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P. III, cap. 2.4A representaçao parlamentar entre Burke e SieyèsTRANSCRIPT
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PIETRO COSTA
SOBERANIA, REPRESENTAO, DEMOCRACIA
Ensaios da histria do pensamento jurdico
A representaao parlamentar: entre Burke e Sieys
Justamente nos anos em que Hobbes teorizava o poder absoluto do
soberano, mudava vistosamente, na Inglaterra, ainda que em meio a dramticos
contrastes, o papel do parlamento. Pareceria, portanto, plausvel apresentar o
conflito poltico-institucional do sc. XVII ingls como uma luta entre os
fautores de uma nova forma de governo fundada na relao representativa
entre povo e parlamento e os defensores da velha monarquia absoluta. Tal
esquema interpretativo, porm, aceitvel quando se olha para as frmulas
constitucionais, parece demasiado simples quando se leva em considerao a
trama dos conceitos poltico-jurdicos. Nesta perspectiva, a viso hobbesiana
da soberania representativa e o novo discurso da representao parlamentar se
colocam em uma relao mais complexa, onde afloram, ao lado das
dissonncias, algumas consonncias.
Em primeiro lugar, a soberania parlamentar apresentada pelos seus
maiores defensores pense-se em Henry Parker1 - como um poder
autosuficiente e completo, em suma, absoluto (e, alm disso, o prprio
Hobbes, mesmo sem esconder a sua preferncia pelo governo monrquico,
estava disposto a investir do poder supremo tambm uma assemblia).
Em segundo lugar, se se exalta a funo representativa do parlamento, ao
mesmo tempo ele se apresenta no mais como espelho ou caixa de ressonncia
das vontades ou dos interesses dos eleitores em particular, mas sim como lugar
de formao autnomo de decises orientadas na direo do todo. No se trata
de uma virada improvisada, ligada conjuntura de exceo da guerra civil,
primeiro, e, depois, da revoluo gloriosa. Que o parlamento represente (isto ,
com base em uma viso identitria da representao subjacente) a
communitas regni uma convico antiga, difusa na Inglaterra em harmonia
1 Cfr. E. S. Morgan, Inventing the People. The Rise of Popular Sovereignty in England and
America, Norton, New York, London 1989, pp. 58 sgg.
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com os cannes caracteriticos da tradio medieval2.
sobre esta antiga imagem de representao que se enxerta, ao longo do
tumultuado sc. XVII, a atribuio ao parlamento de um papel politicamente e
constitucionalmente novo. Resta, porm, a idia de um parlamento que, como
pars pro toto, representa no tanto os sujeitos particulares, mas a nao, a
totalidade do corpo poltico. esta antiga convico (cada vez confirmada por
uma publicstica de autoridade, que vai de Smith a Coke, a Sidney) que, em
contato com as relevantes transformaes scio-politicas dos sculos XVII e
XVIII, transforma-se na tese da independncia do parlamento em relao aos
eleitores em particular; e sustentar, ento, como faz Walpole3 e depois Burke,
que o parlamento representa a nao significara no mais evocar o nexo
identitrio do parlamento com os estamentos e corpos, e, portanto, com a
civitas em geral, mas indicar no parlamento o lugar de decises polticas
autnomas.
Para Burke, a representao parlamentar deve ser desvinculada do
condicionamento dos eleitores em particular. O parlamento olha para a
totalidade da nao e encontra o seu fundamento na ordem jurdica: no nos
sujeitos e nas suas isoladas e imediatas vontades, mas na trama objetiva de uma
constituio que se desenvolve incessantemente por pequenos ajustamentos
progressivos.
Emergem em filigrana na visa burkeana da representao as convices
que sustentam as suas clebres e torrenciais Reflections anti-revolucionrias: a
polmica contra o protagonismo dos sujeitos, contra o carter abstrato dos
direitos do homem, contra um fundamento voluntarista, contratualista,
mecanicista, do poder, o elogio de uma constituio no decidida, mas
formada com o tempo, o apreo pelo gradualismo e pela cautelosa
experimentao.
, justamente, na ordem jurdica objetiva que a representao encontra o
seu fundamento, e no em alguma deciso dos sujeitos. Deste ponto de vista, a
eliso dos sujeitos ainda mais radical em Burke do que em Hobbes, a partir
2 Cfr. H. Hofmann, Reprsentation, cit., pp. 339 sgg.
3 Cfr. Q. Skinner, The principles and Practice of Opposition: the Case of Bolingbroke versus
Walpole, in N. McKendrick (a cura di), Historical Perspectives. Studies in English Political
and Social Thoughts in Honour of J.H. Plumb, London 1974; L. Cedroni, Il lessico della
rappresentanza politica, Rubbettino, Soveria Mannelli 1996, p. 14 sgg.
