezas do ínfimo (2001), Cantigas por um passarinho à toa (2003),

Poemas rupestres (2004), Poeminha em língua de brincar (2007) e a trilogia

Memórias inventadas: a infância (2007), Memórias inventadas: a segunda

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infância (2007) e Memórias inventadas: a terceira infância (2008) são seus

trabalhos literários subseqüentes.

Desde o livro de 1937, a experimentação do material verbal, em uma

busca de retorno às origens da linguagem, pode ser evidenciada. De fato, o

título do livro – Poemas concebidos sem pecado – já expõe a vontade do

poeta de explorar o momento primeiro, onde tudo é paradisíaco e sem

máculas, para criar poemas “puros”.

Manoel de Barros sente uma sedução edênica do/ e pelo mundo da

palavra, em que se vislumbra a paisagem iniciática do gênesis. Em Caros

Amigos, afirma:

Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras (BARROS, 2006, p. 31).

Indagado acerca de Poemas Concebidos sem pecado, Manoel de

Barros (apud CASTELLO, 1996 b) declara que o considera como o melhor de

seus livros, pois ele já “tinha a noção do valor lingüístico da poesia”. Para o

poeta, “poesia não é para contar história, poesia é um fenômeno de

linguagem”.

Podemos perceber que Manoel de Barros adota, ao longo de sua

trajetória poética, uma postura de questionamento em relação à realidade, à

linguagem, à exploração e interpretação do estar no mundo, desejando

valorizar a língua falada pelo povo de sua terra, mostrar os tipos humanos

marginalizados e despertar para uma nova estética: rastrear o espaço

experimentado, pela via da memória e das sensações, para recriá-lo.

Manoel de Barros (1960/ 2010, p. 93) indicia seu objetivo criador por

meio de um verso de Guimarães Rosa, em Compêndio para uso dos

pássaros, que afirma: “não entender, não entender até se virar menino”. A

apreensão do espaço, por meio dos olhos e da imaginação infantis, leva o

poeta e os leitores a efetuar associações por semelhanças, equivalências e

paralelismos. Há a suspensão da “correção gramatical” para dar lugar à criação

e à reelaboração do código lingüístico.

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Remetendo-se ao manual de ensino difundido entre as décadas de 60 e

70 – Gramática Expositiva da Língua Portuguesa –, Manoel de Barros (1966/

2010) constrói sua Gramática Expositiva do Chão. Nesta obra, manifesta a

real possibilidade de conhecer as coisas e suas leis para, então, poder mudá-

las e inventá-las.

Manoel de Barros afirma que seus poemas precisam ser sentidos e não

somente entendidos. Ao discorrer sucintamente sobre a lua, o pássaro, o

córrego, o mar, o sol, a estrela, o caramujo, a árvore, a rã, a formiga e a

pássara, Barros cria novos comportamentos para as coisas, e nos chama a

perceber que seu poema está “contaminado de pássaros, de árvores, de rãs” e

que sua gramática se apóia nessas “contaminações sintáticas” (GEC, p. 137).

O poeta sistematiza e estuda os elementos constituintes do chão a seu modo,

promovendo a crise da linguagem. A falta de pontuação assinala a casualidade

do recolhimento das coisas pobres e recusadas pela sociedade de consumo.

Nesse sentido, segundo Berta Waldman (2009), na poética de Manoel

de Barros,

a eleição da pobreza, dos objetos que não têm valor de troca, dos homens desligados da produção (loucos, andarilhos, vagabundos, idiotas de estrada), formam um conjunto residual que é a sobra da sociedade capitalista; o que ela põe de lado, o poeta incorpora, trocando os sinais.

O poeta recolhe resíduos, lixos sociais, e os transforma em ouro poético.

Enfaticamente o poeta afirma:

Sou mais de monturo para a poesia. Monturo guarda no ventre a semente das árvores e das plantas. Guarda nossos resíduos, nossos mijos e ciscos de passarinhos (...) Monturo é lugar (...) em que os pobres-diabos fazem continências para moscas (BARROS, apud MULLER, 2010, p. 53).

Também a partir da leitura de entrevistas de Manoel de Barros, podemos

constatar seu olhar para baixo, seu gosto pela pequenez, por tudo aquilo que a

sociedade em geral rejeita:

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Vejo melhor o cisco. Minhas palavras aprenderam a gostar do cisco, isto é, da palavra cisco. E das coisas jogadas fora, no cisco. Pra ser mais correto: as coisas que moram em terreno baldio (BARROS, 2006, p. 31).

Coisas sem préstimo, ciscos, inutensílios, monturos, palavras a ponto de

entulho e de traste, perpassam toda a sua poética. Além de “catar inutilezas” –

metaforicamente expressas por pregos que “não exercem mais a função de

pregar” (TGG, p. 410) –, fazendo reaparecer aspectos relegados ao

esquecimento e à depreciação, Manoel de Barros critica o mundo globalizado,

que tem experiência com preços, mas não com valores, cujo discurso

dominante determina a valorização do “ter” em detrimento do “ser”. O poeta,

metaligüisticamente, aproxima a tarefa do “catador” ao seu próprio fazer

poético: resgate de realidades desprezadas para desembocar em uma

regeneração da sociedade, elevando o “ser” à categoria superior: “Catar coisas

inúteis garante a soberania do Ser./ Garante a soberania de Ser mais do que

Ter” (TGG, p. 410).

Em Matéria de poesia, Manoel de Barros (1970/ 2010) reitera que as

coisas esquecidas e renegadas são extremamente proveitosas para a poesia.

O poeta realiza inumeráveis descobertas ao longo do livro:

Rios e mariposas/ Emprenhadas de sol/ Eis um dia de pássaro ganho (p. 162)

O bicho esquecido que era de palha/ Prendeu-se nas cores de maio (p. 162-163)

Anos de estudos/ e pesquisas:/ Era no amanhecer/ Que as formigas escolhiam seus vestidos (p. 163)

Eu me atrapalhava de mato como se ele/ invadisse as ruínas de minha boca e a enchesse/ de frases com morcegos (p. 164).

Dessa maneira, Manoel de Barros elabora experiências com a

linguagem, tornando visível um mundo às avessas, um espaço inaugural, em

que os seres desimportantes funcionam espontaneamente “em pleno uso da

poesia, sem apertar o botão” (MP, p. 155).

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Manoel de Barros nos ensina (2001/ 2010), em Tratado geral das

grandezas do ínfimo, que, para criar poesia, é necessário compreender que

ela “está guardada nas palavras” e que se eterniza por meio de “graças

verbais”. O poeta afirma: “Não tenho pensa./ Tenho só árvores ventos/

Passarinhos – issos” (TGG, p. 412). Em meio a miudezas, Barros descobre

motivos para poetar.

Nascido em 1916, no Beco da Marinha, às margens do rio Cuiabá,

Manoel de Barros “cresceu brincando no terreiro em frente à casa, pé no chão,

entre os currais e as coisas desimportantes que marcariam sua obra para

sempre” (NOGUEIRA JR., 2011)3. Segundo Barros (apud NOGUEIRA JR.,

2011), “ali o que eu tinha era ver os movimentos, a atrapalhação das formigas,

caramujos, lagartixas. Era o apogeu do chão e do pequeno” (NOGUEIRA JR.,

2011). Com oito anos, passou a estudar em um colégio interno em Campo

Grande e, depois, no Rio de Janeiro. Lá começou a apreciar o grande

virtuosismo no domínio da língua do padre Antonio Vieira. Para o poeta, Vieira

despertou o gosto pela frase, pela sintaxe, pela construção sofisticada. Barros

acredita que com Vieira aprendeu a construção da poesia, pois seus textos

causavam espanto pelas revelações e efeitos de seu jogo de raciocínios que,

por vezes, se aproximavam do maravilhoso. Sua juventude foi permeada por

pessoas engajadas politicamente, leu Marx e formou-se bacharel em Direito

nos anos 40. A partir de então, começou a produzir e publicar trabalhos

literários de qualidade incontestável. Viajou pela Bolívia, Peru e Nova York,

onde fez curso sobre cinema e pintura moderna. Ao regressar ao Brasil, casou-

se com Stella e tornou-se fazendeiro a fim de “adquirir independência

econômica para comprar o ócio” e assumir de vez o Pantanal. Atualmente,

mora em uma casa cheia de encantos e de esconderijos, de pequenos jardins

internos, nos quais passarinhos vêm cumprimentá-lo. O escuro e misterioso

escritório, no qual Barros tranca-se de sete horas ao meio-dia para escrever,

ler e imaginar, situa-se em um pequeno cômodo do segundo andar. Em sua

                                                            

3  As informações biográficas sobre Manoel de Barros foram extraídas de NOGUEIRA JR. (2011). Projeto releituras: Manoel de Barros. Disponível em http://www.releituras.com/manoeldebarros_bio.asp. Acesso em 08/ 03/ 2011.

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“toca”, Manoel de Barros faz escavações, percorre séculos para descobrir o

esgar inaugural e primeiro de uma palavra, além de arrumar versos, frases e

desenhar bonecos.

Manoel de Barros, por vezes, procura fazer um recorte do momento

criador do artista. Interesses, reflexões, reinvenções, delírios, saberes

primeiros, desejos, emergem e clarificam seu fazer poético. Enxerga, desse

modo, tudo que o rodeia com olhos transformadores e sente a necessidade de

mostrar as curvas dos versos e seus enleios. Nestes versos, afirma:

O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa. Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada. Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa. Era uma enseada. Acho que o nome empobreceu a imagem.

      (LI, p. 303)

Manoel de Barros nos mostra que as metáforas são fundamentais e

enriquecedoras na construção da imagem, pois são alheias às compreensões

previamente determinadas de mundo: o rio é apresentado como “um vidro mole

e uma cobra de vidro”. Além disso, o poeta alude ao fato de que a visão

imagética do momento tende a perder um pouco de seu encantamento quando

recebe um nome ou um conceito, pois torna universal, imutável, inquestionável,

uma percepção particular, transitória, única e sensível. Barros manifesta, por

exemplo, que a palavra ‘enseada’ não consegue representar, em totalidade, a

sensação que a imagem nele suscita. O leitor deve visualizar mentalmente a

curva do rio para conseguir acompanhar as curvas que seus versos fazem.

O poeta faz até mesmo uso da ideia da fotografia para promover

explorações lingüísticas inusitadas em Ensaios fotográficos (2000/2010).

Procura fixar, pelas palavras, elementos que não podem ser normalmente

fixados – o silêncio, o perfume, a existência, o perdão, até mesmo uma

metáfora –, deixando-se invadir pelo reino das imagens, examinando o

processo de criação poética e apresentando novos comportamentos para as

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coisas. As imagens, desse modo, configuram-se como excessos,

derramamentos sem contensão, da visualidade e da espacialidade.

Com Poemas Rupestres (2004/ 2010), o modo singular de olhar, de

mexer com as palavras, de produzir renovações e inaugurações lingüísticas

“desabre”. A partir de um caranguejo “muito se achante”, que “se achava

idôneo para flor, parecia que estava montado num coche/ de princesa e voltou

a ser idôneo para/ mangue” (p. 433), Manoel de Barros exprime que pode

atingir a “palavra no áspero dela”. Com o olhar “cheio de sol/ de águas/ de

árvores/ de aves”, o poeta brinca com as palavras, revestindo-as de qualidades

inesperadas e investe seres e espaço de novas funcionalidades.

Quando questionado sobre o aspecto regionalista em sua obra, Manoel

de Barros revela que, em sua poesia, há sempre um “lastro de ancestralidade”,

porém, para ele, o que importa não é o mero registro descritivo de lugares,

bichos, coisas da natureza de um determinado espaço, mas, sim, a maneira de

se “mexer com as palavras”. Barros (apud CASTELLO, 1996a) acrescenta que

é bom, ao final, restar um “cheiro de coisa do chão”, no entanto, mais

interessante que o regionalismo é o reinventar das coisas, o “transfigurismo

pela palavra”.

Com o Livro de pré-coisas, Roteiro para uma excursão poética no

Pantanal, Manoel de Barros (1985/ 2010) quer anunciar, por meio de uma

linguagem poética transformadora, as “pré-coisas”, as paisagens e os seres do

Pantanal. Como declara Silva (2003):

A poesia de Manoel de Barros recria o Pantanal sul-mato-grossense, retratando-o em suas minudências: os seres ínfimos, as águas, os bichos, as árvores, as pedras – mundo de musgos, de lagartos e de palavras bafejando halo de vida. Traz a memória das coisas esquecidas, desnuda o chão e mapeia seus componentes (SILVA, 2003).

