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Mas permanece 0 pr o blema que assola todo trabalho intelectual i ntenso,
auto-imposto e local: 0 d a divisao do trabalho, uma consequencia necessaria
daquela reificayao e mercantilizayao analisada pela primeir a v ez no seculo XX
por Georg Luk acs. Esse e 0 pr o blema colocado de for ma sensivel e inteligente por
Myr a Jahlen par a os estudos femininos: se, na id entif icayao e no tr a balho com
base em criticas antidominantes, os grupos subalter n os - mulheres, negros e
assim por diante - sao capazes de resolver 0 dilema de cam pos aut6nomos de
experiencia e conhecimen to q ue sao cr iados como conseqiiencia. Dois tipos de
exclusivismo possessivo podem se instaurar: 0 sentimento de ser alguem que,
grayas a experien cia, esta dentr o e e exclusivista (somente mulher es podem
escrever para e sobre as mulheres e somente a literatura que tr ata bem as mulhe-
res ou os orientais e boa), ou alguem que, devido ao metodo, tambem exclui
(somente marxistas, antiorientalistas ou f eministas podem escr ever sobre eco-
nomia, or ientalismo ou liter atura f eminina).
Esse e 0 ponto em que e stamos agora, no limiar da fragmentayao e da es pe-
cializayao, que impoem seus proprios dominios par oquiais e atitude def ensiva,
ou a beira de alguma sintese gr andios a que eu, de minha parte, acredito que
poderia facilmente aniquilar os ganhos e a consciencia o posicionista proporcio-
nados por esses contraconhecimentos ate agora. Varias possibilidades se pr o-
poem; concluirei fazendo simplesmen te u ma lista delas. A necessidade de um
maior cruzamento de fronteiras, de maior inter vencionismo em atividades
interdisciplinares, uma consciencia concentrada da situayao - politica, meto-
dologica, social, historica - em que 0 trabalho intelectual se r ealiza. Um com-
promisso politico e metodologico esclarecido com 0 desmantelam en to d e siste-
mas de dominayao que, tendo em vista que sao mantidos coletivamen te, devem
ser , para adotar e transformar algumas ex pr essoes de Gr amsci, combatidos cole-
tivamente, com assedio mutuo, guer r a de manobr as e guerra estr ategica. P or
fim, um sentimento mais agudo do papel do intelectual tanto na definiyao como
na mudanya de urn contexto, sem 0 que, penso eu, acr itica do o rientalismo eape-nas um passatempo efemer o.
i1
t Ern busca de coisas tocadas
I Presem;a e memoria na art e do pianista
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Os pianistas exercem um nota vel fascinio em '
as"su per estrelas" que ag d I' _ nossa VIda cultural. Existemra am as mu tldoes bem com d
daria de pianistas que mes ,'. " 0 uma or em algo secun-mo aSSlm tem um numer o r " I d -
V
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mais rica, composta por obras de a utores da Eur o pa central, de Hambur go a
Viena e de Bach a Schoenberg. Um pianist a q ue tente construir uma carreir a
interpretando obr as de, digamos, Weber, MacDowell, Alkan, Gottschalk,
Scriabin ou Rachmaninoff aca ba geralmente como um ar tista pouco mais que
periferico.
Minha fruic;:aodo pianismo de ho je - um deleite que compr eende nao
somente a presenc;:ado pianista, mas tambem minha ca pacidade de tocar 0 ins-tr umento e refletir sobre 0 que toco e ouc;:o- aponta par a 0 passado. Isso signi-
fica dizer que, em larga medida, ela tem a ver com a memoria. Nao e dificil enten-
der por que meu prazer esta tao ligado ao passado (mais es pecificamente, a
minha compreensao do passado). A pesar de sua presenc;:aener gica e imediata, os
pianistas sac figuras conservadoras, que desempenham essencialmente 0 pape!
de curadores. Eles tocam pouca musica nova e ainda pr ef erem se a presentar nos
palcos, aonde a musica chegou, pela intermediac;:ao de familia e corte, no seculo
XIX. Trata-se de uma lembranc;:a privada que esta na r aiz do pr azer que s entimos
com 0 piano, e e 0 pianista interessante que nos p oe em contato com e sse prazer,
que da ao recital seu poder estranho e irresistivel.
Nos dias 23 e 31 de marc;:o de 1985, Maurizio Pollini a pr esentou-se no
Carnegie Hall e no Avery Fisher Hall. Pollini e milanes, tem 43 anos de idade e
sua carreir a, desde 0 inicio, tem sido algo de extr aordinario: aos de zoito anos,
ganhou 0 premio Chopin, em Var s6via,0 primeir o nao-eslavo a conquista-I o. Os
programas de seus recitais em Nova York - Beethoven e Schubert em um deles,
Schumann e Chopin no outro - foram a tipica mistura polliniana de pec;:as
familiares, ate mesmo vulgares (a S onat a ao l uar, a Mar cha funebr e de Cho pin) e
obras dificeis e excentricas (a Sonata em d 6 menor de Schubert e a ultima obra
para piano de Schumann, Gesan ged er Fr uhe, escrita no estagio f inal de sua doen-
c;:amental e, diriam alguns, exemplo dessa molestia). Mas, mais importante do
que os programas, foi a maneira como Pollini demonstr ou mais uma vez que e le
e urn pianista int er e ssant e, alguem que se destaca na multidao de pianistas de pri-
meira Iinha que enchem a agenda de concer tos de Nova York .
