meu quintal e maior que o mundo - manoel de barros

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Meu Quintal e Maior Que o Mundo - Manoel de Barros

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  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversosparceiros, com o objetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas eestudos acadmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fimexclusivo de compra futura.

    expressamente proibida e totalmente repudavel a venda, aluguel, ouquaisquer uso comercial do presente contedo

    Sobre ns:

    O Le Livros e seus parceiros disponibilizam contedo de dominio publico epropriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que oconhecimento e a educao devem ser acessveis e livres a toda e qualquerpessoa. Voc pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.link ou emqualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.

    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no maislutando por dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a

    um novo nvel."

  • Copyright 2015 by herdeiros de Manoel de BarrosTodos os direitos reservados.

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesade 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    Todos os direitos desta edio reservados Editora Objetiva Ltda.Rua Cosme Velho, 103Rio de Janeiro RJ Cep: 22241-090Tel.: (21) 2199-7824 Fax: (21) 2199-7825www.objetiva.com.br

    Seleo de poemasMartha Barros

    Capa, projeto grficoe editorao eletrnicaRegina Ferraz

    Imagem de capaDetalhe da obra Vermelho textura (93cm x 65cm, 2009), de Martha BarrosReproduo Jaime Acioli

    Foto do autor - Manoel de Barros na fazenda Rio Negrinho, dezembro de 2007 - Lucas de Barros

    RevisoEduardo RosalRita Godoy

    Coordenao de e-bookMarcelo Xavier

    Converso para e-bookAbreus System Ltda

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    B279mBarros, Manoel de, 1916-2014

    Meu quintal maior do que o mundo [recurso eletrnico] / Manoel de Barros ; 1. ed. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2015.recurso digitalFormato: epubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide Web137p. ISBN 978-85-7962-365-3 (recurso eletrnico)

    1. Poesia brasileira. 2. Livros eletrnicos. I. Barros, Martha. II. Ttulo.15-19571 CDD: 869.91CDU: 821.134.3(81)-1

  • CapaFolha de RostoCrditosCarta Antnio HouaissMANOEL ALM DA RAZO Jos CastelloMEU QUINTAL MAIOR DO QUE O MUNDO

    MANOEL POR MANOELPOEMAS CONCEBIDOS SEM PECADO

    SABASTIOANTONINHA-ME-LEVAINFORMAES SOBRE A MUSA

    FACE IMVELEU NO VOU PERTURBAR A PAZOS GIRASSIS DE VAN GOGH

    POESIASNA ENSEADA DE BOTAFOGOODE VINGATIVA

    COMPNDIO PARA USO DOS PSSAROSO MENINO E O CRREGOUM BEM-TE-VI

    GRAMTICA EXPOSITIVA DO CHOAntissalmo por um desheriDESARTICULADOS PARA VIOLA DE COCHO

    MATRIA DE POESIATodas as coisas cujos valores podem serO ABANDONO (PARTE FINAL)

    ARRANJOS PARA ASSOBIO(A um Pierr de Picasso)H quem receite a palavra ao ponto de osso, oco;O poema antes de tudo um inutenslio.SUJEITOVISITA

    LIVRO DE PR-COISASAGROVALNOS PRIMRDIOS

  • O QUERO-QUEROA NOSSA GARA

    O GUARDADOR DE GUASEsse Bernardo. Bernardo da Mata. Apresento.De tonto tenho roupa e caderneta.SEIS OU TREZE COISAS QUE EU APRENDI SOZINHORETRATO QUASE APAGADO EM QUE SE PODE VER PERFEITAMENTE NADA

    CONCERTO A CU ABERTO PARA SOLOS DE AVEQuando eu nasciCADERNO DE ANDARILHOPREFCIO

    O LIVRO DAS IGNORASNo descomeo era o verbo.Para entrar em estado de rvore preciso partir deO rio que fazia uma volta atrs de nossa casa era aO mundo meu pequeno, Senhor.Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nasBernardo quase rvore.AUTORRETRATO FALADO

    LIVRO SOBRE NADAO pai morava no fim de um lugar. mesa o doutor perorou: Vocs que so felizesDepois de ter entrado para r, para rvore, para pedraPrefiro as linhas tortas, como Deus.No por me gavarCarrego meus primrdios num andor.Sei que fazer o inconexo aclara as loucurasVi um prego do Sculo XIII, enterrado at o meioVenho de nobres que empobreceramAS LIES DE R.Q.O ANDARILHO

    RETRATO DO ARTISTA QUANDO COISARetrato do artista quando coisa: borboletasUso um deformante para a voz.Aprendo com abelhas do que com aeroplanos

  • Este um caderno de haver frases nele.Quando o mundo abandonar o meu olho.A menina apareceu grvida de um gavio.

    ENSAIOS FOTOGRFICOSO FOTGRAFOGORJEIOSDESPALAVRAAUTORRETRATOO POETAPALAVRAS

    TRATADO GERAL DAS GRANDEZAS DO NFIMOO CISCOPOEMAINFANTILSOBRE IMPORTNCIASPOIS POIS

    POEMAS RUPESTRESPor viver muitos anos dentro do matoA turma viu uma perna de formiga, desprezada,SE ACHANTEVENTOOS DOISO LPISPSSEGOCREME

    MENINO DO MATOEu queria usar palavras de ave para escrever.Nosso conhecimento no era de estudar em livros.Desde o comeo do mundo gua e cho se amamO primeiro poema:

    MEMRIAS INVENTADASO APANHADOR DE DESPERDCIOSCASO DE AMORACHADOUROSSOBRE IMPORTNCIAS

  • UM DOUTORFONTESSOBRE O AUTORRELAO DE OBRAS

  • certo que a inveno potica de Manoel de Barros tem personalidade prpria rara entre os nossospoetas, rara mesmo entre os nossos grandes poetas. por isso que ele um poeta maior.

    Mas no s por isso. Num momento em que somos catequizados como seres insuflados de divinomas ao mesmo tempo praticamos as maiores torpezas com os nossos semelhantes, um esplendor verluzir de forma to convincente e harmoniosa a certeza de que entre o caramujo e o homem h umnexo necessrio que nos deveria fazer mais solidrios com a vida. Mas Manoel de Barros vai alm:prova, com a doura e adequao de suas palavras, que, se quisermos, a nossa vida pode ser umapassagem de beleza em meio beleza natural, uma prece de harmonia na vida universal, uma nugade graa, um momento de bondade, em que h algo de irnico, de lrico, de doce, de solidrio, deesperanoso.

    A poesia de Manoel de Barros, nesta nossa conjuntura, nacional e humana em geral, ummaravilhoso filtro contra a arrogncia, a explorao, a estupidez, a cobia, a burrice no sepropondo, ao mesmo tempo, ensinar nada a ningum, seno que vida.

    Antnio HouaissRio, 5 de outubro de 1992

  • MANOEL ALM DA RAZO Jos Castello

    Jos Castello

    Jorge Luis Borges afirmou, mais de uma vez, seu desejo de se tornar um homem invisvel. Ofilsofo catalo Rafael Argullol define a poesia como a destilao do silncio. Em um dos versosdas Memrias inventadas, o poeta Manoel de Barros confirma este elo essencial entre a escritapotica, o desaparecimento e a mudez: Uso a palavra para compor meus silncios. Esse apegoao recolhimento , no caso de Manoel, uma estratgia que cobia o nada. Uma arte dameditao. Est escrito em O guardador de guas: No tenho bens de acontecimentos./ O queno sei fazer desconto nas palavras.

    O objetivo da poesia de Manoel de Barros no explicar, mas desexplicar. Ela se desenrolaalm da razo e de seus bons argumentos. Por isso, provavelmente, uma poesia que se apega infncia, momento da vida em que todos os sentidos ainda esto por se fazer. A criana tem aliberdade para cultivar uma viso torta das coisas. Seu olhar sinuoso, e no reto. A razo quenos fascina desde o Iluminismo ainda uma quimera. Nesse corajoso retorno infncia,Manoel trabalha com in verses, deslocamentos, deformaes brincadeiras semelhantes sdos primeiros anos de vida. Pode dizer coisas como: O crrego ficava beira/ de um menino...ou luava um pssaro. toda uma realidade que se inverte, libertando-se das amarras do bomsenso. No s dele, mas do valor solene e definitivo que os adultos, em geral, atribuem spalavras.

    Tive a sorte de conhecer Manoel de Barros nos anos finais do sculo XX, em uma visita a suacasa, em Campo Grande. Espantei-me mas depois a poesia engoliu esse espanto comaquele homem que se encolhia e se desmentia. Imaginava um menino, encontrei um sbio, oque provavelmente a mesma coisa. Lembro que, logo depois de me receber, ele me disse: Notenho nada para lhe dizer. No blefava, no mentia, ao contrrio, levou-me a encarar a difcilverdade. A poesia de Manoel feita de restos, de sobras, de dejetos. Como ele diz em um poema:de inutenslios. uma poesia que se instala nos primrdios, quando as palavras ainda seconfundem com as imagens. Ela confirma, assim, o carter intil isto , no pragmtico,indiferente aos resultados que a define. Como ele mesmo nos diz no Concerto a cu abertopara solos de ave: Passei anos me procurando por lugares nenhuns./ At que no me achei efui salvo.

    Estranha salvao promovida no por um encontro, mas por um desencontro. Pensava nisso

  • quando entrei em sua casa. No estvamos ali para nos encontrar, mas para nos desencontrar.No era uma entrevista, mas uma meditao. Admito que, a princpio, me senti perdido, maslogo me lembrei dos versos em que Manoel fala das vantagens de se perder. Elogia tambm osde feitos, os desvios e o desprezvel. De seu personagem Bernardo, ele diz que desregula anatureza. Eu no estava ali para entrevistar um poeta, mas para me perder em suas palavras.

    Est dito no Livro sobre nada: A sensatez me ab surda. Por isso, talvez, alguns intelectuaissisudos, inseguros, dele se afastem e at neguem sua grandeza. Nada disso o importunava. DiziaManoel ter aprendido com o pintor boliviano Rmulo Quiroga que a fora de um artista novem de seus sucessos, mas de suas derrotas. ali onde a arte falha em pleno silncio aterrador que a poesia nasce. Quando pensei em suas palavras, perdi o medo de errar. Ao contrrio:entendi que s errando me aproximaria de um poeta e de uma poesia que se definem peladesfigurao. Mesmo com os cabelos brancos, Manoel ainda vivia uma infncia na qual nohavia limites para ser.