A paisagem retrata não a realidade física da região, mas uma outra

criada pela palavra. Manoel de Barros, em entrevista concedida a Thaís Costa,

publicada na revista Executivo Plus, revela:

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Sou apenas um inventador do Pantanal. Nunca estudei essa região (...) eu apenas invento, embora a invenção das coisas possa, muitas vezes, ser mais real do que a realidade (COSTA, 2010).

O poeta parece acrescentar porções inventivas a cada dado do real

concreto. Nesse sentido, podemos sugerir que o poeta recolhe reminiscências

do passado e as recria, reerguendo-se do que ele próprio denomina “torpor

poético”.

Barros (2007/ 2010) usa como epígrafe de Memórias inventadas: a

infância, uma frase instigante que permeia seu fazer poético: “Tudo o que não

invento é falso”. As imagens poéticas, obtidas por meio da matéria verbal,

apresentam fortes e marcantes referências ao espaço que o circunda, porém

são transformadas e recriadas por ele. Em estado de “pré-tudo”, busca um

contato direto com a realidade e um entendimento por aderências e

incrustações. O mundo vegetal e coisal, pertencentes ao mundo poético sem

limites, encontram-se em estado de espera para fulguração criadora: não são

mais, estão em estado de para ser.

No documentário “Só dez por cento é mentira”, o cineasta Pedro Cezar

(2010), apropriou-se dessa fala instigante do poeta para mostrar mais a poesia

do que a vida do próprio poeta. Quis dar a ideia de sua linguagem e transpor,

em imagens, sua inusitada escrita poética. Colocou em primeiro plano as

coisas miúdas e desimportantes da natureza – insetos, caramujos – e aquelas

descartadas pelo homem – aparelhos quebrados, objetos enferrujados, pneus

usados, carroças sem uso, sucatas. Os tons de ocre das imagens projetadas e

os acordes da viola criam uma atmosfera que nos leva a experenciar os tons

da poesia de Manoel de Barros.

Ao integrar-se à natureza, transformando-a e transformando-se, Manoel

de Barros imprime importância aos sons e aos olhares, demonstrando o quão

sensível deve ser o leitor para captar múltiplas sensações, percepções e

estímulos sensoriais.

Barros convive com as palavras, é descoberto e descobre-lhes o

funcionamento, a relação com o mundo que instaura poeticamente: “Aflora uma

linguagem de defloramentos, um/ inauguramento de falas” (GA, p. 265). Há,

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pois, o esplendor de uma reconfiguração do espaço que quer “desver o mundo

para encontrar nas palavras novas coisas de ver” (MM, p. 449).

2.3 “Antesmente”, poesia e pré-coisa

A invenção poética de Manoel de Barros quer andar na “contravia” das

coisas, desaprender para, enfim, “fazer nascimentos”. Ao encenar a linguagem

em vez de simplesmente utilizá-la, o poeta trabalha e toca as palavras não

como simples instrumentos, mas as lança no poema como “projeções,

explosões, vibrações, maquinarias, sabores” (BARTHES, 1994, p. 21).

O poeta combina vocábulos de maneira imprevista, promove o delírio da

palavra, trapaceia a língua, enche de glórias seres pequeninos e ínfimos, preza

o desprezível a fim de realizar uma resistência aos sistemas de ideias

convencionais. Anuncia veementemente que as verdadeiras e valiosas

descobertas resultam da “ignorãça”:

Como é que eles [os adivinhos, os videntes, os bruxos, os urgos] podem dizer: ‘Vi a tarde se encolher no olho de um pássaro.’ (...) ‘Os carrapichos não pregam no vento’ (...) Essas descobertas vêm da ignorância (BARROS, apud CASTELLO, 1996a).

E complementa:

A mais pura ignorância é saber explicar o caminho dos pássaros, das águas, das pedras, dos sapos. É estar no início onde tudo ainda não foi explicado, é estar no reino de poesia. Aqui a gente só sabe pelos ventos, pelo sol, pelas chuvas, pelos sons, pelas formas, pelos cheiros. Quando a gente ainda está em estado de árvore é que pode sentir os enleios dos cantos. E enxergar os perfumes do sol. (BARROS, 1998, p. 8).

Manoel de Barros ainda afirma que “para enxergar as coisas sem feitio é

preciso/ não saber nada. É preciso entrar em estado de árvore. É preciso entrar

em estado de palavra” (RAC, p. 363). Reitera quando diz:

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Buscar esse estado de inocência há de ser uma fuga. É também procura de essência. Busca de minadouros. Aventura humana atrás de natências (...). Penso que arte, em todos os tempos, é busca do adâmico em nós, do olhar que viu pela primeira vez o mundo e o melhor ser em nós é o que ainda não passou perto das vilanias, das traições etc. Parece que há no artista um profundo desejo de recuperar o tatibitate, a forma ainda embrionária da palavra (BARROS, apud MÜlLLER, 2010, p. 145).

Nessas falas, “inocência” ganha sentido de ignorância, não como falta

de saber, mas como necessidade de buscar o não-sabido, o saber puro. O

poeta considera a procura por esse “estado de inocência” como fuga –

promotora de uma escritura na contramão do pensar habitual –, como

propulsora do interesse pela essência e como ponto privilegiado de observação

de largo horizonte das coisas sem nome e sem glória, do nada que encerra

tudo.

O que Manoel de Barros contempla como poesia resume-se, pois, no

retorno às pré-coisas, às “despalavras”. Para renovação do mundo e do

poema, torna-se fundamental revisitar as palavras ainda em gestação, as

coisas inominadas, o recanto que “era só água e sol de primeiro” (LPC, p. 209),

os seres descobridores de um mundo por infusão: “Vou sendo incorporado

pelas formas pelos/ cheiros pelo som pelas cores” (RAC, p.360).

Rascunhos de vida, teias ainda sem aranhas, olhos ainda sem luz,

penas sem movimento, remendos de vermes, bulbos de cobras, arquétipos de

carunchos, rudimentos, indícios, germes das primeiras ideias, embriões dos

atos revelam a busca pela primeiridade para “corromper, irromper, irrigar,

recompor” a “inauguração de um outro universo” (LPC, p. 204).

Coisas se movendo ainda em larvas, antes de ser ideia ou pensamento,

pré-coisas. No “reino da despalavra”, o poeta arboriza os pássaros, humaniza

as águas, aumenta o mundo com suas metáforas. Desbasta a palavra “até os

seus murmúrios” para produzir uma coisa original “como um dia ser árvore”

(BARROS, apud MÜLLER, 2010, p. 88). Compreende o mundo sem conceitos,

torna-se pré-coisa. Nesse ponto, desenha o cheiro das árvores, escuta a cor

dos passarinhos, desaprende, transvê.

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Verifica-se, assim, as vantagens de ser bugre, que pega por desvios e

vê o miúdo primeiro. O poeta recebeu do bugre uma “carga primal”, um “gosto

casto”, um “gosto de inocência”: “bugre não sabe a floresta; ele sabe a folha.

Enxerga o movimento das formigas e tem devaneios” (BARROS, apud

MULLER, 2010, p. 84).

Manoel de Barros nos indica que, para se alcançar as pré-coisas, é

necessário observar as coisas:

Tenho de ficar prenhe primeiro. Depois vêm períodos de desânimo, vômitos – igual gestação para ter criança. Durante o período de gestação a gente lê dicionário, espanta mosca, toma nota de sintaxes alheias, ouve música, escuta as formas e as cores das coisas (...) Tudo isso vou anotando em caderninhos. É uma forma desnatural de conseguir algum poema (BARROS, apud MULLER, 2010, p. 146).

Barros, em caminho circular, vem do “oco do mundo” e vai para o “oco

do mundo” (LPC, p. 214). É nesse percurso que se torna poeta: “Não apenas

um poeta que escreve, mas um poeta que, antes de tudo, percebe os

nascimentos do mundo, para com essa prática vencer o clichê” (SOUZA, 2010,

p. 51).

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CAPÍTULO 3 – Pantanal e Poesia: homologias e

transfigurações

3.1 Reespacialização pelo olhar

No poema “Anúncio”, que serve de prefácio ao Livro de pré-coisas

(1985/ 2010), Manoel de Barros trabalha com os termos anúncio (aviso, notícia,

prenúncio)/ anunciação (ação de anunciar), enunciado (que se enunciou)/

enunciação (ação de enunciar) de modo integrador. As “pré-coisas” de poesia

mostram-se duplas – dadas e construídas – e os enunciados articulam-se para

produzir um efeito analógico. O prefixo indicativo de anterioridade deixa claro

que o poeta quer modificar o comportamento das coisas, humanizá-las, vê-las

de um modo diferente para, enfim, transcriar a realidade pela linguagem. A

palavra poética de Barros procura captar as coisas em gestação para

surpreendê-las em seus momentos inaugurais.

A natureza é tomada pela doença, pelo desvio de sensibilidade do poeta

– “Aqui o organismo do poeta adoece a Natureza” (LPC, p. 197):

De repente um homem derruba folhas. Sapo nu tem voz de arauto. Algumas ruínas enfrutam. Passam louros crepúsculos por dentro dos caramujos. E há pregos primaveris... (Atribuir-se natureza vegetal aos pregos para que eles brotem nas primaveras... Isso é fazer natureza. Transfazer (LPC, p. 197).

Manoel de Barros quer desvelar uma natureza viva e trazer à tona as

insignificâncias naturais. Ao engrandecer o pequeno, o poeta cria uma nova

espacialização pelo olhar. Acredita que “o olho vê, a lembrança revê as coisas

e é a imaginação que transvê, que transfigura o mundo, que faz outro mundo

para o poeta e para o artista de modo geral” (BARROS, 2002). O poeta

sustenta que o artista não apenas vê, mas tem visões. Visões estas que

contém imagens e transfigurações. A esse respeito Barros reitera que

o poeta humaniza as coisas, o tempo, o vento. As coisas como estão no mundo, de tanto vê-las nos dão tédio. Temos que arrumar novos comportamentos para as coisas. E a visão nos socorre desse mal (BARROS, apud CASTELLO, 2006).

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Primando por descortinar novas perspectivas, suscitar estranheza e

despertar diversas reações no leitor, Barros procura enxergar, no visível, sinais

invisíveis. Ensina-nos que “beleza e glória das coisas o olho é que põe. (...) É

pelo olho que o homem floresce” (LPC, p. 224). Cria, pois, uma poética

pictórica, plástica, que absorve modos de composição de outras artes. Da

pintura, por exemplo, tenta absorver a expressão apresentada em um espaço

bidimensional, que realça, na tela, elementos estéticos, como a figura, a forma,

a textura, a cor. Faz o poeta, no entanto, uso das potencialidades da palavra,

levando-a a conquistar um espaço tridimensional. A esse respeito Pessanha

revela:

O texto, feito de seqüências, cesuras, ritmos, passagens, possui liquidez, escorrendo como água itinerante de significações. Por isso, o espaço – a folha de papel – não consegue aprisionar inteiramente a escrita, nem coagular a leitura. (...) O texto mal pousa sobre o espaço: ele voa, adeja por ali ele apenas passa (PESSANHA, 1999, p. 159-160).

Assim, o texto poético de Manoel de Barros é fluido, ambíguo, móvel.

Alcança, pois, a pluridimensionalidade ao permitir que as palavras não

signifiquem, mas entoem, transcendendo-as dos limites do papel.

Aquele dia eu vi a tarde desaberta nas margens do rio. Como um pássaro desaberto em cima de uma pedra na beira do rio. Depois eu quisera também que a minha palavra fosse desaberta na margem do rio. Eu queria mesmo que as minhas palavras fizessem parte do chão como os lagartos fazem. Eu queria que minhas palavras de joelhos no chão pudessem ouvir as origens da terra (MM, p. 461).

Manoel de Barros faz uso de modos imagético-pictóricos para ter acesso

ao real e presentificar o espaço. O gênero da pintura mais assimilado por

Manoel de Barros é o retrato, não apenas de pessoas, mas de cenas que

visam à representação da essência e não apenas da aparência externa. Como

afirmou Aristóteles, “o objetivo da arte não é apresentar a aparência externa

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das coisas, senão o seu significado interno; pois isto, e não a aparência e o

detalhe externos, constitui a autêntica realidade” (AYMAR, 1967).

Em “Retratos a carvão” (PCP, 1937/ 2010), Manoel de Barros representa

as personagens como bichos ou como seres postos à margem. “Polina” é

descrita como “um bicho muito pretinho com pouca experiência de sofrimento/

mas pra sua idade o suficiente” (p. 25). “Cláudio” (p. 26), o arameiro, de tão só

e sujo se irmanava ao magro jacaré, compartilhando, com ele, a pouca água da

região. “Sabastião” era “diz-que louco daí pra fora” (p. 27). “Raphael” era um

“pouquinho miserável”, “um menino do mato sem importância” (p. 28-29). O

material usado para retratar é o carvão, rocha sedimentar mineral formada a

partir de plantas acumuladas em pântanos que se decompõem, o que reitera o

aproveitamento dos restos para composição do poema. Manoel de Barros

demonstra, ao retratar tais personagens desse modo, que virar coisa

“decomposta” significa recuperar o poético e a própria liberdade inventiva.

