poema da semana

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1 Paralelamente ouço setembro no fundo das tardes e o ódio violento dos garotos a atirarem pedras aos cães por entre a monotonia das varandas com flores artificiais compradas aos apregoadores de quinquilharias na quinta-feira de s. vapor. os homens traziam o ritmo da viagem mumificada nos rostos de cera. os iates (das ilhas) largavam manhã dentro pela alta geografia semeada de brumas e ciclones. no fundo das avenidas explode o movimento das camionetas e o batuque das passadas enroladas no espasmo dos casacos a acordarem o romance dos casais deitados contra camélias brancas. a tarde flutua no fundo dos esgotos (como um cão estatelado no tapete das agências) e adormece paralelamente no instinto dos homens. José Henrique Borges Martins in Por dentro das viagens, Angra do Heroísmo, 1973

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Page 1: Poema da semana

1

Paralelamente

ouço setembro no fundo das tardes e

o ódio violento dos garotos

a atirarem pedras aos cães

por entre a monotonia das varandas

com flores artificiais compradas

aos apregoadores de quinquilharias

na quinta-feira de s. vapor.

os homens traziam o ritmo

da viagem mumificada nos rostos de cera.

os iates (das ilhas)

largavam manhã dentro pela alta

geografia semeada de brumas e ciclones.

no fundo das avenidas explode

o movimento das camionetas e

o batuque das passadas

enroladas no espasmo dos casacos

a acordarem o romance dos casais

deitados contra camélias brancas.

a tarde flutua no fundo

dos esgotos (como um cão estatelado

no tapete das agências) e adormece

paralelamente no instinto dos homens.

José Henrique Borges Martins in Por dentro das viagens, Angra do Heroísmo, 1973

Page 2: Poema da semana

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poema sem vida de repente as escadas da tua sombra

e eu lavado dos teus olhos sumiste

ante o anoitecer

chovia fevereiro nas minhas mãos

e o infinito por embalar. e tu longe

sobre o azul salgado

a neve sobre o frio verde

na casa branca da Barrela o mistério da pedra. negra

a solidão do cão de guarda. amado ser de outra ilha

a madrugada. e caem os lábios por entre nuvens de fogo e semente

a sede que afaga outra filha

repatriado destino

partimos para cada um

sem o corpo do adeus até chegarmos

morrer é dar de cantigas ao amanhecer

no fundo do rádio sem pilhas

e assim te canto por todos os cantos até ser dia

Sidónio Bettencourt in Já não vem ninguém, 2010

Page 3: Poema da semana

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Oiço teus passos nos espelhos do estio, no negro

basalto das ruas, ao fundo: a saia de espuma, um fresco

rumor de água em volta da cintura, a grande dignidade

marinha. Pés de chuva trazem-te a mim: duas sombras

de alegria, os dedos fechados sobre o fogo. À distância

és a cintilação da terra, cheiro a limão, o sino duma

súbita revoada de pombos bravos, porosa virgindade da cal.

Oiço teus passos nas raízes das hortênsias, na diurna

humidade das paredes, entre as janelas da ilha, perto do mar.

Se vens descalça, os sapatos nas mãos, o rumor da tua

saia deixa uma esmeralda de luz sobre as ervas.

Eduardo Bettencourt Pinto, in Emersos vestígios

Page 4: Poema da semana

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Autogénese Nascitura estava

sem faca nos dentes

cómoda e impura

de não ter vontade

de bater nas gentes.

Nasce-se em setúbal

nasce-se em pequim

eu sou dos açores

(relativamente

naquilo que tenho

de basalto e flores)

mas não é assim:

a gente só nasce

quando somos nós

que temos as dores;

pragas e castigos

foram-me gerando

por trás dos postigos

e um fórceps de raiva

me arrancou toda

em sangue de mim.

(…)

Natália Correia in O Vinho e a Lira

Page 5: Poema da semana

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Ladainha dos póstumos Natais

Há-de vir um Natal e será o primeiro em que se veja à mesa o meu lugar vazio Há-de vir um Natal e será o primeiro em que hão-de me lembrar de modo menos nítido Há-de vir um Natal e será o primeiro em que só uma voz me evoque a sós consigo Há-de vir um Natal e será o primeiro em que não viva já ninguém meu conhecido Há-de vir um Natal e será o primeiro em que nem vivo esteja um verso deste livro Há-de vir um Natal e será o primeiro em que terei de novo o Nada a sós comigo Há-de vir um Natal e será o primeiro em que nem o Natal terá qualquer sentido Há-de vir um Natal e será o primeiro em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão-Ferreira

Page 6: Poema da semana

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Estrelas Cintilantes

São tão brilhantes, Tão cintilantes, A piscar no céu, Mesmo em cima do nosso chapéu. Certo dia, Caiu uma estrelinha, Que precisava de companhia, De uma rapariguinha. Encontrou uma menina, Já a dormir, Era pequenina, Mas começou a sorrir. A menina estava encantada, Assim como a estrelinha, Ficou aconchegada, Com a nova amiguinha. Num outro dia, tinha a estrelinha de partir, despediu-se da sua companhia, que estava a sorrir.