    Preferia as cincias que analfabetam. Orgulhava-se, tambm, de seu senso apurado deirresponsabilidades. No Tratado geral das grandezas do nfimo, ele escreve: Meu fado o de nosaber quase tudo. Toma uma posio oposta dos poetas sabiches, para quem a contradio intolervel. Sabia, ao contrrio, que a realidade feita de lados divergentes. De difceisparadoxos. uma esfera que, em seu centro, sustenta a ignorncia. Em Menino do mato, ele nosdiz: Certas vises no significavam nada mas eram passeios verbais. Sua poesia no est s almdos significados: ela os desmonta. Aquele homem sereno no tinha medo de enlouquecer. Aocontrrio: sabia que, sem uma dose de desrazo, no se consegue fazer arte. Em O livro dasignoras ele afirma: No descomeo era o verbo./ S depois que veio o delrio do verbo.

    O apego ao silncio era uma forma que Manoel encontrava para ir alm das palavras. Repetiaum pouco Clarice Lispector, que escrevia para chegar atrs de detrs dos pensamentos. Ambosforam desbravadores, e isso os envolveu no manto da desconfiana. Na ver dade: d medo.Lembro que nossa conversa transcorreu com muitos silncios lacunas que, contudo, em vezde desmanch-la, a fortaleceu. Algum consegue pensar em uma partitura musical desprovida depausas? Pois o vazio ocupa lugar central na poesia de Manoel. Sua escrita errante e tortuosa delese alimenta. Sou mais a palavra com febre, escreve nos Arranjos para assobio. Tambm notemeu a sujeira que, alis, desde as primeiras fraldas, define o humano: O que bom para olixo bom para a poesia, recomenda em Matria de poesia.

    Por tudo isso, o encontro com a poesia de Manoel de Barros promovido por esta antologia setorna, ao mesmo tempo, um desencontro. O leitor se desencontra consigo mesmo e com tudo oque aprendeu: eis a poesia. O leitor tropea no desconhecido e, ao se mirar no espelho daspalavras, se desconhece: a poesia de novo. Devo admitir que deixei Campo Grande um tanto

  • atordoado. Mas, de fato: o mesmo atordoamento, o mesmo abalo que a leitura da poesia deManoel provoca. porque erra tambm no sentido de andar sem rumo que ela acerta.Manoel nunca temeu afirmar que o nome empobrece a imagem. Que a palavra a diminui eprende. Ainda assim, a palavra tudo o que um poeta tem. Aceitando seu destino, escreveu:Com esses exerccios os nossos/ desconhecimentos aumentaram bem.

    Curitiba, 2015

  • MEU QUINTAL MAIOR DO QUE

    O MUNDO

  • MANOEL POR MANOEL

    Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo no fui um menino peralta. Agoratenho saudade do que no fui. Acho que o que fao agora o que no pude fazer na infncia. Faooutro tipo de peraltagem. Quando era criana eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba.Mas no havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solido. Brincava de fingir que pedra eralagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote degafanhoto.Cresci brincando no cho, entre formigas. De uma infncia livre e sem comparamentos. Eu tinhamais comunho com as coisas do que comparao.Porque se a gente fala a partir de ser criana, a gente faz comunho: de um orvalho e sua aranha, deuma tarde e suas garas, de um pssaro e sua rvore. Ento eu trago das minhas razes crianceiras aviso comungante e oblqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. umparadoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa viso oblqua vem de eu tersido criana em algum lugar perdido onde havia transfuso da natureza e comunho com ela. Era omenino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as rvores.

  • POEMAS CONCEBIDOS SEM PECADO

  • SABASTIO

    Todos eram iguais perante a luaMenos s Sabastio, mas era diz-que louco da pra fora Jacar no seco anda? preguntava.

    Meu amigo SabastioUm pouco loucoCorria divinamente de jacar. Tinha umQue era da sela dele somentesE estranhava as pessoas.

    Naquele jacar ele apostava corrida com qualquer peixeQue esse Sabastio era ordinrio!

    Desencostado da terraSabastioMeu amigoUm pouco louco.

  • ANTONINHA-ME-LEVA

    Outro caso o de Antoninha-me-leva:Mora num rancho no meio do mato e noite recebe os

    vaqueiros tem vez que de trs e at quatro comitivasEla sozinha!

    Um dia a preta Bonifcia quis ajud-la e morreu.Foi enterrada no terreiro com o seu casaco de flores.Nessa noite Antoninha folgou.

    H muitas maneiras de viver mas essa de Antoninha erade morte!

    No sectarismo, titio.Tambm se comido pelas traas, como os vestidos.A fome no inveno de comunistas, titio.Experimente receber trs e at quatro comitivas de

    boiadeiros por dia!

  • INFORMAES SOBRE A MUSA

    Musa pegou no meu brao. Apertou.Fiquei excitadinho pra mulher.Levei ela pra um lugar ermo (que eu tinha que fazer uma

    lrica): Musa, sopre de leve em meus ouvidos a doce poesia,

    a de perdo para os homens, porm quero seleo,ouviu?

    Pois sim, gafanhoto, mas arreda a mo da que a hora imprpria, s?

    Minha musa sabe asneirinhasQue no deviam de andarNem na boca de um cachorro!Um dia briguei com ElaFui pra debaixo da LuaE pedi uma inspirao: Essa Lua que nas poesias dantes fazia papel

    principal, no quero nem pra meu cavalo; e at logo, vougozar da vida; vocs poetas so uns intersexuais

    E por de japa ajuntou: Tenho uma coleguinha que lida com sonetos de dor

    de corno; por que no vai nela?

  • FACE IMVEL

  • EU NO VOU PERTURBAR A PAZ

    De tarde um homem tem esperanas.Est sozinho, possui um banco.De tarde um homem sorri.Se eu me sentasse a seu ladoSaberia de seus mistriosOuviria at sua respirao leve.Se eu me sentasse a seu ladoDescobriria o sinistroOu doce alento de vidaQue move suas pernas e braos.

    Mas, ah! eu no vou perturbar a paz que ele deps napraa, quieto.

  • OS GIRASSIS DE VAN GOGH

    Hoje eu viSoldados cantando por estradas de sangueFrescura de manhs em olhos de crianasMulheres mastigando as esperanas mortas

    Hoje eu vi homens ao crepsculoRecebendo o amor no peito.Hoje eu vi homens recebendo a guerraRecebendo o pranto como balas no peito.

    E, como a dor me abaixasse a cabea,Eu vi os girassis ardentes de Van Gogh.

  • POESIAS

  • NA ENSEADA DE BOTAFOGO

    Como estou s: Afago casas tortas,Falo com o mar na rua sujaNu e liberto levo o ventoNo ombro de losangos amarelos.

    Ser menino aos trinta anos, que desgraaNesta borda de mar de Botafogo!Que vontade de chorar pelos mendigos!Que vontade de voltar para a fazenda!

    Por que deixam um menino que do matoAmar o mar com tanta violncia?

  • ODE VINGATIVA

    Ela me encontrar pacfico, desvendvelVendvel, venal e de automvel.Ela me encontrar grave, sem mistrios, duroSrio, claro como o sol sobre o muro.

    Ela me encontrar bruto, burgus, imoral,Capaz de defend-la, de ofend-la e perdo-la;Capaz de morrer por ela (ou ento de mat-la)Sem deixar bilhete literrio no jornal.

    Ela me encontrar sadio, apoltico, antiapocalpticoAnticristo e, talvez, campeo de xadrez.Ela me encontrar forte, primitivo, animalComo planta, cavalo, como gua mineral.

  • COMPNDIO PARA USO DOS PSSAROS

  • O MENINO E O CRREGO

    Ao Pedro

    I

    A gua madura.Com penas de gara.Na areia tem raizde peixes e de rvores.

    Meu crrego de sofrer pedrasMas quem beijar seu corpo brisas

    II

    O crrego tinha um cheirode estrelasnos sars anoitecidos

    O crrego tinhasuas frondesdistribudasaos pssaros

    O crrego ficava beirade um menino

    III

    No cho da gua

  • luava um pssaropor sobre espumasde haver estrelas

    A gua escorriapor entre as pedrasum cho sabendoa aroma de ninhos.

    IV

    Aique transparenteaos voosest o crrego!E usadode murmrios

    V

    Com a boca escorrendo choo menino despetalava o crrego

    de manh todo no seu corpo.

    A gua do lbio relvou entre pedras

    rvores com o rosto arreiadode seus frutosainda cheiravam a vero

    Durante borboletas com abrilesse crrego escorreu s pssaros

  • UM BEM-TE-VI

    O leve e macioraio de solse pe no rio.Faz arrebol

    Da rvore evolaamarelo, do altobem-te-vi-cartolae, de um salto

    pousa envergadono bebedouroa banhar seu louro

    pelo enramadoDe arrepio, na cercaj se abriu, e seca.

  • GRAMTICA EXPOSITIVA DO CHO

  • Antissalmo por um desheri

    a boca na pedra o levara a cactoa praa o relvava de passarinhos cantandoele tinha o dom da rvoreele assumia o peixe em sua solido

    seu amor o levara a pedraestava estropiado de rvore e solestropiado at a pedraat o cantoestropiado no seu melhor azulprocurava-se na palavra rebotalhopor cima do lbio era s lendacomia o nfimo com farinhao cho viava no olhocada pssaro governava sua rvore

    Deus ordenara nele a borrao rosto e os livros com ervaandorinhas enferrujadas

  • DESARTICULADOS PARA VIOLA DE COCHO

    Compadre Amaro: Vai chuv, irimoCompadre Ventura: Pruqu, irimo?Compadre Amaro: Saracura t cantandoCompadre Ventura: U, saracura Deusi?,se fosse imbusi, simNETO BOTELHO, in Psicologia das mulatas do Catete,O vaqueiro metafsico e outras estrias demais

    Cumpadre antome responda: quem coaxaexerce alguma raiz?

    Sapo, cumpadre, enraza-seem estrumes de anta

    E lagartixa,que no muro anda,come o qu?

    Come a lagartixa,o musgo que o muro.Seno.

    E martelograma de castela, mbileestrela, bridolua e cambovulva e pilo, elisavalise, nursepulvis e aldabras, que so? Palabras.

    E mquina

  • de dor de a vapor? brincarde amarelinhatem amarelos?as porteiras do mundovaras tm? Tm conformes.

