mediação e educação na filosofia de platão correção definitiva

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Mediação e Educação na Filosofia de Platão Pedro Gomes Neto (UFG/FE) 1 e-mail: [email protected] Resumo: o texto a seguir enfoca a educação como exercício de mediação em Platão. Trata-se de apresentar a dialética platônica no processo formativo, diante da problemática cultural e filosófica de sua época, como contributo às reflexões contemporâneas acerca da filosofia da educação. Palavras-Chave: mediação. Educação. Formação. Dialética. Mediation and Formation in Plato’s Philosophy Abstract: the following text focuses on education as an exercise of mediation in Plato. It is to present the Platonic dialectics in the formation process, given the cultural and philosophical issues of his time, as a contribution to contemporary reflections on the philosophy of education. Kaywords: mediation. Education. Formation. Dialectic. 1 Pedro Adalberto Gomes de O. Neto é Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor na UFG/FE.

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Page 1: Mediação e Educação Na Filosofia de Platão Correção Definitiva

Mediação e Educação na Filosofia de Platão

Pedro Gomes Neto (UFG/FE)1

e-mail: [email protected]

Resumo: o texto a seguir enfoca a educação como exercício de mediação em Platão. Trata-se de apresentar a dialética platônica no processo formativo, diante da problemática cultural e filosófica de sua época, como contributo às reflexões contemporâneas acerca da filosofia da educação.

Palavras-Chave: mediação. Educação. Formação. Dialética.

Mediation and Formation in Plato’s Philosophy

Abstract: the following text focuses on education as an exercise of mediation in Plato. It is to present the Platonic dialectics in the formation process, given the cultural and philosophical issues of his time, as a contribution to contemporary reflections on the philosophy of education.

Kaywords: mediation. Education. Formation. Dialectic.

Educar é iniciar as pessoas ao caminho do conhecimento. O objetivo da

educação é a conversão da alma (Platão, 2000, p. 229). Essa é a tese platônica acerca da

formação. Trata-se de um caminho que, após a conversão da alma, é possível de ser

percorrido. A educação consiste em mudar o olhar, saltar o muro da ignorância e da

doksa () para alcançar o conhecimento. Conhecer é contemplar a alma, a psykhê2

(ψυχή), concebida como imortal e mortal. Aquela é essência, anterior ao corpo e

1 Pedro Adalberto Gomes de O. Neto é Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor na UFG/FE.

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qualificadora das coisas. A alma mortal é relativa aos desejos, destinada ao

aprendizado3. Afirma Platão: “a divindade criou a alma antes do corpo...” (Platão, 1988,

p. 40).

Há na filosofia de Platão o processo de aprendizagem e o de ensinamento. Há

uma primeira viagem de subida do homem ao Hades, às díades e ao Uno, bem expressa

no diálogo Fédon. Trata-se da passagem do imediato, do simples, da opinião ao

mediato, à episteme. E há uma segunda viagem marcada pelo retorno do filósofo ao

mundo sensível, ao corriqueiro e fugaz. É o retorno à morada da opinião, exatamente de

onde dialeticamente a formação dos homens ao caminho do conhecimento se inicia. A

segunda navegação denota a tarefa do filósofo-educador. O primeiro caminho é o da

aprendizagem e o segundo, o do ensinamento. Tanto o primeiro quanto o segundo são

figurativos. No primeiro, o homem se torna filósofo e no segundo, o filósofo se põe

como educador. Em A República, especificamente na ‘Alegoria da Caverna’, Platão

expressa a dialética formativa ascendente e a dialética formadora descendente. No

diálogo Fedro pode-se depreender forma análogo à da ‘Alegoria da Caverna’. A

alegoria da ‘Parelha Alada’ expõe a subida ao Bem. Há a subida da alma ao Hades e,

após um período de aprendizagem, seu retorno ao corpo. Na ‘Alegoria da Caverna’, em

A República, observa-se que Glauco deve ultrapassar o muro limítrofe entre a doksa e a

episteme para se tornar filósofo; elevar-se à morada da imortalidade da alma, como

também se observa nos diálogos Banquete e Fédon. Em todos esses escritos, a dialética

ascendente exige a dialética descendente. Trata-se de alegoria pedagógica, antes que

realidade efetiva. A grande questão é a alteração de olhar, a formação, a mudança da

imediatidade mundana à universalidade do saber. Nesse sentido, a educação para Platão,

lida com princípios.

2 Psykhê significa respiração de vida, fantasma, princípio vital, alma, anima, qualificador e princípio de vida de todas as coisas.3 No diálogo Timeu (1986, 42-d, p. 47) Platão assevera: “Após a semeadura, incumbiu os deuses novos de plasmar corpos mortais e contemplar a alma humana com tudo o que ainda fosse preciso acrescentar-lhe, e, depois desses acréscimos, de governar i guiar a criatura mortal de melhor e mais sábia maneira que pudessem, salvo nos casos em que eles próprios fossem os causadores de sua desgraça”. Ainda no Timeu (1986, 69-c/d, p. 77) Platão continua: “O construtor divino foi ele mesmo; mas a tarefa da geração dos seres mortais ele confiou a seus filhos. Imitando-o nesse particular, depois de receberem o princípio imortal da alma, aprestaram em torno dela uma sede mortal de forma globosa, a que deram como veículo todo o corpo, no qual construíram outra espécie de alma, de natureza mortal, cheia de paixões terríveis e fatais: em primeiro lugar, o prazer, a maior isca do mal; depois, as dores, causa de fugirem os bens, e também a coragem e o medo, dois conselheiros imprudentes, assim como a cólera difícil de convencer, e a esperança, tão fácil de burlar”. Sobre a alma deve-se verificar a partir da numeração 34.

