pocock, j. introd.; o conceito de linguagem e o métier d'historlen; virtudes, direitos e maneiras;...

96
5/28/2018 POCOCK,J.Introd.;Oconceitodelinguagemeomtierd'historlen;Virtudes,di... http://slidepdf.com/reader/full/pocock-j-introd-o-conceito-de-linguagem-e-o-metier-dhisto

Upload: felipe-cavalcanti

Post on 18-Oct-2015

513 views

Category:

Documents


4 download

TRANSCRIPT

  • E m lu g a r do p a n e g r ic o in so sso c a ra c te r s tic o

    d e b o a p a rce la dos h is to riad o res co n v en c io n a is

    d a s id ia s , P o c o c k e fe tu a u m a re c o n s tru o

    ap u ra d a do u n iv e rso d e te rm o s e co n c e ito s de

    q ue se n u trem as te rm in o lo g ia s p o ltica s , sem

    a b r ir m o de in c u rs e s re v ig o ra n te s so b re os

    ch am ad o s g ran d es au to res do p an teo do p e n

    sa m en to po ltico . L u ta s en tre fac es , p a rtid o s

    p o lt ic o s e l id e ra n a s p a r la m e n ta re s ; r iv a lid a

    d es d o u tr in ria s e n v o lv e n d o f ra e s e se to re s

    das cam ad as d irig en te s in cu m b id as do trab a lh o

    d e fo rm u lao in te lec tu a l d a a tiv id ad e po ltica ;

    co n ten c io so s re la tiv o s ao sta tu s e ao p o d e rio das

    in s titu i e s re lig io sa s e d o s d ir ig e n te s e c le s i

    s tic o s; a sc e n s o e c r ise d o Im p rio c o lo n ia l

    b rit n ic o , e v iab ilizao d a in d ep en d n c ia n o r

    te -am erica n a - e is a lguns dos t p ico s ab o rd ad o s

    n es te vo lu m e pe las len tes a rgu tas e re fin ad a s de

    P o co ck , n u m fa sc in a n te c o n v ite ao le ito r p a ra

    u m a c i n c ia d a p o l t ic a im e rsa n a h is t r ia .

  • A o lad o de S k in n e r, P o c o c k fe z re v iv e r o in te re sse

    heu rs tico p e lo p en sam en to p o ltico , co n ced e n d o -lh e a c o n

    d i o p r iv ile g ia d a de d isc u rso , m as a g en c iad o p o r a to res

    h is t rico s s itu ad o s e fu n d am en te en g a jad o s nas lu tas po l

    ticas de d e te rm in ad o m o m en to .

    A p a rtir de um co n h ec im en to eru d ito p rim o ro so sob re

    as v ira d a s d a h is t r ia do p e n sa m e n to p o lt ic o - d esd e a

    A n tig id ad e , p assan d o pelos m odelos ren asc en tis ta s , a t as

    f rm u las invocadas p e las ex p lo s es rev o lu c io n rias condu-

    cen tes aos reg im es d em o cr tico s o au to r d em o n s tra aqui

    suas teses e argu m en to s sobre o p en sam en to po ltico ang lo-

    am ericano , com n fase no scu lo X V III, e m ais refle te , a in

    da, a resp e ito da n a tu reza de seu p ro je to in te lec tual.

    O cerne des ta co le tn ea a anlise das linguagens p o

    lticas, ap reend idas em m eio s co n d i es h is t ricas de sua

    em e rg n c ia e e x a m in a d a s em fu n o d e seu s liam es co m

    as p r ticas po lticas. N esse p asso , vo adqu irin d o re levo os

    graus de au to n o m ia ou h e te ro n o m ia c o n fe rid o s s in s titu i

    es po lticas e re lig io sas no in te rio r do d isc u rso po ltico .

  • A re c o n s tru o d o c o n te x to l in g s t ic o , d e n tro do

    qual o d isc u rso p o ltic o a s su m e su a s fe i e s , e x ig e a in

    da q u e se leve em c o n ta o s is te m a in te iro e m su a c o m

    p le x id a d e e d ife re n c ia o - a u to re s c l s s ic o s e m e

    n o r e s n o in tu i to d e id e n t i f i c a r ta n to a s b a l i z a s e

    c o n s t r i e s d e r iv a d a s d a te ia d e c o n v e n e s v ig e n te ,

    co m o os p a r m e tro s re c o n h e c v e is de in o v ao . P o r fo r

    a de ta is p ro c e d im e n to s , P o c o c k r e v ita l iz o u u m a v e r

    ten te c o n te x tu a lis ta na h is t r ia d as id ia s p o ltic a s , a te n

    ta , de um la d o , ao s m a te r ia is e x p re s s iv o s e , de o u tro ,

    p re o c u p a d a em d e s lin d a r a g ra m tic a su b ja c e n te ao s te x

    to s e s tu d a d o s .

    S em d e sc u ra r d as c o n s tr i e s n o s p la n o s e c o n m i

    co , p o ltic o , m ilita r, re l ig io s o , e ta m p o u c o d as r e la e s

    in tra -e s ta ta is tu m u ltu a d a s n u m a E u ro p a a b ra o s co m

    p re te n s e s h e g e m n ic a s d as d iv e rsa s p o t n c ia s , P o c o c k

    lo g ra e n ra iz a r o d eb a te p o ltic o no h o r iz o n te de a l te rn a

    tiv as co m q u e se d e f ro n ta v a m os p ro ta g o n is ta s e in s t i

    tu i e s e n re d a d o s n e sse e m b a te .

  • Copyright 2003 by J. G. A. Pocock

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Pocock, J. G. A., 1924-Linguagens do Iderio Poltico / J. G. A. Pocock; Sergio Miceli

    (org.); traduo Fbio Fernandez. - So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2003. - (Clssicos; 25)

    ISBN 85-314-0754-0

    1. Gr-Bretanha - H istria 2. Estados Unidos - Histria 3. Poltica -H is t ria I. Ttulo. II. Srie.

    02-6586 CD D-320.09

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Iderio poltico: H istria 320.092. Pensamento poltico: H istria 320.09

    Direitos cm lngua portuguesa reservados :

    Edusp - Editora da Universidade de So PauloAv. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 3746o andar - Ed. da Antiga Reitoria - Cidade Universitria05508-900 - So Paulo - SP - Brasil Fax (Oxxl 1) 3091-4151Tel. (Oxxl 1) 3091-4008/3091-4150www.usp.br/edusp -e -m ail: [email protected]

    Impresso no Brasil 2003

    Foi feito o depsito legal

  • SUMRIO

    A p r e s e n ta o ..................................................................................................................................................................9

    1. INTRODUO: O ESTADO DA ARTE ......................................................................................................................................23

    2. O CO NCEITO D E LINGUAGEM E O M TIER D 'H ISTO R lEN ........................................................................................63

    3. V IRTU DES, DIREITOS E M AN EIRA S ......................................................................................................................................83

    4. A UTORID A DE E PROPRIED A DE ........................................................................................................................................ 101

    5. M ODALIDADES DO TEM PO POLTICO E DO TEM PO

    H IST RICO NA INGLATERRA DO INCIO DO SCULO XVIII ......................................................................127

    6. A M O BILID A D E DA PROPRIED A DE E O

    N A SCIM EN TO DA SO CIO LO G IA DO SCULO X V I I I .......................................................................................... 141

    7. IIU M E E A REVOLUO AM ERICANA .......................................................................................................................... 167

    8. O D ECLNIO E QUEDA DE G IBBON E A VISO DE M UNDO DO FINAL DO ILUM INISM O ..................187

    9. JOSIAH TU CK ER E BURKE, LO CK E E P R IC E ...................................................................................................................203

    10. A ECO N OM IA POLTICA NA AN LISE DE BURKE DA REVOLUO FRANCESA ...................................... 245

    11. 1776 - A REV O LU O CONTRA O P A R L A M E N T O ........................................................................................................269

    12. IM PRIO , ESTADO E CONFED ERA O ........................................................................................................................ 289

    13. O PEN SA M EN TO POLTICO NO ATLNTICO DE FALA INGLESA, 1760-1790 (PARTE 1) ...........................323

    14. O PEN SA M EN TO POLTICO NO ATLNTICO DE FALA INGLESA, 1760-1790 (PARTE 2) ........................... 363

    15. A LIBERDA D E RELIGIO SA E A D ESSACRALIZAO DA P O L T IC A ...................................................................401

    16. D EN TRO DOS LIM ITES: AS DEFINIES DE ORTODOXIA .....................................................................................433

    7

  • APRESENTAO

    UM GIRO LINGSTICO NA HISTRIA DAS IDIAS POLTICAS

    Em entrevista que nos concedeu recentemente, o historiador britnico John Pocock diz que sempre foi interessado na historiografia como uma espcie de pensamento poltico 1. A historiografia a que est se referindo menos um trabalho de ou sobre narrao de fatos do que a anlise e a reconstruo do discurso poltico produzido pelos atores histricos, direta ou indiretamente engajados na ao poltica de seu tempo. Evidentemente, estudar o discurso poltico implica estudar fatos histricos, pois faz parte desse enfoque pensar os discursos como aes - atos de fala , para usar o termo da filosofia da linguagem contempornea - , para reagir a fatos passados (geralmente aes humanas), modificar fatos presentes ou criar futuros. Mas o interesse maior de seu mtier so as diferentes maneiras pelas quais esses atores percebem e refletem sobre tais fatos.

    J em seu aclamado The Machiavellian Moment (Princeton University Press, 1975), Pocock serviu-se do estudo dos discursos polticos produzidos na Itlia renascentista e na Inglaterra dos sculos XVII e XVIII para juntar os fios de uma longa tradio do pensamento poltico - o chamado Humanismo Cvico, uma verso renascentista do pensamento republicano nascido na Antigidade Clssica - e traar suas diversas mutaes at o raiar da Independncia Americana. Esta coletnea de ensaios que agora a Edusp presenteia ao leitor brasileiro uma primorosa seleo

    1. Cf. Lua Nova, 51: 31-40, 2000.

    9

  • LINGUAGENS DO IDERIO POLTICO

    (proposta por Sergio Miceli em conjunto com o prprio autor) de textos escritos aps aquele livro, que em alguns casos complementam, e em outros sintetizam, seus pontos de vista sobre a histria do pensamento poltico anglo-americano, principalmente o do sculo XVIII, e sobre a prpria natureza de seu trabalho historiogrfico.

    Esta breve apresentao no pretende, claro, discutir cada um desses ensaios, mas apenas chamar a ateno do leitor para algumas de suas notveis realizaes. Em especial: a reconstruo da estrutura das linguagens polticas no perodo histrico estudado pelo autor, juntam ente com a anlise de seu constante emprego e inovao pelos escritores polticos do tempo; e a abordagem do modo como as instituies polticas e religiosas so justificadas (ou atacadas) pelo discurso poltico, estabelecendo assim possibilidades, mas tambm limites, para se amoldarem ao fluxo dos acontecimentos.

