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1 A FORMAÇÃO DA NOBREZA SEGUNDO SMITH E TOCQUEVILLE MENDES, Claudinei Magno Magre (DHI/UNESP/Assis) Não sei o que torna o homem mais conservador: conhecer apenas o presente, ou apenas o passado (Keynes, 1926). Car la manière dont on juge ce passé peut avoir une grande influence sur l’avenir (Tocqueville, 1857). Quando se trata de analisar as diferentes interpretações da história é preciso ter em mente que as mesmas são, antes de tudo, fatos históricos. Isto significa que as distintas modalidades de se conceber a história não derivam das qualidades pessoais de seus autores, mas que foram produzidas em determinado contexto histórico. Por isso, fazem parte da história e somente podem ser explicadas por meio dela. Ainda que o contexto histórico seja elemento decisivo para explicar determinada interpretação da história, ele não é suficiente. É preciso, também, levar em conta o posicionamento do autor diante das questões que se colocam à sociedade em sua época. Com efeito, em um mesmo contexto histórico podemos encontrar distintas maneiras de se conceber a história e, por consequência, interpretar o processo histórico. Um exemplo bastante marcante disso é a historiografia relativa à Revolução Francesa. Mal ela dava seus primeiros passos quando surgiram interpretações que tinham a intenção de explicá-la. Evidentemente, cada uma dessas interpretações tinha o viés da posição que seu autor havia tomado diante desse processo histórico. Aqueles autores que eram contrários à revolução tinham, como não podia deixar de ser, uma explicação para suas origens. Em troca, aqueles que apoiavam a revolução encaravam-na de modo distinto e a explicavam, igualmente, de maneira diversa daqueles que a condenavam. Entre uns e outros, uma gama de posicionamento e de interpretação que expressava as diferentes posições e opiniões diante da revolução. O fato de ser a história que explica as diferentes interpretações não significa que os historiadores tenham consciência disso. Ao contrário, nem todos os historiadores e, por conseguinte, as diferentes concepções de história concordariam que elas são produto da história. Em razão disso, não se pode apoiar nas formulações dos historiadores quando eles tratam de explicar as razões do surgimento de uma nova maneira de conceber a história ou

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A FORMAÇÃO DA NOBREZA SEGUNDO SMITH E TOCQUEVILLE

MENDES, Claudinei Magno Magre (DHI/UNESP/Assis)

Não sei o que torna o homem mais conservador: conhecer

apenas o presente, ou apenas o passado (Keynes, 1926).

Car la manière dont on juge ce passé peut avoir une grande

influence sur l’avenir (Tocqueville, 1857).

Quando se trata de analisar as diferentes interpretações da história é preciso ter em

mente que as mesmas são, antes de tudo, fatos históricos. Isto significa que as distintas

modalidades de se conceber a história não derivam das qualidades pessoais de seus autores,

mas que foram produzidas em determinado contexto histórico. Por isso, fazem parte da

história e somente podem ser explicadas por meio dela.

Ainda que o contexto histórico seja elemento decisivo para explicar determinada

interpretação da história, ele não é suficiente. É preciso, também, levar em conta o

posicionamento do autor diante das questões que se colocam à sociedade em sua época. Com

efeito, em um mesmo contexto histórico podemos encontrar distintas maneiras de se conceber

a história e, por consequência, interpretar o processo histórico. Um exemplo bastante

marcante disso é a historiografia relativa à Revolução Francesa. Mal ela dava seus primeiros

passos quando surgiram interpretações que tinham a intenção de explicá-la. Evidentemente,

cada uma dessas interpretações tinha o viés da posição que seu autor havia tomado diante

desse processo histórico. Aqueles autores que eram contrários à revolução tinham, como não

podia deixar de ser, uma explicação para suas origens. Em troca, aqueles que apoiavam a

revolução encaravam-na de modo distinto e a explicavam, igualmente, de maneira diversa

daqueles que a condenavam. Entre uns e outros, uma gama de posicionamento e de

interpretação que expressava as diferentes posições e opiniões diante da revolução.

O fato de ser a história que explica as diferentes interpretações não significa que os

historiadores tenham consciência disso. Ao contrário, nem todos os historiadores e, por

conseguinte, as diferentes concepções de história concordariam que elas são produto da

história. Em razão disso, não se pode apoiar nas formulações dos historiadores quando eles

tratam de explicar as razões do surgimento de uma nova maneira de conceber a história ou

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mesmo explicar os motivos que o levaram a elaborar uma nova concepção da história. A ideia

de que as diferentes concepções da história são um produto da história e são por ela

explicadas é, ela própria, uma determinada maneira de conceber a história.

