plano real e a financeirizaÇÃo do estado brasileiro

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Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC Centro Sócio Econômico - CSE Departamento de Economia e Relações Internacionais GUILHERME IRINEU DE JESUS VASCONCELOS PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO Florianópolis, 2021

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Page 1: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC Centro Sócio Econômico - CSE

Departamento de Economia e Relações Internacionais

GUILHERME IRINEU DE JESUS VASCONCELOS

PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

Florianópolis, 2021

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GUILHERME IRINEU DE JESUS VASCONCELOS

PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

Trabalho Conclusão do Curso de Graduação em Ciências Econômicas do Centro Sócio Econômico da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito para a obtenção do título de Bacharel em Ciências Econômicas.

Orientador: Prof. Dr. Nildo Domingos Ouriques

Florianópolis, 2021

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Guilherme Irineu de Jesus Vasconcelos

Título: Plano Real e a Financeirização do Estado Brasileiro

Florianópolis, 14 de maio de 2021.

O presente Trabalho de Conclusão de Curso foi avaliado e aprovado pela banca examinadora composta pelos seguintes membros:

Prof. (a) Nildo Domingos Ouriques, Dr. (a)

Universidade Federal de Santa Catarina

Prof. (a) Valdir Alvim da Silva, Dr. (a)

Universidade Federal de Santa Catarina

Prof. (a) Lauro Francisco Mattei, Dr. (a)

Universidade Federal de Santa Catarina

Certifico que esta é a versão original e final do Trabalho de Conclusão de Curso que foi julgado adequado para obtenção do título de Bacharel em Economia por mim e pelos demais membros da banca examinadora.

____________________________

Prof.(a) Nildo Domingos Ouriques Dr.(a)

Orientador (a)

Florianópolis, 2021

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer aos meus pais por tudo que fizeram por mim, sem eles tudo seria mais difícil.

Ao meu irmão, pela parceria de sempre.

Ao meu orientador, Nildo Ouriques, por fazer despertar meu senso crítico e me fazer sentir um rapaz latino-americano.

À minha linda Marina, que me acompanhou durante toda a graduação.

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RESUMO

O Plano Real não foi apenas um plano de estabilização para controle da inflação, mas sim uma série de políticas adotadas com base nos interesses do sistema financeiro internacional e as frações do capital nacional. Busca-se compreender o atual momento econômico brasileiro por meio do pacto de classes que se estabeleceu no Plano Real e os governos que o sucederam. O presente trabalho elucida o plano dentro dos marcos do Consenso de Washington e o modelo econômico adotado por ele para aprofundar a financeirização do Estado. Assim, embora eficiente no combate à inflação, demonstram-se alguns dos problemas estruturais herdados da concepção do Real e suas políticas, entre eles o endividamento do Estado, a concentração bancária, as privatizações, a reestruturação produtiva etc. Diante disso, verifica-se que o modelo de estabilização não trouxe o desenvolvimento prometido e aprofundou ainda mais a financeirização do Estado e, sobretudo, a dependência econômica e o subdesenvolvimento do país.

Palavras-Chave: Plano Real. Financeirização do Estado. Dependência econômica. Pacto de classe.

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ABSTRACT

The Real Plan was not just a stabilization plan to control inflation, but a series of policies adopted according to the interests of the international financial system and the fractions of the national capital. We seek to understand the current Brazilian economic moment through the class pact established in the Real Plan and the governments that succeeded it. The present article explains the plan within the Washington Consensus landmarks and the economic model adopted by it to deepen the financialization of the state. Thus, although it was efficient in combating inflation, some of the structural problems inherited from the conception of the Real plan and its policies were demonstrated, including state debt, bank concentration, privatizations, and productive restructuring. Therefore, it appears that the stabilization model did not bring the promised development and further intensified the financialization of the state and, above all, the country's economic dependence and underdevelopment.

Keywords: Real Plan. Financialization of the state. Economic dependence. Class pact.

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Inflação, PIB e taxa de investimento nos governos Figueiredo e Sarney..............26Tabela 2 - Alíquotas de Importação de Setores Selecionados — 1990-1994 (em %).............28Tabela 3 - Economia Brasileira: Síntese de Indicadores Macroeconômicos — 1990-1994....30Tabela 4 - Variação anual de preços 1990-1998 (%)...............................................................39Tabela 5 - Montantes acumulados na conta de transações correntes nos períodos pré e pós-Real (em US$ bilhões)..............................................................................................................40Tabela 6 - Montantes na balança de capitais nos períodos pré e pós-Real (em US$ bilhões). 40Tabela 7 - Relação Dívida Líquida do Setor Público – 1994-1998 (% do PIB)......................42Tabela 8 - Resultado do Programa Nacional de Desestatização 1991-jul./99 – US$ milhões.46Tabela 9 - Privatizações – resultados gerais acumulados – 1991 – jul./ - US$ milhões..........47Tabela 10 – Número de Instituições Bancárias........................................................................48Tabela 11 – Bancos nacionais com controle estrangeiro no total dos bancos múltiplos e comerciais.................................................................................................................................48Tabela 12 – Comparativo de Juros, Amortização e Estoque da Dívida (em bilhões de reais) 76Tabela 13 – Custo financiamento do Banco Central pelo Tesouro Nacional..........................77

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Contabilização do juros como se fosse amortização..............................................75Figura 2 - Prazo de vencimento dos títulos em posse dos detentores da dívida pública.........76Figura 3 - Orçamento Geral da União 2020: Gastos com a dívida..........................................78Figura 4– Detentores da dívida pública interna.......................................................................79

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Comportamento da inflação mensal – IGP-DI – 1985-1996 (%)..........................31Gráfico 2 - Taxa de câmbio comercial entre 1992 a 2002......................................................35Gráfico 3 - Dívida Externa Líquida/Exportações de Bens – 1981-2002.................................41Gráfico 4 – Resultado Fiscal Primário 1997-2020..................................................................58Gráfico 5 – Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF).............................................................60Gráfico 6 – Indústria de transformação (%PIB) - preços correntes, 1947-2020....................65Gráfico 7 – Taxa de câmbio comercial R$/US$ - 1990-2020.................................................66Gráfico 8 – Investimento líquido em máquinas e equipamentos............................................66Gráfico 9 - PIM PF - Pesquisa Industrial Mensal de Produção Física....................................67Gráfico 10 – Importação e Exportação de Máquinas e Equipamentos..................................68Gráfico 11 – Taxa de juros Selic 1999-2020...........................................................................72Gráfico 12 - Dívida Interna Líquida – 1990-2020..................................................................72

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO............................................................................................................10

1.1 PROBLEMÁTICA........................................................................................................10

1.2 OBJETIVOS..................................................................................................................11

1.2.1 Objetivo Geral............................................................................................................11

1.2.2 Objetivos Específicos.................................................................................................11

1.3 JUSTIFICATIVA..........................................................................................................11

1.4 METODOLOGIA..........................................................................................................12

2 REFERENCIAL TEÓRICO.......................................................................................15

2.1 NEOLIBERALISMO, PLANO REAL E O PROCESSO INFLACIONÁRIO.............15

2.2 TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA...............................................................16

2.2.1 A superexploração da força de trabalho.....................................................................18

2.2.2 Subimperialismo.........................................................................................................19

3 FUNDAMENTOS OCULTOS DO PLANO REAL..................................................21

3.1 A LIBERALIZAÇÃO ECONÔMICA..........................................................................21

3.2 O PANORAMA INTERNO E CONJUNTURAL DO PLANO REAL........................24

3.3 A FORMULAÇÃO DO PLANO...................................................................................32

3.4 A INFLAÇÃO E O CONFLITO DE CLASSE.............................................................36

3.5 PLANO REAL, SEUS RESULTADOS E CRÍTICAS.................................................38

3.5.1 As refomas do Estado.................................................................................................42

3.5.2 As privatizações.........................................................................................................45

3.6 AS FASES DO PLANO................................................................................................49

4 O PETUCANISMO E O PLANO REAL...................................................................53

4.1 A CONTINUAÇÃO DO PLANO REAL PELO PT E A CONSOLIDAÇÃO DO MODELO LIBERAL PELOS SUCESSIVOS GOVERNOS..................................................54

4.1.1 A REDUÇÃO DA CAPACIDADE PRODUTIVA E O AUMENTO DA DEPENDÊNCIA ECONÔMICA.............................................................................................60

4.2 A COOPTAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA..................................................69

5 DO PLANO REAL AO GOVERNO BOLSONARO...............................................71

6 CONCLUSÃO..............................................................................................................81

REFERÊNCIAS......................................................................................................................84

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1 INTRODUÇÃO

1.1 PROBLEMÁTICA

O Plano Real foi um marco na história econômica do Brasil, tendo em vista a

estabilização dos preços. Por isso, boa parte da teoria econômica mostra-o como o Plano que

deu certo, deixando de lado as consequências do mesmo, além das diversas interpretações a

respeito do endividamento do Estado, desindustrialização, aprofundamento da dependência

etc. Diante disso, cabe a pergunta: o Plano Real deu certo mesmo?

Há diversas interpretações sobre o Plano Real e seus desdobramentos. O ex-presidente

Fernando Henrique Cardoso (FHC), em entrevista, relata que o Plano Real respondeu a uma

demanda da sociedade (CARDOSO, 2009). O economista Gustavo Franco, em comemoração

aos 20 anos do plano afirma que faria tudo de novo (FRANCO, 2014). Contudo, é preciso

observar o plano através de uma investigação material da realidade social, pois os

instrumentos econômicos e políticos retratam o plano fenomênico da realidade.

O Brasil é um país dependente e subdesenvolvido, alguns entraves econômicos e

sociais aparecem na dinâmica econômica do mesmo e inviabilizam o desenvolvimento

qualitativo e quantitativo. Um desses entraves está em perfeita conexão com o grau de

financeirização do Estado e da dependência produtiva do país. Assim, os pilares sobre os

quais será analisado criticamente o Plano Real serão as políticas implementadas pelo mesmo.

Dentre as políticas, está o tripé macroeconômico composto por câmbio flutuante, metas de

inflação e superávit primário, de tal modo que essas políticas atingem o setor financeiro e a

dinâmica de acumulação no Brasil.

A implantação do Plano Real ocorreu no período de ascensão da ideologia neoliberal,

aliado ao elevado fluxo de entrada de capital internacional, de tal modo que fomentou as

políticas do plano e contribuiu para redução da inflação. No entanto, os custos do plano fazem

parte dos pressupostos ocultos, mantidos por sucessivos governos, que aprofundam o

subdesenvolvimento e a dependência econômica brasileira.

No entanto, este trabalho não tem como objetivo estudar a desindustrialização como

um todo, mas mostrar que a mesma tem relação com as políticas implementadas pós-Plano

Real e com elevado grau de financeirização da economia, o chamado rentismo. Conforme os

fatos apresentados, tem sido intensa a discussão na literatura econômica sobre os efeitos das

políticas adotadas pós-Plano Real sobre o setor externo da economia brasileira. É inegável que

os esforços empregados na estabilização de preços trouxeram tranquilidade na dinâmica

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econômica. Entretanto, os efeitos continuados das elevadas taxas de juros e, por consequência,

de taxas de câmbio não competitivas, vêm penalizando o setor produtivo. Diante disso, cabe

trazer ao estudo qual a relação da dívida pública brasileira, no chamado rentismo, com o

aprofundamento do subdesenvolvimento. Não obstante, é importante ressaltar como

problemática de pesquisa neste trabalho: o desenvolvimento capitalista aprofundou a

financeirização do Estado pós-Plano Real?

1.2 OBJETIVOS

1.2.1 Objetivo Geral

Analisar o modelo econômico imposto desde o Plano Real, o qual consolidou a dívida pública como um dos principais instrumentos de transferência de riqueza, além de expansão da financeirização do Estado brasileiro.

1.2.2 Objetivos Específicos

a) Identificar as principais políticas econômicas que foram responsáveis pelo nível de

endividamento e expansão da financeirização do Estado, o chamado rentismo;

b) Apontar a continuação desse modelo pelos sucessivos governos, vinculados a agenda

neoliberal imposta por FMI e Banco Mundial.

c) Demonstrar como o sistema da dívida pública aprofunda a dependência produtiva

brasileira por causa da predominância de uma economia “rentística”.

1.3 JUSTIFICATIVA

O Brasil está diante de um brutal endividamento acumulado nos últimos anos, por

diversos fatores, compreender quais são os mesmos é de suma importância para elucidar

diversas falácias e discursos que se apresentam como imparciais, deixando à deriva o debate

para as forças dominantes do debate político e econômico.

Portanto, estudar as possíveis causas de financeirização do Estado e sua concepção é

de suma importância ao desenvolvimento de uma nação dependente e subdesenvolvida como

o Brasil. Por outro lado, o aprofundamento teórico do tema acrescenta à pesquisa acadêmica,

auxiliando para a formulação de um novo consenso, a fim de gerar políticas de transformações

sociais.

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Desde o Plano Real até a conjuntura atual, o nível de internacionalização da economia

aumenta expressivamente. Além disso, a dependência e o subdesenvolvimento vêm se

aprofundando, maneira pela qual afetam negativamente diversos indicadores sociais. Posto

isso, pretende-se contribuir de forma a elucidar cada um desses temas.

1.4 METODOLOGIA

A forma metodológica que será abordada nesse trabalho terá como base a concepção

marxista no que diz respeito ao método, ou seja, o método crítico dialético. Na concepção

marxista da dialética as coisas são analisadas em si, em seu conceito (KOSIK, 1985). Assim,

de acordo com a passagem de Kosik (1985 p. 13):

A dialética trata da coisa em si. Mas a coisa em si não se manifestaimediatamente ao homem. Para chegar à sua compreensão, é necessáriofazer não só um certo esforço, mas também um détour. Por este motivo opensamento dialético distingue entre representação e conceito da coisa, comisso não pretendendo apenas distinguir duas formas e dois graus deconhecimento da realidade, mas especialmente e sobretudo duas qualidadesda práxis humana.

Segundo Kosik, a realidade é a unidade do fenômeno e da essência. Assim, a essência

pode ser tão irreal quanto o fenômeno, assim como o fenômeno e a essência quando se

apresentam isolados e, estando isolados, sejam considerados a única realidade. Todavia, ao

compreendermos o conceito da “coisa” estamos compreendendo o seu conceito de fato, pois

conforme demonstra Kosik (1985 p. 13):

A característica precípua do conhecimento consiste na decomposição do todo. A dialética não atinge o pensamento de fora para dentro, nem de imediato, nem tampouco constitui uma de suas qualidades; o conhecimento é que é a própria dialética em uma das suas formas; o conhecimento é a decomposição do todo. O “conceito” e a “abstração”, em uma concepção dialética, têm o significado de método que decompõe o todo para poder reproduzir espiritualmente a estrutura da coisa, e, portanto, compreender a coisa.

De acordo com Kosik, o princípio metodológico da investigação dialética da realidade

social é o ponto de vista da totalidade concreta, significando que cada fenômeno pode ser

compreendido como momento do todo. Portanto, a posição da totalidade encontra-se em

antítese ao empirismo. Este considera as manifestações fenomênicas e casuais, porém não

compreende os processos evolutivos da realidade.

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13

No entanto, algumas observações são importantes para compreensão da totalidade

concreta, porque a compreensão da mesma distingue-se da concepção “que tudo está em

conexão com tudo”. Ainda, a totalidade não significa que o todo é mais importante que as

partes.

A dialética da totalidade concreta não é um método que pretenda ingenuamente conhecer todos os aspectos da realidade, sem exceções, e oferecer um quadro “total” da realidade, na infinidade dos seus aspectos e propriedades; é uma teoria da realidade e do conhecimento que dela se tem como realidade. A totalidade concreta não é um método para captar e exaurir todos os aspectos, caracteres, propriedades, relações e processos da realidade; é a teoria da realidade como totalidade concreta. Se a realidade é entendida como concreticidade, como um todo que possui sua própria estrutura (e que, portanto, não é caótico), que se desenvolve (e, portanto, não é imutável nem dado uma vez por todas), que se vai criando (e que, portanto, não é um todo perfeito e acabado no seu conjunto e não é mutável apenas em suas partes isoladas, na maneira de ordená-las), de semelhante concepção da realidade decorrem certas conclusões metodológicas que se convertem em orientação heurística e princípio epistemológico para estudo, descrição, compreensão, ilustração e avaliação de certas seções tematizadas da realidade, quer se trate da física ou da ciência literária, da biologia ou da política econômica, de problemas teóricos da matemática ou de questões práticas relativas à organização da vida humana e da situação social (KOSIK, 1985, p. 36).

Ademais, a totalidade não está relacionada à soma de uma infinidade de fatos e

partes que se encontram na “aparência da realidade”. Portanto, “totalidade não significa todos

os fatos. Totalidade significa: realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do

qual um fato qualquer (classes de fatos, conjuntos de fatos) pode vir a ser racionalmente

compreendido” (KOSIK, 1985, p. 35).

Por outro lado, em “Ciência da Lógica”, Hegel (2011) demonstra como o pensamento

lógico funciona e quais suas determinações essenciais. Para o autor o pensamento científico é

também um pensamento filosófico, pois o primeiro pertence à estrutura do pensamento,

caracterizando a lógica, e o segundo estuda a lógica mesma. Todavia, é a partir da análise da

estrutura do pensamento que Hegel deduz o que pode ser chamado de método. Segundo o

autor:

A determinidade da ideia e todo o percurso dessa determinidade constitui o objeto da ciência lógica, de cujo percurso nasceu para si a ideia absoluta mesma; para si, porém, ela se mostrou como o seguinte: a determinidade não tem a figura de um conteúdo, mas pura e simplesmente como forma, a ideia é dessa maneira como a ideia universal pura e simplesmente. O que ainda tem de ser considerado, portanto, não é tanto um conteúdo como tal, mas o universal de sua forma - isto é, o método (HEGEL, 2011, p. 265, grifo do autor).

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Karl Marx, em sua obra “Miséria da Filosofia”, demonstrou resumidamente a dialética

de Hegel. Assim, a dialética de Hegel consistiria em um processo progressivo do abstrair até

se chegar ao estado puro da abstração, sendo esta a categoria lógica. A partir da definição de

tal categoria, compreende-se a substância de todas as coisas, por meio da qual seria possível

encontrar a transformação delas, ou seja, o método absoluto (MARX, 2009).

Diante do método dialético, a investigação dos fenômenos sociais

com o objetivo de chegar aos fatos concretos por meio do reconhecimento da realidade como

totalidade concreta e dialética cabe ao pesquisador. Assim, a pesquisa fundamentada por este

trabalho terá por base: (i) trazer o Plano Real para a compreensão da atual dependência

econômica e do subdesenvolvimento; (ii) evidenciar como o modelo econômico imposto

desde o Plano Real foi responsável pelo aumento do grau financeirização do Estado brasileiro,

aprofundando uma economia rentista. Portanto, busca-se inserir o Plano Real na realidade

social e histórica brasileira. Desse modo, a pesquisa desenvolvida neste trabalho adquire

característica descritiva, tendo em vista descrever fenômenos e estabelecer relações entre as

variáveis econômicas, políticas, culturais etc.

Em relação ao primeiro objetivo, destinado a identificar as principais políticas

econômicas que foram responsáveis pelo nível de industrialização e internacionalização da

economia atual, será realizado um estudo que permita contextualizar os diferentes governos e

políticas adotadas pelos mesmos, fazendo, até mesmo, um comparativo histórico. Assim, o

presente trabalho terá como base dados dos órgãos nacionais de pesquisa, tais como Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Pesquisa de Inovação Tecnológica (PINTEC),

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEADATA), Ministério da Indústria, Comércio

Exterior e Serviços (MDIC), Banco Central do Brasil (BACEN) etc.

No entanto, tanto no primeiro quanto nos demais objetivos deste trabalho abordar-se-á

o Plano Real e a compreensão do mesmo historicamente, por meio da Teoria Marxista da

Dependência. Assim, seguirá a proposta metodológica exposta até aqui, ou seja, o método

dialético. Adiante será abordar-se-á o referencial teórico, de tal modo que será apresentado as

contribuições para elucidação desse trabalho.

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2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 NEOLIBERALISMO, PLANO REAL E O PROCESSO INFLACIONÁRIO

O período de ascensão do neoliberalismo no Brasil e no mundo será analisado de

acordo com Filgueiras (2000). Este demonstra que a partir dos anos 1970 a doutrina

neoliberal intensifica-se pelo continente. Destaca-se que no âmbito da América Latina, a

proposta neoliberal consolidou-se no Consenso de Washington, pois foram adotados planos

de estabilização por meio de valorização da moeda nacional e entrada de capitais

especulativos, assim como abertura da economia. Some-se a isso que houve intensa

desregulação comercial e financeira, com reformas estruturais do Estado, como a

privatização, a fim de minimizar sua participação na economia (FILGUEIRAS, 2000).

Diante disso, toda essa transformação do capitalismo internacional é expressa no que

pode ser conhecido popularmente por globalização. De modo que tal processo é definido por

Filgueiras (2000, p. 60):

[...] a competição intercapitalista, tendo por arma as inovações de todos os tipos, torna-se cada vez mais feroz e de fato mundializa-se, quase que sem limites impostos pelas barreiras nacionais; que se acelera fantasticamente o desenvolvimento das forças produtivas e cresce o volume e o valor dos meios de produção por trabalhador; que se intensifica a concentração e a centralização de capitais, com o domínio mundial de poucas empresas gigantescas em cada ramo de produção; que a esfera financeira assume um papel preponderante no conjunto do funcionamento do sistema, com um superdimensionamento da acumulação “fictícia”, num ambiente cada vez mais instável e com crescimento da incerteza e do risco; e, por fim, que se potencializa a possibilidade da crise e os seus efeitos destrutivos em escala planetária.

Todavia, segundo Filgueiras (2000), diante da predominância da esfera financeira no

processo de globalização, as barreiras nacionais foram reduzidas, fazendo intensificar a

entrada dos mercados emergentes, a partir dos anos de 1990, nos mercados internacionais. A

nova conjuntura permitiu aos países dependentes elaborarem planos de estabilização apoiados

nos fluxos internacionais de capitais de curto prazo, de modo a enfraquecer a autonomia dos

governos dos países dependentes em fazer políticas macroeconômicas (FILGUEIRAS, 2000).

Diante das abordagens destacadas por Filgueiras, compreender-se-á a ideologia e as

políticas adotadas pelo plano como forma de compreender, também, a continuação desse

modelo econômico. Desse modo, ajudarão a consolidar a pesquisa a fim de elucidar melhor o

período do Plano Real e as políticas que decorreram desse plano. Adiante, veremos as

Page 18: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

16

contribuições teóricas da teoria marxista da dependência para a melhor compreensão do

trabalho.

2.2 TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA

Diante da análise do processo de dependência econômica do Brasil, o projeto terá

como embasamento teórico a Teoria Marxista da Dependência (TMD). Esta foi desenvolvida

no fim dos anos 1960 por teóricos como Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Vânia

Bambirra, entre outros. A TMD nasce em contraposição ao desenvolvimentismo. Assim, a

teoria desenvolveu uma análise crítica e marxista dos processos de acumulação na periferia do

capitalismo em relação à reprodução do subdesenvolvimento.

