pietro costa - soberania representaçao democracia

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PIETRO COSTA SOBERANIA, REPRESENTAÇÃO, DEMOCRACIA Ensaios da história do pensamento jurídico A representaçao parlamentar: entre Burke e Sieyès Justamente nos anos em que Hobbes teorizava o poder absoluto do soberano, mudava vistosamente, na Inglaterra, ainda que em meio a dramáticos contrastes, o papel do parlamento. Pareceria, portanto, plausível apresentar o conflito político-institucional do séc. XVII inglês como uma luta entre os fautores de uma nova forma de governo fundada na relação ‘representativa’ entre povo e parlamento e os defensores da velha monarquia ‘absoluta’. Tal esquema interpretativo, porém, aceitável quando se olha para as fórmulas constitucionais, parece demasiado simples quando se leva em consideração a trama dos conceitos político-jurídicos. Nesta perspectiva, a visão hobbesiana da soberania ‘representativa’ e o novo discurso da representação parlamentar se colocam em uma relação mais complexa, onde afloram, ao lado das dissonâncias, algumas consonâncias. Em primeiro lugar, a soberania parlamentar é apresentada pelos seus maiores defensores pense-se em Henry Parker 1 - como um poder autosuficiente e completo, em suma, ‘absoluto’ (e, além disso, o próprio Hobbes, mesmo sem esconder a sua preferência pelo governo monárquico, estava disposto a investir do poder supremo também uma assembléia). Em segundo lugar, se se exalta a função representativa do parlamento, ao mesmo tempo ele se apresenta não mais como espelho ou caixa de ressonância das vontades ou dos interesses dos eleitores em particular, mas sim como lugar de formação autônomo de decisões orientadas na direção do todo. Não se trata de uma virada improvisada, ligada à conjuntura de exceção da guerra civil, primeiro, e, depois, da revolução gloriosa. Que o parlamento represente (isto é, com base em uma visão ‘identitária’ da representação subjacente) a communitas regni é uma convicção antiga, difusa na Inglaterra em harmonia 1 Cfr. E. S. Morgan, Inventing the People. The Rise of Popular Sovereignty in England and America, Norton, New York, London 1989, pp. 58 sgg.

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P. III, cap. 2.4A representaçao parlamentar entre Burke e Sieyès

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  • PIETRO COSTA

    SOBERANIA, REPRESENTAO, DEMOCRACIA

    Ensaios da histria do pensamento jurdico

    A representaao parlamentar: entre Burke e Sieys

    Justamente nos anos em que Hobbes teorizava o poder absoluto do

    soberano, mudava vistosamente, na Inglaterra, ainda que em meio a dramticos

    contrastes, o papel do parlamento. Pareceria, portanto, plausvel apresentar o

    conflito poltico-institucional do sc. XVII ingls como uma luta entre os

    fautores de uma nova forma de governo fundada na relao representativa

    entre povo e parlamento e os defensores da velha monarquia absoluta. Tal

    esquema interpretativo, porm, aceitvel quando se olha para as frmulas

    constitucionais, parece demasiado simples quando se leva em considerao a

    trama dos conceitos poltico-jurdicos. Nesta perspectiva, a viso hobbesiana

    da soberania representativa e o novo discurso da representao parlamentar se

    colocam em uma relao mais complexa, onde afloram, ao lado das

    dissonncias, algumas consonncias.

    Em primeiro lugar, a soberania parlamentar apresentada pelos seus

    maiores defensores pense-se em Henry Parker1 - como um poder

    autosuficiente e completo, em suma, absoluto (e, alm disso, o prprio

    Hobbes, mesmo sem esconder a sua preferncia pelo governo monrquico,

    estava disposto a investir do poder supremo tambm uma assemblia).

    Em segundo lugar, se se exalta a funo representativa do parlamento, ao

    mesmo tempo ele se apresenta no mais como espelho ou caixa de ressonncia

    das vontades ou dos interesses dos eleitores em particular, mas sim como lugar

    de formao autnomo de decises orientadas na direo do todo. No se trata

    de uma virada improvisada, ligada conjuntura de exceo da guerra civil,

    primeiro, e, depois, da revoluo gloriosa. Que o parlamento represente (isto ,

    com base em uma viso identitria da representao subjacente) a

    communitas regni uma convico antiga, difusa na Inglaterra em harmonia

    1 Cfr. E. S. Morgan, Inventing the People. The Rise of Popular Sovereignty in England and

    America, Norton, New York, London 1989, pp. 58 sgg.

