platÃo e a terceira margem do rio: um estudo … · resumo da dissertação de mestrado submetida...

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Universidade Federal de Uberlândia PLATÃO E A TERCEIRA MARGEM DO RIO: UM ESTUDO SOBRE DIVISÃO E ONTOLOGIA DAS IDEIAS NO SOFISTA André Luiz Braga da Silva 2012 1

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Universidade Federal de Uberlndia

PLATO E A TERCEIRA MARGEM DO RIO:

UM ESTUDO SOBRE DIVISO E ONTOLOGIA DAS IDEIAS NO SOFISTA

Andr Luiz Braga da Silva

2012

1

UFU

PLATO E A TERCEIRA MARGEM DO RIO: UM ESTUDO SOBRE DIVISO E ONTOLOGIA

DAS IDEIAS NO SOFISTA

Andr Luiz Braga da Silva

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de

Ps-Graduao em Filosofia, da Universidade Federal

de Uberlndia, como parte dos requisitos necessrios

obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.

Orientador: Dennys Garcia Xavier

Uberlndia

Junho de 2012

2

3

SILVA, Andr Luiz Braga da.

Plato e a terceira margem do rio: um estudo sobre Diviso e

Ontologia das Ideias no Sofista/ Andr Luiz Braga da Silva. Uberlndia: UFU/IFILO, 2012.

216 f.

Orientador: Dennys Garcia Xavier

Dissertao (Mestrado) UFU/ IFILO/ Programa de Ps-

Graduao em Filosofia.

Referncias Bibliogrficas: f. 208-216.

1. Filosofia Antiga. 2. Plato 3. Sofista 4. Ideias 5. Diviso I.

XAVIER, Dennys Garcia. II. Universidade Federal de Uberlndia,

Instituto de Filosofia, Programa de Ps-Graduao em Filosofia.

III. Ttulo.

PLATO E A TERCEIRA MARGEM DO RIO: UM ESTUDO SOBRE DIVISO E ONTOLOGIA

DAS IDEIAS NO SOFISTA

Andr Luiz Braga da Silva

Orientador: Dennys Garcia Xavier

Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia, da

Universidade Federal de Uberlndia UFU, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo

de Mestre em Filosofia.

Aprovada por:

____________________________________

Presidente, Prof. Dr. Dennys Garcia Xavier

____________________________________

Prof. Dr. Nstor-Luis Cordero

____________________________________

Prof. Dr. Marcelo Perine

____________________________________

Prof. Dr. Rubens Garcia Nunes Sobrinho

Uberlndia

2012

4

A Samuca, Dora, Gabi e Tchelo

- .

5

VEREDAVoc sabe, desde grande parte de Minas Gerais (),

aparecem os campos gerais, ou gerais - paisagem geogrfica que se estende, pelo Oeste da Bahia, e Gois (), at ao Piau e ao Maranho.

O que caracteriza esses Gerais so as chapadas () e os chapades (). So de terra pssima, vrios tipos sobrepostos de arenito, infrtil. () A vegetao do cerrado: arvorezinhas tortas, baixas, enfezadas (). E o capim, ali, spero, de pssima qualidade (...). rvores, arbustos e m relva, so, nas chapadas, de um verde comum, feio, montono.

Mas, entre as chapadas, separando-as (ou, s vezes, mesmo no alto em depresses no meio das chapadas) h as veredas. So vales de cho argiloso ou turfo-argiloso, onde aflora a gua absorvida. Nas veredas, h sempre o buriti. De longe, a gente avista os buritis, e j sabe: l se encontra gua. A vereda um osis. Em relao s chapadas, elas so, as veredas, de belo verde-claro, aprazvel, macio. O capim verdinho-claro, bom. As veredas so frteis. Cheias de animais, de pssaros.

() Em geral, as estradas, na regio, preferem ou precisam de ir, por motivos bvios, contornando as chapadas, () de vereda em vereda. ()

(Guimares Rosa, explicando ao seu tradutor italiano o termo vereda1)

1 ROSA, J. G. Joo Guimares Rosa: correspondncia com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p. 40.

6

RESUMO

PLATO E A TERCEIRA MARGEM DO RIO:

UM ESTUDO SOBRE DIVISO E ONTOLOGIA DAS IDEIAS NO SOFISTA

Andr Luiz Braga da Silva

Orientador: Dennys Garcia Xavier

Resumo da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em

Filosofia, Instituto de Filosofia, da Universidade Federal de Uberlndia UFU, como parte dos

requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.

No dilogo Sofista de Plato, o personagem Estrangeiro de Eleia estabelece como procedimento fundamental de seu fazer filosfico o Mtodo de Diviso. Devido a

particularidades do procedimento como origem eleata, multiplicidade de definies de um

mesmo objeto, e incompatibilidade com ideias defendidas pelo personagem Scrates em outras

obras -, a existncia do Sofista sempre foi motivo de controvrsia na literatura secundria no que tange continuidade e unidade do pensamento platnico, sobretudo no que diz respeito

Teoria das Ideias. A partir da anlise do mtodo, tanto em sua forma quanto em seu contedo,

este estudo pretende reclamar para a Diviso a possibilidade de encaixe com a Ontologia de

Plato.

Palavras-chave: Plato, Sofista, Diviso, Ideias, Formas.

Uberlndia

2012

7

ABSTRACT

PLATO AND THE THIRD BANK OF THE RIVER:

A INVESTIGATION ON DIVISION AND ONTOLOGY OF IDEAS IN SOPHIST

Andr Luiz Braga da Silva

Orientador: Dennys Garcia Xavier

Abstract da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia, Instituto de Filosofia, da Universidade Federal de Uberlndia UFU, como parte dos

requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.

In Plato's dialogue Sophist, the character Strange from Elea states, as main process of his philosophic activity, the Method of Division. Particularities of the process as eleatic origin,

multiplicity of definitions about the same subject, and incompatibility with ideas held by

character Socrate in another works lead always scholars to disagreements about the continuity

and unity of platonic thought after the Sophist, especially about Theory of Forms. From the analysis of the method, as well on its form as matter, this paper wanna require for Division a

possibility of joining with Plato's Ontology.

Keywords: Plato, Sophist, Division, Ideas, Forms.

Uberlndia

2012

8

AGRADECIMENTOS

Ao governo federal, por, atravs de suas universidades e agncias de fomento, tornar o

ensino e a pesquisa de boa qualidade possveis em meu pas;

Aos funcionrios da Universidade Federal de Uberlndia, por toda a contribuio

dispensada nos ltimos anos, sobretudo Coordenadora do Programa de Ps-Graduao, Gergia

Amitrano, pela dedicao e acolhimento;

Aos amigos do Grupo de Estudo de Ontologia Platnica, especialmente Michele

(Kanashiro) e Ariane (Castelo), pela oportunidade de previamente discutir, qual laboratrio de ensaio,

muitas das ideias defendidas neste estudo;

Aos amigos do Grupo de Pesquisa da PUC/SP, em especial professora Rachel Gazolla,

pelo ambiente l gerado, frtil em discusses e instigador de pensamento;

Aos Professores Rubens Garcia, Marcelo Perine e Nstor Cordero, pela honra da

presena de suas leituras crticas e incentivadoras de crescimento em minha banca de defesa;

Aos amigos de longa data, que estiveram presente neste trabalho, diretamente e

indiretamente, desde o seu comeo at, mesmo sem o saber, hoje em dia: Camila (do Esprito Santo

Prado de Oliveira), Lethcia (Ouro de Almeida Marques de Oliveira), Admar (de Almeida Costa),

Marco (Antnio Valentim) e Pedro (Hussak van Velthen Ramos);

Aos professores Gilvan Luiz Fogel e Maria das Graas de Moraes Augusto, por tudo que

me ensinaram, dentre o que se inclui no s ler, analisar e apreciar as obras gregas, mas, sobretudo, e

com toda a certeza, amar a Grcia, a Arte, a Cultura, a Vida e o Pensamento;

Tatiana Paula de Oliveira, sem a qual a concluso deste trabalho no seria possvel,

especialmente no que tange a toda a empresa da Defesa;

Ao professor Dennys Garcia Xavier, por todo o apoio e liberdade a mim dirigidos nesses

anos de orientao, os quais sem dvida foram indispensveis a qualquer qualidade que o presente

trabalho porventura apresente.

9

SUMRIO

INTRODUO.......................................................................................................................................13

AVISO SOBRE TRADUES E TABELA DE TRANSLITERAO.................................................16

I. ANLISE DA ESTRUTURA DA DIVISO.......................................................................................17

1. A Estrutura Original da Diviso......................................................................................................181.1. Origem Histrica...............................................................................................................................18

1.1.1. Poema de Parmnides: Promio como prvia da Estrutura...........................................................19

1.1.2. Poema de Parmnides: A Rota traada na Via da Verdade.............................................................22

1.1.3. A Estrutura e a Obra de Zeno de Eleia.........................................................................................25

1.2. Origem Dramtica.............................................................................................................................27

1.2.1. O dilogo Parmnides e a ginstica filosfica...............................................................................281.2.2. Gymnasa e personagens................................................................................................................29

1.2.2.1. Scrates: as Formas so o campo no qual a ginstica deve acontecer........................................30

1.2.2.2. Zeno: o mtodo da ginstica o Hipottico-Dedutivo..............................................................33

1.2.2.3. Parmnides: Necessrio tambm investigar a Hiptese contrria...............................................35

1.2.2.4. A ginstica filosfica e a estrutura eleata....................................................................................37

1.3. Apresentao da Estrutura Original da Diviso no Sofista...............................................................391.3.1. O paradigma do Pescador com Anzol............................................................................................39

1.3.2. O sentido de diviso: Continuidade e Avano com relao Origem Eleata.............................41

2. A Ruptura com a Estrutura Original da Diviso.........................................................................45

2.1. Ruptura no Aspecto Histrico...........................................................................................................46

2.1.1. A Estrutura Dicotmico-Unvoca do Poema no Sofista.................................................................46

2.1.2. Parricdio.......................................................................................................................................50

2.1.3. Parricdio do ponto de vista Ontolgico........................................................................................52

2.1.4. Porque no h Parricdio Ontolgico.........................................................................................53

2.1.5. Porque h um parricdio sob o ponto de vista estrutural................................................................59

2.2. Ruptura no Aspecto Dramtico.........................................................................................................61

2.2.1. O aceno de Zeno e Parmnides no Parmnides para a no univocidade do mtodo: errncia..63

2.2.2. ...Herclito de feso, uma inspirao para a Ruptura Dramtica?.................................................67

2.2.3. A questo de as ideias do Estrangeiro serem j correntes em Eleia quando da discusso do

Sofista; a posio de Rosen e Slezk................................................................................................73

10

2.3. Uma Nova Estrutura para a Diviso; o Perspectivismo....................................................................78

2.3.1. As vrias definies de sofista: errncia do Estrangeiro...............................................................792.3.1.1. A posio de Pellegrin e a questo da eficcia do Mtodo de Diviso.......................................81