Existem, basicamente, duas situações quando se trata de analisar determinada

concepção da história. A primeira delas é quando esta concepção de história diz respeito

diretamente às nossas opções políticas. Uma concepção de história que nos é contemporânea

leva-nos, de imediato, ao nosso posicionamento diante das questões de nossa época e, por

conseguinte, à nossa posição diante da concepção de história analisada. Em suma, somos

contra ou a favor dela. Daí deriva um debate que pode assumir feições de um debate

historiográfico, mas que é, em última análise, um debate político.

Foi o que se passou na França, na segunda metade do século XIX e nas primeiras

décadas do século XX. Em um primeiro momento, os historiadores Charles Seignobos (1854-

1942) e Charles-Victor Langlois (1863-1929), para estabelecerem seu modo de conceber a

história, criticaram a historiografia então vigente. Mais tarde, a própria maneira de fazer

história de Seignobos e Langlois também foi objeto de críticas pelos fundadores da Escola dos

Annales: Lucien Febvre (1878-1956) e Marc Bloch (1886-1944), que pretendiam sucedê-los,

substituindo uma história que acusavam de permanecer na superfície dos fatos, por outra que

apreendesse a totalidade dos fenômenos históricos. Nesse embate, os historiadores vinculados

a historiografia positivista reagiram, respondendo às críticas recebidas. Todos esses

momentos desse embate fazem parte de um processo histórico. No centro da disputa estão

diferentes maneiras de se conceber a história, com implicações políticas, fato que dizia

respeito diretamente aos contemporâneos.

A segunda situação ocorre quando a análise de determinada interpretação da história

não nos diz respeito diretamente, não envolvendo uma disputa política imediata. Podemos

citar como exemplo o estudo de Tucídides (c.460/455 a.C.- c. 400 a.C.). A maneira como ele

concebia a história não nos afeta, a não ser, é claro, de modo muito mediato e indireto. Com

efeito, ela faz parte de uma época histórica que não nos diz respeito, ou seja, não se trata de

uma concepção de história vigente. Por isso, consideramo-la em sua historicidade,

procuramos compreender as razões que levaram esse historiador grego a conceber a história

como fez.

Evidentemente não estamos afirmando que a análise de um autor do passado encontra-

se isenta de partidarismos ou que não tenha um viés político ou, ainda, que, pelo fato de nos

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encontrarmos distantes desse autor, é possível examiná-lo de maneira objetiva e imparcial. Na

verdade, toda e qualquer análise histórica subentende determinado posicionamento político

diante das questões do presente. Em consequência, a análise de um historiador, mesmo que de

um passado remoto, constitui um fato histórico no sentido de que, em razão das questões da

época e do posicionamento político do estudioso, este o encara de uma determinada maneira.

Em suma, na análise de determinada maneira de conceber a história, é importante

considerar as críticas feitas tanto pelos historiadores que estão sendo substituídos como as dos

historiadores que defendem a nova concepção. Também é preciso levar em conta que, mesmo

quando se analisa uma determinada maneira de se conceber a história que não tenha relação

direta conosco, deve-se lembrar que, ainda assim, seu exame é feito a partir do modo como o

estudioso se posiciona diante das questões e valores da nossa época.

Além disso, na análise de dada interpretação da história, não se deve confrontá-la com

a teoria que seu autor é partidário ou com uma suposta realidade que ele pretendeu descrever.

Ao contrário, a análise deve ser feita vinculando a interpretação ao momento em que a mesma

foi elaborada. O confronto justifica-se apenas quando uma dada maneira de se conceber a

história confunde-se com a política; neste caso, a polêmica faz parte da análise histórica.

Por exemplo, no debate em torno do socialismo e do marxismo encontram-se

polêmicas cujo cerne era justamente a ortodoxia marxista. A crítica a determinado autor em

razão do seu suposto afastamento da ortodoxia marxista fazia parte da luta política e, por

conseguinte, da própria análise histórica. Passado esse momento, quando outros historiadores

se voltam para tal época histórica e examinam a concepção que se produziu, não como parte

de uma luta que ainda se trava, mas como passado, o confronto com a ortodoxia pode, e

muito, auxiliar na compreensão dos motivos que levaram dado autor a dela se desviar e

formular uma interpretação heterodoxa. Não se trata, porém, de considerar o desvio como

elemento central da análise, mas de se preocupar com os motivos que levaram o autor

estudado a semelhante escolha. Esta prática pode contribuir, e muito, para o exame dessa

interpretação, mas apenas como um recurso para compreender historicamente dada

interpretação ou autor. O confronto com a teoria não pode e nem deve, assim, substituir a

análise de dada interpretação com base nas questões da época em que foi elaborada.