    E o que grotagretalapa e lura so? So aonde o loboo coelhoe o ertico

    Cumpadre, e longe lugar nenhumou tem sitiante? S se porm.

    E agora vanc confirme: pardal o esperto? roupaat usados espantalhos?

    esperto, cumpadre,no caido galho.

  • MATRIA DE POESIA

  • Todas as coisas cujos valores podem serdisputados no cuspe distnciaservem para poesia

    O homem que possui um pentee uma rvoreserve para poesia

    Terreno de 10 x 20, sujo de mato os quenele gorjeiam: detritos semoventes, latasservem para poesia

    Um chevrol gosmentoColeo de besouros abstmiosO bule de Braque sem bocaso bons para poesia

    As coisas que no levam a nadatm grande importncia

    Cada coisa ordinria um elemento de estima

    Cada coisa sem prstimotem seu lugarna poesia ou na geral

    O que se encontra em ninho de joo-ferreira:caco de vidro, garampos,retratos de formatura,servem demais para poesia

    As coisas que no pretendem, comopor exemplo: pedras que cheiramgua, homens

  • que atravessam perodos de rvore,se prestam para poesia

    Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhumae que voc no pode vender no mercadocomo, por exemplo, o corao verdedos pssaros,serve para poesia

    As coisas que os lquenes comem sapatos, adjetivos

    tm muita importncia para os pulmesda poesia

    Tudo aquilo que a nossacivilizao rejeita, pisa e mija em cima,serve para poesia

    Os loucos de gua e estandarteservem demaisO traste timoO pobre-diabo colosso

    Tudo que expliqueo alicate cremosoe o lodo das estrelas

    serve demais da conta

    Pessoas desimportantesdo pra poesiaqualquer pessoa ou escada

    Tudo que expliquea lagartixa da esteirae a laminao de sabis

  • muito importante para a poesia

    O que bom para o lixo bom para a poesia

    Importante sobremaneira a palavra repositrio;a palavra repositrio eu conheo bem:

    tem muitas repercussescomo um algibe entupido de silncio

    sabe a destroos

    As coisas jogadas foratm grande importncia como um homem jogado fora

    Alis tambm objeto de poesiasaber qual o perodo mdioque um homem jogado forapode permanecer na terra sem nasceremem sua boca as razes da escria

    As coisas sem importncia so bens de poesia

    Pois assim que um chevrol gosmento chegaao poema, e as andorinhas de junho.

  • O ABANDONO (PARTE FINAL)

    A cidade mancava de uma rua at certo ponto;depois os cupins a comiam

    A gente vivia por fora como asaR se media na pedra

    Ali, eu me atrapalhava de mato como se eleinvadisse as runas de minha boca e a enchessede frases com morcegos

    Saudade me urinava na perna

    Um moo de fora criava um peixe na moNa parte seca do olho, a paisagem tinha formigas

    mortas

    Eu era sempre morto de lado com a cabea viradapro mar e umas gramas de borboletas amarelas

    Estadistas gastavam nos coretos frases furadas,j com vareja no nus

    A terra era santa e adubada

    As mulheres tratavam-nos com uma bunduraextraordinria

    Tudo se resolvia com cambalhotas

    Um homem pegava, para fazer seu retrato, pedaos

  • de tbua, conchas, sementes de cobra

    O outro capengava de uma espcie de flor abertadentro dele

    Um outro no podia atravessar a rua sem apodrecer

    E um sexto ficava de muletas toda noite paraqualquer lagartixa

    Do alto da torre dizia o poeta: eu fao umapalavra equilibrar pratos no queixo

    Assim, borboletas chegavam em casa quase mortasde silncio

    E as garas eram tarde demais.

  • ARRANJOS PARA ASSOBIO

  • (A um Pierr de Picasso)

    Pierr desfigura errante,andarejo de arrebol.Vivendo do que desiste,se expressa melhor em inseto.

    Pierr tem um rosto de guaque se aclara com a mscara.Sua descor aparececomo um rosto de vidro na gua.

    Pierr tem sua vareja ntima: viciado em raiz de parede.Sua postura tem anosde amorfo e deserto.

    Pierr tem o seu lado esquerdoatrelado aos escombros.E o outro lado aos escombros..Solido tem um rosto de antro.

  • H quem receite a palavra ao ponto de osso, de ocoao ponto de ningum e de nuvem.Sou mais a palavra com febre, decada, fodida, nasarjeta.Sou mais a palavra ao ponto de entulho.Amo arrastar algumas no caco de vidro, enverg-laspro cho, corromp-lasat que padeam de mim e me sujem de branco.Sonho exercer com elas o ofcio de criado:us-las como quem usa brincos.

  • O poema antes de tudo um inutenslio.Hora de iniciar algumconvm se vestir roupa de trapo.

    H quem se jogue debaixo de carronos primeiros instantes.

    Faz bem uma janela abertauma veia aberta.

    Pra mim uma coisa que serve de nada o poemaenquanto vida houver.

    Ningum pai de um poema sem morrer.

  • SUJEITO

    Usava um Dicionrio do Ordinriocom 11 palavras de joelhosinclusive bestego. Posava de estercopara 13 adjetivos familiares,inclusive bbado.Ia entre azul e sarjetas.Tinha a voz de cho podre.Tocava a fome a 12 bocas.E achava mais importante fundar um versodo que uma Usina Atmica!Era um sujeito ordinrio.

  • VISITA

    Na cela de Pedro Norato, 23 anos de recluso,a morte sesteava de pernas abertasDentre grades se alga, ele!Tem o sono praguejado de coxas.Contou que achara a mulher dentro de um pote e abebeu.Sem amor que encontramos com Deus me diz.O mundo no perfeito como um cavalo me diz.V trinos de gua nos relgios.E para moscas bate continncia.

    Eu volto de sarjeta para casa.

  • LIVRO DE PR-COISAS

  • AGROVAL

    onde pululam vermes de animais e plantas e subjaz um erotismo criador gensico.

    M. CAVALCANTI PROENA

    Por vezes, nas proximidades dos brejos ressecos, se encontram arraias enterradas. Quando asguas encurtam nos brejos, a arraia escolhe uma terra propcia, pousa sobre ela como um disco,abre com as suas asas uma cama, faz cho bere por baixo e se enterra. Ali vai passar o perododa seca. Parece uma roda de carreta adernada.

    Com pouco, por baixo de suas abas, lateja um agroval de vermes, cascudos, girinos e tantasespcies de insetos e parasitas, que procuram o stio como um ventre.

    Ali, por debaixo da arraia, se instaura uma qumica de brejo. Um tero vegetal, insetal, natural.A troca de linfas, de reima, de rmen que ali se instaura como um grande tumor que lateja.

    Faz-se debaixo da arraia a miniatura de um brejo. A vida que germinava no brejo transfere-separa o grande ventre preparado pela matrona arraia. o prprio gromel dos cascudos!

    Penso na troca de favores que se estabelece; no mutualismo; no amparo que as espcies se do.Nas descargas de ajudas; no equilbrio que ali se completa entre os rascunhos de vida dos seresminsculos. Entre os corpos truncados. As teias ainda sem aranha. Os olhos ainda sem luz. Aspenas sem movimento. Os remendos de vermes. Os bulbos de cobras. Arqutipos de carunchos.

    Penso nos embries dos atos. Uma boca disforme de rapa-canoa que comea a querer se grudarnas coisas. Rudimentos rombudos de um olho de rvore. Os indcios de nfimas sociedades. Osliames primordiais entre paredes e lesmas. Tambm os germes das primeiras ideias de umaconvivncia entre lagartos e pedras. O embrio de um muum sem estames, que renega ter asas.Antepassados de antrios e borboletas que procuram uma nesga de sol.

    Penso num comrcio de frisos e de asas, de sucos de smen e de plen, de mudas de escamas,de pus e de sementes. Um comrcio de cios e cantos virtuais; de gosmae de lndeas; de cheiro de ncolas e de rios cor tados. Comrcio de pequenas jias e suas conasredondas. Inacabados orifcios de tnias implumes. Um comrcio corcunda de armaus e detraas; de folhas recolhidas por formigas; de orelhas-de-pau ainda em larva. Comrcio dehermafroditas de instintos adesivos. As veias rasgadas de um escuro besouro. O sapo rejeitandosua infame cauda. Um comrcio de anis de escorpies e sementes de peixe.

    E ao cabo de trs meses de trocas e infuses a chuva comea a descer. E a arraia vai levantar-

  • se. Seu corpo deu sangue e bebeu. Na carne ainda est embutido o fedor de um carrapato. Denovo ela caminha para os brejos refertos. Girinos pretos de rabinhos e olhos de feto fugiram dogrande tero, e agora j fervem nas guas das chuvas.

    a pura inaugurao de um outro universo. Que vai corromper, irromper, irrigar e recompora natureza.

    Uma festa de insetos e aves no brejo!

  • NOS PRIMRDIOS

    Era s gua e sol de primeiro este recanto. Meninos cangavam sapos. Brincavam de primo comprima. Tordo ensinava o brinquedo primo com prima no faz mal: finca finca. No haviainstrumento musical. Os homens tocavam gado. As coisas ainda inominadas. Como no comeodos tempos.

    Logo se fez a piranha. Em seguida os domingos e feriados. Depois os cuiabanos e os beira-corgos. Por fim o cavalo e o anta batizado.

    Nem precisaram dizer crescei e multiplicai. Pois j se faziam filhos e piadas com muitaanimosidade.

    Conhecimentos vinham por infuso pelo faro dos bugres pelos mascates.O homem havia sido posto ali nos incios para campear e hortar. Porm s pensava em lombo

    de cavalo. De forma que s campeava e no hortava.Da que campear se fez de preferncia por ser atividade livre e andeja. Enquanto que hortar

    prendia o ente no cabo da enxada. O que no era bom.No comeo contudo enxada teve seu lugar. Prestava para o peo encostar-se nela a fim de

    prover seu cigarrinho de palha. Depois, com o desaparecimento do cigarro de palha, constatou-se a inutilidade das enxadas.

    O homem tinha mais o que no fazer!Foi muito soberano mesmo no comeo dos tempos este cortado. Burro no entrava em seus

    pastos. S porque burro no pega perto.1 Porm j hoje h quem trate os burros como cavalo. Oque uma distino.

    1 Burro no pega perto expresso pantaneira. Nas lides de campear o pantaneiro usa o cavalo, que veloz e alcana a rsdesgarrada rapidamente.O cavalo pega perto. Mas o burro, no sendo veloz, alcana longe a rs desgarrada. Por isso se diz que o burro no pega perto.(N.A.)