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O caminho de ida ao Hades e de retorno ao corpo ou de subida à morada dos

deuses e descida ao mundo dos homens ou o ultrapassar o muro da doksa, elevando-se

ao mundo inteligível e o retorno ao mundo sensível, denotam de forma pontual, o

realismo platônico necessário à Atenas de sua época. A crise cultural do século V a.C. é

uma questão de princípio ontológico que requer um posicionamento filosófico e uma

ação pedagógica. E nesse sentido, a questão pontual se torna parabólica. Trata-se do

formar e do ensinar relativo não somente à Atenas da época de Platão, mas um tema

educacional de todas as épocas: o ultrapassar a barreira da doksa e elevar-se à episteme.

A formação consiste em elevar-se à universalidade; mudar o discurso do

efêmero e particular para aquilo que é comum a todos os homens, o “que é com”, como

afirma Heráclito4 (1996, p. 96). Encontra-se, nesse momento, uma das categorias

exemplares da cultura Ocidental: a noção de natureza (ψυχή). A Physis, natureza, é

concebida pelos gregos da antiguidade clássica como o processo pelo qual as coisas

surgem e se desenvolvem. É o que sustenta todas as coisas. Trata-se do necessário a

todos os seres, diferente e oposto a tudo que é contingencial. Ela é tudo que permite o

surgimento e que se mantém em tudo que foi gerado; é, ao mesmo tempo, natureza e

ser. Essa concepção de natureza influi diretamente na antropologia filosófica platônica e

em seu modelo educacional. A educação se torna estritamente necessária ao ser. Há que

se formar os homens àquilo que lhe é premente: seu próprio ser a clama. A educação é

essencial, necessária ao ser do homem e não algo externo, à produção e ao consumo,

como se elabora após o século XVII.

Para Platão educar consiste em morrer. Educado é o homem que após a sua

morte permanece morto entre os melhores homens e os deuses. Trata-se de morrer para

a imediatidade mundana e viver na absolutez do ser. Morrer é separar o corpo da alma.

(Platão, 2000, p. 125), o efêmero do universal. O corpo é o contingencial. Ele perece e

ao morrer liberta a alma que, por sua vez, vai ao Hades e retorna ao corpo

(metempsicose5 – primeira prova da imortalidade da alma). Após o seu retorno ao corpo

ocorre a anamnese ou a recordação. Conhecer é acordar ou recordar as almas que se

encontram em nós. No diálogo Teeteto (1988a, p. 11), Sócrates diz ao seu interlocutor

que ele está cheio de ideias que querem vir à luz. Assim como sua mãe, Sócrates é

4 “É preciso saber que o combate é o-que-é-com, e justiça (é) discórdia, e que todas (as coisas) vêm a ser segundo discórdia e necessidade”. O-que-é-com significa comum.5 Metempsicose é a transmigração da alma de um para outro corpo, passando pelo Hades como momento necessário de aprendizado. Ver diálogo Fédon.

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parteiro. Porém de modo diferente de sua progenitora, ele não parteja mulheres, mas

homens no parto de ideias. Educa-se para o acordar das almas, estando impedido pelos

deuses de criar qualquer ideia que seja. Sócrates somente pode despertar em Teeteto o

desejo deste em acordar as ideias que se encontram nele.6 Ele é o mediador entre o que é

perene e o que é eterno, entre Teeteto e as ideias que nele se encontram. O educador

medeia o homem com o Ser.

Platão compreende a educação pelo viés epistemológico. A doksa, a

contingência, a particularidade do olhar, pelo qual a universalidade deve se erigir, é

importante como momento inicial no processo formativo platônico. É da doksa que se

parte à formação. Platão não sugere que a abandone ao esquecimento. Na linguagem

hegeliana, antes, ela deve ser suprassumida, negada e afirmada em certa medida.7 O

homem ignorante difere do de doksa, este se dá conta de sua imediatez. O problema do

ignorante é que ele é ignorante. Não se educa homens ignorantes, mas homens de doksa.

Platão não nega a contingência no sentido de a destruí-la em função do universal, ele a

inclui no ser. Platão não nega o vir-a-ser, o não-ser, o movimento, a imediatez, a

experiência, ele parte dela. Esse mesmo problema enfrentado por Platão no diálogo

Sofista é observada em sua tese sobre a educação. Trata-se de resolver o problema do

homem-medida sofístico, após a crise da sociedade do século V a.C., em prol da

restauração de uma sociedade justa, contrapondo-se ao modelo educacional dos sofistas,

baseado na retórica e opinativo. Na esteira de Sócrates, Platão anuncia uma educação

maiêutica, dialética, epistêmica.