Da mesma maneira, não se deve confrontar determinada interpretação com a realidade

que o autor pretendeu descrever. Não se pode ignorar, nesse caso, que a realidade com a qual

se pretende confrontar a interpretação é, também, ela própria, uma interpretação, que,

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destaque-se, supõe-se estar mais de acordo com a realidade do que a reprodução feita pelo

autor que a está analisando. Ao proceder desse modo, confronta-se, na verdade, distintas

interpretações, com a ressalva de que o estudioso julga que a sua é a correta.

Ao se considerar determinada interpretação como fato histórico, coloca-se como

problema identificar os motivos que produziram semelhante interpretação. Dessa maneira,

esta interpretação é inserida em sua época e se vincula às suas questões políticas, buscando

nesse vínculo sua explicação. Com isso, o autor da interpretação é mergulhado na história,

indicando, assim, que, ao fazer história, ele igualmente participou da história do seu tempo,

posicionando-se de determinada maneira diante das questões da sua época. Em suma, que ao

formular dada maneira de conceber a história esse autor fez escolhas. Estas orientam seu

modo de conceber a história.

Há, ainda, uma última questão que deve ser considerada na análise de dada

interpretação da história. Da concepção de que a história e a própria interpretação são

produtos históricos deriva que a História, como ciência, não constitui um processo

cumulativo. Não se pode, por isso, supor que uma geração possuiria mais conhecimento do

que a anterior e, portanto, lhe é superior. A trajetória do conhecimento histórico implica,

muitas vezes, o abandono do que era considerado importante pelas gerações anteriores. A

Nova História Cultural, por exemplo, não se interessou pelos aspectos que a historiografia

anterior, inclusive a Escola dos Annales, entendia como fundamentais para o conhecimento

histórico, ou seja, por aspectos como as relações econômicas, as relações sociais, a estrutura

da sociedade e assim por diante.

Entretanto, ainda que as concepções de história constituam produto da história e o

conhecimento histórico não seja um processo cumulativo, o fato é que os historiadores podem

aprender com os autores do passado. Em seu métier de historiadores, podem e devem recolher

determinadas formulações, verdadeiras tradições da historiografia, que muito os ajudariam.

Evidentemente, trata-se aqui, como em todas as outras situações, de um posicionamento

político e não do estabelecimento de uma verdade. Não se deve esquecer de que a maneira

como se enfrentam as questões do presente conduz a um dado modo de se conceber o passado

e, ao mesmo tempo, determina as escolhas do futuro. Referimo-nos à possibilidade de se

aprender com a história.

Consideremos aqui a maneira de alguns autores encararem determinados aspectos da

sua época e, por esse meio, o passado, maneira essa que pode, e muito, contribuir para a

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formação de uma concepção de história em que o presente não seja o juiz do passado.

Em primeiro lugar, antes de tudo, é preciso evitar o anacronismo. Ao se abordar uma

instituição de qualquer natureza ou uma formulação teórica de qualquer campo do

conhecimento, é importante refletir sobre o enfoque que lhe daremos. Pode-se afirmar que, no

campo da crítica das instituições ou das formulações teóricas, existem três concepções

distintas.

A primeira relaciona-se àqueles que lutam contra uma determinada instituição ou

formulação teórica. Podemos exemplificar com François Quesnay. Este autor criticou tanto as

instituições oriundas do mundo feudal quanto a política econômica mercantilista que, na

França, era conhecida como colbertismo. Independentemente de Quesnay estar correto ou não

ao afirmar que apenas a agricultura era um ramo produtivo, o fato é que, por meio dos seus

escritos, instituíram-se a crítica ao mercantilismo e a defesa da liberdade de produção e de

comércio. Em síntese, pode-se afirmar que a Fisiocracia foi uma das maneiras de se tomar

consciência da necessidade de destruir determinadas instituições com base em determinadas

explicações teóricas. A história fez-se, de fato, por intermédio dessas ideias. Assim, Quesnay

divisou aquilo que entravava o desenvolvimento da sociedade e colocou-o em destaque, de

uma perspectiva crítica (TOCQUEVILLE, 1982, p. 143-153).