Para comec;:ar,temos a mestria tecnica de Pollini, que nao se reduz a facili-
dade fluente nem ao tedioso esforc;:oher 6ico. Quando ele toca pec;:ases pecial-
mente dificeis, como os E swdo s de Chopin ou uma das composic;:oes complexas
de Schumann ou Schubert, nao notamos automaticamente 0 modo tao inte1i-
gente como ele r esolveu os desafios impostos pela musica a pur a destr eza. Sua
tecnica permite que esquec;:amos a tecnica por inteir o. Mas tambem nao nos faz
pensar "Esta e a {mica maneir a de tocar Cho pin, Schubert ou Schumann". 0 que
todas as apresentac;:oes de Pollini tr ansmitem e uma abord ag em da musica, uma
a bordagem direta, ar istocr aticamente clar a, vigorosa e generosamente articula-
da. Mas isso significa tambem que temos consciencia de que ele encontrou e
aprendeu uma pec;:a,executou-a de m aneir a extraor dinaria e de pois devolveu
sua plateia a "vida" com uma compreensao maior e compartilhada de toda a
(oisa. Pollini nao tem um estilo de palco ou um r e per t6r io de poses. Em vez disso,
o que ele a presenta e uma leitur a sem exageros da Iiteratura para piano. H a va rios
anos, eu 0 vi, sem palet6, tocar a es pinhosa K l avier stUck X de Stock hausen; pude
pe~ce ber em ~ua execuc;:aoum pouco da mar ginalidade e angustia jocosa da pr 6-
pna composlc;:ao, uma musica que chega a l iI1)ites nao explorados na obr a de
outr os compositores contempor aneos. .
Mesmo quando Pollini nao alcanc;:aesse ef eito - e muitos a pontaram sua
ocasional perfeic;:ao vitr ea, tensa e, portanto, distanciador a -, permanece vivi-
da a expectativa do que ocor r er a em outro de seus r ecitais. Isso porque 0 ouvin-
te percebeque ha uma carr eir a que se desenvolve 110 t em po. E a carr eira de Pollini
comunica urn sentimento de cresci mento, pr o p6sito e forma. E triste, mas a
maioria dos pianistas, tal como a maior ia dos politicos, par ece quer er simples-
ment.e ~anter-se .no poder . f a pensei isso, talvez de modo injusto, a res peito de
Vladimir HorOWitz e Rudolf Serk in. Sao homens com dons imens os e muita
dedicac;:aoe ener gia, que der am imenso prazer a suas pl ateias. No entanto, ho je,
parece-me que a o br a deles simplesmente se r e pete. Isso po de ser dito tambem
de pianistas bons, mas muito menos inter essantes, como Andr e Watts, Bella
~avidovitch, Vladimir Ashk enazy e Alexis We issenber g. Mas jamais se poder ia
dlzer 0 mesmo da o br a de Pollini, bem co mo de Alf r ed Brendel, Sviatoslav Rich tel'
E~nil.Gilels, Arturo Benedetti Michelangeli ou Wilhelm Kempff. Cada um desse~
plal1lstas r ~ presenta um pr ojeto que se desenvolve 110 tempo , um pr ojeto que t ratade algo mals do que tocar piano em publico dur ante duas horas. Seus recitais sac
o portunidades para e xperienciar a explor ac;:ao,interpr etac;:ao e,so br etudo, a r ein-
terpr etac;:aode uma parcela importante do r e pert6rio pianistico.
Todo pianista dese ja ser difer ente, causar uma impr essao, ter uma marca
estetica e.social unica. E 0 que (hamamos de " personalidade" do pianista. Mas
esse dese)o de soar "dif er ente" e frustrado pelo fato de que as plateias de hoje
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mais rica, composta por obras de autores da E ur o pa centr al, de Hamburgo a
Viena e de Bach a Schoenberg. Um pianist a qu e tente construir uma carreira
interpretando o bras de, digamos, Weber , MacDowell, Alk an, Gottschalk,
Scria bin ou Rachmaninoff aca ba geralmente como um artista pouco mais que
periferico.
Minha fruic;:aodo pianismo de hoje - um deleite que compreende nao
somente a presenc;:ado pianista, mas tambem minha ca pacidade de tocar 0
ins-trumento e refletir sobre 0 que toco e ouc;:o- a ponta par a 0 passado. Isso signi-
fica dizer que, em larga medida, ela tem a ver com a memoria. Nao e dificil enten-
der por que meu prazer esti tao ligado ao passado (mais es pecificamente, it
minha compreensao do passado ).A pesar de sua presenc;:aenergica e imediata, os
pianistas sac figuras conser vadoras, que desempenham essencialmente 0 pape!
de curadores. Eles tocam pouca musica nova e ainda pref er em se a pr esentar nos
pakos, aonde a mllsica chegou, pela intermediac;:ao de f amilia e corte, no seculo
XIX. Trata-se de uma lembr anc;:a privada que es ta n a raiz do pr azer que sentimos
com 0 piano, e e 0 pianista interessante que nos p oe em contato com esse prazer,
que da ao recital seu poder estranho e irresistivel.
