a filosofia da linguagem em platão[1]

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA A filosofia da linguagem em Platão André Antônio Ribeiro Orientador: Prof. Dr. Jayme Paviani Porto Alegre, janeiro de 2006

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  • 1. PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANASPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIAA filosofia da linguagem em PlatoAndr Antnio RibeiroOrientador: Prof. Dr. Jayme Paviani Porto Alegre, janeiro de 2006

2. ResumoNa filosofia da Plato, as Idias so postuladas para serem a referncia extralingsticaobjetiva que garantiria a significabilidade da linguagem. O problema que, tal comoapresentada nos dilogos Repblica e Fdon, a Teoria das Idias tem graves inconsistncias,sendo a no menos importante o fato de no explicar como as Idias se relacionam com omundo sensvel, o que o mesmo que dizer que elas so incognoscveis. Plato, atravs deuma crtica sua prpria Teoria das Idias e s concepes de linguagem defendidas pelossofistas, reformular, em aspectos importantes, a sua Teoria. O que queremos enfatizar nestetrabalho que, para essa reformulao, Plato utilizar a linguagem, tal como a usamos nodia-a-dia, como paradigma para resolver os problemas da Teoria das Idias, de modo que elapossa, sem aporias, ajudar no entendimento das diferenas entre linguagem significativa eno-significativa. Ou seja: tentaremos mostrar que, se a Teoria das Idias foi postulada paragarantir a significao lingstica, a linguagem, por sua vez, servir como modelo para ajudara mesma Teoria a superar seus problemas.Abstract In Platos philosophy, the Forms are postulated to be the objective extra-linguisticalreference that assure the linguistic meaning. But theory of Forms in Republic and Phaedo hasmany inconsistencies. Plato, by a self-criticism of your theory of Forms, made changes inimportant aspects of his theory. To do this, he uses ordinary speech, especially ours intuitionsabout the relevant differences between meaningful and meaningfulness language, asparadigm to solution of aporias in theory of Forms. We want to show that, if the Forms arepostulated to assure the significant speech, language is used by Plato as a model to modifyand avoid contradictions of his earlier theory. 2 3. AgradecimentosAo CAPES, que financiou meus estudos.Ao PPG em Filosofia da PUCRS, na pessoa de coordenador poca de meu ingresso, Prof.Dr. Draiton Gonzaga de Souza, pela acolhida.Ao Prof. Dr. Jayme Paviani, pela orientao nos trs anos iniciais e pelo exemplo vivo defilosofar.Ao Prof. Dr. Reinholdo Aloysio Ulmann, exemplo de erudio e bom-humor, que, em meioaos seus vrios afazeres, ainda conseguiu gentilmente me orientar no ltimo semestre.Ao Prof. Dr. Eduardo Luft pelo apoio e incentivos constantes.Aos amigos Prof. Srgio Sardi, Nazareno de Almeida, Sandra Fasolo, Vnia Cossetin, JasonLima e Silva e Luciana Rodhen que ajudaram a manter viva a chama da filosofia quando elaameaava apagar.Agradecimento especial:Este trabalho no teria sido possvel sem a ajuda do Prof. Dr. Marcelo Pimenta Marques daUFMG que, generosamente, me permitiu pesquisar em seu grande arquivo pessoal de artigose livros sobre o Sofista. A ele, meu muitssimo obrigado! 3 4. SumrioIntroduo........................................................................................................... 5 Captulo I As concepes de linguagem pr-platnicas1.1 Sofistas e retrica....................................................................................... 131.2 Grgias....................................................................................................... 151.3 Protgoras................................................................................................... 221.4 O poema de Parmnides............................................................................. 271.5 A teoria referencial da linguagem.............................................................. 33Captulo II O CrtiloIntroduo......................................................................................................... 382.1 A tese convencionalista............................................................................. 402.2 As etimologias........................................................................................... 462.3 A tese naturalista....................................................................................... 57 Captulo III O ParmnidesIntroduo........................................................................................................ 643.1 A Teoria das Idias como resposta ao paradoxo de Zeno........................ 653.2 As aporias da teoria das Idias.................................................................. 683.3 Interpretao do significado do exerccio dialtico................................... 733.4 As 8 hipteses sobre o Uno....................................................................... 763.5 Concluses particulares de cada Hiptese................................................. 89 4 5. 3.6 Concluso geral da segunda parte do Parmnides..................................... 91Captulo IVO Sofista Introduo......................................................................................................... 93 4.1 As definies de sofista.............................................................................. 97 4.2 O mtodo de refutao (elenchus) socrtico............................................ 101 4.3 O sofista como produtor de imagens faladas............................................ 104 4.4 Anlise do No-Ser .................................................................................. 106 4.5 Problema da falsidade............................................................................... 107 4.6 As doutrinas do Ser.................................................................................. 109 4.7 Como pode algo ter vrios nomes: sumploke eidolon.......................... 113 4.8 Os gneros mais importantes ............................................................... 116 4.9 O No-Ser como Outro............................................................................. 119 4.10 A comunho das Idias e o discurso....................................................... 120 Consideraes finaisO Timeu e a linguagem como analogiaIntroduo............................................................................................................ 125A analogia como princpio estrutural do mundo................................................. 126A linguagem como analogia................................................................................ 129Referncias bibliogrficas................................................................................... 137 5 6. Introduo Em praticamente todos os seus dilogos, Plato apresenta Scrates questionando aspessoas que ele encontrava sobre o significado de certos conceitos, pedindo-lhes que digam,definam, expliquem o que a justia, a virtude, o conhecimento, a beleza, etc. No dilogo Fdon (74a), Plato pergunta qual o significado da palavra igual.Aparentemente, a forma mais bvia de se responder a essa pergunta indicar exemplos decoisas que so iguais, mostrando, por exemplo, dois pedaos de pau de mesmo comprimento.Mas Plato afirma que o problema com essa estratgia que um pedao de pau pode ser iguala outro pedao e, ao mesmo tempo, ser maior ou menor em relao a um terceiro. Nesse caso,o mesmo basto pode ser corretamente chamado de igual e no-igual, pois ele exemplificaestes dois conceitos opostos simultaneamente. Com esta afirmao, Plato no quersimplesmente nos lembrar de que as pessoas podem se enganar ou discordar entre si quanto assuas percepes de dois bastes iguais. A sua tese que podemos dizer corretamente que omesmo pedao de pau igual e desigual, grande e pequeno, etc. Consideraes anlogaspodem ser feitas em relao a objetos que exemplificam conceitos como grande,6 7. pequeno, leve, pesado, etc. (Repblica 479b). Se algo considerado belo por ter a cordourada, esta mesma cor em outro objeto pode torn-lo feio; logo, o dourado belo e no belo (Hpias Maior 290ab; Repblica. 479a). Ns temos a concepo da igualdade: sabemos usar corretamente essa palavra,sabemos o que ela significa. Mas como obtemos esse saber? Nenhum objeto sensvelexemplifica corretamente, perfeitamente, a igualdade; logo, a nossa concepo de igualdadeno pode ter sido derivada da percepo de objetos sensveis. No existem exemplos perfeitose no-ambguos de igualdade no mundo sensvel. Por isso Plato postula a existncia deconceitos no-ambguos, que exemplificariam perfeitamente determinado conceito, semexemplificar simultaneamente o seu oposto. Tais conceitos no so captados pelos sentidos,mas pela mente sozinha: so as Idias. As Idias, portanto, so postuladas para serem a referncia objetiva s quais aspalavras se referem, garantindo assim que sejam significativas. Talvez esta caracterstica das Idias fique mais clara se a compararmos com o seuequivalente na metafsica contempornea: as proposies. Vamos procurar entender o quesignifica uma proposio atravs de um pequeno exemplo. Quando entra em cena no segundo ato, Hamlet est lendo um livro (o que, alis, causaalarme nos presentes, j preocupados com a sua sanidade mental). Polnio, tentando sersimptico, lhe pergunta o que est lendo e recebe, como resposta, um enigmtico palavras,palavras, palavras.... De fato, em um certo sentido, tudo o que lemos so palavras, palavras,palavras, isto , sinais grficos distribudos em uma folha de papel, e ler consiste em decifrarestes sinais de acordo com regras que aprendemos laboriosamente nos bancos escolares denossa infncia. Por outro lado, bvio que ningum l o Hamlet com um exerccio dedecifrao criptogrfica! Ns no lemos as palavras, palavras, palavras do texto por elasmesmas, pois estamos interessados em outras coisas, que esto alm dos sinais grficos. 7 8. Estas outras coisas, que esto alm dos sinais que usamos para express-las, e quedenominamos proposio, no so entidades lingsticas. 1 A proposio que a neve brancano deve ser confundida com a frase a neve branca. A frase a neve branca expressa aproposio que a neve branca. O termo proposio refere-se ao contedo que expressoem uma afirmao. Compreender uma frase apreender a proposio que a frase expressa. importante enfatizar que uma proposio no um objeto no mundo, como o exemplo a neve branca, que usamos, pode dar a entender. Conforme os defensores da teoria proposicionalda linguagem, 2 proposies seriam objetos abstratos que existem independentemente damente: mesmo no caso em que dizemos mesa, esta palavra no se refere ao objeto concretoque vemos a nossa frente, mas ao conceito abstrato de mesa.Supe-se que uma proposio seja a mesma para qualquer indivduo que acompreenda. O meu conceito de mesa deve ser idntico ao conceito de mesa de um ingls,apesar de expressarmos essa mesma proposio com palavras diferentes. As frases a neve branca, para um brasileiro; the snow is white, para um falante de lngua inglesa; la neigeest blanc, para um francs e der Schnee ist weiss, para um alemo, so frases queexpressam a proposio a neve branca (existiria uma quantidade indeterminada de frasesque expressam o mesmo significado).O paralelo entre as Idias platnicas e o que os metafsicos contemporneosdenominam proposio to significativo que Kirkham, em seu livro sobre as teoriascontemporneas da verdade, quando tenta explicar o segundo, recorre ao primeiro: Uma proposio uma entidade abstrata. o contedo informacional de umasentena completa no modo declarativo. (...) Leitores que tm familiaridade com a noo deforma platnica ou universal podem achar til a seguinte analogia: uma proposio est parauma sentena declarativa assim como uma forma platnica est para um predicado. Falando1Para um tratamento completo do conceito de proposio, ver Loux, 1998, cap. IV p. 132-164 e Lycan, 2001,p.80-72Frege (O pensamento, 1919); Russel, (Problems of philosophy, 1919, cap. IX e X); Strawson (Individuals,1959, cap. V e VI); Donagan (Universals and metaphysical realism, 1963); Armstrong, (Universals, 1989) paracitar os exemplos mais destacados, so defensores desse tipo de teoria (cf. Lycan,2001, p. 80). 