A segunda relaciona-se aos historiadores que, identificados com determinadas

formulações, neste exemplo, com as de Quesnay, assumem, de certa maneira, as posições que

lhes são inerentes e analisam a história dessa perspectiva. Nesse caso, as instituições e as

formulações teóricas são compreendidas de maneira parcial, de uma única perspectiva, ou

seja, a de Quesnay. Geralmente, tais instituições e formulações teóricas são consideradas por

ocasião de sua crítica, ou seja, com base na crítica feita pelos contemporâneos que dela

discordam. Por exemplo, o ponto de partida da análise das instituições e das formulações do

mercantilismo é o da crítica sistematizada por Smith.

A terceira concepção relaciona-se àqueles que, na análise, apesar de tomar dada

instituição ou formulação teórica no momento da crítica, não se limita a ele. Ao contrário,

buscam as condições históricas em que esta instituição ou formulação teórica foi estabelecida,

procurando as razões do seu surgimento. Apreende, assim, a instituição ou a formulação

teórica em sua historicidade, mostrando-as desde o momento em que surgiram, as razões

mesmas do seu surgimento, as transformações que ocorreram, as circunstâncias históricas que

modificaram e pelas quais, por conseguinte, também foram modificadas, até o momento em

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que, deixando de responder às exigências da sociedade e permanecendo apenas para

fundamentar a manutenção de classes ou setores sociais, cuja existência já não tinha mais

justificativa, tornaram-se objeto de críticas.

Encontramos esta maneira de conceber a história em ao menos quatro autores: Smith

(1985), Turgot (2005), Marx (1977) e Tocqueville (1982). Infelizmente, ressalte-se, nenhum

deles foi historiador de profissão.

Neste texto, focalizando a questão sob o prisma da formação da nobreza,

consideraremos dois deles, Smith e Tocqueville, pelo fato de que trataram de relações sociais

que caracterizaram o mundo feudal.

1. ADAM SMITH E A TRAJETÓRIA HISTÓRICA DA GRANDE PROPRIEDADE

O livro III de A riqueza das nações, de Adam Smith, intitulado A diversidade do

progresso da riqueza das nações, é bastante importante para o historiador. Nesse livro, seu

autor acompanha a trajetória da grande propriedade e, por conseguinte, da nobreza, desde a

sua constituição após a dissolução do Império Romano até a segunda metade do século XVIII.

De acordo com Smith, existiria um curso natural das coisas e, por conseguinte, um progresso

natural da riqueza. Tal sequência no desenvolvimento histórico consistiria, primeiro, no

desenvolvimento da agricultura, depois, tendo este ramo alcançado determinado estágio,

formar-se-ia um capital excedente que ensejaria o desenvolvimento das atividades

manufatureiras, as quais, tendo alcançado certo patamar, criariam uma riqueza excedente que

permitiria o desenvolvimento do comércio exterior. Adverte o autor que, apesar de essa ordem

ter sido observada, em certo grau, em toda e qualquer sociedade, em todos os modernos países

da Europa, o fato é que, sob certos aspectos, ela teria sido totalmente invertida. Nesses países,

em razão da política mercantilista, o comércio exterior teria precedido e introduzido as

manufaturas mais refinadas e estas, por sua vez, teriam estimulado a agricultura, fazendo

surgir nela seus principais melhoramentos. Observa o autor:

Os hábitos e os costumes introduzidos pelo estilo de seus primeiros governos, hábitos e costumes esses que permaneceram mesmo depois de ter esses governos passado por profundas alterações, necessariamente lançaram esses países nessa ordem retrógrada e antinatural (SMITH, 1985, v. I, p. 324).

Assinalando que os hábitos e costumes são introduzidos em dada época para responder

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a determinadas necessidades e que os mesmos continuam a existir mesmo depois de terem

ocorrido mudanças na sociedade, tornando-se não apenas desnecessários, mas também

prejudiciais, Smith volta-se para a questão das origens da grande propriedade. Segundo ele,

após a invasão do Império Romano pelos povos bárbaros, “[...] as confusões que se seguiram

a essa grande revolução perduraram durante vários séculos”. As rapinas e as violências

cometidas por esses povos contra os antigos habitantes interromperam o comércio entre a

cidade e o campo. As cidades foram abandonadas e os campos deixados incultos, atingindo as

províncias da Europa ocidental, que entraram em um considerável estado de pobreza e

barbárie. Durante esse período, os chefes e líderes mais importantes das nações bárbaras

apropriaram-se da maior parte das terras. Destaca que grande parte delas permaneceu sem

cultivo, mas nenhuma, cultivada ou não, permaneceu sem proprietário. “Todas elas foram

açambarcadas, a maioria delas passando a ser propriedade de alguns grandes proprietários”

(SMITH, 1985, p. 325).