2.3.1.2. A posio de Wolff e a questo das divises perspectivsticas...................................................852.3.1.3. O pretendido argumento contra o Perspectivismo: Sofista 232a................................................89

2.3.1.4. Os jovens e velhos tardiamente instrudos..................................................................................94

2.3.1.5. A afinidade por natureza do dialtico com a diviso e a posio de Lassgue...........................96

2.3.1.6. Prdico de Quios, um predecessor do Estrangeiro no uso do mtodo de diviso?...................101

2.3.1.7. O Mtodo de Diviso do personagem Scrates: o mesmo que o do Estrangeiro?....................106

2.3.1.8. Resumo......................................................................................................................................109

II. ANLISE DO CONTEDO DA DIVISO....................................................................................112

3. De que trata a diviso? - Introduo ao problema.........................................................................1133.1. A Diviso lida com meras classes? Trevaskis e o Vis Taxionmico...........................................115

3.2. A boa diviso e as ede: duas regras no Poltico.............................................................................1203.3. ...Voltando argumentao de Trevaskis........................................................................................126

3.4. A Diviso lida com conceitos ou pensamentos? Griswold e o Vis Lgico-Lingustico......127

3.5. Acerca de mais alguns argumentos a desfavor da leitura analtica da Diviso...............................130

3.6. Um brevssimo adendo: a posio de Ryle.....................................................................................133

3.7. A Diviso lida com Formas? o Vis Ontolgico e seus autores...................................................134

4. Ontologia, Novidades e o Mtodo de Diviso................................................................................1374.1. Uma reviso na Relao F i: Um mesmo nome, um mesmo edos? (Repblica 596a x Politico

262d)...............................................................................................................................................138

4.2. Revises da Relao F F : os ecos do canto do Parmnides e as metforas do Sofista...............140

4.3. Porque, a rigor, no existe diviso...............................................................................................143

5. Diviso, Lgica e Tempo.................................................................................................................144

5.1. Poder de bem dividir: aprendizado, dom inato... ou petio de princpio?.....................................144

5.2. A circularidade do argumento: A Reminiscncia............................................................................146

5.3. Para um outro tipo de Reminiscncia: Paradoxo e Temporalidade no Mtodo de Diviso............1495.4. O Acontecimento Eterno: estar fora do tempo linear ser tempo enquanto totalidade..................152

6. Diviso e Participao Inteligvel..................................................................................................1546.1. Um mergulho nas metforas para participaes inter-eidticas......................................................154

6.2. Costurando as pistas acerca de um Mtodo para cardar Formas....................................................157

11

6.3. A interveno de Scrates e a questo do 'parentesco' entre as Formas..........................................159

6.4. Uma ltima metfora a ser analisada: entre as Formas, uma relao de... afeto?...........................166

6.5. Adendo: Um segundo mergulho nas metforas da relao F-F.......................................................169

6.6. Resumo e concluses parciais............................................................................................................................................170

7. Diviso: mero mtodo de busca ou efetivo farol sobre mapas de Formas?...................................1717.1. O filsofo enquanto pintor perspectivstico do real, e a posio de Cherniss................................173

7.2. Paixo, pinturas cartogrficas, foco e a posio de Dixsaut........................................................179

7.3. Discurso filosfico, Realidade, Perspectivismo; a posio de Souza.............................................183

III. CONCLUSO: Filosofia coisa de criana, criana em canoa; e, do rio do real o

'atravs'...........................................................................................................................................187IV. ANEXO I: Os Amigos das Ideias; a tese ridiculssima dos Ventrloquos; a posio de Brown.......201

V. BIBLIOGRAFIA...............................................................................................................................208

12

INTRODUO

Pelo qu estudar uma obra filosfica? Por aquilo dela que nos 'afeta'

- (...) o Sofista o meu Depois que o li, nunca mais consegui dele sair.

Andr Braga- Andr, lo mo tambin! Es un tringulo de las

bermudas...!Nstor Cordero

H dez anos atrs, ocorreu o meu primeiro contato com o dilogo Sofista, por ocasio da preparao para um exame universitrio, cujo tema seria a obra. A leitura mudou, completamente e para

sempre, meu interesse pelo pensamento de Plato. O exame era para ingresso ao mundo da pesquisa em

ps-graduao; devo confessar que, uma vez aprovada a minha entrada, eu imediatamente mudei o

assunto do meu projeto de pesquisa... Mudei para o Sofista. Meu contato com a obra, ainda era, certamente, inocente, e o que eu via nela no eram ainda os frutos de maiores escavaes. Nessa

poca, ento, dois colegas, tambm estudantes de ps-graduao, tiveram uma grande importncia num

direcionamento da minha curiosidade referente ao texto, apontando-me questes maiores, de

articulao do Sofista com o resto do corpus platonicus. Refiro-me a Carolina de Melo Bomfim Arajo, de quem li um artigo2, e a Marco Antnio Valentim, com quem tive uma conversa filosfica em meio a

uma lanchonete de shopping efusiva conversa, pois, junto aos fornos de lanchonetes, tambm h

deuses3.

Ainda entorpecido pelo contato com essas duas opinies, escrevi ento meu primeiro artigo4

centrado no Sofista, o qual sublinhava ainda questes iniciais na obra, sobretudo de interpretao

filosfica do que seria o estatuto divino atribudo ao Estrangeiro nas primeiras linhas do texto. A

apresentao deste trabalho numa edio da ANPOF valeu-me uma pergunta acerca da minha opinio

sobre a relao do Estrangeiro com Parmnides de Eleia, honrosa pergunta da parte da professora

Maura Iglsias. A ausncia de uma resposta minha, na ocasio, a esta questo, abriu-me os olhos para a

irrecusvel necessidade de encarar de frente a imbricada e complexa problemtica ontolgica que o

dilogo abre. Contudo, se era preciso debruar-me sobre a ontologia e o eleatismo, tema sobretudo da

2 ARAJO, C. M. B. Porque lutam os gigantes? In COSTA, A. HADDAD, A. B., PRADO, E., COUTINHO, J. F. S., ARAJO, C. M. B, VALENTIM, M. A., RAMOS, P. H. V. (org). taca 3 (2002). Rio de Janeiro: PPGF/UFRJ, p.97-107.3 Conta-se que [certa vez] Herclito disse, a estranhos que o queriam visitar e [chegando e] vendo-o aquecer-se,

espantaram-se: podeis entrar, aqui, junto ao fogo, tambm h deuses. Cf. ARISTTELES, Das partes dos animais, I, V, 645a17; DK 22 A9, apud SPINELLI, M. Filsofos Pr-Socrticos. Primeiros Mestres da Filosofia e da Cincia Grega. Porto Alegre: Edipucrs, 2003, 238.

4 BRAGA, A. E se Scrates estivesse certo? A questo do lgos divino do estrangeiro no Sofista de Plato. In Boletim do CPA 19. Campinas: IFCH/ UNICAMP, 47-56.

13

segunda parte da obra, por outro lado, o meu mais vvido interesse sempre esteve na primeira parte do

dilogo, no que tange ao mtodo de diviso que o Estrangeiro emprega provavelmente, porque ele me

lembrava as classificaes taxionmicas da Biologia, de cujo aprendizado, na mocidade, sempre fui

entusiasta. A necessidade, assim, de 'prestar contas' destas duas obrigaes, que tanto me afetavam, levou-me a pensar em como seria possvel aliar uma coisa outra, e a interrogar-me acerca de qual

ontologia a platnica permite, num exame mais profundo, 'ver'. Pois estudar algo deve ser

feito por aquilo dele que nos afeta e, aqui, quero sublinhar o duplo sentido que a preposio por,

como a grega , possui: o sentido de atravs e de devido a. Isto , o motivo deve ser aquilo dele

que nos afeta, bem como o prprio estudo deve se dar atravessando isto que nos afeta. Este estudo

pretende, assim, ser o pagamento de dvidas dvidas pessoais. Dvidas altas, dvidas honrosas, dvidas

de cujo pagamento no posso me esquivar.

Aqui, cabe tambm a confisso de que a minha articulao entre mtodo e ontologia, estes dois

eixos temticos de leitura do Sofista dois eixos de interesse de leitura, dois pontos de vista! -, foi

influenciada pelos muitos comentrios que orbitam, como satlites, a obra, dos mais clssicos at os

mais recentes. Isto, em certo sentido, representa tambm uma dvida para com esses autores, a ser

reconhecida. Deles todos, gostaria de salientar o trabalho de trs professores, cuja incomensurvel

influncia sobre o presente estudo ser sempre visvel (sobretudo no segundo tomo): Harold Cherniss,

Monique Dixsaut e Nstor Cordero. A leitura de suas obras foi fundamental na compreenso do

pensamento platnico, e alguns belos momentos de passagens delas aparecero, oportunamente, nas

pginas que se seguem. Paralelamente a isso, importante frisar que a minha admirao por estes trs

trabalhos no representa uma aceitao acrtica de suas posies, e que, muitas vezes, no tenha sido

mesmo necessrio deles discordar. Nesse sentido, operarei, tambm, uma verso pessoal, de

parricdio e matricdio, em relao a estes professores: meu tmido grito de independncia... Pois,

aqui e sempre, o pagamento de dvidas com a alteridade tambm uma conquista do prprio e do por

si.

Outros nomes foram fundamentais, e devido tambm reconhec-los. O primeiro, sem dvida,

o da professora Maria das Graas de Moraes Augusto. A pesquisa, que aqui se encerra, iniciou-se sob

sua tutela, e, certamente, deve muito mesma, muito mais do que quaisquer palavras poderiam dizer.

Que ela possa, tambm, ver, aqui, a quitao de uma dvida. Digna de meno foi tambm a

contribuio do professor Marcelo Pimenta Marques. Ele demonstrou uma generosidade sem a qual

este estudo dificilmente possuiria o arcabouo que hoje apresenta: no s indicou, em conversas

informais, as principais obras existentes sobre o dilogo, como deu-nos acesso pleno a elas, em sua

biblioteca prpria, atravs do que foi possvel a leitura da maior parte da bibliografia aqui citada.

14

Professor Marcelo Perine e professora Rachel Gazolla, por seu turno, donos de uma verdadeira

hospitalidade grega, me receberam da mais bela forma em meio a seus Grupo de pesquisa, salas de

aula, peridicos de publicao, lares, etc. O extasiante colorido dos debates desses ambientes, muitas

vezes, far-se- visvel nas pginas vindouras, o que motivo de meu mais sincero orgulho. Por fim,

mas no menos importante, obviamente, a minha dvida para com meu orientador, professor Dennys

Garcia Xavier. Por ter acreditado no potencial deste trabalho; pelo apoio que deu empresa da defesa;

por, enfim, ter conseguido conciliar, com sabedoria, a doao de liberdade, to necessria

frutificao, com a presena do olhar crtico, fonte de prudncia e de buscas por melhorias, que ele

tambm se sinta pago com esta dissertao.