    Lngua e Fala

    Interpretar o pensamento dos escritores polticos a partir de seu contexto lingstico uma idia cara a Pocock, assim como a diversos historiadores do pensamento poltico que hoje ensinam na Universidade de Cambridge (Inglaterra), ou l se formaram nos ltimos trinta anos. Apesar de ter lecionado em universidades norte-am ericanas, Pocock um dos expoentes dessa escola, ao lado de Quentin Skinner, que conhecemos aqui no Brasil graas a tradues de seus instigantes estudos sobre o pensamento poltico renascentista e protestante, e em especial sobre Maquiavel e Hobbes2.

    Como os dois primeiros ensaios desta coletnea tratam de esclarecer, a tarefa de refazer o contexto lingstico bastante complexa, pois envolve no s delimitar a poca e o lugar no qual supostamente operou, mas tambm estudar, nessas fronteiras, tanto grandes autores - o que hoje chamaramos de clssicos - quanto autores menores. A delimitao das fronteiras, alis, no pode ser feita a priori, pois s a leitura dos textos concretos, dos problemas e das polmicas que os autores travaram entre si permitem estabelecer uma hiptese sobre os perodos. E tambm s essa leitura torna possvel uma primeira hiptese sobre a gramtica das linguagens polticas empregadas, a qual fornece como que o substrato para as intervenes dos autores. Da que Pocock v, numa frouxa analogia com a lingstica saussureana,

    2. Q. Skinner, M aquiavel (So Paulo, Brasiliense, 1988); Av Fundaes do Pensamento Poltico M oderno (So Paulo, Cia das Letras, 1996); c Razo e Retrica na Filosofia de Hobbes (So Paulo, Unesp, 1999).

    10

  • APRESENTAO

    situar seu trabalho em dois nveis: o da lngua , que o contexto lingstico, e o da fa la , que o modo pelo qual um sujeito (o autor) se apropria da langue, seja para reafirm-la seja at para inov-la profundamente. A interpretao de um texto poltico, portanto, jamais pode resignar-se a uma leitura vertical da obra, como se o seu autor constitusse um depsito hermeticamente fechado de todos os sentidos da mesma. Ela deve, isso sim, situ-los (o texto e a obra) dentro de um conjunto mais amplo de convenes ou questes paradigmticas ou modos de enfrentar essas questes, comuns a vrios autores mais ou menos contemporneos - uma comunidade de falantes de uma linguagem poltica, que a atualiza atravs de suas intervenes particulares. Como essa atualizao pensada como atos de fala, o sentido da langue e do uso que o sujeito faz dela devem encontrar seu ponto de fuga no mundo de acontecimentos que as paroles pretendem modificar. As interaes entre um e outro, por sua vez, acabam por modificar a prpria langue.

    Fundamental, portanto, num trabalho dessa natureza, o esforo de decifrar a gramtica mais profunda que se supe estar nos textos estudados: seus termos bsicos, as ocasies tpicas em que so empregados, o modo pelo qual se com plementam, e se opem e assim por diante. Quando se adota essa perspectiva, dificilmente o historiador pode se contentar com os grandes autores, os clssicos , pois o exame do maior nmero e variedade deles, supostamente situados num mesmo contexto, por diminuto que seja o flego intelectual de suas obras, decisivo para conhecer aquela gramtica.

    Poder-se-ia objetar que tal procedimento leva a uma descaracterizao dos clssicos, ou a uma diluio deles numa infinidade de autores filosoficamente pobres ou pouco inspirados. Mas, ao contrrio, o desvendamento dessa gramtica acaba ajudando a entender por que esse ou aquele autor poderia ser considerado um clssico - por conta, por exemplo, dos lances mais ousados ou consistentes que vieram a realizar no interior da trama lingstica em que estavam situados.

    Assim, o intuito de desvendar as linguagens polticas operantes no sculo XVIII de lngua inglesa leva Pocock a investigar, em alguns dos ensaios aqui publicados, no autores, mas termos-chave, cujo relacionamento recproco, em com plementaridade ou oposio, constituiria o cerne de uma determinada langue comum de autores - tanto aliados quanto adversrios - que intervieram no perodo. Vamos encontrar, ento, estudos sobre as complementaridades/oposies entre as noes de virtude, corrupo e direito , direito e maneiras , entre autoridade e liberdade , entre propriedade real e propriedade mvel e assim por diante. Contudo, isso no o impede de fazer, em outros ensaios desta mesma coletnea, uma investigao mais especfica de autores, tais como David Hume, Adam Smith, Edmund Burke, Edward Gibbon - para ficar nos mais conhecidos - justa-

    u

  • LINGUAGENS DO IDERIO POLTICO

    mente aqueles que, a seu ver, fizeram os lances mais ousados ou consistentes dentro de um mesmo contexto lingstico.

    O Contexto Britnico

    Falemos um pouco do contexto concreto que motivou os estudos de Pocock. Como dissemos, o centro de suas preocupaes o pensamento poltico de lngua inglesa, e seus estudos giram em torno das linguagens polticas em operao no perodo que vai do advento da Revoluo Gloriosa, nos anos de 1670-1690, at o advento da Independncia Americana e da Revoluo Francesa, entre os anos de 1770-1790. Convm introduzir primeiro o cenrio dos acontecimentos relevantes que vo informar os autores e as linguagens que empregam.

    Entre esses acontecimentos, Pocock destaca o desfecho da Revoluo de 1688, com a renncia de James II, a ascenso de uma casa no-britnica Coroa e a conseqente excluso dos Stuart da sucesso monrquica. Com esse desfecho, a Inglaterra passa a se envolver mais profundamente na geopoltica da Europa Continental. O envolvimento continua a se aprofundar quando, por falta de sucessores diretos, a casa de Orange substituda pela de Hanover, alem.

    A Frana vinha disputando com a Holanda o esplio do imenso imprio colonial espanhol, que estava em franco colapso. Com a ida de Guilherme de Orange ao trono ingls, o rei Lus XIV passa a defender os direitos dos Stuart ao trono, e a acusar o Revolution Settlement de usurpao. Isso vai levar a uma guerra de nove anos entre a Frana, de um lado, e a Inglaterra e Holanda, de outro3. Algum tempo depois, a Frana vai se intrometer na sucesso da coroa espanhola e na sucesso austraca - o que leva os ingleses a acus-la de tentar estabelecer uma monarquia universal na Europa. Tudo isso desencadeia uma nova srie de guerras que se estender por quase todo o sculo, envolvendo, claro, no s o territrio europeu, mas todos os territrios coloniais ultramarinos. O sucesso da Inglaterra na maioria desses confrontos vai elev-la condio de potncia colonial de primeira grandeza.

    Mas a guerra do sculo XVIII havia se tornado extremamente dispendiosa, tanto por causa do desenvolvimento de novas tecnologias militares, quanto porque, com as sucessivas guerras, os pases envolvidos viram-se na contingncia de manter

    3. E poltica inglesa dc formao dc um Reino Unido com as outras naes das ilhas britnicas - como a Unio com a Esccia, em 1707 - a fim de evitar que, tambm elas, acabassem questionando os resultados da Revoluo.

    12

  • APRESENTAO

    um exrcito continuamente pronto e pago para o combate, em vez de recrut-lo e dispens-lo to logo uma guerra terminasse. A Inglaterra, por sua vez, enquanto se tornava potncia colonial, constitua um aparato administrativo que cuidava no apenas de suas fronteiras naturais, mas tambm de suas novas fronteiras coloniais e de seus novos sditos de alm-mar. No auge de suas atividades expansionistas, os gastos do governo passaram de cerca de 2 milhes de libras (como usualmente ocorria em tempo de paz) para 150 milhes de libras. Isto , cresceram 75 vezes.

    Para fazer frente a essa presso financeira, um emprego sem precedentes de emprstimos de particulares Coroa teve de ser mobilizado. Os emprstimos oriundos de uma comunidade bancria internacional prtica corrente desde fins do perodo medieval. Mas agora os mecanismos de captao de fundos tornaram-se muito mais diversificados e complexos, requerendo uma administrao governamental igualmente complexa. Em seu conjunto, o sistema ficou conhecido na Inglaterra como o Crdito Pblico ou Dvida Nacional . Para sua operao regular, foi decisiva a fundao do Banco da Inglaterra nos anos de 1690, que passou a centralizar e a administrar a captao dos emprstimos e a estimular a barganha de papis do Tesouro nas bolsas de Londres e Amsterd.

    O fluxo contnuo de crdito sustentava-se na promessa do governo ingls de pagar a dvida no futuro, atravs dos impostos de seus cidados. Esse fato era percebido de formas divergentes pelo pblico engajado no debate poltico - a repblica das letras, como se dizia ento: para alguns, significava chances contnuas de crescimento do comrcio e da manufatura; para outros, uma perigosa hipoteca feita pelo governo dos bens de seus cidados, especialmente a propriedade da terra. Perigosa politicamente, porque era vista como uma virtual entrega, aos credores, daquilo que se considerava um dos fundamentos da independncia poltica do pas.

    At 1688, o debate poltico britnico girou em torno da dialtica autoridade versus liberdade. At onde deveria ir a autoridade do monarca? O monarca deteria uma soberania absoluta ou limitada? Se limitada, quais seriam esses limites? Por outro lado, o que constituiria a liberdade dos sditos? Fazer s aquilo sobre o qual a lei silenciava, ou cooperar com o monarca na elaborao das leis, atravs de uma casa de seus representantes, o Parlamento? Grosso modo , os que defendiam que a balana da Constituio deveria pender para o lado da autoridade do monarca chamavam-se Tories; e os que defendiam que ela deveria pender para a liberdade dos sditos chamavam-se Wliigs.

    O problema religioso misturava-se a essas questes, pois desde que Henrique VIII rompeu com a Igreja Catlica, o problema da autoridade do monarca relacio

    13

  • LINGUAGENS DO IDERIO POLTICO

    nava-se com a afirmao da Igreja nacional, o Episcopado Anglicano. Mas com a restaurao da dinastia Stuart, na dcada de 1660, comeou a crescer de novo a suspeita de que o rei estivesse permitindo um retorno da influncia da Igreja Catlica - um fantasma herdado da sangrenta guerra civil dos anos de 1640, a qual levou decapitao de Carlos Stuart (Carlos I) e ao interregno republicano da dcada seguinte. Entre os que defendiam mais liberdade para os cidados, havia tanto aqueles que defendiam maior liberdade religiosa, quanto aqueles que desejavam que o monarca, ao reconhecer a autoridade do Parlamento, tambm assumisse sem ambigidades a condio de chefe da Igreja nacional.