Mas não basta sustentar a tese da educação à verdade, ao ser. Há que se haver

com o não-ser, exigência que coloca a doksa diante da episteme. A contraposição

negadora de uma em relação à outra, a mera oposição e valoração de uma em minoração

da outra é um equívoco lógico. Somente uma violência intelectual poderia sobrepor uma

à outra. Em outras palavras: não há como negar o contingencial. Não é em vão que

Platão insiste em explicar o mundo sensível, alegoria que nos remete, antes que a um

lócus, a uma situação de olhar. Platão realiza o mesmo intento no Fédon. Após iniciá-lo,

6 Cf. Teeteto (188a, p. 11): “são dores de parto, meu caro Teeteto. Não estás vazio; algo em tua alma deseja vir à luz”.7 “Das Aufheben stellt seine wahrhafte gedoppelte Bedeutung dar, welche wir an dem Negativen gesehen haben; es ist ein Negieren und ein Aufbewahren zugleich; das Nichts, als Nichts des Diesen, bewahrt die Unmittelbarkeit auf und ist selbst sinnlich, aber eine allgemeine Unmittelbarkeit.” (Hegel, 1952, p. 90). “O suprassumir apresenta sua dupla significação verdadeira que vimos no negativo: é ao mesmo tempo um negar e um conservar. O nada, como nada disto, conserva a imediatez e é, ele próprio, sensível; porém é uma imediatez universal.” (Hegel, 2002, p. 96)

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dissertando sobre a morte, o suicídio ou antes de expor as quatros provas da

imortalidade da alma, Platão afirma: que morrer é separar o corpo da alma (Platão,

2000, p. 125), que se deve examinar as coisas pelo pensamento, afastando-se do sentido

corporal (Platão, 2000, p. 127), que o corpo nunca conduz a pensamentos sensatos

(Platão, 2000, p. 125). De forma que o corpo é relevante. O mesmo se pode observar no

diálogo Timeu. Neste escrito, o corpo é concebido como a “sede mortal de forma

globosa” (Platão, 1986, p. 77), de natureza mais baixa (Platão, 1986, p. 77), que é mais

novo e deve obedecer à alma (Platão, 1986, p. 40). De forma que se equivoca delegar ao

corpo insignificância excessiva. É do corpo, da doksa, que se parte à educação.

Na ‘Alegoria da Caverna’ Platão descreve que a partir da música e da ginástica a

educação se estabelece mediante quatro ciências: aritmética, geometria, astronomia e

dialética. É a partir da música e da ginástica, da alma e do corpo que a formação se

inicia. A educação envolve ser e não-ser. Trata-se de um problema estritamente

filosófico. Como negar a contingência proposta pelos sofistas? Esse problema é

resolvido teoricamente no diálogo Sofista pela distinção e conceituação do Todo e do

Ser. Cabe ao filósofo, como cocheiro da ‘Parelha Alada’ (Fedro), conduzir a mudança

do olhar dos homens ao caminho da verdade. Nesse sentido Platão se ergue como o

primeiro pensador que provou a necessidade do filósofo em conduzir olhares simples e

imediatos ao universal. E, nesse sentido, a experiência do lógos se tornou fundamental

na cultural ocidental. O filósofo é necessário e sua função é a de mediador, como

educador. Mas não se trata de uma mediação externa, cunhada após o século XVII com

a prevalência do ente ao ser. Não se trata de um sujeito e de um objeto sintetizados em

uma realidade ontológica. Também não se trata da separação entre o real e o aparente e

a sua resolução via um contrato social ou um esquematismo da imaginação. Portanto,

trata-se de outra concepção de mediação.

No diálogo Banquete Platão atesta, na especificidade do eros, a mesma

finalidade do educador e o mesmo papel de mediação do filósofo. O filósofo é o

intermediário entre os homens e os deuses e sua tarefa consiste em levar as súplicas e

oferendas dos homens aos deuses e trazer aos homens a notícia da imortalidade dos

deuses8 (Platão, 1981a, p. 40). No diálogo Lisis depreendemos, novamente, a

8 O amor Eros encontra-se entre o mortal e o imortal, afirma Diotima. Ele é um gênio, um intermediário, e está entre um deus e um mortal. Sua função consiste em: “... interpretar e transmitir aos deuses o que vem dos homens, e aos homens o que vem dos deuses, de uns as súplicas e os sacrifícios, e dos outros as ordens e as recompensas pelos sacrifícios” (Platão, 1981a, p. 40).

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importância da mediação no aspecto formador. Nesse diálogo, Platão defende que a

origem do amor é o desejo e este é faltante: “O que deseja é amigo daquilo que deseja, e

isso sempre que deseja” (Platão, 1995, p. 60). Deseja-se o próprio desejo, deseja-se

desejar. Isso tudo porque o amor Philia é intermediário entre o bem e o mau.

Exatamente por ser intermediário, o amor Philia deseja. Aquele que deseja, deseja,

sempre que deseja. O homem é ser de desejo. Deseja-se a si mesmo. Deseja se

conhecer, acordar as essências, as ideias. Movido pelo desejo, o amor Philia busca o

que lhe é afim, o que se encontra nele, mas adormecido, as almas, as ideias, as

essências. Loriaux afirma: “Desde a sua juventude, Platão chamou pelo nome “”

a realidade de cada coisa, isso que essa coisa é nela mesma” (Loriaux, 1955, p. 13). É

exatamente a busca dessa “” que o mediador deve despertar no homem desejoso

de saber.