  • com os cannes caracteriticos da tradio medieval2.

    sobre esta antiga imagem de representao que se enxerta, ao longo do

    tumultuado sc. XVII, a atribuio ao parlamento de um papel politicamente e

    constitucionalmente novo. Resta, porm, a idia de um parlamento que, como

    pars pro toto, representa no tanto os sujeitos particulares, mas a nao, a

    totalidade do corpo poltico. esta antiga convico (cada vez confirmada por

    uma publicstica de autoridade, que vai de Smith a Coke, a Sidney) que, em

    contato com as relevantes transformaes scio-politicas dos sculos XVII e

    XVIII, transforma-se na tese da independncia do parlamento em relao aos

    eleitores em particular; e sustentar, ento, como faz Walpole3 e depois Burke,

    que o parlamento representa a nao significara no mais evocar o nexo

    identitrio do parlamento com os estamentos e corpos, e, portanto, com a

    civitas em geral, mas indicar no parlamento o lugar de decises polticas

    autnomas.

    Para Burke, a representao parlamentar deve ser desvinculada do

    condicionamento dos eleitores em particular. O parlamento olha para a

    totalidade da nao e encontra o seu fundamento na ordem jurdica: no nos

    sujeitos e nas suas isoladas e imediatas vontades, mas na trama objetiva de uma

    constituio que se desenvolve incessantemente por pequenos ajustamentos

    progressivos.

    Emergem em filigrana na visa burkeana da representao as convices

    que sustentam as suas clebres e torrenciais Reflections anti-revolucionrias: a

    polmica contra o protagonismo dos sujeitos, contra o carter abstrato dos

    direitos do homem, contra um fundamento voluntarista, contratualista,

    mecanicista, do poder, o elogio de uma constituio no decidida, mas

    formada com o tempo, o apreo pelo gradualismo e pela cautelosa

    experimentao.

    , justamente, na ordem jurdica objetiva que a representao encontra o

    seu fundamento, e no em alguma deciso dos sujeitos. Deste ponto de vista, a

    eliso dos sujeitos ainda mais radical em Burke do que em Hobbes, a partir

    2 Cfr. H. Hofmann, Reprsentation, cit., pp. 339 sgg.

    3 Cfr. Q. Skinner, The principles and Practice of Opposition: the Case of Bolingbroke versus

    Walpole, in N. McKendrick (a cura di), Historical Perspectives. Studies in English Political

    and Social Thoughts in Honour of J.H. Plumb, London 1974; L. Cedroni, Il lessico della

    rappresentanza politica, Rubbettino, Soveria Mannelli 1996, p. 14 sgg.

  • do momento que o segundo via nos sujeitos ao menos os autores da entrada

    em cena da soberania, os inventores do soberano representativo, enquanto o

    primeiro os exclui do processo de constituio da ordem.

    Olhando, depois, para a ordem constituda, para Hobbes, os sujeitos no

    existem politicamente seno atravs do soberano representativo, mas para

    Burke tambm o carter representativo do parlamento no dado pelo fato que

    a representao se oferece como ponte entre os sujeitos e o poder: a

    representao no valoriza os sujeitos como tais, os representados, mas

    legitima os representantes como voz autntica da nao. A diferena qualitativa

    entre o plano dos sujeitos e a estrutura da ordem clara tanto em Burke como

    em Hobbes, salvo a divergncia radical na representao da prpria ordem, a

    partir do momento que, para o primeiro, existe uma ordem jurdica-

    constitucional no determinada pela deciso soberana, enquanto para o

    segundo o soberano possui um papel constitutivo em relao ordem.

    Ento, para Burke, a representao o trnsito entre o soberano e a nao.

    Esta , certamente, uma entidade objetivamente existente, mas o seu elemento

    caracterstico no deve ser buscado na vontade, mas no interesse: Burke olha

    para o interesse e para os interesses, no para a vontade, fiel sua orientao

    geral anti-voluntarista; os interesses dos quais os representantes devem se

    ocupar, porm, no so os interesses de um sujeito ou grupo de sujeitos, mas

    so os interesses gerais, os interesses de uma nao que, mesmo existindo na

    sua estrutura objetiva constitucional independentemente da interveno do

    soberano, todavia, torna-se capaz de agir somente graas s decises

    autnomas dos seus representantes.