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do momento que o segundo via nos sujeitos ao menos os autores da entrada
em cena da soberania, os inventores do soberano representativo, enquanto o
primeiro os exclui do processo de constituio da ordem.
Olhando, depois, para a ordem constituda, para Hobbes, os sujeitos no
existem politicamente seno atravs do soberano representativo, mas para
Burke tambm o carter representativo do parlamento no dado pelo fato que
a representao se oferece como ponte entre os sujeitos e o poder: a
representao no valoriza os sujeitos como tais, os representados, mas
legitima os representantes como voz autntica da nao. A diferena qualitativa
entre o plano dos sujeitos e a estrutura da ordem clara tanto em Burke como
em Hobbes, salvo a divergncia radical na representao da prpria ordem, a
partir do momento que, para o primeiro, existe uma ordem jurdica-
constitucional no determinada pela deciso soberana, enquanto para o
segundo o soberano possui um papel constitutivo em relao ordem.
Ento, para Burke, a representao o trnsito entre o soberano e a nao.
Esta , certamente, uma entidade objetivamente existente, mas o seu elemento
caracterstico no deve ser buscado na vontade, mas no interesse: Burke olha
para o interesse e para os interesses, no para a vontade, fiel sua orientao
geral anti-voluntarista; os interesses dos quais os representantes devem se
ocupar, porm, no so os interesses de um sujeito ou grupo de sujeitos, mas
so os interesses gerais, os interesses de uma nao que, mesmo existindo na
sua estrutura objetiva constitucional independentemente da interveno do
soberano, todavia, torna-se capaz de agir somente graas s decises
autnomas dos seus representantes.
Reafirmado o salto qualitativo entre os representados e os representantes,
Burke no perde de vista, de alguma forma, uma exigncia que continuara a
apresentar-se entre as pregas do discurso moderno da representao: a
exigncia que a duplicao dos planos, o no bridge entre os individuos em
particular e o sujeito coletivo nao, no se traduza em um dficit de
representatividade (se me permitido o jogo de palavras) da instituio
representativa, no exaspere, em suma, o descolamento (indispensvel) entre os
representados em particular e os representantes; se isso acontecesse, impedir-
se-ia aos primeiros de reconhecer-se nos segundos, bloquear-se-ia qualquer
mecanismo de identificao, com o resultado de vanificar as valncias
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legitimadoras do mecanismo representativo; e nesse sentido que Burke fala
da importncia de sentir-se representado, da necessidade de fazer sim com
que a representao possa dar lugar tambm a uma communion of interest and
sympathy in feelings and desires 4.
Continuam centrais, de qualquer forma, na idia burkeana de
representao, a refutao de um nexo imediato entre representados e
representantes, a identificao dos representados com a rede objetiva dos
interesses da nao e a viso dos representantes como uma elite que da forma e
expresso queles interesses, agindo como centro autnomo de deciso
poltica.
Dentro de um esquema que se pode chamar, em alguma medida, dualista
(ao menos em relao ao intransigente monismo de Hobbes), a partir do
momento em que se prope sempre, de alguma forma, uma estrutura objetiva
de interesses da qual o representante pretende ser ponte e funo, o
representante coloca-se, portanto, no como espelho de uma vontade j
formada, mas como causa eficiente de uma deciso que de outra forma seria
impossvel. Deste ponto de vista, no parecem muito distantes da verso
burkeana de representao as propostas de Sieys, no obstante toda a averso
demonstrada por Burke contra o experimento revolucionrio.
Na realidade, as diferenas so profundas, e tornam compreensveis a
invectiva burkeana. Sieys teoriza a representao dentro de um projeto
diametralmente oposto da viso burkena justo porque fundada sobre a idia de
uma constituio no dada, mas decidida. em um verdadeiro processo
constituinte que Sieys est pensando quando prope transformar os Estados
gerais em uma indita assemblia de iguais. O modelo conceitual de referencia
, ainda, o esquema contratualista elaborado pela tradio jusnaturalista: so os
indivduos que, com o contrato social, fundam a ordem poltica. Este esquema,
porm, desce do cu terra: os sujeitos no so mais os homens do hipottico e
originrio estado de natureza, mas so os membros reais e presentes da nao
francesa, so os componentes no-privilegiados daquela nao que se
identifica com o Terceiro Estado; e o pacto que estes se prestam a firmar no
o contrato social, mas o ato fundador de uma assemblia constituinte.