Diferentemente da Cepal, que acreditava num processo gradual, e em etapas, do

subdesenvolvimento até o desenvolvimento, a TMD procura compreender esse processo como

oposição e distinção, ainda que vinculadas. Diante disso, procura-se compreender o

subdesenvolvimento não como uma etapa precedente, mas sim um resultado do

desenvolvimento capitalista global. No entanto, a despeito da

noção de desenvolvimento autônomo, a TMD acredita que a superação da dependência não

seria possível por meio do capitalismo, mas por meio de uma transformação radical da

realidade dos países subdesenvolvidos, na qual o foco seria a luta pelo socialismo. Logo, a

distinção fundamental entre a CEPAL e a TMD é que esta explica a troca desigual entre

países de acordo com a teoria do valor. Por outro lado, os cepalinos examinam os diferentes

níveis de incrementalização do progresso técnico

Analisando a história da industrialização latino-americana, apesar das similaridades

aparentes, ela não é da mesma natureza da industrialização clássica nos países centrais.

Conforme demonstra Marini (2005, p. 169-170):

A industrialização latino-americana se dá sobre bases distintas. A compressão permanente que exercia a economia exportadora sobre o consumo individual do trabalhador não permitiu mais do que a criação de uma indústria débil, que só se ampliava quando fatores externos (como as crises comerciais, conjunturalmente, e a limitação dos excedentes da balança comercial, pelas razões já assinaladas) fechavam parcialmente o acesso da esfera alta de consumo para o comércio de importação. É a maior incidência desses fatores, como vimos, o que acelera o crescimento industrial, a partir de certo momento, e provoca a mudança qualitativa do capitalismo dependente. A industrialização latino-americana não cria, portanto, como nas economias clássicas, sua própria demanda, mas nasce para atender a uma demanda pré-existente, e se estruturará em função das exigências de mercado procedentes dos países avançados.

Page 19: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

17

Segundo Marini, as economias da América Latina não chegaram ao patamar de

uma economia industrial plenamente desenvolvida, por mais relevante que fosse o

desenvolvimento industrial e a extensão do mercado interno, não houve uma mudança

qualitativa no desenvolvimento econômico desses países. Contudo, nesses países, a indústria

continuou tendo um papel subordinado diante da produção e exportação de bens

primários, sendo estes o centro vital do processo de acumulação (MARINI, 2005).

A partir do final do século XIX se não houvesse as nações dependentes que ofertassem

bens primários de subsistência em grande escala, o desenvolvimento industrial moderno seria

significativamente afetado, pois só assim fora possível aprofundar a divisão do trabalho e

especializar os países industriais como produtores mundiais de manufaturas (MARINI,

2005). Contudo, sendo uma necessidade histórica, a divisão internacional do trabalho fora

determinante para acumulação de capital. Entretanto, a forma como se expressa o capitalismo

na América Latina distingue-se da dinâmica da acumulação nos países centrais. De acordo

com Marini (2005, p. 144):

O que importa considerar aqui é que as funções que cumpre a AméricaLatina na economia capitalista mundial transcendem a mera resposta aosrequisitos físicos induzidos pela acumulação nos países industriais. Maisalém de facilitar o crescimento quantitativo destes, a participação daAmérica Latina no mercado mundial contribuirá para que o eixo daacumulação na economia industrial se desloque da produção de mais-valiaabsoluta para a de mais-valia relativa, ou seja, que a acumulação passe adepender mais do aumento da capacidade produtiva do trabalho do quesimplesmente da exploração do trabalhador. No entanto, o desenvolvimentoda produção latino-americana, que permite à região coadjuvar com essamudança qualitativa nos países centrais, dar-se-á fundamentalmente combase em uma maior exploração do trabalhador. É esse caráter contraditórioda dependência latino-americana, que determina as relações de produção noconjunto do sistema capitalista, o que deve reter nossa atenção.

Contudo, a industrialização latino-americana, a brasileira em particular, encontra-se

dependente da dinâmica do capitalismo internacional:

A industrialização latino-americana corresponde assim a uma nova divisão internacional do trabalho, em cujo marco são transferidas para os países dependentes etapas inferiores da produção industrial (observe-se que a siderurgia, que correspondia a um sinal distintivo da economia industrial clássica, generalizou-se a tal ponto que países como Brasil já exportam aço), sendo reservadas para os centros imperialistas as etapas mais avançadas (como a produção de computadores e a indústria eletrônica pesada em geral, a exploração de novas fontes de energia, como a de origem nuclear etc.) e o monopólio da tecnologia correspondente. Indo ainda mais longe, pode-se distinguir na economia internacional escalões, nos quais vão sendo recolocados não só os novos países industriais, mas também os mais antigos. É assim como, na produção de aço e na de veículos automotores, a Europa Ocidental e o Japão competem vantajosamente com os mesmos Estados Unidos, mas não

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18

conseguem ainda fazê-lo no que se refere à indústria de máquinas e ferramentas, principalmente as automatizadas. O que temos aqui é uma nova hierarquização da economia capitalista mundial, cuja base é a redefinição da divisão internacional do trabalho ocorrida nos últimos 50 anos (MARINI, 2005, p. 174-175).

Ao analisar as trocas desiguais, as mesmas estão relacionadas com a inserção da

economia brasileira na divisão internacional do trabalho e a expansão do mercado mundial. A

América Latina é a responsável direta da transformação das condições técnicas – passagem

para a produção de mais-valia relativa – nas economias centrais, pois fornece as mercadorias

que incidem nos bens-salários (alimentos e gêneros similares) com preços relativamente

baixos, modificando a taxa de mais-valia.

2.2.1 A superexploração da força de trabalho

A análise da superexploração da força de trabalho pode ser compreendida por meio

da obra “A Dialética da Dependência” de Ruy Mauro Marini. Este analisa a América Latina e

sua condição econômica, social e política em relação ao método marxista de análise, buscando

elucidar a forma particular do desenvolvimento capitalista na América Latina.

A análise de Marini a respeito das economias dependentes pauta-se em um nível de

abstração diferente de Marx. Enquanto este descreve o modo de produção capitalista como

totalidade – nível de abstração mais elevado, aquele apontou como essa totalidade insere-se

na América Latina – nível de abstração menos elevado. Diante disso, Marini procura analisar

a dependência estrutural no âmbito da divisão internacional do trabalho.

A categoria superexploração se expressa em três pilares conjuntamente, os quais são:

aumento da jornada de trabalho, maior intensidade do ritmo na linha de produção e a redução

do fundo de consumo do trabalhador, transformando em fundo de acumulação do capital,

sendo este a remuneração abaixo do valor da força de trabalho. Assim, configura-se em maior

desgaste da força de trabalho e um “modo de produção fundado exclusivamente na maior

exploração do trabalhador e não no desenvolvimento de sua capacidade produtiva”,

ocasionando seu esgotamento prematuro (MARINI, 2000, p.125).

A participação da América Latina no comércio internacional facilitou o crescimento

quantitativo dos países industriais. Além disso, foi determinante para que o modo de

acumulação na economia industrial se deslocasse da produção de mais-valia absoluta para a

de mais-valia relativa, isto é, “que a acumulação passe a depender mais do aumento da

capacidade produtiva do trabalho do que simplesmente da exploração do trabalhador”

(MARINI, 2000, p.113). Consequentemente, a expansão da oferta de bens salário que a

Page 21: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

19

América Latina fornece permitiu a redução do valor da força de trabalho nos países

industriais, reduzindo o tempo de trabalho necessário relativamente ao excedente e ampliando

a massa de mais-valia apropriada.

A inserção da América Latina na economia capitalista responde às exigências da passagem para a produção de mais-valia relativa nos países industriais. Esta é entendida como uma forma de exploração do trabalho assalariado que, fundamentalmente com base na transformação das condições técnicas de produção, resulta da desvalorização real da força de trabalho. O forte incremento da classe operária industrial e, em geral, da população urbana ocupada na indústria e nos serviços, que se verifica nos países industriais no século passado, não poderia ter acontecido se estes não contassem com os meios de subsistência de origem agropecuária, proporcionados de forma considerável pelos países latino-americanos. Isso foi o que permitiu aprofundar a divisão do trabalho e especializar os países industriais como produtores mundiais de manufaturas. Mas não se reduziu a isso a função cumprida pela América Latina no desenvolvimento do capitalismo: à sua capacidade para criar oferta mundial de alimentos, que aparece como condição necessária de sua inserção na economia internacional capitalista, prontamente será agregada a contribuição para a formação de um mercado de matérias-primas industriais, cuja importância cresce em função do mesmo desenvolvimento industrial (MARINI, 2005, p. 143).

Portanto, Marini denominou de superexploração da força de trabalho esse fenômeno,

que implica ao trabalhador ganhar um salário inferior ao mínimo necessário à sua

sobrevivência e reprodução. Assim, por meio da elevação da intensidade do trabalho, da

prolongação da jornada de trabalho ou da redução do consumo do trabalhador para além do

mínimo necessário à sua sobrevivência que se faz possível compensar a perda no comércio

internacional. Os capitalistas latino-americanos não buscam contrapor tais perdas por meio do

desenvolvimento da capacidade produtiva do trabalho, mas sim pelo pagamento da força de

trabalho a um preço inferior ao seu valor.

2.2.2 Subimperialismo

Ainda, cabe destacar a teoria do subimperialismo de Marini. Assim, entende-se

subimperialismo o modo pelo qual as economias dependentes chegam à etapa dos monopólios

e do capital financeiro. Assim, o aumento dos lucros para determinadas classes internas se

expressa através da expansão de mercado, mas sem alterar a forma dominante dos países

imperialistas na economia mundial. De tal modo que Marini constatou dois pontos centrais ao

subimperialismo. O primeiro destaca-se pela busca da hegemonia regional. Já o segundo

baseia-se na autonomia relativa frente ao imperialismo dominante, por meio da cooperação

Page 22: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

20

antagônica. Portanto, trata-se assegurar as condições mais favoráveis para a reprodução do

capital da burguesia dos países subdesenvolvidos - sendo neste trabalho a burguesia brasileira.

O subimperialismo implica dois componentes básicos: por um lado, uma

composição orgânica média na escala mundial dos aparatos produtivos nacionais e,

por outro lado, o exercício de uma política expansionista relativamente autônoma,

que não apenas é acompanhada de uma maior integração ao sistema produtivo

imperialista, senão que se mantém no marco da hegemonia exercida pelo

imperialismo à escala internacional (MARINI, 1977, pág. 31).

Não obstante, destaca Marini sobre o caso brasileiro e o seu papel subalterno, pois “o

subimperialismo brasileiro implica uma política de subpotência; mas a política de subpotência

praticada pelo Brasil não nos dá a chave da etapa subimperialista em que este tem entrado ”

(MARINI, 1977). Contudo, a definição mais resumida de Marini acerca de subimperialismo

pode ser esta:

O subimperialismo corresponde à expressão perversa da diferenciação sofrida pela economia mundial, como resultado da internacionalização da acumulação capitalista, que contrapôs ao esquema simples da divisão do trabalho – cristalizado na relação centro-periferia, que preocupava a Cepal – um sistema de relações muito mais complexo. Nele, a difusão da indústria manufatureira, elevando a composição orgânica média nacional do capital, isto é, a relação existente entre meios de produção e força de trabalho, dá lugar a subcentros econômicos (e políticos), dotados de relativa autonomia, embora permaneçam subordinados à dinâmica global imposta pelos grandes centros [...] (MARINI, 1992, p. 137).

Embora utilizando contribuições de diversos autores, a partir desta proposta teórica

procura-se analisar histórica e politicamente o desenvolvimento econômico e social brasileiro

e o aprofundamento da dependência econômica no período pós-Plano Real. Posto isso,

utilizaremos os escritos de Ruy Mauro Marini para a construção da base teórica da realidade

brasileira, procurando estudar a dependência e o subdesenvolvimento pela análise das classes

sociais. Por conseguinte, será abordado os pressupostos ocultos do Plano Real, explicando os

mecanismos políticos, técnicos e conjunturais que levaram ao mesmo.

Page 23: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

21

3 FUNDAMENTOS OCULTOS DO PLANO REAL

De acordo com Kosik (1985), o princípio metodológico da investigação dialética da

realidade social é o ponto de vista da totalidade concreta, caracterizando que cada fenômeno

pode ser compreendido como momento do todo. Desse modo, para o entendimento concreto

do Plano Real é preciso superar a análise fenomenológica do mesmo, fazendo com que o

ponto de vista da totalidade concreta permita compreender o respectivo plano na inserção do

contexto internacional vigente em sua época. No entanto, a abordagem deve seguir para uma

esfera mais restrita, sendo esta a esfera nacional e o contexto latino-americano.

3.1 A LIBERALIZAÇÃO ECONÔMICA

Ao final do século XX assistiu-se a um processo de profundas transformações

econômicas, sociais e políticas. Esses processos ocorreram tanto nos países centrais quanto

nos periféricos. A crise do fordismo, ao final dos anos 1960, e o fim do acordo de Bretton

Woods, no início da década de 1970, manifestam o processo de transformação do sistema de

produção e organização social da dinâmica capitalista. Os resultados dessas transformações se

expressam em três fenômenos tratados na literatura: o neoliberalismo, a reestruturação

produtiva e a globalização (FILGUEIRAS, 2012).

Busca-se se ater neste trabalho aos fenômenos neoliberalismo e globalização, pois

esses dois fenômenos têm uma relação direta com o Plano Real e as políticas decorrentes do

mesmo. O neoliberalismo como fenômeno político e ideológico é disseminado pelo mundo ao

final da década de 1970, caracterizando-se como um guia prático e teórico dos governos,

partidos, mundo acadêmico etc.

Aclamado de forma dominante nas academias e demais centros de produção de conhecimento, foi vulgarizado para o grande público, com apoio e influência decisivos da mídia. Os seus princípios passaram a ser aceitos, consciente ou inconscientemente, pela maior parte da população, evidenciando-se, assim, a constituição de uma hegemonia na forma de se pensar a vida em sociedade, com influência crucial nas ações cotidianas dos indivíduos. Em suma, o neoliberalismo assumiu a condição de hegemonia cultural, no sentido mais abrangente que este conceito possa ter (FILGUEIRAS, 2012, p. 43).

Em oposição a certa forma de intervenção estatal, caracterizando-se precisamente o

Estado de bem-estar social, a atuação do Estado no aspecto econômico limita-se à função de

que não atrapalhem o livre mercado – não gerando regulação econômica. Qualquer

Page 24: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

22

intervenção geraria distorções na dinâmica econômica que inviabilizariam a “eficiência” dos

mercados.

A decorrência dessa visão se expressa, do ponto de vista econômico, na recusa em aceitar o exercício de políticas ativas por parte do Estado; quer sejam macroeconômicas, no sentido de estimular em geral a atividade produtiva e o emprego, quer sejam políticas setoriais (industrial, por exemplo) e regionais. Em ambos os casos, segundo o neoliberalismo, o resultado final seria um desastre; porque a tentativa de impulsionar a economia, através de políticas monetárias e fiscais, terminaria apenas com mais inflação sem, contudo, reduzir o patamar de desemprego, enquanto o apoio a regiões e setores específicos implicaria ineficiências e desperdícios, em virtude da distorção que provocaria no “livre” funcionamento do mercado (FILGUEIRAS, 2012, p. 45).

Contrapondo-se à visão intervencionista por parte do Estado, o objetivo primordial

da política econômica seria assegurar a defesa da moeda, ou seja, o Estado seria responsável

pela estabilidade de preços. Além disso, garantir o cumprimento dos contratos e da livre

concorrência. Por outro lado, no plano internacional caracteriza-se pela livre mobilidade de

capitais e mercadorias por meio da não restrição ao comércio e a livre circulação do capital

financeiro.

Cabe destacar a contradição do que é feito na prática e o que é disseminado pelo

neoliberalismo, pois do ponto de vista da ação política não se observa o fim da intervenção do

Estado na economia, porém há uma reorientação da intervenção estatal. Assim, destaca

Filgueiras (2012, p. 47):

Os extraordinários gastos militares do Estado americano durante o Governo Reagan, reconhecidamente neoliberal, e o socorro dado aos bancos no Brasil pelo Governo FHC (nem tanto assumido) através do Programa de Restruturação Bancária (Proer), evidenciam que, na realidade, essa contradição – entre o discurso liberal e uma prática intervencionista – explicita o que é essencial e o que o discurso formal tenta esconder: a doutrina neoliberal [...] é objetivamente coerente e funcional e se ajusta perfeitamente à sustentação e legitimação de todas as políticas que favorecem o capital em sua correlação de forças com o trabalho, tanto no interior do espaço fabril quanto no conjunto da sociedade.

Entretanto, diante da crise econômica nos países centrais nos anos 1970, e com o

esgotamento do fordismo, o neoliberalismo saiu do ostracismo político que esteve durante

todos os “anos de ouro” do desenvolvimento capitalista, difundindo-se como uma doutrina

atual e totalmente aplicável a realidade dos países – sobretudo aos subdesenvolvidos.

Ao fim dos anos 1970 o mundo contemplou o desmoronamento da ordem

internacional construído no pós-Guerra a partir do acordo de Bretton Woods. No plano

internacional, era o fim da conversibilidade do dólar em ouro e do sistema de taxas de câmbio

Page 25: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

23

fixas. Todavia, a partir dos anos 1970, consolida-se na periferia do sistema a doutrina

neoliberal através do Consenso de Washington. Esse “consenso” pode ser caracterizado pela

desregulamentação dos mercados, planos de estabilização valorizando as moedas nacionais

frente ao dólar, entrada de capitais especulativos, abertura da economia. Além disso,

destacam-se as reformas estruturais, que se baseiam nas privatizações e quebra dos

monopólios estatais. A seguir cito as dez recomendações do consenso:

1. Disciplina fiscal, evitando grandes déficits fiscais em relação ao PIB.

2. Redirecionamento dos gastos públicos de subsídios (especialmente subsídios

indiscriminados) para uma ampla provisão de serviços essenciais pró-

crescimento e pró-pobres, como educação, saúde e investimento em

infraestrutura.

3. Reforma tributária, ampliando a base tributária e adotando alíquotas marginais

moderadas.

4. Taxas de juros determinadas pelo mercado.

5. Taxas de câmbio competitivas.

6. Livre comércio: liberalização das importações, com ênfase na eliminação de

restrições quantitativas (licenciamento, etc.), proteção comercial a ser

fornecida por tarifas baixas e uniformes

7. Liberalização do investimento estrangeiro direto interno.

8. Privatização de empresas estatais.

9. Desregulamentação: abolição das regulamentações que impedem a entrada no

mercado ou restringem a concorrência, exceto aquelas justificadas por motivos

de segurança, proteção ambiental e do consumidor e supervisão prudencial de

instituições financeiras.

10. Segurança jurídica para direitos de propriedade privada.

Diante da dinâmica do capitalismo global, observa-se a expansão do modo de

produção capitalista e sua expansão fronteiriça, comercial, comunicacional, social etc. Esse

fenômeno, chamado globalização, foi difundido pela ideologia neoliberal ao final do século

XX. Assim, discorre Filgueiras sobre o mesmo:

Todas essas características e tendências estruturais do capitalismo, já identificadas por Marx no século passado, não são negadas pelo processo de globalização; antes, pelo contrário, ele, juntamente com os outros dois fenômenos tratados

Page 26: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

24

anteriormente, libera o capital, em seu movimento de acumulação, de todas as amarras e restrições, permitindo-lhe uma flexibilidade quase que total no seu afã e necessidade de valorização (FILGUEIRAS, 2012, p. 60, grifo do autor).

Ademais, cabe destacar que toda essa dinâmica do capitalismo global, compreendida

pelo senso comum por globalização, se expressa num movimento de mutação do capital, além

de o mesmo ser transfronteiriço, de modo que sua velocidade de valorização fictícia se tornou

ainda mais elevada. Diante disso, explicita Filgueiras:

Pode se observar que a competição intercapitalista, tendo por arma as inovações de todos os tipos, torna-se cada vez mais feroz e de fato mundializa-se, quase que semlimites impostos pelas barreias nacionais; que se acelera fantasticamente odesenvolvimento das forças produtivas e cresce o volume e o valor dosmeios de produção por trabalhador; que se intensifica a concentração e acentralização de capitais, com o domínio mundial de poucas empresasgigantescas em cada ramo de produção; que a esfera financeira assume umpapel preponderante no conjunto do funcionamento do sistema, com umsuperdimensionamento da acumulação “fictícia”, num ambiente cada vezmais instável e com crescimento da incerteza e do risco; e, por fim, quepotencializa-se a possibilidade da crise e os seus efeitos destrutivos emescala planetária (FILGUEIRAS, 2000, p. 60, grifo do autor).

A dimensão financeira é o principal aspecto do processo de globalização,

especialmente se considerarmos a estratégia de estabilização adotada no Plano Real, pois o

mesmo era altamente dependente de capitais de curto prazo. Desse modo, a dimensão

financeira caracteriza-se pela instauração de um mercado unificado de capitais em âmbito

global, significando que as empresas multinacionais industriais e financeiras podem contratar

empréstimos ou aplicar fundos sem limites, seja onde e quando quiserem. Assim, recorrem a

todos os instrumentos financeiros existentes.

Portanto, a globalização financeira engloba três processos relacionados entre si: a

desregulamentação ou liberalização monetária e financeira, a desintermediação e a abertura

dos mercados financeiros nacionais (FILGUEIRAS, 2012). Com o desmonte do Sistema

Monetário Internacional no início da década de 1970, constituído a partir do acordo de

Bretton Woods, identifica-se a partir desse período a origem do processo de

desregulamentação que contribuiu para a globalização. Na sequência, observar-se-á qual era a

conjuntura do Brasil entre 1970 e 1994.

3.2 O PANORAMA INTERNO E CONJUNTURAL DO PLANO REAL

Page 27: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

25

Este trabalho não tem como objetivo mostrar o desenvolvimento econômico

brasileiro como um todo. Assim, centrar-se-á na conjuntura política e econômica que

transcorreu a partir dos anos 1970, com objetivo de compreender a implantação do Plano Real

e as políticas adotadas após o mesmo.

Por volta dos anos 1970 os países desenvolvidos tiveram um período de estagflação e

ajustes estruturais, decorrentes da crise do fordismo, sendo esta crise intensificada pelo fim da

conversibilidade do dólar, além do choque do petróleo. Por outro lado, o Brasil passava pelo

“milagre econômico”, o qual começou a se esgotar em 1973, desdobrando-se no II Plano

Nacional de Desenvolvimento (II PND) elaborado em 1974, dando sobrevida ao ciclo

expansivo até o final da década, com o custo da aceleração do endividamento externo.

Diante da crise da dívida externa que afetou a economia dos países periféricos,

constata-se a crise do modelo de substituição de importações na década de 1980. Entretanto,

nos países desenvolvidos ocorria o processo de reestruturação produtiva, portanto a

“globalização” dava as cartas iniciais, difundindo-se o neoliberalismo e tornando-o

hegemônico como ideologia. Ademais, na década de 1980 houve a reconstituição do Estado

de Direito e o fim da Ditadura Militar que durou 21 anos.