Sobre o estudo em si, as suas partes apresentaro, individualmente, suas respectivas introdues

aos problemas de que tratam, sendo desnecessrio aqui adiant-los. Chamo ateno, apenas, para a

forma como dividi o conjunto todo da dissertao: em dois tomos principais de argumentao, cada qual aprofundando-se em um aspecto do mtodo de diviso. Poderia chamar estes aspectos,

aristotelicamente, de forma e matria: o primeiro tomo far uma dissecao do mtodo sob o aspecto estrutural, investigando sua estrutura desde a mais tenra origem, apresentada pelos professores

eleatas do Estrangeiro, at a sua apresentao, acabada e madura, no Sofista. E o segundo tomo, voltado para a matria do mtodo de diviso, o seu contedo, investigar qual o estatuto ontolgico

pode ser atribudo aos gnos e edos que esto em jogo nele, e se, a partir disso, o mtodo pode ser entendido como uma via de acesso ou de maior visibilidade da verdadeira estrutura ontolgica do real.

Diagramas visuais da diviso, nos moldes das rvores de Lineu, figuraro na sesso da concluso da

dissertao, pela sua utilidade inegavelmente atestada em outros estudos similares5.

Nesses dois tomos, verdadeiros frontes de batalha, repletos de dificlimas questes, espero,

parafraseando Kant6, que eu possa ser perdoado por alguma obscuridade no inteiramente evitvel na

elucidao de problemas que o autor do texto-matriz parece ter se esforado tanto para enublar. A

certeza que posso dar que as dificuldades no nos faro desistir. Pois, como defende o Scrates do

Mnon, aos preguiosos e de nimo mole que cabe a inrcia investigativa, fiada na resposta simplesmente dada ou na impossibilidade de resposta. alma filosfica cabe algo completamente

diferente: a necessidade da eterna caa, da eterna pesca, da eterna busca. Do eterno desvendar de

caminhos. Com coragem (), para honrar o meu nome. E em torno a este empreendimento

de anlise da diviso, e da sua relao com a ontologia, que o presente estudo se desenvolver. Faa-se

visvel, assim, kat dnamis, he diaresis.

5 A despeito da inutilidade filosfica que lhes atribui Gilbert Ryle. Cf. RYLE, 1966, p. 140.6 KANT, I. Crtica Faculdade do Juzo. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1993, Introduo.

15

E tu, levanta a tua vara, estende a mo sobre o

mar e divide-o, para que os filhos de Israel passem pelo meio do mar em seco.(...)

Ento, Moiss estendeu a mo sobre o mar, e o Senhor, por um forte vento oriental que soprou

toda aquela noite, fez retirar-se o mar, que se tornou terra seca, e as guas foram divididas.

(Ex., 14, 16;21)

AVISO SOBRE TRADU ES E TABELA DE TRANSLITERAO

A citao dos comentadores cujas obras so escritas em lnguas estrangeiras ser sempre feita

com tradues minhas para o portugus; quando a traduo no for minha, ser assinalado. Nas

tradues das obras gregas, procurei faz-las da forma mais literal possvel. Ainda que isto muitas vezes as deixe truncadas em portugus, optei por essa via, pois creio que o ganho para a interpretao

filosfica desse tipo de traduo compense essa perda de facilidade ou fluncia na veiculao do

sentido. Traduzo sem desfazer os ns que Plato cria em grego; eles fazem parte da exposio dele

dos problemas. Minhas tradues dos textos gregos no foram feitas sem auxlio, mas na consulta s

tradues j estabelecidas do texto, constantes de minha Bibliografia. Sobre a referncia a termos

gregos no corpo do meu texto, observei a seguinte regra: apresentar a traduo dos mesmos em suas

primeiras ocorrncias em meu texto obviamente, porque desnecessrio e enfadonho ficar repetindo,

todas as vezes em que eles ocorrem, suas tradues. Segue abaixo a Tabela de Transliterao:

a n x

b o g p d r e / s z t th y/u e ph i ch k o l m

I. ANLISE DA ESTRUTURA DA DIVISO

16

Pois [se] nem mesmo um um,

o dois dificilmente pode ser um,como Plato disse.

Teopompo7

1. A Estrutura Original da Diviso

7 Cf. TEOPOMPO, fr. 15k.

17

Imagina que tu s um prisioneiro e ests numa cela.

Nessa cela tem duas portas iguais, porm, uma delas conduz liberdade e outra morte. Tu s podes

escolher uma delas, e depois no h mais volta. (...)(Incio de um desafio de raciocnio-lgico8)

1.1. Origem Histrica

No estabelecimento do contexto geral no qual aparece a diaresis no Sofista, chama ateno o

fato de que uma das primeiras e escassas informaes dadas acerca do protagonista, o Estrangeiro, a

sua origem: dito que ele de Eleia e foi discpulo (hetairs9) de Parmnides e Zeno (Sofista 216a3-

4). Os desdobramentos dessa informao no que tange ao uso que Plato faz, em sua dramaturgia

filosfica, de ambos os pensadores como personagens, ser assunto da sesso seguinte. Na presente

sesso, me debruarei sobre as possveis relaes entre as obras de Parmnides e Zeno histricos e o

mtodo de diviso do Estrangeiro, visando aquilo nelas que pode ser relevante para a compreenso

8 A continuao : Em cada uma das portas tem um carcereiro. Um deles s fala a verdade, e o outro s fala mentira, mas tu no sabes qual qual. Antes de escolher uma das portas, tu tens um direito: escolher um dos carcereiros e fazer uma pergunta. Mas s uma pergunta e s para um deles! Qual a pergunta que tu deves fazer para saber com certeza qual a porta que conduz liberdade? Fonte: http://www.internautascristaos.com.br/forum/11-ponto-de-encontro/1568-desafios-logicos-e-matematicos (pgina de internet)

9 E aqui no tomarei posio sobre a proposta de Nestor Cordeiro de alterao do texto estabelecido por Burnet a qual, segundo o tradutor francs, seria na verdade uma recuperao do texto original, a saber: devolver ao texto a segunda ocorrncia de hetairoi e corrigir a primeira ocorrncia para heteron. Na tradio do texto, Cordero explica que houve a correo da ocorrncia duplicada do termo pela retirada da segunda ocorrncia do mesmo. O tradutor na verdade considera que no h duas ocorrncias do termo, porque a primeira tratar-se-ia de um erro em se grafar hteron como hetaron. A despeito dos valiosos e convincentes argumentos de Cordero, entendo que sua proposta de recuperao do texto original uma elucubrao brilhante, porm, parcial - como no podia deixar de ser qualquer uma, j que no temos nunca o texto original ele mesmo para saber se chegamos at ele. minha deciso, ento, de no tomar posio acerca da questo, no s se justifica por essa posio sempre carente de ns, estudiosos modernos do texto antigo, como tambm pelo fato de eu entender que isso no altera tanto assim a compreenso acerca do mesmo. Desde que se abra mo da correo da redundncia aceita por Burnet, quer se entenda que o Estrangeiro um companheiro dos companheiros de Parmnides e Zeno (texto sem correo), quer se entenda que ele diferente dos companheiros de Parmnides e Zeno (proposta de Cordero), o que importa a mim que Plato est querendo sublinhar que, por um lado, o Estrangeiro est ligado de alguma maneira ao eleatismo parmendico, e que, por outro lado, ele possui divergncias quanto a ideias importantes para este crculo. Ao meu ver, ambas as possibilidades do estabelecimento do texto apontam para esses dois aspectos fundamentais da figura do Estrangeiro, e a diferena maior que existiria entre elas sobre o Estrangeiro ser diferente de Parmnides e Zeno eles prprios (sentido do texto sem correo) e ele ser diferente dos seguidores de Parmnides e Zeno (sentido do texto proposto por Cordero). Isto , assumo, na primeira possibilidade, como sendo proposital e no-redundante a colocao do personagem Teodoro de Cirene: dizer companheiro dos companheiros de X em vez de companheiro de X pode ser encarado como uma forma mais branda de Teodoro dizer que ele um no-companheiro de X - sentido este que a intimidade entre Scrates e Teodoro, visvel no Teeteto, permitiria ao primeiro entender. Cordero usa tambm como argumento de sua posio a ocorrncia de contudo um filsofo de verdade na sequncia, o que aos meus olhos perfeitamente inteligvel em qualquer das duas possibilidades de texto que proponho acima. Todavia, chamo ateno para o fato de que a aceitao da alterao do texto proposta por Cordero inviabiliza a posio de Thomas Szlezk e de Stanely Rosen, para os quais a posio do Estrangeiro a posio filosfica corrente em Eleia j poca dramtica da discusso do Sofista. Cf. PLATON, Le sophiste. Trad. de Nestor Cordero. Paris: GF Flammarion, 1993, p. 212, nt. 5, 7; 281-284; SZLEZK, T.A. A imagem do dialtico nos dilogos tardios de Plato. So Paulo: Loyola, 2011, 137-138; ROSEN, 1983, p. 67.

18

http://www.internautascristaos.com.br/forum/11-ponto-de-encontro/1568-desafios-logicos-e-matematicoshttp://www.internautascristaos.com.br/forum/11-ponto-de-encontro/1568-desafios-logicos-e-matematicos

deste ltimo. A essncia do mtodo, como veremos, inegavelmente eleata, encontrando nessas duas

obras sobretudo na primeira sua mais autntica inspirao.

Sobre o Poema de Parmnides, limitarei minha anlise s suas duas primeiras partes, na

ordenao proposta por Hermann Diels10. Legadas pela tradio sob as alcunhas de Promio e Via da

Verdade11, a primeira destas partes assimilada, na ntegra, ao fragmento B1; a segunda, por sua vez,

entende-se percorrer vrios fragmentos, abrangendo desde o B2 at os primeiros trs quartos do B8.

Nessa sequncia entre ambos, vejo realmente uma rota ou caminho, no qual a jornada do pensador

visa, entre outros elementos que no interessam agora ao meu estudo, ao estabelecimento de uma

estrutura para o pensamento da filosofia se dar. Nesse sentido, o promio (B1), qual uma estao de

partida nessa jornada, constitui-se como verdadeira introduo ou iniciao do leitor-discpulo na

estrutura de pensamento na qual se desenrolar esta viagem. Vejamos.

1.1.1. Poema de Parmnides: Promio como prvia da Estrutura

Se os antigos filsofos, que andaram

Tantas terras por ver segredos delas,As maravilhas que eu passei, passaram,

A to diversos ventos dando as velas,Que grandes escrituras que deixaram!

Que influio de signos e de estrelas!Que estranhezas, que grandes qualidades!

E tudo sem mentir, puras verdades.Cames

O promio do Poema vale-se precisamente de imagens poticas, tpicas do discurso mtico, a

fim de introduzir e acostumar o leitor do Poema preferencialmente, um jovem filsofo sendo

iniciado, tal qual o protagonista do drama vivido no mesmo - s dicotomias ou divises em dois, bem

como preferencialidade, expressa ou no, por uma dentre as duas opes. Desse modo, na iconografia

que opera, a narrativa de B1 falar sempre em duplas de termos em oposio, oposies essas

facilmente identificveis para qualquer grego contemporneo de Parmnides.