Para que esta assemblia possa existir e operar, preciso levar em
4 H.F. Pitkin, The Concept of Representation, cit., p. 184.
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considerao o conceito de representao, mas, ao mesmo tempo, preciso
transform-lo pela raiz: necessrio recorrer representao porque a nao
um corpo poltico de enormes dimenses, capaz de agir somente por uma
pessoa interposta; a nao que pede para ser representada no mais, porm, a
nao antiga; uma nao que se redefiniu expelindo como um corpo
estranho os estamentos privilegiados e identificando-se com os 25 milhes de
sujeitos iguais: e so exatamente estes os autores (como diria Hobbes) que
nomeiam como seus atores os membros da assemblia, permitindo a esta de
iniciar o processo constituinte.
Fundada na igualdade dos sujeitos, a nova representao, para Sieys, no
tem qualquer relao com a tradio do antigo regime, mas tambm no deve
deixar-se intimidar pelas crticas rousseanianas: longe de ser uma m
alternativa democracia, para Sieys a representao a nica realizao
possvel dela. A democracia dos modernos, diferentemente da democracia dos
antigos (j presente em Sieys, e antes ainda em Montesquieu, a oposio
binria antigos/modernos que Constant tornara clebre), realiza-se
necessariamente na forma da representao. A democracia , de fato, a
atribuio do poder soberano ao peuple en corps. No , porm, a Nao
enquanto tal, nas complexas sociedades do presente, que podem existir en
corps: somente na assemblia representativa ser possvel reencontrar aquela
co-presena fsica dos membros do corpo soberano que caracterizava a antiga
agor. A democracia antiga, ento, ao mesmo tempo excluda porque
impossvel de realizar e conservada como modelo imaginrio da nao e do seu
governo. A nao reunida em assemblia, hiptese irreal, encontra a sua
imagem na Assemblia que a representa5.
Fundamentada em uma idia de nao como soma de cada sujeito igual,
a idia sieysiana de representao incompatvel com a viso burkeana e
pode qui parecer mais aberta s sugestes do modelo hobbesiano, segundo o
qual os sujeitos em particular, no estado de natureza, autorizam o soberano
5 C. Larrre, Le gouvernement reprsentatif dans la pense de Sieys, in C. Carini (a cura di),
Dottrine e istituzioni della rappresentanza, cit., p. 47. Cfr. tambem P. Pasquino, E. Sieys, B.
Constant ed il governo dei moderni. Contributo alla storia del concetto di rappresentanza politica, in Filosofia politica, I, 1, 1987, pp. 77-98; F. Sbarberi, galit du civisme et galit
de la reprsentation in Condorcet e Sieys, in C. Carini (a cura di), La rappresentanza tra due
rivoluzioni (1789-1848), Centro Editoriale Toscano, Firenze 1991, pp. 39-50. Cfr. anche P.
Violante, Lo spazio della rappresentanza, I., Francia (1788-1789), Mozzone, Palermo 1981.
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criando-o como seu ator, como seu representante. Entre as argumentaes de
Hobbes e de Sieys interpe-se, porm uma diferena decisiva (obviamente
ligada incomensurabilidade dos contextos, culturas e propenses individuais):
o esquema autor-ator, evocado por Hobbes para o momento idealmente
fundante da soberania, empregado por Sieys para dar a um evento concreto
a convocao dos Estados gerais o valor de ato inaugural de um verdadeiro
processo constituinte.
Estou tentando no mais estabelecer improvveis nexos filolgicos entre
dois autores, mas somente comparar entre eles diversas estratgias
argumentativas para colocar em evidncia os traos que os caracterizam; e,
nessa perspectiva, possvel colher, na estratgia argumentativa de Sieys, a
permanncia de aspectos importantes do esquema hobbesiano. Certamente,
para Hobbes, os sujeitos movem-se em um contexto a-poltico e pr-poltico e
somente atravs do soberano representativo adquirem valncia poltica,
tornam-se povo. J para Sieys, a nao , sim, uma soma de sujeitos
atomizados, mas no um flatus vocis, mas (imaginada como) um sujeito
coletivo do qual dependem a existncia e a legitimidade da nova ordem
Porm, verdade, tambm, que a existncia atual da nao, a expresso e
formao da sua vontade, logo, a sua efetiva visibilidade, passam
necessariamente atraves da assemblia representativa e de suas deliberaes.