A conjuntura internacional das décadas de 1970/1980 ficou marcada por

transformações significativas. Destaca-se ao final da década de 1970 o segundo choque do

petróleo e a elevação da taxa de juros americana. Na década seguinte houve a crise do México

em 1982 decorrente da falta de recursos financeiros ao país. Portanto, a conversão de excesso

de liquidez para escassez de recursos internacionais fez com que os países dependentes

passassem por um período de estagnação do crescimento, aceleração inflacionária e

exportação de capitais. Diante disso, a conjuntura internacional no início dos anos 1980,

principalmente a partir da crise do México, fez com que houvesse a crise da dívida externa em

diversos países. Isso explica a vulnerabilidade dos balanços de pagamentos de praticamente

todos os países dependentes. Todavia, começava a crise da dívida externa, que se estenderia

por toda a década e adentraria os anos 1990. Conforme destaca Filgueiras (2012, p. 71):

De fato, na década anterior (anos 70), esses países haviam se endividado rapidamente, tomando empréstimos com taxas de juros muito baixas naquele momento, em virtude de grande liquidez no mercado financeiro internacional. No entanto, após o segundo choque do petróleo e a elevação da taxa de juros americana atingir a partir de 1979 – que chegou a atingir 19% ao ano em 1983 -, esses países passaram a sofrer pressões cambiais insustentáveis. Além dos elevados déficits comerciais já existentes, cresceu o montante de juros a ser pago pelos empréstimos internacionais já realizados. Para piorar a situação, ainda mais, desapareceram os recursos financeiros disponíveis, até então, no mercado internacional, inviabilizando a prática usual de renovação dos empréstimos (rolagem de dívidas).

Page 28: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

26

Entretanto, a responsabilidade da crise caiu sobre os países dependentes, pois o

Fundo Monetário Internacional (FMI) e o sistema financeiro internacional desconsideraram as

circunstâncias econômicas que levaram à situação desses países, ou seja, tudo se resumiu

apenas a erros de avaliação e de política econômica dos “gestores” desses países

(FILGUEIRAS, 2012). Não obstante, o FMI passa a fazer uma defesa explícita dos interesses

do capital financeiro internacional, ou seja, recomenda aos países dependentes acordos

econômicos e políticos extremamente rígidos, a fim de garantir os empréstimos feitos a esses

países.

Assim, as condicionalidades formuladas pelo FMI aos países devedores foram

duríssimas, acarretando um conjunto de metas que determinavam taxas de inflação, déficit

público, exportações e importações, taxas de juros, câmbio etc.

Contudo, para solucionar o problema - conhecido como o ajuste monetário no

balanço de pagamentos – era preciso reduzir a demanda interna por meio da redução dos

gastos do Estado, fazendo com que a queda da atividade econômica diminuísse as

importações. Por sua vez, isso era feito pelo controle das necessidades de financiamento do

setor público e da elevação das taxas de juros, em paralelo com o estímulo às exportações

decorrentes da desvalorização das moedas dos países dependentes. Além disso, o arrocho

salarial e os subsídios creditícios e fiscais geraram uma espécie de competitividade espúria

dos produtos.

Conforme explicita Filgueiras, o resultado dessa política seria: “[...] a geração de

superávits crescentes das balanças comerciais dos países periféricos, que possibilitassem

compensar os déficits históricos e estruturais das suas balanças de serviços e, assim, dispensar

a entrada de novos recursos, ou mesmo pagar parte do principal de suas dívidas”

(FILGUEIRAS, 2012, p. 74).

Em particular, o Brasil teve um período de estagnação que durou quase toda a

primeira metade da década de 1980. Destaca-se que tivemos PIB negativo de -4,3% e -2,9%

em 1981 e 1983, respectivamente, conforme se vê na Tabela 1.

Tabela 1 – Inflação, PIB e taxa de investimento nos governos Figueiredo e Sarney

Ano Inflação Taxa de Crescimento do PIB (em%) Investimento Interno Bruto Governo

1980 100,2 9,3 22,9

1982 109,9 -4,3 24,3

1982 95,4 0,8 23,0 Figueiredo

Page 29: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

27

1983 154,5 -2,9 19,9

1984 220,6 5,4 18,9

1985 225,5 7,8 18,0

1986 142,3 7,5 20,0

1987 224,8 3,5 23,2 Sarney

1988 684,5 -0,1 24,3

1989 1320,0 3,2 26,9 Fonte: Conjuntura Econômica – FGV (1999 apud FILGUEIRAS, 2012, p. 75).

A abrupta elevação da inflação que saiu de 100% em 1980 para 1320% em 1989 não

estava prevista formalmente nos acordos com o FMI – a abrupta elevação foi fruto das

próprias políticas recomendadas. Entretanto, as desvalorizações cambiais elevaram os preços

internos devido ao encarecimento das importações que, por sua vez, estimularam uma espiral

inflacionária, pois os agentes econômicos indexaram seus rendimentos ao dólar.

A ineficácia dos programas do FMI para estabilizar a economia brasileira, naprimeira metade dos anos 80, era vista como prova cabal de que a inflação brasileira não era resultado de um sobreaquecimento da demanda em relação à estrutura da oferta. A inflação seria resultado, primordialmente, de cláusulas deindexação que a perpetuavam ao longo do tempo (CASTRO, 2011, p. 103).

Ainda, a dívida pública cresceu, em função dos grandes superávits comerciais

promovidos pela política formulada pelo FMI, de tal forma que os governos do período

compravam dólares dos exportadores por meio da emissão de títulos do Tesouro Nacional ou

do Banco Central com taxas de juros altas e prazos de resgate curtíssimo. Portanto, ampliava-

se, segundo Filgueiras, uma espécie de “ciranda financeira” que afetou as contas públicas.

Embora não houvesse êxito nos planos de estabilização, sem ser em curto período de

tempo, pois a inflação média no período de 1984-1989 foi de 471,7% ao ano, no período que

compreende 1985-1989 a expansão acumulada do produto fora de 24% (CASTRO, 2011).

Deve-se salientar, ainda, que os indicadores de investimento e comércio exterior foram

melhores do que na primeira metade da década de 80.

As políticas recomendadas pelo FMI geraram impactos negativos que perpassaram

os anos 1980, resultando nos diferentes planos de estabilização, começando pelo cruzado em

1986. Todavia, os anos 1980, conhecidos como a “década perdida”, ficaram caracterizados

pela estagnação econômica por não haver crescimento do PIB per capita, além de taxas de

inflação significativamente elevadas (FILGUEIRAS, 2012).

Page 30: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

28

Cabe destacar que, ao final dos anos 1980, as políticas com viés ortodoxo e

heterodoxo fracassaram no combate à inflação em razão de uma série de fatores subjetivos e

objetivos, além das condições internacionais desfavoráveis. A ideia de inflação inercial foi

importante para compreensão da inflação crônica na América Latina, porém não foi suficiente

para conter a inflação, assim como o congelamento dos preços.

Portanto, nos anos 1990 o liberalismo já tinha expressividade em boa parte da

América Latina, entretanto, no Brasil, ganha força com o Governo Collor. De tal modo que o

discurso liberal radical, incluindo a abertura da economia e intensificação das privatizações,

consagra o que podemos denominar a “era liberal” no Brasil.

A condição que permitiu tal postura adveio da gravidade da crise econômica, pois o

país estava beirando hiperinflação, além de que o discurso heterodoxo já estava saturado por

boa parcela da população. Diante disso, surge alguém que se diz da “nova política”, um

“outsider” dos empresários com amplo apoio da classe dominante.

Com a Medida Provisória n. 168, de 16/03/1998, surge o Plano Collor. Este

caracteriza-se por ser um programa de estabilização em conjunto com um modelo de mudança

estrutural de longo prazo. Constituiu-se, assim, de reforma monetária, ajuste fiscal e a

liberalização do comércio exterior com uma nova política cambial (FILGUEIRAS, 2012). No

entanto, a reforma monetária fez-se pela substituição do Cruzado Novo pelo Cruzeiro. Assim,

preços e salários foram convertidos ao par, além de um rígido controle da liquidez da

economia. Portanto, tomou-se uma medida inédita na história econômica brasileira, o confisco

da poupança. Segundo Filgueiras (2012, p. 87):

A totalidade do confisco dos ativos financeiros do país foi atingida por um confisco – que reduziu a liquidez da economia de 25% para 10% do PIB – que seguiu a seguinte regra: dos depósitos à vista e da poupança, os titulares das contas puderam sacar um limite máximo de Cr$ 50 mil e, das demais aplicações, um limite máximo de Cr$ 25 mil ou 20% do total – prevalecendo o que fosse maior. Esses recursos foram bloqueados em conta no Banco Central por 18 meses, rendendo correção monetária e mais 6% ao ano, sendo liberados, a partir de 16 de setembro de 1991, em 12 parcelas mensais. Durante 180 dias foi permitida a transferência de valores entre contas (devedores/credores) para pagamentos e o cumprimento de contratos.

As privatizações consolidam-se como elemento principal no projeto do Governo

Collor. Tal fato

[...] provou ter metas muito mais otimistas em termos de receita e cronograma, do que se verificou na prática. Nos governos Fernando Collor e Itamar Franco (1990-94) foram privatizadas 33 empresas federais (as empresas estaduais só entraram no programa posteriormente). Os principais setores foram o de siderurgia, petroquímica

Page 31: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

29

e fertilizantes. O total de receitas obtido foi de US$8,6 bilhões, com transferência para o setor privado de US$3,3 bilhões em dívidas (CASTRO, 2011, p. 137).

Tratando-se das reformas, a agenda do governo Collor não se limitou às

privatizações, pois as políticas de comércio exterior também ajudaram no aprofundamento da

dependência econômica, dada a mudança da estrutura produtiva brasileira. Assim, adoção do

câmbio livre serviu para acelerar o programa de liberalização das importações, o mesmo teve

início ao final da década de 1980. Ainda, de acordo com Castro (2011, p. 137):

Assim, no governo Collor, foram extintas as listas de produtos com emissão de guias de importação suspensa (o chamado “Anexo C”, que continha cerca de 1.300 produtos) e os regimes especiais de importação (exceto Zona Franca de Manaus, drawback e bens de informática).

Além disso, houve a reforma tarifária em que todos os produtos teriam reduções

graduais ao longo de quatro anos, atingindo uma alíquota modal de 20%, sendo o intervalo de

variação de 0 a 40%, conforme se vê na Tabela 2.

Tabela 2 - Alíquotas de Importação de Setores Selecionados — 1990-1994 (em %)

199

0199

1199

2199

3199

4

Tarifa média 32,2 25,3 21,2 17,1 14,2

Tarifa modal 40,0 20,0 20,0 20,0 20,0

Desvio-padrão 19,6 17,4 14,2 7,9 7,9

Setores selecionados

Insumos industriais básicos 12,6 8,3 6,1 4,8 4,3

Bens de capital 36,0 29,2 25,0 21,0 19,3

Veículos de passageiros 85,0 59,3 49,3 39,3 34,3

Peças e acessórios de bens de capital 34,0 27,8 24,3 20,9 19,1Peças e acessórios de equip.

transport. 39,0 31,5 26,3 21,2 18,6

Outros 51,2 40,7 33,5 25,7 19,3Fonte: Horta et al. (1992 apud CASTRO, 2011, p. 138)

Diante disso, verificou-se um acentuado crescimento das importações, contribuindo

ainda mais para a redução da capacidade produtiva brasileira. Assim, como resultado:

As importações aumentaram continuamente (12,6% em média) ao longo de todo o período. No início do período, porém, é razoável crer que a própria abertura fosse

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um incentivo, sobretudo para a reposição de bens de capital, após anos sem investimentos significativos. A importância desse fator se tornou maior com o passar do tempo. Como visto anteriormente, a tarifa média de importação caiu de 32,2% para 14,2%. Somado a isso o efeito provocado sobre as compras externas pelo crescimento do produto (a partir de 1993), as importações cresceram, em 1994, para um patamar 60% superior ao vigente em 1990. As importações de bens de capital, cuja alíquota média sofreu um corte de 16,7 pontos percentuais, aumentaram em 91,4% no mesmo período, enquanto os gastos com a aquisição de automóveis importados passaram de US$31 milhões, em 1990, para US$1,6 bilhão, em 1994 (CASTRO, 2011, p. 157).

No aspecto fiscal, o objetivo era a obtenção de um superávit operacional nominal de

2% do PIB, sendo feito através de ajuste fiscal que chegaria a 10% do PIB. Desse modo,

acarretou-se em corte de gastos públicos, elevação da carga tributária (política contrária ao

que prega o discurso neoliberal), venda de ativos da União e na privatização de empresas

estatais, sendo estas concretizadas pelos Certificados de Privatizações (CPs), que foram

compulsoriamente adquiridos pelos bancos. No entanto, eliminou-se o regime de câmbio fixo

e adotou-se o câmbio flutuante (FILGUEIRAS, 2012).

Entretanto, como em todos os governos de natureza heterodoxa, o resultado do Plano

Collor foi uma abrupta queda da inflação. Aliado às políticas neoliberais, o custo disso foi

uma profunda recessão – gerando uma queda no PIB de 4% em 1990, aumento do

desemprego e redução do salário real dos trabalhadores. Todavia, a inflação voltou mais

adiante com a remonetização da economia, gerando um cenário de instabilidade institucional.

Todavia, vemos que a indexação é a causa principal, isto é:

Na medida em que se instituíram os mais variados mecanismos formais e informais

de indexação, o componente inercial da inflação institucionalizara-se de tal forma

que, independentemente da existência de choques inflacionários, a inflação passada

era simplesmente projetada para o presente, perpetuando-se. Desse modo, o

processo inflacionário brasileiro tornara-se um fenômeno autônomo, que não era

causado por excesso de demanda ou por choques negativos de oferta, mas, sim, pela

indexação de preços e rendimentos [...] (MODENESI, 2005, p. 304)

Com o impeachment de Collor e a chegada de Itamar Franco, a continuação do

projeto liberal parecia desacelerar, pois o perfil político do novo presidente era antiliberal.

Aliadas a isso, as forças políticas que sustentavam Collor já estavam fragilizadas. Não

obstante, ocorreu o contrário da expectativa, aumentaram-se as privatizações que sofreram

modificações em algumas regras (FILGUEIRAS, 2012). Segundo Castro, o desempenho do

PIB e da indústria, como resultado das políticas neoliberais, foram prejudiciais ao mercado

interno:

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[...] o sequestro de liquidez realizado no Plano Collor I (1990) gerou uma forte retração na economia (-4,3%), particularmente na indústria (queda de 8,2%). Após um modesto crescimento em 1991, o PIB voltou a cair (-0,5%) em 1992, em função da crise instalada no país com o processo de impeachment do presidente. Se não fosse o bom desempenho da agropecuária em 1992 (4,9%) o resultado teria sido pior. Vale ressaltar que a retração da indústria no Plano Collor I (1990) se deu em todas as categorias, mas foi especialmente forte no setor de bens de capital, que só veio a se recuperar em 1993. O crescimento dos juros reais provocou, por sua vez, uma forte contração nas vendas de bens de consumo duráveis. Em 1992, essa categoria apresentou uma queda de nada menos que 13% em relação ao período anterior (CASTRO, 2011, p. 155).

Em resumo, entre 1990 e 1994, o crescimento médio anual do PIB foi o inexpressivo

1,3%, ainda, tivemos uma inflação anual média que chegou a 1210%. Em relação ao

comércio exterior, as exportações tiveram crescimento de 4,8%, enquanto as importações

cresceram a uma taxa de 12,6%, contrastando a liberalização econômica do período. Por sua

vez, a participação da formação bruta de capital fixo (FBCF) no PIB foi de 19,5%, ou seja,

reduziu-se em relação à segunda metade da década anterior (1985-1989), saindo de uma

média de 22,5% para uma média de 19,5% (CASTRO, 2011), conforme demonstra a Tabela 3

a seguir.

Tabela 3 - Economia Brasileira: Síntese de Indicadores Macroeconômicos — 1990-1994(médias anuais por período)

1990-1994

Crescimento do PIB (% a.a.) 1,3

Inflação (IGP dez/dez, % a.a.) 1210

FBCF (% PIB a preços correntes) 19,5

TX. de cresc. das exportações de bens (US$ correntes, % a.a.) 4,8

TX. de cresc. das importações de bens (US$ correntes, % a.a.) 12,6

Balança comercial 12,1

Saldo em conta corrente -0,3

Dívida externa líquida/Exportações de bens 3,2Fonte: Castro (2011, p. 158).

O desgaste da política liberal no período abriu espaço para as forças de esquerda,

tendo o candidato à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva, notoriedade no

período. De um lado estavam as forças conservadoras identificadas com o governo Collor e

sua política liberal, representado por Maluf e, do outro, estava Lula com um projeto ainda não

testado. A polarização do período não satisfez as forças políticas conservadoras e o grande

empresariado. Assim, buscou-se uma “terceira via”. Esta começou a se desenhar com

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Fernando Henrique Cardoso (FHC) para o Ministério da Fazenda, em 1994 e,

consequentemente, candidatando-se à Presidência da República (FILGUEIRAS, 2012).

De acordo com Filgueiras, FHC daria continuidade à política neoliberal desenvolvida

por Collor:

Cardoso já havia optado pelo projeto de modernização neoliberal, a partir de uma colonização de forças políticas conservadoras e de centro-direita, desde 1991, ainda no desenrolar do Governo Collor – assumindo, e aceitando, como fato consumado as relações de poder e dependência internacionais próprias da globalização financeira (FILGUEIRAS, 2012, p. 91).

No cargo de Ministro da Fazenda, sendo responsável pela adoção do Plano

econômico que acabou com a inflação – conhecida como o “mal da nação” -, fez com que

ganhasse apoio do grande capital e se consolidasse como a “terceira via”.

Gráfico 1 - Comportamento da inflação mensal – IGP-DI – 1985-1996 (%)

Fonte: FGV (apud CASTRO, 2011, p. 156).

Portanto, a partir de 1º de julho de 1994, depois de implementada a nova moeda, a

candidatura de FHC avançou com bastante popularidade. Assim, chega às eleições com o

seguinte cenário: inflação em Real próxima a zero, crescimento da atividade econômica,

poder aquisitivo dos salários mantidos desde a implantação da Unidade de Referência de

Valor (URV) e o fim do imposto inflacionário às camadas de baixa renda, além de

comprarem com mais facilidade à prestação. Estando no governo, a manutenção da inflação

baixa e decrescente foi determinante para sua sustentação e capacidade de ação política em

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benefício das frações da classe dominante. Em síntese, o Plano Real consagrou mais uma vez

a derrota das forças de esquerda, retomando o projeto liberal desde os tempos do governo

Collor (FILGUEIRAS, 2012). Por conseguinte, adentraremos à formulação do plano e suas

principais políticas.

3.3 A FORMULAÇÃO DO PLANO

Diante do avanço do neoliberalismo pelo mundo, a partir dos anos 1970, a

elaboração do Plano Real deu-se por duas vertentes. A primeira está associada ao Consenso

de Washington, que formulou para a América Latina políticas neoliberais que guiaram os

rumos das sociedades e economias. Nos lugares em que foi implantado o plano verificou-se

um roteiro: combate à inflação, através da dolarização da economia e valorização das moedas

nacionais, além da necessidade de um profundo ajuste fiscal das economias. Por sua vez, a

segunda vertente está associada à experiência com o Plano Cruzado, de tal maneira que os

debates que ocorreram a respeito da natureza da inflação inercial foram de suma importância

para elaboração do Plano Real. Ressalta-se a disputa de uma “moeda indexada” em

contraponto com o “choque heterodoxo”. No entanto, o próprio esforço na condução da

política de estabilização do Cruzado indicou quais os métodos e procedimentos que deveriam

ser descartados (FILGUEIRAS, 2012).

Para Filgueiras, as experiências trazidas pela implantação do Plano Cruzado e seus

resultados trouxeram os seguintes aprendizados:

a) a inflação brasileira não era apenas inercial e a fragilidade financeira do Estado se constituía num dos seus componentes fundamentais;b) a passagem abrupta de todos os preços e salários para a nova moeda num determinado dia “D” traz consigo as pressões inflacionárias já presentes na velha moeda – ao sancionar o desalinhamento de preços relativos previamente existentes e detonar a retomada do conflito distributivo na nova moeda;c) a remonetização da economia e o consumo se aceleram com a queda da inflação nos primeiros meses da nova moeda – implicando a necessidade de uma política monetária que estabeleça taxas de juros mais elevadas; ed) o salário real médio do conjunto da economia, em relação àquele que prevalecia anteriormente, pode crescer e pressionar o consumo a curto prazo etc. (FILGUEIRAS, 2000, p. 100).

Ainda, devemos nos ater às circunstâncias favoráveis presentes na época, as quais

são fundamentais para qualquer plano de estabilização. Pode-se destacar a elevada liquidez do

sistema financeiro internacional, reservas em divisas estavam no patamar de U$ 40 bilhões,

dando folga para uma possível especulação contra a nova moeda. Além disso, o país tinha

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um saldo elevado na balança comercial e crescimento do fluxo de capitais estrangeiros,

garantindo o nível das reservas e, contudo, as importações. Soma-se a isso uma safra de 76

milhões de toneladas de grãos (FILGUEIRAS, 2012).

Em relação ao aspecto do regime fiscal, o consenso no Plano Real foi de que era

preciso implementar uma série de reformas estruturais na economia brasileira para se

conseguir uma estabilização consistente. Tal consenso resultou na concepção do novo regime

fiscal brasileiro. Diante disso, com essa nova concepção o país precisava se mostrar

comprometido com as políticas estabilizantes com o objetivo de ganhar a credibilidade do

mercado na manutenção de tal regime.

No entanto, a administração da política fiscal exigiria uma institucionalidade sólida a

fim de gerar um superávit primário necessário ao equilíbrio nas contas públicas e garantir o

Novo Consenso em Macroeconomia (NCM). Isto é, “O Plano Real se propôs a redesenhar o

aparato institucional e a formar um regime fiscal que atendesse às demandas tanto do ideário

neoliberal quanto dos pressupostos da teoria macroeconômica dominante, do NCM”

(SANTOS e LOPREATO, 2016, p. 9).

A partir dos anos de 1990, a base teórica adotada no Brasil para condução da política

macroeconômica refere-se ao NCM. Este, também chamado de Nova Síntese Neoclássica, faz

a junção das principais correntes do pensamento ortodoxo no debate macroeconômico a partir

dos anos 80. Desse modo, trata-se como consenso por utilizar das contribuições da escola

Novo-Clássica, além das críticas e propostas dos Novos Keynesianos. Assim, no consenso

considera-se a otimização intertemporal e as expectativas racionais nos modelos

macroeconômicos dinâmicos, relacionando-se com a concorrência imperfeita e rigidez de

preços e salários (SANTOS e LOPREATO, 2016).

Portanto, neste regime “[...] as ações da política fiscal ficam submetidas ao

comportamento daquelas variáveis que influenciam a trajetória da dívida e à volatilidade dos

fluxos internacionais de capitais, fruto da avaliação do mercado sobre o risco de determinado

país” (SANTOS e LOPREATO, 2016, p. 7).

