pierre klossowski digressao a partir de um retrato apocrifo

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APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano VII n. 12 p. 203-210 2009 TRADUÇÃO Apresentação Leonardo Maia 1 Em seus livros e artigos, Deleuze raramente fez da Universidade uma questão maior. Tampouco se refere ele diretamente ao problema da pedagogia universitária. Na verdade, ao comentar a sua experiência docente, Deleuze não estabelece grandes distinções entre o ato de dar aula na Universidade e suas outras experiências anteriores, concentrando- se, mais simplesmente, no processo da origem e da composição de uma aula, ou no grau de exigência para a sua preparação que, segundo ele, pouco se distinguiria nos seus diversos níveis. “A preparação preliminar e a inspiração na hora”: eis o segredo da boa aula... Mas, seu ensino tendo se concentrado, ao longo de sua carreira, em instituições universitárias, sua forma de ensinar e o alcance de suas lições não podem ser desvinculados da evolução e das profundas mudanças por que passa esse nível de ensino na França e em todo o mundo durante o período em que exerce sua atividade docente. Os anos finais da década de 50 até os anos 80, em especial o período imediatamente posterior ao maio de 68 na França são ocasião de movimentos tectônicos definitivos para a organização universitária e para a profissão docente, senão mesmo para 1 Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). E-mail: [email protected]

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Texto de Pierre Klossowski, traduzido por Leonardo Maia, sobre Gilles Deleuze e sua capacidade de ensinar o inensinável.

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  • APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educao Vitria da Conquista Ano VII n. 12 p. 203-210 2009

    Traduo

    Apresentao

    Leonardo Maia 1

    Em seus livros e artigos, Deleuze raramente fez da Universidade

    uma questo maior. Tampouco se refere ele diretamente ao problema

    da pedagogia universitria. Na verdade, ao comentar a sua experincia

    docente, Deleuze no estabelece grandes distines entre o ato de dar

    aula na Universidade e suas outras experincias anteriores, concentrando-

    se, mais simplesmente, no processo da origem e da composio de uma

    aula, ou no grau de exigncia para a sua preparao que, segundo ele,

    pouco se distinguiria nos seus diversos nveis. A preparao preliminar

    e a inspirao na hora: eis o segredo da boa aula...

    Mas, seu ensino tendo se concentrado, ao longo de sua carreira, em

    instituies universitrias, sua forma de ensinar e o alcance de suas lies

    no podem ser desvinculados da evoluo e das profundas mudanas por

    que passa esse nvel de ensino na Frana e em todo o mundo durante o

    perodo em que exerce sua atividade docente. Os anos finais da dcada de

    50 at os anos 80, em especial o perodo imediatamente posterior ao maio

    de 68 na Frana so ocasio de movimentos tectnicos definitivos para a

    organizao universitria e para a profisso docente, seno mesmo para 1 Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Doutor em Filosofia pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). E-mail: [email protected]

  • 204 Leonardo Maia

    toda a concepo de ensino-aprendizagem e para as relaes professor-

    aluno, em uma mudana que, talvez, ainda no de todo avaliamos ou

    mesmo compreendemos em todo o seu alcance. O pensamento de

    Deleuze no apenas beneficia-se dessas novas concepes que emergem

    do maio de 68, cujo advento tem influncia diversas vezes ressaltada por

    ele sobre o seu pensamento, mas as aprofunda. Pensamento e atividade

    profissional se confundem, ento, e sobre as condies dessa sntese

    que versa o texto de Klossowski.

    Nesse pequeno texto, Klossowski um dos primeiros a apontar

    o carter inovador da filosofia deleuziana como estando ligado ao seu

    ato mesmo de ensinar. E ao que ela quer ensinar. Trata-se, para ele, assim, de fazer do ensino uma atividade impraticvel, tecnicamente inqualificvel: segundo ele, nesse caso, a grande originalidade de Deleuze estaria em

    buscar ensinar o inensinvel. E ensinar o inensinvel no apenas como a experincia contgua, universitria, institucionalizada da escrita livresca

    deleuziana, mas, de fato, como o desenvolvimento necessrio, o elemento

    prtico e formativo de uma filosofia da diferena.

    Nesse sentido, se podemos concordar com as teses de Klosowski,

    sua hiptese revela-se fundamental. E por vrias razes.