No diálogo Banquete o papel do filósofo mediador é, novamente, apresentado,

mas, agora, pelo viés do gênio. Este intermedeia o mortal do imortal, a morte da vida.

No âmbito das provas da imortalidade da alma, no diálogo Fédon, Platão se refere à

vida em relação à morte. Assim como no caso da educação, a solução platônica ao

problema da morte e da vida enfocada no Fédon é que uma se vê diante da outra. No

caso do diálogo Sofista, Platão também se refere a esse opositivo. No aspecto

ontológico, próprio do Sofista, ele define que “o ser, de certa forma, não é; e o não-ser,

de certa forma, é” (Platão, 1972, p. 168). No entanto, ele insiste que o dualismo entre

ser e não-ser se encontra no Todo, mas não no Ser. No caso específico do tema que ora

nos interessa – a mediação e a educação – põe-se em questão a possibilidade da

equivalência entre o discurso falso e o discurso verdadeiro. Para Platão educa-se para a

verdade, enquanto que para os sofistas conhece-se pelos sentidos e educa-se para a

imediatidade mundana. Assentados na tese dos mobilistas, os Sofistas defendem a

impossibilidade do ser. Platão arquiteta outro modelo educacional calcado no ser e na

verdade. Porém Platão tem que se fundamentar ontologicamente para poder

suprassumir o modelo educacional sofístico. Ele se vê enleado em um sério problema:

como afirmar que há o discurso falso sem cair em contradição? Como é possível educar

homens supondo um discurso verdadeiro e um discurso falso, sem antes considerar que

o falso é real? Pode-se dizer que há o falso sem transformá-lo em algo real?

Encontra-se, aqui, um dos sérios problemas filosóficos da nossa cultura. Como

formar à verdade sem cair em contradição? Como supor um discurso verdadeiro em

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contraposição a um discurso falso sem, antes, afirmar que o falso é ou que ele é real?

Como defender que há um discurso verdadeiro superior e melhor do que um discurso

falso, sem antes afirmar que é possível uma educação via falsidade? Para enfrentar essa

questão Platão diferencia o Todo do Ser. O. O Todo é a somatória das partes e o Ser é

uno, indivisível. Todo e Ser, assim como vida e morte, têm naturezas distintas. Mas

Platão não se propõe simplesmente diferenciá-los e a golpe de espada aniquilar ou

rebaixar o não-ser ou a morte. Platão propõe uma inversão. Não se trata de exaltar o ser

em detrimento do não-ser, mas considerar que é complexo dizer o que eles são. Isso

supõe admitir o ser antes de qualquer consideração. No caso do diálogo Fédon, a morte

é o resultado de toda uma vida em busca das essências e da verdade. Daí ela ser o

resultado do Todo que, como somatória das partes, é carente. A vida é o uno. A

preferência pela morte se faz necessária ao filósofo porque este dedica toda a sua vida

em filosofar ou em buscar incessantemente as essências e a verdade. Platão é um

pensador ontológico e dialético. Isso faz toda a diferença na educação.

Platão não pode negar o não-ser, mas, ao mesmo tempo, ele não pode equipará-

lo ao ser. Ao fazê-lo, ele estaria defendendo a equivalência entre uma educação que

formaria homens à verdade e outra à falsidade. É exatamente contra essa armadilha

teórica que Platão pretende escapar. Mas há necessidade de uma prova defensável em

função da educação verdadeira, sem eliminar a contingência. É necessário edificar um

princípio ontológico sustentável que situe o modelo educacional sofístico ao Todo e o

do filósofo ao Ser. E assim procedendo, Platão propõe edificar uma tradição que vise na

educação uma necessidade premente à natureza humana e não, como se vê atualmente,

uma possibilidade dentre tantas outras. É nesse sentido que Platão nos indica, no

diálogo Sofista, três gêneros: o Ser, o movimento e o repouso. O Ser contém os dois

últimos. No Ser eles não se separam e no Todo, repouso e movimento encontram-se

separados. O olhar sofístico reside no Todo e o do filósofo, no Ser. Este contém aquele.

Trata-se da verdade que contém a contingência. Dessa forma Platão pode sustentar que

a educação que visa à verdade é superior ao modelo sofístico, voltado à retórica e à

doksa.

Há muito o Ocidente se sustenta pelo viés da totalidade. A absolutez perdeu seu

sentido ou foi considerada superada, algo relativo à teologia, mística, inexpressiva e

fugaz. O Professor João Batista Valverde, em uma palestra, afirmou que ao se ler Platão

deve se platonizar. Caso contrário corre-se o risco de nada entender. Essa tese se aplica

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diretamente ao diálogo Fédon: ou se compreende o que significa morte ou corre-se o

risco de colocar em ruína todo o edifício platônico. A preferência do filósofo pela morte

se faz necessária porque este dedica toda a sua vida em filosofar ou em buscar

incessantemente as essências e a verdade. Na morte, o filósofo tem “... a firme

esperança de que gozará, ao sair dessa vida, infinitos bens”. (Platão, 1981, p. 109)

Trata-se de ser carente. Essa é a morte de que nos fala Platão: a carência de sentido, a

busca, o soltar as amarras e a mudança de olhar. Não se trata de morte física, mas do

pensamento. No diálogo Fédon, a teoria dos contrários supõe a díade entre vida e morte:

ideias opostas. E essas ideias opostas só se apresentam porque antes são; e exatamente

porque elas são, podem ser conhecidas e defendidas. Assim se dá com o discurso

verdadeiro e o falso. Ambos são e de igual modo podem ser defendidos. Pode-se educar

por cada um deles, como acima foi apresentado. E como se pode elaborar uma educação

verdadeira sem supor que o falso é real? Esse é o grave problema que acima foi aludido.