Todavia, o Plano Real consistiu em três fases diferentes e sucessivas para sua

implantação, sendo: o ajuste fiscal, a criação da URV e a instituição de uma nova moeda (o

Real). O entendimento dos mecanismos de cada fase e seus momentos de transição de uma à

outra é de suma importância para compreender a lógica interna do plano e como o mesmo

está vinculado ao projeto neoliberal.

A URV foi embrião da nova moeda, por ser considerada como um superindexador,

de tal maneira que a variação em cruzeiros reais era determinada por uma espécie de “banda”

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formada por três outros índices (o IGPM da Fundação Getúlio Vargas, o IPCA do IBGE e o

IPC da FIPE/USP). De acordo com Filgueiras:

Na verdade, contudo, ela foi muito mais do que um “superindexador”, ela foi o embrião da nova moeda, ou uma espécie de moeda incompleta, pois, embora não se constituísse, ainda, em meio de pagamento e reserva de valor, cumpriu uma das três funções de qualquer moeda, qual seja: a de ser unidade de conta (FILGUEIRAS, 2012, p. 104, grifos do autor).

A URV foi significativa para a transição das moedas, pois não deixou que os agentes

econômicos sentissem de forma rápida e com desconfiança a nova moeda, como ocorreu nos

planos anteriores utilizando-se de congelamento de preços e salários. Dessa forma,

possibilitou a transição gradual de todos os preços e salários de Cruzeiro Real para URV, de

forma induzida, por meio da fixação de preços, tarifas e contratos públicos em URV. Esta

teria como objetivo apagar o componente inercial da inflação, isto é, serviria para alinhar os

preços relativos, fazendo com que a criação da nova moeda não fosse contaminada pela

inflação antecedente relacionada à velha moeda.

O ex-ministro da fazenda, Gustavo Franco, deixa claro o papel central das políticas

de juros e câmbio e como a URV não estava bem estruturada, maneira pela qual foi preciso a

intervenção por aumento de juros e sobrevalorização do câmbio.

Apesar de bem-sucedido, o processo de reengenharia da moeda, por meio da URV, estava construído sobre bases fiscais extremamente precárias, e as remarcações de preços nas vésperas da entrada em vigor da nova moeda foram fortíssimas. A partir de 1º de julho, a URV ficaria para trás, e o destino do Real passaria a depender dos nossos próximos movimentos. Qual seria a inflação do primeiro mês, já na nova moeda, qual o grau de desindexação posterior, tudo isso ia depender da atuação do Banco Central, em particular das políticas de juros e câmbio (FRANCO, 1999, p. 274).

No tocante aos salários, adotou-se a passagem compulsória dos mesmos, ou seja,

com base na média do salário real vigente no período imediatamente anterior. Diante disso,

considerou-se o salário real vigente dos últimos quatro meses. Contudo, o salário real de cada

mês fora calculado dividindo o salário nominal respectivo pelo valor da URV do último dia

do mês (FILGUEIRAS, 2012).

A fase final do plano deu-se com a introdução da nova moeda em 1º de julho,

ocorreu pela transformação da URV em Real. Neste período, a moeda vigente – Cruzeiro

Real – valia CR$2750,00, de tal maneira que a conversão foi feita de 1 URV = R$1.

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36

Denominou-se assim a conversão de “âncora cambial”. Isso foi possível com a garantia das

reservas em dólar acumuladas desde 1993.

O combate à inflação com crescimento econômico e aumento do emprego, dada a

passagem para a nova moeda, pode ser resumida nas seguintes políticas: abertura da

economia às importações, devido à queda das alíquotas do imposto de importação; quebra das

barreiras para a entrada de capitais estrangeiros no mercado financeiro, sendo atraídos por

elevadas taxas de juros; e câmbio nominal e real em queda.

No aspecto cambial, houve uma sobrevalorização do real devido à não intervenção

do Banco Central no mercado de câmbio, gerando-se uma deflação dos preços de bens e

serviços relacionados ao dólar. No entanto, essa estratégia viabilizou-se graças à política de

juros altos, fazendo com que entrasse um elevado fluxo de capitais de curto prazo.

Assim, pode-se notar através do gráfico a seguir o longo período de real apreciado,

fazendo com que prejudicasse nossa base produtiva nacional e beneficiasse o mercado

externo com a compra de produtos com alta sofisticação tecnológica.

Gráfico 2 - Taxa de câmbio comercial entre 1992 a 2002.

1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 20020,0000

0,5000

1,0000

1,5000

2,0000

2,5000

3,0000

3,5000

4,0000

Taxa de câmbio comercial - R$/US$ 1992-2002

Fonte: elaboração própria, Banco Central (2020).

Além disso, existia um elevado nível de reservas correspondentes a 18 meses de

importações, considerando-se as médias mensais dos 12 meses anteriores a julho de 1994,

alcançando em 1994 US$ 40,5 bilhões no conceito de caixa. Cerca de 70% do montante das

reservas acumulou-se quando FHC era Ministro da Fazenda (FILGUEIRAS, 2012). Adiante,

veremos como a inflação atinge as classes sociais de maneira distinta.

Page 39: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

37

3.4 A INFLAÇÃO E O CONFLITO DE CLASSE

Perante uma sociedade dividida em classes, é de suma importãncia tratar a inflação e

seus efeitos para as diferentes camadas da população, pois a mesma não atinge a todos

uniformemente. Evidente que tal tema não passa nos meios de comunicação e noticiários

econômicos de forma abrangente, portanto, procuraremos salientar sobre o mesmo.

Primeiramente, é importante ressaltar que a inflação não é um mal por si mesma,

porque se todos os preços da economia subirem de forma homogênea seu efeito seria nulo. A

questão relevante está na medida em que os preços afetam de forma diferente as classes

sociais e suas frações, gerando um processo de transferência de riqueza.

Numa conjuntura de inflação crônica e perda de poder de comprar da maior parte da

população, a inflação torna-se uma ameaça para o modo de produção capitalista. Isso pode

acarretar o confisco da riqueza dos cidadãos, sendo que atinge as classes sociais de modo

distinto, empobrecendo muitos e enriquecendo uma parcela reduzida da população. No

entanto, a parcela reduzida é chamada de “especuladores”. Para Keynes, essa parcela

demonstra indiferença, assim como um sentimento de injustiça no que diz respeito à

distribuição de riqueza e renda. Isso não é por acaso se considerarmos que é por meio da

inflação que os especuladores obtêm lucros acima do normal e de suas expectativas. Diante

disso, o processo inflacionário ameaça a ordem capitalista na medida em que o descrédito ao

sistema aumenta. Portanto, no processo de produção numa economia monetária, a classe

empresarial é forçada a sempre assumir uma posição especulativa (KEYNES; KALECKI,

1978).

Esses “especuladores”, falando em sentido amplo, são a classe empreendedora dos capitalistas, isto é, o elemento ativo e construtivo do conjunto da sociedade, o qual, num período de preços rapidamente ascendentes, não pode deixar de enriquecer, queira ou não. Se os preços crescem continuadamente, todo negociante que formou estoques ou que tem propriedade ou fábrica inevitavelmente realiza lucros (KEYNES; KALECKI, 1978, p. 3, grifo dos autores).

Para Keynes, os capitalistas protegem-se muito melhor em um período inflacionário,

tendo em vista que podem aumentar preços e manter sua taxa de lucro. Além disso, a procura

por investimentos atrelados à inflação, principalmente no mercado financeiro atual, faz com

que boa parcela dos capitalistas não sofram com a elevação dos preços e percam sua riqueza,

ao contrário da maioria dos trabalhadores.

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38

Segue-se, portanto, que uma variação no valor do dinheiro, isto é, no nível dos preços, só é importante para a sociedade na medida em que sua incidência seja desigual. Tais mudanças produziram no passado, e agora produzem, as mais amplas consequências sociais, pois, como sabemos, quando muda o valor da moeda, ele não muda igualmente para todas as pessoas e para todas as finalidades. Os ganhos e as despesas de um homem não são todos modificados numa proporção uniforme. Assim, uma alteração nos preços e nos ganhos, medida em dinheiro, geralmente afeta diferentes classes desigualmente, transfere riqueza de uma para outra, produz aqui a opulência e ali necessidade, e redistribui os favores da Fortuna de tal forma que se frustra o desígnio e se desaponta a esperança (KEYNES, 1983, p. 292).

Ainda, o capitalista pode se beneficiar do lucro inflacionário se tiver estoques

significativos, pois na maior parte dos casos compra-se o mesmo antecipadamente. Isto é, na

medida em que se elevam os preços, os empresários acabam ficando com o excedente dos

“melhores preços”. De acordo com Keynes (1983, p. 297):

Contudo, durante o período de mudança, enquanto os preços estão subindo mês após mês, os empresários têm uma nova e maior fonte de ganhos extraordinários. Comerciante ou industrial, ele geralmente comprará antes de vender, e, ao menos em relação a uma parte de seu estoque, correrá o risco de alterações nos preços. Se, portanto, mês após mês, o estoque se valorizar em suas mãos, ele estará sempre vendendo a preços melhores do que os esperados, e assegurando um ganho extra que não foi calculado. Em tais períodos, os negócios do comércio se tornam injustificadamente fáceis. Qualquer um que seja capaz de tomar dinheiro emprestado, e que não seja excepcionalmente azarado, pode obter lucros que em termos de valor real, não somente não representa qualquer juro mas, além disso, é até inferior ao capital originalmente adiantado.

A inflação, a despeito dos impactos negativos citados, não prejudica as posições dos

bancos porque é por meio da conjuntura inflacionária que propicia aumento da margem dos

mesmos. Explica-se pelo fato dos ativos reais da sociedade estarem na forma monetária - os

proprietário da riqueza têm direitos em dinheiro, e não em ativos reais. Não obstante, uma

parte considerável dessa atividade financeira passa pelos bancos, cabendo a estes a

intermediação entre os depositantes e os clientes, os quais são tomadores de recursos.

Portanto, os ativos financiados pelo sistema bancário se valorizam e, por consequência,

possibilitam o aumento nas margens dos bancos num momento de alta geral nos preços.

Keynes, referindo-se a Lênin, ressaltou o papel da inflação e sua ameaça para o

modo de produção capitalista.

Lênin, segundo se diz, declarou que a melhor maneira de destruir o sistema capitalista é desmoralizar a moeda. Por um contínuo processo de inflação, os governos podem confiscar, de modo secreto e despercebido, parte importante da riqueza de seus cidadãos. Com este método, eles não apenas confiscam, mas confiscam arbitrariamente; e, enquanto o processo empobrece a muitos, de fato enriquece a alguns. A visão desse arbitrário remanejo repercute não somente na segurança, mas também na confiança quanto à equidade da existente distribuição da

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riqueza. Aqueles a quem o sistema traz ganhos extraordinários, além de seus merecimentos e mesmo além de suas expectativas e de seus desejos, se tornam "especuladores", objeto do ódio da burguesia — empobrecida pelo inflacionismo — assim como do ódio do proletariado. Na medida em que a inflação avança e o valor real da moeda flutua selvagemente de um mês para outro, todas as relações permanentes entre devedores e credores, que formam o fundamento último do capitalismo, se tornam tão completamente desordenadas que passam quase a não ter sentido; e o processo de aquisição da riqueza degenera em jogo e loteria. Evidentemente Lênin estava correto. Não há meio mais sutil nem mais seguro de revirar a base da sociedade do que corromper a moeda. O processo mobiliza, para a destruição, todas as forças ocultas da lei econômica — e o faz de modo tal que nem mesmo um só homem em um milhão é capaz de diagnosticar (KEYNES,1983, p. 291).

Portanto, o que se pode constatar diante da contribuição de Keynes para

compreensão do impacto da inflação sobre as classes e suas frações é que a própria inflação

surge e se propaga de acordo os interesses das classes dominantes. No entanto, ela irá afetar o

nível de exploração das classes subalternas de acordo com a capacidade organizativa e de

enfrentamento dessas, sendo este um processo inerente ao capitalismo com ou sem inflação.

Todavia, abidica-se da fé de que a inflação é o principal mal a ser combatido para atender os

interesses das classes populares.

A seguir, depois de analisarmos as características do plano e sua formulação,

mostrar-se-à os resultados e críticas inerentes ao mesmo.

3.5 PLANO REAL, SEUS RESULTADOS E CRÍTICAS

A redução da inflação foi alcançada com êxito, sendo consenso entre todos. Porém, a

trajetória para alcançar a estabilidade de preços aprofundou desequilíbrios estruturais que já

existiam anteriormente, assim como desencadeou novos. Esses desequilíbrios puderam ser

vistos pelo explosivo crescimento dos déficits da balança comercial. Verificou-se que a

abertura da economia e a sobrevalorização do Real explodiu as importações e tirou a

competitividade das exportações.

Analisando a inflação, de acordo com o que já foi explicitado, em qualquer índice

de preços que analisarmos constata-se a redução profunda. Pode-se verificar a tendência de

queda até 1998, conforme Tabela 4.

Tabela 4 - Variação anual de preços 1990-1998 (%)

ANO ÍNDICE

IGP-DI IPA-DI IPC-DI IPC-FIPE ICV

Page 42: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

40

1990 2739,70 2734,70 2938,10 2902,4 3256,80

1991 414,70 404,70 440,80 410,6 458,70

1992 991,40 976,90 998,00 965,2 980,70

1993 2103,70 2065,40 2169,60 1920,4 2054,80

1994 2406,80 2279,00 2668,50 2502,5 2782,40

1995 67,50 58,80 81,60 76,8 102,40

1996 9,34 8,09 11,34 10,04 13,18

1997 7,48 7,78 7,21 4,83 6,11

1998 1,70 1,51 1,66 -1,79 0,47Fonte: FGV, FIPE e DIEESE (apud FILGUEIRAS, 2000, p. 155).

Necessitando de elevados níveis de reservas, a abertura econômica e a âncora

cambial sustentaram-se por altíssimas taxas de juros, acarretando na fragilização de todas as

outras variáveis econômicas, com exceção da inflação. As taxas de crescimento foram

ínfimas, com períodos de estagnação e recessão, levando ao aumento das taxas de

desemprego devido ao fechamento de postos de trabalho na indústria e insuficiente

crescimento do comércio e serviços, dado que a população economicamente ativa cresceu

com a entrada de 1,5 milhão de novas pessoas no mercado de trabalho. Para ocorrer tal

absorção o crescimento do PIB teria que ser entre 6% e 7% ao ano (FILGUEIRAS, 2012).

Em relação às finanças do Estado, o déficit público operacional–nominal elevou-se

explosivamente, embora houvesse superávits primários, decorrente dos juros altíssimos. De

acordo com Nildo Ouriques (1997, p. 12):

En 1994 se estableció en Brasil un pacto de clase conocido como Plan Real. Es un pacto sostenido por los intereses de la banca nacional y extranjera, por el capital productivo nacional e internacional, por los propietarios de tierra y la parte de los sindicatos más fuertes del país organizados por la Central Única de los Trabajadores (CUT). El control de la inflación fue el camino legitimación del plan de estabilización que se basó en elevadas tasas de interés (49,9% en junio de 1994), sobrevaluación de la moneda nacional (0,82 real por 1 dólar) y política fiscal regresiva.

Não obstante, a consequência dessas medidas econômicas foi o aprofundamento da

dependência externa, sobretudo aos capitais de curto prazo. Assim, as dívidas em dólares

aumentaram, pois o setor privado sentiu-se estimulado a captar recursos devido à diferença

entre as taxas de juros interna e externa.

Ao analisarmos o período pré-Real, a balança comercial braasileira teve um saldo

positivo de US$ 60,3 bilhões, correspondente a 85% do déficit na balança de serviços no

mesmo período (US$70,6 bilhões). Por outro lado, depois do crescimento das importações,

Page 43: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

41

transformou-se num déficit acumulado de US$ 23,7 bilhões, sendo um déficit na balança de

serviços de US$ 97 bilhões, conforme a Tabela 5 a seguir.

Tabela 5 - Montantes acumulados na conta de transações correntes nos períodos pré e pós-Real (em US$ bilhões)

Discriminação PRÉ-REAL (90-94) PÓS- REAL (95-98)

Balança Comercial 60.3 -23,7

Balança de Serviços -70,6 -97,0

Transferências Unilaterais 8,9 11,0

Saldo -1,4 -100,97Fonte: Banco Central (apud FILGUEIRAS, 2012, p. 152).

O saldo em transações correntes que no período pré-Real acumulou déficit de US$

1,4 bilhão, no período seguinte atingiu o montante de US$ 109,7 bilhões, um impressionante

aumento de 7736% (FILGUEIRAS, 2012). Analisando apenas nos três anos entre 1995-1997,

verifica-se que

[as] importações em dólar aumentaram a uma taxa média de 21,8% a.a. — com destaque para o crescimento de 51% em 1995 — enquanto as vendas ao exterior cresceram apenas 6,8% a.a., em que pese o fato de esses terem sido anos de grande expansão do comércio internacional e nos quais a economia mundial cresceu 4,3% a.a. (GIAMBIAGI, 2011, p. 169).

Na conta de capitais houve um crescimenrto do investimento líquido total de 253%,

quando comparados os dois períodos pré e pós-Real. Além disso, houve aumento de

empréstimos e financiamentos em cerca de 44,1% na comparação entre os dois períodos.

Tabela 6 - Montantes na balança de capitais nos períodos pré e pós-Real (em US$ bilhões)

Balança de Capitais PRÉ-REAL (90-94) PÓS- REAL (95-98)

Investimento Líquido Total 17.443 61.628

Empréstimos e Financiamentos 105.385 151.900

Amortizações -85.456 -87.522

Outros 3.445 -20.291

Saldo 40.817 105.715Fonte: Conjuntura Econômica – FGV (1999 apud FILGUEIRAS, 2012, p. 152).

Ademais, entre 1994-1998 o balanço de entradas e saídas de recursos expressou-se

nos seguintes modos:

Page 44: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

42

Em suma, entre 1994 e 1998, os empréstimos e financiamentos atingiram o montante de US$ 169,8 bilhões, os investimentos líquidos diretos aportaram US$ 54,4 bilhões, os investimentos líquidos em portfólio somaram US$ 19,1 bilhões e os outros investimentos estrangeiros totalizaram US$ 3,8 bilhões, resultando numa entrada de capitais no montante total de US$ 247,1 bilhões. No entanto, como houve uma saída de US$ 103,6 bilhões no mesmo período, na forma de amortizações e de investimentos líquidos de brasileiros, o superávit da balança de capitais ficou em US$ 143,5 bilhões, que financiou, no período, os recorrentes e crescentes déficits da conta de transações correntes (US$ 110 bilhões) e ainda possibilitou o crescimento das reservas [...] (FILGUEIRAS, 2000, p. 161).

Diante disso, a dívida externa líquida voltou a aumentar rapidamente ente 1995-

1998, como pode ser visto no Gráfico 2. A mesma saiu de 2,3 vezes o valor da exportação de

bens em 1995, chegando, em 1998, a 3,9 vezes o valor da exportação de bens. Todavia, com a

crise internacional, em 1998, houve uma piora em que se reduziram as exportações brasileiras

naquele ano (GIAMBIAGI, 2014).

Gráfico 3 - Dívida Externa Líquida/Exportações de Bens – 1981-2002

Fonte: Banco Central (apud GIAMBIAGI, 2011, p. 170).

Em relação à dívida pública líquida, aumentou em todos os anos entre 1994-1998.

Isso se deve ao fato da taxa Selic estar elevada, atraindo, por conseguinte, fluxo de capital.

Assim, o crescimento da dívida explica-se porque grande parte dela está indexada à respectiva

taxa. A relação dívida líquida/PIB saiu de 30,4% em dezembro de 1994 para 41,7% em

dezembro de 1998, de acordo com a Tabela 7.

Page 45: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

43

Tabela 7 - Relação Dívida Líquida do Setor Público – 1994-1998 (% do PIB)

Período Total* Interna Externa

Dez/94 30,4 21,6 8,8

Dez/95 30,8 25,20 5,60

Dez/96 33,2 29,30 3,90

Dez/97 34,3 30,00 4,30

Dez/98 41,7 35,50 6,20Notas: *Inclui ajuste patrimonial (com privatizações).

Fonte: Ipeadata on-line (apud MODENESI, 2005, p. 333).

Cabe destacar, ainda, que nos anos de 1995-1998 a parcela dos títulos públicos

indexados à Selic, em relação ao total da dívida pública interna, foi de 37,8%, 18,6%, 34,8% e

69,1%, respectivamente (MODENESI, 2005). Adiante, observaremos as reformas do Estado

que vai ao encontro dos interesses do sistema financeiro.

3.5.1 As refomas do Estado

As reformas do Estado constituíram-se numa das dimensões cruciais do plano, assim

como as privatizações, para o aprofundamento do projeto neoliberal. Ainda, fazem parte dessa

dimensão o próprio programa de estabilização e abertura financeira/comercial

(FILGUEIRAS, 2012). Contudo, uma característica implícita no desenvolvimento do Plano

Real é o impacto desigual entre as classes sociais. Ademais, o discurso modernizante das

reformas, emitidos por FHC, esconde seus reais interesses e suas contradições, conforme

demostra Nildo Ouriques (1997, p. 95):

[...] é necessário precisar que o êxito governista que reconhecemos consiste na derrota do movimento sindical e no aumento da exploração da força de trabalho, questão que o governo não admite entre seus objetivos, afirmando o caráter social e distributivo do Plano Real. Por outro lado, o fracasso que indicamos refere-se ao conjunto de contradições criadas para manter o mito da moeda forte e que são insolúveis sem uma desvalorização do Real, realidade que o governo absorveu como sua grande conquista.

Logo, as medidas defendidas não são dignas de apoio da maior parte da população.

Frisar o discurso apenas da moeda em si e, por sua vez, na redução da inflação, mostrou-se

uma estratégia para ocultar os reais interesses, os quais não são nacionais e da maioria da

classe trabalhadora. Assim, ressalta Ouriques (1997, p. 102):

Page 46: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

44

Apresentar o Real como uma moeda forte faz parte desta operação política que pretende apoio popular para interesses mais amplos que não podem ser defendidos abertamente na sociedade brasileira. Tem sido uma característica notável de todos os países onde se aplicaram as reformas atuais o fato de as mesmas nunca terem sido defendidas em processos eleitorais de maneira aberta. Mesmo quando, por pressão internacional, foi adotado em vários países o mecanismo da reeleição, as privatizações, as demissões de funcionários públicos, o arrocho salarial, o pagamento religioso da dívida externa e a política de endividamento estatal nunca foram defendidos pelos candidatos-presidentes.

Com relativa facilidade no congresso nacional, aprovaram-se todas as reformas de

ordem econômica já no primeiro ano de mandato. Nesse período, extinguiu-se o monopólio

estatal na área de prospecção, exploração e refino do petróleo. Tal extinção ocorreu, também,

nas telecomunicações e na geração e distribuição de energia. Ainda, mudou-se o conceito de

“empresa nacional” visando possibilitar a igualdade de condições para as empresas

estrangeiras. Aliada a tudo isso, houve a desregulamentação da exploração do subsolo e a

navegação costeira, ou seja, permitiu-se a participação do capital estrangeiro (FILGUEIRAS,

2012).

Por outro lado, as reformas do Estado tiveram mais obstáculos em serem aprovadas.