Observa que esta apropriação original das terras poderia constituir um mal transitório,

já que elas poderiam ser novamente repartidas ou subdivididas por sucessão ou por alienação.

Todavia, o estabelecimento de duas instituições impediu que isso ocorresse: a lei da

primogenitura, que proibia a divisão das terras por sucessão, e o morgadio, que evitava sua

divisão por alienação. Smith identifica, então, as razões desse fato: a terra havia se tornado

não apenas um meio de subsistência, mas um instrumento de poder e de proteção. Por isso, foi

determinado que a terra fosse herdada, indivisa, por um filho só. Explica ele:

Naquela época de desordem, todo grande senhor de terras era uma espécie de príncipe secundário. Seus rendeiros eram seus súditos. Ele era o juiz deles e, sob certos aspectos, seu legislador em tempos de paz e seu líder em tempos de guerra. Fazia guerra a seu talante, muitas vezes contra seus vizinhos, e às vezes até contra seu soberano. Portanto, a segurança de uma grande propriedade territorial, a proteção que seu proprietário tinha condições de oferecer aos que nela moravam, dependia da extensão da terra. Dividi-la significava arruiná-la, expor todas as suas partes a serem oprimidas e engolidas pelas incursões dos vizinhos (SMITH, 1985, v. I, p. 325-326).

Destaca que essas leis não foram implantadas imediatamente, mas com o correr do

tempo. Elas não surgiram prontas e acabadas, mas, aos poucos, como solução para um

problema que havia sido colocado. Em primeiro lugar, a propriedade deveria ser herdada por

um único filho, por meio de uma norma geral, fundada não em distinções equívocas de

méritos pessoais, mas em uma diferença simples e óbvia que não admitisse contestação. As

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únicas distinções inquestionáveis seriam as de sexo e idade. Assim, instituindo-se que o

herdeiro seria o filho mais velho, deu-se origem à lei da primogenitura.

Destaca Smith que, frequentemente, as leis conservavam sua vigência muito depois de

as circunstâncias que lhes tinham dado origem terem deixado de existir. Acrescenta que essas

circunstâncias eram a única justificativa razoável de tais leis (SMITH, 1985, p. 326). Afirma,

então, que, à sua época, embora o proprietário de um único acre de terra tivesse a mesma

segurança de posse que o proprietário de 100 mil acres, o direito de primogenitura continuava

sendo respeitado. Critica esse direito com o argumento de que nada poderia contrariar mais o

interesse verdadeiro de uma família numerosa do que um direito que, visando enriquecer um

dos filhos, transformava em mendicantes todos os demais.

Prosseguindo em sua análise, Smith afirma que o morgadio era uma consequência

natural da lei da primogenitura. Havia sido introduzido para preservar dada sucessão linear e

impedir que qualquer parcela da propriedade original saísse da linha proposta, por doação,

legado ou alienação, ou, então, pela insensatez ou pelo infortúnio de qualquer um de seus

proprietários sucessivos.

De acordo com Smith, o morgadio não era uma instituição desarrazoada à época em

que foi estabelecido. Ao contrário, de modo geral, era um meio de impedir que a segurança de

milhares de pessoas fosse comprometida pelo capricho ou extravagância de uma só pessoa.

No entanto, na situação em que se encontrava a Europa no século XVIII, quando as leis dos

respectivos países ofereciam segurança tanto às propriedades grandes como às pequenas, nada

poderia ser mais absurdo do que o morgadio, que se tornara um entrave ao desenvolvimento

da agricultura.

Não acompanharemos os passos de Smith em sua crítica à lei da primogenitura e ao

morgadio, pilares da grande propriedade na Europa e, mais particularmente, na Inglaterra.

Para nós, basta assinalar que ele considerou as duas instituições em dois momentos distintos.

Primeiro, no momento do seu estabelecimento. Nesse caso, relaciona-o com a

necessidade de, em face da desorganização da antiga sociedade, cujos tempos eram marcados

pela confusão, violência e falta de segurança, instituir-se a grande propriedade. Esta foi o

fundamento do poder militar e, por conseguinte, um instrumento indispensável para, nas

condições existentes, reorganizar a sociedade, dando segurança aos seus membros. Assim, as

duas instituições, a lei da primogenitura e o morgadio, tiveram um papel importante e

necessário.

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Segundo, na época em que deixou de corresponder a tal necessidade. Em decorrência

das transformações verificadas na sociedade, essas instituições não apenas deixaram de

cumprir um papel útil à sociedade, mas também se converteram em um estorvo ao seu

desenvolvimento. Ou seja, sem a razão de ser que lhes era atribuída na ocasião da sua

constituição, mantinham a existência da grande propriedade.