Nos dias 23 e 31 de marc;:o de 1985, Maurizio Pollini a pr esentou-se no
Carnegie Hall e no Avery Fisher Hall. Pollini e milanes, tem 43 anos de idade e
sua carreira, desde 0 inicio, tem sido algo de extr aordinar io: aos dezoito anos,
ganhou 0 premio Chopin, em Var sovia, 0 primeir o nao-eslavo a conquista-lo. Os
programas de seus recitais em Nova York - Beethoven e Schu ber t em um deles,
Schumann e Chopin no outro - foram a tipica mistur a polliniana de pec;:as
familiares, ate mesmo vulgares (a Sonata ao IlI ar, a March a!unebre de Cho pin) e
obras dificeis e excentricas (a Sonata em d 6 menor de Schubert e a ultima obra
para piano de Schumann, Ge san ged er F r iihe, escrita no estagio f inal de sua doen-
c;:amental e, diriam alguns, exemplo dessa molestia). Mas, m ais importante do
que os programas, foi a maneira como Pollini demonstr ou mais uma vez que ele
e um pianista int er es sant e , alguem que se destaca na multidao de pianistas de pri-
meira linha que enchem a agenda de concertos de Nova Yor k.
Para comec;:ar,temos a mestr ia tecnica de P ollini, que nao se reduz it f acili-
dade fluente nem a o tedioso esf orc;:oher oico. Quando ele t oca pec;:ases pecial-
mente dificeis, como os E studos de Chopin ou uma das composic;:oes complexas
de Schumann ou Schuber t, nao notamos automaticamente 0 modo tao inteli-
gente como ele r esolveu os desaf ios im postos p ela musica it pu ra destr eza. Sua
tecnica permite que esquec;:amos a tecnica por inteiro. Mas t ambem nao nos faz
pensar "Esta e a imica maneira de tocar Cho pin, Schuber t ou Schumann". 0 que
todas as apr esentac;:oes de Pollini transmitem e uma abord agem da musica, uma
a bor dagem direta, aristocr aticamente clar a, vigor osa e gener osamente articula-
da. Mas isso significa tambem que temos consciencia de que ele encontrou e
a pr endeu uma pec;:a,executou-a de maneir a extraor dinaria e depois devolveu
sua plateia it "vida" com uma compreensao maior e compartilhada de toda a
coisa. Pollini nao tem urn estilo de palco ou ur n r e per tor io de poses. Em vez disso,
o que e le a pr esenta e uma leitura sem exager os da literatura para piano. Ha varios
anos, eu 0 vi, sem paleto, tocar a es pinhosa K l avier stiick X de Stock hausen; pude
perce ber em ~ua execuc;:aoum pouco da marginalidade e angustia jocosa da pr o-
pna COm pOSIc;:aO,uma musica que chega a liIl)ites nao ex plor ados na obr a de
outr os compositor es contempor aneos. .
Mesmo quando Pollini nao alcanc;:aesse ef eito - e muitos apontaram sua
ocasional perfeic;:ao vitr ea, tensa e, portanto, distanciadora -, permanece vivi-
da a expectativa do que ocorrera em outr o de seus r ecitais. Isso porque 0 ouvin-
te percebe que ha uma carr eir a que se desenvolve 110 tempo. E a carr eira de Pollini
comunica um sentimento de cr escimento, proposito e forma. E triste, mas a
maioria dos pianistas, tal como a maior ia dos politicos, parece quer er simples-
men~e ~anter-se .no poder . ]a pensei isso, talvez de m odo injusto, a res peito de
VladImir HoroWitz e Rudolf Serkin. Sao homens c om dons imensos e muita
dedicac;:aoe ener gia, que der am imenso pr azer a suas pl ateias. No entanto, ho je,
par ece-me que a o br a deles simplesmente se r epete. Isso pode ser dit o tam bem
de pianistas bons, mas muito menos inter essantes, como Andr e Watts, Bella
D.avidovitch, Vladimir Ashk enaz y e Alexis Weissenber g. Mas jamais se poderia
dlzer o mesmo dao bra de Pollini, bem como deAlf r ed Br endel,Sviatoslav R ichter
E~nil.Gilels,Arturo Benedetti Michelangeli ou Wilhelm Kempff. Cada urn desse~
plamstas r~pr esenta urn projeto que se desenvolve 110 tem po , urn pr ojeto que tratade algo mals do que tocar piano em publico dur ante duas horas. Seus recitais sac
o portunidades par a ex perienciar a explorac;:ao,interpretac;:ao e,so bretudo, a rein-
terpretac;:aode uma parcela importante do r e pertorio pianistico.
Todo pianista dese ja ser diferente , c ausar uma impressao, ter uma mar ca
estetica e.social unica. E 0 que chamamos de " per sonalidade" do pianist a. Mas
esse deseJo de soar "dif er ente" e fr ustr ado pelo f ato de que as plateias de hoje
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pressupoem urn nivel muito alto de competencia tecnica. Parte-se do principio
de que os pianistas serao executantes sofisticados e que atr avessarao os estudos
de Chopin e Liszt sem cometer falhas. A consequencia disso e que os pianistas
precisam con tar com 0 equivalente dos efeitos es peciais par a estabelecer e sus-
tentar suas identidades pianisticas. Idealmente, urn o uvinte deveria ser capaz de
reconhecer 0 som, 0 estilo e a atitude de determinado pianista e nao confundi-
los com os de outr os pianistas. Ainda assim, as semelhanc;:as e compar ac;:oes san
cruciais para delinear os contornos de toda assinatur a inter essante. Desse modo,
falamos de escolas de pianistas, discipulos de urn ou outr o estilo, similaridades
entre do is especialistas em Chopin.