8 9. mais ou menos metaforicamente, seja l do que for que sejam feitas as formas platnicas, do mesmo so feitas as proposies. Proposies no so idnticas a tipos de sentenas, pois um tipo de sentena no nada mais do que a coleo dos seus membros, enquanto uma proposio ainda existiria mesmo que nunca tivesse sido expressa em nenhuma ocorrncia de sentena (2003, p. 89). Para que sejam capazes de garantir a significao da linguagem, as Idias soapresentadas por Plato como tendo caractersticas opostas as caractersticas dos seressensveis: na Repblica, elas so qualificadas como unas, em si, perfeitas, imateriais, eternas,imutveis, imveis, invisveis aos sentidos e perceptveis somente pela inteligncia (525c-533e). No Fdon as Idias so apresentadas como sendo independentes dos entes sensveis;eternas, imutveis, inteligveis e simples (indivisveis) (80e, 92d, 100c). O problema que, tal como apresentada nestes dilogos, a Teoria das Idias temgraves inconsistncias, sendo a no menos importante o fato de no explicar como as Idias serelacionam com o mundo sensvel, o que o mesmo que dizer que elas so incognoscveis.Ora, se elas so incognoscveis, ela tambm no explica como a linguagem tem significado. Odilogo Parmnides, onde essa deficincia constatada, pe Plato diante do seguinte dilema:a Teoria das Idias tem inconsistncias internas graves, mas sem ela no possvel garantir osignificado da linguagem. A autocrtica que Plato faz a sua prpria teoria mostra que suas dificuldades vm dofato de as Idias serem concebidas como unas, e elas so concebidas como unas por causa daproibio de Parmnides de se unir Ser e No-Ser, pois, segundo o pensador de Elia, o No-Ser no pode ser dito ou pensado. Ora, sofistas e retricos, como Protgoras e Grgias,baseavam-se nessa mesma proibio para defender concepes de linguagem que afirmavamque tudo o que dizemos verdadeiro, no h falsidade, impossvel contradizer. Plato, atravs de uma crtica sua prpria Teoria das Idias e s concepes delinguagem defendidas pelos sofistas, reformular, em aspectos importantes, a sua Teoria. O9 10. que queremos enfatizar neste trabalho que, para essa reformulao, Plato utilizar alinguagem, tal como a usamos no dia-a-dia, como paradigma para resolver os problemas daTeoria das Idias, de modo que ela possa, sem aporias, ajudar no entendimento das diferenasentre linguagem significativa e no-significativa. Ou seja: tentaremos mostrar que, se a Teoriadas Idias foi postulada para garantir a significao lingstica, a linguagem, por sua vez,servir como modelo para ajudar a mesma Teoria a superar seus problemas. No captulo 1 estudaremos as concepes de linguagem com as quais Plato sedefrontou em seu tempo. Abordaremos as teses dos retricos sofistas, representados porGrgias e Protgoras, e o poema de Parmnides. A partir das premissas plausveis e dadeduo logicamente impecvel de que o Ser e o No-Ser no , feita por Parmnides, ossofistas extraam algumas concluses paradoxais, tais como: impossvel falar falso; impossvel contradizer; todas as frases negativas so falsas; apenas juzos de identidade sopossveis; tudo o que falamos verdadeiro. Tais concluses tornam a linguagem, em ltimainstncia, impossvel. No captulo 2, mostraremos como Plato, no dilogo Crtilo, apresenta e discute, sobo nome de convencionalismo (a tese segundo a qual o significado das palavras estabelecidopor conveno ou acordo) e naturalismo (a tese de que existe naturalmente uma denominaoexata para cada um dos seres), duas teses sobre a linguagem que so, na verdade, as teses dossofistas e a de Parmnides, respectivamente. Plato mostra que, apesar de a posioconvencionalista ser diametralmente oposta naturalista, ambas levam, porm, s mesmasconcluses: (1) nenhum nome mal-atribudo: todos os nomes so verdadeiros; (2) impossvel falar falso. A concluso do Crtilo ser a de que no por meio de seus nomesque devemos procurar conhecer ou estudar as coisas, mas, de preferncia, por meio delasprprias. Qual o significado dessa concluso? Como podemos conhecer algo diretamente,sem palavras? E, mais importante, o que podemos conhecer sem palavras?10 11. Essas respostas sero encontradas no dilogo Sofista, mas, antes, abordaremos odilogo Parmnides (captulo 3). Plato descobriu, corretamente, que os problemas da suaTeoria das Idias e as concluses paradoxais sobre a impossibilidade da linguagem dossofistas e megricos tinham uma origem comum, isto , a negao parmendea dapossibilidade de se falar com significado sobre o No-Ser. As aporias da Teoria das Idias soexpostas no Parmnides e, atravs delas, podemos compreender por que essa Teoria noexplica a linguagem. Assim, o problema do significado da linguagem e problemas metafsicosreferentes aos conceitos de Ser e No-Ser esto intimamente relacionados. O Sofista, como veremos no captulo 4, justamente o dilogo em que Plato procuradeterminar qual o status ontolgico da imagem (edolon). Isto equivale a, de alguma forma,supor o No-Ser como Ser. A perplexidade sobre como relacionar Ser com o No-Ser s sedesfaz quando Plato nota que ns fazemos tais relacionamentos ao usarmos a linguagemcotidianamente. Na linguagem atribumos a homem, por exemplo, diversas caractersticas equalidades (cor, forma, tamanho, vcios, virtudes), afirmando assim, no apenas que o homem, mas tambm que tais caractersticas so e, alm disso, que a relao entre taiscaractersticas e o homem tambm . Assim, a linguagem e sua estrutura sero usadas comoparadigma para o entendimento da correta inter-relao dos conceitos metafsicos. Na linguagem algumas combinaes de nomes so permitidas, enquanto outras no oso. Mais especificamente, um discurso formado por dois gneros de sinais: os nomes e osverbos. Um discurso formado unicamente por nomes ou um discurso formado unicamente porverbos seria apenas uma seqncia de palavras, no um discurso. Apenas uma combinao denomes e verbos pode nos dizer que algo , foi, ocorre e, por isso, apenas uma combinaodesse tipo pode ser considerada um discurso. Analogamente, ao se combinarem Idiasdiferentes existem trs possibilidades: ou elas podem se associar entre si livremente; ou nopodem se associar de nenhuma maneira, ou algumas delas podem se associar com algumas, 11 12. mas com outras no (nem todas as combinaes associativas so permitidas). Se, porexemplo, o Movimento pudesse associar-se ao Repouso, o Repouso seria Movimento e oMovimento seria (ou estaria em) Repouso; por outro lado, o Movimento e o Repouso podemse associar com o Ser, caso contrrio ficariam excludos da existncia. Resta o terceirocaso: apenas algumas associaes so permitidas. Esse seria um caso anlogo ao dacombinao das letras na formao das palavras e das palavras na formao de frases:algumas combinaes so vlidas, outras so invlidas. Assim, graas ao fato de os gneros se prestarem a algumas associaes e a outras no, possvel demonstrar tambm que h um Ser do No-Ser, pois o Movimento, por exemplo, outro em relao ao Ser e o mesmo em relao a si prprio. H, assim, dois novos gneros:o Mesmo e o Outro que participam, ambos do Ser, mas no se confundem com o Ser. Plato estabelece uma concepo do No-Ser, no como negao da existncia, mascomo Outro (hteron) em relao a uma forma determinada. Desse modo, o No-Ser pode serdefinido como sendo, no a negao do Ser (ausncia de ser), mas como qualquer coisa queseja outro (diferente) do Ser: quando falamos no No-Ser isso no significa (...) qualquercoisa contrria ao Ser, mas apenas outra coisa qualquer que no o Ser. (...) No podemos,pois, admitir que a negao signifique contrariedade, mas apenas admitiremos nela algumacoisa de diferente. O no-belo, por exemplo, participa do gnero outro em relao ao belo:como gnero outro participa do ser, o no-belo tambm participa do ser. Dessa maneira, aforma do No-Ser pode combinar-se com a forma do Ser, pois o No-Ser o Outro do Ser(tudo o que no igual ao Ser a casa, o cavalo, o amarelo, etc.) e no a negao do Ser. Com isso, garante-se existncia das imagens e de graus intermedirios entre verdade efalsidade. A imagem, cpia do original, seria justamente algo intermedirio entre o Ser e No-Ser, pois ela (tem existncia prpria), mas, por outro lado, ela no o original. Assimtambm possvel falar em discursos falsos, pois esses no so discursos que falam sobre o12 13. No-Ser, isto , no falam nada, mas so discursos que dizem alguma outra coisa em relaoao que realmente deveriam falar. Garantida a existncia das imagens e das cpias, garante-se tambm a existncia deum lugar ontolgico para a linguagem. No dilogo Timeu (captulo 5), Plato aplicar esseresultado do Sofista em um contexto mais amplo. A linguagem funciona como o intermedirioontolgico entre o reino das Idias e o mundo sensvel, sendo uma imagem do primeiro,imagem entendida aqui como o termo que serve de medida comum entre dois extremos emantm, assim, corretamente a proporo entre ambos. o papel analgico da linguagem,portanto, que tentaremos esclarecer nesse captulo. 