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  • 8/16/2019 Piano0001Texto Para Apreciação

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    Mas   permanece   0  pr o blema que assola   todo trabalho intelectual i ntenso,

    auto-imposto   e local:   0  d a   divisao do   trabalho,   uma consequencia   necessaria

    daquela reificayao   e mercantilizayao   analisada   pela   primeir a v ez no seculo   XX

     por Georg Luk acs. Esse e 0 pr o blema   colocado de for ma sensivel  e inteligente   por 

    Myr a   Jahlen par a os  estudos   femininos: se, na  id entif icayao e no tr a balho com

     base em criticas   antidominantes,   os grupos   subalter n   os - mulheres,   negros e

    assim por diante - sao capazes   de resolver   0 dilema   de  cam pos aut6nomos de

    experiencia e conhecimen to q ue  sao  cr iados   como conseqiiencia.   Dois   tipos   de

    exclusivismo possessivo podem   se instaurar:   0  sentimento   de ser alguem   que,

    grayas   a  experien cia, esta   dentr o e e  exclusivista   (somente mulher es   podem

    escrever para e sobre as mulheres   e somente a literatura   que   tr ata bem   as mulhe-

    res ou os orientais   e boa),   ou   alguem que, devido ao   metodo, tambem exclui

    (somente marxistas, antiorientalistas   ou f eministas   podem   escr ever   sobre   eco-

    nomia, or ientalismo ou liter atura   f eminina).

    Esse e 0  ponto em que  e stamos agora,   no   limiar da  fragmentayao e da es pe-

    cializayao, que impoem seus proprios dominios   par oquiais e atitude   def ensiva,

    ou   a   beira de alguma sintese gr andios a que eu,   de   minha   parte,   acredito que

     poderia facilmente aniquilar os ganhos   e a consciencia   o posicionista proporcio-

    nados por esses contraconhecimentos   ate agora. Varias possibilidades   se pr o-

     poem;   concluirei fazendo simplesmen te u ma lista delas.   A necessidade de  um

    maior cruzamento de fronteiras, de maior    inter vencionismo em atividades

    interdisciplinares, uma consciencia   concentrada   da situayao   - politica,   meto-

    dologica, social, historica - em que   0   trabalho intelectual   se  r ealiza. Um com-

     promisso politico e metodologico esclarecido   com   0 desmantelam en to d e siste-

    mas de dominayao que, tendo em vista que  sao  mantidos   coletivamen te, devem

    ser , para adotar e transformar    algumas   ex pr essoes de Gr amsci,   combatidos cole-

    tivamente,   com assedio mutuo, guer r a   de   manobr as   e guerra   estr ategica. P or  

    fim,  um sentimento mais agudo do papel do intelectual tanto   na definiyao como

    na mudanya de urn contexto,   sem  0  que, penso eu, acr itica do o rientalismo eape-nas um passatempo efemer o.

    i1

    t Ern   busca de coisas tocadas

    I    Presem;a e memoria na art e  do pianista

    I1II

    f I

    I,

    iI

    t

    Os pianistas   exercem um nota vel fascinio em   '

    as"su per estrelas"   que ag d I'   _    nossa VIda cultural.   Existemra   am as  mu tldoes   bem com d

    daria   de pianistas   que mes   ,'.   "   0 uma   or em algo secun-mo aSSlm tem um numer o   r    "   I d   -

    V

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    mais   rica, composta   por obras   de  a utores da  Eur o pa   central,   de Hambur go a

    Viena e de Bach a Schoenberg.   Um pianist a q ue   tente   construir uma   carreir a

    interpretando obr as de, digamos, Weber, MacDowell, Alkan,   Gottschalk,

    Scriabin ou Rachmaninoff aca ba geralmente como   um ar tista   pouco mais que

     periferico.

    Minha fruic;:aodo pianismo de ho je   -   um deleite que   compr eende nao

    somente a presenc;:ado pianista, mas tambem minha   ca pacidade de tocar 0 ins-tr umento e refletir sobre   0   que toco e ouc;:o- aponta par a 0 passado. Isso signi-

    fica dizer que, em larga medida, ela tem  a ver com a memoria. Nao e dificil  enten-

    der por que meu prazer esta tao ligado   ao   passado   (mais es pecificamente,   a

    minha compreensao do passado).   A pesar de sua presenc;:aener gica e imediata, os

     pianistas sac figuras   conservadoras, que desempenham   essencialmente   0  pape!

    de curadores. Eles tocam pouca   musica   nova e ainda pr ef erem   se a presentar nos

     palcos,   aonde a musica   chegou, pela intermediac;:ao de familia e corte, no seculo

    XIX.   Trata-se de uma lembranc;:a privada que esta  na  r aiz  do  pr azer que  s entimos

    com   0 piano, e e 0  pianista interessante que nos  p oe   em contato   com  e sse prazer,

    que da ao recital seu poder estranho e irresistivel.