Ao que tudo indica, a ideia de uma diviso latu sensu em dois opostos no inveno de 10 Cf. DIELS, H. KRANZ, W. Die Fragmente der Vorsokratiker griechisch und deutsch. Berlin: Weidmannsche buchhandlung, 1903.11 importante demarcar que, apesar de me valer destes termos para nomear esses grupos de trechos do texto do Poema

que possuo seguindo assim a tradio -, no h nos trechos mesmos nenhuma ocorrncia dessas expresses; no h portanto nenhum fundamento textual concreto para tal nomeao.

19

Parmnides, remetendo a outra doutrina itlica escola cuja fundao foi anterior ao eleata, mas que

perdurou ainda at depois dele: o Pitagorismo. Fiado no testemunho de Aristteles, Francis

MacCornford ensina que a Escola Pitagrica possua uma cosmologia baseada numa Tabela de

Contrrios, a qual era constituda de duas colunas de elementos opostos entre si; e esta tambm a

convico de G.S. Kirk e J.E. Raven12. Tudo o que existe no mundo seria fruto da combinao destes

contrrios, de modo que uma viso pitagrica de realidade era, assim, no que tange aos princpios que

lhe moldavam, dualista. Embora entre as duas colunas houvesse uma diferena de valor uma a

coluna dos Bens, a outra, a dos Males , no aceito a sugesto de Cornford de que o Pitagorismo

poderia ser j um monismo13, no sentido da eleio apenas da primeira coluna. Na esteira de Kirk e

Raven, mantenho a posio de Aristteles de que a coluna dos males no rejeitada pelos Pitagricos

como princpio, pois a realidade igualmente partcipe dela e no apenas dos Bens14. E Cornford

parece mesmo, mais frente, se retratar, ao afirmar que, no que concerne a esta viso dicotmica do

real, o direcionamento para apenas um caminho certamente representa a principal diferena

estabelecida contra eles por Parmnides:

Os pitagricos tinham a sua Tabela de Oposies, incluindo Limite e Ilimitado, Um e Muitos, Em-Repouso e Em-Movimento, e eles tinham visto em todo lugar

uma combinao destas oposies nas coisas. Parmnides () escolheu as oposies na coluna dos bens, e rejeitou a outra coluna. () Foi, de fato,

Parmnides, inteiramente, assim como Zeno, que assumira todos os opostos como no sendo apenas contrrios mas contraditrios. (Cornford15)

De modo anlogo Tabela Pitagrica, o Promio do Poema de Parmnides inicia o leitor ao

esquema dicotmico de compreenso do real atravs da exposio de imagens mticas em ntidas

oposies. Todavia, o que na Tabela parecia no haver, aqui notrio: mais do que no haver valores

idnticos entre os termos, resguardar-se- sempre uma preterio entre eles. Em todas as oposies,

sempre ser possvel verificar que, dentre as duplas de termos empregados, a cultura grega privilegiou,

seja no vocabulrio do conhecimento filosfico, seja no do mtico, um dos dois; algo como uma

Tabela Parmendica, na qual o que importa de fato apenas uma das colunas:

12 ARISTTELES, Metafsica A5, 986a 15; 986b 2; 987a 13; KIRK, G.S. RAVEN, J.E. Os filsofos pr-socrticos. Lisboa: Fundao Calouste Gulbekian, 1990, p. 242-247; CORNFORD, F. M. Parmnides' way of truth and Plato's Parmnides. London: Routledge & Kegan Paul, 1950, p. 3-7.

13 CORNFORD, 1950, p. 6.14 ARISTTELES, tica a Nicmaco, A4 1096b 5; B5 1106b 29; KIRK, RAVEN, 1990, p. 246, nt. 1.15 CORNFORD, 1950, p. 72.

20

a) o caminho multifalante da deusa (B1,2-3), a morada da deusa (B1,25) e o caminho dos homens

(B1,27);

b) as Filhas do Sol, a Luz, o ato de tirar o vu da cabea (dar-se vista) e a Noite (B1,9-10);

c) o caminho do Dia e o caminho da Noite (B1,11);

d) o imortal (B1,24), o divino, a deusa (B1,22) e o mortal (B1,30) e o humano (B1,27);

e) Themis, Dke (B1,28) e moira ruim (B1,26);f) o mago inabalvel da verdade bem redonda (B1,29) e a opinio dos mortais, que no possui f

verdadeira (B1,30).

Iniciando o esprito do leitor nesse dual jogo dialtico de oposies, de identidade e diferena,

aparentemente oriundo, em alguma medida, da seita de Pitgoras, o promio de Parmnides no s

assim apresenta as dicotomias mas tambm deixa claro que, nelas, alguns termos (Noite, mortal, etc)

so preteridos em relao aos seus opostos (Dia, divino, etc).

como se o leitor do Promio estivesse sendo iniciado pelo filsofo-poeta, que escreveu o

Poema, num tipo de viso que dever guiar todo o seu debruar-se sobre os problemas filosficos: a

viso de duas possibilidades de encaminhamento da questo e a preferencialidade por uma delas. E,

nessa iniciao, a narrativa no poupa o tom cerimonioso, pois o acontecimento anlogo ao vivido

pelo jovem protagonista do Poema, que, em sua ascenso conduzida pelas daimones, introduzido em uma espcie de reino divino e sagrado da Verdade16. Nessa iniciao ao conhecimento divino, haver,

tambm, certamente, ecos do pitagorismo. Mas, a que viso ou compreenso todas as imagens poticas

contidas em B1 buscavam iniciar o discpulo de Parmnides? Precisamente a uma forma de

compreender e pensar que pode ser resumida na estrutura-guia do pensamento que subjaz a toda a Via

da Verdade. Estrutura esta que fora meramente insinuada no Promio, e que somente em B2 ser

exposta, de forma objetiva, em sua arquitetura mais sinttica:

Vamos, vou dizer-te e tu escuta e fixa o relato que ouviste -

quais os nicos caminhos de pesquisa que h a se pensar:um que , que no para no ser, (...)

o outro que no , que necessrio no ser (...)

A estrutura17 do pensar filosfico parmendico, assim, qual o leitor fora introduzido no

16 No Poema de Parmnides, o filsofo busca o saber e o ser, que so da ordem do divino. cf. MARQUES, M. P. A presena de dike em Parmnides. Kleos 1. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p. 24.

17 O esquema mtico dos caminhos incorporado pelo filsofo como tema e como estrutura de seu discurso. Cf.

21

Promio, estabelecida na Via da Verdade. Ela pode ser resumida na seguinte frmula: dicotomia +

univocidade = deciso. Cham-la-ei, resumidamente, de estrutura dicotmico-unvoca, e com isso sublinho o fato de que o eleata estabelece como regra para o pensamento i) o buscar, a cada questo ou

problema, duas possibilidades de encaminhamento, havendo nisso ii) a certeza de que apenas uma

dessas direes a correta; a partir disso, iii) deve ser realizada a deciso ou escolha por esta nica

direo. Conforme vimos, a estrutura itlica: o primeiro ponto de inspirao pitagrica, ao passo

que os outros dois so genuinamente de Eleia.

Desse modo, subjacente to famosa lio ontolgica18 legada humanidade pela Via da

Verdade, identifico ento esta lio estrutural que o Poema a oferece ao pensamento dos estudantes-

discpulos que Parmnides porventura teve ou tem. Esta lio ganhou concretude como uma rota

mesmo dentro do Poema; nesse sentido, tal rota, metalinguisticamente, no outra coisa seno a

prpria viagem imagtica chamada de Via da Verdade. Seguindo a ordenao tradicional dos

fragmentos, vejamos ento como isso acontece.

1.1.2. Poema de Parmnides: A Rota traada na Via da Verdade

Vamos, vou dizer-te e tu escuta e fixa palavra que ouviste -

quais os nicos caminhos de pesquisa que h a se pensar:um que , que no para no ser,

de Persuaso o caminho pois a Verdade o acompanha;o outro que no , que necessrio no ser,

este ento, eu te digo, atalho de todo incrvel;pois nem conhecerias o que no pois no exequvel,

nem o dirias... (Parmnides, B2)

Como possvel ver, no incio da Via da Verdade j no est mais em jogo as figuraes mticas

presentes no Promio. Na economia do Poema, l o leitor foi j iniciado na estrutura dicotmico-

unvoca; agora, cumpre-lhe com ela diretamente lidar. Notvel que a apresentao desta estrutura traga

em si a fundao da disciplina do estudo do ser a ontologia - como o ncleo da filosofia, herana

deixada para todo o pensamento ocidental19. Embora este fragmento B2 acentue mais o aspecto

dicotmico do que propriamente o unvoco da estrutura, vemos que a aluso Persuaso e Verdade

MARQUES, 1997, p. 22.18 A saber, o estabelecimento da necessidade do Ser e da impossibilidade do No Ser. Obviamente, que identifico nessa

ontologia uma verso metafisica da mesma estrutura dicotmico-univoca supracitada.19 (...) o verbo Ser () o tema central do discurso da Deusa, inaugurando a Ontologia como teorizao filosfica por

excelncia. Cf. SANTORO, F. Parmnides na encruzilhada, Sofia 07. Vitria: EDUFES, 2001, p. 120-121.

22

(B2,4) j aponta para qual das duas direes deve se inclinar o corao do filsofo. Desse modo, na

sequncia deste apontamento, a juntura da dicotomia com a univocidade encontrar em B6 uma

apresentao mais franca. Isto porque, neste outro fragmento, atravs de um maior desenvolvimento de

ambos os caminhos, a caracterizao predominantemente negativa do segundo caminho apontar j

para sua preterio (B6, 1-9). Das duas vias, a primeira aquela na qual necessrio o dizer e o pensar

que o ente , pois ser, e nada no ; a segunda aquela na qual os mortais de duas cabeas, com seu

pensamento errante, erram pois eles so multido sem deciso, surdos e cegos, para quem ser e no

ser so o mesmo (como se o caminho fosse reversvel). Parmnides, dessa maneira, ratifica em B6 os

dois aspectos da estrutura de pensamento que ele visa estabelecer em sua Via da Verdade: por um lado,

a viso dual das duas possibilidades de caminho para o pensar, e, por outro lado, o no dualismo que

isso representa, pela tendncia sempre presente da eleio de um dos caminhos em detrimento do outro.

Ou, nas palavras de Jos Trindade dos Santos, o fragmento apresenta a radical alternativa entre os dois

caminhos esboados no fr. 220. O autor eleata assim se afasta do pitagorismo, firmando, na viso de

meu estudo, a base do modo de pensar que estar em primeiro plano no dilogo Sofista de Plato. Mas voltemos Via da Verdade.

Foi dito mais acima que a sntese da noo de dualidade com a de univocidade a ideia de

decidir () e deciso (). A ideia aparece pela primeira vez21 na forma privativa da

expresso multido indecisa ( , B6, 7): isto , antes mesmo de ser explicado o que seria

a tal deciso, adiantado que os errantes mortais de duas cabeas no a fazem. Porm, como eu disse,

o texto a prpria Rota; percorr-lo j percorrer a Via da Verdade. Vejamos ento como o argumento

prossegue, e como esse ponto ser esclarecido. Adentrando B7, o discurso exortativo da deusa

explorar na sequncia tanto a noo de deciso quanto a caracterizao negativa do segundo caminho.