13 14. Captulo I As concepes de linguagem pr-platnicas1.1 Sofistas e Retrica A retrica ou arte de persuadir consistia em tcnicas de discurso que visavamdemonstrar a plausibilidade de uma tese dada. Nas palavras de Plato, a retrica de Tsias eCrax 3 consistia na descoberta de que a probabilidade [ei0ko/ta provvel, plausvel,aparncia] deve ser tida em maior apreo do que a verdade [a0lete/wj] (Fedro, 267a). Essaafirmao torna-se significativa, se levarmos em considerao o fato de a retrica ter seoriginado nos meios jurdicos 4 . No gnero jurdico, o ru ou o acusador 5 discursam paradefender ou acusar algum diante de juzes e de um jri que deve escolher entre uma de duasalternativas mutuamente excludentes: a culpa ou a inocncia.3Tsias e Crax so considerados os inventores da retrica. Eles publicaram um tratado sobre a arte retrica(techn rhetorik), hoje perdido, e que provavelmente era uma espcie de coletnea de preceitos prticosexemplificados com casos concretos, na qual sistematizaram e organizaram o que era at ento uma prticaemprica ( Reboul, 1998, p. 2. Plebe, 1978. p. 1; Barilli, 1985 p. 13).4Conforme Aristteles, a arte da retrica se originou na Magna Grcia (Siclia e Itlia) por volta da primeirametade do sculo V a.C. Em 467 a.C., a tirania de Trasbolo de Siracusa (Siclia) foi derrubada e a democraciarestabelecida. Com isso, seguiram-se numerosos processos judiciais movidos por cidados que queriam reaver asterras que lhes haviam sido confiscadas pela tirania. Quando, diz Aristteles, a tirania foi destruda na Siclia eas questes entre particulares, aps um longo intervalo, foram novamente submetidas aos tribunais, pela primeiravez, nesse povo de esprito penetrante e naturalmente inclinado discusso, viram-se os sicilianos Corax e Tsiasdar um mtodo e regras. Antes ningum seguia uma rota traada, nem se submetia a uma teoria e, entretanto, amaioria se exprimia com cuidado e ordem (Ccero, Brutus, 12, 46 citado por Plebe, 1978, p. 2)5Na poca de Crax e Tsias no existiam ainda advogados: os cidados que recorriam justia valiam-se depessoas que sabiam escrever, os loggrafos, que redigiam as queixas que eram ento lidas diante do tribunal peloprprio ru ou acusado (Reboul, 1998, p. 2.).14 15. Se o jri e os juzes compartilham a mesma opinio sobre a ocorrncia ou no dosfatos dos quais o ru acusado, seja porque possvel demonstr-los de forma indubitvel,seja porque esses fatos so de conhecimento de todos, ento o ru ou o acusador praticamenteno tero trabalho a no ser o de dirigir a ateno dos seus ouvintes para tais fatos. Mas, casoesse consenso prvio no exista, pois no possvel fornecer uma demonstrao exata dosfatos, ou no caso de jurados e juzes terem uma opinio prvia contrria do ru, ento nesses casos que a arte retrica tem uma funo a cumprir: a de apelar para a verossimilhanaou plausibilidade. Quer dizer: o argumento retrico, com seu apelo ao eikos, usado quandono h evidncia disponvel para comprovar se os fatos ocorreram de determinada forma ouno (evidncia que seria fornecida, por exemplo, por uma testemunha) (cf. Woodruff, 1999, p.269; 298).Ou seja, h casos em que no possvel saber, mediante uma verificao independentedo que foi dito pelo orador, se ele est dizendo a verdade ou no, isto , se os fatos ocorreramrealmente tais como ele os descreve. Nos casos em que no possvel comprovar se ocontedo do discurso reflete com fidelidade o que ocorreu, os ouvintes s tm o que afirmado no discurso do ru ou acusador para julgar a tese apresentada.Por exemplo, um acusado de assassinato poderia recorrer ao tipo de argumento (oufigura retrica) conhecida como crax: se ele uma pessoa forte, poderia argumentar queno cometeu o assassinato por saber que as suspeitas recairiam imediatamente sobre si; se uma pessoa fraca, bastaria argumentar que no teria as condies necessrias para assassinaralgum. 6 Ou, em outro exemplo, uma pessoa acusada de roubar um manto pode argumentarque, tendo dinheiro e podendo compr-lo, no teria que expor-se ao risco de ser preso paraobt-lo (cf. Woodruff, 1999, p. 296).6 Plato (Fedro 273b-c) atribui esse tipo de argumentao a Tsias; Aristteles (Retrica 1402a) o atribui aCrax.15 16. O apelo ao eikos, verossimilhana, , portanto, um apelo s expectativas razoveisdos ouvintes. Mas o que seja uma expectativa razovel depende do contexto no qual os fatosso apresentados. A alterao do contexto pode alterar significativamente o que pode ou nopode ser considerado como razovel. No segundo exemplo citado acima, a informao de queo acusado tem (ou no) dinheiro determina a plausibilidade ou a implausibilidade da acusaode roubo, se razovel acreditarmos que o acusado realmente cometeu o roubo ou no. Ora, ocontexto fornecido pelo prprio orador, de modo que a habilidade em fornecer os contextosadequados, que tornem o ponto de vista defendido mais plausvel ou razovel, vem a serdeterminante na vitria de uma argumentao ou da argumentao contrria (cf. Woodruff,1999, p. 296-7). Na argumentao retrica, portanto, o fato, o que realmente ocorreu, torna-seirrelevante e, em casos extremos, quando o que ocorreu justamente o que se quer negar, nemdeve ser citado (casos h em que no devem ser mencionados os prprios fatos quando tmcontra si as aparncias Fedro 272e), e as questes so julgadas apenas com base nacapacidade do advogado em persuadir a sua audincia. E sobre esse poder de persuadir os ouvintes, por meio do lo/goj, que o maisdestacado representante da retrica de seu tempo, Grgias, vai refletir.1.2 Grgias Grgias veio a Atenas em 427 como embaixador para pedir ajuda na guerra contraSiracusa. A eloqncia do seu discurso na Assemblia causou um enorme impacto nosatenienses pela novidade de estilo. Esse estilo novo consistia em uma espcie de prosapotica (Reboul, 1998, p. 4): Grgias usava na prosa (normalmente usada como uma meratranscrio da fala comum) elementos da poesia, tais como o ritmo, rimas internas (que16 17. facilitariam a memorizao do que foi dito), ornamentos, metforas e antteses (cf. Woodruff,1999, p. 299).No haveria, portanto, para Grgias, separao entre prosa (retrica) e poesia, sendoambas consideradas como dois aspectos diversos do lo/goj ou discurso: a poesia seria umdiscurso com metro (lgos chon mtron) enquanto que a prosa seria um discurso semmetro (lgos neu mtron). Mas se, na prtica, retrica e poesia so inseparveis, nem porisso elas deixam de apresentar duas problemticas distintas para o pensamento gorgiano: deum lado, ele nos apresenta a poesia como uma produtora de iluses ou enganos (apte), deoutro, a retrica como persuaso (peith).A concepo de poesia de Grgias deriva da concepo pitagrica 7 da palavra comoalgo que tem um poder mgico e fascinante de encantar os ouvintes. Mas enquanto que paraos pitagricos a arte servia para curar as molstias do corpo e da alma, para Grgias oencantamento (epod; goetea) potico cria uma espcie de agradvel doena (nsoshedea) na alma que melhor do que a normalidade da vida cotidiana. A poesia nos faz crerem coisas que no existem; ela , portanto, uma espcie de engano que afeta ao indivduo.A retrica, por outro lado, tem uma funo social que visa incitar os cidados aopoltica. Ela tambm tem o poder potico de criar iluses, mas seu objetivo fazer os ouvintes7Os pitagricos no se interessaram tanto pela arte da retrica (entendida como a sistematizao e organizaode um saber emprico) mas dirigiram suas reflexes sobre o poder do lo/goj em despertar certas reaespsicolgicas (emocionais) nos ouvintes (Plebe, 1978, p. 4). Para eles, o lo/goj possui um poder de fascnio, deencantamento, de atrao, que era comparado ao poder de seduo ou arte de encantamento da msica, cujacapacidade em anular ou modificar certos estados da alma eram conhecidos e muito valorizados pelos seusefeitos mgico-medicinais: os pitagricos praticavam a catarse [kaqa/rsei purificao] do corpo pelamedicina e a da alma pela msica (Kirk e Raven, 1990, p. 231). Essa aproximao da retrica com a medicinanos leva a outra concepo importante da retrica pitagrica: a polutropa. Na concepo grega, o mdico deveaplicar um remdio que no s seja eficaz contra a doena mas que tambm seja adequado constituio dodoente, constituio essa que varia de paciente para paciente. Analogamente, para os pitagricos, os discursosno podem ser proferidos indiscriminadamente, mas o orador deve levar em considerao que existe apenas umtipo de discurso apropriado para cada diferente tipo de pessoa. Ou mais exatamente: para cada tipo de pessoa hum nico tipo de discurso que lhe adequado: a isso os pitagricos chamavam monotropa. Mas, como noexiste apenas um nico tipo de pessoa, tambm no existe um nico tipo de discurso que se aplique a todos: htantos tipos de discursos diferentes quantos diferentes tipos de pessoas: a polutropa. Assim, h os discursospaidiko apropriados para os jovens, os gynaikeioi para as mulheres, os ephebikoi para os jovens, etc (Plebe,1978, p. 3). Portanto, a polutropa caracterizada como a faculdade de encontrar o modo de expresso maisconveniente aos ouvintes do momento atravs da capacidade de escolher palavras bem ajustadas (lo/goja9rmodi/ouj) ao pblico.17 18. crerem que as coisas so diferentes do que so, de acordo com as intenes do orador. Ambosos conceitos (apte potica e peith retrica) esto claramente exemplificados na famosapassagem do seu Elogio de Helena:O Discurso [lgoj] um senhor soberano que, com um corpo diminuto e quaseimperceptvel, leva a cabo aes divinas. Na verdade, ele tanto pode deter o medo comoafastar a dor, provocar a alegria e intensificar a compaixo. (...) Um temor reverencial, umacomovida compaixo e uma saudade nostlgica insinuam-se nos que a ouvem. Porintermdio das palavras, o esprito deixa-se afetar por um sentimento especial, relacionadocom sucessos e insucessos de pessoas e acontecimentos que lhe so alheios. (...) Naverdade, discursos harmoniosos (...) provocam uma sensao de bem-estar, dissipando atristeza. A fora da palavra mgica, convivendo com a opinio do esprito, fascina-o etransforma-o por encantamento. (...) que o discurso persuasivo da mente, persuade-a,fora-a tanto a acreditar no que foi dito quanto a consentir no que feito. (...) Relaoidntica possuem a fora do discurso em ordem disposio do esprito e a prescrio dosmedicamentos para a sade do corpo. Na verdade, assim como certos medicamentosexpulsam do corpo certos humores, suprimindo uns a doena e outros a vida, do mesmomodo, de entre os discursos, uns h que inquietam, outros que encantam, outros queatemorizam, outros que incutem coragem no auditrio, outros ainda que, mediante umafunesta persuaso, envenenam e enfeitiam o esprito ( 8-14, p. 44-5). Assim, compreendemos por que, nas palavras de Barilli, Grgias define a palavracomo um phrmakon, uma droga e Helena torna-se inocente, pois caiu sob a influncia dolgoj a cujo fascnio impossvel resistir (Barilli, 1985, p. 16). Mas de onde vem esse poder de persuaso do lgoj? Para entender a teoria deGrgias sobre a linguagem, temos que voltar um pouco atrs e explicar a concepo de lgojde Herclito. Para Herclito, h duas fontes para o conhecimento: a percepo sensvel e o lgoj.Os conhecimentos adquiridos pela percepo sensvel so duvidosos: Ms testemunhas paraos homens so os olhos e os ouvidos, se suas almas so brbaras (frag. 107). O lgoj, poroutro lado, a verdadeira fonte (critrio) de conhecimento. Mas com lgoj Herclito nose refere a algum tipo de razo individual de cada pessoa, mas sim a um lgoj universal, que18 19. ele chama de comum e divino. Tudo o que existe dotado de lgoj e apto aopensamento e, quando ns pensamos, literalmente aspiramos esse lgoj universal atravsdos rgos dos sentidos. Quando estamos dormindo, nossos rgos dos sentidos se fecham es mantemos um contato mnimo com o lgoj, atravs da respirao. Mas quando estamosacordados, ao contrrio, o contato ocorre atravs das aberturas dos rgos dos sentidos comopor uma janela. Desse modo, tudo fazemos e pensamos graas nossa participao dolgoj divino (Sexto Emprico, VII, 126ss). Mas o que significa lgoj nos fragmentos de Herclito? Kerferd (2003, p.143-144)lembra que o termo lgoj tem uma ampla abrangncia de significados:No caso da palavra lgoj, h trs reas principais de aplicao ouuso, todas relacionadas por uma unidade conceitual subjacente. So elas, emprimeiro lugar, a rea da linguagem e da formulao lingstica, portantofala, discurso, descrio, declarao, afirmao, prova (quando expressa empalavras) e assim por diante; em segundo lugar, a rea do pensamento e dosprocessos mentais, portanto reflexo, raciocnio, justificao, explicaoetc.; em terceiro lugar, a rea do mundo, aquilo sobre o que somos capazesde falar e pensar, portanto princpios estruturais, frmulas, leis naturais eassim por diante, desde que, em cada caso, sejam considerados realmentepresentes