    Em primeiro lugar, por nos mostrar onde a filosofia deleuziana

    melhor reencontraria o sentido prtico da experincia filosfica antiga. Nesse

    caso, a aula contempornea, universitria, ao constituir um foramento do

    professor e seus alunos na direo do inensinvel e na direo da expresso (e da experimentao) do pensamento puro, ou seja, daquilo que j no est

    previamente dado ao ensinar, recuperaria o ineditismo formador dialgico

    dos gregos. Ou seja, por ela, liberar-nos-amos da mera exposio histrica

    da filosofia para (re)entrar no terreno da verdadeira formao filosfica, e,

    sobretudo, da verdadeira formao pela filosofia.Mas, ainda, talvez defina-se a, quanto ao pensamento do prprio

    Deleuze, o sentido prtico que ele acredita estar sempre no centro de

    toda filosofia. Sentido ao mesmo tempo de uma nova constituio do

    sujeito e de uma reconfigurao da subjetividade, tema que aparece

    j desde Empirismo e Subjetividade e que sucessivamente tematizado a

  • 205 Digresso a partir de um retrato apcrifo

    partir de ento, em relao a todos os pensadores por ele abordados:

    assim, na experincia do eterno retorno nietzschiano, ou em relao ao

    aprendizado dos signos em Proust, e, enfim, tambm na redefinio

    do aprender como novo regime transcendental do pensamento,

    em Diferena e Repetio. Trata-se sempre de um lxico que privilegia a condio e a conduta de formao, evidenciando uma nova experincia

    prtica que arrasta o sujeito para fora e para alm das cadeias subjetivas

    previamente organizadas: na direo da criao, em especial, e sobretudo

    da sua prpria criao atravs de uma experimentao no pensamento.

    Ou isso que Klossowski chama de educao pelo simulacro, ensino do

    inensinvel. So apenas os fantasmas do sujeito o elemento prprio a

    exigir-lhe um aprendizado, ao mesmo tempo o seu objeto de aprendizado

    e o que o faz aprender. E ainda, a nica coisa relevante, na condio de inensinvel, a ser ensinada.

    Grande parte da beleza desse curto texto est nesse deslindar do

    sentido prtico como um dos elementos fundamentais de toda filosofia

    da diferena. E esse sentido estaria, inesperadamente, em uma aula... No aprendizado e no exerccio do inensinvel entre um professor e seus

    alunos.

    Mas por fim, ento, ele apresenta-nos a ideia, a partir de Deleuze,

    para as condies que permitiriam reorientar, de forma experimental,

    nossas prprias experincias docentes. Se, em grande medida, boa

    parte do pensamento de Deleuze se orienta com o propsito de se

    desvencilhar, de forma rigorosa, da histria do pensamento e dos seus

    efeitos constringentes, a possibilidade de fazer da sala de aula o lugar

    mesmo dessa empreitada uma tarefa renovadora e apaixonante. Com

    a radicalidade caracterstica ao seu pensamento, Deleuze estaria assim

    nos propondo a nica verdadeira pedagogia, ao mesmo tempo, quem

    sabe?, que a sua radical impossibilidade.

  • 206 Leonardo Maia

    Digresso a partir de um retrato apcrifo

    Pierre Klossowski 2

    O que Gilles Deleuze aporta e realiza no podia se operar no

    contexto das ltimas geraes seno atravs de uma instintiva teimosia:

    introduzir no ensino o inensinvel.Tanto mais por ser a juventude hoje convidada s diversas

    disciplinas aparentemente esclarecedoras, notadamente a sociologia

    e a psicopatologia, com seus mtodos de eficcia reconfortante, cujo

    primeiro resultado o de instalar os espritos em um conformismo

    laboratorista.

    Ensinar o inensinvel: com toda evidncia, era preciso que

    Nietzsche tivesse vivido e sofrido para que semelhante propsito no

    quedasse vazio e absurdo. Mas Nietzsche, que moveu o combate para

    conquistar tal posio, s o pde faz-lo abandonando o ensino. Talvez

    Deleuze se viu tambm favorecido por suas afinidades com um outro

    esprito exemplar cujas exploraes liberaram zonas contguas sua

    prpria: Michel Foucault. Todos dois tm em comum, sob todos os

    aspectos: a liquidao do princpio de identidade.

    Demonstrar que no se trata aqui de um postulado, mas de um

    estado de fato a exemplo da geologia que prospecta as consequncias

    mineralgicas de um cataclisma passado ainda ensinvel.