Page 7: Poema da semana

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Ser Poeta

Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior

Do que os homens! Morder como quem beija!

É ser mendigo e dar como quem seja

Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor

E não saber sequer que se deseja!

É ter cá dentro um astro que flameja,

É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!

Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...

É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...

É seres alma e sangue e vida em mim

E dizê-lo cantando a toda gente!

Florbela Espanca

Page 8: Poema da semana

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(forma 2) a mel e medo o meu passo avança devagar à porta entreaberta da noite. mergulhado em silêncio, alguém respira. e eu a mel e medo encostada à porta possível da noite. porta entreaberta ou porta de notícias e recados e corpos por escrever. porta de mel e medo e de passos devagar.

Judite Jorge in Setembro e outras estações

Page 9: Poema da semana

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Fundo do mar

No fundo do mar há brancos pavores, Onde as plantas são animais E os animais são flores. Mundo silencioso que não atinge A agitação das ondas. Abrem-se rindo conchas redondas, Baloiça o cavalo-marinho. Um polvo avança No desalinho Dos seus mil braços, Uma flor dança, Sem ruído vibram os espaços. Sobre a areia o tempo poisa Leve como um lenço. Mas por mais bela que seja cada coisa Tem um monstro em si suspenso.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Page 10: Poema da semana

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Nas palhinhas

Numas palhinhas deitado

abrindo os olhos à luz

loiro, gordinho, rosado

nasce o Menino Jesus.

Uma vaquinha bafeja

seu lindo corpo divino

de mansinho que a não veja

e não se assuste o Menino!

João Saraiva

Page 11: Poema da semana

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Ladainha dos póstumos Natais

Há-de vir um Natal e será o primeiro em que se veja à mesa o meu lugar vazio Há-de vir um Natal e será o primeiro em que hão-de me lembrar de modo menos nítido Há-de vir um Natal e será o primeiro em que só uma voz me evoque a sós consigo Há-de vir um Natal e será o primeiro em que não viva já ninguém meu conhecido Há-de vir um Natal e será o primeiro em que nem vivo esteja um verso deste livro Há-de vir um Natal e será o primeiro em que terei de novo o Nada a sós comigo Há-de vir um Natal e será o primeiro em que nem o Natal terá qualquer sentido Há-de vir um Natal e será o primeiro em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão-Ferreira

Page 12: Poema da semana

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Semente cultivada

Semente cultivada, Em terra adoentada, Longe de água, Seio longínquo;

Crente na vida, Semente germinaste, Tornas-te pinheiro, Nunca antes sonhado,

Tamanha dimensão, A luz cativou, Era ela a estrela Do nosso senhor;

Pinheiro manso, Que tornas-te bravo, Foste a via infante, Dos três reis magos;

Mapa do menino, Caminho do senhor, Mapa ancestral, Do filho do criador;

Entre ramos, E o teu tronco, A luz da lua, encaminhava, Os incansáveis perseguidores;

Demandas tradições ancestrais, Sempre conhecidas, Comungas a fé, Em nós…

Page 13: Poema da semana

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Viver na Beira-Mar

Nunca o mar foi tão ávido quanto a minha boca. Era eu quem o bebia. Quando o mar no horizonte desaparecia e a areia férvida não tinha fim sob as passadas, e o caos se harmonizava enfim com a ordem, eu havia convulsamente e tão serena bebido o mar.

Fiama Hasse Pais Brandão, in "Três Rostos - Ecos"

Page 14: Poema da semana

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É tão linda a nossa gente

A cantar e a dançar

A paixão está presente

Com o mote a pulular.

O valor da nossa Gente

Traz o timbre são na voz;

É um gosto que se sente

No coração de todos nós.

E vibra a diversão

De quem o faz e recria

E brilha o verso-canção,

Com o calor da poesia.

E Viva o Carnaval!

É riqueza terceirense;

Viva o grande Festival

Onde a alegria vence!

Rosa Silva

Page 15: Poema da semana

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O mar da minha vida não tem longes.

É tudo água só! E o horizonte

Funde-se no céu. Por sobre a ponte

Marcha, sinistra, a procissão dos monges.

Velas acesas, opas, ladainha,

E o rio deslizando para o mar…

E vêm as raparigas à tardinha,

Buscar a água à fonte, sem cantar.

Ermida branca no monte,

Nossa Senhora da Paz…

Peregrino voltei sem ser ouvido.

Rasguei meus pés pelo caminho ido.

Ai, a calma de tudo quanto jaz

No frio esquecimento! Sobre a ponte,

A procissão caminha. Sob o arco,

Singrou, sereno, um barco

A caminho do mar…

Ó perdida visão da minha Ânsia!

Vejo-me só, na lúgubre distância,

Cadáver dos meus sonhos a boiar…

Armando Côrtes-Rodrigues in Antologia de Poemas