e exibidos no processo do mundo. Embora, ao longo da histria da filosofia grega, essas trs reas sejam paulatinamentediferenciadas e, em certos contextos determinados, a palavra lgoj passe a ser usada com umsignificado mais especfico, referindo-se a apenas uma dessas reas, mesmo nesses casos oseu uso envolve, sempre, em algum grau, uma referncia s duas outras reas, no sendopossvel separar os trs significados de maneira absoluta. O que vlido para autores como Plato e Aristteles, vale ainda mais para os pr-socrticos, inclusive Herclito. Portanto, lgoj, em Herclito, significa tanto o que dito, ocontedo de suas afirmaes, quanto o princpio que estrutura e d ordem e cognoscibilidadeao real. O lgoj de Herclito , na feliz expresso de Parain (1942, p.19), tanto a linguagem19 20. do mundo que emana e se comunica a ns materialmente quanto a linguagem humana. Esta o resultado do contato da nossa alma com o lgoj divino atravs da respirao, da mesmaforma que a viso da cor branca seria o resultado do choque de emanaes dos objetos com osnossos rgo dos sentidos. Se a linguagem o produto de uma emanao do lgoj do mundo, as palavras queusamos exprimem as coisas mesmas: elas dizem como e o que elas so. Desse fato vai-seconcluir que as palavras no podem nos comunicar nada que no seja o que , quer dizer,quando usamos a linguagem sempre dizemos a verdade (cf. Parain, 1942, p.22). Podemos concluir, portanto, que Grgias acreditava que o poder das palavras de afetare alterar o sentimento dos ouvintes vinha do fato de a linguagem ser uma emanao do mundoe, portanto, express-lo como ele em si? No. Embora Grgias e os sofistas em geralretenham algo da concepo pr-socrtica da emanao no caso da percepo sensvel dosobjetos exteriores 8 , eles criticavam a aplicao desta concepo como explicao da formaodo significado das palavras ou da origem da linguagem. Para eles, longe de expressardiretamente a essncia das coisas, a linguagem um sistema de signos arbitrrios econvencional. Em seu Tratado do No-Ser ou Da Natureza, Grgias defende as famosas teses de quenada h; se algo existisse, seria incompreensvel ao homem; e mesmo que algo existisse efosse compreensvel, no poderia ser comunicado aos outros. Dessas afirmaesexaminaremos aqui apenas a terceira, pois essa a que interessa diretamente ao nossotrabalho. A argumentao de Grgias, quanto incomunicabilidade do conhecimento, a8No Mnon (76a), Plato atribui a Grgias uma doutrina da emanao: Mnon: Scrates, o que dizes sobre acor? Scrates: Queres ento que te responda segundo Grgias, para melhor poderes acompanhar? (...) Nodizeis vs [Mnon e Grgias], tal como Empdocles, que certas emanaes se desprendem dos seres? E queexistem poros para onde e atravs dos quais as emanaes so conduzidas? E que umas emanaes se adaptam acertos poros, enquanto outras so mais estreitas ou mais largas? (...) Assim sendo, (...) a colorao umaemanao de coisas proporcional e perceptvel vista. (...) a partir desta resposta, poders explicar a voz, o odor,e muitas outras coisas parecidas. 20 21. seguinte:(84) No comunicamos o ser mas sim a palavra, que diferente das coisasvisveis. Tal como o que visvel no se pode tornar audvel e vice-versa, tambm oser, porque subsiste exteriormente, nunca se pode transformar na nossa palavra. (85)E, no sendo palavra, no se poder comunicar a outrem. (86) (...) Na verdade, disseele, ainda que a palavra tenha existncia prpria, ela , todavia, diferente dos demaisobjetos comexistncia prpria, e oscorpos visveis diferenciam-seconsideravelmente das palavras; na verdade, o objeto visvel apreendido por umrgo, enquanto a palavra o por outro. Logo, a palavra no indica a maioria dosobjeto reais, tal como nenhum deles revela a natureza dos outros (Sexto Emprico,Contra os Matemticos VII 84-86. In: Barbosa e Castro, 1993 p.34-6). As palavras nos so transmitidas pela viso, no caso dos sinais escritos, pela audio,no caso da fala, ou so produzidas no momento em que a sensao de algo ocorre: porexemplo, na sensao de um sabor, origina-se a palavra de acordo com essa sensao, ou apartir da sensao da cor nasce a palavra conforme a essa cor. Mas Grgias destaca que, em qualquer caso, as palavras no tm nenhumasemelhana fsica com o objeto ao qual ela se refere. Mas se assim, como uma palavra podenos fornecer qualquer tipo de informao sobre o objeto ao qual a aplicamos? Como sabemosque a palavra cavalo se refere ao objeto cavalo, se ela no tem a mnima semelhana comele? Como uma palavra pode nos revelar, atravs dos sentidos, a essncia de algo, o ser doobjeto, se essa essncia ou esse ser no so perceptveis por nenhum dos rgo dos sentidos?A concluso de Grgias que a palavra, sendo perceptvel, no pode comunicar o ser, que imperceptvel, nem informar sobre os objetos perceptveis, pois ela diferente deles. Da oseu niilismo quanto incomunicabilidade do conhecimento. No entanto, Grgias era um orador e fazia discursos a outras pessoas. Mas, nessecaso, ser que ele acreditava no estar comunicando nada em seus discursos (cf. Woodruff,1999, p.307-8)? Como conciliar a teoria (essencialmente negativa) da linguagemdesenvolvida no Tratado do No-Ser e a teoria dos poderes persuasivos do Elogio de Helena21 22. e com a prtica retrica de Grgias? Embora Kerferd, Woodruff e Guthrie acreditem queGrgias no teria respostas a essas questes e que, portanto, o seu pensamento seriainconsistente neste aspecto, acreditamos que ele poderia responder que justamente porque alinguagem no comunica o ser como ele em si mesmo que possvel usar as palavras parapersuadir e alterar as opinies das pessoas no sentido que quisermos. Mostramos, acima,que a origem da retrica se deu, nos meios jurdicos, nos casos em que no havia evidnciadireta disponvel sobre o que ocorreu. Grgias, a nosso ver, argumenta que, quando usamos alinguagem, estamos em um caso anlogo ao de um juiz que no tem acesso, de formaimediata e indubitvel, aos fatos ocorridos: dependemos sempre da mediao da linguagem,mas essa no um meio que transmita as informaes sobre a realidade de maneira exata.Portanto, se no temos acesso direto aos fatos ou realidade, s nos restam as palavras eestas tm, no entanto, o poder de alterar os sentimentos e as opinies dos que as ouvem. Como vimos, para Grgias o poder da retrica vem da fora mgica da palavra que,tal como um phrmakon, uma droga, capaz de afetar o esprito e persuadir a mente, fascin-la e transformar suas opinies como que por encantamento, a tal ponto que o retrico podefazer os outros crerem em iluses, coisas que no existem, ou convenc-los de que as coisasso diferentes do que so de acordo com as convices do orador. 9 Isto possvel, pois alinguagem, na concepo de Grgias, no tem um referente na realidade exterior quepossamos identificar por sua semelhana com as palavras que utilizamos para nos referirmosa ele. Palavras e coisas so diferentes e, portanto, no possvel estabelecer qualquer ligaoentre eles (ou, pelo menos, no qualquer ligao que no seja arbitrria). Grgias acreditava que o poder persuasivo da retrica era to amplo que sentia-seseguro para falar perfeitamente sobre qualquer assunto (cf. Mnon 70ab, ver Grgias 447c;) econvencer, no apenas pessoas comuns, mas inclusive os experts em sua prpria rea de9Ver Teeteto 166d-167d para posio similar de Protgoras.22 23. conhecimento: segundo ele, com a retrica pode-sepersuadir pela palavra os juzes no Tribunal, os senadores no Conselho, o povo na Assemblia, enfim, os participantes de qualquer espcie de reunio poltica. Com esse poder far teus escravos o mdico, o professor de ginstica, e at o grande financeiro chegar concluso de que arranjou o dinheiro no para ele, mas para ti, que sabes falar e que persuades a multido (Grgias, 452e).Tambm atribuda a Grgias a afirmao de que possvel defender e, a seguir,atacar com sucesso a mesma posio: Grgias fez isso mesmo ao escrever o elogio e acondenao de cada assunto proposto, pois ele julgava ser da competncia especfica doorador a capacidade de enaltecer uma causa, louvando-a e, seguidamente, de a destruir,atribuindo-lhe defeitos (Plato, Fedro 267a).Porm, como o filsofo que fez da tese que para cada assunto possvel defender tantoa sua afirmao quanto a sua negao o centro de sua doutrina foi Protgoras, passaremos aexaminar as teses deste filsofo.1.3 ProtgorasA retrica siciliana foi trazida para Atenas por Protgoras, que morou na Siclia ondedeve ter tido contato com Crax, Tsias e os pitagricos (cf. Plebe, 1978, p. 9). Protgoras,assim como os sicilianos, se preocupava com a correo da linguagem tanto ao nvel dodiscurso (procura do lo/goj o0rqo/tatoj, o discurso mais correto) quanto ao nvel da palavra(orthopeia: procura das palavras mais convenientes expresso e oportunidade (cf. Fedro267e). 10Protgoras teria escrito uma obra intitulada Antilogias, na qual ensinaria uma tcnicada contradio (tchne antilogik) que se tornar o fundamento e um dos gneros mais10Protgoras teria dividido o discurso em 4, 6 ou 7 partes e procurava modelar o tamanho deles, tornando-oslongos (prolixos) ou curtos (concisos) conforme a ocasio, alm de ser o primeiro a classificar os substantivosem trs gneros (masculino, feminino e neutro) e a distinguir os tempos verbais (Plebe, 1978, p. 9). Ele[Protgoras] ficou conhecido na Antigidade como o pensador que elevou a gramtica categoria de cincia,defendendo-a de quem a atacava como um conhecimento sem importncia (Gutierrez, p. 28).23 24. importantes da retrica sofista. Essa obra, hoje perdida, mostraria como debater ambos oslados de uma questo com igual sucesso (cf. Kerferd, 2003, p. 145), e a afirmao que tornouProtgoras clebre foi a de que para qualquer assunto se poderiam defender dois discursosopostos: Diz Protgoras que sobre qualquer tema se podem manter com igual valor duasteses contrrias (Sneca, Epistola 88, 43); Em torno de cada questo existem dois discursosopostos reciprocamente (Digenes Larcio, IX, 51). Ou seja: qualquer afirmao de que X F pode ser contrabalanada pela afirmao oposta: X no F. Mas com essas afirmaes Protgoras no quer simplesmente chamar a ateno para ofato cotidiano de que, para cada argumento, sempre possvel encontrar um contra-argumento, mas defender a tese mais forte segundo a qual, para qualquer assunto, tanto aargumentao quanto a contra-argumentao so eqipolentes, quer dizer, so ambasigualmente vlidas. Isto , para Protgoras, tanto uma tese quanto a tese que a contradiz so,ambas, verdadeiras. Podemos encontrar o fundamento para essa afirmao em outro famoso dito deProtgoras: segundo ele, o homem a medida de todas as coisas, das coisas que soenquanto so, e das coisas que no so, enquanto no so (Plato, Teeteto 152a, ver tambmCrtilo 385e, passagem que ser discutida no captulo 2). Isto significa que as coisas so paracada indivduo tais como elas aparecem para ele: se o vento parece frio para X e quente paraY, ento o vento frio para X e quente para Y. Protgoras afirma que as percepes de cadapessoa so, para essa pessoa, infalveis. Cada percepo individual, em cada pessoa e em cadaocasio particular, incorrigvel, isto , no pode ser corrigida pela comparao com apercepo de outra pessoa, e nem mesmo com uma comparao com outra percepo minhafeita poucos instantes atrs. Se algo me parece doce, ento a minha percepo e a minhaafirmao que isto doce no pode ser refutada por outra