    Quanto ao resultado dessa liquidao do princpio de identidade

    em todos os nveis do conhecimento, em todos os nveis da prpria

    existncia que a filosofia at ento circunscrevia e, enfim, no ensino

    filosfico fundado tradicionalmente nesse princpio, Deleuze assume a

    sua aventura, qual seja, a de ensinar este inensinvel.

    o mesmo que se perguntar: como a filosofia pode ser ensinada

    contra a filosofia? Nietzsche no enlouqueceu por isso? No temos Marx

    e Freud, Lacan e Lvi-Strauss para nos evitar esse falso problema?

    2 Pierre Klossowski (1905-2001) filsofo, escritor e tradutor. Dentre suas obras, destacam-se estudos sobre Nietzsche, em especial Nietzsche e o crculo vicioso.

  • 207 Digresso a partir de um retrato apcrifo

    Ora, nos domnios em que se repartem hoje a economia,

    a sociologia, a psiquiatria, para nomear aqui apenas as cincias

    humanas, o inensinvel no existe, pois essas disciplinas representam todas elas diferentes ticas de dados concretos, a partir das quais o

    prprio princpio de realidade parece hoje totalmente renovado, e a

    sua renovao assimilada: no esto todas elas fundadas na noo das

    infraestruturas?

    Ento, o que o inensinvel, para que um esprito talvez astuto

    se atreva mesmo assim a ensin-lo?

    preciso todo o gnio ao mesmo tempo to corajoso quanto

    imaginativo de um Gilles Deleuze para afrontar essa condio

    institucional da cincia, que pretende que ela no possa trabalhar

    se no respeitar um ltimo nvel de investigaes, abaixo do qual o

    prprio conhecimento afundaria no caos: quem quer que transmita s

    conscincias de uma gerao no tanto uma explicao nova, mas uma

    reinveno das leis que regem os fenmenos humanos e extra-humanos

    deve sempre impedir-se de abalar e romper, na continuidade das relaes

    sociais, a noo antropomrfica da integridade da pessoa...

    Admitindo-se que as cincias humanas, desde Marx e Freud,

    no tenham cessado de fazer recuar as fronteiras das infraestruturas

    imaginvel, porm, que essas diferentes disciplinas em algum momento

    considerassem a si mesmas como puras subestruturas de uma sub-

    jacncia inconfessada? O professor ex-cathedra se perderia nessa ausncia de fundo.

    Apreenso do advento nas conscincias e costumes de uma

    integralidade que desintegraria a noo de unidade da pessoa; e

    absolutamente certo que as cincias contribuem para isso pelo fato da

    orientao de sua atividade.

    A integralidade pode se enunciar como a recuperao da polimorfia

    sensvel que Sade descrevia segundo as espcies da monstruosidade: o

    conjunto das perverses. Mas tambm ontologicamente: como as sries

    de acontecimentos particulares a tantos mundos diferentes (Leibniz)

    e, para alm disso, a partir da noo nietzschiana das sries individuais

  • 208 Leonardo Maia

    a percorrer (Eterno Retorno), exprimir-se em Deleuze atravs do

    estilhaamento do princpio de identidade em mltiplas singularidades

    dando lugar a um jogo de combinaes de foras intensivas e depressivas

    que Deleuze, na sua prpria perspectiva, definiu como singularidades

    nmades (por oposio ao sujeito sedentrio em sua identidade), singularidades pr-individuais, agrupadas em sries divergentes ou

    convergentes, cujas funes ele descreveu (o no-sentido criador de

    sentido) e as modalidades (diferena e repetio). Em outras palavras,

    acontecimentos enquanto sentido sempre aleatrio. Mas o que Deleuze nos diz aqui, sob a capa de uma crtica das noes doutrinais, efetua

    uma operao que desenraiza o tipo de ensino institucional praticado

    at ento, porque ela pertence a uma esfera completamente diversa: a

    da cumplicidade com o qu? Com quem?

    O ensino supe o cuidado com uma eficcia social: qual seja, o

    de delimitar a ineficcia, ou a esterilidade, ou ainda o retorno

    daquilo que se ensina queles mesmos que, tendo-o recebido, atestaro

    sua eficcia social.