    Reafirmado o salto qualitativo entre os representados e os representantes,

    Burke no perde de vista, de alguma forma, uma exigncia que continuara a

    apresentar-se entre as pregas do discurso moderno da representao: a

    exigncia que a duplicao dos planos, o no bridge entre os individuos em

    particular e o sujeito coletivo nao, no se traduza em um dficit de

    representatividade (se me permitido o jogo de palavras) da instituio

    representativa, no exaspere, em suma, o descolamento (indispensvel) entre os

    representados em particular e os representantes; se isso acontecesse, impedir-

    se-ia aos primeiros de reconhecer-se nos segundos, bloquear-se-ia qualquer

    mecanismo de identificao, com o resultado de vanificar as valncias

  • legitimadoras do mecanismo representativo; e nesse sentido que Burke fala

    da importncia de sentir-se representado, da necessidade de fazer sim com

    que a representao possa dar lugar tambm a uma communion of interest and

    sympathy in feelings and desires 4.

    Continuam centrais, de qualquer forma, na idia burkeana de

    representao, a refutao de um nexo imediato entre representados e

    representantes, a identificao dos representados com a rede objetiva dos

    interesses da nao e a viso dos representantes como uma elite que da forma e

    expresso queles interesses, agindo como centro autnomo de deciso

    poltica.

    Dentro de um esquema que se pode chamar, em alguma medida, dualista

    (ao menos em relao ao intransigente monismo de Hobbes), a partir do

    momento em que se prope sempre, de alguma forma, uma estrutura objetiva

    de interesses da qual o representante pretende ser ponte e funo, o

    representante coloca-se, portanto, no como espelho de uma vontade j

    formada, mas como causa eficiente de uma deciso que de outra forma seria

    impossvel. Deste ponto de vista, no parecem muito distantes da verso

    burkeana de representao as propostas de Sieys, no obstante toda a averso

    demonstrada por Burke contra o experimento revolucionrio.

    Na realidade, as diferenas so profundas, e tornam compreensveis a

    invectiva burkeana. Sieys teoriza a representao dentro de um projeto

    diametralmente oposto da viso burkena justo porque fundada sobre a idia de

    uma constituio no dada, mas decidida. em um verdadeiro processo

    constituinte que Sieys est pensando quando prope transformar os Estados

    gerais em uma indita assemblia de iguais. O modelo conceitual de referencia

    , ainda, o esquema contratualista elaborado pela tradio jusnaturalista: so os

    indivduos que, com o contrato social, fundam a ordem poltica. Este esquema,

    porm, desce do cu terra: os sujeitos no so mais os homens do hipottico e

    originrio estado de natureza, mas so os membros reais e presentes da nao

    francesa, so os componentes no-privilegiados daquela nao que se

    identifica com o Terceiro Estado; e o pacto que estes se prestam a firmar no

    o contrato social, mas o ato fundador de uma assemblia constituinte.

    Para que esta assemblia possa existir e operar, preciso levar em

    4 H.F. Pitkin, The Concept of Representation, cit., p. 184.

  • considerao o conceito de representao, mas, ao mesmo tempo, preciso

    transform-lo pela raiz: necessrio recorrer representao porque a nao

    um corpo poltico de enormes dimenses, capaz de agir somente por uma

    pessoa interposta; a nao que pede para ser representada no mais, porm, a

    nao antiga; uma nao que se redefiniu expelindo como um corpo

    estranho os estamentos privilegiados e identificando-se com os 25 milhes de

    sujeitos iguais: e so exatamente estes os autores (como diria Hobbes) que

    nomeiam como seus atores os membros da assemblia, permitindo a esta de

    iniciar o processo constituinte.