     Nos dias 23 e 31 de marc;:o de 1985, Maurizio   Pollini   a pr esentou-se no

    Carnegie Hall   e no Avery Fisher Hall.   Pollini   e milanes,   tem   43 anos de idade   e

    sua carreir a, desde 0 inicio, tem sido  algo de extr aordinario: aos  de zoito anos,

    ganhou 0 premio Chopin, em Var s6via,0 primeir o   nao-eslavo   a conquista-I o. Os

     programas de seus recitais em Nova York - Beethoven e Schubert em um deles,

    Schumann e Chopin no outro - foram   a tipica   mistura polliniana de pec;:as

    familiares,   ate mesmo vulgares   (a S onat a ao l uar, a  Mar cha funebr e   de Cho pin) e

    obras dificeis e excentricas   (a  Sonata   em d 6  menor   de Schubert   e a  ultima   obra

     para piano de Schumann,   Gesan ged er   Fr uhe, escrita   no estagio   f inal de sua doen-

    c;:amental e, diriam alguns, exemplo dessa molestia).   Mas, mais importante   do

    que os programas, foi a maneira   como Pollini demonstr ou mais  uma vez que  e le

    e urn pianista   int er e ssant e,   alguem que  se destaca na multidao de pianistas de pri-

    meira Iinha que enchem   a agenda   de concer tos   de Nova  York .

    Para comec;:ar,temos   a mestria tecnica   de  Pollini, que nao se reduz   a facili-

    dade fluente nem   ao tedioso   esforc;:oher 6ico.   Quando ele toca   pec;:ases pecial-

    mente dificeis, como os  E  swdo s   de  Chopin ou uma das composic;:oes complexas

    de  Schumann   ou Schubert,   nao notamos   automaticamente   0  modo   tao   inte1i-

    gente   como   ele  r esolveu   os desafios   impostos pela   musica   a pur a destr eza. Sua

    tecnica permite que  esquec;:amos a tecnica   por   inteir o.   Mas  tambem   nao   nos faz

     pensar "Esta e a  {mica maneir a   de tocar   Cho pin, Schubert   ou   Schumann".   0 que

    todas   as apresentac;:oes de Pollini tr ansmitem   e uma   abord ag em   da musica,   uma

    a bordagem direta,   ar istocr aticamente clar a, vigorosa e generosamente articula-

    da.   Mas isso significa   tambem que temos   consciencia   de que   ele encontrou   e

    aprendeu uma   pec;:a,executou-a   de  m aneir a extraor dinaria e de pois   devolveu

    sua plateia   a "vida" com uma compreensao maior    e compartilhada de toda a

    (oisa.   Pollini nao   tem um estilo  de palco ou um r e per t6r io   de poses.  Em vez disso,

    o que ele a presenta e uma   leitur a  sem exageros   da Iiteratura para piano. H a va rios

    anos,   eu 0 vi, sem palet6,   tocar a es pinhosa   K l avier  stUck X  de Stock hausen; pude

     pe~ce ber  em ~ua execuc;:aoum pouco   da mar ginalidade e angustia   jocosa   da pr 6-

     pna   composlc;:ao,   uma musica que   chega   a l iI1)ites nao   explorados   na   obr a   de

    outr os   compositores   contempor aneos.   .