A questão é que no Todo o movimento se opõe ao repouso, mas no Ser isso não

ocorre. O Ser é uno, relativo a outro olhar, o universal. Quem se prende no Todo visa a

imediatidade mundana, a doksa, o superficial, o fugaz, o transitório, muitas vezes

vulgar. O filósofo-educador prima por iniciar as pessoas à morte, ao acordar das ideias,

à mudança de olhar do imediato e simples ao universal mediatizado. Essa parábola da

nossa cultura, infelizmente, permanece oculta. Acatamos outra tradição filosófica. Da

absolutez, muitas vezes confundida com Totalidades, Absolutos fantasmagóricos,

divindades maléficas, tudo mais que uma seita de pseudo intelectuais divulgou,

preferimos outro viés teórico. Mas esse é outro problema que por ora não nos interessa.

O que nos importa nesse momento é aferir que a educação deve propiciar que as pessoas

consigam sair da imediatidade à absolutez e não à totalidade.

Supondo a derrocada da sociedade grega de sua época pelo viés de uma

educação que se pautasse pelo homem-medida dos sofistas, Platão tenta estabelecer, via

a mediação do filósofo, um novo ideal de civilização. Trata-se de enfrentar a crise

ateniense do século V a.C. pelo viés da cultura veraz. E Platão o faz por uma educação

dialética, cujo o lógos assume papel preponderante na busca da verdade. Esse novo

modelo educacional tem na figura do filósofo-educador a própria mediação entre o

homem e a verdade. Esse modelo influenciou diretamente a nossa cultura até quando, na

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sociedade do consumo, o discurso finalista do bem se converteu em mediação

superficial e irresponsável.9

No diálogo Teeteto, Platão indica ao seu interlocutor o cuidado com a sensação e

com a episteme. Cuidado que se deve manter, principalmente, na atualidade. Filiar

conhecimento e sensação é problemático. Ao fazê-lo corre-se o risco de reduzir a

verdade à validade discursiva, própria da nossa época, e converter a formação das

pessoas do âmbito da busca do universal à pueril imediatidade mundana. É o cuidado

que devemos ter quando a comunidade da opinião coloca-se par a par com o discurso

universal. É este mesmo cuidado que devemos ter entre a equivalência do discurso

opinativo com o discurso filosófico. Assemelha-se ao que em sua época Platão discutiu

com os Sofistas: havendo equivalência entre a opinião e a episteme, em última instância,

tanto um discurso quanto o outro se torna aleatório, assume-se ambos e torna possível

um e outro. Procedendo dessa forma ou considerando tanto o não-ser quanto o ser,

ambos os discursos se tornam além de possível, contingenciais. Dessa forma, a

educação, a filosofia, o homem e a natureza se convertem em aparências.

Mas observe que Platão não se opõe ao discurso sofístico pela negação da

sensação e nem o pode fazer. Caso insistisse nessa via Platão estaria confirmando que o

ser e o não-ser são e que ambos são possíveis no processo formativo. Por outro lado, se

Platão negasse o não-ser, para fazê-lo, e de imediato, ele estaria considerando-o como

alguma coisa que deve ser negada, assumindo-o, como ser, novamente. Platão se opõe

ao princípio lógico do homem-medida sofístico e à pedagogia do efêmero, da opinião,

da sensação, da retórica. Mas se opõe considerando que o não-ser, o movimento, a

doksa, em certa medida, é. E ela o é em oposição ao ser somente no âmbito da

imediatidade do mundo, no âmbito do Todo. No Ser, como acima foi descrito, ambos

não se separam ou há participação do não-ser no ser e vice-versa. Trata-se de enfrentar a

tese do não-ser sem suprimi-la. Daí a necessidade do filósofo.

Educa-se para a alma, supondo que ela é. E mesmo no fato de Platão provar

teoricamente a imortalidade da alma, como ocorre no diálogo Fédon, não significa que

o acesso cognoscente às essências e à verdade fica menos complicado. No diálogo

Crátilo Platão defende que a palavra é a coisa, mas ela não dá conta de expressar o que

a coisa é em sua absolutez. Educa-se para as ideias ou para um enunciado que não se

9 Ver as contribuições do Professor Henrique Cláudio de Lima Vaz em sua obra: Escritos de Filosofia III: filosofia e cultura, editada pela editora Loyola, 1997, principalmente a página 26 ss.