Nesse sentido, feita aluso a uma via que advm do decidir no lgos ( , B7,5) a

qual, obviamente, infiro como se tratando da primeira das vias supracitada, a da Verdade. Em

contrapartida, sobre a segunda via, afirmado que nunca ocorre o no ente ser, e que tentar seguir

por este veio como ter olho sem viso e ouvido e lngua zunindo (B7, 1-5). Este j anunciado descarte

de um dos dois lados fundamental para esta forma de pensar que atravessa toda a primeira Via. A

estrutura dicotmico-unvoca, introduzida pelo Promio e desenvolvida com veemncia nos fragmentos

B2, B6 e B7, ter em B8 seu arremate.

20 Cf. SANTOS, J.T. A interpretao do Poema de Parmnides, in PARMNIDES, Da Natureza. Trad. de Jos Trindade dos Santos. So Paulo: Loyola, 2002, p. 80-81.21 Todavia, como muito bem apontado por Marcelo Marques, antes mesmo do radical krin- aparecer no poema, j havia no

Promio a ideia de potncia de deciso na figura divina de Dke. Cf. MARQUES, 1997, p. 18; 27-30. O comentador salienta, ainda, que Dke funda uma deciso (krsis), que um julgamento e uma sentena, e a mantm firme contra quaisquer ameaas (p.28).

23

O ltimo fragmento da Via da Verdade, dando continuidade ao tom de exortao religiosa que a

atravessou, ter a fala da deusa marcada pelo tom conclusivo e decisrio. Este tom aparecer,

novamente, sob a forma da apresentao de duplas de possibilidades e da viabilidade de apenas uma

delas: apenas uma estria de um caminho resta: que (B8, 1-2). O corte em dois de B2 (um que

(), o outro que no ) se resolve pela j insinuada necessidade de escolha unidirecional entre as

opes, em tese, abertas ao leitor-discpulo. Essa deciso incontornvel e inadivel: totalmente

necessrio ser ou no [ser] (B8, 11). Aqui o texto guarda, com ares de paradoxo, um dos seus maiores

tesouros: por um lado, o segundo caminho uma rota impraticvel, pois o no ente indizvel,

impensvel (B8, 14), e por isso resta apenas a estria de um caminho (B8, 1)... Por outro lado,

entretanto, isso no tira a necessidade de escolha ou deciso do leitor-discpulo: imprescindvel um

engajamento prprio22 da parte dele para o alcance da verdade23. De fato, para alm da questo da

(in)viabilidade do segundo caminho, duas possibilidades esto abertas perante si, e,

hamletianamente, ele tem que decidir: ser ou no ser. E esta escolha, mote to famoso nos palcos

shakesperianos nos sculos vindouros, parece ser mesmo a prola do Poema. O que resume, assim, a

estrutura dicotmico-unvoca de pensamento cuja apresentao a Via da Verdade ela mesma, , para

alm da mensagem metafsica presente, essa noo: deciso ().

A deusa comea a sua explicao por definir 'os nicos dois caminhos de investigao concebveis', que se opem diretamente um ao outro: se

aceitamos uma premissa, a lgica compele-nos imediatamente a rejeitar a outra. A escolha, de fato, tal como Parmnides, mais adiante, a define

de forma mais sinttica (347 v.16), simplesmente esta: estn e ouk estn. (KIRK, RAVEN, 1990, p. 275-276)

No contexto dessa Via, criado por Parmnides, krinen e krsis so a sntese do que seja mesmo

este caminho da filosofia, enquanto articulao da dualidade de opes com a unidirecionalidade para

apenas uma delas. Trata-se, assim, da ao de decidir, tomada, necessariamente, a cada vez, pelo

filsofo, diante de um problema. Disto, ele no pode evadir-se. Em cada questo, h sempre uma

encruzilhada24, e, nela, a necessidade de uma escolha pessoal pela direo correta a qual, no contexto 22 Cf. CONTE, B. L. Mythos e Lgos no Poema de Parmnides. So Paulo: PUC, 2010. Segundo o comentador, o lgos mtico da deusa a palavra de autoridade religiosa/divina que se deve escutar (obedecer), mas que exige, do ouvinte discpulo e iniciado -, a partir desta escuta, um julgar no lgos (krnai de lgoi, B5) (p.50), isto , um engajamento prprio (p.60).23 Dito de uma maneira um pouco diferente: Os caminhos no esto 'disponveis' para pensar mas 'devem' ser pensados!

Cf. SANTORO, 2001, p. 121.24 (...) trata-se de um cruzamento de caminhos em relao ao qual deve-se fazer uma escolha, na medida em que os

diferentes discursos se cruzam e se contrapem numa situao de concorrncia. Finalmente, esta concorrncia entre os

24

do Poema, j sempre est apontada: Dia, Desvelamento, Luz, Verdade, Divino, Imortal, etc... Em suma:

esta dialtica exaustiva25 no pode fazer outra coisa seno optar pela direo de o que 26:

(...) a deciso sobre isto est no seguinte:

ou no ( ); est portanto decidido, como

necessrio, uma via abandonar, impensvel, inominvel, pois verdadeira

via no , e sim a outra, de modo a se encontrar e ser real (...). (B8, 15-18)

Se for possvel aceitar a lio de Trindade, a afirmao da estrutura dicotmico-unvoca no

Poema na verdade o estabelecimento de Parmnides para o Ocidente dos ainda no nomeados trs

princpios da Lgica Formal27. Estes, cunhados depois de Aristteles com os ttulos de Princpios da

Identidade, da No Contradio e do Terceiro Excludo, so a base para o silogismo no pensamento

filosfico ocidental. Na leitura de Trindade, eles se traduziriam, no Poema, nos fatos de: i) a Via da

Verdade ser o mesmo que ela mesma; ii) ser outra que o segundo caminho e com ele no se confundir;

e iii) no haver possibilidade alguma de um terceiro caminho entre eles, pelo fato de eles serem

autoexcludentes o que um afirma o outro nega28. A estrutura estabelecida por Parmnides, nesse

sentido, seria a base para todo e qualquer pensar afeto verdade...

Para este meu estudo, cujo alvo o mtodo de diviso do Estrangeiro no Sofista de Plato, a anlise das partes aqui vistas da obra de Parmnides o suficiente. Da Via da Verdade, portanto, extra

e recolhi, para alm da pregao ontolgica que lhe si ser atribuda, a estrutura que o filsofo eleata

estabeleceu para o pensar da filosofia. O modo de ser dela, dicotmico e unvoco, encontra na noo de

deciso (), exigida pela deusa (B8, 15), sua mais acabada sntese29. A ela voltarei mais adiante.

discursos se d enquanto busca de legitimidade. Qual o caminho que efetivamente leva ao que , ao ser? Cf. MARQUES, 1997, p. 20.

25 Expresso de Johanes Burnet. Cf. KIRK, RAVEN, 1990, p. 27626 Cf. SANTOS, 2002, p. 76: o que ento 'o ser'? o nico domnio em que a afirmao, a realidade e a verdade coincidem.27 Cf. SANTOS, 2002, p. 66-67. Essa leitura, contudo, segundo Cordero, encontra-se em fontes mais antigas:Ranulf e

Moravicsik. Cf. RANULF, S. Der eleatische Satz vom Widersprunch. Conpenhague: Gylendal, 1924, p. 160, e MORAVICSIK, J.M.E. Being and meaning in the Sophist, in Acta Philosophica Sennica 14 (1962), p. 25, apud CORDERO, 2011, p. 139, nt. 97 e 98.

28 Cf. SANTOS, 2002, p. 75: O ponto de partida de Parmnides o pensar. V o pensamento como realizando duas funes: afirmao e negao Cada uma dessas idntica a si mesma e diferente da outra, no havendo outra alternativa alm delas (grifo meu). Eliane Souza chamou essa regra eleata de Princpio de No-Contradio Forte, cf. SOUZA, E. C. Discurso e Ontologia em Plato. Inju: UNIJU, 2009, p.30.29 A deciso desempenha uma funo capital na economia da mensagem divina. Em B6.7 a multido indecisa (akrita phyla) a que hesita entre o ser e o no-ser, confundindo um com o outro. Em B8, 15-16, a deciso (krsis) consiste precisamente na oposio do ser ao no ser, com que mister contrariar a 'mistura' (krsis) dos membros errantes de

25

Vejamos agora, na proporo cabvel, o que pode ser extrado tambm, para os fins visados, da obra

histrica do outro professor do personagem Estrangeiro de Eleia.

1.1.3. A Estrutura e a Obra de Zeno de Eleia

Haja vista Teodoro afirmar, em Sofista 216a3-4, que o Estrangeiro fora prximo no s de Parmnides, mas tambm de Zeno, julgo conveniente investigar que implicaes para seu mtodo esta

outra ascendncia tambm poderia trazer. Ao contrrio de Parmnides, cuja obra nos foi legada em

generosas postas pelos seus doxgrafos posteriores, Zeno de Eleia no parece ter sido l muito citado

no mundo antigo. De modo que no possumos nada de sua obra alm de trs citaes de Simplcio,

uma de Digenes de Larcio, e quatro paradoxos comentados por Aristteles. O contedo de todas

estas ocorrncias basicamente o mesmo: a negao da multiplicidade e movimento atravs da

inferncia lgica de absurdos ou aporias da afirmao dos mesmos. Nessa negao, a tradio tendeu

sempre a ver, na esteira da posio do jovem Scrates do Parmnides de Plato30, a defesa da hiptese contrria, isto , do Um eleata ou parmendico. Esta associao, contudo, altamente questionvel, e

talvez o mais prudente fosse entend-la como uma conjectura de Plato31. Por outro lado, o modo como

essa defesa ocorre tambm foi visto como o incio do tipo de argumentao que nos sculos posteriores

receberia o nome de dialtica32.

A despeito do contedo desta obra isto , a tese ontolgica supostamente monista33 a

defendida -, identifico na obra zennica a mesma estrutura presente na Via da Verdade do Poema de

Parmnides: dualidade e univocidade. Uma diferena importante que, ao passo que no Poema esta

estrutura estava muito bem explcita em toda a mensagem da deusa, na dialtica de Zeno ela estar

implcita como um pano de fundo para o desenvolvimento de todos os paradoxos. A assim chamada

Via da Verdade de Parmnides expunha a estrutura dicotmico-unvoca, a desenvolvia, refletia sobre

ela; os silogismos de Zeno operam j dentro dela. Eles seriam constitudos de uma premissa, p. ex.

Se mltiplas coisas so..., e da concatenao de alguma consequncia absurda dela.