pessoa que perceba a mesma coisa24 25. como amarga (Kerferd, 2003, p.151). Toda a percepo verdadeira: no h percepesfalsas. H duas maneiras diferentes de fundamentar essa tese de Protgoras: 1) As qualidades que percebemos so apenas subjetivas e s existem quandopercebidas por algum. A frieza s existe quando tenho a sensao de frio. O vento em si no nem frio nem quente. No Teeteto (157a-b), Plato atribui a Protgoras a seguinte teoria sobre como apercepo sensvel ocorre: todos os objetos que existem esto continuamente produzindoemanaes em seu entorno. Algumas dessas emanaes so passivas (tm apenas o poder dnamis - de receber a ao), enquanto outras so ativas, elas causam uma ao. Os objetosemitem emanaes ativas, ao passo que os rgos dos sentidos so passivos. A percepoocorreria da seguinte forma: nossos olhos, por exemplo, ao encontrar-se com a emanaogerada por um objeto, sofre uma alterao, e essa alterao que a sensao da viso.Portanto, a percepo resultante da relao mtua do rgo sensvel e do objetopercebido; o rgo sensorial se torna sensvel ao ser afetado pela emanao que o atingeprovinda de um objeto e, simultaneamente, o objeto se torna perceptvel pela alterao quecausa no rgo sensorial. Plato destaca que, nessa teoria da percepo, todos os objetosenvolvidos, as coisas percebidas e os rgos dos sentidos devem estar em um constante estadode movimento, 11 pois apenas neste caso os rgos sensoriais poderiam ser afetados pelasemanaes dos objetos e causar a sensao respectiva, e os objetos poderiam emitir asemanaes que sero percebidas. Por isso, na interpretao de Plato, a tese de Protgoras dohomem-medida estaria associada a uma teoria da emanao e doutrina do fluxo perptuode todas as coisas, ambas teses atribudas a Herclito.11 Movimento significa tanto translao especial quanto alterao, seja quantitativa, seja qualitativa.25 26. 2) O vento , ao mesmo tempo, frio e quente. Os opostos coexistem no mesmo objeto.Uma pessoa o percebe frio, outra quente (cf. Kerferd 2003, p. 149). Nesse caso, o fundamentometafsico da tese de Protgoras se encontraria na concepo ontolgica dos pitagricos,segundo a qual tudo o que existe formado por uma combinao de elementos opostos entresi. Conforme Aristteles,os pitagricos estabeleceram a existncia de dez princpios que dispem em duas colunas de termos opostos limite e ilimitado; impar e par; unidade e pluralidade; direito e esquerdo; macho e fmea; repouso e movimento; reto e curvo; luz e escurido; bom e mau; quadrado e oblongo (...) Diz Alcmeon que a maioria das coisas humanas andam aos pares, sem se referir, no entanto, a oposies definidas, mas a quaisquer oposies que o acaso nos possa deparar, como preto e branco, doce e amargo, bom e mau, grande e pequeno (Metafsica A 5, 985 b). uma combinao de opostos que explica a diferena de constituio que existe entreas pessoas e, conseqentemente, o fato de algumas sentirem certas sensaes, como a de frio,e outras sentirem a sensao oposta, de calor. Se, em cada coisa, h algo de frio e quente, beloe feio, e assim por diante, sendo que apenas a proporo maior ou menor presente, seja noobjeto, seja em quem o percebe, o que determina se ele ser percebido como belo ou feio, ecomo nunca ocorre uma ausncia completa do termo oposto, ento possvel explicar por queduas pessoas tm sensaes diferentes em relao a um mesmo objeto. Mas, em ambas as interpretaes, chega-se ao mesmo resultado: a realidade composta por elementos opostos, porque ou se considera que esses elementos fazem parte dasua prpria constituio ontolgica, ou porque a percebemos assim, pois esses elementos soconcebidos como estando em fluxo constante. Como as afirmaes de uma pessoa se baseiam nas suas sensaes, essas afirmaestambm so consideradas verdadeiras e, no caso em que uma pessoa afirma que o vento frio,enquanto que outra afirma que ele quente, ambas as afirmaes so consideradasverdadeiras para Protgoras. No dilogo Teeteto, Protgoras assim resume a sua posio:26 27. Insisto em que a Verdade tal como a escrevi, a saber: cada um de ns a medida doque e do que no , e que um dado indivduo difere de outro ao infinito, precisamentenisso de serem e aparecerem de certa forma as coisas para determinada pessoa, e de formadiferente para outra. (...) Para o doente, o alimento e parece amargoso, enquanto para oindivduo so parece ser e precisamente o contrrio disso. No devemos (...) sustentar queo doente ignorante por pensar dessa maneira ou que sbio o indivduo com sade porser de opinio contrria. (...) O que afirmo que, se um indivduo de m constituio dealma tem opinies de acordo com essa disposio, com a mudana apropriada passar a teropinies diferentes, opinies essas que os inexperientes denominam verdadeiras. (...) Omdico consegue essa modificao por meio de drogas, o sofista com discursos. (...) justamente como procedem os oradores sbios e prudentes, fazendo parecer justas scidades as coisas boas em substituio s ms. De fato, tudo o que parece belo e justo paracada cidade, continua sendo para ela isso mesmo enquanto assim pensar; porm o sbio[nesse caso, o sofista] faz ser e parecer benfico o que at ento lhes era pernicioso(Teeteto 166d-167d) . Portanto, tanto Protgoras quanto Grgias parecem fundamentar as suas teorias sobreo poder da palavra em uma tese baseada em algum tipo de doutrina da emanao, cujorepresentante mais destacado Herclito. Porm, interessante notar que ambos chegam smesmas concluses, baseados no mesmo tipo de teoria, mas por caminhos diferentes. Grgiasconclui que, mesmo sendo o lgoj uma emanao da realidade, ele diferente do (isto , notem semelhana fsica com o) objeto a que se refere e, por isso, a linguagem no pode serusada para falar das coisas como elas so. Mas, justamente por esse fato, as palavras podemser usadas como meio para alterar as opinies das pessoas: no possvel comparar o que dito com os fatos objetivos aos quais as palavras se refeririam, mas apenas us-las para afetaras emoes dos ouvintes. Protgoras, como mostra a citao do Teeteto acima, tambmdefende o poder da retrica em convencer as pessoas sobre qualquer assunto e alterar asopinies delas apenas usando o discurso. Isso porque as nossas opinies so baseadas emnossas percepes que, por sua vez, so os efeitos resultantes das emanaes dos objetossobre nossos rgos sensoriais; e, seja porque esses objetos tm propriedades opostas, sejaporque os percebemos assim, j que eles esto em constante alterao, o fato que a qualquer 27 28. opinio possvel contrapor uma opinio oposta e todas as opinies so verdadeiras, noexistem opinies falsas. Portanto, se algum acredita na tese A, possvel alterar a suaopinio e fazer essa pessoa passar a acreditar em no-A. Outros filsofos do movimento sofista tambm defendiam a tese de que no existemopinies falsas, mas partiam da tese de um filsofo que geralmente considerado comopertencente ao extremo oposto do espectro filosfico, e pelo qual Plato nutre o maiorrespeito: Parmnides. Vejamos as teses desse filsofo e como os sofistas as usavam.1.4 O poema de Parmnides Em seu poema Parmnides afirma s existirem dois caminhos possveis (ouconcebveis) de investigao. O primeiro, que o filsofo afirma ser a via da verdade, consisteem afirmar que , e no possvel que no seja ( fr. 2, 3); o segundo caminho afirma que no , e necessrio que no seja ( fr. 2, 5). Esses dois caminhos so os nicospossveis mas tambm so mutuamente excludentes: logo, preciso escolher um dos dois. Parmnides diz que o segundo caminho deve ser evitado, pois uma viaimperscrutvel (fr. 2, 6) ou totalmente impensvel. 12 A justificativa para a exclusodesse caminho que no se pode conhecer nem expressar em palavra aquilo que no (fr. 2,7-8). Essa idia reafirmada no fragmento 8, onde Parmnides afirma que o No-Ser no dizvel nem pensvel, visto que no (v. 7-8 ) e impensvel e inexprimvel (v. 16). Excluda a via do No-Ser, resta-nos um nico caminho: o do Ser. O fragmento 6afirma que necessrio dizer e pensar que s o ser , e no fragmento 8, 34 dito que omesmo pensar e ser. Ou seja, s o que pode ser pensado, s h pensamento, se houveralgo para ser o contedo desse pensamento, e algo s pode ser contedo para o pensamento,12 Traduo de Kirk e Raven (1990), p. 275.28 29. se cumprir um requisito mnimo: existir. A via do Ser simplesmente a via oposta via doNo-Ser; como essa ltima foi excluda por causa da sua incognoscibilidade, a via do Ser assumida como a nica hiptese vivel, por ser a via que restou. A afirmao de que opensamento sempre pensamento sobre o Ser no recebe nenhuma justificativa no poema.A via do Ser s se justifica pela excluso da possibilidade de o No-Ser ser objeto do discursoou do pensamento.Segundo Owen, Parmnides, como Descartes, quer encontrar uma certeza que nopossa ser negada sem que se caia em contradio ou sem cuja admisso seria impossvelpensar, falar, conhecer, etc. Que e impossvel que no seja seria tal verdade tautolgica.Alm dessas duas possibilidades, Parmnides ainda menciona uma 3: ela consistiriaem misturar ou combinar Ser e No-Ser ou dizer que ambos so idnticos:Em seguida, afasta-te / da outra via: nela que erram os mortais /desprovidos de saber e com dupla cabea; / Com efeito, em seu corao, ahesitao pilota / um esprito oscilante; eles se deixam levar / surdos, cegos etolos, turba inepta, para quem / ser e No-Ser so considerados ora o mesmo / eora o no-mesmo (fr. 6, v.8-9).Se no possvel falar ou pensar o No-Ser, pelo mesmo motivo no possvelcombinar Ser e No-Ser, e essa possibilidade tambm descartada.Mas se as afirmaes de Parmnides so claras e simples, o seu significado tem sidomotivo de acalorado debate desde os tempos antigos. Contemporaneamente, a tentativa deentender o poema de Parmnides tem se concentrado no estudo do significado do verbo ser.Isso porque o verbo ser tem, pelos menos, quatro usos 13 :1. Uso predicativo: A B. Neste uso acrescenta algo (uma propriedade, umaqualidade, um atributo, etc.) a um sujeito: a frase Scrates sbio significa Scrates tem apropriedade de ser sbio.13Cf. Jos Trindade Santos (2004, p. 39). Tambm Barnes (1992, p. 195-6); Marques (1990, p. 58); Denyer(1991, p. 47).29 30. 2. Uso existencial: A existe, afirma a existncia de algo. Esta afirmao pode serexplcita, como em Deus existe, ou implcita: Scrates sbio significa o mesmo queexiste algum (Scrates) que sbio (Tugendhat, 1997, p. 144) 3. Uso identitativo: A B, ou seja, afirma que A idntico, igual a B, ou que A e Bso, na verdade, uma mesma entidade. Note-se que a forma gramatical desse caso idnticaao caso do uso predicativo. 