Nenhum pianista contempor aneo se firmou de f or ma tao brilhante por
meio de urpa identidade extraordinariamente distintiva quanto Glenn Gould, 0
canadense que morreu em 1982, aos cinquenta anos. A te mesma os detratores de
Gould reconheciam a grandeza de seus dons. EIe tinha uma capacidadc fCllome-
nal de tocar a complicada musica polif6nica - especial mente Bach - com
espantosa clareza e vivacidade. Andr as Schiff disse com r azao que "ele er a cap az
de controlar cinco vozes de forma mais inteligente do que a maior ia [dos pianis-
tas] consegue controlar duas':
A carreira de Gould iniciou-se com uma gr avac;:ao assombr osa das Varia-
roes Goldberg de Bach, e tao rica era sua capacidad e pianistica que um dos ulti-
mos discos que gravou foi outr a interpretac;:ao dessas Variaroes. 0 notavel e que
a versao de 1982 difer e muito da anter ior , e ao mesmo tempo e manif estamente
uma obra do mesmo pianista.A interpretac;:ao de Bach fe ita por Gould tinha por
objetivo ilustrar a riqueza da musica e nao simplesmente a engenhosi da de do
interprete - sem a qual, e 6bvio, 0 fertil c ontrapon to d e Bach nao teria surgido
de forma tao diferente na segunda gravac;:ao.As interpretac;:oes que Gould fez de
B ac h - cerebrais, brilhantemente organizadas, f estivas e energicas - a briram
caminho para que outros pianistas retornassem ao compositor . Gould deixou os palcos em 1964 para confinar-se as gr avac;:oes, mas varios outros interpretes,
todos influenciados por Gould - Andras Schiff , Peter Serk in, Joao Car los
Martins, Charles Rosen, Alexis Weissenberg -, ficaram conhecidos por execu-
tar as Variaroe s Goldberg. A maneira de Gould tocar Bach provocou uma guina-
da sismica ( para os pad roes pianisticos) nas ideias sobre a interpretac;:ao. Bach
nao mais seria ignorado em f avor do r e pert6rio- padr ao - Beethoven, Cho pin,
Liszt, Brahms, Schumann. Sua obra nao mais seria tratada como mater ial ino-
f ensivo de " abertur a" par a recitais.
A interpr etac;:ao de Gould er a notavel nao a penas pelo mero vir tuosismo no
teclado. Ele executava cada p ec;:acomo se a radiografasse, inter pr etando cada um
de seus componentes com independencia e clareza. 0 resultado e ra , em ger al,
um unico processo belo e f luido, com muitas partes subsidiarias. Tudo par ecia
pensado e, no entanto, nada soava pesado, artif icial ou for c;:ado.Alem disso, e le
dava todas as indicac;:oes, em tudo 0 que fazia, d e ser u ma mente em atividade,
nao apenas um par de maos ageis. De pois que se r etirou dos concer tos publicos,
Gould fez varios discos, filmes para a televisao e pr ogramas r adiof 6nicos que
atestam sua c apacidade "extr ateclado': Ele era ao mesmo tempo articulado e af a-
velmente excentrico. Sobr etudo, sempr e sur pr eendia. Jamais se contentava com
o re pert6rio es per ado: ia de Bach a Wagner e.a Shoen berg e voltava a Br ahms,
lkethoven, Bizet, Richard Strauss, Gricg e c olllpositorcs da R enascenc;:a, C0l110
Gibbons e Byrd. E num impertinente afastamento da tr adic;:aode tocar somente
os compositor es e pec;:asde que se gosta, Gould declarou que nao g o stava de
Mozart e depois gr avou todas as suas sonatas, executadas com ve locidade exage-
rada e com inflexoes desagradaveis. Gould apresentava-se ao mundo meticulo-
samente. Tinha um som todo pr6prio e ao m esmo tempo contava com uma cole-
c;:aode ideias sobre todos os tipos de m usica, ideias que aparentemente acabavam
por transparecer em suas i nterpr etac;:oes.
E evidente que inteligencia, gosto e originalidade nao significam nada se 0
pianist a n ao possui os m eios tecnicos para comunica-Ios. Nesse as pecto um
gr ande pianista e como um gr ande tenista, um R od Laver ou urn John McEnr oe,
capaz de urn ser~ic;:oforte, voleios exatos e golpes precisos na quadra - todos os
dias, contra qualquer adver sario. Nao devemos subestimar nossa reac;:aoa uma
bela h a bilidade atl etica do pianista. A v elocidade e a f luencia com que Jose ph
Lhevinne er a c a paz de tocar terc;:ase sextas; a acuidade trovejante e 0 clangor dasoitavas de Hor owitz; 0 vigor ritmico e a virtuosidade dos acordes de Alicia de
Larr ocha ao tocar Granados e Albeniz; a interpretac;:ao transcendentalmente
perfeita de Michelangeli de Gaspar d d e la nuitde Ravel; 0 desempenho de Pollini
na H ammerklavier de Beethoven, com sua fuga de vergar os dedos e seu lento
movimento meditativo; as interpr etac;:oes vigor osas, mas etereas e refinadas que
Richter faz de Schumann, em es pecial nas longas pec;:as epis6dicas como a
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Humoresque: todos esses, com a bravura e a elabora
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tr astes mais 6bvios (uma pe~a reflexiva e de pois uma apar atosa), e f r equente-
mente urn motivo para nao ira urn recital.