    Mesmo quando   Pollini nao   alcanc;:aesse ef eito   -   e muitos a pontaram   sua

    ocasional perfeic;:ao vitr ea, tensa e, portanto, distanciador a   -, permanece vivi-

    da a  expectativa do que ocor r er a   em outro de seus r ecitais.   Isso porque 0 ouvin-

    te percebeque ha uma   carr eir a   que se desenvolve   110  t em po.   E a carr eira de Pollini

    comunica urn sentimento de  cresci mento, pr o p6sito   e forma.   E triste, mas a

    maioria dos   pianistas,   tal como a maior ia   dos politicos,   par ece   quer er   simples-

    ment.e ~anter-se   .no poder .   f a  pensei isso, talvez   de   modo injusto,   a res peito de

    Vladimir HorOWitz e Rudolf    Serk in. Sao   homens com dons imens os e muita

    dedicac;:aoe  ener gia,   que der am imenso   prazer   a suas pl ateias.   No entanto,   ho je,

     parece-me   que   a o br a   deles simplesmente se r e pete.   Isso po de  ser dito   tambem

    de  pianistas   bons, mas muito menos   inter essantes,   como   Andr e   Watts, Bella

    ~avidovitch,   Vladimir    Ashk enazy   e Alexis We issenber g.   Mas jamais   se poder ia

    dlzer  0 mesmo   da o br a   de Pollini,  bem  co mo   de Alf r ed Brendel, Sviatoslav Rich tel'

    E~nil.Gilels, Arturo Benedetti Michelangeli   ou Wilhelm Kempff.   Cada um desse~

     plal1lstas r ~ presenta   um pr ojeto que se desenvolve   110  tempo ,   um pr ojeto que  t ratade algo mals do que tocar piano   em publico dur ante duas   horas.   Seus recitais   sac

    o portunidades   para  e xperienciar    a explor ac;:ao,interpr etac;:ao e,so br etudo, a r ein-

    terpr etac;:aode  uma   parcela importante do  r e pert6rio   pianistico.

    Todo   pianista   dese ja ser difer ente, causar uma   impr essao,   ter uma   marca

    estetica   e.social unica.   E  0  que   (hamamos   de  " personalidade"   do   pianista. Mas

    esse dese)o   de soar   "dif er ente" e frustrado   pelo fato   de   que as plateias de hoje

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    mais   rica, composta por obras   de   autores da E ur o pa   centr al,   de  Hamburgo a

    Viena e de Bach a Schoenberg.   Um pianist a qu e tente   construir uma   carreira

    interpretando   o bras de, digamos, Weber , MacDowell, Alk an,   Gottschalk,

    Scria bin ou Rachmaninoff    aca ba geralmente como   um   artista   pouco mais   que

     periferico.

    Minha fruic;:aodo pianismo de hoje - um deleite que compreende nao

    somente a presenc;:ado pianista,   mas   tambem minha   ca pacidade de tocar   0

     ins-trumento e refletir   sobre   0 que toco  e ouc;:o-   a ponta par a   0 passado. Isso signi-

    fica dizer que, em larga medida, ela tem   a ver com a memoria. Nao e dificil  enten-

    der por que meu prazer    esti tao ligado ao   passado (mais es pecificamente,   it

    minha compreensao do passado ).A pesar de sua presenc;:aenergica e imediata, os

     pianistas sac figuras   conser vadoras,   que   desempenham   essencialmente   0  pape!

    de curadores.   Eles tocam pouca   musica   nova e ainda pref er em   se a pr esentar nos

     pakos,   aonde a mllsica chegou,   pela   intermediac;:ao de f amilia   e corte, no seculo

    XIX.   Trata-se   de uma lembr anc;:a privada que  es ta  n a raiz  do  pr azer   que sentimos

    com   0 piano, e e  0  pianista interessante que nos  p oe  em contato   com esse prazer,

    que da ao recital seu poder estranho e irresistivel.

     Nos dias 23 e 31 de marc;:o de 1985,   Maurizio Pollini   a pr esentou-se no

    Carnegie Hall e no Avery Fisher Hall.   Pollini   e milanes,   tem   43 anos de idade   e

    sua carreira, desde   0   inicio, tem sido  algo de extr aordinar io: aos   dezoito anos,

    ganhou   0 premio   Chopin, em Var sovia,   0 primeir o   nao-eslavo a conquista-lo.   Os

     programas de seus recitais em Nova  York - Beethoven   e Schu ber t   em um deles,

    Schumann e Chopin no outro - foram   a tipica   mistur a   polliniana de   pec;:as

    familiares,   ate mesmo   vulgares (a Sonata ao IlI ar, a March a!unebre   de Cho pin)   e

    obras dificeis e excentricas (a  Sonata   em d 6  menor   de Schubert   e a ultima   obra

     para piano de Schumann,   Ge san ged er F r iihe, escrita   no estagio f inal de  sua doen-

    c;:amental e, diriam alguns, exemplo dessa   molestia). Mas,  m ais importante do

    que os  programas, foi a maneira como   Pollini demonstr ou mais   uma vez que   ele

    e um pianista   int er es sant e ,   alguem que se destaca na multidao de pianistas de pri-

    meira linha   que   enchem   a agenda   de concertos   de Nova Yor k.