Embora o retrato tenda a fixidez e a estaticidade, Manoel de Barros

recupera em seus poemas o movimento pelo dinamismo e pela fluidez da

linguagem mosaicada.

O poeta elenca uma série de pertences de uso pessoal de um homem

“que entrara na prática do limo” (GEC, p. 121), dispostos de forma aleatória,

encerrando sua exposição com uma tela, que é descrita por Dr. Francisco

Rodrigues de Miranda, amigo do homem que fora preso. Revela tudo aquilo

que a sociedade em geral rejeita e recolhe em sua temática:

o artista recolhe neste quadro seus companheiros pobres do chão: a lata a corda a borra vestígios de árvores etc. realiza uma colagem de estopa arame tampinha de cerveja pedaços de jornal pedras e acrescenta inscrições produzidas em muros (...) tudo muito manchado de pobreza e miséria que se não engana é da cor encardida entre amarelo e gosma. (GEC, p. 122-123)

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Colagem, justaposição de objetos jogados fora, são procedimentos

empregados pelo poeta. Quando trata da confecção do retrato de outro

homem, Barros reúne, mais uma vez, materiais desprezados: “um homem

pegava, para fazer seu retrato, pedaços de tábua, conchas, sementes de

cobra” (MP, p. 164).

Em “Autorretrato” (EF, p. 389), tomamos conhecimento tanto do

nascimento do poeta na beira do rio, quanto da produção de desobjetos e de

suas “mortes”, motivadas pela escritura de 14 livros.

Já no poema “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente

nada”, Barros compõe cenas contemplativas do Pantanal e da arte de poetar,

promovendo a “ocupação da palavra pela Imagem” (GA, p. 263).  O poeta

defende que o homem precisa sair dos “veios comuns do entendimento” (GA,

p. 265) em direção a algo estranhador. No momento em que o homem se torna

“coisal”, instala-se nele uma “agramaticalidade quase insana que empoema o

sentido das palavras” (GA, p. 265). À obra de Ovídio, Manoel de Barros propõe

um “novo estágio”: a criação de uma língua própria para os “entes já

transformados”; um dialeto “coisal, larval, pedral”, que seria composto por uma

linguagem “madruguenta, adâmica, edênica, inaugural” (GA, p. 266). Para

tanto, tornar-se-ia imprescindível retornar aos momentos primeiros da infância

e “reaprender a errar a língua” (GA, p. 266). O erro, pois, é considerado

transmutante e renovador em sua peregrinação poética.

Em seus “emaranhos” lingüístico-pictóricos, Manoel de Barros examina,

com atenção, o processo de criação artística de pintores em uma tentativa de

aplicar tais procedimentos em sua poética. Toma de empréstimo o título

“Máquina de Chilrear” de um quadro de Paul Klee (1922), unindo, em poesia,

tudo o que é julgado imprestável, transformando-o em uso doméstico. Reflete,

também, sobre seu próprio fazer poético, valendo-se de Miró: expressão

fontana, presença de ritualismo, entendimento dos restos como engenharia de

cores. Revela, ainda, que “um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh”

(LI, p. 301), ao enfatizar que o trabalho do pintor, assim como o do poeta,

resume-se em dar ressonância artística à essência das coisas. Cria, ademais,

um pintor imaginário, Quiroga, para sugerir que a arte pode estar ligada aos

elementos essenciais da natureza.

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A escolha do pintor suíço Paul Klee (1879-1940), considerado um artista

da essência, não é ocasional, uma vez que, atento às energias e vibrações,

Klee buscava o mundo interior e pintava o que os olhos não enxergavam. É o

que se observa na tela:

“A máquina de chilrear” Paul Klee, 1922

http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/1843/ECAP-7QRH3M/1/iluminuras_wan_sssa_cruz.pdf

É interessante notar que Paul Klee, ao nomear sua obra, coloca lado a

lado elementos díspares: máquina – aparelho construído pelo homem para

produzir ou transformar energia, termo que nos remete a algo não produzido

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pela natureza, mas por uma técnica específica; e chilrear – gorjear, emitir sons

repetidos a pequenos intervalos; que nos indica algo espontâneo, pertencente

à natureza.

O pintor, por meio não só da cor azul, que simboliza o céu, habitat

natural das aves que chilreiam, mas também das leves e finas pinceladas que

se assemelham a gravuras rupestres, cria um espaço experimental na tela para

materializar pictoricamente o som. Das aves de longas patas, sobressaem-se

os bicos que pipilam. Do lado direito da tela, destaca-se uma espécie de

manivela, que pretensamente serviria para impulsionar os sons dessas aves.

Paul Klee pinta, então, o que ele entende por arte: fragmentação/ diluição do

objeto para se alcançar e manipular plasticamente sua essência.

Manoel de Barros, com seu poema a “Máquina de chilrear e seu uso

doméstico” (GEC, 1966/ 2010), cria textos poéticos interseccionados, com

imagens cambiantes, flexíveis e significados móveis e fragmentados. Os sons

que se escutam em sua poesia são vozes emaranhadas de seres da natureza

que parecem “vir de um poço escuro” e que traduzem sentimentos profundos:

O SOL (sobre caules de passarinhos e pedras com rumores de rios antigos) – Iam caindo umas folhas de mar sobre as casas dos homens. O CÓRREGO (no alto de seus passarinhos) – Ervas e grilos crescem-lhe por cima

(GEC, p. 136)

O poeta fala, por metáfora, o que entende por poesia: artesania que

prima por descortinar a natureza do ser. Volta-se, portanto, para a primeiridade.

Tal aspecto também pode ser verificado a partir do poema “Miró”:

Para atingir sua expressão fontana Miró precisava de esquecer os traços e as doutrinas que aprendera nos livros. Desejava atingir a pureza de não saber mais nada. Fazia um ritual para atingir essa pureza: ia ao fundo do quintal à busca de uma árvore. E ali, ao pé da árvore, enterrava de vez tudo aquilo que havia aprendido nos livros. Depois depositava sobre o enterro uma nobre mijada florestal.

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Sobre o enterro nasciam borboletas, restos de insetos, cascas de cigarra etc. A partir dos restos Miró iniciava a sua engenharia de cores. Muitas vezes chegava a iluminuras a partir de um dejeto de mosca deixado na tela. Sua expressão fontana se iniciava naquela mancha escura. O escuro o iluminava.

(EF, p. 385)

Com este poema, Manoel de Barros deixa claro como compreende a

obra do pintor catalão. O desconhecer guiava sua criação artística. De fato, em

entrevista a Georges Raillard, Miró declara:

Durante o trabalho, nada. Nada, em absoluto. Não olho a paisagem, que é magnífica. Há poucas janelas, e ainda fecho as cortinas. Nada, nada, nada. O que me excita quando trabalho é isto aqui: esta manchinha branca no chão (MIRÓ, apud RAILLARD, 1992, p. 41).

A busca pela “expressão fontana” é perseguida pelos dois criadores.

Miró (apud RAILLARD, 1992, p. 73) sustenta que “é preciso esgaravatar a terra

para encontrar a fonte; é preciso escavar”. Manoel de Barros, observando

metaforicamente o trabalho de arqueólogos – “dois homens sentados na terra o

dia inteiro escovando osso; queriam encontrar vestígios de antigas civilizações

que estariam enterrados por séculos naquele chão” (MII, 2003, p. I)–, pensa

igualmente em “escovar”, não ossos, mas palavras. Por acreditar que as

palavras são “conchas de clamores antigos”, Barros escava “oralidades

remontadas e muitas significâncias remontadas” para escutar “os primeiros

sons” e descobrir “o primeiro esgar” de cada palavra.

Miró (1893-1983) preferia pintar com os dedos. Manoel de Barros faz

nascimentos na ponta de seu lápis. O interesse pelo ínfimo é notório em

ambos. Miró revela que, no plano espacial de sua tela, “um talinho de capim

tem mais importância do que uma grande árvore; uma pedrinha, mais do que

uma montanha; uma libelulazinha, tanta quanto uma águia” (MIRÓ, apud

RAILLARD, 1992, p. 54). Manoel de Barros (TGG, p. 407-408), no espaço do

poema “Sobre importâncias”, procura reavaliar aquilo que apreende por meio

de seu olhar distorcido: "o pingo de sol é mais importante do que o esplendor

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do sol nos oceanos”; “as pombas são mais importantes do que o prédio de

estilo bizantino do século IX”; “o sabiá é mais importante do que a Cordilheira

dos Andes”. Ao término do poema, o poeta assume: “Eu, por certo, não saberei

medir a importância das/ coisas: alguém sabe?/ Eu só queria construir nadeiras

para botar nas/ minhas palavras”.

Em “A fazenda” (tela pintada em 1921-1922), Miró explica: “Dei

dimensão ao espinho porque ele me interessava do ponto de vista plástico.

Precisava chegar a uma nova plástica. Um único espinho é o resumo de todas

as outras plantas” (MIRÓ, apud RAILLARD, 1992, p. 54).

Seres pequenos e o próprio solo são retratados em suas minúcias. A

árvore ocupa posição central na tela, porém o que ganha destaque é o

detalhamento de seu tronco, repleto de espinhos. A interioridade, a essência,

são postas, também, em realce. A questão da profundidade é trabalhada para

se alcançar o equilíbrio.

http://www.quadrosepinturas.com.br/pintura-reproduc-o-replica-de-joan-miro-a-

fazenda-em-oleo-sobre-tela.html

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Já em “Campo arado” (tela de 1923-1924), Miró busca construir a

imagem artística de modo diferente: “A escolha dos planos não seria feita

segundo a perspectiva e, sim, segundo uma escolha afetiva. Escolho os

animais, as plantinhas tudo o que tem ritmo. Os caracóis, as lagartixas” (MIRÓ,

apud RAILLARD, 1992, p. 56).

A respeito dessa deshierarquização dos elementos do quadro de Miró,

João Cabral de Melo Neto (1952) esclarece:

À ideia de subordinação de elementos a um ponto de interesse, ele substituiu um tipo de composição em que todos os elementos merecem um igual destaque. Nesse tipo de composição não há uma ordenação em função de um elemento dominante, mas uma série de dominantes, que se propõem simultaneamente, pedindo do espectador uma série de fixações sucessivas, em cada uma das quais lhe é dado um setor do quadro. (...) o que Miro obteve foi uma desintegração da unidade do quadro (MELO NETO, p. 12-13).

 

http://artistoria.wordpress.com/2010/02/15/surrealismo/

O aparato compositivo criado no quadro produz no espectador “uma

sensação de que [a figura] se vai precipitar, mudar de lugar” (MELO NETO,

1952, p. 15). Há uma exploração das possibilidades dinâmicas da superfície,

um desejo de “obter, com sua linha, melodias absolutamente livres das

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limitadas melodias admitidas pela pintura fundada no Renascimento” (MELO

NETO, 1952, p. 19).

Barros, do mesmo modo, mas com suportes diferentes, propõe a

desintegração/ diluição em sua obra poética ao multiplicar poemas dentro de

um poema, livros dentro de um livro, obrigando o leitor a recompor essas

criações descontínuas. No Livro de pré-coisas (1985/ 2010), por exemplo, o

poeta apresenta-nos a “Parte XIX”, intitulada novamente “livro de pré-coisas”,

de um Tratado de Metamorfoses, deixado por um “ente irresolvido entre

vergôntea e lagarto” (LPC, p. 218). O suposto autor desse livro é indefinido

assim como os poemas dele coletados. Versos curtos e entrecortados, ou mais

longos e ritmados, lançam-se dinâmica e instantaneamente ao leitor como

experiências estéticas e críticas com a linguagem:

Sorna lagarta curta recorta a roupa de um osso (p. 219). Essa abulia vegetal sapal pedral – não será de/ ele ter sido ontem árvore? (p. 220). Flores engordadas nos detritos até falam (p. 221)

Ao se desvencilhar da hierarquização das figuras que compunham seu

quadro, Miró dá aos seres naturais constituições e poderes humanos: “Para

mim, uma árvore não é uma árvore, algo que pertença à categoria do vegetal,

mas uma coisa humana, alguém vivo (...) às vezes ponho um olho ou uma

orelha nas árvores. É a árvore que vê e que ouve (MIRÓ, apud RAILLARD,

1992, p. 56).