Alguns pianistas tendem a elaborar progr am as didaticos: todas as sonatas
de Beethoven ou Schubert, por exemplo. Em man;:o de J 985, no Metr o politan
Museum, Andr as Schiff a pr esentou uma sequencia notavcl cle tres recitais de
Bach que culminar am c om as V aria~i5e sGold berg. Os pr imeir os pianistas a ten-
tar esse ti po de pr ograma foram Ferruccio Busoni e Anton R ubinstein, cujos
recitais ofereciam uma hist6ria da musica par a piano em escala r eal mente her 6i-
ca. Recitais somente com obr as de Cho pin ou Schumann nao san em si mesmos
atraentes - em parte porque nao san muito incomuns -, mas a sequencia de
dezesseis program as de concertos apresentada por Artur R ubinstein na d ecada
de 1960 foi realmente interessante. Erilbora as interpr eta~oe s me r ecessem elo-
gios pelo f ato de iluminar as varias tr ansforma~6cs da forma concerto, nao f oi
essa a principal Fonte de sua fo[(;:a.0 que emocionava de f ato e ra a fa~anha dc
combinar a amplitude estetica e a for~a atletica ao longo de varias seman as.
Mas uma programa~ao tao interessante e rar a. A maioria dos pianistas pla-
neja seus recitais em torno de urn repert6rio carimbado por seus predecessores,
na esperan~a - geralmente sem qualquer base, e m minha opiniao - de captar a musica por eles mesmos. Que identidade estetica pode ter um pianista se ele
aceita que 0 apresentem como "0 novo Schnabel" ou "0 Tausig do seculo xx"?
Piores ainda san aqueles que tentam imitar o s sons de urn pianista que durante
meio seculo foi 0 modelo do pianismo dinamico e,diria eu, estridente: Vladimir
Horowitz. Mas ninguem conseguiu isso - em parte porque 0 pr6prio Horowitz
continuou tocando.
Para aumentar ainda mais as limita~oes do repert6rio pianistico, quase
toda a literatura para piano e muito conhecida e esta bastante bem fixada: as
notas estao escritas e, na maioria dos casos, as pe~as foram gravadas. Desse
modo, tocar as quatro baladas de Chopin, como Emanuel Ax fez recentemente
no Carnegie Hall, nao significa simplesmente tocar as pe~as, mas r e-execut a-Ias.
Existe a es peran~a de que 0 pianista 0 f a~a com varia~oes que r evelem sua ima-
gina~ao e seu born gosto - e que nao mostre sinais de estar co piando outros ou
distorcendo a escrita do compositor . Os pi anistas mais inter essantes, mesmo
quando apresentam um program a convencional, dao a im pressao de que sua
interpreta~ao e tambem urn comentario sobr e a pe~a, assim como urn ensaio
so br e urn grande r omance e urn comentario e nao simplesmente 0 resumo da
trama. Vma interpr eta~ao bem-sucedi da d a Fant asia d e Schumann, como a que
f ez Pollini, imprime no ouvinte duas coisas distintas ao mesmo tem po: que aq ue-
la e a o br a que Schumann escr eveu e que Pollini, ao r eagir aos inf initamente
var iaveis impulsos, acentos, f r ases, pausas e inflexoes ritmicas e r et6ricas, esta
coment and o a pe~a, dando sua versao dela. E assim que os pianistas f azem suas
declar a~oes.
o univer so pianistico e ur n curioso amalgama de "cultur a" e neg6cio. Haquem diga que 0 contexto cultur al (nao men os que a bilheter ia) e uma distr a~ao
do som do pianista. Mas essa visao d escar ta com enorme f acilidade algumas das
cir cunstancias que, na ver dade, estimulam 0 que eu chamar ia de pianismo inte-
r essante. A pr6pria proeminencia dos pi anistas moder nos e uma consequencia
do desgaste - descrito ha cinqLienta anos porTheodor Adorno - da conexao
cntr e as tr es linhas cssenciais cia mllsica: a composi~ao e a produ~ao, sua repro-
du~ao ou apresenta~ao e seu consumo. A maior ia dos pianistas nao tern tempo
para a musica contempor anea; por outro lado, na o ha muita musica sendo escr i-
ta para piano. 0 publico esta saturado com ml\sica reproduzida mecanicamen-
te. Alem disso, 0 conhecimento de musica nao e mais uma exigencia par a a pes-soa instruida. Em consequencia, as plateias estao, de modo geral, distantes dos
atos de tocar e compor.