A forma como Smith analisou essas duas instituições é semelhante à de Tocqueville

(1982, p. 64), quando abordou as instituições feudais, especialmente quanto ao fato de que

elas teriam perdido a vitalidade no processo histórico. É o que procuramos demonstrar na

análise da maneira como Tocqueville tratou a nobreza.

2. TOCQUEVILLE E A TRAJETÓRIA DA NOBREZA

Pode-se afirmar que Smith e Tocqueville abordaram temas que, de certa maneira, se

complementam. Embora o economista escocês tenha colocado em destaque a formação da

grande propriedade e o político francês tenha dado ênfase à constituição da nobreza, o fato é

que esses dois processos não podem ser dissociados: o de constituição da grande propriedade

é, ao mesmo tempo, o de formação da nobreza.

Tal como em Smith, encontramos em Tocqueville, em sua obra O Antigo Regime e a

Revolução, muitas formulações que são de grande utilidade para a formação do historiador. A

primeira delas é a de que quem conhece apenas a história do seu país não conhece, de fato, a

história do seu país. Ele formula isso quando desenvolve a ideia de que, para se compreender

a Revolução Francesa, é preciso sair da França e comparar sua história com a de outros países

da Europa. Assim, indagando as razões que levaram a revolução a eclodir na França, apesar

de outras regiões terem as mesmas instituições, inclusive menos abaladas, Tocqueville

compara as histórias francesa, inglesa e alemã. É por meio dessa comparação que percebe as

particularidades da história da França, apreendendo, assim, as razões que levaram à eclosão

da revolução nesse país.

Tocqueville ensina-nos também que, para se apreender um fenômeno como o da

Revolução Francesa, não é suficiente estudar apenas o momento que lhe é imediatamente

anterior. Por essa razão, tal como fizera Guizot, ele recua sete ou oito séculos para

acompanhar as mudanças verificadas na nobreza até se tornar a classe que, às vésperas da

revolução, Sieyés, em seu famoso panfleto O que é o Terceiro estado?, descreveu tão bem.

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Como assinalou, seu objetivo era compreender as razões pelas quais a grande revolução que

se preparava ao mesmo tempo em quase todo o continente europeu, explodiu justamente na

França e não em outro lugar (TOCQUEVILLE, 1982, p. 44).

Antes de considerar a análise que Tocqueville fez do processo que deu origem à

Revolução Francesa, queremos chamar a atenção para sua maneira de fazer história.

Caracterizada como uma ‘história reflexiva’, ou seja, que se faz por meio de uma reflexão que

une o passado, o presente e, também, o futuro, seu ponto de partida é o presente e, sob certos

aspectos, o futuro. Segundo o autor, existiria uma força na história, uma espécie de fio

condutor, que, vindo de um passado remoto, explicava o presente e, por extensão, deixava

entrever o futuro. Esta força era a tendência à igualdade, que, desde séculos, trabalhando no

sentido de destruir todas as desigualdades entre os homens, prosseguia no presente e se

manteria atuante no futuro. Ele chegou mesmo a caracterizá-la como uma realidade

providencial, da qual possuía as principais características, como a universalidade, a

durabilidade e o fato de escapar da interferência humana (TOCQUEVILLE, 1977, p. 13).

Assim, para Tocqueville, segundo o qual a Revolução Francesa teria ocorrido no

interior desse grande processo, era necessário recuar sete ou oito séculos na história para

entendê-la. É verdade que, sob certos aspectos, se deveria recuar ainda mais, como o fez

Smith. Mas, na época abordada por Tocqueville, as instituições que a Revolução iria destruir

mais tarde já se encontravam constituídas e funcionando.

Tocqueville não trata diretamente do processo de constituição da nobreza. Toma-a

num dado momento, ou seja, quando ela se encontra plenamente constituída, cumprindo um

papel decisivo na manutenção e funcionamento da sociedade. Recuando no tempo, assinala

que, após a dissolução do Império Romano, apesar do fracionamento em mil pequenas

sociedades distintas e inimigas, separadas umas das outras, haviam surgido, por toda a

Europa, leis completamente uniformes.

Estas instituições não imitam a legislação romana; a ela são tão contrárias que foi do direito romano que se serviu para transformá-las e aboli-las. Sua fisionomia é original, distinguindo-as de todas as leis que os homens se deram. Correspondem simetricamente entre elas e, juntas, formam um corpo composto de partes tão estreitamente unidas quanto os artigos dos nossos códigos modernos e leis sábias destinadas a uma sociedade semigrosseira (TOCQUEVILLE, 1982, p. 63).