Manoel de Barros igualmente conjuga qualidades dos diferentes reinos –

animal, vegetal e mineral – para promover trocas imanentes, em que um ser se

identifica a outro e o espaço se compõe harmonicamente. Em sua poética, os

seres revelam uma essência divina: “Um girassol se apropriou de Deus: foi em

Van Gogh” (LI, p. 301). De fato, Van Gogh (1853-1890) justifica sua dedicação

à pintura como uma missão: ser útil ao mundo e desvelar suas crenças – “Trate

de compreender a última palavra do que dizem as obras de arte, os grandes

artistas, os mestres mais sérios, e verá Deus ali dentro. Alguém o escreveu ou

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disse num livro e alguém o fez num quadro” (VAN GOGH, apud Russo, 2007,

p. 17).

A incidência da luz e o movimento obtido por meio de pinceladas soltas

tornam-se fundamentais na pintura de Van Gogh. A escolha de cores primárias

ilustra o desejo de obter composições puras. Os girassóis, pintados com

apenas uma gama de cor, o amarelo, com sutis matizes e linhas vermelhas e

azuis finas, fazem parte de um conjunto de obras sobre o mesmo tema.

 

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Van_Gogh_Twelve_Sunflowers.jpg

Van Gogh reconhece a importância simbólica dos girassóis ao imbuir em

tais flores aspectos representativos de sentimentos como a amizade, a

esperança e a gratidão. Isso o leva a admitir: “Eu tenho um pouco de girassol”

(Van Gogh apud Russo, 2007, p. 56). Manoel de Barros igualmente vê-se

indissoluvelmente ligado a sua poesia ao ponto de afirmar: sofro de árvores

(CUP, p. 115).

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Inventa poeticamente, por fim, um pintor, Rômulo Quiroga – criação

poética de Manoel de Barros, embora exista como pintor de paredes que presta

serviços à família do poeta (apud Menegasso, 2001) – e descreve-o como

“artista iluminado; ser obscuro” (LSN, p. 349-350) para assimilar uma pintura

primitiva em que as tintas eram obtidas a partir de elementos colhidos da

natureza:

Ele mesmo inventava as suas tintas. Trazia dos matos caldos de lagarta (era seu verde), seiva de casca de angico (era seu vermelho), polpa de jatobá (era seu amarelo). Não sei como ele dava liga nos seus pigmentos. Talvez usasse pocas de piranhas, derretidas. Pintava sobre sacos de aniagem. Um dia me mostrou um ancião de cara verde, que acabara de pintar. Eu lhe disse: “Mas, Rômulo, o verde não é a cor da esperança, da juventude?” Respondeu que para ele era a cor da melancolia. Que os anciãos têm saudades dos verdes anos. E acrescentou: a minha cor é psíquica e as minhas formas são incorporantes: eu sempre estou nelas com os meus antepassados (BARROS, apud MÜLLER, 2010, p. 96-97).

É interessante verificarmos como Manoel de Barros parece descrever

seu próprio fazer poético por meio da observação da pintura de Quiroga:

exploração de materiais primitivos/ primários; percepção sensível e alógica; uso

de cores psíquicas/ palavras imagéticas e formas incorporantes. Podemos,

ainda, refletir sobre esse comentário de Manoel de Barros quando transposto

poeticamente:

Aprendi com Rômulo Quiroga (um pintor boliviano) A expressão reta não sonha. Não use o traço acostumado. A força de um artista vem das suas derrotas. Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro. Arte não tem pensa: O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo. Isto seja: Deus deu a forma. Os artistas desformam. É preciso desformar o mundo; Tirar da natureza as naturalidades. Fazer cavalo verde, por exemplo. Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall.

Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu saio por

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aí a desformar. (LN, p. 349- 350)

De Quiroga, Barros acolhe outra noção importante para sua criação

poética: perseguir a expressão torta, repleta de enleios, que “só pega por

desvios” (LI, p. 319), passo imprescindível para a transfiguração. Nesse

sentido, podemos recorrer à ideia desenvolvida por Bosi quando revela que:

por metáfora redutora se dirá que é “círculo” um poema onde há ressonância e retorno. Frases não são linhas. São complexos de signos verbais que vão se expandindo e desdobrando, opondo e relacionando, cada vez mais lastreados de som-significado (BOSI, 2008, p. 36).

Torna-se fundamental buscar o novo, o insuspeitado, para transcriar/

transfazer/ “desformar” a realidade.

Podemos perceber que Manoel de Barros começa o Livro de pré-

coisas (1985/ 2010) com manhas, nódoas de imagens, e termina com

iluminuras. O quadro pantaneiro, elaborado com palavras, mostra-se pronto,

mas não acabado. Assim, as próprias garças que criam iluminuras no livro

podem ser consideradas pintoras, uma vez que decoram e apresentam

representações imagéticas importantes.

O termo “iluminura” refere-se ao tipo de pintura decorativa,

frequentemente aplicado às letras capitulares no início dos capítulos

dos códices de pergaminho medievais. O termo se aplica igualmente ao

conjunto de elementos decorativos e representações imagéticas executadas

nos manuscritos, produzidos principalmente nos conventos e abadias da Idade

Média. Tais decorações podiam enquadrar todo o espaço do texto ou ocupar

apenas uma pequena parte da margem da página. De acordo com o Osborne,

organizador do Dicionário Oxford de Arte (1987, p. 267), a palavra “iluminura”

provém do “uso do verbo latino illuminare em conexão com o estilo oratório ou

narrativo, onde tem o significado de adornar”.

Podemos exemplificar esse ponto com um poema extremamente

simbólico do livro O guardador de águas (1989/ 2010). Na segunda parte

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intitulada “Passos para a transfiguração”, o espaço da página é composto por

poemas sintéticos e desenhos intrigantes do próprio poeta:

Um desígnio a coisas O eremisa. Jias dormem gerânios Com o seu rosto

(GA, p. 256)

Este poema VI, juntamente com a figura de um homem-pássaro que alça

vôo em direção ao chão, nos indica o estreito relacionamento entre homem-

coisa, homem-chão. Propõe a metamorfose, pela poesia, do homem em

pássaro para libertá-lo e conduzi-lo a novos modos de compreensão da

realidade.

Manoel de Barros recolhe e recorta um procedimento da tradição e o

atualiza poeticamente. Desenha/ escreve/ adorna seus poemas com palavras e

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figuras imageticamente luminosas. O poeta-pintor esboça, à mão livre, na

ponta de seu lápis, ora criações esfumaçadas e manchadas, ora nítidas e

reluzentes.

Primando por regressar a momentos primais em que imagem e palavra

detinham estreitos vínculos, rascunha imagens poéticas que iluminam e

estimulam nossos sentidos e nos permitem experimentar sensações ímpares.

3.2 Criação pelo sentir

O poeta, ao retratar com inventividade a chegada do narrador ao Porto

de Manga, no rio Paraguai, envolve o leitor a partir evocação dos sentidos:

visão – “empeixado e cor de chumbo; um homem apareceu no barranco;

jogaram uma prancha na praia. Por ela desceram passageiros e cargas; na

outra margem do rio uma casa acendeu; cardeais cruzam os barrancos; já

diviso um solapão de lontras” –, audição – “deu boa noite; dois galos

ensaiaram; a lancha apitou despedida” –, olfato – “vem um cheiro de currais

por perto” – e paladar – “provo as delícias de uma cobra assada que me

oferece Nhá Velina. Depois comeremos siputá” (LPC, p. 199-200).

Voltando-se para as insignificâncias, Manoel de Barros cria um

microcosmo, um “microbrejo” para insinuar metalinguisticamente que a poesia

é a “pura inauguração de um outro universo. Que vai corromper, irromper,

irrigar e recompor a natureza” (LPC, p. 204).

No poema “Agroval”, observamos as pré-coisas, os embriões dos atos

(poéticos), os “germes das primeiras ideias”, quando as “penas” ainda se

encontram sem movimento. Seres minúsculos – “vermes, cascudos, girinos e

tantas espécies de insetos e parasitas” –, que compõem ínfimas sociedades,

se instauram por debaixo da arraia e instituem “trocas de linfas, de reina, de

rúmen, tornando o sítio um útero vegetal, insetal, natural” (LPC, p. 203).

Pela ausência de hierarquia entre os seres, o poeta mostra que a

interação, ainda inacabada e embrionária, é proveitosa. Assim, o homem,

enquanto parte integrante da natureza, deve participar dessas trocas, vendo-se

interdependente e aprendiz “da festa de insetos e aves no brejo” (LPC, p. 204).

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Nesse sentido, conforme afirma Perna Filho (2007): “Manoel de Barros

embrenha-se e emerge na densidade do Pantanal Mato-grossense para sentir-

lhe o entusiástico pulsar de cada coisa”.

Camargo (2004) reforça esse argumento ao informar que

Barros tem no Pantanal a força arquetípica e telúrica da sua criação poética. Suas forças motrizes de inspiração são retiradas desse macrocosmo prenhe de elementos míticos, coisas genesicamente pré-existentes, de harmoniosa compleição auto-suficiente. Suas imagens figuram um gênese cosmogônico, onde todas as coisas e seres se correspondem numa relação verdadeiramente simbiótica e porosa (CAMARGO, 2004, p. 106).

Em “Um rio desbocado” (LPC, p. 201-202), Manoel de Barros avigora

essa ideia de Pantanal em estado de latência. O rio Taquari é qualificado de

modo plural: ora como torneira que “derrama e destramela” devido a seus

diversos afluentes; ora como tromba d’água, pois “destampa adoidado” na

época das violentas cheias. O rio é, ainda, visto como cavalo desembestado

que “escoicea árdego” e, também, como fruto, uma vez que ambiguamente

seus estragos compõem e geram vida: o rio engravida, empacha, estoura,

arromba, cava e recava. Ao “alargar”, “aprofundar”, “enxertar”, o Taquari “faz

brotar, alegra e emprenha”, não só o solo do Pantanal, mas também o poema.

Em “Vespral de chuva” (LPC, p. 204-205), a construção da imagem da

pré-chuva reflete a maneira como o poeta olha o real, isto é, como procura ver

e captar sensorialmente não as coisas, mas as pré-coisas. Manoel de Barros

quer refazer a ligação com o pré-categorial, anterior ao logos, e, para isso, usa

o princípio da analogia, retratando os objetos em potencial, na sua essência.

Nosso entendimento desse conceito passa pela concepção de Cortázar

(1974, p. 86) que compreende a elaboração de analogias como “sentir

próximos e conexos [os] elementos que a ciência considera isolados e

heterogêneos”, possibilitando, então, a captação e a exploração de um mundo

antes despercebido. Por meio da direção analógica, as construções imagéticas

do poema se libertam “de toda referência significativa para não nomear e não

assumir senão a essência dos seus objetos” (CORTÁZAR, 1974, p. 98).

A preparação para o cair da chuva é sentida por todos:

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Chuva que anda por vir está se arrumando no bojo das nuvens. Passarinho já compreendeu, está quieto no galho. Os bichos de luz assanharam (...) Suor escorre no rosto O homem nos seus refolhos pressente o desabrochar. (LPC, p. 205).

Observamos, portanto, a instauração de conexões analógicas, pois os

seres, em harmonia com a natureza, assemelham-se no sentir.

Todos sentem um pouco na pele os prelúdios da chuva. (...) Aranhas-caranguejeiras desde ontem aparecem de todo lado. Dão ares que saem do fundo da terra. Formigas de roseiras dormem nuas. Lua e árvore se estudam de noite. (...) Todo vivente se assanha. (...) O homem foi reparar se as janelas estão fechadas. Mulheres cobrem espelhos. Se sente por baixo do pomar o assanhamento das porcas. (LPC, p. 205)

A recorrência do termo “assanhar” demonstra que Manoel de Barros

penetra na interioridade dos seres para provocar, aguçar, incitar, despertar os

sentidos dos leitores. Os prelúdios da chuva são, assim, experimentados por

meio de imagens poéticas que procuram levar ao leitor a experiência sensorial

desse momento de expectativa e espera. Diz o poema:

Nem folha se move de árvore. Nenhum vento. Nessa hora até anta quer sombrear. Peru derrubou a crista. Ruminam algumas reses, deitadas na aba do mato. Cachorro produziu chão fresco na beira do rancho e deitou-se. Frango-d’água vai sestear no sarã. O zinco do galpão estala de sol. Jaracambeva encurta o veneno (...) Faz muito calor durante o dia. Sobre a tarde cigarras destarraxam. De noite ninguém consegue parar. (...) Mariposas cobrem as lâmpadas. Entram na roupa. Batem tontas nos móveis. (LPC, p. 204)

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A partir da construção de orações curtas e incisivas, graças ao ritmo e à

musicalidade, a espera da chuva é reforçada e a eminência do desabrochar, do

novo é evidenciada: “No oco do acurizeiro o grosso canto do sapo é contínuo”

(LPC, p. 205). O poeta constrói a descrição da pré-chuva, valendo-se de

locuções verbais que, além de revelarem atributos dos seres “nessa hora”,

revelam certo movimento.