  • O QUERO-QUERO

    Natureza ser que preparou o quero-quero para o mister de avisar? No meio-dia, se voc estiverfazendo sesta completa, ele interrompe. Se est o vaqueiro armando lao por perto, em lugardesprprio, ele bronca. Se est o menino caando inseto no brejo, ele grita naquele somarranhado que tem parte com arara. Defende-se como touro. E faz denncias como um senadorromano.

    Quero-quero tem uma vida obedecida, contudo. Ele cumpre Jesus. Cada dia com sua tarefa.Tempo de comer tempo de comer. Tempo de criar, de criar.

    pssaro mais de amar que de trabalhar.De forma que no sobra cio ao quero-quero para arrumar o ninho. Que faz em beira de

    estrada, em parcas depresses de terreno, e mesmo aproveitando sulcos deixados por cascos deanimal.

    Gosta de aproveitar os sulcos da natureza e da vida. Assim, nesses recalques, se estabelece oquero-quero, j de oveira plena, depois de amar pelos brejos perdida e avoadoramente.

    E porque muito amou e se ganhou de amar desperdiadamente, seu lar no construiu. E vaiconceber no cho limpo. No limpo das campinas. Num pedao de trampa enluaada. Ou numaguaal de estrelas.

    Em tempo de namoro quero-quero bomio. No aprecia galho de rvore para o idlio. Sconversa no cho. No cho e no largo. Qualquer depressozinha cama. Nem varre o lugar parao amor. Faz que nem boliviana. Que se jogue a cama na rua na hora do prazer, para que todosvejam e todos participem. Pra que todos escutem.

    No usa o silncio como arte.Quero-quero no amor desbocado. Passarinho de intimidades descobertas. Tem uma filosofia

    nua, de vida muito desabotoada e livre.Depois de achado o ninho e posto o ovo porm, vira um guerreiro o quero-quero. Se escuta

    passo de gente se espeta em guarda. Tem parenteza com sentinela. Investe de esporo sobre ospassantes. E avisa os semoventes de redores.

    Disse que pula bala. Sei que ningum o desfolha. Tem misca de carrapato em sua carne exgua.Debaixo da asa guarda esse ocarino redoleiro pra de-comer dos filhotes.

    De olhos ardidos, as finas botas vermelhas, no pode ver ningum perto do ninho, que searrepia e enfeza, como um ferrabrs.

    Passarinho de topete na nuca, esse!

  • A NOSSA GARA

    Penso que tm nostalgia de mar estas garas pantaneiras. So vivas de Xaras? Alguma coisa emazul e profundidade lhes foi arrancada. H uma sombra de dor em seus voos. Assim, quando vode regresso aos seus ninhos, enchem de entardecer os campos e os homens.

    Sobre a dor dessa ave h uma outra verso, que eu sei. a de no ser ela uma ave canora. Poisque s grasna como quem rasga uma palavra.

    De cantos portanto no que se faz a beleza desses pssaros. Mas de cores e movimentos.Lembram Mo digliani. Produzem no cu iluminuras. E propem esculturas no ar.

    A Elegncia e o Branco devem muito s garas.Chegam de onde a beleza nasceu?Nos seus olhos nublados eu vejo a flora dos corixos.

    Insetos de camalotes florejam de suas rmiges. E andam pregadas em suas carnes larvas de sapos.Aqui seu voo adquire razes de brejo. Sua arte de ver caracis nos escuros da lama um dom de

    bran cura. fora de brancuras a gara se escora em versos com lodo?(Acho que estou querendo ver coisas demais nestas garas. Insinuando contrastes ou

    conciliaes? entre o puro e o impuro etc. etc. No estarei impregnando de peste humanaesses passarinhos? Que Deus os livre!)

  • O GUARDADOR DE GUAS

  • Esse Bernardo. Bernardo da Mata. Apresento.Ele faz encurtamento de guas.Apanha um pouco de rio com as mos e espreme nos vidrosAt que as guas se ajoelhemDo tamanho de uma lagarta nos vidros.No falar com as guas rs o exercitam.Tentou encolher o horizonteNo olho de um inseto e obteve!Prende o silncio com fivela.At os caranguejos querem ele para cho.Viu as formigas carreando na estrada duas pernas de ocasopara dentro de um oco E deixou.Essas formigas pensavam em seu olho. homem percorrido de existncias.Esto favorveis a ele os camalees.Espraiado na tarde Como a foz de um rio Bernardo se inventaLugarejos cobertos de limo o imitam.Passarinhos aveludam seus cantos quando o veem.

  • De tonto tenho roupa e caderneta.Eu sei desigualar por trs.J gostei muito de mulaE Estao de Estrada de Ferro.Depois troquei por anu-brancoE Estao de Estrada de Ferro.Hoje gosto de santo e peneira.Uma dona me orvalha sanguemente.O que no alforje eu trago um azul arriscado a pssarosEu sei o nome das letras.E desenvolvo moscas em peneira.Sou muito lateralmente entretontos.O que desabre o ser ver e ver-se.Aragem cor de roupa me resplende.

  • SEIS OU TREZE COISAS QUE EU APRENDI SOZINHO

    1.

    Gravata de urubu no tem cor.Fincando na sombra um prego ermo, ele nasce.Luar em cima de casa exorta cachorro.Em perna de mosca salobra as guas cristalizam.Besouros no ocupam asas para andar sobre fezes.Poeta um ente que lambe as palavras e depois se alucina.No osso da fala dos loucos h lrios.

    []

    13.

    Seu Frana no presta pra nada S pra tocar violo.De beber gua no chapu, as formigas j sabem quem ele .No presta pra nada.Mesmo que dizer: Povo que gosta de resto de sopa mosca.Disse que precisa de no ser ningum toda vida.De ser o nada desenvolvido.E disse que o artista tem origem nesse ato suicida.

  • RETRATO QUASE APAGADO EM QUESE PODE VER PERFEITAMENTE NADA

    I

    No tenho bens de acontecimentos.O que no sei fazer desconto nas palavras.Entesouro frases. Por exemplo: Imagens so palavras que nos faltaram. Poesia a ocupao da palavra pela Imagem. Poesia a ocupao da Imagem pelo Ser.Ai frases de pensar!Pensar uma pedreira. Estou sendo.Me acho em petio de lata (frase encontrada no lixo).Concluindo: h pessoas que se compem de atos, rudos,retratos.Outras de palavras.Poetas e tontos se compem com palavras.

    II

    Todos os caminhos nenhum caminhoMuitos caminhos nenhum caminhoNenhum caminho a maldio dos poetas.

    []

    V

    Escrever nem uma coisaNem outra A fim de dizer todas

  • Ou, pelo menos, nenhumas.

    Assim,Ao poeta faz bemDesexplicar Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.

  • CONCERTO A CU ABERTO PARA SOLOS DE AVE

  • Quando eu nascio silncio foi aumentado.

    Meu pai sempre entendeuQue eu era tortoMas sempre me aprumou.Passei anos me procurando por lugares nenhuns.At que no me achei e fui salvo.s vezes caminhava como se fosse um bulbo.

  • CADERNO DE ANDARILHO

    APRESENTAOEu quando conheci o Aristeu

    ele estava em final de rvore.E andava por aldeias em santidade de znias.O ermo fazia curvas para ele.Subiam-lhe caracis ao manto.O que Gogol falou sobre Akaki Akakievitch,eu diria de Aristeu:Um homem que desceu sepultura sem terrealizado um s ato excepcional.Inventava descobrimentos:Que a estridncia dos grilos durante o cioaumenta 75 vezes. E peixe no tem honra.Difcil de provar a desonra dos peixes; mesmocom fita mtricaComo difcil de provar que em abril asmanhs recebem com mais ternura ospassarinhos.Exerci alguns anos ao lado de Aristeu aprofisso de urubuzeiro (o trabalho eraespantar os urubus dos tendais de umacharqueada).Com esses exerccios os nossosdesconhecimentos aumentaram bem.As coisas sem nome apareciam melhor.Vimos at que os cantos podem ser ouvidos emforma de asas.

  • PREFCIO

    Assim que elas foram feitas (todas as coisas) sem nome.Depois que veio a harpa e a fmea em p.Insetos errados de cor caam no mar.A voz se estendeu na direo da boca.Caranguejos apertavam mangues.Vendo que havia na terra

    dependimentos demaise tarefas muitas os homens comearam a roer unhas.Ficou certo pois noque as moscas iriam iluminar

    o silncio das coisas annimas.Porm, vendo o Homemque as moscas no davam conta de iluminar osilncio das coisas annimas passaram essa tarefa para os poetas.

  • O LIVRO DAS IGNORAS

  • No descomeo era o verbo.S depois que veio o delrio do verbo.O delrio do verbo estava no comeo, l onde acriana diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.A criana no sabe que o verbo escutar no funcionapara cor, mas para som.Ento se a criana muda a funo de um verbo, eledelira.E pois.Em poesia que voz de poeta, que a voz de fazernascimentos O verbo tem que pegar delrio.

  • Para entrar em estado de rvore preciso partir deum torpor animal de lagarto s trs horas da tarde,no ms de agosto.Em dois anos a inrcia e o mato vo crescer emnossa boca.Sofreremos alguma decomposio lrica at o matosair na voz.

    Hoje eu desenho o cheiro das rvores.

  • O rio que fazia uma volta atrs de nossa casa era aimagem de um vidro mole que fazia uma volta atrsde casa.Passou um homem depois e disse: Essa volta que orio faz por trs de sua casa se chama enseada.No era mais a imagem de uma cobra de vidro quefazia uma volta atrs de casa.Era uma enseada.Acho que o nome empobreceu a imagem.

  • O mundo meu pequeno, Senhor.Tem um rio e um pouco de rvores.Nossa casa foi feita de costas para o rio.Formigas recortam roseiras da av.Nos fundos do quintal h um menino e suas latas

    maravilhosas.Seu olho exagera o azul.Todas as coisas deste lugar j esto comprometidas

    com aves.Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os

    besouros pensam que esto no incndio.Quando o rio est comeando um peixe,

    Ele me coisaEle me rEle me rvore.De tarde um velho tocar sua flauta para inverter os ocasos.

  • Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nasleituras no era a beleza das frases, mas a doenadelas.

    Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,esse gosto esquisito.