Os concur sos musicais, criados para lan~ar novos virtuoses, tambem con-
tribuiram para a especializa~ao. A maioria deles e dirigida por uma mistura de
f ilantropos, musicos e diretores de concerto que tendem a promover uma espe-
cie de triunfalismo pianistico. Para aqueles que, como eu, estao horrorizados
com 0 que acontece em quase todas as competi~oes, esse triunfalismo lembr a 0
mundo dos esportes, no qual anfetaminas e ester 6ides para melhorar 0 desem-
pcnho correm sohos. As vezes alguns pianistas conseguem sobreviver a atmos-
fer a paran6ica que caracteriza todos os concur sos. 0 pianismo desses poucos
nao e arruinado pelo fato de ter em de adotar as tecnicas brilhantes e os estilos
podados e neutros f avorecidos pelos juizes. Pollini e um desses sobreviventes, em
parte porque, logo ap6s vencer 0 Concur so Cho pin, ele nao partiu imediata-
mente em turne para lan~ar -se numa "grande carr eira". Em vez disso, passou
varios anos estudando e, nao por acaso, amadur ecendo como pianista. Quando
f alo de sobrevivenci a, nao estou dizendo que os vencedor es de c oncursos fracas-
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sam depois de algum tempo. 0 rol de pianistas premiados bem-sucedidos e
enorme: Ashkenazy, Malcolm Frager e Andre Michel Schub san nomes que logo
vem a mente. 0 que estou sugerindo e que dificilmente algum deles faz um tra-
balho interessante.
As"estrelas" do piano ganham gran des caches, eesse dinheiro, quando com-
binado com a renda de seus discos, pode converter:se numa fortuna considera-
vel. Alguns pianistas parecem se beneficiar do sistema: 0 sucesso permite que
toquem com menos frequencia, tirem ferias, aprendam um material novo (e mais
arriscado). Porem, em gera!' parece haver uma corrida por mais concertos,
melhores contratos de gravac,:ao,maiores "oportunidades". Asestr elas lutam para
manter suas posic,:oes;os lumina res men ores tentam desesperadamente subir um
degrau. Tudo isso resulta em pouco prazer para 0 pllblico de massa -- embora
produza muito lucro para agentes, intermediarios e manipuJadores da midia.
Nao ha muita esperanc,:a de que compositor, interprete e ouvinte venham a
trabalhar juntos novamente, sem a distrac,:aodos acardos de gravac,:aoe premios,
numa verdadeira comunidade, do tipo para 0 qual a familia Bach sempre serviu
de modelo. Nem e provavel que 0 publico se tome menos suscetivel a badalac,:ao
e ao comercialismo. Mas ha sinais, tanto dentro como fora do mundo do piano,
de que muita gente sente a necessidade de restabelecer os lac,:osentre tocar piano
e outras atividades humanas, de tal forma que 0 virtuosismo insensato do pia-
nista velocista possa ser substituido por algo mais interessante. 0 sucesso de
Pollini certamente tem algo a ver com isso, assim como 0 de Brendel. E Glenn
Gould, em tudo 0 que fez, expressou insatisfac,:ao com esse modo de tocar-seu
projeto era uma tentativa de conectar 0 pianismo com a sociedade mais ampla.
Tudo isso comprova a existencia de um pianismo que tenta escapar do
silencio intelectual, dos fetiches e rituais, dos sons "lindos" e da habilidade atle-
tica. Sempre admiraremos esses sons, essa habilidade, e sempre teremos prazer
em ouvir pianistas executarem 0 repert6rio-padrao. Mas a experiencia do
piano se i ntensifica quando e reunida a out ras experiencias em que encontra-
mos alimento.
De que modo os pianistas nos transportam da execuc,:aopara outros domi-
nios de significado? Ouc,:amos os discos de Sergei Rachmaninoff: san sempre
interessantes. Tudo 0 que Rachmaninoff faz nos parece uma intervenc,:ao numa
pec,:aque, de outra forma, seria uma partitura morta no pape!. Sentimos que de
quer dizer alguma coisa. Ao tocar 0 Carnaval de Schumann, por exemplo, ele faz
com que percebamos 0 trabalho do compositor na pec,:a,sua finalizac,:ao;contu-
do, 0 caos da visao meramente privada de Schumann fica em plena evidencia.
Sentimos a mesma coisa ao escutar Alfred Cortot.
Esse tipo de pianismo nao e uma simples questao de correr riscos, tocar
abusivamente depressa, introduzindo frases altamen te moduladas.Ao contnirio
- e esta ea questao central-, trata-se de uma arte pianistica que nos atrai par-
que seus processos sao aparentes, irresistiveis, provocadores da inteligencia. A
mesma coisa po de ser dita de forma negativa. Nao ha nada menos estimulante
do que um pianista cuja lmica preocupac,:ao e a perfeic,:ao,do tipo que faz alguem
tiizer: como e perfeita sua execuc,:ao.Aenfase na conquista de premios certamen-
te estimula essa estetica da "perfeic,:ao",assim COl:l0 0 desejo de remover da inter-
pretac,:ao tudo, exceto 0 trabalho estonteante dos dedos do pianista. Dito de
modo diferente, a execuc,:aotao acabada que parece ser exclusivamente sobre si
mesma (0 trabalho do formidavel Josef Lhevinne vem a mente) empurra 0
ouvinte para longe e isola 0 pianista naquele ambiente esteril reservado para os
"profissionais':
o tipo de interpretac,:ao que me cativa e aquela que, par assim dizer, medeixa entrar: 0 pianista, pela intimidade de sua execuc,:ao,faz com que eu queira
tocar daquela forma tambem. 0 trabalho de Dinu Lipatti, que produziu inter-
pretac,:oesveementes e puras de Mozart e Chopin, exsuda esse sentimento, assim
como a obra de uma escola relativamente obscura de pianistas ingleses que
abrange Myra Hess, Clifford Curzon, 0 grande Solomon e 0 igualmente 6timo
Benno Moiseiwitsch. Hoje, Daniel Barenboim, Radu Lupu e Perahia dao segui-
mento a essa linhagem.