Certamente, o esquema empregado dualista: de um lado, a nao, de
outro, a assemblia representativa, que exprime e formaliza a vontade da
primeira. Trata-se, porm, de um dualismo aparente ou virtual, a partir do
momento que a nao no existe efetivamente, em ato, seno atravs das
declaraes e decises de uma assemblia representativa que no mais recolhe
ou declara uma vontade pr-existente, mas a frmula ex nihilo. O carter
representativo da assemblia traduz-se em uma funo no mais declarativa,
mas constitutiva: a representao (exatamente como em Hobbes) no tem s
suas costas uma ordem j dada, mas diretamente envolvida no processo de
formao da ordem, e , por isso, de certa forma, um verdadeiro deus ex
machina.
Burke, ao contrrio, forte na sua concepo anti-voluntarista, fazendo da
tradio constitucional e da estrutura dos interesses o centro da nao, confere
a ela uma existncia mais corposa: a assemblia representativa o final de uma
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relao que tem, na outra ponta, uma grandeza objetivamente estruturada. A
dualidade caracterstica do conceito de representao parece, ento,
substancialmente respeitada. Nem mesmo para Burke, porm, como sabemos, a
representao um canal graas ao qual as instncias, as vontades, as
expectativas dos representados so transmitidas aos representantes; nem
mesmo para Burke se d uma passagem imediata dos representados aos
representantes, dos sujeitos ao parlamento; e este ltimo que, justamente em
virtude da sua funo representativa, tem o poder e o dever de identificar os
verdadeiros interesses e de decidir em perfeita autonomia.
Nesta perspectiva compreende-se facilmente como a transformao do
mandato, na representao moderna, de vinculado livre no uma simples
mudana de engenharia constitucional, mas incide sobre (e depende de) o
processo de fundao e de legitimao da ordem poltica.
Emerge, ento, com clareza, o divisor de guas conceitual que separa a
longa idade mdia da modernidade, quando a ordem cessa de ser pensada
como uma realidade existente desde sempre, inscrita na natureza das coisas, e
torna-se uma inveno, um artifcio, uma construo. Para a cultura medieval e
proto-moderna a representao repousa na imanncia do todo na parte:
representar significa, de certa forma, revelar a presena do todo na parte. ,
justamente, a relao identitria entre a parte e o todo que cinde logo que cai a
idia de uma totalidade ordenada desde sempre: para Hobbes, para o terico da
desordem originria, a ordem passa atravs de um soberano criado pelos
sujeitos, como seu representante, mas os sujeitos, por sua vez, existiro
politicamente somente enquanto o soberano, representando-os, transforma-os
em povo.
Certamente, o mundo de Hobbes j passado e novos e diferentes so os
interesses, os problemas, os estilos de argumentao de um Burke ou de um
Sieys (e no poderia ser de outro modo, dada a radical diferena dos
contextos). Algo do paradoxo hobbesiano da representao, o seu sentido, se
no a sua formulao, volta, porm, a recolocar-se na cultura poltica do
incipiente parlamentarismoNt: o representado, o ente coletivo nao,
Nt
A expresso parlamentarismo, aqui, no usada no sentido de sistema de governo (presidencialismo, parlamentarismo, etc.), mas na acepo mais genrica de tendncias que
consideram a necessidade de um regime poltico com parlamento.
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concebido, sim, como um ens realissimum, mas as suas concretas
manifestaes, a sua existncia em ato dependem das decises do
representante; a assemblia representativa que no mais declara uma vontade
pr-existente, mas da forma a uma vontade nova e, de outro modo,
inexprimvel. O final do mandato imperativo, a autonomia do representante em
relao ao representado, pressupe e refora a idia que a representao no
coloca em relao a parte com o todo, mas intervm diretamente no processo
de criao da ordem. O paradoxo da representao nasce, exatamente, do
contraste entre o dualismo que ela evoca (a representao como ponte ou nexo
entre dois entes) e a torso monista que ela sofre no exrdio da modernidade.
Com a queda do antigo nexo identitrio entre a parte e o todo, entre o
representante e o representado, o representante substitui a nao representada e
justamente enquanto substitui a realiza.
Assumir a representao como passagem da existncia em ato da nao
produz um forte efeito de legitimao para o rgo representativo. Mudam,
porm, segundo os contextos e orientaes, os esquemas fundantes do nexo
que liga os representantes e os representados. Para Burke, a legitimidade da
assemblia representativa emana da ordem juridica objetiva e da tradio
constitucional, e somente nesta moldura encontra um lugar o mecanismo
eleitoral. Quando, ao contrrio, como para Sieys, a pedra angular do processo
constituinte e da nova ordem que dali deve surgir o sujeito e a sua vontade, o
momento do voto adquire uma importncia decisiva e torna-se parte integrante
do novo dispositivo de representao.