    Eu pensava que fosse um sujeito escaleno. Gostar de fazer defeitos na frase muito saudvel,

    o Padre me disse.Ele fez um limpamento em meus receios.O Padre falou ainda: Manoel, isso no doena,

    pode muito que voc carregue para o resto da vidaum certo gosto por nadas

    E se riu.Voc no de bugre? ele continuou.Que sim, eu respondi.Veja que bugre s pega por desvios, no anda em

    estradas Pois nos desvios que encontra as melhores

    surpresas e os ariticuns maduros.H que apenas saber errar bem o seu idioma.Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de

    agramtica.

  • Bernardo quase rvore.Silncio dele to alto que os passarinhos ouvem

    de longe.E vm pousar em seu ombro.Seu olho renova as tardes.Guarda num velho ba seus instrumentos de trabalho:

    1 abridor de amanhecer1 prego que farfalha1 encolhedor de rios e1 esticador de horizontes.

    (Bernardo consegue esticar o horizonte usando trsfios de teias de aranha. A coisa fica bemesticada.)

    Bernardo desregula a natureza:Seu olho aumenta o poente.(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua

    incompletude?)

  • AUTORRETRATO FALADO

    Venho de um Cuiab garimpo e de ruelas entortadas.Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da

    Marinha, onde nasci.Me criei no Pantanal de Corumb, entre bichos do

    cho, pessoas humildes, aves, rvores e rios.Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de

    estar entre pedras e lagartos.Fazer o desprezvel ser prezado coisa que me apraz.J publiquei 10 livros de poesia; ao public-los me

    sinto como que desonrado e fujo para oPantanal onde sou abenoado a garas.

    Me procurei a vida inteira e no me achei peloque fui salvo.

    Descobri que todos os caminhos levam ignorncia.No fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de

    gado. Os bois me recriam.Agora eu sou to ocaso!Estou na categoria de sofrer do moral, porque s

    fao coisas inteis.No meu morrer tem uma dor de rvore.

  • LIVRO SOBRE NADA

  • O pai morava no fim de um lugar.Aqui lacuna de gente ele falou:S quase que tem bicho andorinha e rvore.Quem aperta o boto do amanhecer o arqu.Um dia apareceu por l um doutor formado: cheiode suspensrios e ademanes.Na beira dos brejos gavies-caranguejeiros comiam caranguejos.E era mesma a distncia entre as rs e a relva.A gente brincava com terra.O doutor apareceu. Disse: Precisam de tomar anquilostomina.Perto de ns sempre havia uma espera de rolinhas.O doutor espantou as rolinhas.

  • mesa o doutor perorou: Vocs que so felizesporque moram neste Empreo.Meu pai cuspiu o empreo de lado.O doutor falava bobagens conspcuas.Mano Preto aproveitou: Grilo um ser imprestvelpara o silncio.Mano Preto no tinha entidade pessoal, s coisal.(Seria um defeito de Deus?)A gente falava bobagens de brinca, mas o doutorfalava de vera.O pai desbrincou de ns:S o obscuro nos cintila.Bugrinha boquiabriu-se.

  • Depois de ter entrado para r, para rvore, para pedra meu av comeou a dar germnios.Queria ter filhos com uma rvore.Sonhava de pegar um casal de lobisomem para ir vender na cidade.Meu av ampliava a solido.No fim da tarde, nossa me aparecia nos fundos doquintal: Meus filhos, o dia j envelheceu,1 entrem pradentro.Um lagarto atravessou meu olho e entrou para o mato.Se diz que o lagarto entrou nas folhas, que folhou.

    1 A a nossa me deu entidade pessoal ao dia. Ela deu ser ao dia. E ele envelheceu como um homem envelhece. Talvez fosse a maneiraque a me encontrou para aumentar as pessoas daquele lugar que era lacuna de gente.

  • Prefiro as linhas tortas, como Deus. Em menino eu sonhava de ter uma perna mais curta (Spra poder andar torto). Eu via o velho farmacutico de tarde, a subir a ladeira do beco, torto edeserto toc ploc toc ploc. Ele era um destaque.Se eu tivesse uma perna mais curta, todo mundo haveria de olhar para mim: l vai o meninotorto subindo a ladeira do beco toc ploc toc ploc.Eu seria um destaque. A prpria sagrao do Eu.

  • No por me gavar mas eu no tenho esplendor.

    Sou referente pra ferrugem mais do que referente pra fulgor.

    Trabalho arduamente para fazer o que desnecessrio.O que presta no tem confirmao,

    o que no presta, tem.No serei mais um pobre-diabo que sofre de nobrezas.S as coisas rasteiras me celestam.Eu tenho cacoete pra vadio.As violetas me imensam.

  • Carrego meus primrdios num andor.Minha voz tem um vcio de fontes.Eu queria avanar para o comeo.Chegar ao crianamento das palavras.L onde elas ainda urinam na perna.Antes mesmo que sejam modeladas pelas mos.Quando a criana garatuja o verbo para falar o queno tem.Pegar no estame do som.Ser a voz de um lagarto escurecido.Abrir um descortnio para o arcano.

  • Sei que fazer o inconexo aclara as loucuras.Sou formado em desencontros.A sensatez me absurda.Os delrios verbais me terapeutam.Posso dar alegria ao esgoto (palavra aceita tudo).(E sei de Baudelaire que passou muitos meses tenso porque no encontrava um ttulo para osseus poemas. Um ttulo que harmonizasse os seus conflitos. At que apareceu Flores do mal. Abeleza e a dor. Essa anttese o acalmou.)

    As antteses congraam.

  • Vi um prego do Sculo XIII, enterrado at o meionuma parede de 3 x 4, branca, na XXIII Bienal de ArtesPlsticas de So Paulo, em 1994.Meditei um pouco sobre o prego.O que restou por decidir foi: se o objeto enferrujadoseria mesmo do Sculo XIII ou do XII?Era um prego sozinho e indiscutvel.Podia ser um anncio de solido.Prego uma coisa indiscutvel.

  • Venho de nobres que empobreceram.Restou-me por fortuna a soberbia.Com esta doena de grandezas:Hei de monumentar os insetos!(Cristo monumentou a Humildade quando beijou osps dos seus discpulos.So Francisco monumentou as aves.Vieira, os peixes.Shakespeare, o Amor, A Dvida, os tolos.Charles Chaplin monumentou os vagabundos.)Com esta mania de grandeza:Hei de monumentar as pobres coisas do cho mijadasde orvalho.

  • AS LIES DE R.Q.

    Aprendi com Rmulo Quiroga (um pintor boliviano):A expresso reta no sonha.No use o trao acostumado.A fora de um artista vem das suas derrotas.S a alma atormentada pode trazer para a voz umformato de pssaro.Arte no tem pensa:O olho v, a lembrana rev, e a imaginao transv. preciso transver o mundo.Isto seja:Deus deu a forma. Os artistas desformam. preciso desformar o mundo:Tirar da natureza as naturalidades.Fazer cavalo verde, por exemplo.Fazer noiva camponesa voar como em Chagall.

    Agora s puxar o alarme do silncio que eu saio pora a desformar.

    At j inventei mulher de 7 peitos para fazer vaginaocomigo.

  • O ANDARILHO

    Eu j disse quem sou Ele.Meu desnome Andaleo.Andando devagar eu atraso o final do dia.Caminho por beiras de rios conchosos.Para as crianas da estrada eu sou o Homem do Saco.Carrego latas furadas, pregos, papis usados.(Ouo harpejos de mim nas latas tortas.)No tenho pretenses de conquistar a inglria perfeita.Os loucos me interpretam.A minha direo a pessoa do vento.Meus rumos no tm termmetro.De tarde arborizo pssaros.De noite os sapos me pulam.No tenho carne de gua.Eu perteno de andar atoamente.No tive estudamento de tomos.S conheo as cincias que analfabetam.Todas as coisas tm ser?2

    Sou um sujeito remoto.Aromas de jacintos me infinitam.E estes ermos me somam.

    2 Penso que devemos conhecer algumas poucas cousas sobre a fisiologia dos andarilhos. Avaliar at onde o isolamento tem o poder deinfluir sobre os seus gestos, sobre a abertura de sua voz, etc. Estudar talvez a relao desse homem com as suas rvores, com as suaschuvas, com as suas pedras. Saber mais ou menos quanto tempo o andarilho pode permanecer em suas condies humanas, antes de seadquirir do cho a modo de um sapo. Antes de se unir s vergnteas como as parasitas. Antes de revestir uma pedra maneira do limo.Antes mesmo de ser apropriado por relentos como os lagartos. Saber com exatido quando que um modelo de pssaro se ajustar suavoz. Saber o momento em que esse homem poder sofrer de prenncios. Saber enfim qual o momento em que esse homem comea aadivinhar.

  • RETRATO DO ARTISTA QUANDO COISA

  • Retrato do artista quando coisa: borboletasJ trocam as rvores por mim.Insetos me desempenham.J posso amar as moscas como a mim mesmo.Os silncios me praticam.De tarde um dom de latas velhas se atracaem meu olhoMas eu tenho predomnio por lrios.Plantas desejam a minha boca para crescerpor de cima.Sou livre para o desfrute das aves.Dou meiguice aos urubus.Sapos desejam ser-me.Quero cristianizar as guas.J enxergo o cheiro do sol.

  • Uso um deformante para a voz.Em mim funciona um forte encanto a tontos.Sou capaz de inventar uma tarde a partir deuma gara.Sou capaz de inventar um lagarto a partir deuma pedra.Tenho um senso apurado de irresponsabilidades.No sei de tudo quase sempre quanto nunca.Experimento o gozo de criar.Experimento o gozo de Deus.Fao vaginao com palavras at meu retratoaparecer.Apareo de costas.Preciso de atingir a escurido com clareza.Tenho de laspear verbo por verbo at alcanaro meu aspro.Palavras tm que adoecer de mim para que setornem mais saudveis.Vou sendo incorporado pelas formas peloscheiros pelo som pelas cores.Deambulo aos esgaros.Vou deixando pedaos de mim no cisco.O cisco tem agora para mim uma importnciade Catedral.

  • Aprendo com abelhas do que com aeroplanos. um olhar para baixo que eu nasci tendo. um olhar para o ser menor, para oinsignificante que eu me criei tendo.O ser que na sociedade chutado como umabarata cresce de importncia para o meuolho.Ainda no entendi por que herdei esse olharpara baixo.Sempre imagino que venha de ancestralidadesmachucadas.Fui criado no mato e aprendi a gostar dascoisinhas do cho Antes que das coisas celestiais.Pessoas pertencidas de abandono me comovem:tanto quanto as soberbas coisas nfimas.