Aparentemente inexistente ao primeiro olhar, a dualidade de possibilidades ou caminhos nos

silogismos de Zeno est na verdade subjacente: implicitamente, sempre ser identificvel neles uma

estrutura dual de hipteses contrrias, como p. ex. Se mltiplas coisas so... e Se mltiplas coisas

B16.1. Cf. SANTOS, 2002, p, 82.30 Cf. PLATO, Parmnides 129a.31 Cf. CORDERO, N-L. L' invention de l'cole eleatique: Platon, Sophiste, 242d. In AUBENQUE, P. (Dir.) tudes sur le

Sophiste de Platon. Napoli: Bibliopolis, 1991.32 cf. DIGENES DE LARCIO, Vidas e Doutrinas dos Filsofo Ilustres. Trad. Mrio da Gama Kury. Braslia: UnB, 1977; ARISTTELES, fr. 65 Rosen.33 Para uma leitura contrria da obra de Zeno, cf. Cordero, nt. 32 acima.

26

no so.... Do mesmo modo, a ideia de univocidade tambm est presente nos paradoxos: se, de fato,

as duas hipteses em jogo no fossem autoexcludentes, no seria possvel Zeno concluir que a prova

da inviabilidade de uma delas implica necessariamente na afirmao da outra. Portanto, para que o

mtodo argumentativo de Zeno alcanasse seus pretendidos objetivos, era necessrio que ele operasse

dentro da mesma estrutura dicotmico-unvoca da Via da Verdade do Poema de Parmnides. Esta

univocidade ou autoexcluso das duas hipteses, parte constitutiva da estrutura de pensamento eleata,

fundamental no pensamento zenoniano: graas a ela, seu mtodo foi considerado negativo, sendo

chamado de indireto por Nietzsche e de dialtico por Aristteles. O estagirita, inclusive, conforme

comentado acima, conceder a paternidade da nobre disciplina dialtica a Zeno34. Sobre este ltimo

ponto, entretanto, no posso concordar com o fundador do Liceu: os princpios todos desse modo de

pensar de Zeno j estavam presentes, conforme vimos, no Poema de Parmnides, enquanto estrutura

para o pensamento exposta, proposta e exigida pela deusa. Entendo ento que o mais justo talvez fosse

dividir a paternidade da disciplina entre os dois pensadores ainda que, mesmo assim, no fosse

alterado o fato de a origem da mesma estar em Eleia35.

1.1. Origem Dramtica

A informao de que o Estrangeiro de Eleia fora aluno de Parmnides e Zeno pode levar

anlise ainda de outros fundamentais aspectos implicados na origem do mtodo de diviso. Isto porque,

no dilogo Parmnides, cuja discusso dramaticamente anterior do Sofista36, e est diretamente a ela ligada37, Plato fez dos dois ilustres filsofos eleatas personagens seus. A questo da realidade histrica

dos pr-socrticos apresentada por Plato nos dilogos sempre foi motivo de discusso em trabalhos

acadmicos. H desde artigos como o de Jean Frre, que aponta para alguma incongruncia entre o

Parmnides platnico e o histrico38, at o artigo de Nestor Cordero, que vai mais longe e desenvolve

34Cf. NIETZSCHE, Forma. A filosofia na poca trgica dos gregos. Rio de Janeiro: Elfos; Lisboa: Edies 70, 1995, p.73; ARISTTELES, fr. 65 Rosen.35Esse tipo de refutao (sc. argumentos em duplas de contrrios, fr. B9 de Parmnides) mostra como a dialtica (e a erstica: a arte da disputa verbal) uma criao eletica. A tese demonstrada pela exibio das contradies, do absurdo, a que conduz a defesa da anttese (a doutrina que se lhe ope). Cf. SANTOS, 2002, p. 96.36 As pistas de Plato no sentido de estabelecer a ordem Parmnides, Teeteto e Sofista seriam: a referncia no Teeteto

(183e-184a) ao encontro do passado, apresentado no Parmnides, de Scrates ainda jovem com o filsofo eleata; o compromisso, no fim do Teeteto (210d), de um encontro no dia seguinte para continuar a discusso; e a confirmao nos comeos do Sofista (216a) e do Poltico (258a) de que ambos os dilogos representam esse encontro do dia seguinte.

37 Como bem frisado por Cornford e Dis. Cf. CORNFORD, F. M. Plato's theory of knowledge, the Theetetus and the Sophist of Plato. London: Routledge & Kegan Paul, 1951, p. 268: (...) no Sofista, (...) todavia, ser conveniente tentar aqui um quadro da estrutura das Formas (). A questo apia-se no problema deixado como sobra do Parmnides: como e em que sentido uma Forma ao mesmo tempo um e muitos?; DIS, A. La definition d'tre et la nature des les ides dans le Sophiste. Paris: Vrin, 1932, p. 89: Mas j no Parmnides que a tese de uma comunidade de gneros vem encontrar seu ponto de ligao (...).38 Cf. FRRE, J. Platon, lecteur de Parmenide dans le Sophiste. In: AUBENQUE, P. (Dir.). Etudes sur le Sophiste de

Platon. Napoli: Bibliopolis, 1991, p. 127.

27

larga argumentao no sentido de provar que o Parmnides apresentado por Plato uma espcie de

caricatura, com plena utilidade didtica, mas sem realidade histrica39.

A despeito das legtimas colocaes destes comentadores, entendo ser de vital relevncia

acrescentar, s caractersticas extradas dos pensamentos histricos destes filsofos eleatas, aquelas

apresentadas por eles nos seus discursos enquanto personagens de Plato. Caricaturas ou no, o

importante que tais personagens condensam aquilo destas figuras que Plato mais quis privilegiar

caricaturas, esse grande dramaturgo grego bem o sabia, so sempre reveladoras. Nessa escolha de

Plato pelo modo de represent-las, portanto, vejo aparecer os aspectos dos pensadores eleatas que lhe

eram mais caros - e, por isso, para os fins do meu estudo, eles so fundamentais. minha opinio

mesmo que, somente com o acrscimo de tais elementos dramticos aos histricos, o quadro da

naturalidade eleata do mtodo diertico do Estrangeiro de Eleia ficar completo.

1.2.1. O dilogo Parmnides e a ginstica filosfica

Para tomar parte nos argumentos, suficiente permanecer com continuidade e muito esforo /disciplina, fazendo nada de outro, mas exercitando-se neles, de maneira correlata s ginsticas relativas ao corpo, pelo dobro do tempo destas.

Personagem Scrates (Repblica 539d8-10)(...) o genuno professor, no que podemos incluir o filsofo, deve ser mais semelhante ao ginasta do que ao mdico

Rosen40

Do ponto de vista dramtico, no imaginrio interno ao corpus platonicus, cerca de cinquenta anos antes do debate narrado no Sofista41, um jovem iniciante em filosofia, de futuro muito promissor,

chamado Scrates, encontra-se na casa de Pitodoro com dois grandes mestres vindos de Eleia,

Parmnides e Zeno. Na ocasio, o jovem Scrates advertido pelos dois professores de que, apesar de

seu grande talento, seu sucesso na filosofia dependeria ainda de ele ser intensamente treinado numa

rdua ginstica do pensamento, a qual fortalec-lo-ia contra as terrveis aporias a ele trazidas pela lida

filosfica. Os dois professores afirmam ainda que sem tal programa de exerccio realmente

impossvel encontrar o verdadeiro e adquirir compreenso ( (Parmnides 136e2-3). Infere-se, 39 Cf. CORDERO, 1991, p. 124.40 ROSEN, 1983, p. 124.41Ao interstcio dramtico de tempo entre as duas conversas chego atravs da combinao da informao presente no fim do Teeteto, que diz que Scrates est indo responder acusao de Mleto, fato ocorrido em 399a.c., e a datao dramtica do Parmnides por L. Robin, aceita por M. Iglsias e Forma. Rodrigues, em torno de 449a.c. A conversa do Sofista ocorre no dia seguinte da do Teeteto. Cf. PLATO, Parmnides. Trad. Maura Iglsias e Fernando Rodrigues. Rio de Janeiro: PUC-Rio; So Paulo: Loyola, 2003, p. 14; PLATON, Oeuvres Compltes. Trad. Lon Robin. Paris: Gallimard, 1950, p. 1447.

28

portanto, que esta ginstica do pensamento , no plano dramtico, de ensinamento e uso corrente no

crculo de Parmnides e Zeno em Eleia. A alternativa aceitao desta inferncia postular que, em

sua atividade pedaggica em sua terra natal, os dois filsofos, no estando preocupados com a verdade

ou com a aquisio de nos, abdicavam da presena do exerccio em suas atividades educativas. Com base, sobretudo, nas recomendaes que Zeno e Parmnides fazem a Scrates (Parmnides 135e;

136e), entendo ser inaceitvel esta alternativa, o que nos obriga a aceitar aquela inferncia. Entretanto,

no se pretende aqui afirmar que o mtodo fosse somente eleata, e que esta conversa com Scrates no

tenha incutido caractersticas fundamentais ao exerccio, possivelmente novas e no presentes no uso

corrente que, dentro desse contexto dramtico, dele j se fazia em Eleia. Na sugesto cnica que o

dilogo oferece, parece que, a mesmo, na conversa de Parmnides e Zeno com Scrates, o tal

exerccio sofre sensveis mudanas... para melhor. Mudanas para um horizonte novo, muito mais

importante que o anterior. Mais adiante veremos em que consistiriam tais mudanas. Importar-nos-

agora primordialmente o fato de a dita ginstica, neste contexto anterior ao Sofista, ter sido considerada

parte essencial de qualquer possibilidade de desenvolvimento na filosofia. Ao leitor que duvidasse do

fato de o jovem Scrates ter sido convencido da legitimidade desta considerao, chamo ateno para o

fato de o mesmo personagem, muitos anos depois, no auge de sua maturidade intelectual, incluir o

exerccio na educao dos futuros filsofos da Repblica (539d8-10, citado acima).

A segunda inferncia dramtica a que se chega que o Estrangeiro no pode ter deixado de ser

treinado por seus mestres eleatas nesta ginstica filosfica. Afinal, por um lado, ela era para

Parmnides e Zeno etapa obrigatria numa boa formao filosfica, e, por outro, no h dvida de que

o Estrangeiro um discpulo brilhante de seus professores o Sofista no parece deixar dvidas de que

ele um filsofo de verdade (216a4). Logo, em seus anos de formao em Eleia, na trama insinuada

por Plato, de se esperar que ele tenha sido treinado por eles nesse modo de fazer filosofia. E, de fato,

ao leitor mais desatento a esta ligao entre o exerccio do Parmnides e o protagonista do Sofista, Plato chegara mesmo a deixar um lembrete dela: em Sofista 251e4-5, o Estrangeiro expressamente

recomenda a Teeteto o mesmo mtodo da ginstica que Zeno e Parmnides ensinaram ao jovem

Scrates no Parmnides (135e9 e 136a1); inclusive, os mesmos verbos (, e

) so usados nestes trechos dos dois dilogos. possvel, portanto, supor que o Estrangeiro

aprendera a ginstica em sua formao, dos mesmos professores. Importa, agora, elucidar o que venha

a ser exatamente este exerccio.