    Para comec;:ar,temos a mestr ia   tecnica   de  P ollini, que   nao se reduz   it  f acili-

    dade fluente nem a o tedioso   esf orc;:oher oico. Quando   ele t oca pec;:ases pecial-

    mente dificeis,   como os  E  studos  de  Chopin ou uma   das composic;:oes complexas

    de Schumann   ou   Schuber t, nao   notamos   automaticamente   0  modo   tao   inteli-

    gente   como   ele r esolveu   os  desaf ios   im postos p ela musica   it  pu ra destr eza. Sua

    tecnica permite que esquec;:amos a tecnica   por   inteiro.   Mas t ambem nao nos faz

     pensar "Esta e a imica   maneira   de tocar   Cho pin, Schuber t   ou  Schumann".   0 que

    todas   as apr esentac;:oes de Pollini transmitem   e uma   abord agem   da musica,   uma

    a bor dagem direta, aristocr aticamente   clar a,  vigor osa e gener osamente articula-

    da. Mas isso significa tambem que temos consciencia   de que   ele encontrou   e

    a pr endeu uma pec;:a,executou-a   de   maneir a extraor dinaria   e depois   devolveu

    sua plateia   it "vida"   com uma compreensao maior    e compartilhada de toda   a

    coisa. Pollini nao tem urn estilo de palco ou ur n r e per tor io   de poses. Em vez disso,

    o que e le a pr esenta e uma   leitura sem   exager os   da literatura para piano.   Ha varios

    anos,   eu  0  vi, sem paleto,   tocar   a es pinhosa   K l avier  stiick   X  de Stock hausen;   pude

     perce ber   em ~ua execuc;:aoum pouco   da marginalidade e angustia jocosa   da pr o-

     pna COm pOSIc;:aO,uma musica que chega a  liIl)ites   nao ex plor ados   na obr a   de

    outr os   compositor es   contempor aneos.   .

    Mesmo quando Pollini nao alcanc;:aesse ef eito -   e muitos   apontaram   sua

    ocasional perfeic;:ao vitr ea,   tensa e, portanto,   distanciadora -,   permanece vivi-

    da a expectativa do que ocorrera em outr o de seus r ecitais. Isso porque   0 ouvin-

    te percebe   que  ha uma   carr eir a   que se desenvolve   110  tempo.   E a carr eira   de Pollini

    comunica   um sentimento de cr escimento,   proposito   e forma.   E  triste, mas a

    maioria   dos pianistas,   tal como   a maior ia dos   politicos,   parece   quer er simples-

    men~e ~anter-se   .no poder .   ]a pensei isso, talvez   de  m odo injusto,   a res peito de

    VladImir HoroWitz e Rudolf Serkin.   Sao   homens c om   dons   imensos e muita

    dedicac;:aoe ener gia, que der am imenso pr azer   a suas  pl ateias. No entanto, ho je,

     par ece-me   que a o br a   deles   simplesmente se r epete.   Isso  pode   ser  dit o   tam bem

    de pianistas bons,   mas muito   menos   inter essantes, como   Andr e Watts, Bella

    D.avidovitch,   Vladimir Ashk enaz y e Alexis Weissenber g.   Mas jamais   se poderia

    dlzer o mesmo   dao bra   de Pollini, bem  como deAlf r ed Br endel,Sviatoslav   R ichter 

    E~nil.Gilels,Arturo Benedetti Michelangeli ou Wilhelm Kempff.   Cada urn desse~

     plamstas r~pr esenta   urn projeto que se desenvolve   110  tem po ,   urn pr ojeto que  tratade algo mals do  que tocar piano   em publico dur ante   duas   horas. Seus recitais   sac

    o portunidades   par a ex perienciar    a explorac;:ao,interpretac;:ao   e,so bretudo,   a rein-

    terpretac;:aode uma   parcela   importante do  r e pertorio   pianistico.