Alguem poderia argumentar que aessencia social do pianismo e exatamen-
te 0 oposto: ele tem de alienar e distanciar 0 pllblico, acentuando assim as con-
tradic,:oessociais que deram origem ao pianista virtuose - uma con sequenciaabsurda do excesso de especializac,:ao da cultura contemporanea. Mas tal argu-
mento ignora algo que e igualmente 6bvio e nao men os resultado da aliena~ao
produzida pdo consumismo: 0 efeito ut6pico das interpretac,:oes pianisticas. 0
interprete transita entre 0 compositor e 0 ouvinte. E, na medida em que fazem
issode um modo que envolve a n6s, ouvintes, na experiencia e nos processos da
cxecuc,:ao,os interpretes n.os convidam para uma esfera ut6pica de consciencia
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aguda que, de outro modo, nos ser ia inacessivel. Em suma, 0 pianismo inter es-
sante derruba as barreir as entre plateia e interpr ete e 0 faz sem violaI' 0 silencio
essencial da musica.
Uma apresentas:ao musical se tr ansforma em alg o m ais do qu e du as hor as
de born entretenimento quando ela penetra no tempo subjetivo da plateia, enr i-
quecendo-o e tornando-o mais complexo. Penso que es sa e a essencia do inter es-
se pOl'piano epianistas. Cada ouvinte traz par a 0 concerto lembr ans:as de outras
apresentas:6es, uma hist6ria de relas:6es pessoais com a musica, uma r ede de afi-
lias:6es; e tudo isso e ativado pela execus:ao do momento. Cada pianista faz isso
de forma diferente. Gould parecia inventar a si mesmo e a sua execus:ao: er a
como se nao tivesse antecedentes. 0 contraponto par ecia f alar conosco direta-
mente, de forma inteligente, vivida, fors:ando-nos a deixar em s uspenso nossas
ideias e experiencias. Pollini, pOl' outro lado, possibilita que escutemos em seu
Schumann nao somente 0 genio epis6dico do compositor , como tambem as
interpretas:6es de outros pianistas- Michelangeli, por exemplo -com os quais
Pollini aprendeu e os quais super ou . 0 r igor intelectual de ambos os pianistas e
companivel, em fors:a e po del' de convics:ao, a pr osa de um discur so primoroso.Desse modo, os maiores pianistas conseguem esta belecer uma ponte entr e
o mundo rarefeito, refinado e pouco natur al do p alco de recitais e 0 mundo da
musica na vida humana. Certamente todos ja nos emocionamos profundamen-
te com uma musica e imaginamos como seria sentir -se compelido a executa-la,
arrastado a ex pressa-Ia de forma audivel, obrigado a articula- Ia nota pOl' nota,
frase pOl' frase. E essa exper iencia que os melhor es pianistas saD ca pazes de su s-
citar: a convics:ao da execus:ao, abeleza e a nobreza do s om f azem -me vislumbrar
o que eu experimentaria se conseguisse tocar como eles tocam.
Nao se trata, de forma alguma, de 0 interpr ete satisf azer as ex pectativas do
ouvinte. E exatamente 0 oposto: 0 interpr ete deve provocar novas ex pectativas,
possibilitar urn encontro com a mem6ria que possa ser expresso somente na
musica executada dessa forma, agora, diante d o ouvinte.
Ha muitos anos, na Europa, assisti a uma apr esentas:ao do gr ande pianista
alemao Wilhelm K empf f . Pel o que sei, ele tocou nos Estados Unidos apenas uma
vez, recentemente, num r ecital no Carnegie Hall, faz dez ou doze anos, que nao
foi muito bem-sucedido. Ele nao e muito f estejado aqui - talvez obscurecido
pOl'co ntempor aneos menor es, tais como Wilhelm Back haus e Serk in. A mLlSicJ
~e Kempf f ter n ur n tom mel6dico Lmico,e sua execus:ao, tal como a de Gould, e
lllcomu~ pOl' nao tr azer a mar ca de seus p rof essores ou de outros pianistas. 0
qu~ OUVlmosquando ele toca e uma interpretac,:ao que se desdobr a. K empf f e UI11
ar tl~ta p ara quem a tecnica esta su bor dinada a desco ber ta, p ar a quem 0 piano e
um lllstr umento que agus:a a perce ps:ao, em vez de of er ecer sons p erf eitamente
mod~lados. Isso e valido para toda a sua obra, do rigor o so contr a ponto da fuga
termlllal no Opu s 10 de Beethoven a ener gia fantastica e f r agmentada da
Krezsl enana de Schumann.