1.2.2. Gymnasa e personagens

29

O exerccio ou ginstica (Parmnides 135d7) filosfica no Parmnides

definido da seguinte maneira:

a) No que tange s formas,

b) hipotetizar (, Parmnides 136a2) se algo e tirar as consequncias disso para este

algo e para as outras coisas (que esto em relao com ele), e tambm

c) hipotetizar se o mesmo algo no , e igualmente tirar as consequncias disso para ele e para as outras

coisas.

Vejamos cada ponto em separado, demonstrando como cada um representa, na arquitetura do

dilogo, a contribuio de um dos personagens ao programa de exerccio prescrito.

1.2.2.1. Scrates: as Formas so o campo no qual a ginstica deve acontecer

Na definio do exerccio, como visto acima, h trs caractersticas fundamentais42. Para a

anlise da primeira delas, vejamos sua meno no dilogo. O Parmnides comea com a aluso narrao do personagem Zeno de seus escritos que criticavam a ideia de multiplicidade crticas

tradicionalmente entendidas como dirigidas aos pitagricos43. Os escritos s tratavam das coisas

sensveis, e o personagem Scrates, ento um rapaz de cerca de vinte anos, diz que nestes objetos a

multiplicidade no lhe causa espcie, pois muito bem explicada pela participao de cada coisa

sensvel em vrias Formas inteligveis ao mesmo tempo. O problema, na verdade, segundo Scrates,

residiria em outro lugar:

(...) isso (sc. a multiplicidade nas coisas sensveis) no parece, a mim pelo menos, em nada absurdo, Zeno (...). Mas se aquilo que

[realmente] um, algum demonstrar que isso mesmo mltiplas coisas, e, de outra parte, que o mltiplo um, j disso me espantarei. E do

mesmo modo com respeito a todas as outras coisas: se algum mostrar que, em si mesmos, os gneros em si e as formas em si so afetados por

essas afeces contrrias, isso ser digno de espanto.

(...) , , ,

,

.

42 Cabe o alerta de que minha anlise no segue a ordem em que estes aspectos aparecem no texto platnico.43Cf., p. ex., TAYLOR, A.E. Plato, the man and his work. London: Methuen, 1955, p. 290-291; CORNFORD, 1950, p. 3-15.

30

, (129b-c)

Portanto, o que realmente traria espanto a Scrates seria a resposta s questes: como pode uma

Forma ser ao mesmo tempo uma unidade e uma multiplicidade? Como pode ter ela qualidades

contrrias? - por exemplo, ser mesma e outra, ser semelhante e dessemelhante, etc. Isto , o

problema mesmo ento est no na multiplicidade entre as coisas sensveis, mas entre as prprias

Formas. Com este passo onde o personagem Scrates se dirige ao personagem Zeno, Plato insere-se

na problemtica da articulao entre unidade e multiplicidade, que moveu toda a histria da filosofia

pr-socrtica; porm o faz de uma maneira sui generis. Como j o fizera no Fdon44, Plato no est acertando seus ponteiros com o relgio da tradio pr-socrtica, mas sim o contrrio: est acertando o

relgio da tradio com os seus prprios ponteiros. O Scrates de vinte anos fala para um Zeno de

quarenta, mas na verdade o alvo da fala so todos os pr-socrticos. No seu juvenil entusiasmo com a

novidade que traz, no exagero se pensar que o personagem ateniense representa a postura de Plato

para com esses sbios, que eram melhores do que ns e viviam mais perto dos deuses45. O sentido de

suas palavras poderia muito bem ser assim traduzido: a questo de unidade e multiplicidade, de

identidade e diferena, no est a, onde vocs, pr-socrticos, insistiram em ver. Segundo a minha

Hiptese das Formas, a no h aporia. A aporia desta questo est no mbito das Formas; unidade e

multiplicidade, identidade e diferena entre as Formas.

A matria ou objeto de estudo do exerccio ento ser as Formas. Tal a contribuio de

Scrates para o programa de exerccio que se seguir. Contribuio simples, porm decisiva. Decisiva

porque representa um salto no nvel da discusso do dilogo - salto o qual marca o novo patamar onde

a discusso se dar, patamar muito acima daquele no qual o pensamento do personagem Zeno

operava. Com este salto para o campo das Ideias em si, Scrates responde aporia zenoniana e, em

termos gerais, pr-socrtica, e a leva para o nvel da prpria ontologia platnica. A grandiosidade deste

salto ontolgico notadamente reconhecido por Parmnides e Zeno, que se olham e sorriem ao ouvi-

lo, admirando-o (130a6-7). Quando Scrates falar das Formas, Parmnides dar voz sua admirao ao

dizer Scrates, quo digno s de ser admirado () pelo seu ardor () no que tange aos

lgoi ( ) (130a9-b1). O objeto de investigao da ginstica filosfica tem, assim,

origem na posio de Scrates.

Com o estabelecimento deste primeiro ponto, viso discordar de duas posies de Cornford

44 PLATO, Fdon 96a-105b.45 PLATO, Filebo 16c7-8.

31

acerca do dilogo. Primeiramente, uma questo dramtica: em seu clssico comentrio obra, o

comentador afirma que Parmnides adiciona duas qualificaes ou modificaes ao mtodo de

Zeno, das quais a primeira seria a determinao das Formas como o objeto da investigao 46. Sobre o

mtodo j falarei. O importante aqui que Cornford d a entender que o personagem Parmnides

poderia ser a origem do salto ontolgico da discusso do nvel das coisas sensveis para o das Ideias,

nvel no qual o exerccio deve se dar. No entanto, em ateno ao texto, podemos ver que, embora seja o

treinador que prescreve o exerccio, Parmnides reconhece que a ideia de que o treino se d no solo

inteligvel no veio dele, mas do rapaz ateniense que ora conversa com eles:

Qual ento, Parmnides, disse [Scrates], o tipo de exerccio? ( (...)

(...) ;)

Este justamente, disse [Parmnides], que ouviste de Zeno. Salvo por um ponto: admirei teres dito a ele que no admitias examinar a errncia

nem nas coisas visveis nem em torno a elas, porm em torno quelas que so tomadas sobretudo com o lgos e que se acredita serem Formas.

(135d7-e4)

Assim, contrariamente ao que se pode depreender do que afirma Cornford, entendo que a primeira

caracterstica da ginstica oriunda do salto ontolgico realizado, na verdade, por Scrates e no

Parmnides.

Ainda sobre este primeiro ponto da gymnasa, que ela se d no mbito do inteligvel, outra

interpretao de Cornford nos parece merecer ser revista. Ele afirma, com acerto, que a chave para

compreenso da segunda parte do dilogo est na passagem da primeira parte para ela, com a noo da

ginstica filosfica. Todavia, Cornford afirmar47 que a afirmativa de Parmnides em 137b, quando

este diz que vai tomar sua prpria hiptese do Um, certamente no diz respeito a uma Forma

platnica. Cornford parece no se prender justamente definio acima do campo no qual o treino

acontecer: o campo das Formas. Como a segunda parte do dilogo precisamente uma demonstrao

do que seria este exerccio, nos parece bvio que, se h a assuno de um objeto inteligvel para a

ginstica, no mnimo coerente que o Um que Parmnides toma como ponto de partida seja uma

Forma ou Ideia, no sentido da ontologia platnica. Cornford, por seu turno, se atm, na sua tomada

de posio, ao fato de o personagem Parmnides dizer que tomar como exemplo a sua prpria

concepo do Um... Todavia, nos parece excessiva a expectativa de Cornford de fidelidade de Plato

46 CORNFORD, 1950, p. 105.47 CORNFORD, 1950, p. 112, nt. 1.

32

realidade histrica do pensamento dos pr-socrticos, no que tange apresentao deles em drama. A

rotina dos dilogos apresenta justamente o contrrio, conforme apontado por Cordero e Frre48; guisa

de exemplo, veja-se a apresentao das doutrinas parmendicas e heraclticas em Teeteto 179d-180e e

Sofista 242a-e, que no se coaduna fielmente com as obras eleata e efsia. Ao meu ver, se combinarmos i) o estabelecimento das Formas como o solo no qual acontecer a ginstica (135d-e), com ii) a

afirmao de Parmnides de que tomar, como contedo da exemplificao do exerccio, o seu prprio

Um (137b), s possvel concluir que Plato est fazendo aquilo que Martin Heidegger to bem far

vinte e quatro sculos depois: fazendo um pensador do passado assumir como sua prpria a ontologia

que na verdade dele. Plato apenas mais ardiloso e matreiro, pois o faz sob a forma de drama, quase

que brincando de marionetes com estes sbios do passado. Sobre esta identificao, na segunda parte

do dilogo, do Um com a Forma, Victor Brochard49 e Gilbert Ryle50 concordam conosco, e o prprio

Cornford, mais frente, far uma concesso neste sentido, ao afirmar a ambiguidade da palavra Um no

dilogo...51

Passemos ao segundo ponto. Se, por um lado, o contedo do exerccio veio de Scrates, um

estudante de filosofia ainda iniciante, por outro lado, o mtodo que ser nele utilizado ter uma fonte

bem mais madura...

1.2.2.2. Zeno: o mtodo da ginstica o Hipottico-Dedutivo

Qual ento, Parmnides, disse [Scrates], o tipo de ginstica (ho trpos... ts gymnasas)?

Este que ouviste de Zeno (...)

No seu papel de 'personal trainner', Parmnides estabelece o tipo de exerccio para Scrates: o mtodo de Zeno, definido como a prtica de, hipotetizando se cada coisa , investigar o que resulta

dessa hiptese (

) (135e9-136a1), tanto para a coisa quanto para as outras coisas que esto em relao

com ela. Tal caracterstica, presente alis no pouco que nos chegou da obra do Zeno histrico,

48 FRRE, 1991, p. 127; CORDERO, 1991, p. 124.49 BROCHARD, V. La thorie platonicienne de la participation. In:______. tudes de philosophie ancienne et de philosophie moderne. Paris: Vrin, 1926, p. 118-124.50 RYLE, G. Plato's Parmenides. Mind 48. Oxford: OUP, 1979, vol. 48, p. 143.51 Cf. Cornford, 1950, p. 112-113. Uma outra ambiguidade de sentido para o termo Um (hn) nasce tambm, segundo Ryle, da ambiguidade prpria ao verbo ser em grego, com o qual o Um aparece na 2a. Parte. O verbo poderia ser entendido a no sentido existencial ou no de cpula, gerando dvidas sobre o que exatamente est sendo tomado como exemplo na 2a. Parte. Cf. RYLE, 1979, p. 144.

33

segundo Plato o mtodo da ginstica. A ginstica seria assim o exerccio de pensar por hipotse

consequncia, um mtodo zenoniano que chamarei de mtodo eleata hipottico-dedutivo52.