    A Revoluo de 1688 praticamente resolveu essa pendncia. A partir de ento tornou-se incontestvel que o rei deveria governar com o Parlamento (atravs da frmula King-in-Parliament) e assumir o seu papel de defensor supremo da Igreja e da ortodoxia anglicanas. Rei, Parlam ento e Episcopado deveriam ser a trade indissolvel da soberania nacional, ainda que a Revoluo tivesse, com o Toleration Act de 1689, concedido alguma liberdade religiosa para grupos protestantes no- anglicanos. No perodo ps-1688, o problema passa a ser, na verdade, no se o Parlamento deveria governar e sim como manipul-lo, visto que ele definitivamente daria a ltima palavra. Com isso, os papis das correntes de opinio se alteram: a antiga viso Tory passa para a segundo plano e a dos Whigs condio de principal sustentculo do novo regime, especialmente porque agora essa corrente tinha voz e poder decisrio efetivo no Parlamento. Contudo, s uma parte dos Tories (os chamados jacobitas) resolveram lutar de fato pelo retorno da antiga dinastia, pois, com o tempo, uma parte deles foi aceitando o papel de oposio leal ou mesmo assumindo responsabilidades de governo. Por outro lado, nem todos os antigos Whigs aderiram ao novo estado de coisas. Enfim, velhos aliados tornaram-se adversrios e velhos adversrios, aliados.

    O monarca, para preservar sua influncia nas decises, comea a constituir seu grupo de conselheiros e ministros entre os representantes do Parlamento. E claro que isso s teria efeito prtico se fossem escolhidos entre os da corrente de opinio majoritria (os Whigs, durante um certo tempo no sc. XVIII). Para atra- los, o monarca dispunha de uma srie de artficios, entre os quais as penses reais e a promessa de influncia na mquina administrativa, especialmente no aparato colonial, que serviam de moeda de troca para a aprovao das iniciativas da Corte no Parlamento. Tal esquema de sustentao poltica do governo - que evidentemente envolvia apoios ostensivos para garantir que um grupo fechado de candidatos sempre fosse eleito - ficou conhecido na poca como patronage (patrona- gem), e era um dos motivos para os adversrios se referirem ao regime como a oligarquia Whig .

    14

  • APRESENTAO

    Os Termos do Embate de Idias

    Tendo em vista esse quadro de acontecimentos, Pocock procura identificar as balizas para a compreenso do debate poltico no perodo. A seu ver, a Revoluo Gloriosa vai alterar o eixo do embate de idias na seguinte direo. Agora, quem quisesse se confrontar com o establishment teria de faz-lo colocando em questo a autoridade do Parlamento. E havia duas maneiras de question-la: atacando a vinculao supostamente indissolvel entre o Rei e o Parlamento, ou entre este e a Igreja nacional. Do ponto de vista formal, parecia um tanto mais complicado confrontar-se diretamente com a soberania do Parlamento, que a Revoluo estabeleceu sem sombras de dvida, do que com aqueles dois vnculos que davam ao novo regime as condies para operar essa soberania. Pois que o centro do poder poltico estivesse situado na casa dos representantes da nao, satisfazia os anseios de grande parte da alta opinio letrada: formalmente, o Rei no mais ousava desafiar as prerrogativas do Parlamento, e no mais ousava avanar (atravs de impostos) sobre o direito de propriedade dos sditos representados sem o seu consentimento. E periodicamente, por meio de eleies parlamentares, os representantes renovavam seu contrato com o povo.

    Em outras palavras, para que o confronto com a autoridade do Parlamento fosse ideologicamente efetivo, era sobretudo a qualidade de seu funcionamento, e no tanto o estatuto legal de sua soberania, que deveria ser posta em xeque. E neste ponto que clssicas questes de filosofia poltica vo se misturar a novas questes religiosas para dar o caldo das polmicas.

    Por um lado, o elo com as questes clssicas feito pelo resgate da tradio do humanismo cvico. Em The Machiavellian Moment, Pocock j havia delineado bem os aspectos centrais dessa tradio no perodo de sua gestao, o Renascimento Italiano, e rastreado sua continuidade e renovao em contexto britnico nos anos de 1600, especialmente durante o interregno republicano, e no decorrer do sculo XVIII. Vrias concluses desse estudo so repostas no decorrer desta coletnea, como apontamos a seguir. Por outro lado, as novas questes religiosas so dadas pelas caractersticas especiais do desenvolvimento do protestantismo em territrio britnico, as quais confluem com a inspirao eminentemente republicana do humanismo cvico.

    Centrar o discurso no no estatuto legal das instituies, mas na qualidade de seu funcionam ento, significa examinar as condies por meio das quais os cidados interagem politicamente. A legalidade das instituies, embora nunca deixe de ser relevante, tende a captar apenas a esttica, digamos assim, da legitimidade delas, e no a sua dinmica . O humanismo cvico, ao pr em relevo as dispo-

    15

  • LINGUAGENS DO IDERIO POLTICO

    sies subjetivas com que as pessoas exercem seus direitos polticos - atravs, por exemplo, da dialtica virtude versus corrupo - , levado a avaliar os contornos morais, sociais e econmicos que estimulam ou inibem as disposies cvicas desejveis. Assim, uma certa apropriao desse modo de encarar o problema da legitimidade que dar s oposies ao novo regime Whig parte da munio para o seu combate de idias.

    Para essas correntes, a qualidade cvica das instituies era afetada negativamente pelo trip da sustentao econmica, militar e poltica do novo regime: o crdito pblico, o exrcito permanente e a patronagem. Pois essas trs inovaes estariam solapando tanto o equilbrio entre os componentes da Constituio - o rei, os lordes e os comuns - quanto a independncia poltica dos cidados (considerados individualmente), ambos vistos como os antdotos fundamentais tirania. Como um problema constitucional, o crdito pblico podia facilmente ser tomado como o vrtice que ligava as duas outras pontas do trip acima mencionado. Assim, entre as correntes de oposio ao sistema Whig, o crdito pblico era condenado por constituir a plataforma de sustentao de todo o aparato administrativo colonial e domstico da Coroa, e a fonte dos cargos, privilgios e penses oferecidos pela Corte. Esses, por sua vez, davam ocasio ao exerccio sem freios da patronagem real, que virtualmente submetia o Parlamento a um s interesse e, logo, introduzia o facciosismo nas prticas polticas. A acusao de facciosismo era uma das maneiras de apontar para o desvirtuamento da Constituio inglesa, tradicionalmente pensada como um conjunto de instituies e procedimentos voltados para manter um equilbrio ou balana entre diferentes interesses. Sem esse equilbrio, abria- se o caminho para a extino da liberdade dos sditos, isto , a tirania. Uma outra maneira de apontar para esse desvirtuamento e para o perigo da tirania era o uso do crdito pblico para financiar um exrcito de soldados profissionais, destacado da cidadania e colocado ao inteiro dispor da Corte - a chamada standing army ou exrcito permanente. A presena contnua desse aparato militar estimulava analogias com a experincia imperial romana e, logo, um forte receio do surgimento de um general ambicioso, bem-sucedido nas guerras de expanso colonial, que a partir de sua popularidade e da lealdade de seus soldados viesse a submeter as instituies civis.

    Ao mesmo tempo, as ansiedades geradas pelo crdito pblico traziam de volta o clssico problema da relao entre propriedade, comrcio e independncia do cidado. Nas repblicas antigas, costumava-se pensar que pessoas totalmente envolvidas no mundo da troca de mercadorias e da diviso do trabalho eram moralmente instveis e frouxas: o mergulho nessas atividades induziam-nas corrupo de suas virtudes polticas e militares, isto , perda do interesse em zelar pelo bem

    16

  • APRESENTAO

    comum e da vontade de defender a ptria pessoalmente, empunhando armas. No eram, portanto, prprias ao bom cidado-miliciano. Cabia s instituies polticas zelar para que a cidadania no se entregasse a essas atividades a tal ponto que acabasse dependente delas. A preservao da integridade da propriedade da terra (a sua imobilidade) pelo chefe de famlia, nesse sentido, era entendida como base material indispensvel virtude, uma espcie de cauo da prpria integridade da personalidade cvica. A herana desse modo de pensar pelo humanismo cvico, num tempo em que as cidades-estado renascentistas italianas viam-se profundam ente envolvidas e dependentes de atividades comerciais e bancrias, colocavam o m undo letrado sob uma grande presso ideolgica, interpretada por Pocock como um estado de crise de conscincia (da o termo momento maquiaveliano para carac- teriz-lo). Pois o modo peculiar com que essas modernas cidades-estado surgiram e cresceram geravam uma aguda conscincia republicana e, ao mesmo tempo, a percepo de que as novas condies materiais e sociais dificultavam espetacularmente sua preservao.

    Algo parecido volta a ocorrer no sculo XVIII britnico, embora as percepes sobre as novas condies sejam bem mais divergentes. Se um cultivo revigorado da poltica idealizada pelo classicismo antigo pode ser constatado, tambm verdade que a enorme intensificao do comrcio, da manufatura e da diviso do trabalho vivida pelo pas comeava a ser recebida de forma positiva, no que diz respeito a seus efeitos polticos, morais e at artsticos, por parcelas crescentes da opinio letrada. No conjunto, trata-se de um sculo ambguo em relao a esse problema. A ambigidade pode ser percebida mesmo entre os dois grandes campos de opinio - de resto profundamente divergentes - que se formaram no ataque e na defesa do novo status quo. Se o campo oposicionista parecia levantar srias restries s transformaes da economia poltica moderna, em particular crescente substituio da propriedade imvel pela mobiliria, no fundo ele no tinha nenhuma alternativa convincente disposio, a no ser que quisesse se expor ao ridculo de oferecer a de uma economia agrria auto-suficiente e rstica. Cientes disso, seus expoentes estavam geralmente prontos a reconhecer a inevitabilidade, e mesmo a necessidade, do comrcio, da diviso de trabalho e da economia monetria. A fria de seus ataques, portanto, no podia estar centrada contra a economia moderna em si, mas apenas contra a possibilidade de suas operaes contaminarem o centro nervoso da poltica. Comrcio e dinheiro sim, mas no a dependncia da comunidade poltica para com uma dvida nacional incontrolvel; diviso do trabalho sim, mas no a especializao do representante no Parlamento num poltico profissional dependente da Corte, ou a especializao do cidado-m iliciano num profissional da guerra dependente de seu general.

    17

  • LINGUAGENS DO IDERIO POLTICO

    J no campo, digamos, situacionista, os argumentos apontavam para o potencial civilizatrio das trocas comerciais entre indivduos e naes. Influenciados por Montesquieu, seus autores - os expoentes oriundos da safra intelectual do chamado Iluminismo Escocs - diziam que o comrcio e o conseqente alastramento da economia monetria e da diviso do trabalho criavam de fato laos de dependncia recproca, e isso no era ruim. Pois a interdependncia dificultaria que pessoas ou grupos dispensassem os servios uns dos outros, e tal percepo acabaria ajudando a preservar a balana constitucional. Ademais, esse campo procurava mostrar que o antigo cidado-fazendeiro-soldado podia at ser, nas palavras de Pocock, herico, mas tambm era embrutecido , insensvel aos refinamentos das artes e s boas maneiras . Os tempos modernos realmente significavam uma perda considervel das antigas virtudes polticas e militares, mas essa perda era mais do que compensada pelo florescimento de outras qualidades morais, entre as quais a prpria civilidade. Por outro lado, a expanso da manufatura e do comrcio livre era tomada como condio sine qua non da riqueza das naes - e por isso muitos deles criticavam o fechado mercantilismo colonial - e essa, por sua vez, condio para o sucesso poltico e militar do pas, j que s uma nao rica materialmente poderia bancar os custos exponenciais da guerra profissional moderna: naes comerciais tambm venceriam as batalhas. Esses autores estavam, por conseguinte, at mesmo dispostos a aceitar, graas a essas vantagens, o instituto da patronagem e do exrcito permanente.