A reforma fiscal só começou a ser discutida após a crise cambial de janeiro de 1999. Já as

reformas administrativa e previdenciária apenas foram colocadas em pauta ao fim do primeiro

governo FHC.

No tocante à reforma administrativa, o objetivo era a separação das funções próprias

de Estado e as demais funções, possibilitando a terceirização de várias atividades e setores

que atuam na área social. Assim, a estabilidade dos servidores foi identificada como o

obstáculo para a saúde das contas públicas, principalmente de estados e municípios. Diante

disso, aprovou-se a possibilidade de demissão por ineficiência e em caso de excesso de

quadros, se os salários pagos superarem 60% das receitas (FILGUEIRAS, 2012).

Em relação à reforma da previdência, identificada como o motivo principal do déficit

público, inclusive constando no Programa de Estabilização Fiscal de 1998, teve como

objetivos reduzir as aposentadorias especiais, redefinir a aposentadoria proporcional e por

tempo de contribuição, aumentar a contribuição dos ativos e instituí-la para os inativos. Além

disso, estabelecer um teto máximo de benefício para os trabalhadores privados menor do que

o existente, fazendo com que os fundos de pensão privados se desenvolvam (FILGUEIRAS,

2012).

Segundo Giambiagi (2011, p. 182), as reformas principais do período podem ser

resumidas nos seguintes termos:

Page 47: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

45

i. Privatização.ii. Fim dos monopólios estatais nos setores de petróleo e telecomunicações.

iii. Mudança no tratamento do capital estrangeiro.iv. Saneamento do sistema financeiro.v. Reforma (parcial) da Previdência Social.

vi. Renegociação das dívidas estaduais.vii. Aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

viii. Ajuste fiscal, a partir de 1999.ix. Criação de uma série de agências reguladoras de serviços de utilidade pública.x. Estabelecimento do sistema de metas de inflação como modelo de política

monetária.

Após o fim das altas taxas de inflação, o sistema financeiro deparou-se com

problemas associados ao desaparecimento das receitas de float (o dinheiro parado em conta

corrente e sem movimentação aplicado pelos bancos), fazendo com que as ineficiências do

setor ficassem expostas. Diante disso, as crises dos bancos Econômico, Nacional e

Bamerindus, além dos casos inicialmente não resolvidos dos bancos estaduais, notadamente

Banespa e Banerj, deu-se entre os anos 1995-1997. No entanto, esses três bancos privados

foram absorvidos por outras instituições financeiras, também privadas. Em busca de “salvar”

o sistema financeiro nacional, o governo lança mão de algumas políticas, que podem ser

compreendidas nos seguintes termos:

(1) instituiu o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), concedendo uma linha especial de assistência financeira destinada a permitir reorganizações societárias no sistema, o que, com um custo fiscal relativamente baixo (estimado em 1 a 2% do PIB), evitou uma crise financeira dramática como a vivida antes no México e depois em países da Ásia e na Argentina; (2) privatizou a maioria dos bancos estaduais, mediante negociações com os governadores; (3) facilitou a entrada de bancos estrangeiros no mercado brasileiro, procurando ampliar a concorrência no setor; (4) favoreceu um processo de conglomeração no setor, que deixou o mercado com menos instituições, porém relativamente mais fortes; (5) ampliou os requisitos de capital para a constituição de bancos; e (6) melhorou substancialmente o acompanhamento e monitoramento do nível de risco do sistema por parte do Banco Central (GIAMBIAGI, 2011, p. 182).

Além do PROER, destaca-se o PROES (Programa de Incentivo à Redução do Setor

Público Estadual na Atividade Bancária), sendo este voltado para os bancos públicos e àquele

aos bancos privados. Assim, o governo federal fazia com que os estados decidissem o

financiamento da totalidade das suas dívidas. Porém, somente se o estado abrisse mão do

controle do banco ou houvesse sua liquidação, senão o financiamento seria apenas da metade

dívida.

Page 48: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

46

Dos bancos que foram liquidados ou extintos estão: Banacre (Acre), Banap (Amapá),

Bandern (Rio Grande do Norte), Banroraima (Roraima), Bemat (Mato Grosso), Beron

(Rondônia), Rondonpoup (Rondônia), Caixego (Goias), Minascaixa (Minas Gerais),

Produban (Alagoas), Badesc (Santa Catarina), Bandes (Espirito Santo), BDGoiás (Goias), e

Desembanco (Bahia).

Dentre os bancos que foram privatizados tem os que foram controlados pelos

estados, tais como: Bandepe (Pernambuco), Baneb (Bahia), Banerj (Rio de Janeiro),

Banestado (Parana), Banco do Paraná, Bemge (Minas Gerais), Credireal (Minas Gerais), e

Paraiban (Paraiba).

Aqueles bancos que foram privatizados enquanto controlados pela União estão:

Banespa (Sao Paulo), Banescor, BEA (Amazonia) e BEG (Goias).

Já os bancos que decidiram pelo saneamento sem abrir mão do controle acionário

estão: Banese (Sergipe), Banestes (Espirito Santo), Banpará (Para), Banrisul (Rio Grande do

Sul), Nossa Caixa (São Paulo), BDMG (Minas Gerais), BEC (Ceará), BEM (Maranhão), BEP

(Piauí), e BESC (Santa Catarina).

Todavia, o PROES reduziu a participação pública no setor bancário estadual. Assim,

criou-se através do programa três linhas de crédito (duas destinadas à privatização dos bancos

estaduais e uma voltada a garantir a tomada, por parte dos bancos públicos federais, de

passivos dos bancos estaduais).

Portanto, o argumento de que as reformas garantiriam a racionalização do Estado,

possibilitando um regime fiscal sustentável, aumento da competitividade da economia e

atração de investimento externo não teve êxito. Ademais, serviram apenas para diminuição do

gasto corrente, sobrando dinheiro para o pagamento de juros e amortização da dívida e,

também, para concretização da venda do patrimônio público. Assim, internacionalizou-se

ainda mais a economia, aumentando a dependência externa e garantindo juros elevadíssimos

ao sistema financeiro nacional e internacional.

3.5.2 As privatizações

Deve-se destacar que as privatizações começaram no governo Collor como Programa

Nacional de Desestatização (PND). No entanto, o governo FHC expandiu e acelerou as

mesmas como, por exemplo, a Vale do Rio Doce e os setores de concessão de serviços

públicos que estão relacionados à energia elétrica e telecomunicações.

Page 49: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

47

O debate acerca das privatizações é repleto de inúmeras justificativas, porém

destacam-se aquelas de natureza estrutural e conjuntural (FILGUEIRAS, 2012). Em relação à

primeira utilizam-se das seguintes justificativas:

a) ideológica (defesa da livre iniciativa);b) eficiência (as empresas estatais não conseguem se guiar por parâmetros exclusivamente de mercado, pois têm as suas gestões extremamente politizadas);c) mudança dos setores estratégicos (por um lado, não teria mais sentido o Estado permanecer em seguimentos da economia que perderam o seu caráter de vanguarda do ponto de vista tecnológico e, por outro, novos setores, como o de telecomunicações, exigiriam um aporte de recursos e a adoção de novas tecnologias que o Estado não teria condições de arcar);d) amadurecimento e fortalecimento do setor privado (as empresas estatais são de uma época em que as empresas privadas não demonstravam capacidade de investimento, por várias razões, em muitos segmentos da economia; a solução, para que o país não ficasse carente foi a presença do Estado, o que hoje já não é mais necessário); e, por fim,e) evitar o efeito crowding-out (a presença do Estado e das empresas privadas nos mesmos setores pode resultar em desestímulo ao investimento destas últimas nesses setores) (FILGUEIRAS, 2012, p. 112).

Por outro lado, as justificativas do tipo conjuntural estão relacionadas à

“credibilidade política”, à “crise fiscal e à estabilização monetária”, às “limitações de

investimento público e aos efeitos catalizadores e dinamizadores sobre a economia”

(FILGUEIRAS, 2012). As justificativas de Collor para realizar as privatizações deram-se pela

obtenção de recursos para aplicação na área social, modernização do parque industrial e o

resgate da dívida pública. Já o governo FHC também utilizou o argumento do atendimento às

áreas sociais, porém mudou-se o discurso depois de um tempo, dando ênfase à redução da

dívida pública.

[..] a verdadeira âncora do Plano Real tem sido o patrimônio público acumulado nos últimos 50 anos [..]. Esse é o lastro que mantém a credibilidade do programa de estabilização. As reservas cambiais suportariam pouco mais do que alguns meses de déficit em transações correntes, isso na hipótese de indexação de uma onda especulativa contra a moeda (HADDAD, 1998, p. 64).

Em sentido contrário do anunciado, as privatizações não garantiram benefícios para

as finanças públicas como um todo, assim demonstram Gonçalves e Pomar (2000 p. 26):

Segundo o governo federal, de 1991 a 1998 o país teria arrecadado 85 bilhões de reais com as privatizações. Cálculos mostram que – mesmo desconsiderando os preços subavaliados e o impacto social negativo – o governo perdeu pelo menos 87 bilhões de reais com as privatizações. Embora tenha produzido um abatimento contábil na dívida interna, a privatização aumentou a dívida externa e o passivo externo do país. Por exemplo, com os empréstimos contraídos no exterior por empresas privadas que compraram estatais.

Page 50: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

48

Analisando a Tabela 8, com dados do BNDES, percebe-se que foram privatizadas, a

partir do PND, entre 1991-1999, cerca de 64 empresas estaduais, as quais renderam US$

28.861 milhões. Desse valor, cerca de 68% foi obtido com a receita das vendas e 32% de

transferências de dívidas. Cabe destacar os principais setores, que são: siderúrgico,

petroquímico, fertilizantes, elétrico, ferroviário, minerais, portuário e financeiro

(FILGUEIRAS, 2012).

Tabela 8 - Resultado do Programa Nacional de Desestatização 1991-jul./99 – US$ milhões

Período Nº de empresasReceita de

vendasDívidas

transferidasTotal

1991 4 1.614 374 1.988

1992 14 2.401 982 3.283

1993 6 2.627 1.561 4.188

1994 9 1.966 349 2.315

1995 8 1.003 625 1.628

1996 11 4.080 669 4.749

1997 4 4.265 3.559 7.824

1998 7 1.574 1.082 2.737

até jul./99 1 49 - 49

Total 64 19.579 9.201 28.861Fonte: BNDES (apud FILGUEIRAS, 2012, p. 114).

Até julho de 1999 as privatizações no Brasil tiveram um montante de US$ 88,3

bilhões (ver Tabela 9), somando-se as privatizações federais (PND + telecomunicações = US$

57.964 milhões) e estaduais (US$ 30.346 milhões) (FILGUEIRAS, 2012).

Assim, constata-se na tabela a seguir o intenso processo de privatizações do

patrimônio público brasileiro:

Tabela 9 - Privatizações – resultados gerais acumulados – 1991 – jul./ - US$ milhões

ProgramaReceita de

vendasDívidas

transferidasResultado

Geral

Telecomunicações 26.978 2.125 29.103

PND 19.660 9.201 28.861

Privatizações Federais (PND + Telecomunicações) 46.638 11.326 57.964

Privatizações Estaduais 24.553 5.793 30.346

Total (Priv. Federais + Estaduais) 71.191 17.119 88.310Fonte: BNDES (apud FILGUEIRAS, 2012, p. 115).

Portanto, pode-se resumir a tabela e o período de privatizações nos devidos termos:

Page 51: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

49

No governo Collor, foram vendidas 18 empresas, num total de US$ 4 bilhões, enquanto no Governo Itamar foram privatizadas 15 empresas, num montante de US$ 4,6 bilhões. Como se pode observar, portanto, foi no governo Cardoso que, de fato, as privatizações deslancharam, tornando-se, na prática, elemento essencial do novo projeto de desenvolvimento. Apenas em relação ao PND (US$ 28,9 bilhões), as privatizações no governo Cardoso corresponderam a 70% do total; se incluirmos o setor de telecomunicações (mais US$ 29,1 bilhões), essa participação chega a 85% do valor arrecadado pela União (FILGUEIRAS, 2012, p. 115).

A concentração, a privatização e a desnacionalização do setor bancário demonstra o

modo pelo qual o sistema financeiro ganha mais predominância na economia brasileira,

caracterizando-se pela diminuição dos bancos estaduais (privatizações) e a compra dos bancos

privados nacionais pelo capital externo. Pela criação dos bancos múltiplos e da extinção da

carta patente, o total de instituições bancárias deu um salto de 166 para 273, entre 1988 e

1994.

Porém, esse número reduziu-se para 233, em 1998. Observa-se, também, que os

bancos com controle estrangeiro passaram de 19 a 36 no período de 1994-1998, expressando-

se num aumento significativo aproximadamente 90% (FILGUEIRAS, 2012). Assim, pode ver

na tabela a seguir:

Tabela 10 – Número de Instituições Bancárias

Tipos de Banco Dez/88 Jun/94 Dez/98

Bancos Públicos Federais 6 6 6

Bancos Públicos Estaduais 37 34 24

Bancos Privados Nacionais 44 147 106

Filiais de Bancos Estrangeiros (comerciais) 18 19 16

Bancos com Controle Estrangeiro 7 19 36

Bancos com Participação Estrangeira 5 31 23

Bancos de Investimento 49 17 22

Total do Sistema Bancário Nacional 166 273 233Fonte: Banco Central (apud FILGUEIRAS, 2012, p. 164)

Também houve aumento da participação dos bancos nacionais com controle

estrangeiro no total dos bancos múltiplos com atuação no Brasil. Ao considerarmos o número

de instituições nos totais de créditos, ativos e depósitos e patrimônio líquido houve uma maior

participação dos bancos estrangeiros (tabela 11).

Page 52: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

50

Tabela 11 – Bancos nacionais com controle estrangeiro no total dos bancos múltiplos e comerciais

Jun/94 Dez/95 Dez/96 Dez/97 Dez/98

Nº de bancos 7,7 8,3 10.6 13,5 17,7

Créditos 6 6,1 9,5 14,2 18

Ativos 6,4 6,8 9,1 12,6 18,4

Depósitos 6,4 5,3 7 12 15,7

Patrimônio Líquido 5,9 9,5 8,2 12,9 19,5Fonte: Sisbacen (apud FILGUEIRAS, 2012, p. 165)

O enorme programa de privatização promovido por FHC não trouxe resultados

esperados. Do ponto de vista da dívida interna não teve solução, pois não conseguiu impedir

seu crescimento. Além disso, o resultado não foi satisfatório para atração de investimento

direto estrangeiro.

As privatizações não contribuíram para reduzir o “rombo” e as dívidas do Tesouro – totalmente atolado, em 1999, com o pagamento de juros na casa astronômica dos 130 bilhões de reais. Uma quantia impagável, já que é praticamente o valor do todo o orçamento da União em 1999 – excluindo-se a Previdência -, no montante de 160 bilhões de rais. Pior ainda: a política de privatizações tampouco desempenhou o outro papel que se anunciava para ela, a saber, o de criar “novos motores da economia”, com a contratação maciça de encomendas nas indústrias do país, graças aos investimentos gigantescos previstos para as áreas de telecomunicações, energia e, em menor escala, ferrovias – além da área petrolífera. Ao contrário: com a conivência e até incentivos do governo, esses setores vêm realizando importações explosivas “torrando” dólares e ampliando o “rombo” da balança comercial (exportações menos importações). Além disso, os “donos” multinacionais das empresas privatizadas passaram a realizar remessas maciças para o exterior, para seus países, sejam como lucros, dividendos, juros ou até como pagamento de “assistência técnica” ou “compra de tecnologia” de suas matrizes. Em lugar de ajudar a tapar o “rombo” externo, a privatização agravou, e de forma permanente (BIONDI, 2003, p.24).

Portanto, houve uma piora da situação financeira do país, aliado a isso, abateu-se a

crise cambial. Após a desvalorização do real evidenciou-se as condições estruturais de um

país dependente e subdesenvolvido, de tal modo que a fragilização financeira, a

desindustrialização e a internacionalização da economia se intensificaram. Assim, de acordo

com o que foi abordado até então, o aumento da influência do sistema financeiro nacional e

internacional intensificou-se no domínio das políticas públicas e no destino dos interesses

nacionais. Diante disso, a concepção da economia rentista é cada dia mais notória e, por

Page 53: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

51

conseguinte, será abordado nos próximos capítulo sua evolução no domínio do sistema da

dívida e nas decisões políticas dos sucessivos governos.

3.6 AS FASES DO PLANO

A abordagem de Filgueiras fraciona o período do governo FHC em 4 fases de flutuações do nível de atividade da economia brasileira.

A primeira, expansiva, compreendeu o período de julho de 1994 a março de 1995; a segunda, recessivo-estagnacionista, que começou em abril de 1995 e foi até março do ano seguinte, a terceira, de retomada do crescimento, compreendida entre abril de 1996 e junho de 1997; e, por fim, a quarta fase, novamente recessivo-estagnacionista, que se iniciou no segundo semestre de 1997 e se prolongou até o final do período aqui considerado (junho de 1999) (FILGUEIRAS, 2012, p. 118).

O período inicial foi marcado pelo acelerado crescimento do consumo, da produção

e do emprego. Os fatores que contribuíram para o aumento da atividade econômica nesse

período deram-se através do aumento das compras a prazo, a baixa remuneração nominal das

aplicações financeiras, a não desindexação imediata dos salários. Desse modo, o consumo

teve alta e o PIB, em 1994, cresceu 5,8%.

No entanto, com a crise cambial mexicana e a derrubada das cotações do dólar, a

contrapartida dessa política de estabilização começou a mostrar seus efeitos. Em 1994, com a

crise cambial no México, evidenciou-se a impossibilidade de os países periféricos

sustentarem o crescimento econômico com uma profunda abertura comercial e financeira,

por meio de uma sobrevalorização da moeda em relação ao dólar. Por isso, o governo elevou

novamente a taxa de juros, a fim de conter a fuga de capitais e sustentar a âncora cambial,

além de outras medidas.

A fim de controlar a situação, que ameaçava desembocar num colapso cambial, o Governo tomou as seguintes medidas adicionais: elevações consecutivas dos depósitos compulsórios dos bancos comerciais no Banco Central, com o crescimento assustador das taxas de juros; redução nos prazos dos consórcios e do número de prestações nas compras a prazo; elevação das alíquotas do Imposto de Importação de mais de cem produtos de consumo durável para 70% - algumas delas, depois por violação das regras da OMC, caíram para 45%; incentivos à exportação e à entrada de capitais especulativos, com a retirada ou diminuição do IOF, e, por último, o estabelecimento de quotas de importação para os automóveis (FILGUEIRAS, 2000, p. 126).

O fim da desindexação do ajuste salarial, que ocorreu em julho de 1995, serviu para

compensar as perdas do capital produtivo. Desse modo, o Plano Real desde o princípio

Page 54: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

52

aponta para o aprofundamento da superexploração do trabalho. O desemprego fruto da

política liberal fez com que afetasse ainda mais o salário real dos trabalhadores.

O terceiro período relatado por Filgueiras caracteriza-se pelo crescimento, que é

principalmente estimulado pela redução das taxas de juros. Por causa da estabilidade do

período, a taxa de juros passou a ser reduzida gradualmente. Desse modo, o cenário de

eleições municipais fez com que o governo aumentasse seus gastos e começasse a divulgar a

retomada do crescimento. Assim que a atividade econômica aqueceu, a partir do segundo

semestre de 1996, os déficits na balança comercial voltaram a aparecer. Além disso, a crise

na Àsia e, consequentemente, na Rússia.

Os primeiros sinais da crise começaram no segundo semestre de 1998, mas agravou

ainda mais com a moratória da dívida russa e a desvalorização do rublo. Assim, o governo

para conter as duas crises internacionais aumentou a taxa de juros, que chegou a 49%. Ainda,

concedeu facilidades tributárias ao capital estrangeiro. Em outubro um novo pacote fiscal foi

implementado para o período de 1999 a 2001, chamado Programa de Estabilidade Fiscal, o

qual seria a base do acordo feito posteriormente com o FMI. O programa contemplava metas

para ampliação do superávit primário, Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), etc.

Os objetivos dessa política, mais uma vez, foram os mesmos de sempre: de um lado, conseguir superávits primários nas contas públicas e, de outro, reduzir o nível de atividade econômica, buscando uma redução dos déficits na balança comercial, através da diminuição das importações e do incitamento às exportações. Tudo isso para tentar demonstrar ao capital financeiro internacional a capacidade do país para pagar as suas dívidas externa e interna. (FILGUEIRAS, 2000, p. 140).

Os motivos para recorrer ao FMI foram os mesmo do início da década de 1980.

Devido ao estrangulamento externo e ameaça de uma crise cambial, o país novamente

recorreu ao FMI em dezembro de 1998, pois o risco de uma moratória era cogitado, sendo os

motivos para recorrer ao FMI foram os mesmos do início da década de 1980. A situação do

Brasil era totalmente instável.

Em suma, a perda de mais de US$30 bilhões das reservas do país, que diminuíram de US$ 70 bilhões para algo em torno de US$ 40 bilhões em três meses, a partir da crise da Rússia, mais a necessidade de, aproximadamente, US$ 60 bilhões para fechar as contas externas no ano de 1999 e o crescimento do déficit público e em transações correntes no balanço de pagamentos explicitaram uma trajetória explosiva da economia, com a virtual incapacidade do país de cumprir seus compromissos internacionais e manter o Plano Real com as características e contradições aqui mencionadas (FILGUEIRAS, 2000, p. 142).

Page 55: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

53

O acordo fez com que o governo se comprometesse a desvalorizar gradativamente o

real, continuar a abertura comercial, acelerar as privatizações, intensificar as reformas

liberais e realizar um ajuste fiscal para três anos (1999-2001). Desse modo, garantindo as

metas de superávit primário fiscal e o pagamento de juros. O total dos empréstimos junto ao

FMI foi de US$ 41,5 bilhões.

Conforme destaca Santos e Lopreato:

Do lado cambial, não suportando as pressões especulativas contra a moeda e a despeito da recorrência aos recursos do FMI e das negociações junto à comunidade financeira internacional, o País deixa o regime de taxas administradas em janeiro de 1999 e passa a adotar o câmbio flexível, com taxas determinadas pelo mercado. Do lado monetário, a instituição das metas de inflação daria as novas bases para o trato da política: o Conselho Monetário Nacional passava a determinar as metas a serem atingidas a cada ano e o BC a controlar a taxa SELIC que se julga compatível com a inflação na meta definida. Fechava-se, portanto, o modelo de política macroeconômica proposto pelo NCM, com a taxa de juros como variável de ajuste macroeconômico para a obtenção da estabilidade de preços no longo prazo (as metas de inflação). Com a política fiscal comprometida com as metas de superávit primário compatíveis com a estabilidade da relação dívida/PIB, completava-se a nova concepção de política macroeconômica, conhecida desde então como o “tripé macroeconômico” (câmbio flexível, metas de inflação e superávit primário) (SANTOS e LOPREATO, 2016, p.14)

O desfecho do acordo com o FMI foi a predominância da hegemonia do capital

financeiro internacional sobre o pacto estabelecido na economia brasileira. O resultado da

política liberal mostrou a dependência econômica do Brasil em relação ao sistema financeiro

internacional. De acordo com Alvez:

Após a desvalorização da moeda nacional, em janeiro de 1999, o déficit comercial começou a diminuir, porém só apresentou resultado positivo no ano de 2001. Já o déficit na balança de serviços sofreu uma redução marginal após 1998, permanecendo em níveis elevados. Assim, o déficit em conta corrente, que é o maior indicador da vulnerabilidade externa brasileira, sofreu uma redução após a desvalorização do real, mas o montante de US$ 23,2 bilhões apresentado em 2001 mostra que a economia brasileira continua extremamente dependente dos fluxos financeiros internacionais. Desta forma, a desvalorização do Real inverteu a curva dos déficits externos crescente, mas não foi suficiente para afastar o perigo do estrangulamento externo da economia brasileira (ALVES,2002, pag. 281).