  • Este um caderno de haver frases nele.Um rio passa perto.Estou sentado no barranco do rio.Emas no ptio engolem cobras.Uma formiga est de boca aberta para a tarde.As quatro patas da formiga tentam abraar o sol.Na verdade, no sei se so as patas da formigaque tentam abraar o solOu se so minhas frases que desejam fazer essetrabalho.Agora uma brisa me gara.E os arrebis latejam.

  • Quando o mundo abandonar o meu olho.Quando o meu olho furado de belezas foresquecido pelo mundo.Que hei de fazer?Quando o silncio que grita de meu olho nofor mais escutado.Que hei de fazer?Que hei de fazer se de repente a manh voltar?Que hei de fazer? Dormir, talvez chorar.

  • A menina apareceu grvida de um gavio.Veio falou para a me: O gavio me desmoou.A me disse: Voc vai parir uma rvorepara a gente comer goiaba nela.E comeram goiaba.Naquele tempo de dantes no havia limitespara ser.Se a gente encostava em ser ave ganhava opoder de alar.Se a gente falasse a partir de um crregoa gente pegava murmrios.No havia comportamento de estar.Urubus conversavam sobre auroras.Pessoas viravam rvore.Pedras viravam rouxinis.Depois veio a ordem das coisas e as pedrastm que rolar seu destino de pedra para o restodos tempos.S as palavras no foram castigadas coma ordem natural das coisas.As palavras continuam com os seus deslimites.

  • ENSAIOS FOTOGRFICOS

  • O FOTGRAFO

    Difcil fotografar o silncio.Entretanto tentei. Eu conto:Madrugada a minha aldeia estava morta.No se ouvia um barulho, ningum passava entreas casas.Eu estava saindo de uma festa.Eram quase quatro da manh.Ia o Silncio pela rua carregando um bbado.Preparei minha mquina.O silncio era um carregador?Estava carregando o bbado.Fotografei esse carregador.Tive outras vises naquela madrugada.Preparei minha mquina de novo.Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.Fotografei o perfume.Vi uma lesma pregada na existncia mais do que napedra.Fotografei a existncia dela.Vi ainda um azul-perdo no olho de um mendigo.Fotografei o perdo.Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.Fotografei o sobre.Foi difcil fotografar o sobre.Por fim eu enxerguei a Nuvem de cala.Representou para mim que ela andava na aldeia debraos com Maiakovski seu criador.Fotografei a Nuvem de cala e o poeta.Ningum outro poeta no mundo faria uma roupamais justa para cobrir a sua noiva.A foto saiu legal.

  • GORJEIOS

    Gorjeio mais bonito do que canto porque nele seinclui a seduo. quando a pssara est enamorada que ela gorjeia.Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.Seria como perfumar-se a moa para ver o namorado. por isso que as rvores ficam loucas se esto gorjeadas. por isso que as rvores deliram.Sob o efeito da seduo da pssara as rvores deliram.E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.As flores dessas rvores depois nascero mais perfumadas.

  • DESPALAVRA

    Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino dadespalavra.Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidadeshumanas.Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidadesde pssaros.Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidadesde sapo.Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidadesde rvore.Daqui vem que os poetas podem arborizar os pssaros.Daqui vem que todos os poetas podem humanizaras guas.Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundocom as suas metforas.Que os poetas podem ser pr-coisas, pr-vermes,podem ser pr-musgos.Daqui vem que os poetas podem compreendero mundo sem conceitos.Que os poetas podem refazer o mundo por imagens,por eflvios, por afeto.

  • AUTORRETRATO

    Ao nascer eu no estava acordado, de forma queno vi a hora.Isso faz tempo.Foi na beira de um rio.Depois eu j morri 14 vezes.S falta a ltima.Escrevi 14 livrosE deles estou livrado.So todos repeties do primeiro.(Posso fingir de outros, mas no posso fugir de mim.)J plantei dezoito rvores, mas pode que s quatro.Em pensamento e palavras namorei noventa moas,mas pode que nove.Produzi desobjetos, 35, mas pode que onze.Cito os mais bolinados: um alicate cremoso, umabridor de amanhecer, uma fivela de prender silncios,um prego que farfalha, um parafuso de veludo etc etc.Tenho uma confisso: noventa por cento do queescrevo inveno; s dez por cento que mentira.Quero morrer no barranco de um rio: sem moscasna boca descampada!

  • O POETA

    Vo dizer que no existo propriamente dito.Que sou um ente de slabas.Vo dizer que eu tenho vocao pra ningum.Meu pai costumava me alertar:Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o somdas palavrasOu ningum ou zor.Eu teria treze anos.De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes quese perdia nos longes da BolviaE veio uma iluminura em mim.Foi a primeira iluminura.Da botei meu primeiro verso:Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.Mostrei a obra pra minha me.A me falou:Agora voc vai ter que assumir as suasirresponsabilidades.Eu assumi: entrei no mundo das imagens.

  • PALAVRAS

    Veio me dizer que eu desestruturo a linguagem. Eu de sestruturo a linguagem? Vejamos: eu estoubem sentado num lugar. Vem uma palavra e tira o lugar de debaixo de mim. Tira o lugar em queeu estava sentado. Eu no fazia nada para que a palavra me desalojasse daquele lugar. E eu nematrapalhava a passagem de ningum. Ao retirar de debaixo de mim o lugar, eu desaprumei. Ali shavia um grilo com a sua flauta de couro. O grilo feridava o silncio. Os moradores do lugar sequeixavam do grilo. Veio uma palavra e retirou o grilo da flauta. Agora eu pergunto: quemdesestruturou a linguagem? Fui eu ou foram as palavras? E o lugar que retiraram de debaixo demim? No era para terem retirado a mim do lugar? Foram as palavras pois que desestruturaram alinguagem. E no eu.

  • TRATADO GERAL DAS GRANDEZAS DO NFIMO

  • O CISCO

    (Tem vez que a natureza ataca o cisco para o bem.)Principais elementos do cisco so: gravetos, areia,cabelos, pregos, trapos, ramos secos, asas de mosca,grampos, cuspe de aves, etc.H outros componentes do cisco, porm de menosimportncia.Depois de completo, o cisco se ajunta, com certahumildade, em beiras de ralos, em raiz de parede,Ou, depois das enxurradas, em alguma depresso deterreno.Mesmo bem rejuntado o cisco produz volumes quasesempre modestos.O cisco infenso a fulgurncias.Depois de assentado em lugar prprio, o ciscoproduz material de construo para ninhos depassarinhos.Ali os pssaros vo buscar raminhos secos, trapos,asas de moscaPara a feitura de seus ninhos.O cisco h de ser sempre aglomerado que se igualaa restos.Que se iguala a restos a fim de obter a contemplaodos poetas.Alis, Lacan entregava aos poetas a tarefa decontemplao dos restos.E Barthes completava: Contemplar os restos narcisismo.Ai de ns!Porque Narciso a ptria dos poetas.Um dia pode ser que o lrio nascido nos monturosempreste qualidade de beleza ao cisco.

  • Tudo pode ser.At sei de pessoas que propendem a cisco mais doque a seres humanos.

  • POEMA

    A poesia est guardada nas palavras tudo queeu sei.Meu fado o de no saber quase tudo.Sobre o nada eu tenho profundidades.No tenho conexes com a realidade.Poderoso para mim no aquele que descobre ouro.Para mim poderoso aquele que descobre asinsignificncias (do mundo e as nossas).Por essa pequena sentena me elogiaram de imbecil.Fiquei emocionado e chorei.Sou fraco para elogios.

  • INFANTIL

    O menino ia no matoE a ona comeu ele.Depois o caminho passou por dentro do corpo domeninoE ele foi contar para a me.A me disse: Mas se a ona comeu voc, como queo caminho passou por dentro do seu corpo? que o caminho s passou renteando meu corpoE eu desviei depressa.Olha, me, eu s queria inventar uma poesia.Eu no preciso de fazer razo.

  • SOBRE IMPORTNCIAS

    Uma r se achava importantePorque o rio passava nas suas margens.O rio no teria grande importncia para a rPorque era o rio que estava ao p dela.Pois Pois.Para um artista aquele ramo de luz sobre uma latadesterrada no canto de uma rua, talvez para umfotgrafo, aquele pingo de sol na lata seja maisimportante do que o esplendor do sol nos oceanos.Pois Pois.Em Roma, o que mais me chamou ateno foi umprdio que ficava em frente das pombas.O prdio era de estilo bizantino do sculo IX.Colosso!Mas eu achei as pombas mais importantes do que oprdio.Agora, hoje, eu vi um sabi pousado na Cordilheirados Andes.Achei o sabi mais importante do que a Cordilheirados Andes.O pessoal falou: seu olhar distorcido.Eu, por certo, no saberei medir a importncia dascoisas: algum sabe?Eu s queria construir nadeiras para botar nasminhas palavras.

  • POIS POIS

    O Padre Antnio Vieira pregava de encostar as orelhasna boca do brbaro.Que para ouvir as vozes do choQue para ouvir a fala das guasQue para ouvir o silncio das pedrasQue para ouvir o crescimento das rvoresE as origens do Ser. Pois Pois.Bernardo da Mata nunca fez outra coisaQue ouvir as vozes do choQue ouvir o perfume das coresQue ver o silncio das formasE o formato dos cantos. Pois Pois.Passei muitos anos a rabiscar, neste caderno, osescutamentos de Bernardo.Ele via e ouvia inexistncias.Eu penso agora que esse Bernardo tem cacoete parapoeta.

  • POEMAS RUPESTRES

  • Por viver muitos anos dentro do matomoda aveO menino pegou um olhar de pssaro Contraiu viso fontana.Por forma que ele enxergava as coisaspor igualcomo os pssaros enxergam.As coisas todas inominadas.gua no era ainda a palavra gua.Pedra no era ainda a palavra pedra.E tal.As palavras eram livres de gramticas epodiam ficar em qualquer posio.Por forma que o menino podia inaugurar.Podia dar s pedras costumes de flor.Podia dar ao canto formato de sol.E, se quisesse caber em uma abelha, eras abrir a palavra abelha e entrar dentrodela.Como se fosse infncia da lngua.