    Fundada na igualdade dos sujeitos, a nova representao, para Sieys, no

    tem qualquer relao com a tradio do antigo regime, mas tambm no deve

    deixar-se intimidar pelas crticas rousseanianas: longe de ser uma m

    alternativa democracia, para Sieys a representao a nica realizao

    possvel dela. A democracia dos modernos, diferentemente da democracia dos

    antigos (j presente em Sieys, e antes ainda em Montesquieu, a oposio

    binria antigos/modernos que Constant tornara clebre), realiza-se

    necessariamente na forma da representao. A democracia , de fato, a

    atribuio do poder soberano ao peuple en corps. No , porm, a Nao

    enquanto tal, nas complexas sociedades do presente, que podem existir en

    corps: somente na assemblia representativa ser possvel reencontrar aquela

    co-presena fsica dos membros do corpo soberano que caracterizava a antiga

    agor. A democracia antiga, ento, ao mesmo tempo excluda porque

    impossvel de realizar e conservada como modelo imaginrio da nao e do seu

    governo. A nao reunida em assemblia, hiptese irreal, encontra a sua

    imagem na Assemblia que a representa5.

    Fundamentada em uma idia de nao como soma de cada sujeito igual,

    a idia sieysiana de representao incompatvel com a viso burkeana e

    pode qui parecer mais aberta s sugestes do modelo hobbesiano, segundo o

    qual os sujeitos em particular, no estado de natureza, autorizam o soberano

    5 C. Larrre, Le gouvernement reprsentatif dans la pense de Sieys, in C. Carini (a cura di),

    Dottrine e istituzioni della rappresentanza, cit., p. 47. Cfr. tambem P. Pasquino, E. Sieys, B.

    Constant ed il governo dei moderni. Contributo alla storia del concetto di rappresentanza politica, in Filosofia politica, I, 1, 1987, pp. 77-98; F. Sbarberi, galit du civisme et galit

    de la reprsentation in Condorcet e Sieys, in C. Carini (a cura di), La rappresentanza tra due

    rivoluzioni (1789-1848), Centro Editoriale Toscano, Firenze 1991, pp. 39-50. Cfr. anche P.

    Violante, Lo spazio della rappresentanza, I., Francia (1788-1789), Mozzone, Palermo 1981.

  • criando-o como seu ator, como seu representante. Entre as argumentaes de

    Hobbes e de Sieys interpe-se, porm uma diferena decisiva (obviamente

    ligada incomensurabilidade dos contextos, culturas e propenses individuais):

    o esquema autor-ator, evocado por Hobbes para o momento idealmente

    fundante da soberania, empregado por Sieys para dar a um evento concreto

    a convocao dos Estados gerais o valor de ato inaugural de um verdadeiro

    processo constituinte.

    Estou tentando no mais estabelecer improvveis nexos filolgicos entre

    dois autores, mas somente comparar entre eles diversas estratgias

    argumentativas para colocar em evidncia os traos que os caracterizam; e,

    nessa perspectiva, possvel colher, na estratgia argumentativa de Sieys, a

    permanncia de aspectos importantes do esquema hobbesiano. Certamente,

    para Hobbes, os sujeitos movem-se em um contexto a-poltico e pr-poltico e

    somente atravs do soberano representativo adquirem valncia poltica,

    tornam-se povo. J para Sieys, a nao , sim, uma soma de sujeitos

    atomizados, mas no um flatus vocis, mas (imaginada como) um sujeito

    coletivo do qual dependem a existncia e a legitimidade da nova ordem

    Porm, verdade, tambm, que a existncia atual da nao, a expresso e

    formao da sua vontade, logo, a sua efetiva visibilidade, passam

    necessariamente atraves da assemblia representativa e de suas deliberaes.

    Certamente, o esquema empregado dualista: de um lado, a nao, de

    outro, a assemblia representativa, que exprime e formaliza a vontade da

    primeira. Trata-se, porm, de um dualismo aparente ou virtual, a partir do

    momento que a nao no existe efetivamente, em ato, seno atravs das

    declaraes e decises de uma assemblia representativa que no mais recolhe

    ou declara uma vontade pr-existente, mas a frmula ex nihilo. O carter

    representativo da assemblia traduz-se em uma funo no mais declarativa,

    mas constitutiva: a representao (exatamente como em Hobbes) no tem s

    suas costas uma ordem j dada, mas diretamente envolvida no processo de

    formao da ordem, e , por isso, de certa forma, um verdadeiro deus ex

    machina.