Ainda, destaca o mesmo:

Em 1994, o PIB cresceu 5,9% e, nos sete anos seguintes, cresceu numa média anual de cerca de 2,5%. Como a população estava crescendo em torno de 1,6% ao ano nesse período, o crescimento da renda per capita brasileira, no período, ficou abaixo de um por cento ao ano. [...] O desemprego medido pelo Dieese passou de 14,2% em 1994 para 18,3% em 1998 e 17,5% em 2001 (ALVES,2002, pag. 282).

Page 56: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

54

Portanto, houve a incorporação da classe exportadora no pacto, beneficiando as

contas externas. Por outro lado, tivemos uma maior estagnação da economia brasileira,

aumento do desemprego, desnacionalização da economia, arrocho salarial e concentração da

riqueza. A internacionalização da economia, que começa de forma mais acentuada com

Collor, aprofunda-se após Plano Real. Não obstante, a predominância de uma economia

dependente e rentística se expressa ainda mais após o Plano, maneira pela qual o capital

financeiro se hegemoniza em torno da dívida pública, atraindo diversas frações da classe

dominante.

Essa hegemonização da economia rentística em torno da dívida pública e a

continuação do modelo preconizado pelo FMI e Banco Mundial pode ser observado ao longo

dos distintos governos, isso será abordado no capítulo seguinte.

4 O PETUCANISMO E O PLANO REAL

A conjuntura econômica mostrava-se desfavorável a continuação do pacto

promovido pelo governo FHC, isto é, renovar era preciso para manter as políticas

implementadas até o final do mesmo. No entanto, a despeito de se voltar a classe

trabalhadora, o governo de Luís Inácio Lula da Silva, do Partido dos trabalhadores (PT),

estava longe de ser o governo de ruptura com o modelo econômico estabelecido pelo Plano

Real. Assim, o programa econômico que constava na carta aos brasileiros seria a escolha das

classes dominantes pela renovação do poder e, por conseguinte, a continuação do plano até

Page 57: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

55

então administrado por FHC, ao invés do seu sucessor, do mesmo partido já desgastado, José

Serra.

As transformações na política econômica defendida pelo PT sofreram um processo

de moderação desde sua fundação, existem quatro momentos no período anterior e posterior

as eleições presidenciais de 2002 que evidenciam essas mudanças (NETO, 2003). Desse

modo, o primeiro vai ao encontro do que estabeleceu o programa aprovado no XII Encontro

Nacional do PT, ocorrido em 2001, o qual estabeleceu diretrizes para um programa de

governo.

A concepção econômica de conjunto dessas Diretrizes pode talvez ser chamada de “social-desenvolvimentista”. Combina uma retomada das propostas desenvolvimentistas com uma maior preocupação com a distribuição de renda e principalmente com a defesa uma maior participação dos trabalhadores e do povo na direção do processo, bem como com uma maior ênfase no caráter nacional do projeto de desenvolvimento. Aponta, além disso, a necessidade de “ruptura global” com o modelo existente, como vimos. Assim, embora sua formulação seja mais moderada do que o “programa democrático e popular” tradicional do PT, essa concepção pode legitimamente ser considerada como uma versão desse programa- como aliás é sugerido na sua frase inicial: “A implementação de nosso programa de governo para o Brasil, de caráter democrático e popular...” (Concepção e Diretrizes do programa de Governo do PT para o Brasil, dezembro de 2001, §1, p.15) (NETO, 2003, p.182).

O encontro estabeleceu diretrizes, as quais defendiam uma ruptura com o ideário

liberal que predomina no país e a elaboração de políticas para reduzir a dependência e a

vulnerabilidade externa. Com isso, criticava-se a política econômica de FHC no que diz

respeito a dependência ao capital externo, a abertura comercial, ao déficit na balança de

serviços e a dívida externa. Assim, prometia-se denunciar política e juridicamente os acordos

com o Fundo Monetário Internacional.

O segundo momento teve expressão com a divulgação da Carta aos Brasileiros de

Lula, além da aprovação, no Diretório Nacional do PT, do programa de Governo da

coligação “Lula Presidente, Um Brasil para Todos”. Na ocasião, para acalmar os mercados,

afirma-se a continuação da política econômica de FHC. Assim, o PT tratou a devida

continuação do modelo econômico como uma política transitória para as reais mudanças que

enunciava.

Já, em relação ao terceiro momento, diz respeito aos primeiros meses de gestão do

governo Lula, em que as políticas econômicas do governo anterior foram mantidas sem

sinais de modificação ou de transição para outro modelo. Posto isso, essa situação ficava

Page 58: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

56

evidente pelos discursos e medidas econômicas dos ministros da economia, os quais não

apontavam que essas políticas iriam se alterar.

Não obstante, o quarto momento se expressa através do Plano Plurianual 2004-2007,

tal plano demonstrou de fato o que seria a política econômica adotada pelo PT.

Portanto, os referidos momentos são de suma importância para a compreensão do

processo gradual de adaptação do PT a agenda econômica imposta pelas classes dominantes,

pois muitos economistas, acadêmicos, militantes e movimentos sociais que se reivindicam de

esquerda aceitaram essa continuação do modelo econômico vigente anteriormente como

natural e necessária, fazendo com que a culpa recaísse sobre uma suposta “herança maldita”

vinda do governo FHC e impossível de ser alterada.

4.1 A CONTINUAÇÃO DO PLANO REAL PELO PT E A CONSOLIDAÇÃO DO

MODELO LIBERAL PELOS SUCESSIVOS GOVERNOS

A fim de elucidar o porquê do governo Lula ter obtido resultados melhores, mesmo

mantendo a mesma política econômica, é de suma importância compreender a continuação

desse modelo econômico. Portanto, a conjuntura internacional é relevante ao entendimento,

pois houve uma diferença conjuntural no início do governo Lula em relação ao final do

governo FHC, o que possibilitou com a mesma política econômica que se obtivesse

resultados melhores, em especial na balança comercial. A manutenção deu-se,

principalmente, pela política de superávits primários, o regime de câmbio flutuante, o sistema

de metas de inflação e a manutenção da Lei de Responsabilidade Fiscal. Os treze anos do PT

no poder podem ser apresentados sob dois períodos. O primeiro momento consiste no

período Lula, em que o crescimento que servira de base para a conciliação. Já o segundo

momento equivale ao período Dilma, onde se observa uma crise de acumulação que auxilia

no fim da estratégia de aliança e no acirramento da luta de classes.

O crescimento dos fluxos comerciais tem possibilitado, aos países, em

desenvolvimento em geral, e ao Brasil em particular, expandir suas exportações e

obter elevados superávits nas suas respectivas balanças comerciais. Ocorre um

fenômeno generalizado de redução dos déficits ou mesmo obtenção de superávits

nas contas de transações correntes. Assim, a melhora na situação das contas

externas permitiu que a mesma política ortodoxa, que vinha sendo adotada desde

1999, tivesse resultados macroeconômicos melhores a partir de 2003, usando-se

Page 59: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

57

como referência sua própria lógica e seus objetivos anunciados e, de fato,

perseguidos. Sem dúvida, a evolução das contas externas do país evidencia que o

período mais recente (2003-2006) tem se caracterizado por melhora dos indicadores

de vulnerabilidade externa conjuntural da economia brasileira e, por consequência,

menor instabilidade macroeconômica (FILGUEIRAS e GONÇALVES, 2007, p.

99).

Essa conjuntura favorável pode ser analisada através dos dados levantados por

Filgueiras e Golçalves (2007, p.102). De acordo com os mesmos:

• a taxa média de crescimento da renda real mundial entre 2003-2006 foi de 4,9%, acima da média histórica (1890-2006) que foi de 3,2%;

• tanto o nível de investimento como a taxa de crescimento do PIB mundiais apresentaram trajetórias crescentes no primeiro governo Lula, ao contrário dos últimos anos do governo FHC. Isso também significou um crescimento do investimento estrangeiro direto nesse período. Um dos grandes influenciadores desse crescimento foi a ampliação do desenvolvimento tecnológico a partir das indústrias de informática e telecomunicações;

• houve um crescimento do volume de exportações e dos preços no comercial mundial no período 2002-2006, em especial das commodities;

• o déficit nas contas externas e o déficit das contas públicas dos Estados Unidos gerou um excesso de dólares na economia mundial. Assim as reservas internacionais cresceram nesse período;

• os países, ditos, em desenvolvimento se favoreceram da conjuntura financeira internacional, melhorando seus indicadores em relação a vulnerabilidade externa. O saldo da conta corrente do balanço de pagamentos desses países aumentou de US$77 bilhões em 2002 para U$544 bilhões em 2006. Somam-se a isso um processo de melhoria dos indicadores relativos desses países. A relação entre as reservas internacionais e as importações de bens e serviços aumenta de 55,3% em 2002 para 71,4% em 2006 e a relação entra a dívida externa e a exportação de bens e serviços reduziu-se de 119% em 2002 para 67% em 2006.

Entretanto, diante da finalidade deste trabalho, os dados apresentados são

necessários para entender que havia uma conjuntura favorável para a estabilidade econômica

e a melhoria da situação na balança comercial. Diante disso, a despeito do que defendia os

economistas ligados ao governo, não foram mudanças na política macroeconômica que

levaram a melhores desempenhos da economia brasileira - sendo estes desempenhos sob

padrões dentro dos objetivos estabelecidos pelo Plano Real e o modelo econômico

recomendado pelo FMI -, mas sim a conjuntura econômica favorável. Assim, a política

macroeconômica pouco modificou-se em relação ao governo antecedente, tendo como seu

instrumento principal a taxa de juros.

Desde o Plano Real, a taxa de juros constitui uma espécie de variável-síntese para compreensão do país. Ela é, ao mesmo tempo, a expressão mais aparente – “a ponta do iceberg” – da natureza financista do atual bloco de poder dominante e o

Page 60: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

58

elemento central mais imediato de explicação dos principais problemas macroeconômicos. Dentre estes problemas, vale destacar: as baixas taxas de crescimento do PIB e sua elevada volatilidade; a grande concentração de riqueza e renda; o elevado grau de pobreza da população; a enorme dívida pública (de curto prazo) comparada ao PIB e a reduzidíssima capacidade de investimento do Estado; o tipo precário de inserção internacional do país e, por decorrência, a sua grande vulnerabilidade externa estrutural.

Esses problemas, estreitamente relacionados entre si – alimentando-se reciprocamente -, têm em suas respectivas origens, como uma espécie de denominador comum, o modelo econômico que vem sendo consolidado há doze anos e, mais particularmente, a política macroeconômica adotada a partir de 1999. Tal política envolve a combinação de três elementos: metas de inflação como o único objetivo da política monetária; ajuste fiscal permanente como elemento central da política fiscal; e regime de câmbio flutuante, definido essencialmente pelo mercado, que tem resultado em forte apreciação cambial.

Nesse contexto, a alta taxa de juros constitui o principal instrumento de política macroeconômica, condicionando decisivamente as políticas fiscal e cambial, bem como os seus resultados. Expressão da abertura econômico financeira passiva e desregulada, a política monetária restritiva sobrecarrega a dívida pública e impõe a necessidade de um ajuste fiscal permanente. Ademais, a restrição monetária dificulta a inserção comercial internacional mais ativa do país, pois desestimula o investimento e a inovação (FILGUEIRAS e GONÇALVES, 2007, p. 100).

Nota-se que o governo Lula não rompeu com o pacto de classes estabelecido no

Plano Real, aliás, intensificou a agenda da classe dominante. Isto verifica-se no aspecto da

política econômica através da elevação da taxa de juros e do aumento dos superávits fiscais

primários, isto é, manteve-se o tripé macroeconômico. Houve mudança nas medidas

econômicas do governo petista, isso demonstrou-se através da apreciação do Real, de tal

modo a viabilizar o controle da inflação, como ocorreu no primeiro governo FHC, porém em

níveis menos intensos para não prejudicar os interesses dos exportadores. A despeito desse

mecanismo não ter sido descartado pelo governo anterior, as crises cambiais no segundo

mandato de FHC fizeram com que o real desvalorizasse.

A apreciação do câmbio foi possível devido ao cenário internacional favorável e as

altas taxas de juros que favoreceram a inserção de um elevado fluxo de capitais de curto

prazo. A conjuntura possibilitou que houvesse uma melhora na balança comercial pela

“desvalorização cambial de 2002, o crescimento das economias americana e chinesa, que

puxaram o comercial mundial, a recuperação da Argentina e a disparada dos preços das

commodities (FILGUEIRAS e GONÇALVES, 2007, p. 102) ”. Todavia, a melhora na

balança comercial foi acompanhada por um aumento nas remessas de lucros e dividendos,

com aumento dos déficits de serviços e rendas. Diante da conjuntura favorável, possibilitou-

se ao governo valorizar o Real – não abdicando de atender aos interesses dos setores

Page 61: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

59

exportadores - como um mecanismo para reduzir tanto as metas quanto os índices de inflação

entre 2003 e 2006, além das altas taxas de juros do período. Houve uma redução das metas,

sendo em 2003 de 8,5%, passou para 4,5% em 2006. Além disso, o IPCA reduziu de 9,3%

em 2003 para 3,1% em 2006. No entanto, a política de estabilização da inflação do governo

Lula foi mais ortodoxa que a dos próprios formuladores do Plano Real.

O governo Lula, com a mesma política econômica do governo anterior e sem mudar

a natureza passiva da inserção internacional do país, mas com uma conjuntura

internacional muito favorável, tem se beneficiado de resultados expressivos na

balança comercial – apesar de haver forte apreciação cambial. Esta circunstância,

em que pese o desempenho interno medíocre, tem lhe possibilitado manter

intocável o modelo econômico, nas suas características fundamentais. Além disso,

lhe permite, também, administrar mais facilmente eventuais contradições no

interior do bloco de poder e defender, agora abertamente, a política econômica que

estava desacreditada no final do segundo governo Cardoso (FILGUEIRAS e

GONÇALVES, 2007, p. 104).

Assim, o governo petista apostou nas altíssimas taxas de juros, apreciação do real e

a dominância da lógica financeira, servindo aos interesses do sistema financeiro como um

todo, tendo como estímulo a participação de diversas classes na financeirização do estado,

como os latifundiários, industriais, comerciantes, banqueiros etc. Desse modo, reforçou a

dependência do país e aprofundou a lógica de reprimarização da economia.

Essa política econômica é determinada pela dominância da lógica financeira nos âmbitos político, econômico e social. Ela implica a quase estagnação da renda per capita e do mercado interno. Ademais, a política econômica de Lula monta a armadilha da vulnerabilidade externa estrutural e do atraso no médio e longo prazos: a perpetuação da inserção internacional do país, apoiada, essencialmente, em commodities e produtos industriais com baixo e médio-baixo conteúdo tecnológico, intensivos em trabalho e recursos naturais. Esse processo mantém o país em situação de grande vulnerabilidade em relação aos ciclos do comércio internacional.

No curto prazo, a apreciação do real decorre da manutenção de grande diferencial entre as taxas de juros interna e externa. No entanto, a apreciação cambial tem como contrapartida a elevação das importações e a redução da competitividade das exportações. Essa perda de competitividade internacional ainda não se explicitou claramente nas contas do balanço de pagamentos por causa da conjuntura favorável do comércio internacional.

A elevada taxa de juros, além de impulsionar o círculo vicioso que justifica o permanente ajuste fiscal e provocar a quase estagnação do mercado interno torna extremamente difícil, senão impossível, a transição para um outro tipo de inserção internacional – apoiada em produtos de maior conteúdo tecnológico e com

Page 62: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

60

demanda em expansão no mercado mundial. Em sentido contrário, a pauta de importações concentrada em produtos de média e alta tecnologia, além da ausência de uma polícia industrial ativa, agrava ainda mais a situação (FILGUEIRAS e GONÇALVES, 2007, p. 104).

Acerca das informações apresentadas pelos autores, vale destacar alguns

apontamentos relevantes. Há uma impossibilidade de transição para um outro tipo de

inserção internacional, em relação a produtos de alta densidade tecnológica, pois a

manutenção desse modelo é estrutural dentro da divisão internacional do trabalho para um

país dependente como o Brasil. Além disso, a classe dominante brasileira não quer aderir a

um projeto de nação em que produzirão produtos de alta sofisticação tecnológica. Diante

disso, uma transformação do modelo atual não se passa por mudanças na política econômica

através de um tecnicismo, mas sim pela ruptura com o modelo de capitalismo dependente

rentístico.

De 1997 até 2013 a economia apresentou um resultado fiscal superavitário, um pilar

do tripé macroeconômico, conseguido principalmente por ajustes fiscais.

Gráfico 4 – Resultado Fiscal Primário 1997-2020

Fonte: Elaboração do autor, baseada em Ipeadata (2020).

Tal superávit demonstrou um crescente aumento até 2013, fazendo com que boa

parte do que estava sendo previsto em gastos sociais fosse economizado para ser gasto em

juros e amortização da dívida pública. Basta ver que em 2014, no último mandato de Dilma

Page 63: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

61

Rousseff, o respectivo pagamento chegou a ultrapassar 1 trilhão de reais, chegando ao

patamar de 42,2% do orçamento federal.

A partir do primeiro mandato do governo Lula a política de metas de superávit

primário foi acompanhado por uma modificação da política de endividamento externo para

endividamento interno. Com isso, o endividamento interno cresceu exponencialmente, pois a

dívida interna líquida que era de 660,5 bilhões de reais em 2002, passou para 1,158 trilhões

em 2006 e, consequentemente, 2,341 trilhões em 2013. Por outro lado, a dívida externa

liquida reduziu de 231,7 bilhões de reais em 2002 para -27,8 bilhões em 2006 e, em 2013,

chegou a 714,7 bilhões (IPEADATA, 2020).

Assim, diante do aumento das reservas cambiais, devido ao cenário externo

favorável, a redução da dívida externa líquida tornou-se viável. No entanto, a dívida externa

bruta brasileira permaneceu crescendo, chegando a 485 bilhões de dólares ao final de 2013

enquanto a dívida interna bruta atingiu 2,986 trilhões de reais.

Contudo, as medidas econômicas no primeiro mandato do governo Lula, as quais

foram continuação do governo antecedente, mantiveram suas diretrizes gerais durante o seu

segundo mandato e no início do governo Dilma. Isto é, utilizou-se das metas de superávit

primário, sobrevalorização do real, metas de inflação, altas taxas de juros e a situação estável

na balança de pagamentos diante de um cenário internacional favorável, além do crescimento

da economia chinesa e os elevados preços dos produtos agrícolas e minerais.

No segundo mandato de Dilma Rousseff, com a crise de acumulação capitalista

global se intensificando, há uma mudança na dinâmica econômica interna. Não mais seria

possível, dentro do modelo econômico, continuar com políticas de investimento e gastos

sociais que se intensificaram no primeiro e segundo governo de Lula e, também, no primeiro

de Dilma. No entanto, assim que Dilma assume o segundo mandato há um ajuste fiscal

profundo, o qual reduziu investimentos em áreas essenciais, assim como gastos na educação,

saneamento etc. Toda a atividade produtiva sentiu o profundo ajuste, pois reduziu-se

atividade econômica devido à queda no consumo, produção, aumento do desemprego e

redução de salários.

O argumento utilizado para promover o profundo ajuste fiscal se deu em torno da

pressão inflacionária e do crescimento da dívida pública – explicada por excesso de gastos

públicos pela mídia dominante -, porém verificou-se que a pressão inflacionária estava

relacionada a pressão cambial, a qual afeta a maior parte dos preços de produtos importados

no Brasil, e não ao excesso de demanda. Além disso, o crescimento da dívida pública pode ser

explicado pelo excessivo pagamento de juros e amortização da dívida, sendo esta afetada por

Page 64: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

62

diversos mecanismos financeiros, os quais serão explicados ilegais e sem contrapartida para a

nação.

No entanto, o ajuste fiscal foi de uma magnitude tão grande que reduziu a formação

bruta de capital fixo (FBCF), depois de décadas de crescimento contínuo, como pode ser

verificado no gráfico a seguir:

Gráfico 5 – Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF)

19931994

19951996

19971998

19992000

20012002

20032004

20052006

20072008

20092010

20112012

20132014

20152016

20172018

20192020

0,0000

200.000,0000

400.000,0000

600.000,0000

800.000,0000

1.000.000,0000

1.200.000,0000

1.400.000,0000

Formação Bruta de Capital Fixo - R$ (em milhões)

Fonte: elaboração própria, IPEADATA (2020).

4.1.1 A REDUÇÃO DA CAPACIDADE PRODUTIVA E O AUMENTO DA DEPENDÊNCIA ECONÔMICA

O nível de desenvolvimento econômico está intimamente ligado ao grau de

desenvolvimento produtivo de uma respectiva nação. Diante das diversas teorias do comércio

internacional, a teoria desenvolvida por Friedrich List ganha notoriedade, pois analisa as

nações e suas contradições, além do fato de que nem todos os países partem do mesmo estágio

de desenvolvimento. Assim, priorizando o desenvolvimento de uma nação através da adoção

de medidas protecionistas e como essas auxiliam na industrialização, List ainda ganha

destaque para compreensão de como uma nação deve se desenvolver.

Todavia, no ano de 1841, List publicou seu livro, intitulado “O Sistema Nacional de

Economia Política: Comércio Internacional, Política Comercial e a União Aduaneira

Germânica”. Contrapunha-se ao pensamento hegemônico que preconizava o livre comércio,

fundamentado na teoria clássica de Adam Smith.

Page 65: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

63

List recupera o conceito de “nação” como unidade econômica. Além disso, seu estudo,

o qual denomina Economia Política, define como uma nação consegue obter prosperidade por

meio da agricultura, indústria e comércio tendo em vista seus próprios interesses nacionais,

divergindo, portanto, do cosmopolitismo da escola clássica, maneira pela qual a mesma

assume como Economia Política o estudo da economia mundial.

Se quisermos permanecer fiéis às leis da lógica e da natureza das coisas, devemos distinguir a economia dos indivíduos da economia das sociedades, e diferenciar quanto a esta última, entre a verdadeira Economia Política ou nacional (a qual, emanando do conceito e da natureza da nação, ensina de que maneira determinada nação, na atual situação do mundo e das próprias relações nacionais específicas, pode manter e melhorar suas condições econômicas). (LIST, 1986, p. 91).

Dessa forma, o Estado deve privilegiar os interesses nacionais, desenvolvendo e

fortalecendo a participação de setores mais produtivos e dinâmicos – setores industriais – de

forma que tais setores não sejam estrangeiros, mas prioritariamente nacionais.