O voto o lao visvel e formalizado entre os membros da nao
representada e a assemblia representativa; o voto que, como expresso do
consenso dos sujeitos, permite imputar aos representados as decises dos
representantes e figurar o povo como um sujeito auto-nomo, como um sujeito
coletivo que obedece s leis que ele prprio livremente se d. Ao mesmo
tempo, porm, o mecanismo do voto funciona pressupondo a proibio do
mandato imperativo, o salto qualitativo entre os representantes e os
representados, a total autonomia decisional da assemblia representativa e
traduz-se no poder de designar os membros desta ltima. O nexo imediato
entre voto e consenso produz, ento, dois resultados complementares: permite
preservar a diviso potestativa entre os poucos que decidem os muitos que
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obedecem e fornece, ao mesmo tempo, uma eficaz legitimao dessa diferena,
j que os muitos, em virtude do mecanismo eleitoral, contriburam para
designar os poucos e so, portanto, simbolicamente solicitados a reconhecer-se,
a identificar-se neles.
possvel, ento, indicar sinteticamente trs caractersticas que o discurso
da representao mostra que possui na fase inaugural da sua trajetria.
Em primeiro lugar, torna-se um tema a importncia do consenso dos
sujeitos e, com isso, do sufrgio poltico e do direito ao voto. O voto torna
concreto e visvel o papel ativo do sujeito na vida do ordenamento e traduz-se
em um poder especfico: o poder de designar alguns indivduos colocando-os
no vrtice do ordenamento. Atravs do voto concretiza-se a ligao
representativa entre os muitos e os poucos: os muitos obedecem os poucos,
mas, os poucos, enquanto designados pelos muitos, so representantes dos
muitos. A representao torna-se, ento, a celebrao simblica da ponte que
une os muitos aos poucos, a multido classe de governo.
A representao, porm, e este o segundo ponto, no exaure a sua funo
ao permitir que os sujeitos se reconheam na ordem, que se sintam em casa,
por assim dizer, na respublica, quando atribui a eles um papel ativo e um
efetivo poder de designar a elite. Existe uma outra face da representao,
voltada no aos sujeitos, mas ao soberano. A representao moderna repousa
na proibio do mandato imperativo e no dogma da independncia do eleito em
relao aos eleitores: o representante no recolhe as vontades dos sujeitos, mas,
atravs das suas livres decises, da voz vontade da nao. A vontade do
soberano e vontade dos sujeitos so descontnuas e o mecanismo da
representao que, no momento em que separa a deciso dos representantes das
vontades dos representados, possibilita a constituio da soberania.
Como em Hobbes, a representao no declara uma vontade j existente,
mas torna possvel a formulaao de uma vontade nova e diferente: so os
representantes que com as suas decises tornam visveis e ativas a nao
soberana que, de outra forma, permaneceria invisvel e impotente. Se verdade
que os representados designam os representantes, verdade, tambm, que estes
ltimos decidem em liberdade soberana, separados dos representados por um
fosso incolmvel. A representao, ento, por um lado, aproxima os
representados dos representantes permitindo que os primeiros reconheam-se
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nos segundos, mas, por outro lado, sanciona a radical separao entre os muitos
e os poucos, entre a multido e a elite, assegurando para esta ltima a mais
ampla liberdade de movimento. Este o paradoxo dentro do qual se inscreve o
discurso moderno da representao: um paradoxo que, anunciado por Hobbes
em um contexto jusnaturalista e absolutista, confirmado no ambiente, mesmo
radicalmente diferente, tanto do parlamentarismo ingls quanto do francs. Em
ambos os casos, a representao no serve para registrar uma vontade poltica
j existente e entreg-la nas mos do soberano; ela muito mais um
instrumento que permite a formulao ex nihilo da vontade soberana.
A representao, por um lado, ala os sujeitos na direo do soberano para
que possam reconhecer-se nele, por outro lado, sanciona o descolamento entre
a vontade do soberano e as vontades dos suditos, e, por fim, indica na nao o
ente coletivo que somente ela capaz de transformar de ausente em presente,
de invisvel em visvel. No momento em que torna real a nao e a sua
vontade, a representao e este o terceiro ponto coloca em evidncia
tambm a unidade. As infinitas diferenciaes reais que caracterizam as
dinamicas sociais representadas, os conflitos que a atravessam e agitam-na,
desaparecem subitamente: a nao imaginada e construda atravs do jogo da
representao torna possvel e crvel a unidade do corpo poltico que uma
descrio desencantada da cotidianeidade poltico-social pareceria duramente
desmentir.