    Todo   pianista   dese ja ser diferente , c ausar   uma impressao,   ter uma   mar ca

    estetica e.social unica.   E 0 que chamamos   de " per sonalidade"   do   pianist a. Mas

    esse deseJo de soar "dif er ente" e fr  ustr ado pelo f ato   de   que as plateias   de hoje

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     pressupoem urn nivel muito alto de competencia   tecnica.   Parte-se do   principio

    de que os pianistas serao executantes sofisticados   e que   atr avessarao   os estudos

    de Chopin e Liszt sem cometer falhas. A consequencia disso   e que os pianistas

     precisam con tar com   0 equivalente dos efeitos  es peciais par a estabelecer e sus-

    tentar suas identidades pianisticas. Idealmente, urn o uvinte   deveria ser  capaz de

    reconhecer    0 som,   0  estilo e a atitude de determinado pianista   e nao   confundi-

    los com os de outr os   pianistas. Ainda assim,   as semelhanc;:as e compar ac;:oes san

    cruciais para delinear os contornos de toda assinatur a   inter essante.   Desse modo,

    falamos de escolas de pianistas, discipulos de urn ou outr o estilo, similaridades

    entre do is especialistas em Chopin.

     Nenhum pianista contempor aneo se firmou   de   f or ma   tao   brilhante por 

    meio de urpa identidade extraordinariamente distintiva   quanto Glenn   Gould,   0

    canadense que morreu em 1982, aos cinquenta anos.  A te mesma   os  detratores de

    Gould reconheciam a grandeza de seus dons.   EIe  tinha uma  capacidadc fCllome-

    nal de tocar a complicada musica polif6nica -   especial mente Bach - com

    espantosa clareza e vivacidade.   Andr as   Schiff disse com r azao   que  "ele er a  cap az

    de controlar cinco vozes de forma mais   inteligente   do que a maior ia [dos pianis-

    tas] consegue controlar duas':

    A carreira de Gould iniciou-se com uma gr avac;:ao assombr osa das   Varia-

    roes Goldberg   de Bach, e tao rica era sua capacidad e   pianistica   que um dos ulti-

    mos discos que gravou foi outr a   interpretac;:ao dessas   Variaroes.  0 notavel e que

    a versao de 1982 difer e   muito   da anter ior , e ao mesmo   tempo e manif estamente

    uma obra do mesmo pianista.A   interpretac;:ao   de Bach  fe ita por Gould   tinha por 

    objetivo ilustrar a riqueza da musica e nao simplesmente   a engenhosi da de do

    interprete - sem  a  qual, e 6bvio,   0   fertil  c ontrapon to d e Bach nao teria   surgido

    de forma tao diferente na segunda gravac;:ao.As interpretac;:oes   que Gould fez de

    B ac h - cerebrais, brilhantemente organizadas,   f estivas e energicas   -   a briram

    caminho para que outros   pianistas retornassem   ao compositor .   Gould deixou   os palcos   em 1964 para confinar-se as  gr avac;:oes, mas varios outros   interpretes,

    todos influenciados   por Gould -   Andras   Schiff ,   Peter Serk in,   Joao Car los

    Martins, Charles Rosen, Alexis Weissenberg -, ficaram conhecidos por execu-

    tar as  Variaroe s Goldberg. A maneira de Gould tocar Bach provocou uma   guina-

    da  sismica   ( para os  pad roes   pianisticos)   nas ideias sobre   a interpretac;:ao.   Bach

    nao mais   seria ignorado em f avor do r e pert6rio- padr ao -   Beethoven,   Cho pin,

    Liszt, Brahms, Schumann. Sua obra nao mais   seria   tratada como mater ial ino-

    f ensivo   de " abertur a"   par a recitais.

    A interpr etac;:ao de Gould er a  notavel nao a penas pelo   mero vir tuosismo   no

    teclado.   Ele executava cada  p ec;:acomo se a radiografasse,   inter  pr etando   cada um

    de seus componentes com   independencia e clareza. 0 resultado e ra , em   ger al,

    um   unico   processo   belo e f luido, com muitas   partes   subsidiarias.   Tudo   par ecia

     pensado e, no entanto,   nada soava   pesado, artif icial   ou for c;:ado.Alem   disso,  e le

    dava   todas as indicac;:oes, em tudo   0 que fazia,  d e ser  u ma   mente em   atividade,

    nao   apenas um par de maos   ageis. De pois que se r etirou   dos concer tos   publicos,