4. Uso veritativo: A verdade, verdadeiro, o caso que A. Em termos sintticos, o verbo ser pode apresentar-se sozinho em uma frase (ochamado uso absoluto), e, nesse caso, ele tem uma funo existencial, ou apresentar-se nafuno de cpula (o uso predicativo). Como, no poema de Parmnides, o verbo ser aparecesozinho, em uso absoluto, a interpretao mais corrente do poema de Parmnides aexistencial (Denyer, 1991, p. 21; Guthrie, 1988, II, p. 58 ; Barnes, 1992, p. 196). Kirk & Raven (1990, p. 276), porm, chamam a ateno para o fato de queParmnides teria confundido os sentidos existencial e predicativo de esti. Segundo eles, Parmnides est a atacar aqueles que acreditam, como sempre tinham acreditado todos, que possvel fazer uma assero negativa com significado. Mas, se lhe permitido atac-los, devido apenas sua prpria confuso entre uma assero negativa e um juzo existencial negativo. Charles Kahn, em um estudo clssico, defende que o uso mais fundamental de ser,em grego, o uso veritativo, do qual os usos existencial e predicativo seriam derivados (cf.Kahn, 1997, p. 202). Usa-se ser. no apenas para falar algo, mas tambm para afirm-lo,isto , para dizer que a situao predicada o caso, realmente assim, verdade. A distino semntica entre o predicativo e o de existncia no corresponde exatamente distino sinttica entre as construes predicativa e absoluta de einai. O valor mais fundamental de einai usado sozinho (sem predicado), no existe, mas o caso, verdade que (Kahn, 1997, p. 48). Portanto, o uso veritativo do verbo ser, em grego, significa que (a) alguma coisaexiste; (b) algo predicado disso e (c) que (a) e (b) so, ambos, verdadeiros: Scrates 30 31. sbio pode ser lido como existe algum, Scrates, que tem a propriedade de ser sbio e o caso que Scrates sbio (Kahn, 1997, p. 202).G. Vlastos observa que, em grego, ser (n), realidade (ousa), real (ntos) sotermos derivados da mesma raiz etimolgica: est. Tanto no ingls quanto no portugus, osconceito de ser e de realidade so palavras de razes etimolgicas diferentes, enquantoque, no grego, real e realidade so simplesmente as formas adjetivas e nominais de ser e (cf. Vlastos 1981, p. 59). No havendo uma distino clara entre ser e real, certasexpresses so naturalmente ambguas e de difcil traduo para as lnguas nas quais, como o caso do portugus, esses mesmos conceitos so expressos por dois termos distintos, nohavendo uma nica palavra ou expresso que abranja a ambos. Por exemplo, a expressolgein t nta, pode ser traduzida tanto por relatar os fatos quanto por dizer a verdade(Kahn 1997, p. 12). 14Essas observaes nos permitem compreender por que, na lngua grega, a expressodizer o que funciona como uma expresso idiomtica usada para expressar a convico deque o relato feito diz realmente as coisas tais como so ou os fatos tais como ocorreram, ouseja; dizer que no (apenas) dizer que algo existe, que h algo, mas significa falar averdade, dizer que algo o caso, relatar o que assim de fato. 15Tanto assim que, em Plato e Aristteles essa expresso explicitamenteapresentada como uma definio de verdade (aetheia), e a expresso contrria (dizer o queno ) como definio de falsidade.Plato: Quem diz o que diz a verdade (Eutidemo 382e); A proposio que serefere s coisas como elas so verdadeira, vindo a ser falsa, quando indica o que elas noso (Crtilo 285b); Sofista 263b14 Outros autores que tambm defendem a tese que impossvel separar os diversos usos de esti so Mourelatose Furth.15 Ver tambm a etimologia de aletheia (relatar os fatos tais como so) em Mourelatos, 1970, pp.64-7 e Combrie,1988, II, p. 58-9.31 32. Aristteles: Dizer que o que no ou que o que no , falso; dizer, ao contrrio,que o que ou que o que no no , verdadeiro (Metafsica IV, 7, 1011b 26). Conseqentemente, a expresso dizer o que no no significa, simplesmente, dizerque algo no existe, mas tambm a expresso corrente para dizer algo sem sentido,pronunciar o que no corresponde realidade (Guthrie 1988, II, p.20). Jos Trindade Santos resume a discusso sobre o verbo ser, no poema deParmnides, lembrando que, diferentemente do que ocorre nas lnguas atuais, inclusive noportugus, o verbo grego condensa os quatro sentidos em uma nica palavra, sem que sepossa separ-los claramente: Parmnides usa , ser e o ser (to einai, t n) com todos esses sentidos, (...), expressando a unidade lgica, epistemolgica e ontolgica de uma entidade englobante a que chama Ser. Nela se acha expressa uma nica realidade/verdade, correspondente ao nico pensamento possvel sobre a nica coisa pensvel e dizvel: o ser (Santos, 2004, p. 39). Essa fuso dos quatro sentidos e, especialmente, a impossibilidade de se separar ouso existencial dos outros trs, originou os absurdos mais espetaculares (Santos, 2004, p.40): as confuses e falcias que os sofistas exploraram, como as afirmaes de que impossvel dizer algo falso, pois o erro no existe e, por isso, impossvel contradizeralgum, vieram a ser as principais doutrinas do movimento sofista. 1) O problema da falsidade. Como vimos, por definio, falar algo falso dizer, sobre algo, o que no . Mas,usando o argumento de Parmnides sobre a impossibilidade de se falar ou pensar o que no ,os sofistas concluam que falar algo falso seria impossvel j que dizer o que no equivale afalar sobre o No-Ser; o No-Ser nada, e falar sobre nada seria nada dizer, ficar em silncio. Por outro lado, em todo ato de fala dizemos algo, algo que ; logo, nunca dizemos oque no , nunca falamos falso, sempre dizemos a verdade. Toda e qualquer proposio verdadeira. Quem fala, dizem os sofistas, diz a verdade ou no diz nada. 32 33. 2) No possvel contradizer. Antstenes afirmava que uma correta definio de um termo deveria ser capaz deexpressar o que uma coisa : um lgos aquilo que manifesta o que uma coisa era ou e,portanto, conclui-se que cada coisa s tem um lgos (Digenes Larcio, 1988, IV, 6.3).Para haver contradio, necessrio que duas pessoas digam coisas diferentes sobre ummesmo objeto. Mas como, segundo Antstenes, cada objeto tem um nico lgos, h duaspossibilidades: a) Estas pessoas no estaro falando sobre o mesmo objeto, mas sobre objetosdiferentes, um para cada lgos, e nesse caso no h contradio. b) Uma delas est aplicando um lgos ao que no , por exemplo, dizendo queScrates esta em p, quando Scrates est sentado. Ao falar de Scrates em p, ela est sereferindo a um objeto diferente do da pessoa que fala sobre Scrates sentado, mas tambmest falando sobre algo que no , pois Scrates em p no existe. Mas Parmnides mostrouser impossvel falar sobre o que no e, portanto, impossvel falar falsamente, como vimosacima (Aristteles, Metafsica, 1024b32-34). A concluso que nunca h contradio pois, ou uma das pessoas fala sobre o que no, mas isso impossvel, ou elas dizem coisas diferentes, e, nesse caso, falam sobre objetosdiferentes. 3) A impossibilidade da predicao. A esses raciocnios os megricos acrescentavam a observao de que uma simplesafirmao como Scrates filsofo seria impossvel, pois Scrates diferente defilsofo, e, nesse caso, estaramos identificando duas coisas diferentes, Scrates efilsofo, o que seria uma contradio. Os megricos afirmavam que apenas juzos deidentidade (Scrates Scrates, homem homem, bom bom, etc.), so permitidos.33 34. Em resumo, Plato defronta-se com duas concepes de linguagem diametralmenteopostas: - a palavra parmendea: impotente, limitada a afirmar o Ser, incapaz de predicar ouexplicar a contradio e a falsidade. No h diferena entre discurso e Ser; a palavra, aonomear algo, j est dizendo a coisa mesma: palavra e realidade so uma coisa s; - sofistas e retricos: onipotente, capaz de falar sobre tudo e persuadir a todos, semdiferenciar entre verdade e falsidade; sem nenhuma conexo com o Ser. O interessante quesofistas e megricos chegaram a essa concepo justamente a partir da verdade tautolgicaque o Ser e o No-Ser no e da deduo logicamente impecvel feita por Parmnides queno possvel falar ou pensar o No-Ser. Desta tese, sofistas e megricos concluam que: - impossvel falar falso. - impossvel contradizer. - Todas as frases negativas so falsas - Apenas juzos de identidade so possveis (impossibilidade da predicao). - Tudo o que falamos verdadeiro 1.5 A teoria referencial da linguagem (TRL) A nosso ver, o que torna mais compreensvel as afirmaes do poema de Parmnides,bem como os paradoxos que os sofistas derivaram dele (e que um ponto pouco destacado namultido de comentrios e interpretaes sobre esse assunto), o fato de que a proibio de sefalar sobre o No-Ser ganha sentido dentro do marco de uma teoria referencial da significaolingstica (TRL).34 35. Na TRL a resposta pergunta sobre qual o significado de determinada palavra,expresso ou sentena, que esse significado a coisa ou objeto ao qual a palavra se refere.Toda e qualquer palavra ou expresso significativa por se referir a algo. Uma palavra tem significado porque o nome de alguma coisa: a palavra lpis, porexemplo, significa ( um sinal que est no lugar e aponta para, indica) o objeto lpis na minhafrente. Como diz Alston (1972, p.28-9), tentador supor que essa explicao funciona paratodas as expresses com significado da linguagem, no apenas para os nomes. A TRL sebaseia no paradigma da nomeao: damos nomes s coisas e usamos esses mesmos nomespara nos referirmos s coisas, da mesma maneira que damos nome a uma criana recm-nascida. O nome dado identifica a criana e a diferencia das outras, e pode ser usado para nosreferirmos a ela, mesmo quando no est presente. Na TRL, o significado de uma palavra, portanto, dado pelo objeto ao qual ela serefere. As palavras so como que etiquetas associadas, por conveno, aos objetos; so signosque denotam, nomeiam, designam, representam, referem objetos no mundo. Apreendemos o significado das palavras por osteno: se algum quer saber o quesignifica a palavra "lpis", basta lhe mostrar o objeto correspondente e uma frase complexacomo "o gato sentado no mato" tem significado porque cada um de seus elementos apontapara seus respectivos objetos ou estados de coisas no mundo. O significado de uma frasecomplexa seria, portanto, dado pela soma dos significados de seus elementos (cf. Lycan,2001, p. 4-5). A TRL tem uma plausibilidade intuitiva muito forte, j que ela se refere a um dos usosmais bsicos e mais importantes da linguagem, o de falar sobre as coisas do mundo externo: alinguagem fala de alguma coisa, e a nossa compreenso e habilidade lingstica dada pelanossa capacidade de relacionar as palavras que usamos com os objetos apropriados no mundo.35 36. Apesar de sua simplicidade e de seu apelo a algumas intuies bsicas sobre alinguagem, a TRL apresenta alguns graves problemas. Aqui queremos destacar trs aspectos,implicados pela TRL, que so cruciais para a nossa discusso. (1) S sabemos o significado de uma palavra, se soubermos a que objeto essa palavrase refere ou indica. Quando queremos explicar o significado de uma palavra, temos queidentificar a coisa ou objeto ao qual a palavra se refere ou se relaciona (cf. Alston, 1972, p.42). Usar corretamente uma palavra us-la para se referir ao objeto que ela significa, e no anenhum outro. A TRL, portanto, implica uma teoria da verdade como correspondncia. (2) Um palavra ou expresso se refere a algo que diferente dela prpria (cf. Alston,1972, p. 29). A TRL implica uma separao entre mundo e linguagem, pois nela as palavrasfazem as vezes dos objetos que nomeiam, mas elas no tm nenhuma semelhana, seja fsica,seja de outro tipo, com os objetos a que se referem. (3) S podemos entender o significado de uma expresso, se houver (existir) algo aque ela se refere. Mas aqui surge o grande problema com a TRL: se o significado de uma palavra dadopelo objeto a que ela se refere, o que ocorre nos casos em que uma palavra no tem umreferente no mundo ou nos casos em que uma expresso nega a existncia de algo? O nome, para ser um nome, precisa ser o nome de alguma coisa. Acoisa que nomeada considerada o significado do nome em questo. Da sesegue que um nome que no um nome de alguma coisa no um nome nosentido real do termo, e no tem, necessariamente, nenhum sentido (Kerferd,2003: p.123-4). Juzos