Na Idade Média, as instituições políticas na França, Inglaterra e Alemanha eram,

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apesar de tudo, idênticas:

Nos três países, as mesmas máximas guiam o governo e os mesmos elementos formam as assembléias políticas dando-lhes os mesmos poderes. Neles todos, a sociedade é dividida da mesma maneira e vemos a mesma hierarquia entre as diferentes classes; os nobres ocupam uma posição idêntica; têm os mesmos privilégios, a mesma fisionomia, a mesma natureza: não são homens diferentes, são, por toda parte, os mesmos homens. As constituições das cidades assemelham-se; o campo é governado da mesma maneira. A condição dos camponeses é muito parecida: tomam posse, ocupam e cultivam da mesma maneira e o agricultor tem os mesmos encargos. Dos confins da Polônia ao mar da Irlanda, assemelham-se a senhoria, a corte do senhor, o feudo e sua renda anual, os serviços a prestar, os direitos feudais, as corporações. Às vezes, os próprios nomes são iguais e, o que ainda é mais notável, o mesmo espírito anima todas estas instituições análogas (TOCQUEVILLE, 1982, p. 63-64).

Nesse processo de constituição da sociedade que emergiu dos destroços do mundo

romano, apoiando-se em novas instituições, formou-se a classe da nobreza. Como salientou

Smith, a nobreza que se formou, apoiada na grande propriedade, era condição mesma da

constituição e da manutenção da sociedade. Em suma, os processos de constituição da

sociedade, da nobreza e da grande propriedade são aspectos de um único processo.

Mostra Tocqueville que, antes da formação dos Estados Nacionais e da Monarquia

Absolutista, na época anterior à constituição da Realeza, a nobreza era a classe que

administrava a sociedade. Portanto, tinha um papel social a cumprir. É o que ele faz na

introdução de sua obra A Democracia na América, onde descreve a França e, por conseguinte,

a condição da nobreza setecentos anos antes da revolução, ou seja, no século XII:

Evoco, por instantes, o que era a França há setecentos anos: encontro-a dividida entre reduzido número de famílias que detêm a propriedade da terra e governam seus habitantes; o direito de dominar transmite-se então, com as heranças, de geração a geração; os homens têm apenas um meio de agir em relação aos outros: a força; não se conhece mais que uma só origem do poder: a propriedade do solo (TOCQUEVILLE, 1977, p. 11).

Com a progressiva formação dos Estados Nacionais e da Monarquia Absolutista, a

nobreza viu cada vez mais suas funções políticas serem retiradas de suas mãos e serem

desempenhadas pelos funcionários do rei:

No século dezoito, todos os negócios da paróquia eram conduzidos por um certo número de funcionários que não eram mais os agentes da senhoria e que

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o senhor não mais escolhia; uns eram nomeados pelo intendente da província, outros eleitos pelos próprios camponeses. Cabia a estas autoridades repartir o imposto, conservar as igrejas, construir escolas, chamar e presidir a assembléia da paróquia. Velavam o bem comunal, instauravam e seguiam os processos em nome da comunidade. O senhor, além de não mais dirigir a administração de todos estes pequenos negócios locais, tampouco os controlava. Todos os funcionários da paróquia obedeciam ao governo ou ao controle do poder central [...]. Mais do que isto, quase não se vê mais o senhor agir na paróquia como representante do rei, como o intermediário entre o rei e os habitantes. Não está mais encarregado de aplicar as leis gerais do Estado, juntar as milícias, cobrar os impostos, publicar os mandamentos do príncipe, distribuir socorros. Todos estes deveres e todos estes direitos pertencem a outros. Na realidade, o senhor não passa de um habitante que imunidades e privilégios o separam e o isolam de todos os outros. Sua condição é diferente, mas seu poder não o é mais. O senhor é apenas um primeiro habitante, dizem os intendentes nas suas cartas aos seus subdelegados (TOCQUEVILLE, 1982, p. 73).

Ele destaca que a parte política executada pela nobreza no passado havia desaparecido,

restando apenas a parte pecuniária, muitas vezes aumentada (TOCQUEVILLE, 1982, p. 74).

Observa, então, que, quando a nobreza, além de privilégios, possuía poderes e, assim,

governava e administrava, seus direitos particulares eram também maiores e menos visíveis.