  • A turma viu uma perna de formiga, desprezada,dentro do mato. Era uma coisa para ns muitoimportante. A perna se mexia ainda. Eu diria queaquela perna, desprezada, e que ainda se mexia,estava procurando a outra parte do seu corpo,que deveria estar por perto. Acho que o resto daformiga, naquela altura do sol, j estaria dentrodo formigueiro sendo velada. Ou talvez o restodo corpo estaria a procurar aquela pernadesprezada. Ningum viu o que foi que produziuaquela desunio do corpo com a perna desprezada.Algumas pessoas passavam por ali, naquele tratode terra, e ningum viu a perna desprezada. Todossamos a procurar o pedao principal da formiga.Porque pensando bem o resto da formiga era aperna desprezada. Fomos beira do rio mas sencontramos pedaos de folhas verdes carregadospor novas formigas. Achamos a seguir que as novasformigas que carregavam as folhas nos ombros, elasestavam indo para assistir, no formigueiro, aovelrio da outra parte da formiga. Mas a genteresolveu por antes tomar um banho de rio.

  • SE ACHANTE

    Era um caranguejo muito se achante.Ele se achava idneo para flor.Passava por nossa casaSem nem olhar de lado.Parece que estava montado num cochede princesa.Ia bem devagarConforme o protocoloA fim de receber aplausos.Muito achante demais.Nem parou para comer goiaba.(Acho que quem anda de coche no comegoiaba.)Ia como se fosse tomar posse de deputado.Mas o coche quebrouE o caranguejo voltou a ser idneo paramangue.

  • VENTO

    Se a gente jogar uma pedra no ventoEle nem olha para trs.Se a gente atacar o vento com enxadaEle nem sai sangue da bunda.Ele no di nada.Vento no tem tripa.Se a gente enfiar uma faca no ventoEle nem faz ui.A gente estudou no Colgio que vento o ar em movimento.E que o ar em movimento vento.Eu quis uma vez implantar uma costelano vento.A costela no parava nem.Hoje eu tasquei uma pedra no organismodo vento.Depois me ensinaram que vento no temorganismo.Fiquei estudado.

  • OS DOIS

    Eu sou dois seres.O primeiro fruto do amor de Joo e Alice.O segundo letral: fruto de uma natureza que pensa por imagens,Como diria Paul Valry.O primeiro est aqui de unha, roupa, chapue vaidades.O segundo est aqui em letras, slabas, vaidadesfrases.E aceitamos que voc empregue o seu amor em ns.

  • O LPIS

    por demais de grande a natureza de Deus.Eu queria fazer para mim uma naturezinhaparticular.To pequena que coubesse na ponta do meulpis.Fosse ela, quem me dera, s do tamanho domeu quintal.No quintal ia nascer um p de tamarino apenaspara uso dos passarinhos.E que as manhs elaborassem outras aves paracompor o azul do cu.E se no fosse pedir demais eu queria que nofundo corresse um rio.Na verdade na verdade a coisa mais importanteque eu desejava era o rio.No rio eu e a nossa turma, a gente iria tododia jogar cangap nas guas correntes.Essa, eu penso, que seria a minha naturezinhaparticular:At onde o meu pequeno lpis poderia alcanar.

  • PSSEGO

    ProustS de ouvir a voz de Albertine entrava emorgasmo. Se diz que:O olhar de voyeur tem condies de phalo(possui o que v).Mas pelo tatoQue a fonte do amor se abre.Apalpar desabrocha o talo.O tato mais que o ver mais que o ouvir mais que o cheirar. pelo beijo que o amor se edifica. no calor da bocaQue o alarme da carne grita.E se abre docementeComo um pssego de Deus.

  • CREME

    Sucuri pegou um bezerroE deu um forte abrao nele.Foi se enrolando se enrolando no corpodo bezerroFoi apertando o abrao apertandoAt quebrar todo osso do bezerro.O bezerro virou parece um creme.Eu estava perto.Eu assisti.O silncio do bezerro nem mexia.Depois a cobra engoliu o creme.

  • MENINO DO MATO

  • Eu queria usar palavras de ave para escrever.Onde a gente morava era um lugar imensamente e semnomeao.Ali a gente brincava de brincar com palavrastipo assim: Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra!A Me que ouvira a brincadeira falou:J vem voc com suas vises!Porque formigas nem tm joelhos ajoelhveise nem h pedras de sacristias por aqui.Isso traquinagem da sua imaginao.O menino tinha no olhar um silncio de choe na sua voz uma candura de Fontes.O Pai achava que a gente queria desver o mundopara encontrar nas palavras novas coisas de verassim: eu via a manh pousada sobre as margens dorio do mesmo modo que uma gara aberta na solidode uma pedra.Eram novidades que os meninos criavam com as suaspalavras.Assim Bernardo emendou nova criao: Eu hoje vi umsapo com olhar de rvore.Ento era preciso desver o mundo para sair daquelelugar imensamente e sem lado.A gente queria encontrar imagens de aves abenoadaspela inocncia.O que a gente aprendia naquele lugar era s ignornciaspara a gente bem entender a voz das guas edos caracis.A gente gostava das palavras quando elas perturbavamo sentido normal das ideias.Porque a gente tambm sabia que s os absurdosenriquecem a poesia.

  • Nosso conhecimento no era de estudar em livros.Era de pegar de apalpar de ouvir e de outros sentidos.Seria um saber primordial?Nossas palavras se ajuntavam uma na outra por amore no por sintaxe.A gente queria o arpejo. O canto. O gorjeio das palavras.Um dia tentamos at de fazer um cruzamento de rvorescom passarinhospara obter gorjeios em nossas palavras.No obtivemos.Estamos esperando at hoje.Mas bem ficamos sabendo que tambm das percepesprimrias que nascem arpejos e canes e gorjeios.Porm naquela altura a gente gostava mais das palavrasdesbocadas.Tipo assim: Eu queria pegar na bunda do vento.O pai disse que vento no tem bunda.Pelo que ficamos frustrados.Mas o pai apoiava a nossa maneira de desver o mundoque era a nossa maneira de sair do enfado.A gente no gostava de explicar as imagens porqueexplicar afasta as falas da imaginao.A gente gostava dos sentidos desarticulados como aconversa dos passarinhos no cho a comer pedaos demosca.Certas vises no significavam nada mas eram passeiosverbais.A gente sempre queria dar brazo s borboletas.A gente gostava bem das vadiaes com as palavras doque das prises gramaticais.Quando o menino disse que queria passar para aspalavras suas peraltagens at os caracis apoiaram.A gente se encostava na tarde como se a tarde fosseum poste.

  • A gente gostava das palavras quando elas perturbavamos sentidos normais da fala.Esses meninos faziam parte do arrebol comoos passarinhos.

  • Desde o comeo do mundo gua e cho se amame se entram amorosamentee se fecundam.Nascem peixes para habitar os rios.E nascem pssaros para habitar as rvores.As guas ainda ajudam na formao dos caracis e dassuas lesmas.As guas so a epifania da criao.Agora eu penso nas guas do Pantanal.Penso nos rios infantis que ainda procuram declivespara escorrer.Porque as guas deste lugar ainda so espraiadas paraalegria das garas.Estes pequenos corixos ainda precisam de formarbarrancos para se comportarem em seus leitos.Penso com humildade que fui convidado para obanquete dessas guas.Porque sou de bugre.Porque sou de brejo.Acho agora que estas guas que bem conhecem ainocncia de seus pssaros e de suas rvores.Que elas pertencem tambm de nossas origens.Louvo portanto esta fonte de todos os seres e de todasas plantas.Vez que todos somos devedores destas guas.Louvo ainda as vozes dos habitantes deste lugar quetrazem para ns, na umidez de suas palavras, a boainocncia de nossas origens.

  • O primeiro poema:O menino foi andando na beira do rioe achou uma voz sem boca.A voz era azul.Difcil foi achar a boca que falasse azul.Tinha um ndio terena que diz-quefalava azul.Mas ele morava longe.Era na beira de um rio que era longe.Mas o ndio s aparecia de tarde.O menino achou o ndio e a boca erabem normal.S que o ndio usava um apito dechamar perdiz que dava um cantoazul.Era que a perdiz atendia ao chamadopela cor e no pelo canto.A perdiz atendia pelo azul.

  • MEMRIAS INVENTADAS

  • O APANHADOR DE DESPERDCIOS

    Uso a palavra para compor meus silncios.No gosto das palavrasfatigadas de informar.Dou mais respeitos que vivem de barriga no chotipo gua pedra sapo.Entendo bem o sotaque das guas.Dou respeito s coisas desimportantese aos seres desimportantes.Prezo insetos mais que avies.Prezo a velocidadedas tartarugas mais que a dos msseis.Tenho em mim esse atraso de nascena.Eu fui aparelhadopara gostar de passarinhos.Tenho abundncia de ser feliz por isso.Meu quintal maior do que o mundo.Sou um apanhador de desperdcios:Amo os restoscomo as boas moscas.Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.Porque eu no sou da informtica:eu sou da invenciontica.S uso a palavra para compor meus silncios.

  • CASO DE AMOR

    Uma estrada deserta por dois motivos: por abandonoou por desprezo. Esta que eu ando nela agora porabandono. Chega que os espinheiros a esto abafandopelas margens. Esta estrada melhora muito de eu irsozinho nela. Eu ando por aqui desde pequeno. E sintoque ela bota sentido em mim. Eu acho que ela manjaque eu fui para a escola e estou voltando agora pararev-la. Ela no tem indiferena pelo meu passado.Eu sinto mesmo que ela me reconhece agora, tantosanos depois. Eu sinto que ela melhora de eu ir sozinhosobre seu corpo. De minha parte eu achei ela bemacabadinha. Sobre suas pedras agora raramente umcavalo passeia. E quando vem um, ela o segura comcarinho. Eu sinto mesmo hoje que a estrada carentede pessoas e de bichos. Emas passavam sempre por elaesvoaantes. Bando de caititus a atravessavam para vero rio do outro lado. Eu estou imaginando que a estradapensa que eu tambm sou como ela: uma coisa bemesquecida. Pode ser. Nem cachorro passa mais por ns.Mas eu ensino para ela como se deve comportar nasolido. Eu falo: deixe deixe meu amor, tudo vai acabar.Numa boa: a gente vai desaparecendo igual quandoCarlitos vai desaparecendo no fim de uma estradaDeixe, deixe, meu amor.