    Gould fez varios   discos, filmes   para a televisao e pr ogramas   r adiof 6nicos   que

    atestam   sua  c apacidade   "extr ateclado':   Ele era ao mesmo tempo articulado e af  a-

    velmente excentrico. Sobr etudo, sempr e sur  pr eendia.   Jamais se contentava com

    o re pert6rio   es per ado: ia de Bach  a Wagner e.a Shoen berg  e voltava   a Br ahms,

    lkethoven, Bizet, Richard   Strauss,   Gricg   e c olllpositorcs da   R enascenc;:a, C0l110

    Gibbons e Byrd.  E num impertinente   afastamento da tr  adic;:aode tocar somente

    os  compositor es   e pec;:asde que se gosta, Gould declarou que   nao g o stava   de

    Mozart   e depois gr avou todas as suas sonatas, executadas   com  ve locidade   exage-

    rada   e com inflexoes desagradaveis.   Gould   apresentava-se ao mundo meticulo-

    samente.   Tinha um som todo pr6prio e ao m esmo tempo contava com uma cole-

    c;:aode ideias sobre todos os tipos de m usica, ideias que aparentemente acabavam

     por transparecer    em suas  i nterpr etac;:oes.

    E evidente que inteligencia,   gosto e originalidade nao significam nada   se  0

     pianist a n ao possui   os  m eios   tecnicos   para   comunica-Ios. Nesse as pecto   um

    gr ande   pianista e como   um  gr ande   tenista,   um R od Laver ou urn John McEnr oe,

    capaz  de urn ser~ic;:oforte,   voleios   exatos   e golpes precisos   na quadra - todos os

    dias, contra qualquer adver sario. Nao   devemos subestimar nossa reac;:aoa uma

     bela  h a bilidade   atl etica   do   pianista.   A v elocidade   e a f luencia com que Jose ph

    Lhevinne er a  c a paz   de tocar terc;:ase sextas; a acuidade   trovejante e 0 clangor dasoitavas   de Hor owitz;   0  vigor ritmico e a virtuosidade   dos   acordes   de Alicia   de

    Larr ocha   ao   tocar Granados   e Albeniz; a interpretac;:ao transcendentalmente

     perfeita de Michelangeli de Gaspar d d e la nuitde   Ravel;  0 desempenho de Pollini

    na  H ammerklavier    de Beethoven,   com   sua fuga   de vergar os dedos e seu lento

    movimento meditativo; as interpr etac;:oes vigor osas,   mas   etereas   e refinadas   que

    Richter faz   de   Schumann, em   es pecial nas   longas   pec;:as epis6dicas   como a

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     Humoresque:   todos esses, com a bravura e a elabora

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    tr astes   mais   6bvios (uma pe~a reflexiva   e de pois   uma apar atosa), e f r equente-

    mente urn motivo para   nao   ira urn recital.

    Alguns   pianistas   tendem a elaborar progr am   as didaticos: todas   as sonatas

    de Beethoven ou Schubert, por   exemplo. Em man;:o de   J 985,   no Metr o politan

    Museum, Andr as Schiff   a pr esentou uma sequencia notavcl   cle tres   recitais   de

    Bach que   culminar am c om   as  V aria~i5e sGold berg. Os pr imeir os pianistas   a ten-

    tar esse ti po de pr ograma foram Ferruccio Busoni e Anton   R ubinstein, cujos

    recitais ofereciam uma   hist6ria da musica par a   piano em escala  r eal mente   her 6i-

    ca.  Recitais somente   com obr as de Cho pin ou  Schumann   nao san em  si mesmos

    atraentes - em parte porque   nao   san  muito   incomuns -,   mas   a sequencia de

    dezesseis program as de concertos apresentada   por   Artur   R ubinstein na  d ecada

    de   1960 foi   realmente interessante. Erilbora   as interpr eta~oe s me r  ecessem   elo-

    gios pelo f ato de iluminar    as varias   tr ansforma~6cs da forma   concerto, nao   f oi

    essa a principal Fonte de sua fo[(;:a.0  que emocionava   de   f ato  e ra a fa~anha dc

    combinar a amplitude estetica e a for~a atletica  ao  longo de varias seman as.

    Mas uma programa~ao tao interessante   e rar a.   A maioria dos pianistas pla-

    neja seus recitais em torno de urn repert6rio carimbado por seus predecessores,

    na esperan~a - geralmente sem qualquer base,  e m minha   opiniao - de captar a musica por eles mesmos. Que identidade estetica pode ter um pianista se ele

    aceita que   0  apresentem como   "0   novo Schnabel"   ou   "0 Tausig   do seculo   xx"?