Os nobres possuíam privilégios constrangedores e direitos onerosos; todavia, garantiam a

ordem pública, faziam a justiça, mandavam executar as leis, socorriam o fraco, dirigiam os

negócios comuns. Os privilégios eram, assim, a contrapartida de uma função que

desempenhavam na sociedade. Porém, à medida que deixaram de realizar esses deveres, isto

é, quando deixaram de realizar a parte política e se restringiram à parte pecuniária, o peso dos

seus privilégios tornou-se maior e sua existência acabou incompreensível.

Seyés já havia descrito esse momento no século XVIII. À pergunta do que era o

Terceiro estado, respondeu que era um todo completo:

Quem ousaria dizer que o Terceiro Estado não tem nele tudo o que é necessário para formar uma nação completa? É o homem forte e robusto que tem um braço acorrentado. Caso se retirasse a ordem privilegiada, a nação não seria alguma coisa de menos, mas alguma coisa de mais. Assim, o que é o Terceiro? Tudo, mas um todo entravado e oprimido. O que seria ele sem a ordem privilegiada? Tudo, mas um todo livre e florescente: nada pode ir sem ele; tudo iria infinitamente melhor sem os outros (SIEYÈS, 1822, p. 63-64).

Assim, Tocqueville acompanha a trajetória da nobreza desde o momento de sua plena

constituição, explicando os motivos do seu surgimento, ou seja, que ela era condição

indispensável para a reorganização e funcionamento da sociedade e também os de sua

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dissolução: quando, esvaziada de toda função social, ela se tornara não apenas uma classe

parasitária, como também um entrave, a sociedade resolveu essas questões por meio da

Revolução Francesa.

CONCLUSÃO

Assinalamos, ao longo do texto, seguindo as análises de Adam Smith e Alexis de

Tocqueville, uma maneira de se encarar as instituições e classes existentes na história. Smith

combateu as instituições que, na Inglaterra, impediam o solo de se transformar plenamente em

mercadoria. Ao buscar as razões que levaram à sua constituição, deu uma verdadeira aula de

história, indicando que, basicamente, as instituições possuem dois momentos distintos. O

primeiro, de seu surgimento, quando elas se destinam a cumprir uma função necessária à

existência da sociedade. O segundo, justamente porque essas instituições cumpriram o papel

para o qual tinham sido criadas, é aquele em que deixam de ser necessárias e, assim,

esvaziadas de suas funções sociais, convertem-se em obstáculos ao desenvolvimento da

sociedade.

Tocqueville, ainda que não estivesse em luta contra as instituições que analisa,

examina o processo que deu origem à Revolução Francesa. Para tanto, recua a uma época em

que a nobreza era essencial para a existência da sociedade. É nas transformações que ocorrem

na sociedade, cujo resultado é, também, entre outras coisas, esvaziá-la das funções para as

quais foi criada, que se poderiam encontrar as razões pelas quais a nobreza, que não o era,

tornou-se uma classe parasitária.

Enfim, quem examina a nobreza e a concebe da maneira como se apresenta no século

XVIII terá dela uma visão completamente distorcida. Ao historiador cabe, justamente, como

assinalou Bossuet (1627-1704), conhecer as mudanças memoráveis que a sequência dos

tempos fez no mundo:

Aliás, seria vergonhoso, não digo a um Príncipe, mas em geral a todo homem honesto, ignorar o gênero humano e as mudanças memoráveis que a sequência dos tempos fez no mundo. Caso não se aprender com a História a distinguir as épocas, se representará os homens sob a lei da natureza ou sob a lei escrita, tal como são sob a lei evangélica; se falará dos persas vencidos sob Alexandre como se fala dos persas vitoriosos sob Ciro [...] (BOSSUET, 1681, p. 2).

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REFERÊNCIAS

BOSSUET. Discours sur l’Histoire Universelle. Paris: Chez Sebastien Mabre-Cramoisy,

1681.

MARX, K. e ENGELS, F. O Manifesto do Partido Comunista. In: Textos. São Paulo: Edições

Sociais, 1977, 3 vs., v. III.

SIEYÈS, E. Qu’est-ce que le tiers état? Paris: Alexandre Correard, 1822.

SMITH, A. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. 2ª edição.

São Paulo: Nova Cultural, 1985, 2 vs.

TOCQUEVILLE, A. de. A Democracia na América. 2ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia; São

Paulo: USP, 1977.

_______ O Antigo Regime e a Revolução. 2ª edição. Brasília: UnB, 1982.

TURGOT. F. In: OLIVEIRA, T. e MENDES, C. M. M. (orgs.). Formação do Terceiro

Estado. As comunas. Maringá/PR: UEM, 2005.