Chuva que anda por vir está se arrumando no bojo das nuvens. (...) Por dentro da alma das árvores, orelha-de-pau está se preparando para nascer. (...) Até o inseto de estrume está se virando. Cupins estão levantando andaimes. (...) O jardim está pensando... Em florescer. (LPC, p. 204-205)

O poema também prepara o ser para sentir. Há uma progressão do

estado “vespral”, uma vez que o movimento cresce até motivar “uma festa

secreta na alma dos seres” (LPC, p. 205) por meio de uma razoabilidade

sensível. Tudo concorre, pois, para a apreensão do real de modo original: “–

Do lado da Bolívia tem um barrado preto. Hoje ele chove!” (LPC, p. 205).

Assistimos, agora, à criação de novas relações decorrentes, desta vez,

de como o mundo é traduzido poeticamente. Manoel de Barros, em um retorno

às origens, estabelece conexões livres entre a “fala” do homem, que “foi

recolher a carne estendida no tempo”, o “grosso canto do sapo” e o “assobio

dos bugios na orla do cerrado” (LPC, p. 205). A fala desarticulada do homem

cede lugar ao “canto do sapo” e ao “assobio dos bugios”. Tais sons, canto e

assobio, são vistos como “despalavras” que expõem, de maneira mais “pura”,

as impressões causadas nos órgãos dos sentidos pelo “vespral de chuva” e

suas formas próprias de externá-las. O poeta “canta” as pré-coisas e a própria

natureza pantaneira, em uma busca pelas relações primeiras dos seres com a

realidade, relações estas fundamentalmente sensoriais.

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A composição cíclica do poema indica a passagem do tempo – dia/

tarde/ noite expressam a sensação, o sentimento da pré-chuva: “Faz muito

calor durante o dia. Sobre a tarde cigarras destarraxam. De noite ninguém

consegue parar” (LPC, p. 204) – e a busca de um conhecimento totalizante da

natureza pantaneira, da vida e da poesia.

Após caírem os primeiros pingos de chuva, o “perfume de terra molhada”

pode ser sentido e o mundo se apresenta renovado/ recriado: “choveu tanto

que há ruas de água; há um referver de insetos por baixo da casca úmida das

mangueiras; alegria é de manhã ter chovido de noite” (LPC, p. 206).

Por meio desse jogo verbal, imagético e sensório, o poeta quer que as

palavras, enquanto corpos tocáveis, afetem os órgãos dos sentidos, para que

os leitores possam vivenciar a experiência do calor sufocante da véspera

(vespral) da chuva e do ar refrescante posterior a ela.

No poema “Mundo renovado”, revela-se um Pantanal sem limites, onde

as coisas, ainda inominadas, deixam de existir como eram: “choveu tanto que

há ruas de água. Sem placas sem nome sem esquina” (LPC, p. 206). Tudo é

mútuo – “a pelagem do gado está limpa. A alma do fazendeiro está limpa”

(LPC, p. 207) – e o novo surge de relance. A chuva, símbolo de renovação,

fertiliza material, espiritual e poeticamente o poeta, o poema e todos os seres.

Por meio dela, o poeta traduz a alegria e o equilíbrio homem/ natureza. Pelo

trabalho com a linguagem, o poema deita “rebentos” e também produz a

sensação de (re) descoberta.

A predominância da cor verde ao longo do poema – ranchos, canteiros

das hortas, árvores, capim, periquitos, mangueiras, cerrados – anuncia a

ressurreição da natureza, graças às águas regeneradoras, e ressalta o

despertar da vida: “E a primavera imatura das araras sobrevoa nossas cabeças

com sua voz rachada de verde” (LPC, p. 207).

Posteriormente aos preparativos para o sentir, vêm as descobertas:

“lagartos espaceiam com olhos de paina. Borboletas desovadas melam. Biguás

engolem bagres perplexos” (LPC, p. 206). O poeta revela sua perplexidade

diante do “mundo renovado” e faz com que os leitores também percebam o

mundo de outro modo.

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3.3 Mosaico espacial

O estímulo ao leitor, no sentido de refazer o mundo criado pelo poeta e

de levar adiante seu ato de reflexão, só é adequadamente alcançado pelo

fragmento. Concebido como projeto inacabado ou obra de arte em aberto,

destinado a estender-se, o fragmento ganha força nos poemas de Manoel de

Barros.

Novalis (1988, p.20), poeta da primeira geração romântica alemã, que se

destacou por suas reflexões poetológicas, chamará os fragmentos de

“pensamentos soltos”, “começos de interessantes seqüências de pensamento –

textos para o pensar (...) pedaços do contínuo autodiálogo em mim –

mergulhias”. Como “sementes do pensamento”, os fragmentos condensam

ideias, métodos, reflexões em uma sinfonia de vozes para tratar da

problemática da poesia propriamente dita.

Manoel de Barros faz pequenos recortes metonímicos da realidade e os

cose metaforicamente, construindo, assim, um espaço mosaicado. Marinho

(2004, p. 85), autor do artigo Cinema e literatura: O Pantanal como metáfora

da Arte em Joel Pizzini e Manoel de Barros, reconhece que “os fragmentos de

Pantanal corresponderão, assim, a representações metonímicas do conjunto

do cosmos”. E acrescenta que “o Pantanal torna-se o espelho do mundo que o

engloba, torna-se nenhum-lugar capaz de desvelar o conhecimento sobre o

todo-lugar” (MARINHO, 2004, p. 85). Devemos entender, no entanto, espelho

não no sentido de cópia do real, mas no sentido de recurso reflexivo para

elaboração de uma cosmovisão construtora de um novo universo. Assim, esse

universo pantaneiro recém inaugurado deve ser entrevisto como uma

representação além do tempo e do espaço, pois, na poesia de Barros, abolem-

se a linearidade temporal e a continuidade espacial.

Nesse sentido, ao encapsular conceitos importantes em estruturas

mosaicadas e fragmentárias, Manoel de Barros exibe sua concepção de arte e

de espaço. Ao defender que os poetas dão novos ares à linguagem –

“minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem” (LPC, p. 219) –, Manoel de

Barros reforça a necessidade do “criançamento do idioma” que permite a

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“desarrumação sintática” – “eu briguei naquele menino com uma pedra...

Crianças desescrevem a língua. Arrombam as gramáticas. (Como um cálice

lilás de beco!)” (LPC, p. 221). O poeta trabalha, desse modo, a palavra ao

ponto de tornar possível o inimaginável: “a voz de certos peixes fica azul” (LPC,

p. 204). Nas e pelas próprias palavras, mostra sua “anormalidade”, seu “desvio

de sensibilidade”: “por dentro da alma das árvores, orelha-de-pau está se

preparando para nascer” (LPC, p. 205). Procura retirar as palavras de seus

usos habituais para promover o delírio do verbo: “os ventos se vão apodrecer!”

(LPC, p. 206). Pelo estranhamento, o poeta desidentifica o espaço para dar

abertura a novas formas de conhecimento.

A própria forma utilizada pelo poeta materializa o aspecto do

fragmentário. Como assinala Sávio:

há poemas em forma de entrevista, com perguntas e respostas, poemas em forma de moda de violão, há definições, há textos em forma dramática com as falas das personagens indicadas e marcações teatrais, textos desentranhados de textos, poemas com notas explicativas que se constituem em outros poemas (SÁVIO, 2004).

Manoel de Barros possivelmente faz uso desse tipo de composição

inspirado nos fortes contrastes encontrados no espaço pantaneiro. As

enchentes violentas e os estios prolongados, o erudito e o primitivo, o espírito

preservacionista do pantaneiro típico e o espírito exploratório, os aglomerados

humanos e os vazios retratam realidades ambíguas e paradoxais da região. O

poeta apropria-se dessas divergências que acabam por se confluir e realiza,

com rupturas, poemas.

A formação e trajetória geológicas do espaço pantaneiro têm referências

à região como Mar de Xaraés. Essa configuração ou “transfiguração” do

espaço em mar efetivamente deu-se pela impressão comparativa da paisagem,

impressa nos textos dos cronistas, e suas posteriores interpretações.

A origem desta construção está congenitamente imbricada na própria geografia do espaço interior da bacia do Alto Paraguai e suas primeiras descrições: um espaço fluvial lacustre, entrecortado por rios e lagoas, que surge nos textos

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quinhentistas com sua sazonalidade de paisagem móvel. (LEITE, 2010).

No Pantanal, o cruzamento entre tempo–espaço geológico, histórico e

imaginativo, bem como a alternância do ciclo das águas e do estio presidem as

condições de vida local. O sistema ecológico pantaneiro promove, portanto,

uma interação entre o natural e o humano. A produção de objetos literários

pode, então, absorver/ materializar características de um determinado espaço.

Fernandes (2002), em seu estudo Entre histórias e tererés: o ouvir da

literatura pantaneira, declara que as histórias populares coletadas revelam o

que é ser pantaneiro e o que é o Pantanal. A partir dessas constatações

podemos apreender relações e levantar questionamentos sobre o espaço:

Foi recolhida aqui uma literatura tão encharcada quanto à região, pois antes de tudo ela está mergulhada no homem, na sua cultura, sociabilidade e criatividade. Dela saem inúmeros mitos, registros de lugares assombrados (...). Destacam-se no repertório o sobrenatural e o natural, o místico e o factual (FERNANDES, 2002, p. 15).

Seres lendários que povoam o folclore brasileiro aparecem no Livro de

pré-coisas reconfigurados. O lobisomem é descrito como uma “espécie de

assombração”, “manso de coçar”, que “bebe leite e tem os olhos desúteis”

(LPC, p.217). Velha Honória, irmã de lobisomens, depois de sumir e tardar

comprido, se animaliza, aparece “de escamas e de língua muito fininha”,

“passeia de cola erguida” e “com ar de serepente aberta” (LPC, p. 218). A nova

criatura, “ave estrupício ou peixe-cahorro”, não pretendia “desvirar”, nem

mesmo se a chamassem de “darling”, como os heróis gregos que viravam de

“rochas de anêmonas de água” e, ao primeiro gesto de amor, desviravam. Isso

demonstra que o enriquecimento e o aprendizado adquiridos com a natureza

foram satisfatórios e deram a Velha Honória a sensação de completude.

O pantaneiro, por “cantos e recontos”, “sonha por cima das cercas”,

“inventa, transcende, desorbita pela imaginação” (LPC, p. 208). O poeta

incorpora tal particularidade para construir sua poesia “livre e andeja”.

Trabalhando a linguagem do homem pantaneiro – “não dá banho em

minhoca”; “bota azeitona na empada dos outros”; “não mora no assunto e no

morro” (GEC, p. 140) –, Barros recria conceitos ou expressões idiomáticas

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presentes nas raízes históricas do povo: “coisinhas sem veia nem laia” (coisas

reles); “tudo sem pé nem cunhado” (sem pé nem cabeça); “sou macaco pra lá

de cipriano” (macaco velho) (LPC, p. 213). Manoel de Barros constrói

oposições ao saber social a partir da criação de aforismos que ressignificam os

valores do senso comum: “pessoas sem eira nem vaca” (sem eira nem beira)

(LPC, p. 206); “o homem tinha mais o que não fazer” (não ter mais o que fazer)

(LPC, p. 210). Ainda, dialogando com a cultura popular, notadamente no que

tange às crendices populares, faz uso da linguagem informal: “Nhanhá mijava

na rede porque brincou com fogo de dia/ - Mijo de veia não disaparta nosso

amor, né benzinho?” (PCP, p.20).

Barros persiste em seu trabalho com as raízes da linguagem, fazendo

um levantamento do modo de falar dos habitantes da região e criando novos

termos: “supimpando”; “antechupando”; “gumita”; “duvidá”; “alimpar”; “oive de

mi”; “güenta”; “desinquilibra” (LPC, p.229-235).

Ao criar um poema nos moldes das adivinhas populares – “O que é o

que é?”; “Faz parte de árvore”; “Escuta fazerem a lama como um canto”; “Se

obtém para o vôo nos detritos”; “cobre vasta extensão de si mesmo com nada”

(APA, p. 173-174) –, Manoel de Barros quer que o leitor encontre uma

resposta. As pistas dadas nos fazem inferir que aquele que está ligado aos

saberes da natureza, que tem sensibilidade para ouvir os sons inaugurais, que

alça vôos a partir dos restos desprezados e que se vê invadido por nada, é o

próprio poeta.