    Piores ainda san aqueles que tentam imitar o s  sons de urn pianista que durante

    meio seculo foi  0  modelo do pianismo dinamico e,diria eu, estridente: Vladimir 

    Horowitz. Mas ninguem conseguiu isso - em parte porque   0  pr6prio Horowitz

    continuou tocando.

    Para aumentar ainda mais as limita~oes do   repert6rio   pianistico,   quase

    toda a literatura para piano e muito conhecida e esta bastante bem fixada:   as

    notas estao escritas e,   na maioria dos casos,   as pe~as foram gravadas. Desse

    modo, tocar as quatro baladas de Chopin, como Emanuel Ax fez recentemente

    no Carnegie Hall, nao significa simplesmente tocar   as pe~as, mas  r e-execut a-Ias.

    Existe  a  es peran~a de que   0  pianista   0  f a~a com   varia~oes   que r evelem   sua   ima-

    gina~ao e seu born gosto - e que nao mostre sinais de estar co piando outros   ou

    distorcendo a escrita   do compositor .   Os  pi anistas   mais   inter essantes, mesmo

    quando apresentam um program a convencional, dao   a  im pressao de   que   sua

    interpreta~ao e tambem urn comentario sobr e   a pe~a, assim como urn ensaio

    so br e   urn   grande   r omance e urn   comentario e nao simplesmente   0 resumo da

    trama.   Vma   interpr eta~ao   bem-sucedi da d a Fant asia  d e Schumann,   como   a que

    f ez Pollini,   imprime no ouvinte   duas coisas  distintas   ao mesmo   tem po:  que  aq ue-

    la e a o br a   que Schumann   escr eveu   e que Pollini, ao   r eagir   aos   inf initamente

    var iaveis impulsos, acentos, f r ases, pausas e  inflexoes ritmicas e r et6ricas, esta

    coment and o   a pe~a,  dando   sua versao   dela.   E assim que os pianistas   f azem   suas

    declar a~oes.

    o  univer so   pianistico   e ur n   curioso amalgama   de "cultur a" e neg6cio. Haquem diga que   0 contexto cultur al   (nao   men os que a bilheter ia) e uma   distr a~ao

    do  som   do pianista. Mas  essa visao  d escar ta   com enorme   f acilidade   algumas das

    cir cunstancias   que, na ver dade, estimulam   0 que eu chamar ia de pianismo   inte-

    r essante. A pr6pria   proeminencia   dos  pi anistas   moder nos e uma   consequencia

    do desgaste   - descrito ha cinqLienta anos   porTheodor    Adorno   - da conexao

    cntr e as tr es   linhas cssenciais   cia mllsica:   a composi~ao e a produ~ao,   sua   repro-

    du~ao ou apresenta~ao   e seu consumo. A maior ia dos pianistas nao tern tempo

     para  a  musica contempor anea; por   outro lado,  na o  ha muita musica sendo escr i-

    ta para piano.   0 publico esta   saturado   com ml\sica reproduzida mecanicamen-

    te. Alem disso,   0 conhecimento de musica   nao   e mais uma exigencia par a   a pes-soa instruida. Em consequencia, as plateias estao, de modo geral, distantes dos

    atos de tocar e compor.

    Os concur sos musicais,   criados para lan~ar novos virtuoses,   tambem con-

    tribuiram para a especializa~ao. A maioria deles   e dirigida por uma mistura de

    f ilantropos,   musicos e diretores   de concerto que tendem a promover uma espe-

    cie de triunfalismo pianistico. Para   aqueles que,   como eu, estao horrorizados

    com   0  que   acontece em quase todas   as competi~oes, esse triunfalismo lembr a   0

    mundo dos esportes, no qual anfetaminas   e ester 6ides para melhorar    0  desem-

     pcnho correm sohos.   As vezes alguns pianistas   conseguem sobreviver   a  atmos-

    fer a paran6ica   que   caracteriza todos   os concur sos.   0  pianismo   desses poucos

    nao   e arruinado pelo fato de ter em de   adotar    as tecnicas brilhantes e os estilos

     podados   e neutros   f avorecidos   pelos juizes.   Pollini   e um   desses sobreviventes, em

     parte porque, logo ap6s   vencer    0  Concur so Cho pin,   ele nao partiu imediata-

    mente em turne   para lan~ar -se   numa   "grande   carr eira". Em vez   disso, passou

    varios anos   estudando   e, nao   por acaso, amadur ecendo   como pianista.   Quando

    f alo de sobrevivenci a, nao   estou dizendo que os vencedor es   de c oncursos   fracas-

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    sam depois de algum tempo. 0 rol de pianistas premiados bem-sucedidos e

    enorme: Ashkenazy, Malcolm Frager e Andre Michel Schub san nomes que logo

    vem   a  mente. 0 que estou sugerindo e que dificilmente algum deles faz um tra-

     balho interessante.