De acordo com List o princípio da igualdade entre as nações não é condizente com a

realidade, pois as nações encontram-se em diferentes estágios de desenvolvimento. Não

obstante, há também períodos de guerra em que o protecionismo se torna compulsório, devido

à interrupção no intercâmbio de mercadorias. Portanto, para que houvesse de fato o “suposto”

livre comércio, as nações teriam que ter um desenvolvimento similar em setores como

indústria, comércio, cultura, política e agricultura. No entanto, a realidade é distinta, pois o

livre comércio é uma política de sujeição de países atrasados aos países dominantes em que o

comércio e a indústria são mais desenvolvidos.

Pelo fato de não haver limites para a produção manufatureira (sobretudo em consequência do uso da maquinaria), a não ser os decorrentes de capital que se possua e dos meios para aumentar as vendas, ocorre o seguinte: determinada nação, cujas atividades manufatureiras tem operado ininterruptamente por um século e que conseguiu acumular capitais imensos, que conseguiu estender seu comércio por todo o mundo, tal nação é capaz de declarar guerra de extermínio contra os manufatores de todos os países do mundo. Se tal ocorrer, é totalmente impossível que em outras nações, pelo curso normal das coisas (para usar a expressão do próprio Adam Smith), simplesmente em consequência do programa da agricultura surjam grandes manufaturas, sendo possível também que continuem a substituir, pelo curso normal das coisas, as manufaturas que já haviam nascido em virtude de interrupções comerciais causada pela guerra. A razão disso é a mesma pela qual uma criança ou um menino em luta com um homem forte dificilmente poderá vencer ou oferecer resistência constante. As manufaturas constituem a supremacia comercial e industrial (da Inglaterra), levam mil vantagens sobre as manufaturas recém-nascidas ou ainda adolescentes de outros países (LIST, 1986, p. 200).

Assim, segundo List, para que ocorra o desenvolvimento econômico e social, é

crucial alcançar o nível de desenvolvimento industrial das demais nações, as quais utilizam-se

Page 66: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

64

de políticas protecionistas. Ademais, as nações já industrializadas têm certa vantagem em

relação às demais, pois podem produzir em grande escala, reduzir preços (dumping

comercial) etc.

Outra corrente que procurou estudar os países, centrando-se no grau de dependência

e nível de industrialização é a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe

(CEPAL). Esta surgiu pela ONU e acabou se tornando uma escola de pensamento com o

objetivo de analisar as tendências econômicas e sociais de médio e longo prazo dos países

latino-americanos e caribenhos.

A Escola de Pensamento da CEPAL tem como norte o estudo das relações dos países

e seu grau de dependência produtiva e econômica, isto é, a análise de centro e periferia e suas

relações desiguais. Portanto, o apoio do Estado na superação do subdesenvolvimento e da

condição de periferia seria de suma importância, sendo a condição de país periférico um

estágio transitório que seria superado. O núcleo do pensamento cepalino foi concebido por

Raúl Prebisch (1949) e Celso Furtado (1961), ambos nortearam as políticas estruturalistas.

A expressão “periferia” definida por Prebisch serviu para destacar a posição

vulnerável da América Latina diante dos ciclos econômicos que resultava em processos

inflacionários com um forte componente exógeno.

De acordo com Prebisch, o que determinava essa condição periférica de um

determinado país era um componente intrinsecamente relacionado ao posicionamento dos

países latino-americanos no comércio internacional. Assim, a posição em que um país

periférico ocupa é a de exportador de matérias-primas, portanto, isto implicaria em trocas

desiguais entre um país exportador de matérias-primas e outro país exportador de

manufaturados, fazendo com que a desigualdade comercial, em termos de valor agregado,

condicionaria aos países periféricos terem uma crescente deterioração de suas balanças de

pagamentos. Não obstante, os ganhos do comércio internacional convergiam-se aos países

centrais e proporcionavam a eles a manutenção de seu desenvolvimento e, ao mesmo tempo,

condenava as economias periféricas ao subdesenvolvimento, resultado que se expressa pelo

baixo crescimento econômico da deterioração de suas contas (PREBISCH, 1949).

A tese de Raúl Prebisch (1949) abordou dois pontos centrais da visão estruturalista,

discutindo acerca das desvantagens comparativas da especialização em bens primários.

Primeiramente, Prebisch descreveu a configuração das estruturas produtivas e como estas

impediam de reter os ganhos do seu progresso técnico, diferentemente dos países centrais. No

entanto, na segunda abordagem, destacou o aspecto da tendência à deterioração dos termos de

troca, dado o excesso de mão de obra em atividades pouco produtivas, ficando bem evidente

Page 67: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

65

com a agricultura, em que o preço tende a reduzir devido à oferta excedente dos produtos de

baixo valor agregado – normalmente produtos agrícolas e minerais.

Dessa forma, o mecanismo exposto decorria em maior volume de produção e menor

acúmulo de capital. Todavia, Prebisch defendeu que os recursos acumulados da atividade

agrícola fossem destinados à industrialização. A explicação plausível para isso decorre do fato

de que se os países não se industrializarem, principalmente os países subdesenvolvidos, isso

acarretaria o desequilíbrio estrutural na balança de pagamentos (PREBISCH, 1949). Contudo,

com o objetivo de que os países subdesenvolvidos retenham os ganhos do comércio

internacional, o capital acumulado do setor primário deveria ser realocado para o setor

industrial.

Considerando a relevância da indústria no desenvolvimento econômico da nação,

diante de uma economia que não possua uma indústria nascente, Friedrich List (1841) já

apontava que o Estado tem um papel fundamental em promover o surgimento do setor de

modo protecionista. Assim, o Estado deve estimular o desenvolvimento e fortalecer a

participação industrial na economia, de tal forma que as indústrias sejam nacionais, e não

estrangeiras.

No entanto, nos últimos anos houve um processo acelerado de aprofundamento da

dependência produtiva que permeou diversos governos. Os mesmos adotaram inúmeras

medidas que influenciaram o nível da industrialização presente, interligado com o cenário

econômico externo e políticas de proteção das economias centrais.

Há uma vasta produção acadêmica discutindo a questão do processo de

desindustrialização no Brasil, deixando de alguma forma evidente que o país está regredindo à

mesma situação econômica em que se encontrava no início do século XX: dependência da

exportação de produtos primários aliada à importância reduzida de artigos industriais na

produção nacional. Dados demonstram a acelerada desindustrialização brasileira.

Segundo o IBGE (2020), houve queda de 2,7% na produção industrial nos quatro

primeiros meses de 2019. Além disso, cabe destacar que a participação da indústria de

transformação caiu para 11,2% do Produto Interno Bruto (PIB) no 1º trimestre – menor

percentual desde 1947. Já a produção industrial fechou o 1º semestre com uma queda de 1,6%

e já acumula 3 trimestres seguidos no negativo, após uma pequena recuperação em 2018.

Além disso, houve um retrocesso da produção da indústria em junho para o patamar de

2009, alcançando um volume de 17,9%, abaixo do ponto mais alto da série histórica, atingido

em maio de 2011. A melhor marca do setor manufatureiro foi registrada em 1985, quando o

peso da indústria de transformação chegou a 24,5%. A partir de então, entrou em trajetória

Page 68: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

66

praticamente contínua de queda, com exceção de um breve período de recuperação no início

dos anos 2000 (IBGE, 2020).

Conforme os fatos apresentados, tem sido intensa a discussão na literatura econômica

sobre os efeitos das políticas adotadas pós-Plano Real sobre o setor externo da economia

brasileira. É inegável que os esforços empregados na estabilização de preços trouxeram

tranquilidade na dinâmica econômica. Entretanto, os efeitos continuados das elevadas taxas de

juros e, por consequência, de taxas de câmbio não competitivas, vêm penalizando o setor

produtivo. Nos últimos anos, o aprofundamento desse modelo tem causado desconforto da

burguesia industrial, um dos grupos dominantes.

Os mesmos chamaram de processo de desindustrialização o que vem ocorrendo.

Diante disso, Nildo Ouriques destaca a situação dos industriais e seu descontentamento com

as políticas econômicas adotadas até 2013.

El Instituto de Estudos de Desenvolvimento Industrial (IEDI), importante órgano de

la burguesía industrial del país reclama que el saldo positivo esconde el hecho de

que los déficits con productos de alta e media densidad tecnológica son

elevadísimos! El deficit de la balanza comercial para el sector en 2012 (50,6 mil

millones de dólares) fue aun más elevado que en 2011 (48,7 mil millones de

dólares). Hace diez años, revela el estudio, el superavit brasileño era de 7 mil

millones de dólares en este renglón. Los sectores responsables por este radical

cambio son los equipos eléctricos y mecánicos, productos químicos y transporte. La

adquisición de máquinas y equipos responde por 78,1% de la innovación de las

empresas mientras para la investigación y desarrollo (I&D) apenas el 15%.

Además, si el IEDI denuncia la grave situación de la burguesía industrial em

general, la ABIMAQ (Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e

Equipamentos) lo hace de manera aún más vehemente. Según el presidente de la

entidad en discurso dirigido hacia la presidente Dilma, este sector nunca estuvo tan

amenazado como lo está ahora: en 2012, se perdió más de 5.000 empleos, la

producción física cayó 2.5% y la tasa de inversión no supera los 19% hace más de

18 años. Para el representante del sector, “todo es consecuencia de una política

económica basada en un alianza del mal: tasa de cambio, tasas de interés y tributos”

(OURIQUES, 2013, p. 3).

As críticas da burguesia industrial decorrem do aprofundamento da posição do

Brasil na divisão internacional do trabalho, a partir do pacto estabelecido no Plano Real.

Page 69: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

67

Portanto, o Brasil assume seu papel de exportador de produtos agrícolas e minerais. Isso

pode ser observado através da diminuição do setor industrial na composição do PIB desde o

início do Plano Real, assim como na participação da pauta de exportações brasileira. Tal

fenômeno se mostra através do gráfico a seguir:

Gráfico 6 – Indústria de transformação (%PIB) - preços correntes, 1947-2020.

19481951

19541957

19601963

19661969

19721975

19781981

19841987

19901993

19961999

20022005

20082011

20142017

20200,00

5,00

10,00

15,00

20,00

25,00

30,00

35,00

40,00

Indústria de Transformação - preços correntes - (% PIB)

Fonte: Elaboração do autor, baseada em Ipeadata (2020).

Ademais, a pauta de exportação brasileira caracterizada por produtos de baixo valor

agregado pode ser observada através dos dados do MDIC. No ano de 2020 destacaram-se os

principais produtos exportados: 1º - Soja (14%); 2º - Minério de ferro e seus concentrados

(12%); 3º - Óleos brutos de petróleo ou de minerais betuminosos (9,3%); 4º - Açucares e

melaços (4,2%); 5º - Carne bovina fresca, refrigerada ou congelada (3,5%). No entanto, a

despeito do processo de perda da capacidade produtiva, é incorreto afirmar que o país de fato

passa por um processo de desindustrialização, pois seria necessário que o país tivesse

realmente uma indústria nacional consolidada e tecnologicamente desenvolvida. A

apreciação do real de 2002 a 2014 contribuiu para que a burguesia comprasse barato lá fora e

vendesse caro no mercado interno, isso ficou evidente em diversos setores, entre eles o

comercial e industrial. Diante disso, observou-se a decadência de uma burguesia industrial

que teve relevância de 1930 a 1980.

Por conseguinte, ganha cada vez mais predominância no cenário econômico e

político uma burguesia comercial, principalmente do ramo varejista. Esta burguesia não está

preocupada com o fortalecimento do mercado interno, muito menos com a industrialização do

Page 70: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

68

país, mas sim auferir grandes lucros comerciais e aprofundar a superexploração da força de

trabalho. O protagonismo dessa elite se expressa através dos donos das lojas Havan,

Magazineluiza, Casas Bahia etc. Estes sempre estão nos holofotes da grande mídia sugerindo

políticas e influenciando ideologicamente.

Gráfico 7 – Taxa de câmbio comercial R$/US$ - 1990-2020

19901991

19921993

19941995

19961997

19981999

20002001

20022003

20042005

20062007

20082009

20102011

20122013

20142015

20162017

20182019

20200,0000

1,0000

2,0000

3,0000

4,0000

5,0000

6,0000

Taxa de câmbio comercial - R$/US$

Fonte: elaboração própria, BACEN (2020).

Com o câmbio sobrevalorizado, houve um crescimento da importação de máquinas e

equipamentos ao longo dos governos petistas (gráfico 7), aumentando ainda mais a

dependência do país. Ressalta-se que o atrativo para o capital seria aportar seus recursos na

dívida pública durante esses anos, maneira pela qual grande parte dos industriais nacionais

venderam seu parque produtivo para viver de juros, o chamado rentismo. Analisando o

investimento líquido em máquinas e equipamentos, verifica-se uma redução significativa logo

após o Plano Real devido a taxa de câmbio, redução de tarifas de importação etc.

Gráfico 8 – Investimento líquido em máquinas e equipamentos

19601963

19661969

19721975

19781981

19841987

19901993

19961999

20022005

20082011

20142017

-100.000,00

-50.000,00

0,00

50.000,00

100.000,00

150.000,00

Investimento Líquido em Máquinas e Equipamentos (preços 2010) -(milhões)

Page 71: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

69

Fonte: elaboração própria, IPEADATA (2020).

Do início do primeiro governo do PT até meados de 2014 houve uma alta do

investimento em máquinas e equipamentos, mas assim que se acentuou a crise de acumulação

global e a retração da atividade econômica interna esses números voltaram a despencar. As

altas taxas de juros para investimentos cobrada pelos grandes bancos contribuíram para esse

cenário, razão pela qual afetou principalmente pequenas e médias indústrias que não

competiam no mercado internacional.

Ainda, ao analisarmos a pesquisa com dados sazonalidades da ABIMAQ

(Associação Brasileira da Industria de Máquinas e Equipamentos), entre o período de 2002 a

2020, percebe-se, também, uma redução significativa a partir de 2014 na produção. No

entanto, já retomando uma trajetória de crescimento em 2020.

Gráfico 9 - PIM PF - Pesquisa Industrial Mensal de Produção Física de Máquinas e Equipamentos (Número índice, base: média de 2012 = 100)

2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 20200

20

40

60

80

100

120

PIM PF - Pesquisa Industrial Mensal de Produção Fisica (sazonalizado)

Fonte: elaboração própria, ABIMAQ (2021)

Contudo, não é de interesse da classe dominante industrializar o país, mas sim ser

sócia menor do capital transnacional, de tal modo que se for possível transferir sua jurisdição

ao EUA ou países europeus não haverá hesitação, pois seria um modo de obter mais

“segurança” nos negócios internacionais. Assim, está em curso uma acelerada

internacionalização da economia brasileira nos mais variados setores, os quais são dominados

por multinacionais, sendo a maior parte de baixa ou média densidade tecnológica.

Page 72: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

70

Os dados da ABIMAQ entre o período de 2002 a 2020, demonstram uma redução

significativa a partir de 2014 na importação de máquinas e equipamentos, principalmente

devido à desaceleração econômica e a depreciação do real nos anos seguintes, fazendo com

que encarecesse a importação.

Gráfico 10 – Importação e Exportação de Máquinas e Equipamentos

2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 20200,00

5.000,00

10.000,00

15.000,00

20.000,00

25.000,00

30.000,00

35.000,00

Importação e Exportação de Máquinas e Equipamentos US$ FOB

Importação Exportação

Fonte: elaboração própria, ABIMAQ (2021).

O discurso da desindustrialização visa, em última instância, pressionar o governo

para que reduza os impostos do setor e adote outras medidas tolerantes que possam aumentar

temporariamente os lucros da burguesia industrial do país e das empresas multinacionais,

especialmente da indústria automotiva. Entretanto, não se apresenta nenhuma política

industrial profunda para alteração desse cenário.

No entanto, dentro do pacto estabelecido não parece haver muitas possibilidades,

apenas o discurso de uma maior abertura econômica, ainda usado, com intenção de trazer

mais tecnologia através da inserção do capital externo no país, os formuladores do Plano Real

afirmavam que esse seria um papel do plano, mas que nos últimos anos já se demonstrou que

esse discurso não vai além da ideologia com um efeito contrário no setor industrial, assim

como a continuação desse modelo pelos governos petistas também não trouxe uma mudança

estrutural no modelo de país dependente e subdesenvolvido.

A partir de 2018 houve uma mudança de governo, chega ao poder Jair Messias

Bolsonaro, com seu ministro da economia Paulo Guedes, o qual segue a corrente liberal. Em

Page 73: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

71

termos produtivo, há um aprofundamento da liberalização econômica e da dependência

produtiva. Em março de 2021, houve a redução da tarifa de importação produtos de

informática, telecomunicações e bens de capital (máquinas e equipamentos) que, segundo a

Camex (câmara de comércio exterior), atinge 1495 produtos. Assim, nota-se a continuação

desse modelo liberal, o qual enfraquece o mercado interno com a internalização de produtos

competitivos mais baratos, prejudicando a indústria remanescente.

Assim, diante do que foi exposto até então, este trabalho não tem como meta fazer a

análise sobre o processo de industrialização no Brasil, porém é preciso destacar a incoerência

da burguesia industrial brasileira e dos economistas ligados a mesma de defenderem um pacto

estabelecido pelo Plano Real. No entanto, ao mesmo tempo que lamentam um processo de

desindustrialização, demonstram a limitação desse discurso, que esconde a questão estrutural

do papel do país dentro da divisão internacional do trabalho e sua relação de dependência

econômica frente aos países centrais. Na sequência, será apresentado a influência petista no

cooptação da classe trabalhadora.

4.2 A COOPTAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA

Conforme constata Plínio (2017, pág. 177), para chegar ao poder o PT precisou

conciliar duas premissas que sustentaram o pacto: “a obediência às exigências dos donos do

poder econômico e a contenção do descontentamento das classes subalternas”. Constata-se as

premissas diante de dois aspectos que permitem uma maior estabilidade e controle das

classes dominadas, dando mais tranquilidade e preferência do governo petista às classes

dominantes. O primeiro é o aprofundamento das políticas de assistência, através do Bolsa

Família, que permitem o aumento da renda de uma parcela da população mais desamparada.

O segundo é um maior controle dos sindicatos, movimentos sociais e partidos da base do

governo.

Por causa da melhora no cenário internacional, houve uma melhora nos resultados

da política econômica brasileira, permitindo ao governo Lula a partir de 2003 aprofundar as

políticas sociais focalizadas, as quais se concentraram em programas de transferência de

renda. “De fato, essa política tem limites dados pelo modelo de desenvolvimento vigente.

Articula-se funcionalmente a ele, como uma espécie de contra face da política

macroeconômica ortodoxa baseada em enormes superávits fiscais primários (FILGUEIRAS e

GONÇALVES, 2007, p. 160) ”. Assim, não se descarta o papel importante que tem os

Page 74: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

72

programas sociais para subsistência de muitos brasileiros, porém não é através de políticas

sociais focalizadas que mudará a estrutura social vigente, mas sim mudando as relações de

poder em que a classe trabalhadora se encontra de forma subalterna.

Mais do que o governo Cardoso, que deu início a esse tipo de política, Lula levou a sério a importância política e social dessas despesas, compreendendo sua função amortecedora de tensões sociais no interior do projeto liberal. Este é o objetivo essencial de um programa que não tem capacidade de desarmar os mecanismos estruturais de reprodução da pobreza. Apenas maneja a pobreza, pois mantém em permanente estado de insegurança, indigência e dependência o seu público alvo, permitindo, assim, a sua manipulação política (FILGUEIRAS e GONÇALVES, 2007, p. 163).

Nos primeiros oito anos do governo do PT a democracia de cooptação foi se

consolidando de forma plena sobre as frágeis bases que foram plantadas. Neste período, o

partido “optou pela continuidade do ajuste ortodoxo, aceitando docilmente a tutela do

mercado financeiro e dos organismos financeiros internacionais sobre a política econômica”

(SAMPAIO JR., 2017, p. 48). Ademais, atraiu a confiança dos capitais internacionais de

acordo com as recomendações do FMI e, dessa forma, aprofundou as reformas neoliberais no

país. O governo atribuiu os positivos resultados obtidos, que levaram a acumulação

capitalista em terras brasileiras às alturas as reformas. Entretanto, percebe-se que não foram

as reformas neoliberais que ampliaram o grau de acumulação no país, mas sim a forte

ampliação da oferta de investimento estrangeiro direto e a expressiva elevação dos preços

dos produtos agrícolas e minerais.

Assim, diante da abordagem até então, verificamos que o modelo econômico

imposto durante os governos petistas também pode ser observado no governo Bolsonaro,

como veremos no capítulo seguinte.

Page 75: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

73

5 DO PLANO REAL AO GOVERNO BOLSONARO

O Plano Real criou as bases para o endividamento do Estado brasileiro. A hegemonia

da classe financeira a partir do Plano Real se expressa, inicialmente, a partir da maior

concentração de capital no setor financeiro e nos ganhos dos bancos com o plano

(OURIQUES, 1997). Logo após o mesmo, a elevação da dívida pública cresceu

aceleradamente.

O crescimento do endividamento do Estado perpassou todos os governos e mostrou a

cumplicidade dos mesmos com o sistema financeiro. Ao analisarmos o governo de FHC,

Lula, Dilma, Temer e, por último, Bolsonaro, percebe-se a ligação que os mesmos têm com o

sistema da dívida e sua manutenção.

Nota-se que a política de juros altos, com o objetivo de sobrevalorização do real,

propiciou que o setor financeiro obtivesse elevados lucros ainda no governo FHC. Não

obstante, apresentavam-se naquele período dois meios de ganhos elevados para os bancos,

sendo através da valorização inicial do Real, em 1994, por meio de empréstimos em dólares

com aplicação em reais, ou, ainda, pela especulação de títulos públicos.

[...] o crescimento da dívida pública, que nos anos 80 – período de altas taxas de inflação – se constituiu em peça-chave da “ciranda financeira” e alimentou os lucros das instituições financeiras, não desapareceu com a queda da inflação. No período pós-Real, ao contrário da expectativa dominante, a dívida pública continuou sendo o ponto de apoio fundamental da especulação financeira, principalmente a partir de março de 1995 (FILGUEIRAS, 2000, p. 166).

A dívida pública cresceu durante todos os governos pós-Plano Real por meio de

vários mecanismos financeiros, como demonstrar-se-á adiante, e seu crescimento acelerado é

utilizado como desculpa para privatizações, contrarreformas, cortes de investimentos e gastos

sociais, impedindo o desenvolvimento socioeconômico do país. Portanto, a esse

funcionamento distorcido do endividamento público e dos mecanismos financeiros presentes

no mesmo, será denominado Sistema da Dívida, expressão utilizada pela Auditoria Cidadã da

Dívida (ACD).

Assim, busca-se compreender o sistema da dívida e o rentismo como um meio de

adquirir ganhos satisfatórios sem correr risco produzindo. Com altas taxas de juros

predominando no Brasil nos anos anteriores à crise, que se intensificou em 2015, percebeu-se

Page 76: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

74

uma elevação da demanda por títulos públicos, ocorrendo uma transferência de capital do

setor produtivo para o financeiro. Além disso, as chamadas operações compromissadas fazem

parte desse mecanismo de transferência de riqueza ao setor financeiro.