    Na leitura de Pocock, todavia, mesmo os ardentes defensores do regime Whig, como o filsofo escocs David Hume, viam com ambigidade, e at muita apreenso, o crescimento incontrolvel da dvida nacional e, no fim das contas, sugeriam que o recurso imoderado a ela poderia de fato exaurir os recursos nacionais e levar a Constituio a uma morte violenta. O que no deixa de flagrar um contgio das ansiedades do humanismo cvico mesmo no campo adversrio. No estava claro, porm, e para nenhum dos dois lados, como se poderia acolher as premissas da economia poltica moderna sem desembocar na lgica implacvel da dvida nacional.

    Tomemos agora as questes religiosas. Se o discurso cvico-hum anista do campo de oposio tentava abalar a autoridade do Parlamento pela acusao de facciosismo, ao denunciar as relaes promscuas entre Rei e Parlamento, o discurso religioso procurava faz-lo atacando a promiscuidade entre Rei, Parlam ento e Igreja nacional. Nos ltimos ensaios da coletnea, Pocock mostra com muita eloqncia por que o vnculo estrito dessas trs instituies era o cerne da autoridade constituda.

    Para justificar sua existncia, o Episcopado Anglicano tinha de evitar tanto a ortodoxia catlica, que representava o desvio da superstio , quanto as hetero- doxias das seitas independentes protestantes, que representavam o desvio do entu

    18

  • APRESENTAO

    siasmo . Quando Henrique VIII firmou-se como chefe da Igreja na Inglaterra, ele s poderia faz-lo negando a autoridade papal - isto , rejeitando sua condio de chefe da Cristandade. Ao mesmo tempo, porm, ele o fez reconhecendo a autoridade exclusiva do Episcopado ingls em matria de doutrina religiosa. Quando o rei Stuart foi destitudo em 1688 por suspeita de retornar aos braos do Catolicismo, o Parlamento assumiu o papel de campeo da Igreja nacional e, para devolver ao Rei o ttulo de chefe dessa Igreja, tornou-o parte integrante de si prprio (da o King-in-Parliament). Supunha-se que, assim, estavam definitivamente fechadas as portas para a ortodoxia catlica, mas tambm para aquela liberdade religiosa irrestrita esperada pelo protestantismo independente.

    Em termos doutrinrios, Pocock v a situao do anglicanismo da seguinte maneira. Se a ortodoxia catlica havia de ser rejeitada, tambm era impossvel negar toda e qualquer ortodoxia. Certos credos catlicos tinham de ser preservados, pois deles dependiam a afirmao da autoridade episcopal em matria doutrinria. Por exemplo, a idia da continuidade da presena de Cristo atravs da Igreja teria de ser zelosamente resguardada. E isso implicava a doutrina da Encarnao: Cristo estava presente pela comunho dos fiis na mesma Igreja; e tambm a doutrina da Trindade, pois Deus no era apenas Pai (Criador) e Esprito, mas estava encarnado em Cristo. A Igreja, dizendo-se o Corpo de Cristo pela comunho, herdava a autoridade de Cristo, e isso era decisivo para a sua afirm ao como Igreja oficial.

    Para questionar a supremacia do Episcopado em matria religiosa, o discurso oposicionista do protestantismo independente acusava-o de ser uma mera verso paroquial do Catolicismo. Por isso tendia a rejeitar a doutrina da Encarnao ou, pelo menos, aqueles aspectos da doutrina que conduziam idia da continuidade da presena de Cristo numa determinada Igreja. M uitos, porm, faziam-no em nome da idia de que Deus, pelo Esprito Santo, falava-lhes diretamente aos ouvidos, sem a mediao de bispos e padres. E aqui os defensores do Episcopado contra-argumentavam dizendo que essa idia facilmente deixava os crentes merc de lderes am biciosos, e politicam ente perigosos, que se diziam novos profetas (por falarem diretamente com Deus), ou at novos Cristos - donde a acusao de entusiasm o . Afinal, era bastante persuasivo lembrar a experincia traumtica, ainda no muito distante, da guerra civil e da anarquia provocada por tais crenas e tais lderes.

    Contudo, a muitos integrantes do prprio Episcopado, incomodava que restasse de fato algo da superstio catlica encravada na doutrina anglicana. Certamente calava fundo, neles - embora isso no pudesse ser confessado publicamente - , ver um autor como Thomas Hobbes mostrar (no Levicit, por exemplo) como no pas

    19

  • LINGUAGENS DO IDERIO POLTICO

    sava de magia prpria de charlates afirmar que, atravs de certas palavras, a hstia e o vinho se transformavam literalmente no corpo e no sangue de Cristo. Crenas como essas dificultavam enormemente a busca, almejada por certos bispos anglicanos, de um Iluminismo moderado (a expresso de Pocock), que efetivamente evitasse tanto a superstio quanto o entusiasmo, e que tambm pudesse contribuir para dar estabilidade ao regime, ao moderar o confronto entre os adversrios polticos. Mas era extremamente complicado alcanar esse meio-termo, pois qualquer afastamento daquela ortodoxia expunha seus protagonistas suspeita de saltar para o campo do entusiasmo, ou suspeita de hobbismo, um termo que no gozava de boa reputao em qualquer campo. Ademais, como o Episcopado poderia sustentar- se institucionalmente sem a Encarnao e a Trindade? Indiretamente, tal caminho afetaria, outra vez, a autoridade do Parlamento e, portanto, at por interesses mundanos, a oligarquia que o controlava no poderia aceit-lo.

    O Imprio e a Independncia Americana

    Com essas balizas do discurso poltico alinhavadas, Pocock pde projetar novas luzes sobre os dilemas da construo do imprio colonial britnico em sua primeira fase (sculo XVIII), que culmina com a Independncia Americana. Mas primeiro preciso lembrar que, aps sucessivos enfrentamentos para conquistar ou consolidar domnios ultramarinos, a Coroa encontrava-se no limite de sua capacidade material e financeira. Para aliviar a presso, o Parlamento resolve aprovar leis ampliando a carga de tributos sobre os sditos coloniais - entre os quais o Stamp Act, mencionado por Pocock, que taxava toda transao escrita nas colnias da Amrica do Norte. Essas medidas causavam enorme insatisfao entre os colonos, levando a um questionamento da legitimidade do Parlamento ingls para taxar sditos que sequer eram representados ali.

    Na crise que antecede a ecloso da guerra da Independncia, Pocock constata que alguns defensores do regime Whig j consideravam que o Imprio colonial era um fardo pesado demais para ser carregado e, desse modo, no faziam questo de conservar os laos dos americanos com a Gr-Bretanha. Alm disso, sadas intermedirias entre os extremos da independncia e da total submisso haviam sido pensadas, e porm nenhuma se viabilizou. Tais eventos intrigam o historiador.

    Pelo menos duas sadas intermedirias chegaram a ser consideradas seriamente por ambos os lados. A primeira era transformar o Imprio numa Confederao de assemblias autnomas, responsveis pelo autogoverno dos diferentes domnios imperiais, e tendo por cabea o Rei ingls. A idia era at recebida com simpatia

    20

  • APRESENTAO

    entre os lderes coloniais, que ao criticarem os atos do Parlamento clamavam para que o Rei se libertasse daquela instituio. Mas esta era uma soluo inaceitvel para o Parlamento, pois atacava um dos pilares da Revoluo Gloriosa, o King-in- Parliament. Uma confederao com o Rei no vinculado a nenhum parlamento parecia mesmo uma soluo Tory, e essa permanente tentao a que a aventura imperial induzia explica em parte por que certos expoentes do regime Whig (como Edmund Burke) faziam srias restries a ela.

    A segunda soluo era aceitar que o Parlamento acolhesse representantes dos colonos. Mas alm do temor, da parte dos ingleses, de que um dia as colnias ultrapassassem a populao da metrpole, a soluo logo tornou-se inaceitvel para os prprios colonos, devido a sua peculiar experincia religiosa. A experincia americana, desde os primrdios, era marcada pelo protestantismo independente, pela heterodoxia. Integrar-se ao Parlamento ingls significava ou aceitar sua ligao umbilical com a Igreja oficial, ou quebrar essa ligao, o que nenhum dos dois lados estava disposto a conceder.

    Em suma, restava o caminho da independncia. E aqui os colonos, para justific-la, souberam valer-se dos discursos de oposio ao regime Whig gestado na prpria G r-Bretanha, como o testemunham documentos como a Declarao da Independncia. O leitor vai ento encontrar, nesta coletnea, um rico exame das possibilidades de adaptao desses discursos em solo norte-americano. Em especial, a crtica ao King-in-Parliament e ortodoxia anglicana ajudam a explicar por que os Founding Fathers puderam considerar noes como a separao dos poderes constitucionais e os termos de uma ampla tolerncia religiosa.

    C c e r o A r a jo

    21

  • INTRODUO

    O ESTADO DA ARTE*

    /

    Dos ensaios que compem este volume1, nove foram publicados originalmente entre 1976 e 1982, embora um ou dois deles tenham sido escritos para leitura em pblico antes de sua publicao. No conjunto, eles constituem um trabalho sobre a histria do discurso poltico na Inglaterra, na Esccia e nos Estados Unidos, principalmente no perodo compreendido entre a Revoluo Inglesa de 1688 e a Revoluo Francesa de 1789. Trata-se de um trabalho realizado em uma poca em que as percepes da histria britnica estavam em contnua mudana - talvez mais drasticamente do que durante um bom perodo de tempo no passado - , uma poca em que as percepes do que constitui a histria do pensamento poltico passavam por um intenso escrutnio e reformulao. Embora o presente livro2 tenha sido elaborado com o objetivo de ser uma contribuio prxis, no teoria, do ramo da historiografia a que pertence, necessrio apresent-lo com uma explanao sobre onde ele se situa nesse processo de mudana na historiografia do pensamento poltico. Descrever uma prxis e suas conseqncias e implicaes, contudo, especialmente quando elas so

    * Extrado de J. G. A. Pocock, Virtue, Commerce, and History, Cambridge, Cambridge University Press, 1995, pp. 1-34.

    1. Trata-se da obra de onde foi extrado o presente ensaio: J. G. A. Pocock, Virtue, Commerce, and History, op. cit.

    2. Idem, ibidem.

    23

  • LINGUAGENS DO IDERIO POLTICO

    vistas como estando em processo de mudana, algo que no pode ser feito sem se empregar, e at certo ponto explorar, a linguagem da teoria.