existenciais negativos e afirmaes sobre entidades que no existem so umproblema em toda a histria da filosofia, e mesmo autores contemporneos como Frege,Wittgenstein, Quine e, especialmente, Russell, debateram-se com ele. Russell, em seu famoso artigo Sobre a denotao (1905), mostrou que a TRL falhamesmo nos casos mais simples de predicao. O principal problema ocorre quando tratamos36 37. de palavras ou expresses que se referem a objetos que no existem como, por exemplo, "oatual rei da Frana" ou Pgaso. Qual o significado dessas sentenas? Conforme a TRL, deveser o objeto que a expresso designa. Mas sabemos que esses objetos no existem, pois aFrana, atualmente, no tem rei, e cavalos com asas no existem. No entanto, apesar de osobjetos designados no existirem concretamente, as expresses tm significado, no sentido deque podemos entender o que elas querem dizer e us-las sem problema. Como pode umasentena como o atual rei da Frana sbio ser significante mesmo quando no h nada quecorresponda descrio que ela contm? (Strawson, 1989, p. 152). Esse problema fica mais explcito quando consideramos sentenas que negam aexistncia dos objetos aos que elas pretensamente se referem, como a frase "Pgaso noexiste". Segundo a TRL, essa frase s ter significado se Pgaso existir. No entanto, a prpriafrase nega essa possibilidade ao afirmar que Pgaso no existe! Um defensor da TRL deveconcluir que essas palavras e expresses no tm significado, so meros sons (rudos) semsentido. Mas esse no o caso, pois a frase Pgaso no existe tem significado: sabemos, porexemplo, que ela verdadeira. Pela TRL, se uma frase tem significado, ento o objeto ao qualela se refere deve existir. Mas, nesse caso, chega-se a duas concluses absurdas: 1) como todoobjeto de uma frase significativa deve existir, o atual rei da Frana e Pgaso devem existirrealmente, apenas pelo fato de termos pronunciado uma sentena com significado. Mas se oatual rei da Frana e Pgaso existem ento 2) ambas as frases so falsas. Ou seja: sabemos que a frase Pgaso no existe (1) verdadeira e (2) sobrePgaso. Mas, se aceitamos a TRL, ento (1) e (2) no podem ser sustentadossimultaneamente, pois, se ela verdadeira, ento Pgaso no existe, mas, nesse caso a fraseno tem referente e, portanto, no teria significado; por outro lado, se a frase sobre Pgaso, 37 38. ento ele deve existir de alguma maneira (o que levanta o problema do modo dessa existncia)e a frase falsa (cf. Hottois, 2004, p. 186). Assim, esperamos ter mostrado que os paradoxos dos sofistas em relao a linguagemsurgiram, no apenas por causa da confuso entre os usos existencial, predicativo eidentitativo do verbo ser, em grego, mas tambm porque os filsofos estudados acimatinham, tcita ou explicitamente, uma concepo de linguagem segundo a qual o significadode uma palavra consiste naquilo a que ela se refere, isto , o significado de um termo determinado pelo objeto exterior que o termo nomeia. Essa concepo impede que se fale deforma significativa sobre o No-Ser e considera sem sentido qualquer afirmao em que senegue algo. Dizer algo falso entendido como dizer algo sem significado. Veremos que, em sua concepo de linguagem, Plato tentar manter um equilbrioentre duas teses opostas a fim de resolver os paradoxos de ambas: a tese segundo a qualpalavra e ser esto conectadas de tal modo que dizer algo dizer o ser, e a tese de que palavrae ser no tem nenhuma ligao, pois aquelas so apenas signos arbitrrio que usamos pararotular as coisas. A soluo de Plato consiste em tentar separar o ser e linguagem sem, noentanto, faz-los perder contato. No dilogo Crtilo Plato analisa e critica, como esperamos mostrar a seguir, sob arubrica de convencionalismo e naturalismo, as posies de Protgoras e de Grgias-Herclito,respectivamente. 38 39. Captulo IIO CrtiloFowler, na introduo da sua traduo do Crtilo, afirma que no se pode dizer que oCrtilo seja de grande importncia no desenvolvimento do sistema platnico, pois trata de umassunto especializado [a origem das palavras] um tanto parte da teoria geral da filosofia(apud Kerferd, 2003, p.130).Outros autores tambm defendem que o Crtilo ocupa uma posio secundria nocorpus da obra platnica, pois acreditam que Plato no se interessa pelos problemas dalinguagem a no ser como pretexto para mostrar que ela no teria nenhuma importncia parauma teoria gnosiolgica e ontolgica tal como buscada por Plato (Mridier, 1950, p. 30-33).A prpria concluso do Crtilo de que no possvel conhecer as coisas pelas palavras, masapenas pelas coisas mesmas, apenas reforaria a opinio corrente de que, para Plato, alinguagem ficaria reduzia a um mero instrumento para a expresso dos pensamentos, nosendo constitutiva da experincia humana do real (Oliveira, 1996, p.22), como aconsideram os filsofos contemporneos da tradio hermenutica e fenomenolgica, nem seencontrariam nela as condies de possibilidade do conhecimento, como para a tradioanaltica.39 40. Ns, no entanto, como explicamos na Introduo, defendemos que a Teoria das Idiasde Plato surgiu justamente como tentativa de resolver os problemas lingsticos: aimpossibilidade de dar significado aos nomes de objetos sensveis, se esses esto emconstante alterao. Nesse sentido, o Crtilo importante, pois nele encontramos uma anliseminuciosa de teorias da linguagem que so, na realidade, anlogas s defendidas porProtgoras e Grgias: o convencionalismo e o naturalismo. Para o convencionalismo, arelao entre as palavras e o que elas nomeiam (o objeto) um caso de conveno: se algumatribui um nome a alguma coisa, esse considerado o seu nome correto: as palavras so comoque etiquetas verbais que aplicamos aos objetos. O convencionalismo, com sua indiferena ontologia, anlogo posio de Protgoras, que estudamos no captulo anterior,e se baseiaem na teoria do fluxo de todas as coisas de Herclito, como veremos. J para o naturalismo,ao contrrio, as palavras exprimem a essncia dos objetos que nomeiam, ou seja: ao usarmosas palavras para nos referirmos a algo, j estamos dizendo a prpria coisa. Como veremos, onaturalismo se baseia na doutrina da emanao de Herclito e Grgias. Duas observaes importantes so necessrias, antes de comearmos a estudar oCrtilo: O Crtilo trata da correo dos nomes (nmatoV rjthta), tema sobre o qualvrios sofistas, como Prdico, Hpias e Protgoras, escreveram tratados (ver Kerferd, 2003, p.119), sendo, portanto, um tema de grande interesse na poca. importante destacar quecorreo dos nomes, como ficar claro ao longo do texto, significa perguntar pelosignificado dos nomes, isto , o Crtilo trata da questo da referncia (cf. Spellmann, 1993,197). Ele no procura responder questes sobre a origem da linguagem nem sobre osignificado de sentenas. Geralmente nos referimos a nome como nome prprio, o nome de alguma pessoa.Mas em grego o termo noma abrange, alm dos nomes prprios, tambm nomes comuns 40 41. (substantivos), verbos e adjetivos, ou seja: qualquer coisa que seja uma palavra (Barney,1997, p. 143 n. 1; Luce 1969, p. 222-3; Fine, 1977, p. 290-301; Robinson, 1955, p. 221). Embora, na discusso contempornea sobre filosofia da linguagem, alguns autoresdefendam a tese de que os nomes prprios no tm significado (Russell, Alston), para osgregos, os nomes, e especialmente os nomes prprios, tm um contedo descritivo, comoveremos mais adiante na anlise da seo das etimologias (cf. Fine, 1997, p. 289-90). O ato denomear ser o paradigma usado para explicar como as palavras recebem significado e osnomes prprios sero tratados como descries resumidas. Por exemplo, Hermgenes no apenas um conjunto de letras (ou sons) que Scrates usa para designar esse indivduo,personagem do dilogo, mas ele o interpreta como significando descendente do deusHermes. Como Hermes o deus da riqueza e da habilidade em falar, essas duascaractersticas so atribudas tambm ao seu portador, o personagem do dilogo. Portanto, o Crtilo uma investigao sobre a referncia, limitada ao escopo danomeao. 2.1 A tese convencionalista A tese convencionalista defendida por Hermgenes a posio segundo a qual acorreo dos nomes (o)rqo/thj o)no/matoj), isto , a relao entre as palavras e o objeto queelas nomeiam, estabelecida por uma conveno ou acordo (sunqh/kh kai o(mologia,384d1). Nenhum nome dado por natureza (fu/sei) a qualquer coisa, mas pela lei e pelocostume (no/m% kai eqei) dos que se habituaram (e)qisa/ntwn) a cham-la (kalou/ntwn) destamaneira (384d6-8). Hermgenes atribui a origem do significado das palavras ao hbito: algum,provavelmente no passado remoto, nomeou um objeto com determinada palavra. Essa prtica 41 42. foi, a seguir, imitada por outras pessoas e, com o passar do tempo, tornou-se um hbito, vindoa fixar-se, por fim, em costume ou lei. Portanto, a concluso que usamos a linguagem queusamos por mero seguimento da conveno e do costume social. Os nomes e as palavrasadquirem seus significados, atravs de um acordo social (tcito), o qual o produtounicamente do hbito, por parte dos usurios de linguagem, de se referir a determinadascoisas com as mesmas palavras de forma constante. Segundo Rachel Barney (1997, p.147-150), uma leitura cuidadosa do texto de 385dnos permite observar que, na exposio da sua tese, Hermgenes diferencia dois tipos de ao,uma das quais precede a outra. Primeiramente, h o ato de impor um nome a determinadoobjeto e, aps, segue-se a prtica de chamar o objeto por esse nome. 16 Barney lembra que o verbo que Hermgenes usa para designar a imposio dosnomes, tithnai, tambm o verbo normalmente usado com referncia ao ato de assinalar,conceder, dar a uma criana um nome escolha (LSJ), isto , ao ato de batizar. No batismo,os pais atribuem aos filhos um nome de sua escolha e, primeiramente, parentes e conhecidose, depois, o resto da sociedade, aceitam esse nome e o usam. No Crtilo, at 397d, osexemplos de palavras estudadas so nomes prprios, nomes de deuses, heris ou pessoas, e oprimeiro critrio de atribuio de nomes examinado o de nomear de acordo com a filiao.Mas, mesmo quando Scrates inclui em sua pesquisa outras classes de palavras, a nomeao sempre vista sob o paradigma do batismo, pois ela considerada um produto, seja daimposio originria dos nomes pelos deuses, seja do trabalho do nomotta, seja do trabalhodos antigos. O convencionalismo defendido por Hermgenes, portanto, seria umageneralizao da concepo de batismo (aplicvel aos nomes prprios) para todas as outrasespcies de palavras. Dessa forma, podemos distinguir dois aspectos no convencionalismo de Hermgenes:16Ackrill refere-se a esses dois momentos como a introduo de uma palavra na linguagem e o uso destapalavra, respectivamente (1997, p. 36).42 43. 1) Convencionalismo no uso dos nomes: usamos certas palavras e certos nomes,seguindo uma prtica coletiva de designar certos objetos com tais nomes. O hbito originriode uma ou de algumas pessoas de nomearem determinado objeto com determinada palavra seguido por outras pessoas e, com passar do tempo, fixa-se em um hbito constante. Osnomes e as palavras adquirem significado atravs do acordo social; esse acordo, por sua vez,nada mais do que um hbito coletivo de usar determinadas palavras para se referir sempre adeterminadas coisas. 