Gráfico 11 – Taxa de juros Selic 1999-2020.

Fonte: elaboração própria, BACEN (2020)

Desse modo, alimentou-se o chamado rentismo desde a concepção do Plano Real,

desencadeando um crescimento vertiginoso da dívida pública até os dias atuais. Analisando o

estoque de títulos públicos emitidos, a dívida interna sai de um patamar de R$ 85,7 bilhões,

em 1994, para um patamar de R$ 1 trilhão em 2004. Cabe destacar que em 2020 está num

patamar de R$ 4,174 trilhões.

No gráfico a seguir vemos o crescimento exponencial da dívida interna líquida:

Gráfico 12 - Dívida Interna Líquida – 1990-2020

Page 77: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

75

19901992

19941996

19982000

20022004

20062008

20102012

20142016

20182020

0,0000

1.000.000,0000

2.000.000,0000

3.000.000,0000

4.000.000,0000

5.000.000,0000

6.000.000,0000

DLSP - Dívida Interna Líquida 1990-2020 R$ (em milhões)

Fonte: Elaboração do autor, baseada em Ipeadata (2020).

Portanto, na contramão do que diz a economia neoclássica, o crescimento da dívida

interna não ocorreu devido ao excesso de gastos relacionados ao funcionalismo, educação,

saúde ou previdência, pois durante os primeiros anos do governo FHC e, em média, nos

governos subsequentes, o Brasil teve superávit primário. Isto é, o grande problema do

crescimento da dívida está estritamente relacionado à alta da taxa de juros e os serviços com

despesas financeiras no período.

Diante disso, a indagação a ser feita é a seguinte: como explicar o crescimento do

estoque da dívida pública federal, de R$ 86 bilhões para R$ 4 trilhões, apesar da produção de

Superávit Primário de R$ 1 trilhão no mesmo período e considerando que não foram feitos

investimentos? Levando em consideração que não houve contrapartida em investimentos

públicos nesse período, explica-se crescimento exorbitante da dívida pública federal por meio

dos mecanismos financeiros e de política monetária do Banco Central que usam a chamada

dívida pública para transferir grandes volumes de recursos principalmente para o setor

financeiro.

Segundo a ACD, os mecanismos correspondem aos seguintes:

•Transformações de dívidas do setor privado em dívida pública ilegal; transferência de dívidas privadas para o BC por meio do PROER, PROES e da recém aprovada EC 106, que em plena pandemia aprofunda o Sistema da Dívida e a Financeirização.• Transformação de dívida externa irregular, suspeita de prescrição, em novos títulos, por meio de obscura operação realizada em Luxemburgo, paraíso fiscal, denominada Plano Brady.• Elevadíssimas taxas de juros, sem justificativa técnica ou econômica.• A ilegal prática do anatocismo, que corresponde à incidência contínua de juros sobre juros que fazem a dívida se multiplicar por ela mesma.• A irregular contabilização de juros como se fosse amortização da dívida, burlando-se o artigo 167, III, da Constituição Federal.

Page 78: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

76

• As sigilosas operações de swap cambial realizadas pelo BC em moeda nacional, garantindo a privilegiados sigilosos que têm acesso a tais contratos o pagamento da variação do dólar (xxv).•Financiamento do Banco Central pelo Tesouro Nacional mediante entrega de títulos sem contrapartida financeira e pagamento de juros sobre tais títulos dados de graça ao BC.•Remuneração da sobra de caixa dos bancos por meio do abuso das sigilosas “operações compromissadas” que chegam a R$ 1,5 trilhão, cerca de 20% do PIB, sem paralelo em qualquer outro país do mundo.• Emissão excessiva de títulos para formar “colchão de liquidez”.• Prejuízos do Banco Central transferidos para o Tesouro Nacional, como previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal, que não estabeleceu limite algum para a política monetária do Banco Central, cujos prejuízos são arcados por toda a sociedade (Art. 7º da LRF).• “Securitização”, que corresponde à nova forma de gerar dívida ilegal e disfarçada, que é paga por fora dos controles orçamentários, mediante desvio de arrecadação que sequer alcançará os cofres públicos (FATORELLI, 2020, p.1)

Diante de todas as despesas financeiras apresentadas sem contrapartida, destacarei

aquelas mais relevantes e que geram os maiores gastos. Dentre esses mecanismos mais

absurdos que “geram” dívida pública no Brasil, a remuneração diária da sobra de caixa dos

bancos está entre essas aberrações. Isto explica-se do seguinte modo, o dinheiro que sobra no

caixa dos bancos refere-se ao quantitativo de todos os depósitos e aplicações de clientes, que

poderiam ser utilizados para empréstimos ao público em geral. Essa sobra já considera a

dedução obrigatória da parcela referente ao depósito compulsório, que os bancos são

obrigados a reservar. Na maior parte dos países o sistema financeiro busca fazer empréstimos

ao público em geral, oferecendo juros cada vez mais baixos, para não ficar com esse dinheiro

parado em caixa sem rentabilidade.

Entretanto, no Brasil os bancos não estimulam empréstimos à população e empresas

que precisam de crédito, pelo contrário: cobram juros altíssimos, além de várias exigências

burocráticas e comerciais, como venda de seguros e outros produtos. A forma de atuação dos

bancos se dá pelo fato de não perderem nada em relação ao dinheiro parado em caixa, pois

recebem remuneração diária, paga pelo Banco Central com recursos do orçamento público.

Esse mecanismo tem sido feito por meio do abuso na utilização das chamadas

“Operações Compromissadas”. Em tese, as operações compromissadas se destinam a

controlar o volume de moeda em circulação para evitar ataques especulativos e até inflação,

porém, “a sua utilização de forma distorcida no Brasil tem possibilitado, na prática, um

mecanismo ilegal de remuneração da sobra de caixa dos bancos” (FATORELLI, 2020).

Em comparação com o resto do mundo, o volume dessas operações compromissadas

são muito abaixo dos valores que se apresentam no Brasil, chegando ao valor de R$ 1,5

trilhão, cerca de 20% do PIB, provocando vários danos ao país.

Page 79: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

77

Essa operação aumenta o estoque da dívida pública e o volume das obrigações atuais e futuras, pois o Banco Central usa títulos da dívida pública para “justificar” a remuneração diária aos bancos. O Banco Central entrega títulos da dívida pública aos bancos e, enquanto estes estão de posse desses títulos, recebem juros diários (FATORELLI, 2020, p. 2).

Outra forma de crescimento exponencial do endividamento é através da

contabilização dos juros como se fosse amortização da dívida. A ACD descobriu que todo

ano é feito atualização monetária paralela de todo o estoque da dívida pública - não tem

sentido efetuar essa correção monetária, pois essa correção já está incluída no valor dos juros

nominais pagos aos detentores dos títulos da dívida. Diante disso, não há nenhum respaldo

legal referente a essas atualizações monetárias e as mesmas contribui para o endividamento

do Estado.

Apesar de não ter a menor lógica, essa atualização monetária é feita e, simultaneamente, incorporada ao estoque da dívida e subtraída dos juros, como representado em amarelo no diagrama. Em seguida, são emitidos títulos públicos para pagar essa atualização monetária paralela, que na verdade corresponde a grande parte dos juros (FATORELLI, 2020, p. 3).

Assim, podemos ver na figura a seguir como funciona esse mecanismo de

contabilização sem amparo legal.

Figura 1 – Contabilização do juros como se fosse amortização

Fonte: Elaborado por Auditoria Cidadã da Dívida (2020)

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Portanto, a contabilização dos juros e amortização para o crescimento da dívida

pública, com a respectiva “atualização” pode ser resumido do seguinte modo:

À medida em que são emitidos títulos da dívida para o pagamento dessa “atualização”, o estoque da dívida pública de fato aumenta. O pagamento dessa “atualização” (que de fato corresponde a uma parcela dos juros) tem sido contabilizada como se fosse uma amortização. O resultado dessa manobra é esdrúxulo, pois se amortizam centenas de bilhões e a dívida cresce centenas de bilhões.

Devido à subtração de grande parte dos juros, que é registrada como amortização a parcela dos juros da dívida informada no Siafi fica pequena, pois somente uma pequena parte (representada no diagrama pelas pontas das colunas dos juros) é contabilizada de fato como juros da dívida, enquanto a outra parcela dos juros pagos por meio de novos títulos emitidos (representada em amarelo) é contabilizada como se fosse “amortização”. (FATORELLI, 2020, p. 3).

Ao analisarmos o período de 2008 a 2019 é perceptível que mesmo com a

amortização e pagamento de juros houve um crescimento exponencial da dívida sem

explicação, pois, conforme salienta a ADC, não há justificativa ao seu crescimento

desenfreado senão por mecanismos financeiros não legais.

Contudo, se estivéssemos de fato amortizando a dívida, perceberíamos a redução do

estoque da mesma. A tabela a seguir demonstra que apesar das “amortizações” crescentes ano

após ano, o estoque da dívida só aumenta:

Tabela 12 – Comparativo de Juros, Amortização e Estoque da Dívida (em bilhões de reais)

AnoJuros e Encargos

da DívidaAmortizações

Estoque da Dívida Pública Mobiliária Federal Interna

2008 110,17 448,74 1759,132009 124,18 517,73 2036,232010 122,02 513,34 2307,142011 131,04 577,00 2536,072012 134,08 618,94 2823,002013 141,69 576,74 2986,222014 170,35 807,57 3301,052015 208,36 753,87 3936,682016 204,89 925,27 4509,262017 203.11 783,01 5094,972018 279,37 786,36 5523,122019 285,09 752,48 5971,93

Fonte: Tesouro Nacional e Banco Central (apud FATORELLI, 2020, p. 4)

Ainda, cabe ressaltar que a nossa dívida pública tem como característica elevados

juros na remuneração dos títulos com prazo curto de vencimento, diferentemente dos países

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centrais que adotam taxas de juros reduzidas e prazos de vencimento elevados, de acordo

com os dados a seguir:

Figura 2 - Prazo de vencimento dos títulos em posse dos detentores da dívida pública.

Fonte: Tesouro Nacional, 2020

Outro mecanismo que faz parte do sistema da dívida, que é uma das principais

causas do crescimento da dívida pública federal, é a emissão de títulos públicos que são

doados ao Banco Central (BC). Contudo, além de doar esses títulos, o Tesouro Nacional

(TN) ainda paga juros ao BC sem contrapartida, como mostram os dados oficiais compilados

na tabela a seguir:

Tabela 13 – Custo financiamento do Banco Central pelo Tesouro Nacional

Ano

Volume de Títulos entregues pelo Tesouro Nacional ao

Banco Central sem contrapartida financeira

(Bilhões de Reais)

Volume de Juros pagos pelo Tesouro Nacional ao Banco

Central sobre os títulos públicos acumulados no BC

(Bilhões de Reais)

Soma

(Bilhões de Reais)

2010 56,86 71,51 128,372011 186,28 84,3 270,582012 117,81 89,43 206,542013 129,61 94,18 223,792014 287,4 108,82 396,212015 192,48 145,46 337,942016 238,66 162,05 400,712017 88,21 163,11 251,322018 188,19 158,49 346,682019 185,18 152,78 337,97Total 1669,98 1230,13 2900,11

Fonte: Banco Central e Tesouro Nacional (apud FATORELLI, 2020, p. 4)

Diante desse mecanismo financeiro, compreende-se o seguinte:

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O Tesouro Nacional (TN) emite e entrega títulos da dívida pública ao BC sem contrapartida financeira, ou seja, o BC não paga por esses títulos. No entanto, o TN paga juros ao BC sobre esses títulos que dá de graça! Só essa parte da “política monetária” custou, nos últimos 10 anos, quase R$ 3 trilhões, como indicado na tabela anterior, sendo R$ 1,67 trilhão de renúncia financeira e R$1,23 trilhão de juros que o TN pagou ao BC (FATORELLI, 2020, p. 4).

A indagação a ser feita é a seguinte: qual o destino que Banco Central dá aos títulos

da dívida pública que recebe sem contrapartida do Tesouro Nacional? Segundo Fatorelli

(2020, p.4) “a maior parte é destinada às chamadas “operações compromissadas”, instrumento

que no Brasil tem sido desvirtuado e usado de forma abusiva pelo BC para, na prática,

remunerar a sobra de caixa dos bancos [...]”. Portanto, o TN propicia o funcionamento

distorcido da política monetária exercida pelo BC, a qual consome centenas de bilhões de

reais do orçamento federal anualmente, com recursos para o pagamento dos juros pelo TN ao

BC, além de impactar fortemente no crescimento da dívida pública federal.

Em resumo, o Banco Central tem funcionado como uma correia de transmissão dos

recursos públicos para os bancos, usando cerca de ¼ da dívida pública federal

interna para isso e a falsa “desculpa” de controle inflacionário que segundo seus

próprios estudos decorre de outros fatores que não tem relação alguma com o

volume de moeda em circulação na economia [...] (FATORELLI, 2020, p. 4)

Nos últimos 10 anos a grande mídia ocultou o fato de que o Tesouro Nacional

gastou quase 3 trilhões de reais com o Banco Central, o que caracteriza uma verdadeira

transferência de recursos públicos ao setor financeiro. Assim, para os meios de comunicação

dominante, há preocupação apenas com os gastos da previdência e pessoal. Contrapondo-se à

visão liberal de que o maior gasto do Brasil está na previdência e na administração pública, o

gráfico de pizza da ACD desmistifica esse argumento tão disseminado pela mídia dominante.

Em 2020 (ver figura 3), juros e amortizações da dívida corresponderam a 39,08% do

orçamento geral da União, já a previdência ficou em segundo lugar com 20,34%.

Figura 3 - Orçamento Geral da União 2020: Gastos com a dívida

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Fonte: Elaborado por Auditoria Cidadã da Dívida (2020).

Cabe destacar quem são os detentores e beneficiários da dívida pública brasileira,

hoje liderada por grandes bancos nacionais e internacionais, os chamados dealers:

A participação do setor financeiro na condição de dealers preferenciais para a compra dos títulos é extremamente relevante, pois, devido a essa preferência, os mesmos exercem grande pressão para que o Tesouro ofereça taxas cada vez mais atraentes, caso contrário, recusam-se a comprar os títulos leiloados pelo Tesouro Nacional [...] (FATTORELLI, 2017, p. 10, grifo do autor).

Ademais, observa-se que os detentores da dívida pública são em grande parte

representados por instituições financeiras (29,62%), fundos de investimentos (25,98%) e

previdência (22,65%), conforme a seguir:

Figura 4– Detentores da dívida pública interna

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Fonte: Tesouro Nacional, 2020.

Através da figura 2, verifica-se que mais da metade dos beneficiários da dívida

interna são investidores e grandes bancos nacionais e estrangeiros. No entanto, esses dados

demonstram o porquê de os aparelhos estatais sustentarem o pagamento estrondoso de

encargos da dívida pública, pois é o sistema financeiro nacional e internacional quem dão as

cartas à escolha das políticas apresentadas.

Nos últimos anos o crescimento da dívida interna gerada por mecanismos ilegítimos

e até ilegais serviram de justificativa para várias medidas restritivas que têm levado à perda de

direitos sociais, perda de patrimônio público e impedimento ao nosso desenvolvimento

socioeconômico, entre elas estão:

– Emenda Constitucional 95 (PEC do Teto);– Emenda Constitucional 93 (aumento da DRU para 30%);– Lei Complementar 159/2017 (ajuste fiscal nos estados);– Desonerações danosas ao financiamento da Seguridade Social;– Reformas Trabalhista, da Previdência e Administrativa;– Privatizações;– Esquema Fraudulento: “Securitização de Créditos Públicos”;– Autonomia do Banco Central, “legalização” da remuneração da sobra de caixa dos bancos – PLP 112/2019 e PLP 19/2019;– Plano mais Brasil para banqueiro: PEC 186, 187 e 188;– Proposta de Emenda Constitucional 438/2018;– Emenda Constitucional 106 (autorizou o Banco Central a comprar trilhões de papéis podres dos bancos às custas de mais dívida pública) (FATORELLI, 2020, p.6).

Todavia, a evolução da dívida pública não ocorreu como contrapartida de um

processo de transformação de forças produtivas, de industrialização ou de conquistas sociais,

mas como resultado de um endividamento interno e de seu repasse posterior a toda classe

dominante que faz parte do sistema da dívida. Portanto, não diferente dos governos anteriores,

os governos pós-Plano Real, por meio de ajustes, privatizações e, no geral, cortes nas

camadas desfavorecidas da sociedade, aprofundaram a dependência brasileira por meio da

regressão produtiva e internacionalização da economia.

Page 85: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

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6 CONCLUSÃO

Adotando-se as orientações do Consenso de Washington e da difusão da ideologia

neoliberal, o plano desenvolvido no Brasil, em sua essênca, serviu para consolidar um pacto

de classes capaz de garantir a inserção do capital internacional na economia brasileira. Assim,

por meio da análise totalizante, diante do método crítico dialético, observou-se o contexto

internacional no qual nosso país está inserido. Com a contribuição da Teoria Marxista da

Dependência, caracterizou-se o Brasil como um país subdesenvolvido e dependente para o

início da análise. Consequentemente, procuramos analisar em qual contexto desencadeou o

Plano Real, relacionando o mesmo com a ideologia dominante no período, ou seja, o

neoliberalismo.

As principais políticas desenvolvidas no Plano Real e as reformas “modernizantes”

nada se distanciam do desenvolvimento do subdesenvolvimento preconizado por André

Gunder Frank. A financeirização do Estado se evidencia no intocável sistema da dívida, nas

elevadas taxas de juros e na política de câmbio sobrevalorizado que permeou nos últimos

Page 86: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

84

anos, altamente destrutivo para nosso setor produtivo. Contudo, justificados para controlar a

inflação e atrair o capital estrangeiro, permitem elevados lucros ao capital financeiro e exigem

um ajuste fiscal do estado, limitando os gastos sociais e um projeto de emancipação social das

massas. No entanto, amplia-se a fragilidade externa da economia brasileira, de tal maneira que

depende do capital externo para não gerar uma crise profunda.

A demonização da inflação tornou-se propaganda ideológica para ocultar o que está

por trás do “mal maior”, fazendo com que as privatizações, as “reformas modernizantes”, o

ajuste fiscal e monetário sejam facilmente aceitos pela classe trabalhadora.

Não obstante, o Plano Real consolidou o pacto de classe em que a burguesia

produtiva brasileira aceitou, como sócia menor do capital internacional, a produção de

produtos de baixo valor agregado ou associados ao capital estrangeiro investido no Brasil.

Evidenciou-se, também, que a inflação alta não necessariamente atinge todas as classes de

maneira uniforme, pois pode se tornar uma forma de transferência de renda e riqueza da

classe trabalhadora para a classe dominante. Além disso, constatou-se que os bancos elevam

seus lucros em período inflacionário, fazendo com que o resultado seja distinto para as

diferentes classes.

No Brasil, consagrado pela financeirização da economia, o neoliberalismo teve início

com Collor, consolidado na era FHC e aprofundado em maior ou menor grau nos governos

Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro. Ao longo de todo esse processo histórico na Nova

República, o Estado nacional continuou a serviço dos interesses das classes dominantes,

hegemonizado pelas frações rentistas da burguesia.

Diante disso, sinteticamente, podemos elencar alguns fatores relevantes iniciados ou

fortalecidos pelo Plano Real que estimularam o rentismo brasileiro, entre eles estão: 1 - a

liberalização econômica iniciada por Collor e aprofundada com o Plano Real; 2 - a

consideração de uma moeda forte – algo quase impossível num país dependente e

subdesenvolvido que não manda em seus próprios interesses econômicos -, expressando-se na

sobrevalorização do Real frente ao dólar, que se iniciou com o Plano Real até a crise de 1999;

3 – como consequência dessa última, a permanência da taxa básica de juros num nível

elevado ao longo de todo o governo FHC; 4 - estímulo à entrada de capital estrangeiro com o

objetivo de equilibrar o balanço de pagamentos e, também, adquirir ativos nacionais com o

processo de privatizações do governo FHC; 5 - e a consolidação e centralização do capital

financeiro no Brasil através das do PROER e da privatização dos bancos estaduais, além da

entrada de bancos estrangeiros.

Page 87: PLANO REAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

85

O rentismo através dívida pública tem sido mais prejudicial ao interesse das classes

subalternas, porém vale ressaltar que existe, também, outras formas de rentismo, como o

agrário. No entanto, o sistema da dívida, desde o Plano Real, trasnfere elevada quantia de

recursos do Estado brasileiro ao pagamento de juros e amortização da dívida, os quais chegam

a mais de 40% do orçamento geral da união – um verdadeiro gasto de “guerra’. Desse modo,

desde o Plano Real o governo central vem adotando medidas para honrar o pagamento –

aplicando o tripé macroeconômico - através de superávits primários com o objetivo de manter

a relação dívida/PIB estável. Entretanto, observa-se que o resultado foi na contramão do que

pregam os representantes do capital financeiro, já que a DPMFi era de R$ 85 bilhões, em

1995, e alcançou mais de R$ 5 trilhões em 2020.

As contribuições relevantes da ACD evidenciam que o sistema da dívida pode ser

caracterizado como a expressão máxima do rentismo no Brasil. Ainda, podemos relacioná-lo

com o Plano Real a partir de todas as reformas - apresentadas neste trabalho - implementadas

pelos governos que vieram posteriormente, as quais estão na concepção desse sistema para

mantê-lo vigente. Tal modelo econômico poder se analisado retrospectivamente desde 1994

até os dias atuais. Diante disso, podemos caracterizar a república brasileira como uma

República Rentista. Assim, a dívida pública de uma nação deve ter, imprescindivelmente,

uma contrapartida real ao desenvolvimento social, isto é, uma dívida pública sem

contrapartida real vai ao encontro dos interesses das classes dominantes nacionais e

internaionais.

Além disso, embora o rentismo seja inerente a capitalismo, não vai ao encontro da

dinâmica principal de produção de valor, maneira pela qual cria um certo “conflito” entre o

capital industrial e financeiro, apesar de não ser tão expressivo como em épocas passadas.

Portanto, fazer a entanásia do rentista, como preconizou Keynes (1983, p. 343-344), é de

suma importância ao Brasil se quiser ser um país soberano e proporionar a emancipação

social ao seu povo.

Diante do que foi apresentado até então, e relacionado a lógica rentista, intensifica-

se um processo acelerado da dependência produtiva brasileira, caracterizando-se por uma

transferência do capital produtivo ao capital financeiro. A lógica de uma economia

dependente se expressa na importação de produtos de baixa a alta sofisticação tecnológica e,

por conseguinte, na presença de empresas transnacionais, o que caracteriza uma drástica

internacionalização da economia em diversos setores.

Ademais, a financeirização da economia, caracterizada pelo rentismo, é parte

constitutiva de uma economia que sofre interferência do imperialismo diante de sua política

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86

de dominação econômica, conhecida como neoliberalismo. Por sua vez, cabe ao Brasil romper

com essas amarras que o aprofundam no subdesenvolvimento e o tornam subserviente.

Portanto, isso ocorrerá por meio da revolução brasileira.

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