    J utilizei duas expresses, histria do pensamento poltico e histria do discurso poltico , que nitidamente no so idnticos. A primeira delas aqui mantida, e na terminologia de instituies e publicaes especializadas, por ser familiar e convencional e por servir para orientar nossos esforos no rumo certo, e tambm porque de forma alguma inadequada. As atividades a cujo estudo ela nos remete so visivelmente atividades de homens e mulheres pensantes. A linguagem que eles empregam autocrtica e autodepuradora e, com freqncia, se eleva at os nveis da teoria, da filosofia e da cincia. No entanto, as mudanas por que tem passado esse ramo da historiografia nas duas ltimas dcadas podem ser caracterizadas como um movimento de abandono da nfase na histria do pensamento (e de forma ainda mais acentuada, das idias) rumo a uma nfase de algo bastante diferente - por isso a expresso histria do discurso - embora nem isenta de problemas nem irrepreensvel - parece ser a melhor term inologia encontrada at o momento. Mostrar como esse movimento se deu, e o que ele implica, faz-se necessrio para ser possvel apresentar sua prxis.

    Numa retrospectiva centrada em Cambridge, algumas das origens desse movimento podem ser encontradas na anlise lingstica adotada por alguns filsofos da dcada de 1950, que tendiam a apresentar os pensamentos como proposies que requerem um nmero limitado de modos de validao. Outros, nas teorias dos atos de fala (ou de discurso - speech-acts) desenvolvidas em Oxford e outros lugares mais ou menos na mesma poca, tendiam a apresentar os pensamentos como elocues atuantes sobre aqueles que as ouvem, e at mesmo sobre aqueles que as enunciam. Ambas as vises tendiam a concentrar a ateno sobre a grande variedade de coisas que podiam ser ditas ou reconhecidas como tendo sido ditas, e sobre a diversidade de contextos lingsticos que iriam determinar o que poderia ser dito e que, ao mesmo tempo, sofriam a ao daquilo que era dito. bastante bvio o que os historiadores do pensamento poltico andaram fazendo com essas concepes que lhes eram assim oferecidas. Mas curioso, em retrospecto - e talvez uma indicao da dificuldade de se conseguir que os filsofos falem sobre as mesmas coisas que os historiadores - , que a srie Philosophy, Politics and Society, que Peter Laslett comeou a publicar em 1956, se dedicasse quase inteiramente anlise e investigao de asseres e problemas polticos, e raramente definio de seu status histrico ou historiografia do debate poltico3. De modo paradoxal, exata

    3. As trs excees que se pode dizer que confirmam essa regra so J. G. A. Pocock, The History of Political Thought: A Methodological Enquiry, em Peter Laslett e W. R. Runciman (orgs.), Philosophy,

    24

  • INTRODUO

    mente ao mesmo tempo em que Laslett anunciava que por enquanto, de qualquer forma, a filosofia poltica est morta4, a histria do pensamento poltico, inclusive a filosofia (se que a filosofia pode ser includa em algo), estava a ponto de sofrer um revivescimento bastante dramtico, graas em grande parte ao prprio Laslett. Foi o trabalho editorial de Laslett sobre os textos de Filmer e Locke5 que ensinou a outros, inclusive o presente autor, quais os arcabouos, tanto tericos quanto histricos, em que eles deveriam situar suas pesquisas.

    Neste ponto comeava a tomar forma uma historiografia com nfases bastante caractersticas: primeiro, sobre a variedade de linguagens em que o debate poltico pode se desdobrar (um exemplo poderia ser a linguagem do Direito Con- suetudinrio como componente do que agora conhecemos como antigo constitu- cionalism o)6; e, segundo, sobre os participantes do debate poltico, vistos como atores histricos, reagindo uns aos outros em uma diversidade de contextos lingsticos e outros contextos histricos e polticos que conferem uma textura extremamente rica histria, que pode ser resgatada, de seu debate. A republica- o dos textos de Filmer, em 1679, provocou respostas muito diversas em termos lingsticos como a do First Treatise, de Locke, bastante diversa em comparao com o seu Second Treatise, ou a dos Discourses on Government, de Algernon Sidney, tambm diversa em relao a ambos, e ao mesmo tempo provocou, naqueles preocupados em replicar mais ao Freeholders Grand Inquest1 do que ao Patriarcha, respostas ainda de um outro tipo: a controvrsia entre Petyt e Brady, ou a reviso de Harrington por seu colega e colaborador Henry N eville8. Todas essas tendncias na histria do debate poltico poderiam ser acompanhadas sob o ponto de vista de como elas divergiram e voltaram a convergir; aqui comea a nascer uma histria de atores expressando-se e respondendo uns aos outros em um

    Politics and Society: Second Series, Oxford, Blackwell, 1962; Quentin Skinner, Social M eaning and the Explanation o f Social Action, e John Dunn, The Identity of the History of the Ideas, ambas em Peter Laslett, W. G. Runciman e Quentin Skinner (orgs.), Philosophy, Politics and Society: Fourth Series, Oxford, Blackwell, 1972.

    4. Peter Laslett (org.), Philosophy, Politics and Society, Oxford, 1956, p. vii.5. Peter Laslett (org.), Patriarcha and Otlier Political Works o f Sir Robert Filmer, Oxford, Garland, 1949;

    Peter Laslett (org.), John Locke: Two Treatises o f Government, Cambridge, Cambridge University Press, 1960 (ed. rev. 1963).

    6. J. G. A. Pocock, The A ncient Constitution and the Feudal Law: English H istorical Thought in the Seventeenth Century, Cambridge, Cambridge University Press, 1957.

    7. James Tyrrell e W illiam Petyt consideravam essa obra como sendo da mesma tendncia que os escritos publicados sob a assinatura de Filmer, dessa forma, no entrarei na atual controvrsia acerca da autoria desses textos. Ver Corinne Comstock W eston, The Authorship of the Freeholder's Grand Inquest, English Historical Review, XCV, 1 (1980), pp. 74-98.

    8. Caroline Robbins, (org.), Two English Republican Tracts, Londres, Cambridge University Press, 1969.

    25

  • LINGUAGENS DO IDERIO POLTICO

    contexto lingstico comum, embora diverso. A pergunta por que tudo isso parecia ser uma revoluo na historiografia do pensamento poltico exige que descrevamos o estado das artes antes de isso tudo ocorrer, e difcil faz-lo sem tocar em alguns pontos delicados. O aspecto mais imediato a mencionar o de que, desde ento, tem sido sentida (e atendida) uma necessidade de redefinio da historiografia do pensamento poltico e suas implicaes, e de definir sua prxis em termos mais rigorosamente histricos.

    Tem sido recorrente a noo que in illo tempore as disciplinas da teoria poltica e a histria do pensamento poltico foram sendo confundidas uma com a outra, e que o advento de uma filosofia analtica e da linguagem rigorosamente a-histri- ca ajudou muito a distingui-las. Mas se, por um lado, os filsofos da linguagem no estavam interessados na escrita da histria, os historiadores, por sua vez, demoraram muito a aproximar-se e tirar proveito da filosofia das proposies e dos atos de fala, ou para contribuir com ela. O presente autor tem conscincia de que, na poca, no tanto aprendeu dos colaboradores de Philosophy, Politics and Society quanto descobriu mais tarde que estivera aprendendo com eles: foi a prtica que o levou a descobrir as implicaes de suas idias. A anlise da pesquisa cientfica na turbulenta passagem de Popper a Kuhn, e para alm deles, teve sua importncia, mas foi somente em meados da dcada de 1960, com a prim eira publicao dos textos de Quentin Skinner, que os historiadores do pensamento poltico com earam a estabelecer e expor a lgica de sua prpria pesquisa e a aprofund-la nas reas em que ela se aproximava da filosofia da linguagem. Iniciou-se ento uma discusso que continua a produzir uma vigorosa e extensa literatura9. Seria difcil, e talvez nem mesmo fosse til, rastrear todos os meandros desse debate ou tentar escrever sua histria. Contudo, a necessidade de descrever o atual estado das artes nos obriga a expor as suas principais caractersticas.

    9. Bibliografias completas at o momento de sua compilao podem ser encontradas em Quentin Skinner, The Foundations o f M odem Political Thought, Cambridge, Cambridge University Press, 1978 (2 vols.), vol. 1: The Renaissance, pp. 285-286; Lotte Mulligan, Judith Richards e John K. Graham, Intentions and Conventions: A Critique o f Q uentin Skinners M ethod for lhe Study of the H istory o f Ideas , Political Studies, XXVI, 1 (1979), pp. 84-98; J. G. A. Pocock, The M achiavellian M om ent Revisited: A Study in History and Ideology, Journal o f M odem History, LI II, 1 (1981), pp. 50-51 n. 9; James H. Tully, The Pen Is a Mighty Sword; Quentin Skinners Analysis o f Politics , British Journal o f Political Science, XIII, 4 (1983), pp. 489-509. preciso mencionar que h vrios tipos de linguagem relacionados com informtica, pesquisas de marketing, ou algo do gnero em que a expresso estado das artes tem assum ido o significado de algo efmero. Este autor no deseja ser lido nesse sentido. Ele acredita estar realizando um trabalho cujo presente estado pode ser examinado de uma maneira reflexiva, e espera que esta nota possa ser de interesse para os historiadores.

    26

  • O professor Skinner conhecido por ter feito, em diferentes momentos, dois pronunciamentos sobre os objetivos que um historiador desse tipo deveria perseguir. O primeiro desses pronunciamentos enfatizava a importncia de se resgatar as intenes que um autor teria abrigado ao elaborar seu texto. As objees que tm sido feitas a essa proposta no a destruram, mas apontaram a necessidade de, sob alguns aspectos, ir alm dela. Por exemplo, tem-se questionado se podemos resgatar as intenes do autor a partir da anlise de seus textos sem nos tornarmos prisioneiros do crculo hermenutico. A resposta que isso pode de fato ser um risco, quando no temos nenhum indcio em relao s intenes do autor, alm do prprio texto. Na prtica, isso o que acontece algumas vezes, mas nem sempre. Pode haver indcios, no confiveis e traioeiros ms ainda assim utilizveis, em outros textos do autor ou em sua correspondncia privada. O admirvel hbito de se preservar as cartas dos grandes homens tem sido corriqueiro entre antiqurios ao longo de sculos. Quanto mais provas o historiador puder mobilizar na construo de suas hipteses acerca das intenes do autor, que podero ento ser aplicadas ao texto ou testadas em confronto com o mesmo, maiores sero as suas chances de escapar do crculo hermenutico, ou mais crculos desse tipo seus crticos tero de construir na tentativa de desmontar essas hipteses.