Interessante o fato para o qual Cornford chama minha ateno53: este mtodo hipottico-

dedutivo, do tipo Se... , ento..., ncleo da ginstica necessria ao jovem Scrates, no era outra coisa

seno o prprio mtodo utilizado por Plato nas discusses dentro da Academia. Deste modo, assim

como Scrates (Teeteto 210b-d), e o Estrangeiro (Sofista 227a e 229c), Parmnides mais um dos personagens educadores de Plato, que discorre sobre facetas da paidea que, ao que tudo indica, o

prprio diretor aplicava no interior da sua prpria instituio.54 Fechando ento este segundo aspecto,

se fizssemos uma comparao dessa ginastica filosfica com o ato de esculpir, podemos dizer que, por

um lado, a matria-prima, o bronze, foi trazido ao atelier por Scrates; por outro, a frma, que lhe

servir de molde, um mtodo hipottico-dedutivo, trazido cena por Zeno.

A questo da seriedade atribuda por Plato a este mtodo sempre serviu de mote para a famosa

querela entre os comentadores sobre o Parmnides. Burnet55 e Taylor56 consideram-no todo uma

pilhria, usando na defesa de suas posies tanto argumentos dramticos quanto apontamentos da

semelhana do mtodo com aquele pertencente aos supostos alvos dos escrnios Zeno, Parmnides,

megricos, ou todos eles. Por outro lado, Ryle57, considerando tal posio como inaceitvel, afirma a

seriedade do mtodo no s dramaticamente, pela confessa admirao de Plato por Parmnides no

Teeteto e no Sofista, como tambm pelo fato reconhecido mesmo pelo prprio Taylor de que o mtodo de Zeno expressamente recomendado aos filsofos tanto na Repblica quanto no Sofista

(trechos j citados por mim mais acima). E essa tambm a minha posio: o mtodo hipottico

tratado com inegvel seriedade por Plato, porque tm apreo ao treino todos os personagens que o

empregam ou dele falam: Parmnides, Zeno, Scrates e Estrangeiro. Filiamo-nos, portanto, em

relao a este ponto especfico, a Ryle e seus argumentos.

52 Haja vista ter sido esse o mtodo mesmo do Zeno histrico, compreensvel porque Aristteles afirma, conforme aludido mais acima, ser Zeno o pai da dialtica (fr. 65 Rosen). Sendo tal mtodo zenoniano a base da ginstica apresentada por Plato no Parmnides como a origem do autntico fazer filosfico, no nenhum absurdo imaginar que Aristteles, quando aluno, tenha ouvido tal opinio sobre a paternidade da dialtica dentro da prpria Academia, qui da prpria boca de seu grande professor, Plato.53 CORNFORD, 1950, p. 103.54 Afirma ainda o comentador ingls que a escolha de palavras do personagem Parmnides para caracterizar este exerccio (achrston, inutil; adoleschas, tagarelice (135d4-5), uma escolha proposital, por serem as mesmas palavras que Iscrates usava para desmerecer tanto as prticas de Scrates quanto os estudos na Academia. Cf. CORNFORD, 1950, p. 22.55 BURNET, J. Greek Philosophy vol. 1, Thales to Plato. Londres: Mac Millan, 1920, p. 261-272.56 TAYLOR, 1955, p. 290.57 RYLE, 1979, p.130.

34

1.2.2.3. Parmnides: Necessrio tambm investigar a Hiptese contrria

A terceira caracterstica, trazida baila por Parmnides, consiste num prolongamento do

mtodo de Zeno. J foi visto que este consistia na hipotetizao de uma determinada assertiva e

deduo de consequncias dela, para a coisa e para as coisas em relao com ela. O ancio eleata vai

ento completar este mtodo hipottico-dedutivo de seu aluno58, fazendo-o incidir no s sobre

determinada assertiva, mas tambm sobre a negao dela: a investigao da hiptese contrria.

Conforme j comentado, segundo vrios intrpretes59, o mtodo original de Zeno era puramente

indireto ou negativo, porque tomava uma hiptese notadamente, a hiptese de seus oponentes -, e

dela deduzia as consequncias a saber, consequncias absurdas, no intuito de refut-los. Este

prolongamento proposto por Parmnides, de a investigao inquirir uma hiptese e a hiptese

contrria a ela, na opinio de Cornford e Ryle levaria necessariamente afirmao de uma das duas

hipteses, i., a um resultado no () negativo - expresso de Cornford a qual eu adaptarei para a

mais simptica Resultado Positivo. O mtodo original ganharia assim a sua completude, porque, ao

tornar-se uma espcie de operao zenoniana de dois caminhos60, abarcaria o problema por todos os

lados o abarcaria por inteiro:

Zeno tomava a hiptese dos seus oponentes () e deduzia concluses as quais ele assumia serem contraditrias. O mtodo era controverso,

levando a um resultado puramente negativo. Parmnides, por outro lado, exige que Scrates considere as consequncias, no apenas de afirmar,

mas [tambm] de negar a hiptese. () Se voc estuda as consequncias tanto de afirmar quanto de negar uma hiptese, voc olha para a

questo pelos dois lados e o resultado natural ser no puramente negativo: uma das duas, afirmao ou negao, deveria ser

estabelecida. (CORNFORD, 1950, p. 106)

(...) se se mostra que uma dada proposio logicamente viciada, sua [proposio] contraditria deve ser automaticamente validada. (RYLE,

1979, p.141)

E aqui encontramos a conexo direta de Zeno e Parmnides, personagens de Plato, com a

58 Zeno d a entender que foi aluno de Parmnides: Parmnides 136e4.59 NIETZSCHE, 1995, p. 73; CORNFORD, 1950, p. 106.60 Expresso de Gilbert Ryle: RYLE, 1979, p. 142.

35

lio tirada da obra de seus correspondentes histricos. Este Resultado Positivo, enquanto escolha por

apenas uma das duas hipteses, seria a manifestao no exerccio dramtico da estrutura dicotmico-

unvoca histrica que identifico como atravessando tanto os fragmentos de Zeno quanto a Via da

Verdade do Poema de Parmnides. A krsis, que a deusa l exigia de seu discpulo, no plano dramtico do dialogo platnico esperada sob a forma da afirmao, no fim, de apenas uma das hipteses visadas

resultado natural, segundo os dois comentadores citados, dos elementos do texto. I., na anlise das

duplas de hipteses contrrias, razovel que a concluso seja a impossibilidade de uma e a afirmao

da outra. O exerccio dos personagens eleatas, assim, aponta para o caminho unvoco que l no Poema

a deusa traara para seu discpulo.

Aqui, uma primeira questo se coloca. Se, por um lado, afirmo que a caracterstica de direcionar

o exerccio tambm para hiptese contrria inicial foi colocada por Parmnides no dilogo, e

consistiria numa diferenciao do mtodo original de Zeno - com o que, conforme visto, concordam

tanto Cornford quanto Ryle -, por outro lado, evidncias h de que a prpria Antiguidade considerou tal

desenvolvimento duplo de hipteses um talento j presente no prprio filsofo Zeno histrico. Tal a posio de Cordero61, que, para argu-lo, traz cena passagens no s da obra platnica, como tambm

de vrios outros autores antigos. Para ele, o personagem Parmnides, ao prescrever o mtodo

zenoniano a Scrates, teria em mente tal mtodo como um discurso que se dirige to bem sobre uma

hiptese como sobre sua negao62. Cordero tambm lembrar da famosa passagem do Fedro onde Scrates alude a um Palamedes Eleata, que falava com uma arte capaz de fazer aparecer as mesmas

coisas, queles que o escutavam, como semelhantes e dessemelhantes, unas e mltiplas, ou ainda

assim em movimento e em repouso (Fedro 261d6-8). Ao valer-se de um apelido, Plato no deixa

totalmente claro a quem se refere... Mas praticamente unnime na tradio a opinio, na esteira do

testemunho de Digenes de Larcio63, que entende ser de Zeno que a passagem trata. Digenes, alis,

compartilha da ideia presente no Fedro de tributar a Zeno tal talento em hipteses contrrias; concordando com Timo, o bigrafo da Antiguidade o cita: Zeno, com sua grande fora, dificilmente

resistvel, capaz de defender uma tese e seu contrrio (...). Esta habilidade do eleata tambm

reconhecida por outros autores da Antiguidade, como Aristteles, Iscrates, Proclus, etc64... Resta-nos

ento a dvida: o mtodo hipottico-dedutivo j era em sua origem aplicado por Zeno a duplas de

hipteses contrrias, no havendo assim um acrscimo do personagem Parmnides nesse sentido?

Bem, meu interesse aqui reside, acerca da questo, na posio apresentada no Parmnides, por ser este dilogo o que dramaticamente prepara o aparecimento do mtodo da diviso no Sofista. O 61 CORDERO, 1991, p. 113-115.62 CORDERO, 1991, p.113.63 DIOGENES LAERCIO, Vida e Doutrina dos Filsofos Ilustres. Trad. Mrio da Gama Kury. Braslia: UnB, 1977, sesso

XI.64 Citados por Cordero. Cf. CORDERO, 1991, p. 114.

36

primeiro ponto que no h a apresentao nesta obra das ideias de Zeno este trecho omitido na

narrativa de Antifonte (Parmnides, 127c-e). No entanto, isto no significa que meu pequeno impasse no possa ser resolvido: num momento posterior (135d-e), Parmnides afirma que Scrates tem que

seguir a) o mtodo de Zeno, b) exceto (, 135d8) pelo fato de que deve tomar como objeto de

estudo as Formas; e, na sequncia, ele afirma que, c) alm disso ( , 135e8),

necessrio tambm desenvolver a hiptese contrria original. Portanto, os conectivos usados por

Plato - pln (exceto), ti prs totoi (alm disso) - no deixam dvida de que tanto b (Formas como

objeto) quanto c (investigao da hiptese contrria) representam acrscimos ou diferenas quanto

situao original a (o mtodo de Zeno). Conclui-se assim que, no Parmnides, fico filosfica sua,

Plato, atravs dos personagens presentes, atribui a Zeno apenas o mtodo hipottico-dedutivo, e que

faz provir do personagem Parmnides o acrscimo de exerc-lo de forma dupla, sobre hiptese e

hiptese contrria, qual molde e contramolde para se chegar escultura final. A despeito disso, em

outras partes de sua obra, como no Fedro, possvel ver Plato, atravs da boca de um Scrates j

maduro, compartilhar da concepo existente na Antiguidade de que Zeno desenvolvia com notvel

capacidade hipteses contrrias. Todavia, no contexto da cena criada no dilogo Parmnides, isso no

ocorre, de modo que no posso aceitar a posio de Cordero a respeito da passagem deste dilogo.

1.2.2.4. A ginstica filosfica e a estrutura eleata

Esta terceira e ltima caracterstica o que fecha o programa de exerccio prescrito, apontando

para a completude do mesmo. A ginstica filosfica assim um procedimento necessrio erigido no

intercmbio entre os trs filsofos que s o gnio cnico de Plato poderia fazer encontrarem-se.

Scrates, Zeno e Parmnides, cada qual tem parte fundamental na construo do programa de

'musculao' dialtica, pois trata-se ela, no contexto do Parmnides, do exerccio de, (1) sobre as inteligveis Formas 'socrticas'65, (2) aplicar um mtodo hipottico-dedutivo zenoniano, o qual, (3)

segundo a prescrio pa