  • ACHADOUROS

    Acho que o quintal onde a gente brincou maiordo que a cidade. A gente s descobre isso depois degrande. A gente descobre que o tamanho das coisash que ser medido pela intimidade que temos com as coisas.H de ser como acontece com o amor. Assim,as pedrinhas do nosso quintal so sempre maiores doque as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo daintimidade. Mas o que eu queria dizer sobre o nossoquintal outra coisa. Aquilo que a negra Pombada,remanescente de escravos do Recife, nos contava.Pombada contava aos meninos de Corumb sobreachadouros. Que eram buracos que os holandeses,na fuga apressada do Brasil, faziam nos seus quintaispara esconder suas moedas de ouro, dentro de grandesbas de couro. Os bas ficavam cheios de moedasdentro daqueles buracos. Mas eu estava a pensar emachadouros de infncias. Se a gente cavar um buraco aop da goiabeira do quintal, l estar um guri ensaiandosubir na goiabeira. Se a gente cavar um buraco ao p dogalinheiro, l estar um guri tentando agarrar no rabode uma lagartixa. Sou hoje um caador de achadourosde infncia. Vou meio dementado e enxada s costas acavar no meu quintal vestgios dos meninos que fomos.Hoje encontrei um ba cheio de punhetas.

  • SOBRE IMPORTNCIAS

    Um fotgrafo-artista me disse outra vez: Veja quepingo de sol no couro de um lagarto para ns maisimportante do que o sol inteiro no corpo do mar.Falou mais: que a importncia de uma coisa no semede com fita mtrica nem com balanas nem combarmetros etc. Que a importncia de uma coisa hque ser medida pelo encantamento que a coisa produzaem ns. Assim um passarinho nas mos de uma criana mais importante para ela do que a Cordilheira dosAndes. Que um osso mais importante parao cachorro do que uma pedra de diamante. E um dentede macaco da era terciria mais importante para osarquelogos do que a Torre Eiffel. (Veja que s umdente de macaco!) Que uma boneca de trapos que abree fecha os olhinhos azuis nas mos de uma criana mais importante para ela do que o Empire StateBuilding. Que o cu de uma formiga mais importantepara o poeta do que uma Usina Nuclear. Sem precisarmedir o nus da formiga. Que o canto das guas e dasrs nas pedras mais importante para os msicos doque os rudos dos motores da Frmula 1. H umdesagero em mim de aceitar essas medidas. Porm nosei se isso um defeito do olho ou da razo. Se defeito da alma ou do corpo. Se fizerem algum examemental em mim por tais julgamentos, vo encontrarque eu gosto mais de conversar sobre restos de comidacom as moscas do que com homens doutos.

  • UM DOUTOR

    Um doutor veio formado de So Paulo. Almofadinha.Suspensrios, colete, botina preta de presilhas. E umtrejeito no andar de pomba-rolinha. No verbo, diga-sede logo, usava naftalina. Por caso, era um pernsticono falar. Pessoas simples da cidade lhe admiravama pose de doutor. Eu s via o casco. Fomos de tarde noBar O Ponto. Ele, meu pai e este que vos fala. Esteque vos fala era um rebelde adolescente. De prontoo doutor falou pra meu pai: Meus parabns Seo Joo,parece que seu filho agora endireitou! E meu pai:Ele nunca foi torto. Pintou um clima de urubu commandioca entre ns. O doutor pisou no rabo, eupensei. Ele ainda perguntou: E o comunismo dele? Estquarando na beira do rio entre as capivaras, o pai respondeu.O doutor se levantou da mesa e saiu comseu andar de vespa magoada.

  • FONTES

    Trs personagens me ajudaram a compor estasmemrias. Quero dar cincia delas. Uma, a criana;dois, os passarinhos; trs, os andarilhos. A criana medeu a semente da palavra. Os passarinhos me deramdesprendimento das coisas da terra. E os andarilhos, aprecincia da natureza de Deus. Quero falar primeirodos andarilhos, do uso em primeiro lugar que elesfaziam da ignorncia. Sempre eles sabiam tudo sobreo nada. E ainda multiplicavam o nada por zero o que lhes dava uma linguagem de cho. Para nuncasaber onde chegavam. E para chegar sempre desurpresa. Eles no afundavam estradas, mas inventavamcaminhos. Essa a pr-cincia que sempre vi nosandarilhos. Eles me ensinaram a amar a natureza.Bem que eu pude prever que os que fogem da naturezaum dia voltam para ela. Aprendi com os passarinhosa liberdade. Eles dominam o mais leve sem precisar termotor nas costas. E so livres para pousar em qualquertempo nos lrios ou nas pedras sem se machucarem.E aprendi com eles ser disponvel para sonhar. O outroparceiro de sempre foi a criana que me escreve. Ospssaros, os andarilhos e a criana em mim so meuscolaboradores destas Memrias inventadas e doadoresde suas fontes.

  • SOBRE O AUTOR

    Manoel de Barros (1916-2014) nasceu em Cuiab, mas foi criado numa fazenda prxima aCorumb. Comeou sua educao num internato em Campo Grande, e, aos doze anos, foimatriculado no Colgio So Jos, no Rio de Janeiro cidade onde viveu por mais de trintaanos. Em 1937 publica seu primeiro livro de poesia, Poemas concebidos sem pecado. Viaja pelaEuropa, estuda cinema e arte em Nova York. Em 1955, muda-se com a mulher Stella e os trsfilhos para o Pantanal. Vive um perodo de intensos e rsticos trabalhos para formar a fazenda;por isso, durante quase dez anos, pouco se dedica literatura. Nos anos 1960, vivendo emCampo Grande, premiado pelo livro Compndio para uso dos pssaros, e, nos anos 1970, volta cena literria com Matria de poesia. No incio dos anos 1990, sua obra potica reunida novolume Gramtica expositiva do cho (poesia quase toda). A partir de ento, conquista vriosprmios importantes como o APCA, o Jabuti e o Prmio Nestl. Nos anos 2000, sua obra publicada em Portugal, recebe prmios internacionais e traduzida para vrios idiomas.

  • RELAO DE OBRAS

    Poemas concebidos sem pecado [1937]Face imvel [1942]Poesias [1947]Compndio para uso dos pssaros [1960]Gramtica expositiva do cho [1966]Matria de poesia [1970]Arranjos para assobio [1980]Livro de pr-coisas [1985]O guardador de guas [1989]Concerto a cu aberto para solos de ave [1991]O livro das ignoras [1993]Livro sobre nada [1996]Retrato do artista quando coisa [1998]Ensaios fotogrficos [2000]Tratado geral das grandezas do nfimo [2001]Poemas rupestres [2004]Menino do mato [2010]Escritos em verbal de ave [2011]

    MEMRIAS INVENTADASInfncia [2003]A segunda infncia [2006]A terceira infncia [2008]

    LIVROS INFANTISExerccios de ser criana [1999]O fazedor de amanhecer [2001]Cantigas por um passarinho toa [2003]Poeminha em Lngua de brincar [2007]

    CapaFolha de RostoCrditosSumrioCarta Antnio HouaissMANOEL ALM DA RAZO Jos CastelloMEU QUINTAL MAIOR DO QUE O MUNDOMANOEL POR MANOEL

    POEMAS CONCEBIDOS SEM PECADOSABASTIOANTONINHA-ME-LEVAINFORMAES SOBRE A MUSA

    FACE IMVELEU NO VOU PERTURBAR A PAZOS GIRASSIS DE VAN GOGH

    POESIASNA ENSEADA DE BOTAFOGOODE VINGATIVA

    COMPNDIO PARA USO DOS PSSAROSO MENINO E O CRREGOUM BEM-TE-VI

    GRAMTICA EXPOSITIVA DO CHOAntissalmo por um desheriDESARTICULADOS PARA VIOLA DE COCHO

    MATRIA DE POESIATodas as coisas cujos valores podem serO ABANDONO (PARTE FINAL)

    ARRANJOS PARA ASSOBIO(A um Pierr de Picasso)H quem receite a palavra ao ponto de osso, oco;O poema antes de tudo um inutenslio.SUJEITOVISITA

    LIVRO DE PR-COISASAGROVALNOS PRIMRDIOSO QUERO-QUEROA NOSSA GARA

    O GUARDADOR DE GUASEsse Bernardo. Bernardo da Mata. Apresento.De tonto tenho roupa e caderneta.SEIS OU TREZE COISAS QUE EU APRENDI SOZINHORETRATO QUASE APAGADO EM QUE SE PODE VER PERFEITAMENTE NADA

    CONCERTO A CU ABERTO PARA SOLOS DE AVEQuando eu nasciCADERNO DE ANDARILHOPREFCIO

    O LIVRO DAS IGNORASNo descomeo era o verbo.Para entrar em estado de rvore preciso partir deO rio que fazia uma volta atrs de nossa casa era aO mundo meu pequeno, Senhor.Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nasBernardo quase rvore.AUTORRETRATO FALADO

    LIVRO SOBRE NADAO pai morava no fim de um lugar. mesa o doutor perorou: Vocs que so felizesDepois de ter entrado para r, para rvore, para pedraPrefiro as linhas tortas, como Deus.No por me gavarCarrego meus primrdios num andor.Sei que fazer o inconexo aclara as loucurasVi um prego do Sculo XIII, enterrado at o meioVenho de nobres que empobreceramAS LIES DE R.Q.O ANDARILHO

    RETRATO DO ARTISTA QUANDO COISARetrato do artista quando coisa: borboletasUso um deformante para a voz.Aprendo com abelhas do que com aeroplanosEste um caderno de haver frases nele.Quando o mundo abandonar o meu olho.A menina apareceu grvida de um gavio.

    ENSAIOS FOTOGRFICOSO FOTGRAFOGORJEIOSDESPALAVRAAUTORRETRATOO POETAPALAVRAS

    TRATADO GERAL DAS GRANDEZAS DO NFIMOO CISCOPOEMAINFANTILSOBRE IMPORTNCIASPOIS POIS

    POEMAS RUPESTRESPor viver muitos anos dentro do matoA turma viu uma perna de formiga, desprezada,SE ACHANTEVENTOOS DOISO LPISPSSEGOCREME

    MENINO DO MATOEu queria usar palavras de ave para escrever.Nosso conhecimento no era de estudar em livros.Desde o comeo do mundo gua e cho se amamO primeiro poema:

    MEMRIAS INVENTADASO APANHADOR DE DESPERDCIOSCASO DE AMORACHADOUROSSOBRE IMPORTNCIASUM DOUTOR

    FONTESSOBRE O AUTORRELAO DE OBRAS