    Uma objeo mais perspicaz a que questiona se um mens auctoris pode ser considerado existindo independentemente de seu sermo, isto , se um conjunto de intenes pode ser isolado como algo que existe na mente do autor, a cuja efetivao ele ento procederia, escrevendo e publicando seu texto. Ser que as intenes no existem somente medida que so concretizadas na escrita e publicao do texto? Como pode o autor saber o que pensa, ou o que quer dizer, antes de ver o que disse? O autoconhecimento retrospectivo, e cada autor sua prpria coruja de Minerva. Ainda assim, provas do tipo mencionado no pargrafo anterior podem ocasionalmente ser mobilizadas para mostrar que se pode dizer de um autor, do qual se conhece o suficiente, que ele tinha a sua disposio um certo nmero de aes possveis, levando a efeito uma certa variedade de intenes, e que o ato que ele de fato executou e as intenes que ele de fato levou a cabo podem ter diferido de algum outro ato que ele poderia ter efetuado e at mesmo ter cogitado efetuar. Mas a objeo com a qual estamos lidando mais radical. Ela ques- tiona no apenas que as intenes possam existir antes de ser articuladas em um texto, como tambm que se possa dizer que elas existem independentemente da linguagem em que o texto ser construdo. O autor habita um mundo historicamente determinado, que apreensvel somente por meios disponveis graas a uma srie de linguagens historicamente constitudas. Os modos de discurso disponveis do-lhe as intenes que ele pode ter, ao proporcionar-lhe os nicos meios de que

    INTRODUO

    27

    Vi

  • LINGUAGENS DO IDERIO POLTICO

    ele poder dispor para efetu-las. Neste ponto, a objeo que estamos analisando levanta a questo da langue bem como a da parole, do contexto lingstico bem como do ato de fala (ou de discurso).

    Isso evidentemente constitua apenas parte da polmica de Skinner. Sua insistncia no resgate das intenes do autor tinha, em certa medida, propsitos destrutivos. Era destinada a colocar fora de considerao as intenes que o autor no poderia ter concebido ou levado a efeito porque no disporia da linguagem em que elas pudessem ser expressas, o que o levaria, por conseguinte, ao emprego de alguma outra linguagem que articulasse e realizasse outras intenes. O mtodo de Skinner, portanto, nos impeliu na direo tanto do resgate da linguagem do autor quanto do resgate de suas intenes, bem como a trat-lo como habitante de um universo de langues que confere sentido s paroles que ele emite nessas lnguas. Isso de forma alguma resulta em reduzir o autor a um mero porta-voz de sua prpria linguagem. Quanto mais complexo, e at mesmo quanto mais contraditrio o contexto lingstico em que ele se situa, mais ricos e mais ambivalentes sero os atos de fala que ele ter condies de emitir, e maior ser a probabilidade de que esses atos atuem sobre o prprio contexto lingstico e induzam a modificaes e transformaes no interior dele. Neste ponto, a histria do pensamento poltico tor- na-se uma histria da fala e do discurso, das interaes entre langue e parole. Sustenta-se no somente que essa histria do pensamento poltico uma histria do discurso, mas que ela tem uma histria justamente em virtude de se tornar discurso.

    Parece no haver dvida, contudo, de que o foco das atenes se deslocou em certa medida do conceito de inteno rumo ao conceito de efetuao. No nvel da teoria, isso se reflete nos textos do professor Skinner acerca de atos de fala e temas afins. No nvel prtico, reflete-se em sua afirmao - em The Foundations o f M odem Political Thought, o segundo dos dois pronunciamentos mencionados acima - de que se temos de ter uma histria do pensamento poltico construda sobre princpios autenticamente histricos, precisamos ter meios de saber o que um autor estava fazendo 10 quando escrevia, ou publicava, um texto. Essas duas palavras contm uma considervel riqueza de significados. Em ingls coloquial, perguntar o que um ator estava fazendo , com freqncia, o mesmo que perguntar o que ele pretendia , ou seja, o que estava tramando ou o que pretendia obter. Quais eram, em suma, as (por vezes ocultas) estratgias intencionais por trs de suas aes? A noo de inteno certamente no foi abandonada, como fica evidente

    10. Skinner, The Foundations..., op. cit., vol. 1, p. xi (a abordagem deve com ear a nos proporcionar uma histria da teoria poltica com um carter genuinamente histrico) e p. xiii (ela nos torna possvel definir o que seus autores estavam fazendo ao escrever os textos clssicos).

    28

  • tambm na linguagem - uma predileo, no caso de Skinner - que fala de um autor como algum que est efetuando este ou aquele lance . Mas tambm achamos possvel perguntar se um ator sabia o que estava fazendo, sugerindo, com isso, a possibilidade de uma lacuna entre inteno e efeito, ou entre a conscincia do efeito e o efeito propriamente dito. Perguntar isso perguntar qual foi o efeito, para quem e em que ponto no tempo ele se tornou manifesto, e defrontar-se com o fato de que aes efetuadas em um tempo em aberto produzem uma srie aberta de efeitos. A pergunta sobre o que um autor estava fazendo pode, portanto, ter uma infinidade de respostas, e at teoricamente concebvel (embora de forma algo figurada) que o autor ainda no tenha terminando de fazer o que estava fazendo. No precisamos, contudo, indagar se a histria pode ou no ter um presente (o que Mi- chael Oakeshott parece negar)11 para perceber que Quentin Skinner empregou sabiamente o pretrito imperfeito contnuo do ingls. Em francs, teria sido suficiente o futuro condicional perfeito, mas falar sobre o que um autor teria (vindo a fazer) feito olhar para o futuro (para ns um passado) do ponto de vista do que ele estava fazendo, e no exatamente o mesmo que falar, do ponto de vista de nosso presente, do que ele fez ou (pace Oakeshott) est fazendo. No est claro se a ao de um autor chega um dia a terminar ou interromper-se. Mas est claro - e o uso do futuro condicional sublinha isso - que comeamos a nos preocupar com a ao indireta do autor, sua ao pstuma, sua ao mediada por uma cadeia de atores subseqentes. E a conseqncia inevitvel de se admitir a paridade entre contexto e ao, entre langue e parole.

    Tem-se dito, em objeo posio de Skinner, que as palavras de um autor no so dele prprio, que a linguagem que ele usa para efetivar suas intenes pode ser tomada dele e utilizada por terceiros em vista de outros efeitos. At certo ponto isso inerente natureza da prpria linguagem. A linguagem que um autor emprega j est em uso. Foi utilizada e est sendo utilizada para enunciar intenes outras que no as suas. Sob esse aspecto, um autor tanto o expropriador, tomando a linguagem de outros e usando-a para seus prprios fins, quanto o inovador que atua sobre a linguagem de maneira a induzir momentneas ou duradouras mudanas na forma como ela usada. Mas o mesmo que ele fez com outros autores e suas linguagens pode ser feito com ele e sua linguagem. As mudanas que ele procurou imprimir s convenes lingsticas que o rodeiam podem no conseguir impedir que a linguagem continue a ser usada nas formas convencionais que ele teve a inteno de modificar, e

    INTRODUO

    11. Ver M ichael Oakeshott, On History and Other Essays, Oxford, Blackwell, 1983, e a resenha do presente autor no Times Literary Supplement, Londres, 21 de outubro de 1983, p. 1,155.

    29

  • LINGUAGENS DO IDERIO POLTICO

    isso pode ser o suficiente para anular ou distorcer os efeitos de sua enunciao. Ademais, mesmo quando um autor tem xito em inovar, isto , em emitir seu discurso de maneira a incitar outros a responder a ele de uma maneira at ento no convencional, no se segue disso que ele conseguir controlar as respostas dos outros. Eles podem - e usualmente o faro - atribuir, sua enunciao e sua inovao, conseqncias e implicaes que talvez ele no pretendesse, ou no quisesse, reconhecer, e eles lhe respondero nos termos determinados por essas atribuies, mantendo ou modificando as convenes do discurso que eles vem como direta ou indiretamente afetadas pela enunciao real ou atribuda ao autor. E, at aqui, estamos imaginando somente as aes dos contemporneos respondendo ao autor, isto , dos que habitam o mesmo contexto histrico e lingstico. As linguagens tm como atributo a continuidade, tanto quanto a transformao. Mesmo quando modificadas pelo uso em contextos especficos, elas sobrevivem aos contextos nos quais foram modificadas e impem sobre os atores dos contextos subseqentes as restries para as quais a inovao e a modificao sero as necessrias, porm imprevisveis, respostas. O texto, ademais, preserva as enunciaes do autor em uma forma rgida e literal e as transmite para contextos subseqentes, onde elas estimulam naqueles que respondem interpretaes que, embora radicais, deturpadoras e anacrnicas, no teriam sido efetuadas se o texto no tivesse atuado sobre eles. O que o autor estava fazendo, portanto, inclui o suscitar em terceiros respostas que o autor no pode controlar nem prever, algumas das quais se efetuaro em contextos completamente diversos daqueles em que ele estava fazendo aquilo que talvez soubesse que estava fazendo. A frmula de Skinner define um momento na histria das interaes entre parole e langue, mas o define, ao mesmo tempo, como um momento aberto no tempo.

    II

    Uma reviso do estado das artes deve a esta altura apresentar uma explanao de sua prxis. Descrever no prescrever, e o que se segue uma exposio de algumas das prticas que o historiador do discurso poltico se ver empregando12, mais do que uma rigorosa recomendao para segui-las nessa ordem. Contu

    12. A lngua inglesa no conta com um pronome de terceira pessoa sem gnero. Ao escrever sobre autores na histria do discurso poltico, em sua maioria, homens, no me sinto constrangido ao em pregar o pronom e masculino, mas quando se trata dos autores dessa histria (os historiadores), ocorre-me um grande nm ero de destacados nomes femininos que me lembram que o pronome bem poderia estar no feminino.

    30

  • INTRODUO

    do, na perspectiva aqui sugerida, parece ser uma necessidade prioritria estabelecer a linguagem ou linguagens em que determinada passagem do discurso poltico estava sendo desenvolvida. Essas linguagens tero sido, a rigor, sublinguagens, idiomas (linguagens restritas a uma atividade especfica) e retricas mais do que linguagens no sentido tnico, embora no seja incomum encontrar no incio da histria moderna textos poliglotas que combinam a lngua verncula com o latim, o grego e at o hebraico. Estaremos preocupados sobretudo com os idiomas ou os modos de discurso existentes no interior de uma determinada lngua verncula. Essas linguagens iro variar no seu grau de autonomia e estabilidade. De idiomas elas se convertero gradativamente em estilos , rumo a um ponto no qual a distino aqui traada entre langue e parole pode chegar a se perder. Mas ns estamos em busca de modos de discurso estveis o suficiente para estar disponveis ao uso de mais de um locutor e para apresentar o carter de um jogo definido por uma estrutura de regras para mais de um jogador. Isso nos possibilitar considerar o modo pelo qual os jogadores exploraram as regras uns contra os outros, e, no devido tempo, como atuaram sobre as regras com o resultado de alter-las.

    Esses idiomas ou jogos de linguagem variam tambm na origem e, conseqentemente, em contedo e carter. Alguns tero se originado nas prticas institucionais da sociedade em questo: como os jarges profissionais de juristas, telogos, filsofos, comerciantes, e todos aqueles que, por alguma razo, se tornaram reconhecidos como integrantes da prtica poltica e entraram para o discurso poltico. Pode-se aprender muito sobre a cultura poltica de uma determinada sociedade nos diversos momentos de sua histria, observando-se que linguagens assim originadas foram sancionadas como legtimas integrantes do universo do discurso pblico, e que tipos de intelligentsia ou profisses adquiriram autoridade no controle desse discurso. Mas sero encontradas outras linguagens, cujo carter mais retrico do que institucional. Ser possvel perceber que elas se originaram como modos de argumentao no interior do prprio processo evolutivo do discurso poltico, como novos modos inventados, ou como velhos modos transformados pela constante ao da fala sobre a lngua, da parole sobre a langue. Talvez, na busca das origens desses modos de argumentao, no seja to necessrio investigar fora do continuum do discurso poltico. Da mesma forma, no h nada que possa impedir que linguagens da categoria anterior, originadas fora da tendncia geral do discurso poltico, entrem no processo de transformao que acabamos de descrever e sofram as transformaes que engendram novos idiomas e novos modos de argumentao. Disso tudo, segue-se que a linguagem geral do discurso em qualquer poca determinada - embora isso possa ser particularmente verdadeiro no que concerne ao incio da modernidade na Europa e Gr-Bretanha - pode exibir uma textura extremamente

    31

  • frica e complexa. Uma ampla variedade de idiomas pode ter penetrado nela, e esses idiomas podem estar interagindo entre si para produzir uma histria complexa.