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sabe exatamente o que ele é. Tanto os erísticos quanto os sofistas indagavam Platão

sobre uma contradição em seu discurso. Para os erísticos não se pode buscar o que não

se sabe, exatamente porque não se sabe o que buscar. Mas se por acaso soubesse o que

buscar, não precisaria buscá-lo. Os sofistas indagavam Platão: como é possível defender

a teleologia do Bem e ao mesmo tempo dizer que não se sabe o que ele é? Como educar

os homens ao desconhecido?

Platão é filósofo de contradição. Esse dialético não se ofende com a

contingência, antes, a integra no processo do saber. Platão se defende da pretensa

acusação de nada dizer. O problema reside, como acima foi enfocado, na distinção entre

Todo e Ser. No Ser, movimento e repouso não se separam. O Ser é e o Todo é sua

manifestação. Educa-se para o que é e não para a demonstração daquilo que é, pois não

se educa para a aparência. O homem deve ser formado ao caminho da verdade e não no

aparecer dela, na sua imagem. Dizer que os sofistas ou os primeiros pedagogos são

falsos significa considerar que é possível uma educação para a contingência, próprio do

que a técnica se transformou após a revolução científica do século XVII. A malícia

sofística consiste em filiar o discurso de Platão contra ele mesmo. Ao se referir ao não-

ser, ele, de imediato, é assumido como algo real. O não-ser é e seria possível uma

educação para a aparência. Ao mesmo tempo a preferência por uma educação via

aparência é externa a qualquer discurso. Nesse sentido, a educação se converte em algo

aleatório, tanto faz se se referir ao real ou à aparência. Dessa forma, o real se equivaleria

à aparência. Havendo equivalência entre falsidade e verdade, a educação em si mesma

se tornaria ocasional e os homens poderiam escolher uma delas. O problema é que

ambas as opções se convertem em aleatórias e superficiais, e a educação perde seu

caráter de universalidade. Esse é o âmago da crítica filosófica de Platão aos Sofistas.

Na trilogia das obras do ciclo do amor: Lisis, Banquete e Fedro pode-se

depreender o esforço de Platão para indicar aos seus interlocutores a necessidade tanto

da mudança de seus olhares quanto do filósofo como mediador entre os homens e a

verdade. E não se trata de um problema somente local ou de circunstância ateniense.

Trata-se de uma parábola: ou os homens entendem a necessidade da universalidade do

olhar ou a nossa cultura corre sérios riscos de se dissolver na imediatidade mundana.

O diálogo Lisis se inicia filiando o conhecimento com a verdade (Platão, 1995,

p. 33-34) e com o amor (Platão, 1995, p. 44). A questão é que o amor Philia não pode

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ser visado pela doksa, pela particularidade, e sim pela episteme ou de forma universal.

Seguir a doksa é colocar em risco toda uma cultura, o Ocidente todo, e não somente

Atenas. No Lisis, Platão levanta uma série de hipóteses sobre o que seria o amor, tendo

como eixo a tradição filosófica. A primeira hipótese concebe o amor pelo viés dos

imobilistas. O semelhante ama o seu semelhante (Platão, 1995, p. 49). A segunda

hipótese se firma nos mobilistas: o contrário é amigo do contrário (Platão, 1995, p. 51).

A terceira hipótese dá início ao problema do amor e do desejo: “Aquilo que não é bom

nem mau é que, por isso mesmo, se torna amigo do bom” (Platão, 1995, p. 52).

Essa parte do Lisis aponta para o que de significativo se encontra em questão:

ama-se o Primeiro Amigo10 (1995, p. 57). Ama-se o universal. Nem imobilistas nem

mobilistas enfocaram de maneira veraz o tema do amor. Ambas as interpretações são

corretas e erradas em certa medida. Assim como foi exposto nos diálogos Sofista e

Fédon, não há como, no Ser, opor o movimento ao repouso. No ser eles não se separam.

Essa separação é defendida por aqueles que se apoiam na doksa ou que se encontram no

Todo ou aqueles para os quais a imediatidade do mundo o satisfazem.

Quando Platão se refere à amizade entre Lisis e Menexeno, ele indaga aos seus

interlocutores qual dentre eles é o mais velho. Essa questão aponta um paralelo entre

útil (Χρήσιμος), princípio supremo, agathón (γάθων), entendida como autossuficiente

e superior. O amigo deseja a felicidade do seu amigo. Os exemplos do pai, da mãe e da

medicina – descritos no diálogo Lisis –, assinalam para a superioridade desses em

relação aos outros. Mas essa superioridade não pode advir por uma imposição externa.

Não se trata de uma questão de opinião e de poder. Pelo contrário, o poder e a felicidade

provêm do autodomínio racional sobre os impulsos da paixão. Autodomínio que visa a

utilidade no sentido correlato ao agathós, filiado à tradição homérica da palavra Areté

ou de somente poder dar ao outro alguma coisa aquele que se autodomina, aquele que é

autossuficiente e reconhece que pode ajudar aos outros em sua forma excelente (Areté).

De forma que o amor pressupõe conhecimento, autodomínio, autocontrole sobre

a imediatidade da doksa, sobre os impulsos das paixões e dos corpos. Somente aquele

que percorreu a formação da cultura pode ajudar na construção de um mundo

epistêmico, universal. Caso contrário, como se observa em nossos dias, a possibilidade

10 “Não será porventura forçoso renunciar a esse caminho, ou então chegar a um ponto de partida que não mais reconduza a um outro amigo, mas leve àquele que é o primeiro amigo...”