2) O segundo aspecto do convencionalismo de Hermgenes o convencionalismo naatribuio dos nomes: a prtica coletiva de usar determinados nomes teria sua origem no atode um indivduo que, em algum momento, atribuiu tal nome a tal coisa. Essa imposio de umnome considerada como o ato individual ou privado (cf. 435a) de algum que atribui umnome a um objeto. Esse ato individual, por um lado, inicia a conveno coletiva segundo aqual tal nome o nome de tal objeto e, por outro, estabelece uma norma que justifica o seuuso subseqente. Ou seja: um nome usado corretamente apenas se for usado de acordo como que foi estipulado pela imposio inicial. Dessa forma, fica claro que a tese principal do convencionalismo de Hermgenes que, se no uso das palavras h regras que so definidas pela conveno (social), no ato inicial,originrio, de nomear um objeto, no h regras a serem seguidas. No existe nada quevincule de forma necessria e no-ambgua um nome a determinado objeto e apenas a ele (ouvice-versa). Toda denominao arbitrria, no segue nenhuma regra ou critrio, a no ser ocapricho de quem d um nome a alguma coisa. Assim, para Hermgenes, a palavra comouma espcie de rtulo ou etiqueta (verbal ou escrita) que simplesmente aplicamos adeterminado objeto, sendo que qualquer outro rtulo seria igualmente adequado para seindicar determinada coisa. 43 44. Para Hermgenes, poderamos at mesmo substituir, a qualquer momento, os nomesdos objetos por outros nomes: poderamos, por exemplo, dar o nome de cavalo ao queatualmente chamamos homem, e, caso sempre utilizarmos a palavra cavalo para nosreferirmos a homem, esse passar a ser o seu nome (385a7). Portanto, para Hermgenes, mero acidente que as palavras possuam o significado que tm no momento.Podemos ento desdobrar a tese convencionalista de Hermgenes da seguinte forma:1) Os nomes so usados por conveno, pela lei, pelo hbito ou pelo costume.2) Qualquer pessoa, a qualquer momento, pode dar o nome que quiser a qualquerobjeto.3) Podemos trocar os nomes j existentes dos objetos, a qualquer momento.4) Uma pessoa pode mudar o nome de uma coisa, e todas as outras pessoas podemcontinuar usando o nome antigo (e vice-versa).5) Um mesmo objeto pode ter vrios (potencialmente infinitos) nomes: uma pessoapode dar um nome a uma coisa, uma segunda pessoa pode dar outro nome essa mesmacoisa, uma terceira pessoa pode dar um terceiro nome a mesma coisa, e assim ad infinitum.6) O nome dado a um objeto o seu nome correto. O nome (qualquer que seja) peloqual chamamos uma coisa o seu nome correto. Seja qual for o nome que se d a uma coisa,esse o seu nome correto (384d3) .7) Logo, no h nomes mal-aplicados: todo nome verdadeiro.8) Conseqentemente, toda nomeao verdadeira. A crtica de Plato ao convencionalismo de Hermgenes ser dirigida, no tanto aoque o convencionalismo afirma, mas principalmente ao que ele implica. Como veremosadiante, Plato, ao criticar o naturalismo de Crtilo, admitir que a linguagem tem uma partede conveno. O que ele rejeitar uma das conseqncias do convencionalismo: a de quetodo e qualquer nome verdadeiro.44 45. Scrates imediatamente associa essa tese com a afirmao de Protgoras de que ohomem a medida de todas as coisas. Como vimos, para Protgoras as coisas so para aspessoas tais como elas as percebem: toda a sensao verdadeira. Como as nossas opinies sebaseiam nas sensaes, nica fonte de conhecimento, para Protgoras, tambm nossasafirmaes so verdadeiras, e impossvel falar falso e contradizer. Mas Scrates argumenta que, se todas as opinies so verdadeiras, ento todos oshomens seriam sbios, bons, teriam sucesso profissional e social, ou seja, seriam cidadosvirtuosos, no sentido grego do termo. Mas, como sabemos, esse no o caso, e tanto no ocaso que o prprio Protgoras se apresenta como algum que ensina as pessoas a adquirirem avirtude! Se a tese de Protgoras verdadeira, o seu ensino seria desnecessrio, pois todosteramos acesso verdade. 17 Portanto, o fato de que haja pessoas mais sbias ou razoveis do que outras usadocomo refutao da tese do homem-medida de Protgoras, j que ele mostra que as coisas noso tais como cada um as percebe particularmente. O fato de que uma opinio seja verdadeirapara algum no significa que ela seja realmente verdadeira. Para Scrates, evidente que ascoisas tm uma certa entidade estvel, que no relativamente a ns nem por ns, que no arrastada para cima e para baixo por ao da nossa fantasia, mas tem uma entidade que emsi mesma e relativamente a si mesma (ll kaj) /aut prV t#n /autvn osa), a qual por natureza (386de). Se as coisas nomeadas tm uma essncia fixa, possvel dizer-se a verdade ou mentir,isto , existem discursos falsos e discursos verdadeiros: o discurso (lgos), que se refere scoisas como elas so verdadeiro, enquanto que o discurso que indica o que elas no so falso (!Ar) on /o@toV V n t nta lg wV stin, lhjV: V d) n wV ok stin,qeudV) (385b).17 Este mesmo argumento contra Protgoras usado no Teeteto. 45 46. O discurso verdadeiro s o , se for verdadeiro nas partes; a menor parte do discurso o nome e, como os nomes so partes do discurso, eles tambm podem ser verdadeiros oufalsos (385bc). Scrates observa que nomear um ato, e em todo ato realizamos algo. O querealizamos com os nomes? Qual a ao especfica (dnamis) das palavras? Segundo Scrates, a linguagem tem uma dupla funo: - Uma funo de ensinar (didaskalikn), isto , comunicar algo sobre o mundo a outras pessoas. - Uma funo diacrtica de distinguir os seres (ka diakritikn tV osaV): assim como, quando cortamos algo, separamo-lo em duas partes distintas, nomear distinguir, e assim como existem critrios objetivos para conseguirmos, com sucesso, cortar, queimar, agir sobre algo, assim tambm deve haver critrios objetivos para o uso dos nomes (388cd). Portanto, a funo da linguagem comunicar a verdade (Ackrill, 1997, p.39-40). Osnomes devem referir-se a coisas que realmente existem, e a caractersticas, nessas coisas, querealmente sejam tais como descritas. Nomear no atribuir uma palavra, concebida comouma mera seqncia de sons, a um objeto, mas descrever (corretamente) a essncia de umacoisa. Assim, o nome no apenas um rtulo arbitrrio aplicado a um objeto, mas tem afuno diacrtica de descrever corretamente a sua essncia, distinguindo-o das outras coisas.Conseqentemente, o nome o instrumento privilegiado para ensinar, isto , comunicar oconhecimento verdadeiro. A funo do nome expressar corretamente essa essncia fixa queidentifica a coisa, e apenas a ela, sobre a qual estamos falando (caso em que temos umdiscurso verdadeiro - dizemos o que -, caso contrrio, temos um discurso falso) (386ad). 46 47. O nomoteta (nomojthn), isto , aquele que atribui os nomes s coisas deve olhar,com a ajuda do dialtico, para o que o nome em si (keno stin noma) e compor comletras e slabas o nome que naturalmente apropriado para cada coisa. Scrates destaca queno importam quais letras/slabas so usadas, desde que o nome reproduza a essncia da coisaem questo. Isso significa que a idia do nome de uma coisa diferente da sua materializaoem sons ou sinais escritos: a idia-nome de mesa diferente da palavra (seja escrita, sejafalada), mesa ou table(389d-390e). Ora, isso significa que, mesmo que possamos mudar ortulo que aplicamos a uma coisa, algo permanece o mesmo. Um cavalo no deixa de sercavalo s porque o denominamos homem ou mesa. Algo (o que nomeamos) permanece omesmo, independentemente da palavra ou combinao de letras que tenhamos escolhido paraindic-lo. Sendo assim, para que um ato de nomeao tenha sentido e seja correto, ele deverespeitar a essncia do objeto nomeado, o que equivale a dizer que deve ser aplicado,seguindo certos critrios. Qual(is) o(s) critrio(s) para o sucesso na nomeao/uso dalinguagem? Como saber se estamos usando um nome corretamente? Na terminologia dePlato: o que a correo dos nomes?2.2 As etimologias Para tentar responder a essas perguntas, Scrates usa o mtodo etimolgico. Aetimologia grega procurava determinar o sentido verdadeiro de um vocbulo, isto , seutimon. Supe-se que a palavra que usamos atualmente sofreu, com o passar do tempo, vriasalteraes que encobrem o seu verdadeiro sentido sob uma forma diferente. Explicar osignificado de uma palavra seria descobrir, revelar o sentido fundamental oculto sob suaforma atual.47 48. Os etimologistas gregos contemporneos de Scrates mostraram que, por meio deoperaes de adio, supresso, deslocamento ou combinao de letras, pode-se alterar aforma de qualquer palavra, com o objetivo de encontrar a forma (geralmente a mais antiga)que expressaria o verdadeiro significado do que est sendo dito. Para saber o sentidoverdadeiro de um nome, necessrio remontar ao nome primitivo do qual ele derivado,pois, sem que se conhea o significado dos nomes primitivos, no se pode conhecer o sentidodos nomes derivados. A etimologia, portanto, procura explicar o significado de uma palavrapor meio de outra(s) palavra(s) (Carrillo, 1959, p. 24-7).(a) Anlise de nomes prpriosScrates comea a sua pesquisa, a partir de um ponto que problemtico para onaturalismo: o fenmeno da sinonmia, o fato de que duas palavras diferentes se refiram mesma coisa.A sua investigao tem como ponto de partida Homero, para quem algumas coisas tmdois nomes diferentes, um nome dado pelos homens e um nome dado pelos deuses. 18 Porexemplo, determinado rio chamado de Xanto pelos deuses e de Escamandro peloshomens; certa espcie de pssaro, chamada pelos homens de kuymindis, recebe dos deuses onome de khalkis. Nesses casos, o nome a ser considerado correto seria, naturalmente, onome dado pelos deuses (391e-392b).Mas tambm h casos em que os homens atribuem nomes diferentes s mesmas coisas.Por exemplo, os gregos chamam o filho de Heitor de Astanax, enquanto que os troianos ochamavam de Escamndrio. Neste caso, Scrates afirma que o nome a ser consideradocorreto deve ser o que foi dado pelas pessoas que consideramos mais sbias e razoveis(fronimwtrouV) no caso, os gregos (392bd).18No possvel saber, pelo contexto, se isso ocorre para todas as palavras ou unicamente nos casos especficosexemplificados a seguir. 48 49. Dessa afirmao destaca-se um ponto importante: os nomes mais corretos seriam osnomes dados segundo determinados critrios, critrios esses adotados por serem consideradosrazoveis. Scrates passa a examinar, ainda usando Homero como guia, que critrios o poetateria usado, mesmo de forma implcita, para atribuir nomes a certas pessoas. 1. Os nomes seriam derivados a partir da filiao. D-se ao filho o nome do pai, quandoa gerao conforme a natureza (393c). Chamamos de leo ao filho de um leo, cavaloao filho de um cavalo, rei ao filho de um rei. Assim, Astanax (Astynakti) recebeu essenome por ser filho do rei Heitor (%Ektor). Ambas as palavras significam rei, pois naxrefere-se a rei, senhor e ktwr significa aquele que detm (o poder). Algo anlogoocorre com os nomes Agis, Polemarco e Eupolemo, que significam general, ou comos nomes Iatrcles e Acesmbroto, que significam mdico (394bc). Em grego, Astanax (Astynakti) e Heitor (%Ektor) tm apenas a letra t (tau) emcomum, enquanto que Arquepolis, que tambm significa rei, no entanto, no possuinenhuma letra em comum com os dois nomes anteriores. Portanto, segundo Scrates, aspalavras podem diferir nas letras e slabas e ainda assim ter o mesmo poder (dnamis) de sereferir a determinadas coisas. A mesma coisa pode ser significada (ou um mesmo sentidopode ser expresso) por diferentes combinaes de slab