    Cada uma dessas linguagens, sejam quais forem suas origens, exercer o tipo de fora que tem sido chamada de paradigmtica (embora o trabalho de depurao desse termo no tenha se mostrado muito proveitoso). Ou seja, cada uma delas contribuir com informaes selecionadas como relevantes ao exerccio e natureza da poltica, e favorecer a definio de problemas e valores polticos de uma determinada forma, e no de outra. Cada uma, portanto, favorecer determinadas distribuies de prioridades e, conseqentemente, de autoridade. Se um determinado conceito de autoridade estiver em discusso - como provvel que ocorra no discurso poltico - , uma determinada linguagem apresentar a autoridade como emergindo de certa forma e possuindo certo carter, e no de outra forma e com outro carter. Contudo, uma vez que tenhamos definido o discurso poltico como um discurso que se serve de uma srie de linguagens e modos de argumentao provenientes de diversas origens, estaremos comprometidos com a suposio da presena de uma srie dessas estruturas paradigmticas, distribuindo e definindo a autoridade de diversas maneiras e a qualquer momento. Disso se segue - o que de qualquer forma quase evidente - que a linguagem poltica por natureza ambivalente. Ela consiste na enunciao do que tem sido chamado de proposies e conceitos essencialmente contestados13 e no emprego simultneo de linguagens que favorecem a enunciao de proposies diversas e contrrias. Mas disso ainda se segue - o que quase, mas no exatamente, a mesma coisa - que qualquer texto ou enunciao em um discurso poltico sofisticado , por natureza, polivalente. Ele consiste no emprego de uma textura de linguagens capaz de dizer coisas diferentes e de proporcionar maneiras diversas de dizer as coisas, na explorao dessas diferenas na retrica e na prtica, e em sua explorao e possivelmente sua resoluo na teoria e na anlise crtica. Quando diversas dessas linguagens so encontradas em determinado texto, pode-se inferir que uma determinada enunciao poder ser nele efetuada e interpretada - e o mesmo vale no que se refere ao seu efeito - em mais de uma dessas linguagens ao mesmo tempo. E no de forma alguma impossvel que determinado padro de discurso possa migrar, ou ser traduzido, de uma linguagem para outra presente no mesmo texto, trazendo implicaes do contexto anterior para as do novo contexto. E o autor pode mover-se em meio a esses padres de polivalncia, empregando-os e recombinando-os de acordo com sua prpria habilidade. O que a um pesquisador pode parecer a gerao de mal

    LINGUAGENS DO IDERIO POLTICO

    13. Quanto a esse termo, proposto por W. B. Gallie, em 1956, ver W illiam E. Connolly, The Terms o f Political Discourse, 2 ed., Princeton, NJ, Princeton University Press, 1983.

    32

  • INTRODUO

    entendidos e confuses lingsticas, a outro pode parecer a gerao de retrica, literatura e histria do discurso.

    Uma grande parte de nossa prtica como historiadores consiste err( aprender a ler e reconhecer os diversos idiomas do discurso poltico )da forma pela qual se encontravam disponveis na cultura e na poca em que o historiador est estudando: identific-los medida que aparecem na textura lingstica de um determinado texto e saber o que eles comumente teriam tornado possvel ao autor do texto propor ou dizer. A determinao de at que ponto o emprego que o autor faz desses idiomas era incomum vem mais tarde. Q historiador persegue sua primeira meta, lendo extensivamente a literatura da poca e aguando sua prpria sensibilidade e intuio para detectar a presena dos diversos idiomas. Em certo grau, portanto, seu processo de aprendizado um processo de familiarizao, mas ele no pode permanecer meramente passivo e receptivo linguagem (ou linguagens) que l e, com freqncia, deve empregar certos procedimentos de deteco que lhe tornam possvel a construir e validar hipteses, no sentido de estabelecer que tais e tais linguagens estavam sendo empregadas e podiam ser empregadas de tais e tais maneiras. Nessa linha de trabalho, ele ter inevitavelmente de se defrontar com problemas de interpretao, de tendncia ideolgica e com o crculo hermenutico. Que indcios tem ele da presena de determinada linguagem nos textos que analisa, alm de sua prpria engenhosi- dade em detect-la neles? No est ele programado, por aspectos marcantes provenientes de sua prpria cultura, para detectar aspectos marcantes anlogos na literatura do passado e inventar linguagens hipotticas nas quais eles supostamente teriam sido expressos? Pode ele ir da afirmao de que leu certa linguagem nos textos de uma cultura do passado para a de que essa linguagem existia como recurso disponvel para os que efetuavam atos de enunciao nessa mesma cultura?

    De modo caracterstico, o historiador est interessado nas aes de outros agentes que no ele prprio, e no deseja ser o autor de seu prprio passado tanto quanto deseja desvelar as aes de outros autores na histria e da histria. Essa provavelmente uma das razes por que suas polticas so intrinsecamente liberais, mais do que voltadas para a prxis. No tipo de investigao que aqui examinamos, o historiador est menos interessado no estilo ou modo de enunciao de um determinado autor do que na linguagem ou modo de enunciao disponvel a uma srie de autores e com uma srie de propsitos, e suas provas para sustentar que tal ou tal linguagem existia como recurso cultural para determinados atores da histria - e no como mero resultado da ao de seu olhar interpretativo - tendem a estar relacionadas ao nmero de atores que ele puder mostrar terem operado nesse meio expressivo e ao nmero de atos que ele puder mostrar que eles efetuaram. Quanto mais ele puder provar (a) que diversos autores empregaram o mesmo idioma e nele efetuaram enunciaes diversas

    33

  • LINGUAGENS DO IDERIO POLTICO

    e at mesmo contrrias, (b) que o idioma recorrente em textos e contextos alm daqueles em que foi detectado pela primeira vez, e (c) que os autores expressaram em palavras sua conscincia de que estavam empregando tal idioma e desenvolveram linguagens crticas e de segunda ordem para comentar ou regular o emprego desse idioma - tanto mais a confiana desse historiador em seu prprio mtodo aumentar. Evidentemente, talvez ele no possa provar que toda a massa de indcios de que dispe no fruto de sua engenhosidade como intrprete, mas ele tampouco pode provar que no est dormindo e sonhando toda sua existncia aparente. Quanto maior o nmero e a diversidade de performances ele puder relatar, mais as hipteses erigidas por aqueles que pretendem aprision-lo no crculo hermenutico devero terminar por se assemelhar a um universo ptolomaico, formado de mais ciclos e epiciclos do que o necessrio para satisfazer a mente sensata de Afonso o Sbio. Em suma, mais esse universo exibir as desvantagens da irrefutabilidade.

    O problema da interpretao vem novamente tona de forma mais urgente, quando temos em vista que o historiador estuda linguagens para poder l-las, mas no para falar ou escrever nelas. Seus prprios textos no sero compostos como pastiches dos vrios idiomas que eles interpretam, e sim linguagens que ele cria para poder descrever e explicar os mecanismos desses idiomas. Se, na terminologia de Collingwood, ele aprendeu a repensar os pensamentos de terceiros, a linguagem na qual ele reitera as enunciaes desses terceiros no ser a que eles usam, mas a sua prpria. Ela ser explicativa no sentido de buscar constantemente tornar explcito o implcito, trazer luz pressuposies sobre as quais repousava a linguagem dos outros, rastrear e pr em palavras implicaes e insinuaes que, no texto original, podem ter permanecido no-ditas, apontar convenes e regularidades que indiquem o que podia e o que no podia ser dito nessa linguagem e que indiquem de que maneiras a linguagem qua paradigma favoreceu, imps ou proibiu seus usurios de falar e pensar. Em uma medida realmente considervel, a linguagem do historiador ter o carter de um prognstico sob hipoteca. Ela o capacitar a determinar o que ele espera que um usurio convencional da linguagem sob anlise teria dito em circunstncias especficas, para melhor estudar o que foi de fato dito sob essas circunstncias. Quando o prognstico desmentido pelos fatos e o ato de fala efetuado no o esperado, pode ser que as convenes da linguagem necessitem de maior exame de que as circunstncias em que a linguagem foi utilizada fossem diferentes das supostas pelo historiador, de que a linguagem empregada no seja precisamente a linguagem que ele esperava, ou, a mais interessante de todas as possibilidades, de que estivessem ocorrendo inovaes e mudanas na linguagem.

    Ser nesses momentos que o historiador se sentir mais seguro de que no ser meramente um prisioneiro da sua prpria engenhosidade interpretativa, mas

    34

  • INTRODUO

    permanece o fato de que seus textos sobre a linguagem de terceiros sero elaborados, em grande parte, em uma paralinguagem ou metalinguagem criada para explicitar o implcito e apresentar a histria de um discurso como uma espcie de dilogo entre suas insinuaes e potencialidades, no qual o que nem sempre foi dito ser dito pelo historiador. Dizer que o historiador com freqncia, embora no invariavelmente, apresenta a linguagem na forma de um modelo ideal - um modelo por meio do qual ele realiza suas exploraes e experimentos - no faz dele um idealista. Dado que ele est, em ltima anlise, preocupado com as performances de agentes outros que no ele prprio, o historiador est constantemente atento s ocasies em que a explicao da linguagem foi efetuada por atores da histria que ele est estudando. Ou seja, ocasies em que os prprios usurios da linguagem comentam seu uso criticamente, reflexivamente, por meio de linguagens de segunda ordem, por eles desenvolvidas com esse propsito. Trata-se de ocasies nas quais os atores passaram do discurso simples para o discurso continuado e modificado pelo uso de meios que incluem a teoria, mas sero tambm ocasies que oferecero ao historiador informaes que o capacitaro a controlar suas hipteses anteriores e a construir outras novas. A explicao das linguagens que ele aprendeu a ler seu meio de levar adiante suas investigaes, simultaneamente em duas direes: na dos contextos em que a linguagem foi enunciada e na dos atos de fala e de enunciao efetuados no e sobre o contexto oferecido pela prpria linguagem e outros contextos em que ela se situava. Ele procurar, em seguida, observar a parole agindo sobre a langue : sobre as convenes e implicaes da linguagem, sobre outros atores como usurios da linguagem, sobre atores em quaisquer outros contextos, de cuja existncia ele possa se sentir persuadido, e possivelmente sobre esses mesmos contextos. A linguagem, no sentido em que estamos usando o termo, a chave do historiador tanto para o ato de fala quanto para o contexto.