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de se converter o aparente em real agrava, como notamos, a desconstrução da verdade

em prol da validade, da imagem, da virtualidade.

A Paidéia platônica filia conhecimento, amor e felicidade em prol da Areté.

Tudo isso em função de sua preocupação em relação à antropologia sofística. Cabe

observarmos que nossa tradição antropológica vinha se edificando sob três égides

teóricas. A primeira, sustentada por Diógenes de Apolônia, considerava o homem

superior aos outros seres, e sua superioridade se mostrava por suas obras. Essa tese

surge diante de uma situação educacional complicada, a passagem da areté guerreira à

areté política. Diante dessa tradição, os Sofistas estabeleceram a tese do homem-

medida. Eles conceberam o lógos como linguagem descritiva da história, deslocando o

olhar do homem à imediatidade de suas paixões, tornando-os capazes de demonstrarem

e de persuadirem seus pares; tentaram converter a formação epistêmica à retórica e à

opinião. Platão se vê diante de um sério problema. A educação pelo viés da imagem

impossibilitaria a constituição de um mundo veraz. Platão, sabedor do pretenso

descalabro que ameaça a cultura Ocidental, revê as teses socráticas do homem dotado de

Psykhê (ψυχή), do conheça-te a ti mesmo e do finalismo do Bem para edificar sua

antropologia filosófica. E ele a elabora considerando que o homem é um ser dotado de

lógos e de corpo. A partir dessa concepção é possível edificar um novo modelo

educacional que propicie aos homens a esperança da construção de uma sociedade

veraz.

No Lisis, Sócrates executa o papel de mediador na figura da Philia entre Lisis

com Menexeno e dos dois com eles mesmos. O filósofo, o amigo, medeia homens

consigo mesmos. Inicia os mesmos ao processo de despertar as ideias que neles se

encontram e a buscar o afim a todos os homens, aquilo que realça a natureza de ser

humano. Nesse aspecto, a experiência do lógos na formação da nossa cultura tem em

Platão a significação exemplar que marca a escolha e a importância da educação no

exercício cognoscente.

No diálogo Banquete o tema do amor, agora enquanto eros, é apresentado em

vista de sua origem e de seus efeitos. Trata-se de outra forma de apresentação do amor,

aproximando-o do conhecimento, bem como do esforço filosófico-educacional da

mediação. Novamente, Platão tanto distancia a episteme da ação opinativa quanto valora

a necessidade do filósofo no processo de formação dos homens, iniciando-os ao

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caminho do conhecimento. Primeiro de forma teórica e, depois – com Alcebíades – de

forma fenomenológica.

Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes e Agatão11 discursam antes de

Sócrates-Diotima. Os cinco primeiros pensadores consideram eros um deus. Sócrates-

Diotima o tem como uma espécie de intermediário. Fedro inicia os discursos afirmando

que o Amor é um grande deus, o mais antigo e honroso, a causa dos maiores bens e que

doa aos amantes o seu dom de amar (Platão, 1972a, p. 18-21). Pausânias assevera que

eros é originado de duas deusas: Pandâmia, a popular, inconstante e Urânia, a mais forte

e inteligente, sem ser violenta, valora a vida e não engana os outros. Eros, por sua

origem, é constituído dessas duas características (Platão, 1972a, p. 21-25). Erixímaco

defende o discurso de Pausânias, mas assevera que ambas as deusas estão em harmonia.

Sua tese é a de que a medicina é ciência do amor, exatamente porque o amor deve ser

harmonioso, assim como o corpo humano tem que sê-lo (Platão, 1972a, p. 25-27).

Aristófanes inverte o enfoque acerca do tema proposto (Platão, 1972a, p. 28-33). Os

discursos anteriores partem da parte. Aristófanes parte do Todo que se divide e procura

seu retorno à sua antiga natureza. Para ele a natureza humana era composta por três

gêneros: homem, mulher e andrógino. Este tinha tudo em dobro, menos a cabeça, que

era uma sobre dois rostos. Voltando-se contra os deuses, os andrógenos são punidos por

Zeus, ao dividi-los ao meio para que eles deixassem de ser intemperantes e se tornassem

mais moderados. A partir daí as partes separadas buscavam pela sua outra metade dela

separada. Desde então o amor está implantado no homem para que ele restaure a sua

natureza antiga e una uma parte a seu complemento. O amor tem exatamente essa

função de retornar ao todo e se tornar feliz (Ver Ferrari, 2013, p. 299). Agatão o remete

ao Belo (Platão, 1972a, p. 33-39).

Sócrates-Diotima (Platão, 1972a, p. 39-49) defendem que eros não é um deus,

mas um intermediário, cuja tarefa consiste em intermediar o homem, em processo de

aprendizagem, entre a opinião e o conhecimento. O filósofo-educador é a própria

mediação, exatamente por encarnar a origem do seu pai, deus do recurso, com a da sua

mãe, deusa da precisão. Eros lembra aos homens seus destinos: conviver na confluência

dos opositivos, viver a contradição entre o uno e o múltiplo. Mas é com a entrada de

Alcebíades (Platão, 1972a, p. 49-52) que a função de eros se expressa de forma

11 O tema do diálogo Banquete aparece em: 172 b, 177 c-d, 199 c-d, 204 d. Os respectivos discursos encontram-se em: Fedro (178 b-c a 180 c); Pausânias (181 a-b e 185 e); Erixímaco (186 a – 189 a); Aristófanes (189 a – 194 e) e Agatão (194 e – 198 a).