    Burke, ao contrrio, forte na sua concepo anti-voluntarista, fazendo da

    tradio constitucional e da estrutura dos interesses o centro da nao, confere

    a ela uma existncia mais corposa: a assemblia representativa o final de uma

  • relao que tem, na outra ponta, uma grandeza objetivamente estruturada. A

    dualidade caracterstica do conceito de representao parece, ento,

    substancialmente respeitada. Nem mesmo para Burke, porm, como sabemos, a

    representao um canal graas ao qual as instncias, as vontades, as

    expectativas dos representados so transmitidas aos representantes; nem

    mesmo para Burke se d uma passagem imediata dos representados aos

    representantes, dos sujeitos ao parlamento; e este ltimo que, justamente em

    virtude da sua funo representativa, tem o poder e o dever de identificar os

    verdadeiros interesses e de decidir em perfeita autonomia.

    Nesta perspectiva compreende-se facilmente como a transformao do

    mandato, na representao moderna, de vinculado livre no uma simples

    mudana de engenharia constitucional, mas incide sobre (e depende de) o

    processo de fundao e de legitimao da ordem poltica.

    Emerge, ento, com clareza, o divisor de guas conceitual que separa a

    longa idade mdia da modernidade, quando a ordem cessa de ser pensada

    como uma realidade existente desde sempre, inscrita na natureza das coisas, e

    torna-se uma inveno, um artifcio, uma construo. Para a cultura medieval e

    proto-moderna a representao repousa na imanncia do todo na parte:

    representar significa, de certa forma, revelar a presena do todo na parte. ,

    justamente, a relao identitria entre a parte e o todo que cinde logo que cai a

    idia de uma totalidade ordenada desde sempre: para Hobbes, para o terico da

    desordem originria, a ordem passa atravs de um soberano criado pelos

    sujeitos, como seu representante, mas os sujeitos, por sua vez, existiro

    politicamente somente enquanto o soberano, representando-os, transforma-os

    em povo.

    Certamente, o mundo de Hobbes j passado e novos e diferentes so os

    interesses, os problemas, os estilos de argumentao de um Burke ou de um

    Sieys (e no poderia ser de outro modo, dada a radical diferena dos

    contextos). Algo do paradoxo hobbesiano da representao, o seu sentido, se

    no a sua formulao, volta, porm, a recolocar-se na cultura poltica do

    incipiente parlamentarismoNt: o representado, o ente coletivo nao,

    Nt

    A expresso parlamentarismo, aqui, no usada no sentido de sistema de governo (presidencialismo, parlamentarismo, etc.), mas na acepo mais genrica de tendncias que

    consideram a necessidade de um regime poltico com parlamento.

  • concebido, sim, como um ens realissimum, mas as suas concretas

    manifestaes, a sua existncia em ato dependem das decises do

    representante; a assemblia representativa que no mais declara uma vontade

    pr-existente, mas da forma a uma vontade nova e, de outro modo,

    inexprimvel. O final do mandato imperativo, a autonomia do representante em

    relao ao representado, pressupe e refora a idia que a representao no

    coloca em relao a parte com o todo, mas intervm diretamente no processo

    de criao da ordem. O paradoxo da representao nasce, exatamente, do

    contraste entre o dualismo que ela evoca (a representao como ponte ou nexo

    entre dois entes) e a torso monista que ela sofre no exrdio da modernidade.

    Com a queda do antigo nexo identitrio entre a parte e o todo, entre o

    representante e o representado, o representante substitui a nao representada e

    justamente enquanto substitui a realiza.

    Assumir a representao como passagem da existncia em ato da nao

    produz um forte efeito de legitimao para o rgo representativo. Mudam,

    porm, segundo os contextos e orientaes, os esquemas fundantes do nexo

    que liga os representantes e os representados. Para Burke, a legitimidade da

    assemblia representativa emana da ordem juridica objetiva e da tradio

    constitucional, e somente nesta moldura encontra um lugar o mecanismo

    eleitoral. Quando, ao contrrio, como para Sieys, a pedra angular do processo

    constituinte e da nova ordem que dali deve surgir o sujeito e a sua vontade, o

    momento do voto adquire uma importncia decisiva e torna-se parte integrante

    do novo dispositivo de representao.