    J vimos que os textos que ele estuda podem se revelar como constitudos a partir de muitos idiomas e linguagens. O historiador sente-se constantemente surpreso e encantado com a descoberta de linguagens familiares em textos igualmente familiares, nos quais elas ainda no haviam sido notadas - a linguagem de exegese proftica no Leviat*4, a de documento de denncia em Reflections on the Revolution in FranceX5~, embora fazer essas descobertas nem sempre aumente seu respeito pelo

    14. T im e, H istory and E schatology in the T hought o f Thom as H obbes , em J. H. E llio lt e H. G. Konigsberger (orgs.), The Diversity o f History: Essays in H onour o f Sir Herbert Butterfield, Londres, Routledge and K. Paul, 1970, reimpresso em J. G. A. Pocock, Politics, Language and Time: Essays in Political Thought and History, Nova Iorque, Atheneum, 1971.

    15. Ver captulo A Economia Poltica na Anlise de Burke da Revoluo Francesa.

    35

  • LINGUAGENS DO IDERIO POLTICO

    conhecimento anterior. Mas se uma proposio deriva sua validade da linguagem em que efetuada, e pelo menos parte de sua historicidade deriva de sua ao sobre a mesma linguagem, segue-se que um texto composto por muitas linguagens no somente pode dizer muitas coisas de muitas maneiras, mas pode tambm ser um meio de ao em igualmente muitas histrias. Ele pode ser fragmentado em muitos atos efetuados na histria de tantas linguagens quanto as que esto presentes no texto. Reconhecer esse fato envolver o historiador com alguns radicais, embora nem sempre irreversveis, experimentos de desconstruo, mas antes de poder lev-los adiante ou examinar suas implicaes, ele necessitar de meios para entender como um ato de fala, enunciao ou autoria, efetuado em uma certa linguagem, pode atuar sobre ela e introduzir inovaes nela. Sua ateno voltar-se- agora da langue para a parole, para o ato efetuado sobre e no interior de um contexto. Mas o conhecimento do contexto continua sendo necessrio para o conhecimento da inovao.

    III

    Cada um dos idiomas distintos de que um texto pode ser composto um contexto por direito prprio: uma maneira de falar que procura prescrever que coisas podem ser ditas atravs dela, que precede o ato de fala efetuado dentro de suas prescries e pode perdurar mais do que ele. Esperamos que um idioma seja complexo e sofisticado, que tenha se formado ao longo do tempo, sob a presso de um grande nmero de convenes e contingncias em combinao, e que contenha ao menos alguns elementos de uma linguagem de segunda ordem que permitam aos seus usurios refletir sobre as implicaes de seu uso. O processo de aprendizado desse idioma, que acaba de ser descrito, pode, portanto, ser considerado um processo de aprendizado de suas caractersticas, recursos e limitaes como modo de enunciao que facilita a efetuao de alguns tipos de atos de fala e inibe a de outros. Qualquer ato efetuado nele pode ser visto como exploratrio, explorando, recombi- nando e desafiando as possibilidades de enunciao em que ele consiste. Mas a linguagem referencial e alude a vrios objetos. Ela alude a elementos de uma experincia da qual ela provm e com os quais ela torna possvel lidar, e de uma linguagem corrente no discurso pblico de uma sociedade institucional e poltica, pode-se esperar que ela aluda a instituies, autoridades, valores simblicos e acontecimentos registrados que ela apresenta como parte da poltica dessa sociedade e dos quais deriva muito do seu prprio carter. Uma linguagem no nosso sentido especfico , ento, no apenas uma maneira de falar prescrita, mas tambm um

    36

  • INTRODUO

    tema de discusso prescrito para o discurso poltico. Neste ponto, podemos ver que cada contexto lingstico indica um contexto poltico, social ou histrico, no interior do qual a prpria linguagem se situa. Contudo, neste mesmo ponto, somos obrigados a reconhecer que cada linguagem, em certa medida, seleciona e prescreve o contexto dentro do qual ela dever ser reconhecida.

    Dado que cada uma dessas linguagens levou tempo para se formar, ela deve necessariamente apresentar uma dimenso histrica. Ela deve possuir e prescrever um passado constitudo pelas configuraes sociais, acontecimentos histricos, valores reconhecidos e modos de pensar sobre os quais ele pode falar. Ela discursa acerca de uma poltica da qual o carter de passado no pode ser totalmente extirpado. O historiador, portanto, no pode satisfazer facilmente exigncia, que freqentemente lhe feita, de apresentar os atos de fala (discurso) poltica como determinados (na terminologia criticada por Oakeshott) pelas exigncias primordiais de um presente de ao prtica16. difcil isolar ou explicar o presente com uma pureza prtica imediata, pois a linguagem o caracteriza como um discurso carregado de insinuaes do passado. O discurso poltico obviamente prtico e animado por necessidades do presente, mas no obstante est constantemente envolvido em um esforo por descobrir quais so as necessidades presentes da prtica, e as mentes mais vigorosas que o utilizam esto constantemente explorando a tenso entre os usos lingsticos estabelecidos e a necessidade de usar as palavras de novas maneiras. O historiador tem a sua prpria relao com essa tenso. Ele sabe quais normas a linguagem que ele est estudando usualmente implicava, mas ele pode possuir tambm algum conhecimento independente de que essas normas e a sociedade que elas pressupunham estavam mudando, de um modo e por razes que a linguagem at ento no tivera meios de reconhecer. O historiador ir, portanto, procurar os indcios de que as palavras estavam sendo usadas de novas maneiras, como resultado de novas experincias, e estavam dando origem a novos problemas e possibilidades no discurso da linguagem sob estudo. Ser uma dificuldade para ele, no entanto, o fato de que nada nessa linguagem denota mudanas em seu contexto histrico de modo to satisfatrio quanto o faz a linguagem que est disponvel a ele como historiador, mas que no est disponvel aos atores cujas linguagem e histria ele est estudando. Diante de problemas como o de at que ponto se pode usar categorias do sculo XX para explicar categorias em uso no sculo XVII, o historiador pode impor a si mesmo a disciplina de explicar somente como as mudanas na linguagem do sculo XVII indicavam mudanas no contexto histrico, que mudanas eram indicadas e que mudanas ocorriam nos modos de indicar es

    16. Ver nota 11, neste captulo.

    37

  • LINGUAGENS DO IDERIO POLTICO

    sas mudanas. Dado que a linguagem dos atores do sculo XVII respondia ao seu contexto histrico de modo diferente da forma pela qual responde a linguagem que ele prprio utiliza, pode haver um longo caminho a percorrer antes que o discurso do sculo XVII, interpretado em seu contexto, lhe proporcione a oportunidade de usar as categorias de explicao histrica que ele desejaria usar - e, em alguns casos, essa oportunidade pode nunca aparecer. Mas o historiador do discurso no pode tirar de uma linguagem aquilo que nunca esteve nela.

    O presente de necessidades prticas em que os atores do passado se encontravam no imediatamente acessvel, dado que deve chegar at ns pela mediao da linguagem que eles usavam. Mas isso no significa que no seja acessvel. A partir dos textos que eles escreveram, a partir de nosso conhecimento da linguagem que usavam, das comunidades de debate s quais pertenciam, dos programas de ao que foram colocados em prtica e da histria do perodo em geral, freqentemente possvel formular hipteses referentes s necessidades que eles tinham e s estratgias que desejavam levar adiante, e testar essas hipteses usando-as para interpretar as intenes e as aes dos prprios textos. Estamos interessados, contudo, menos na prtica do texto do que em sua performance discursiva. Ningum tentou identificar os mil cavalheiros cujas mentes Hobbes certa vez afirmou17 terem forjado uma conscienciosa obedincia ao governo da Commonwealth, nem nos diria muito sobre o Leviat saber se eles realmente existiram. No nos importa muito saber se os primeiros leitores de II Prncipe (fossem quem fossem) estavam dispostos a aceitar ou rejeitar a legitimidade do governo restaurado dos Mediei, especialmente considerando-se que a obra parece capaz de operar em ambas as direes. O que nos importa estudar as diferenas que II Prncipe e o Leviat representaram diante das premissas sobre as quais o discurso poltico era efetivado. Isso significa dizer, evidentemente, que somos historiadores do discurso, no do comportamento, mas significa tambm ler Maquiavel e Hobbes como eram lidos por todos aqueles cuja resposta a esses autores possumos em forma escrita. Essas respostas esto, sem exceo, preocupadas, no com suas conseqncias polticas prticas, mas com os desafios que esses textos colocam s estruturas normais do discurso. A histria do discurso no uma seleo arbitrria nossa. Ela se revela por si mesma na literatura.

    V A performance do texto sua performance como parole em um contexto de langue. Esse contexto pode simplesmente dar continuidade s convenes atuantes na linguagem. Ele pode servir para nos indicar que essa linguagem continuava a ser

    17. Thomas Hobbes, Six Lessons to the Professors o fth e M atheinatics (...) (1656); ver W illiam Molesworth (org.), The English Works o f Thomas Hobbes, Londres, J. Bohn, 1839-1845 (11 vols.), vol. 7, pp. 335- 336, 343-347.

    38

  • INTRODUO

    usada em um mundo que estava em mudana e que estava comeando a mud-la. Ou ele pode atuar tanto sobre quanto na linguagem que seu meio, inovando de maneiras que trazem mudanas maiores ou menores, mais ou menos radicais, no uso da linguagem ou da linguagem de segunda ordem que discorre sobre essa linguagem (falo aqui, por uma questo de simplicidade, como se cada texto fosse escrito em apenas uma das linguagens disponveis no discurso, em vez de em vrias). O historiador precisa, portanto, de meios para compreender como um ato de fala efetuado num determinado contexto lingstico e, em particular, como atua e inova sobre ele.

    Quando um autor efetua um ato dessa natureza, costumamos dizer que ele executou um lance. A expresso sugere jogo e manobra ttica, e nossa compreenso de o que ele estava fazendo quando executou seu lance depende portanto, em grande parte, de nossa compreenso da situao prtica na qual ele se encontrava, do argumento que ele desejava defender, da ao ou norma que ele desejava legitimar ou invalidar, e assim por diante. Esperamos que seu texto indique tal situao, uma situao da qual temos algum conhecimento independente por meio de outras fontes. A situao prtica incluir presses, restries e encorajamentos aos quais o autor estava sujeito ou acreditava estar sujeito, originados nas preferncias e antipatias de terceiros e nas limitaes e oportunidades do contexto poltico, tal como ele o percebia ou vivia. E claramente possvel, mas no claramente necessrio, que essa situao se estenda at o nvel das relaes entre as classes sociais. Mas a situao prtica tambm abrange a situao lingstica: a situao resultante das restries e oportunidades impostas sobre o autor pela linguagem ou linguagens disponveis para seu uso, e freqentemente - talvez predominantemente - nesse contexto (ou nesse setor do contexto) que o historiador do discurso vislumbra a execuo do lance do autor. A