Manoel de Barros, portanto, emprega em seus poemas a linguagem oral

pantaneira que brota do envolvimento do homem com a natureza. Segundo

Fernandes,

a natureza apresenta-se nas vozes dos pantaneiros como uma representação de mundo, isto é, se a natureza os guia, pois os pantaneiros são parte dela, a representação é, em sua essência, uma poesia do mundo natural. Logo, essas representações poéticas traduzem o como-ser e o como-fazer no mundo em que vivem. Em outras palavras, elas são os mecanismos de o homem se compreender em face ao seu próprio mundo, extraindo dele as sutilezas da vida e do viver (FERNANDES, 2004, p. 92).

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Dessa forma, as narrativas orais, que circulam no Pantanal e são

incorporadas aos poemas de Manoel de Barros, são manifestações poéticas,

ressonâncias do mundo natural que traduzem o próprio homem. “Traduções”

estas que se fazem no momento em que o homem se integra à paisagem

natural se deixa dominar corporalmente por ela.

Podemos observar também a preocupação de Manoel de Barros em

transformar sua poesia em um espaço de experimentação e de propostas

performáticas, bem como em recuperar a dimensão sensorial das palavras.

Desse modo, Manoel de Barros (GEC, p. 131) procura estabelecer, nos

e pelos poemas, conexões livres entre chão e mar, chão e natureza, chão e

homem. Opera com verbos que deixam à mostra os significantes para conduzir

a significados:

O chão reproduz do mar o chão reproduz para o mar o chão reproduz com o mar

O verbo reproduzir, por exemplo, combinado com diferentes preposições

– “do mar”, “para o mar”, “com o mar” –, expõe a fusão e confusão de terras e

águas no espaço sólido/ líquido da planície pantaneira. Nesse sentido, logo nos

versos iniciais do poema, é encenada a ambigüidade do Pantanal: lugar de

águas móveis.

O poeta trabalha, também, o verbo parir, novamente articulado com

distintas preposições, com o intuito de revelar que no chão encontram-se as

origens: pare – “a árvore”, “o passarinho”, “a rã”:

O chão pare a árvore pare o passarinho pare a rã – o chão pare com a rã o chão pare de rãs e de passarinhos o chão pare do mar (GEC, p. 131).

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O poeta seleciona os verbos “reproduzir” e “parir” para desenvolver a

ideia de que o chão, na sua rudeza masculina, ao encontrar-se com a liquidez

feminina do mar, torna-se propulsor da produção, da multiplicação de novos

seres.

Por conta desse caráter “originário”, o poeta encontra, no chão, motivos

para poetar, produzindo “objetos estranhos”4 e construindo imagens inusitadas.

Manoel de Barros acredita, pois, que o chão viça “do homem/ no olho/ do

pássaro, nas pernas/ do lagarto/ e na pedra” e ressalta, desse modo, o

imprescindível papel do chão para a perpetuação, para o crescimento opulento

e para a irmanação das espécies. Procura correlacionar, então, o chão e o

homem, na medida em que sugere que o chão brota do homem, ganha viço e

vida no “olho” atento “do pássaro”, nas “pernas” assustadas “do lagarto”, na

estaticidade escultural das “pedras”:

O chão viça do homem no olho do pássaro, viça nas pernas do lagarto e na pedra

(GEC, p. 131)

No Livro das Ignorãças (1993/ 2010), Manoel de Barros retoma tal

aspecto em poemas de “Mundo Pequeno”, não hesitando em afirmar: “o chão

tem gula de meu olho”. O poeta intenta alçar vôos desafiadores, porém ele não

o faz no alto, mas, sim, no chão de modo inquietador: “Seu caminho consiste

para um esvôo rente/ rente até o chão ervar-se/ de seu corpo” (CUP, p. 106).

Para materializar sua mensagem, o poeta faz uso de representações

simbólicas. Para tanto, vale-se do “coleante” lagarto e do “escorregadio”

caracol. Manoel de Barros explica, em nota poética de rodapé, que o lagarto

exercita seu instinto explorador; explora, no entanto, “conchas mortas”:

                                                            

4 Definida por Bosi (1996, p. 30), a noção de estranhamento

longe de ser um artifício forjado para complicar a frio a relação do leitor com o texto (...), provém da agudeza de intuição e da intensidade de sentimento do eu lírico em face de um mundo que ainda é novo e imprevisto apesar de gasto por séculos e séculos de uso e convenção.

 

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O lagarto/ pode ser encontrado em lugares alagadiços/ nas chapadas ressecas/ nas sociedades por comandita/ nos sambaquis: ao lado das praias sem dono explorando/ conchas mortas (GEC, p. 131-132).

Igualmente, o poeta exibe sua necessidade de explorar tudo aquilo que

é considerado sem préstimo, pois, por meio da “inutileza”, pode despertar

novas formas de pensamento, prezar e valorar o desprezível, recusando o

conceito de descartável imposto pela sociedade.

O lagarto é ainda descrito pelo modo particular de se mover:

O lagarto é muito encontradiço também/ nas regiões decadentes/ arrastando-se por sobre paredes do mar como a ostra (GEC, p. 132).

Manoel de Barros deixa-se arrastar pelas palavras. Estas, arrancadas de

seus usos contratuais, tornam-se matéria de poesia, produzindo efeitos

impensados. O verbo “colear” é usado para caracterizar o deslizar em

ziguezague do lagarto, ação que pode ser propícia ao homem e que também

pode ser favorável ao poema, pois dá mobilidade aos sentidos.

Conforme define o poeta, poesia é “voar fora da asa” (LI, p. 302), é

“delírio do verbo” (LI, p. 301), livre para criar transfigurações incomparáveis e

inesperadas.  Manoel de Barros procura, desse modo, “desentender” para

desenvolver inovações constantes diante do espaço já existente.

Continuamente jogando com os pares opositivos e complementares

masculino/ feminino, Manoel de Barros passa a ressaltar a qualidade

fecundante da lagarta:

Parece que a lagarta grávida se investe nas funções de uma pedra seca/ passando setembro/ e/ sentindo precisão de escuros para seu desmusgo/ se encosta em uma lapa úmida/ e ali desova/ - ninguém sabe (GEC, p. 132).

Quando “prenhe” de poesia, as palavras investem-se de funções outras

e “desovam” concepções de mundo renovadoras. Os resultados alcançados

após o período de contemplação, recolhimento, “secura”, absorção e reflexão

guardam sempre o caráter de mistério da poesia.

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O lagarto representa, portanto, a própria linguagem poética que objetiva

sinuosamente reavivar o corpo, provocando sensações para que se possa sair

deste espaço para outro.

O caracol é, também, observado por diversas perspectivas:

um caracol é a gente ser: por intermédio de amar o escorregadio/ e dormir nas pedras. É:/ a gente conhecer o chão por intermédio de ter visto uma lesma/ na parede/ e acompanhá-la um dia inteiro arrastando/ seu rabinho úmido (...). É, dentro de casa, consumir livros e cadernos e ficar parado diante de uma coisa/ até sê-la (...) (GEC, p. 132).

A partir do caracol, Manoel de Barros desvela o caminho para a

construção do (auto) conhecimento: faz-se necessário esmar, amar, ser, para

então, conhecer.

Ao destacar a necessidade e vontade do poeta de se apossar da

essência das coisas, de fundir-se, no/pelo ato poético, com o objeto cantado,

Manoel de Barros aproxima-se do pensamento de Cortázar que afirma, que

“poesia é vontade de posse, é posse” (CORTÁZAR, 1974, p. 100 e 101). O

poeta, assim, não se contenta em comunicar emoção pura, quer expressar

aquilo que o toca e sensibiliza. Por não se conformar em simplesmente nomear

e descrever o objeto de seu interesse, o poema almeja sê-lo.

O homem, embora inicialmente sinta dificuldade em se relacionar com o

chão, introduz-se sorrateiramente nesse universo e identifica-se, aos poucos,

com o movimento “coleante” de certos seres da natureza:

Na pedra o homem empeça de colear Colear advém de lagarto e não incorre em pássaro

Colear induz para rã e caracol

Colear sofre de borboleta e prospera

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para árvore Colear prospera para o homem

(GEC, p. 132-133)

O homem do poema, tal qual o poeta, constrói uma lógica da

similaridade, da analogia, em que a racionalidade se vê comprometida com a

sensação. Segundo explica Cortázar (1974), o homem adota a lógica como um

instrumento do pensar pela qual chega, por meio da apresentação de

evidências, a determinadas conclusões. O mesmo homem, porém, revela-se

seduzido pela possibilidade de elaborar analogias (“sentir próximos e conexos

elementos que a ciência considera isolados e heterogêneos” p. 86) muito mais

transcendentes do que pode admitir qualquer racionalismo:

O poeta se apresenta como o homem que reconhece na direção analógica uma faculdade essencial, um meio instrumental eficaz; não um surplus, mas um sentido espiritual – alguma coisa como olhos e ouvidos e tato projetados fora do sensível, apreensores de relações e constantes, exploradores de um mundo irredutível em sua essência à razão (CORTÁZAR, 1974, p. 87-88).

No poema, o poeta transforma-se em homem coleante e sinuoso, a

espalhar-se pelo chão e a incorporar o dinamismo vital da natureza. Os

“vergéis do poema” permitem o florescimento de um novo ser.

O homem se arrasta de árvore escorre de caracol nos vergéis do poema O homem se arrasta de ostra nas paredes do mar (GEC, p.133)

Explora, assim, novos modos de conhecer o mundo e move seus leitores

a perceber a realidade diferentemente. Sob o lema “eu escrevo com o corpo”, o

poeta nos faz perceber que “a poesia não é para compreender, mas para

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incorporar” (AA, p. 178). Somente quando o homem “se incrusta de árvore/ na

pedra/ do mar”, é que está pronto para o poema. Deste modo, a apreensão do

mundo por uma via sinestésica e sensorial, fala da poesia como conhecimento

que nos chega pela via do corpo, corpo vibrátil, em sintonia sensível com uma

natureza absolutamente sensual e sedutora, a oferecer-se ao leitor

sinuosamente nos desvãos do texto:

compreender o andar liso das minhocas debaixo da terra; escutar como os grilos/ pelas pernas; pessoas que conhecem o chão com a boca como processo de se procurarem/ essas movem-se de caracóis! (GEC, p. 132)

Para Zumthor, a poesia é uma linguagem sensível que nos afeta

intelectiva e sensorialmente, pois traz marcas corporais, marcas da voz. Ainda

que a leitura seja solitária, podemos recuperar a voz subterrânea e restaurar a

dimensão performática do poema: “A obra poética é, desta forma, o fruto da

conjunção de um dado textual e de uma ação sociocorporal, um e outro

formalizados de acordo com uma estética” (ZUMTHOR, 2005, p. 144).

Em um jogo de “estímulos e percepções sensoriais múltiplas”

(ZUMTHOR, 2005, p. 142), Manoel de Barros põe em cena a linguagem e

realça seu caráter performático. Nos versos finais deste poema, Manoel de

Barros corporifica a plena fusão entre o humano e o natural. O poeta cria um

mosaico imagético com ostras, pássaros, águas, no qual o homem integra-se

perfeitamente:

O homem é recolhido como destroços de ostras, traços de pássaros surdos, comidos de mar O homem se incrusta de árvore na pedra do mar

(GEC, p. 133).

Aqui, a palavra “destroços” revela que o poeta desconstrói para construir, para

fazer renascer/ germinar, pela linguagem, um novo homem.

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Esse poema contém forte densidade estética e humana. Estética, obtida

por meio de aspectos formais, de escolhas de verbos (reproduzir, parir, viçar,

colear, arrastar, incrustar) e seres representativos (lagarto, caracol). Os verbos

repetidos inúmeras vezes deixam evidente o trabalho do poeta que quer afetar

o corpo sonoro, melódico do signo, para aproximá-lo das qualidades que o real

suscita, e alterar o significado. Isso exige do leitor outra forma de participação e

o convoca a experimentar/ sentir o poema. Humana, pois intenta recuperar, no

leitor, a relação primeira, sensorial, perdida com o real. O poema busca, deste

modo, uma integração e um despertar de um eu insuspeitado. Procura, ainda,

propor uma relação inédita homem/ linguagem, poema/ espaço.

Mesmo em leituras “puramentes visuais”, os poemas de Manoel de

Barros evocam uma vocalidade “produtora de emoções que envolvem a plena

corporeidade dos participantes” (ZUMTHOR, 2005, p. 141). Assim, perscrutar

seus poemas com o corpo, deixando os sentidos em alerta, é primordial.

A voz deformante e “em cio vegetal” (RAC, p. 359) e o gesto coleante do

poeta projetam “o corpo no espaço da performance visando a conquistá-lo, a

saturá-lo” (ZUMTHOR, 2005, p. 147) com seu tom e seu movimento.