    Ora, esse cuidado que Deleuze, em seu percurso, no perde

    jamais de vista, como o traado de um horizonte hostil cuidado

    institucionalizado desde Plato, e que vai de encontro nica atitude filosfica autntica, a dos sofistas, permanece totalmente ignorado em

    um domnio completamente diverso, no extremo oposto da atitude

    cientfica: a arte, ou mais propriamente a cincia do falso: a do

    simulacro.

    a ousadia de Deleuze ter transferido as normas dessa cincia do

    falso para a esfera do verdadeiro e do real. E aqui ns tocamos o

    inensinvel, pois no se trata tampouco de ensinar uma esttica (veja-se o admirvel ensaio Marcel Proust et les signes3). Antes disso, tratar-se-ia de uma fisiologia aplicada. E, com efeito, essa transferncia da cincia

    do falso para a esfera do verdadeiro e do real , uma vez mais, atravs

    da primeira das cincias humanas institudas que Deleuze a efetua: ou

    seja, pela psicopatologia, que sofre aqui uma reverso das suas prprias

    normas.3 Em portugus: Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1987.

  • 209 Digresso a partir de um retrato apcrifo

    Ensinar o inensinvel , de incio admitir que toda atitude

    pedaggica e cientfica, como tambm todo comportamento curativo

    (psiquiatria e psicanlise) no so menos estruturas do pathos que os modos de expresso da arte. Esta ltima foi sempre experimentada

    como um olhar incmodo sobre todo outro modo de agir ou sobre

    toda outra forma de contato com o real; e admitir que as cincias, por

    sua vez, fabricam simulacros seria quase insustentvel se no parecesse

    que o pathos, em todos os domnios, o primeiro produtor, o primeiro fabricante e o primeiro consumidor.

    Todo produto ambguo segundo essa relao no h

    conhecimento desinteressado ao mesmo tempo utensiliar e simuladora.

    Simuladora no sentido em que no h jamais coincidncia possvel entre um real que se produz simulando-se a si mesmo os fantasmas do pathos e a reproduo desse simulante salvo a de seus resduos fixos. Mas que, em revanche, toda re-produo reaja sobre essa simulao primeira, o

    simulacro sobre o fantasma, eis o que demonstra que um modelo

    se institui, a partir dessa re-produo, de modo ao mesmo tempo

    apropriador, repressivo e expressivo.

    Utensiliar, ou seja, o domnio sobre o modelo suposto para o real e a interpretao desse domnio. Toda interpretao inteno, mas toda inteno responde sempre a intensidades. Assim como a arte, as cincias so

    mquinas desejantes, a servio das intensidades ou seja, dos fantasmas do pathos. Apenas o constrangimento fantasmtico de uma determinada coisa real, no a realidade de uma coisa: e o simulacro s real se responde

    a esse constrangimento. Toda eficcia se deve to somente a partir dessa

    regra do jogo: o resultado obtido apenas em virtude de uma realidade

    inventada de antemo. O que equivale dizer que todo empreendimento

    no consiste seno em meios de constrangimentos. A cincia, no seu prodigioso esforo, s obedeceria, portanto, a

    fantasmas? Com toda a evidncia: sim! Mas no cabe a ela confess-lo. Seus clculos ou suas experimentaes no seriam mais que simulacros? Sim,

    mas ela no deve sab-lo! Seu fantasma a seriedade indispensvel qual seu fingimento a condena.

  • 210 Leonardo Maia

    Segue-se da que, face a esse necessrio fascnio da cincia, toca

    desde ento filosofia, exclusivamente, passar-se por uma science-fiction?

    Se, pela voz de Deleuze, ela ousa semelhante impertinncia em relao

    a si mesma, no talvez para reservar somente para si tal privilgio.

    In initio erat simulacrum tal o princpio do programa deleuziano: o pathos simulador como nico produtor da significao, ou seja, o simulacro daquilo que seria ou no seria jamais um fato. O prprio suposto [no ] jamais um fato acabado, seno o produto reversvel de

    uma simulao anterior sua formao eco repercutido ao infinito? O

    que ser ento da seriedade da necessidade do peso que arrasta

    um pensamento ou um ato? A resposta seria esta: que essencialmente srio jogar, sob pena de sucumbir seriedade bestial com as vantagens do animal a menos. No o sono da razo que engendra os monstros, mas antes

    a racionalidade vigilante e insone (LAnti-Oedipe, p. 133)4.

    4 Em portugus:O Anti-dipo. Rio de Janeiro: Imago, 1976.