A execuc,:aode Kempff jamais nos i m pr essiona pOl' seu car ater assertivo ou
pOl' sua forc,:a.Ao c ontr ario, temos consciencia de que eJe faz uma leitura liter al
das notas, levando-as a sua r ealizas:ao p lena, do mesmo modo como n6s, dur an-
te um longo per iodo de tempo, aprendemos lIma pec,:amusical, conseguimos
compr eende-Ia e, pOl' fim, passamo s a sa be-Ia - como dl'Za bela e -" " • J x pr essao _
de cor , ou s e)a, de corac,:ao.
Par a entender 0 que estou dizendo, ouc;:am~ inter pretac;:ao que K empf f gr a-
vou em 1976 de "Jesus, alegr ia d os homens" de Bach A mal'orl'a dh ( . as p essoas
con ece essa pes:.apo~ meio da gr avac;:ao tr ans parente e pura de Dinu Lipatti.
Mas, enquanto Llpattl usa a tr anscrirao de My r a Hess Kempf f t'l' I'r , U I Iza a que e e
mesmo fez, realc;:ando a intimidade de sua execurao. A o bra de Bacl ' I b . - , 'r ( 1e uma e a-
or ac;:aoser ena de um a l11eJodlacoral COI11UJl1 sinuoso ter cilho obblz' t .L' . . g a 0, que
Ipattllllterpr et~ e~ .um ~egato que a bar ca vozes internas infaJivelmente expos-
tas..Essa execuc;:ao e lllve)ada pela maioria dos outros pianistas. Contudo, 0
OUVlllteesta sempr e consciente de um efeito ou o utro que chamam sua atenc;:ao
1sso fica es pecialmente claro quando comparamos a inter pr etac;:ao d e Lipatt~
~~m a de K empff . Quando este chega a ex posis:ao fin al do cor al, obbligato e melo-
~afO,ram,e~ pandidos de ~odo a a branger uma vida inteira de atens:ao do pia-llIsta a.musl~a de Bach. A llllha disciplinada da execus:ao ch ega a sua conclusao
sem tnu~fahsm~ devoto ou melancolia trivial. A evidencia extern a da mu sica e
s~u movlmento lllterno sao ex perienciados como duas form as ar ticuladas entr e
Sl. ~ p erce bemos que, emb or a muito d a atividade pianistica - pOl' meio da exe-
Cuc;:ao(se t~ca~os p~ano) e da a udis:ao - acontes:a n a esf er a publica, a plenitude
dp s~u s efelto s esentIda na esfera privada da mem6ria e da associac;:ao pr 6pr ia do
OUVlllte.Essa esf er a e moldada, de UI11lado, pela esfera envolvente das inter pre-
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ta~oes, dos padroes de gosto, das institi.li~oes culturais, dos estilos esteticos e das
pressoes historicas, e de outro por prazeres muito mais pessoais.
Estou falando aqui do vasto mundo musical explorado e iluminado por
Proust, em Em busca do tempo perdido, e por Thomas Mann, em Doutor Fausto
- monumentos extraordinarios Ii convergencia do modernismo literario,
musical e social. A poderosa intera~ao dessas tres esferas e indicada pelo fato de
que Glenn Gould parecia uma encarna~ao do Adrian Leverkuhn e que a vigoro-
sa teatralidade de Artur Rubinstein da a impressao de vir diretamente dos saloes
e musicales do Hotel de Guermantes, no Faubourg Saint-Germain.
Sem duvida, uma vez que 0 mundo empresarial dos neg6cios musicais
substituiu a boemia e 0 beau mondecomo ambiente para a musica de concerto,
entramos no mundo das mercadorias comercializaveis, mas isso tambem teste-
munha a durabilidade de uma tradi~ao servida e, com freqiiencia, enobrecida
pelo pianista contemporaneo que, ao atuar no niycl atingido por Pollini, atcsta
a variedade e a seriedade dessa tradi~ao.
Asmaiores execu~oes musicais proporcionam as valiosas reafirma~oes e as
vigorosas interpreta~oes do ensaio, uma forma literaria ofuseada pelas estrutu-
ras mais grandiosas da epopeia e da tragedia. 0 ensaio, tal como 0 recital, e oca-
sional, recriativo e pessoal. E os ensaistas, assim como os pianistas, se preocupam
com coisas dadas: aquelas obras de arte que sempre valem uma outra leitura cri-
tica e reflexiva. Sobretudo, 0 pianista e 0 ensaista nao podem oferecer leituras
finais, por mais definitivos que sejam seus desempenhos. A esportividade fun-
damental de ambos os generos e 0 que os man tern sinceros, bem como vitais.
Mas ha urn irredutivel fascinio na arte do pianista, sugerido pela melancolia sub-
jacente Ii Humoresque de Schumann e Ii Balada em fa menor de Chopin; pela
autoridade remanescente de pianistas legendarios - Busoni, Eugen d'Albert,
Franz Liszt, Leopold Godowsky- com nomes magicos; pela for~a sonora que
vai do Beethoven mais solido ao mais leve Faure; pela curiosa e quase audivel
mistura de dedica~ao e dinheiro que circula na atmosfera de um recital.
Foucault e a imagina