Compreendendo o Pantanal como um lugar edênico, adâmico, Manoel

de Barros alia sua poética ao meio em que cresceu e vive. Sua sensibilidade,

proveniente da criação primitiva que lhe foi dispensada, deixa à mostra uma

estreita ligação às raízes, uma necessidade de fusão com o objeto cantado, um

desejo latente de retorno às fontes não contaminadas.

Segundo Castro (1991), o poeta “passa a assumir todas as propriedades

e faculdades de cada ser que habita o Pantanal, estabelecendo uma

possibilidade de comunicação direta entre todos os componentes deste

universo” (p. 12). A árvore, elemento tão caro ao poeta, por exemplo, tem seu

valor assegurado, já que “ensina de chão” (AA, p.184):

Eu queria aprender o idioma das árvores. Saber as canções do vento nas folhas da tarde. Eu queria apalpar os perfumes do sol. (CPT, p. 482)

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Dentro do contexto de coparticipação dos seres em transformação,

Barros expressa seu relacionamento com a palavra “semelhante ao movimento

do devir da natureza: ora as relações são de intensa vibração, ora de longa

contemplação da ausência” (CASTRO, 1991, p. 40):

Todos os poetas podem ter qualidades de árvore. Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros (...) todos os poetas podem humanizar as águas (...) os poetas devem aumentar o mundo com as suas metáforas (...) podem ser pré-coisas, (...) podem compreender o mundo sem conceitos, (...) podem refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por afeto. (EF, p. 383)

Acredita, pois, que “o Pantanal está nas palavras. Palavras têm sedimentos.

Têm boa cópia de lodo, usos do povo, cheiros da infância, permanências por

antros, ancestralidades” (BARROS, apud MULLER, 2010, p. 71).

Funda, então, uma nova escrita: Barros escreve nas águas e focaliza o

que sobrou delas – “o aparelho de ser inútil”; “os nascidos de trapo”; “as

palavras esgarçadas de lodo”; “as macerações de sílabas, inflexões, elipses,

refegos”; “o dialeto coisal, larval, pedral”; “as coisas desimportantes” (GA, p.

239-266). Enquanto agente propulsor e simbólico da metamorfose, a água

exerce papel primordial, já que, no Pantanal, “flui, fertiliza, vivifica, destrói e

ressuscita para uma contínua novidade da vida” (CASTRO, 1991, P. 47) e, em

sua poética, “envesga o idioma” com seus murmúrios, levando o poeta a

afirmar: “os homens deste lugar são uma continuação das águas” (LPC, p.

199).

3.4 Personagens-trastes: poéticos e pantaneiros

Manoel de Barros vale-se de sua “disfunção lírica” ao desenvolver

criações inigualáveis. Seus personagens misturam realidade e invenção. O

princípio selecionador das personagens, que se impuseram significativas, é

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regido pelo desprendimento, pela gratuidade, pela convivência harmônica com

a natureza, pelo deslocamento contínuo.

Deixo aos meus alteregos a tarefa de realizar os sonhos meus frustrados. Coisas que não fui capaz de fazer realizo através deles. Por exemplo: eu quis muito ser andarilho no Pantanal. Mas nunca agi no sentido de ser um andarilho. Então inventei alguns que fizeram isso por mim. Que dormiam debaixo de árvores, que usavam ornamento de trapos e eram aceitos pelos pássaros nas estradas (BARROS, apud MÜLLER, 2010, p. 155).

Um desses andarilhos que o poeta tem especial apreço é Bernardo da

Mata. Com aparições recorrentes em diversas obras de Barros, Bernardo é um

“bandarra velho, andejo, fazedor de amanhecer e benzedor de águas”

(BARROS, apud MÜLLER, 2010, p. 76).

Homem “apoderado pelo chão” – chapéu, que é “repositório de chuva e

bosta de ave”; cabelos, onde nascem pregos primaveris; unhas, em que se

abrem “sementes de capim”; voz, “quase inaudível”, que entoa “língua de folha

e de escama” –, tem seus sentidos aguçados: “ouve de longe a botação de um

ovo de jacaroa”; “sonda com olho gordo de hulha quando o sáurio amolece a

oveira”; “escuta o ente germinar ali ainda implume dentro do ventre” (LPC, p.

211). Irmanado à natureza, Bernardo se ilumina ao ver o nascimento do sáurio,

se compraz com vermes e lesmas e não se incomoda com os passarinhos do

mato que sentam em seu ombro para “catar imundícia orvalho insetos”. Com

“adesão pura à natureza e à inocência”, Bernardo se ocupa de “tudo quanto é

mais desnecessário” na fazenda: “descoisas, niilidades” (LPC, p. 213). Tal

personagem marcante ensina ao poeta a (re) descobrir o mundo poeticamente:

“Bernardo é a palavra encostada à natureza. (...) Talvez tudo que dentro de

mim quer ser natência, quer ser pré-coisa” (BARROS, 1998, p. 7).

Do “guieiro” Bernardo, Manoel de Barros ressalta a “vontade em mim do

primitivo”; “vontade de conhecer o mundo só pelo rumor das palavras”

(BARROS, 1998, p. 7). Por meio dele, o poeta empreende um conhecimento

pelo sensível e dá um mergulho experencial de comunhão com o mundo.

Desejando integrar-se ao modo de vida de Bernardo, Barros afirma:

“Bernardo é Outro eu. Quando o Bernardo fala, por exemplo, que uma ave

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sonha de ser ele, ele está olhando o mundo com um olhar de pássaro”

(BARROS, apud MÜLLER, 2010, p. 167). Manoel de Barros faz uma “catação

de eus perdidos e ofendidos” e de pássaros emblemáticos (BARROS, apud

MÜLLER, 2010, p. 42) para refazê-los no interior de Bernardo.

Para Castro (1991), autor de A poética de Manoel de Barros: a

linguagem e a volta à infância, Bernardo é uma espécie de “homem adamítico-

pantaneiro, pois vive em estado de graça, em comunhão com a vida

efervescente e transmutante, que pulsa em qualquer região do Pantanal” (p.

45).

A imprevisibilidade, a simplicidade, a indefinição e a irregularidade fazem

parte das descrições de Bernardo. Tais aspectos apresentam semelhanças

com o próprio espaço pantaneiro, o que nos leva a verificar que a identidade do

indivíduo realiza-se na construção da identidade dos lugares.

O canto do que é convencionalmente excluído é motivo de revelação

poética. A auto-expressão do natural indica, pois, um estado de envolvimento

com a primordialidade das coisas.

Nesse sentido, vemos que Bernardo ensina ao poeta redimensionar o

espaço e ver as coisas sem rótulos e sem nomes. “Ser que não conhece ter”,

Bernardo configura-se como ente mosaicado, trazendo em seu interior

fragmentos de outras personagens “pertencidas de natureza”, materializando a

complexidade do espaço pantaneiro e refletindo preferências poéticas de

Manoel de Barros.

O gosto poético de Barros pode ser representado por “um João tido por

concha que desenhava no esconso, via estrelas subindo em lombo de

borboletas e gostava de espolegar paredes” (MP, p. 151). Ao entrar em um

ambiente “extremamente poético” – um terreno baldio sujo de mato onde

encontrou “ramos de lua que reverdeciam de latas” – e observar crianças, “em

pleno uso da poesia”, João sentiu regozijo e sorriu. Seu aprendizado, resultante

de um conhecimento prático perante as fontes da terra, também deixa claro o

ideal poético de Barros: “Eu conheço, eu sei” (MP, p. 152).

O zelo com a linguagem pode ser evidenciado por meio de Pote Cru

(RAC, p. 360-361) e Passo Triste (RAC, p. 365-366). Considerados pelo poeta

como “pastores”, zeladores da palavra, essas personagens o guiam na criação

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de uma poesia do chão, do ínfimo, do transfigurismo do verbo. Pote Cru, que

“de tarde deambula no azedal entre torsos de/ cachorro, trampas, trapos” e

detinha “voz de oratórios perdidos”, é representante do poder que a palavra,

esquecida em locais desprestigiados, tem para o poeta; Passo Triste, que

“andava favorável para coisas, dava aos andrajos grandeza, vivia

desgualepado, gostava de encantações do que de informações”, é não só

representante da necessidade do poeta de retirar as palavras de seus usos

acostumados, aplicando novo valor às coisas e provocando estranheza, mas

também portador da almejada apropriação das essências: “pedra ser, inseto

ser era seu galardão”. Barros afirma:

A palavra poética não será nunca um instrumento de informações senão que sempre um instrumento de encantações de celebrações (BARROS, 1998, p. 6).

Manoel de Barros faz dos versos de Jorge de Lima epígrafe para revelar

seu objetivo criador: “Porquanto/ como conhecer as coisas senão sendo-as?”

(CUP, p. 115). Nesse sentido, ressalta a necessidade e vontade de possuir

para conhecer a essência das coisas.

Ao apresentar “Um Novo Jó” que “habitava/ sobre um montão de pedras,

desfrutado entre bichos/ raízes, barro e água”, Barros avalia quais as

vantagens obtidas por esse homem:

Bom era ser bicho/ que rasteja nas pedras;/ ser raiz de vegetal/ ser água; Bom era caminhar sem dono/ na tarde; Ir andando pequeno sob a chuva/ torto como um pé de maçãs; Bom era (...) pousar depois... como um garfo esquecido na areia; Bom era (...) ser como fruta na terra, entregue/ aos objetos (CUP, p. 116-117).

Manoel de Barros revisita a Bíblia, fazendo surgir um novo modelo de

homem justo, fiel até na miséria, personificando todos os “pobres do mundo”

que, mesmo nada possuindo, não se revoltam, mas, sim, bendizem seu estado,

porque encontram proveito no ínfimo. Ressalta, assim, a importância de ser

traste, pois “só empós de virar traste que o homem é poesia...” (MP, p. 153).

Fundamenta seu pensamento no poema “Teologia do traste”:

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As coisas jogadas fora por motivo de traste são alvo de minha estima. (...) latas são pessoas léxicas pobres porém concretas Por isso eu acho as latas mais suficientes, por exemplo, do que as ideias. Porque as ideias, sendo objetos concebidos pelo espírito, elas são abstratas. E, se você jogar um objeto abstrato na terra por motivo de traste, ninguém quer pegar. (...) queria que os vermes iluminassem. Que os trastes iluminassem (PR, p. 438).

O homem perdido, sem referências, em seu eterno vagar pelo mundo,

busca dar sentido a sua existência. Barros tenta alcançar a completude pela

iluminação do traste, pela compreensão e (re) valoração do mundo a partir das

coisas simples, que se encontram na contramão do pensamento

contemporâneo dominante:

Das coisas humildes do chão, do homem destituído de valor social e da convivência amorosa e exuberante que sua poesia promove entre objetos que se evitam e se afastam em suas imagens, é que o poeta constrói uma teoria poética dentro da própria poesia. Em seus liames, uma força viva, pulsante, esvazia a palavra da sua carga cultural e instaura a infidelidade do sentido, escrevendo por imagens que corrompem o entendimento da realidade tal qual se conhece, abrindo caminho para o desconhecido, o invisível, o inaudível, a um mundo sinestésico (CAMARGO, 2004, p. 109).

Homens desprestigiados, os desheróis, chamam, portanto,

freqüentemente a atenção do poeta: Malafincado – “feito de restos” – “falava

em via de hinos; gostava de desnomear”; era “escorço de poeta”; Sombra-Boa

– “ente abençoado a garças” – ouvia “conversamentos de gaivotas”; entrava

“em pura decomposição lírica”; “conversava em Guató, em Português, e em

Pássaro”; “nascera engrandecido de nadezas” (LI, p. 317 e 361).

Outra personagem, reconhecidamente representante simbólica do

próprio pensar e fazer poéticos de Manoel de Barros, é o velho do gramofone.

As palavras do “caderno de apontamentos” se confundem com as palavras do

poeta. Recapitulando experiências passadas, o narrador relata que o avô, por

conta da Guerra do Paraguai, escondeu-se no porão da casa e levou consigo o

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Gramofone. Com o passar dos anos, uma árvore, favorecida, segundo o

narrador, pelo ambiente escuro, começou a crescer no porão entrelaçada “aos

pedaços de ferro do Gramofone”. A árvore irrompeu no assoalho da sala no

período de Pentecostes e frondou no salão. O avô, “preso nas folhas e nas

ferragens do Gramofone”, subiu também, flutuando “no espaço da sala, com o

rosto alegre de quem estava encetando uma viagem” (CCA, p. 271, 272 e 273).