    O voto o lao visvel e formalizado entre os membros da nao

    representada e a assemblia representativa; o voto que, como expresso do

    consenso dos sujeitos, permite imputar aos representados as decises dos

    representantes e figurar o povo como um sujeito auto-nomo, como um sujeito

    coletivo que obedece s leis que ele prprio livremente se d. Ao mesmo

    tempo, porm, o mecanismo do voto funciona pressupondo a proibio do

    mandato imperativo, o salto qualitativo entre os representantes e os

    representados, a total autonomia decisional da assemblia representativa e

    traduz-se no poder de designar os membros desta ltima. O nexo imediato

    entre voto e consenso produz, ento, dois resultados complementares: permite

    preservar a diviso potestativa entre os poucos que decidem os muitos que

  • obedecem e fornece, ao mesmo tempo, uma eficaz legitimao dessa diferena,

    j que os muitos, em virtude do mecanismo eleitoral, contriburam para

    designar os poucos e so, portanto, simbolicamente solicitados a reconhecer-se,

    a identificar-se neles.

    possvel, ento, indicar sinteticamente trs caractersticas que o discurso

    da representao mostra que possui na fase inaugural da sua trajetria.

    Em primeiro lugar, torna-se um tema a importncia do consenso dos

    sujeitos e, com isso, do sufrgio poltico e do direito ao voto. O voto torna

    concreto e visvel o papel ativo do sujeito na vida do ordenamento e traduz-se

    em um poder especfico: o poder de designar alguns indivduos colocando-os

    no vrtice do ordenamento. Atravs do voto concretiza-se a ligao

    representativa entre os muitos e os poucos: os muitos obedecem os poucos,

    mas, os poucos, enquanto designados pelos muitos, so representantes dos

    muitos. A representao torna-se, ento, a celebrao simblica da ponte que

    une os muitos aos poucos, a multido classe de governo.

    A representao, porm, e este o segundo ponto, no exaure a sua funo

    ao permitir que os sujeitos se reconheam na ordem, que se sintam em casa,

    por assim dizer, na respublica, quando atribui a eles um papel ativo e um

    efetivo poder de designar a elite. Existe uma outra face da representao,

    voltada no aos sujeitos, mas ao soberano. A representao moderna repousa

    na proibio do mandato imperativo e no dogma da independncia do eleito em

    relao aos eleitores: o representante no recolhe as vontades dos sujeitos, mas,

    atravs das suas livres decises, da voz vontade da nao. A vontade do

    soberano e vontade dos sujeitos so descontnuas e o mecanismo da

    representao que, no momento em que separa a deciso dos representantes das

    vontades dos representados, possibilita a constituio da soberania.

    Como em Hobbes, a representao no declara uma vontade j existente,

    mas torna possvel a formulaao de uma vontade nova e diferente: so os

    representantes que com as suas decises tornam visveis e ativas a nao

    soberana que, de outra forma, permaneceria invisvel e impotente. Se verdade

    que os representados designam os representantes, verdade, tambm, que estes

    ltimos decidem em liberdade soberana, separados dos representados por um

    fosso incolmvel. A representao, ento, por um lado, aproxima os

    representados dos representantes permitindo que os primeiros reconheam-se

  • nos segundos, mas, por outro lado, sanciona a radical separao entre os muitos

    e os poucos, entre a multido e a elite, assegurando para esta ltima a mais

    ampla liberdade de movimento. Este o paradoxo dentro do qual se inscreve o

    discurso moderno da representao: um paradoxo que, anunciado por Hobbes

    em um contexto jusnaturalista e absolutista, confirmado no ambiente, mesmo

    radicalmente diferente, tanto do parlamentarismo ingls quanto do francs. Em

    ambos os casos, a representao no serve para registrar uma vontade poltica

    j existente e entreg-la nas mos do soberano; ela muito mais um

    instrumento que permite a formulao ex nihilo da vontade soberana.

    A representao, por um lado, ala os sujeitos na direo do soberano para

    que possam reconhecer-se nele, por outro lado, sanciona o descolamento entre

    a vontade do soberano e as vontades dos suditos, e, por fim, indica na nao o

    ente coletivo que somente ela capaz de transformar de ausente em presente,

    de invisvel em visvel. No momento em que torna real a nao e a sua

    vontade, a representao e este o terceiro ponto coloca em evidncia

    tambm a unidade. As infinitas diferenciaes reais que caracterizam as

    dinamicas sociais representadas, os conflitos que a atravessam e agitam-na,

    desaparecem subitamente: a nao imaginada e construda atravs do jogo da

    representao torna possvel e crvel a unidade do corpo poltico que uma

    descrio desencantada da cotidianeidade poltico-social pareceria duramente

    desmentir.