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adequada na tentativa do filósofo exercer o seu papel de educador. Alcebíades é homem

de paixões, voltado ao corpo, à imediatidade mundana. Sócrates é homem moderado,

voltado à universalidade do saber. Como educador, sua tarefa consiste em possibilitar a

Alcebíades a inversão do seu olhar passional e particular à universalidade do amor.

Cabe ao filósofo intermediar Alcebíades consigo mesmo em busca da verdade.

Léon Robin12 atesta que o diálogo Fedro complementa o tema do amor em

Platão, iniciado no Lisis, enquanto Philia, continuado no Banquete, como Eros, e

encerrado no Fedro, enquanto Kallós. O Amor que é amor do que é belo deve buscar a

beleza em sua pureza, o belo em-si-mesmo, exatamente ao que se propõe o diálogo

Fedro. A alegoria da ‘Parelha Alada’ expressa essa busca do Belo. O cocheiro filósofo,

mais especificamente o próprio educador, tenta despertar os olhares dos cavalos. Um

deles se direciona à imediatidade mundana. O outro visa o Belo. O filósofo-educador

tenta direcioná-los ao Bem, ao universal, às díades e ao uno. Essa situação ímpar que

inaugura a necessidade da educação na edificação de uma sociedade ordenada o faz pelo

esforço do lógos; não pelo viés de linguagem, mas pelo de razão que pode, em seu

exercício, encontrar-se no equilíbrio harmonioso e proporcional, do qual nos fala Platão

em seu diálogo Timeu.

A ‘Parelha Alada’ é uma belíssima exposição platônica que, para além da

situação ateniense do final do século V a.C., anuncia-se como uma parábola.

Infelizmente, nossa cultura não permaneceu na fenomenologia desse ethos, na

construção de uma morada que supunha a beleza, a harmonia, a proporção e a

responsabilidade com uma formação integral. Em certo momento da nossa história

decidimos pelo saber quantitativo e por uma educação voltada à medida, ao cálculo, ao

ente, a tudo que se caracteriza pelo rápido, passageiro, informativo, aleatório e, muitas

vezes, vulgar. Platão pode ser revisitado por muitas maneiras, inclusive para ser

suprassumido. Mas seria conveniente que se pensasse naquilo que dele foi esquecido ou

abandonado e que, de alguma maneira, poder-se-ia fornecer elementos necessários à

reflexão formativa da atualidade.

12 ROBIN, Léon. La Théorie Platonicienne de l’Amour. Paris: Presses Universitaires de France,

1964.

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A necessidade do filósofo-educador é premente na filosofia de Platão. E ele o é

principalmente ao que concerne ao seu papel de mediador. Obviamente que essa

afirmação significa, por um lado, o estabelecimento de um princípio ontológico e, por

outro lado, de uma questão política. O filósofo-mediador supõe o princípio metafísico

do Bem e implica na felicidade dos homens na polis.

Quanto ao princípio ontológico, Platão suprassume a tese parmenideana do ‘ser

é pensar’ e a da mutabilidade heracliteana do ‘vir-a-ser’. Trata-se do princípio da

contradição que supõe a compreensão do Ser ao Todo. Aquele que se reserva na alçada

do Todo é homem de doksa, olhar rasteiro e prejudicial à vida coletiva na polis. Esses

homens comumente se reservam tudo aquilo que lhe satisfazem momentaneamente.

Trata-se de homens passionais; valoram tudo aquilo que lhe proporcionam saciação

imediata; vivem no âmbito da opinião e se submetem ao olhar imediato das coisas

mundanas. O princípio ontológico platônico insiste, até nas suas obras de maturidade,

na possibilidade de edificação de uma sociedade estabelecida pela contradição, comum

e justa.

É nesse sentido que a necessidade do filósofo-educador se faz premente. Ele é a

própria mediação entre o imediato e o simples, próprio da opinião, com o universal e o

verdadeiro, relativo à episteme. Nesse aspecto, Platão assume que o filósofo-mediador-

educador é necessário. A construção de uma sociedade universal é a única possibilidade

de uma vida que se projeta. O filósofo, o mediador, o educador só o é na compreensão

vivencial no Ser. Nesse âmbito, o olhar é universal e verdadeiro. A educação filia-se à

episteme. Ela é estritamente cognoscente e sua finalidade é a felicidade. Alcança-se a

felicidade pela harmonia na physis entre o corpo e a alma. O mediado medeia o homem

consigo mesmo. Ele provoca o despertar ao iniciar os homens ao caminho do

conhecimento dos universais. Ele Propõe que os homens dialoguem consigo mesmos e

possam despertar por essa prática as essências que neles se encontram. Despertar o olhar

ao universal e sair da contingência mundana. Essa é tarefa do educador em Platão. E,

nesse sentido, rememorar Platão é visitar nós mesmos.

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Referência Bibliográfica

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