A partir dessa narrativa, podemos constatar similitudes entre as ações

do velho do gramofone e as práticas poéticas de Manoel de Barros. O avô

escondeu-se no porão, local escuro e solitário; Barros, por sua vez, tranca-se

em sua “toca” por acreditar que o imaginário solta-se melhor no fechado e que,

no escuro, enxerga melhor. Em seu “lugar de ser inútil”, Manoel de Barros

(apud CASTELLO, 1996a) explora “mistérios irracionais”, descobre “memórias

fósseis”, escava, anota. Lê não só a Bíblia e o livro da antropóloga Betty

Mindlin, Vozes da Origem, mas também dicionários com o intuito de descobrir o

primeiro “esgar de uma palavra”.

A escolha pela reclusão trouxe ao avô alegria e o fez livre; Barros

encontra no ermo existente em seu íntimo liberdade criadora. O avô tomou a

árvore como extensão de seu próprio corpo; Barros liga-se intrinsecamente a

sua obra ao ponto de afirmar que os poemas sofrem do poeta. Mesmo

demonstrando sentir-se bem morando no topo da árvore, o avô jamais

abandonou o objeto que o mantinha ligado à terra; Barros intenta alçar vôos

desafiadores, porém ele não o faz no alto, mas, sim, no chão de modo

inquietador. O avô passa a enxergar a realidade por um novo ângulo; Barros,

com seu olhar “torto”, transcende o real, não o ignorando, mas, sim,

transfigurando-o. Ao se entrelaçar com a árvore e o Gramofone, o avô concilia

o novo e o velho, mistura o “verdor primal com as vozes civilizadas”. Carpinejar

(2006) confirma que “a singularidade da poética [de Manoel de Barros] reside

em combinar a aguda percepção urbana com um repertório primitivo e rural”.

Barros, enquanto criador, recupera comportamentos lingüísticos antigos, cria

novas relações de sentido e produz a sensação do novo.

Até mesmo as aves constituem personagens fundamentais para

compreensão e reelaboração do espaço. Os urubus “andam de a pé,

caminham de banda, finórios, saltando de uma para outra carniça, lampeiros e

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apeiam depois na terra, supimpando” (LPC, p. 229). O socó-boca-d’`água

“espicha seu corpo pra trás, como se quisesse conversar de costas” (LPC, p.

230). O quero-quero ensina o amor ao chão e apregoa uma “filosofia nua, de

vida muito desabotoada e livre” (LPC, p. 234). As garças são observadas pelo

poeta como aves que “enchem de entardecer os campos e os homens e

produzem no céu iluminuras” (LPC, p. 235).

Do urubu, o poeta assimila seu agir instintivo e o aproxima da sua

atividade poética: “Nenhuma voz adquire pureza se não comer na espurcícia.

Quem come pois do podre se alimpa” (LPC, p. 230). Coisas antes desprezadas

ou consideradas apoéticas servem, portanto, de motivos para poetar: “Como

eles, sobre as pedras, eu cato restumes de estrelas. É muito casto o restume”

(LPC, p. 230).

Já com o socó-boca-d’água – pássaro que, apesar de apresentar fortes

relações com as origens lendárias do Pantanal (“sabe onde mora o peixe

desde quando por aqui era mar de Xaraés” (LPC, p. 231), não se deixa

conhecer por completo –, Manoel de Barros demonstra que sua poesia guarda

em sua essência um mistério e se integra ao Pantanal, tomando-o como um

lugar adâmico, primário, sem feições definitivas, que está na origem do mundo.

O local onde possivelmente esse pássaro mora é pura invenção poética:

ouço que mora na gravanha – ou no gravanha. Sabendo ninguém o que seja gravanha. A palavra é bonita e selvagem. Não está registrada nos léxicos. Ouço nela um rumor de espinheiro com água. Tem tudo para ser ninho e altar de um socó-boca-d’água. (LPC, p. 231)

Assim, a poesia é entendida como um ser de linguagem, em que a dedicação

às inutilezas, a adoção do sentido contrário ao modo de pensar dominante e o

não compromisso com verdades cristalizadas são evidenciados.

Esse pássaro, ainda, conduz a reflexões importantes: “vê dos treze

lados” (LPC, p. 230), assim como o poeta tem um olhar sensível para perceber

múltiplos aspectos de um objeto; “tem fino ouvido de barata; sempre alarmado”

(LPC, p. 230), do mesmo modo o poeta necessita ter sentidos acurados para

ouvir sons originários, subterrâneos e transpô-los em poesia; “sonda a hora das

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cobras e dos grilos subjacentes” (LPC, p. 231), revelando o poeta enquanto ser

buscador, questionador, investigativo que tem um desejo especulativo frente às

coisas; “pára atencioso, esgalgado” (LPC, p. 231); “parece que sopra no mundo

uma avena entupida de areia” (LPC, p. 231), poeta, contemplador ávido do

real, sopra no mundo objetos estranhos, revisitando a tradição para propor o

novo.

Das garças, Manoel de Barros não encontra no canto a beleza, mas,

sim, em suas cores e movimentos. Personificando as qualidades das garças, o

poeta as coloca em elevado grau de importância, demonstrando-se enlevado:

“a Elegância e o Branco devem muito às garças” (LPC, p. 235). Levantando a

possibilidade de tais aves serem “viúvas de Xaraés” (LPC, p. 235), o poeta

parece localizar “nostalgia de mar” e “sombra de dor em seus vôos” (LPC, p.

235). O poeta afirma, então, que no Pantanal o vôo da garça “adquire raízes de

brejo” (LPC, p. 236).

O poeta ainda justapõe a brancura da garça ao escuro da lama e

completa:

Acho que estou querendo ver coisas demais nestas garças. Insinuando contrastes – ou conciliações? – entre o puro e o impuro etc. etc. Não estarei impregnando de peste humana esses passarinhos? Que Deus os livre! (LPC, p. 236)

Compreendemos que, para ter lugar na poesia de Manoel de Barros, o

homem deve atingir a mesma condição das coisas inúteis. Seres que vivem a

indigência social, que escorrem de um reino para outro, que colecionam o que

não tem valor de uso, que constroem objetos lúdicos com aquilo que a

sociedade jogou fora, servem para poesia. “Puros trastes em flor”, situados na

origem dos tempos, se confundem com o chão, com os bichos, com as aves,

assumindo características deles.

O Pantanal, igualmente, mostra-se múltiplo, indeterminado, indefinido,

repleto de coincidências de contrários. A linguagem poética de Barros assume

esse caráter de mosaico e põe em cena palavras com alta força imagética e

densidade sensorial.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Representar poeticamente espaços, redimensioná-los, transgredi-los.

Eis algumas inquietações que moveram nossa pesquisa. A reconfiguração de

uma região complexa, de sua cultura, dos seres que nela habitam, procura não

somente cantar o real, mas transcendê-lo.

Para compreendermos como se dá essa reordenação espacial do

Pantanal na poesia de Manoel de Barros, a partir da análise do Livro de pré-

coisas, foi necessário empreendermos um levantamento não só de outras

obras do poeta, mas também de comentários críticos acerca de seus trabalhos,

bem como de conceituações de espaço em diversas áreas do conhecimento.

Pudemos então tecer relações e verificar que Manoel de Barros se inscreve no

Pantanal e faz com que os deslimites pantaneiros se insiram em seus poemas.

A estrutura compositiva do Livro de pré-coisas nos indica um

interrelacionamento entre as partes. O poeta, em um primeiro momento,

anuncia o Pantanal, prepara o leitor para uma nova forma de conhecimento da

região: por intensidades, sensações e não por representações. Em seguida, dá

início às imprevisíveis transfigurações dos cenários e constrói micro-cosmos

poéticos reespacializadores. Depois, volta sua atenção ao (des) personagem,

Bernardo, ser sinestésico que conjuga sensações e se integra totalmente ao

ambiente natural. Ainda nesta parte, o poeta propõe a confluência entre prosa

e poesia ao inserir excertos de uma espécie de caderno de apontamentos que

trazem experiências mosaicadas com a linguagem. Por fim, passa a

reconfigurar pequenos seres presentes no universo pantaneiro, reveladores de

práticas poéticas amplamente exploradas: valorização do “restume”;

exploração das potencialidades da palavra; liberdade criadora; captação de

métodos de outras artes.

A criação junto ao chão pantaneiro estimulou, no poeta, um apego muito

grande à terra, à natureza, o que o levou, poeticamente, a valorizar as coisas

mínimas, as “inutilezas”, a conservar o lastro “brejal”. Das “raízes crianceiras”,

o poeta extrai uma visão “comungante e oblíqua” das coisas.

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Manoel de Barros, inquieto e inquiridor, com olhos de descobrir, quer

tornar aparente a descontinuidade do Pantanal. O pensar sobre a linguagem se

dá pelo fragmento, por representações simbólicas, por nódoas de imagens, por

sensações ímpares. O mosaico espacial, elaborado pelo poeta, reorganiza

fragmentos de diferentes tipos: ruínas que enfrutam; águas que esculpem

escombros; arbustos que desabrem nas pedras; insetos compostos de

paisagem; rios que esfregam o rosto na escória e invadem as terras do

Pantanal; cupins que levantam andaimes; ruas sem placas, sem nome, sem

esquina; pessoas sem eira nem vaca; niilidades; descoisas.

O poeta transfaz o Pantanal, que passa a ser o território do corpo, da

despalavra, da pré-coisa, da poesia. Barros intenta incorporar o espaço

circundante com o corpo: seu olhar “torto e mosaicado” transvê as coisas, sua

mão criadora rascunha transfigurações constantes, sua voz deformante (en)

canta as fontes.

A matéria de sua poesia apresenta a ideia do devir: materializa a noção

de Pantanal em processo e a relaciona aos deslimites da poesia. Há, na obra

de Barros, diversos pontos em processo: processo de conhecimento com o

corpo; processo de sensorialização das palavras; processo de “inauguramento

de falas” (GA, p. 265); processo de confluência prosa-poesia; processo de

engrandecimento das insignificâncias; processo de perda de fronteiras entre os

reinos da natureza; processo de perda dos limites da linguagem.

Manoel de Barros desinventa as palavras para que elas retornem às

funções primeiras. Quer recriar, na ponta de seu lápis, o saber original para

encontrar as coisas em estado larvar: apalpar as primeiras formas; escutar os

primeiros pios; ver as primeiras cores. Quer ascender “lá onde a gente pode

ver o próprio feto do verbo – / ainda sem movimento. / Aonde a gente pode

enxergar o feto dos nomes – / ainda sem penugens” (TGG, p. 410). Quer,

portanto, inaugurar um novo espaço.

O poeta transcria o espaço pantaneiro por meio de uma escrita poética

fluida, ambígua e complexa. Estabelece relações móveis entre os sentidos, dá

abertura à plurissignificação, conjuga semanticamente termos díspares.

Renova incessantemente a linguagem, inspirando-se na permanente mutação

do ecossistema pantaneiro.

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Barros pinta, com (des) palavras, um quadro sensível do Pantanal.

Dialoga com as pinturas de Klee, Miró, Van Gogh, para delas extrair

procedimentos de composição de imagens.

O poeta constrói personagens metamorfoseantes, por vezes indefiníveis,

para consagrá-los a objetos poéticos sem limites. Criadores de desobjetos

artísticos, seus personagens rompem com concepções convencionalmente

instituídas e, por experimentarem os elementos da natureza de modo

alquímico, adquirem o entendimento do poder da poesia: transmutação de

coisas tidas como inferiores – inutilezas, monturos – em ouro poético “da boca

do chão” (GA, p. 264).

O Pantanal, em Manoel de Barros, torna-se metáfora da poesia:

“ocupação da palavra pela Imagem e ocupação da Imagem pelo Ser” (GA, p.

263); “raiz entrando em orvalhos”; “livre como um rumo nem desconfiado”

(CUP, 109-110).

Manoel de Barros desfigura o espaço existente, desarticula-o para

instaurar uma nova realidade, desvê o mundo para reencantá-lo. Permite-nos

um novo entendimento de poesia, promove a sensibilização, a humanização, o

senso crítico de seus leitores.

Além disso, o poeta tem interesse em ir ao encontro de uma linguagem

ainda de todos inexplorada, transgride as leis da língua em vigor, levando a

palavra a delirar e a tomar sobre si significados não habituais.

Manoel de Barros abre novos caminhos de percepções pela lógica da

(re) descoberta. As imagens reconfiguradas mostram-se polivalentes,

incompletas e apelam para uma experimentação sensorial do espaço.

A leitura que fizemos de Manoel de Barros nos sugere que há múltiplos

modos de apreensão poética. Nesse sentido, esperamos que este estudo

possa incitar novas inquietações, pois, assim como o Pantanal, a poesia

descomparada de Manoel de Barros não possui margens.

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REFERÊNCIAS

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