    As"estrelas" do piano ganham gran des caches, eesse dinheiro, quando com-

     binado com a renda de seus discos, pode converter:se numa fortuna considera-

    vel.  Alguns pianistas parecem se beneficiar do sistema:   0   sucesso permite que

    toquem com menos frequencia, tirem ferias, aprendam um material novo (e mais

    arriscado). Porem, em gera!'   parece haver uma corrida por mais concertos,

    melhores contratos de gravac,:ao,maiores "oportunidades".   Asestr elas lutam para

    manter suas posic,:oes;os lumina res men ores tentam desesperadamente subir um

    degrau. Tudo isso resulta em pouco prazer para   0   pllblico de massa -- embora

     produza muito lucro para agentes, intermediarios e manipuJadores da midia.

     Nao ha muita esperanc,:a de que compositor, interprete e ouvinte venham a

    trabalhar juntos novamente, sem a distrac,:aodos acardos de gravac,:aoe premios,

    numa verdadeira comunidade, do tipo para   0  qual a familia Bach sempre serviu

    de modelo. Nem e provavel que   0 publico se tome menos suscetivel   a badalac,:ao

    e ao comercialismo. Mas ha sinais, tanto dentro como fora do mundo do piano,

    de que muita gente sente a necessidade de restabelecer os lac,:osentre tocar piano

    e outras atividades humanas, de tal forma que   0  virtuosismo insensato do pia-

    nista velocista possa ser substituido por algo mais interessante. 0 sucesso de

    Pollini certamente tem algo a ver com isso, assim como   0  de Brendel.   E Glenn

    Gould, em tudo   0 que fez, expressou insatisfac,:ao com esse modo de tocar-seu

     projeto era uma tentativa de conectar    0  pianismo com a sociedade mais ampla.

    Tudo isso comprova a existencia de um pianismo que tenta escapar do

    silencio intelectual, dos fetiches e rituais, dos sons "lindos" e da habilidade atle-

    tica. Sempre admiraremos esses sons, essa habilidade, e sempre teremos prazer 

    em ouvir pianistas executarem   0   repert6rio-padrao. Mas a experiencia do

     piano se i ntensifica quando e reunida a out ras experiencias em que encontra-

    mos alimento.

    De que modo os pianistas nos transportam da execuc,:aopara outros domi-

    nios de significado? Ouc,:amos os discos de Sergei Rachmaninoff: san sempre

    interessantes. Tudo   0 que Rachmaninoff faz nos parece uma intervenc,:ao numa

     pec,:aque, de outra forma, seria uma partitura morta no pape!.   Sentimos que de

    quer dizer alguma coisa. Ao tocar   0  Carnaval   de Schumann, por exemplo, ele faz

    com que percebamos   0 trabalho do compositor na pec,:a,sua finalizac,:ao;contu-

    do,   0  caos da visao meramente privada de Schumann fica em plena evidencia.

    Sentimos a mesma coisa ao escutar Alfred Cortot.

    Esse tipo de pianismo nao e uma simples questao de correr riscos, tocar 

    abusivamente depressa, introduzindo frases altamen te moduladas.Ao contnirio

    - e esta ea questao central-, trata-se de uma arte pianistica que nos atrai par-

    que seus processos sao aparentes, irresistiveis, provocadores da inteligencia.   A

    mesma coisa po de ser dita de forma negativa. Nao ha nada menos estimulante

    do que um pianista cuja lmica preocupac,:ao e a perfeic,:ao,do tipo que faz alguem

    tiizer: como e perfeita sua execuc,:ao.Aenfase na conquista de premios certamen-

    te estimula essa estetica da "perfeic,:ao",assim   COl:l0 0   desejo de remover da inter-

     pretac,:ao tudo, exceto   0   trabalho estonteante dos dedos do pianista. Dito de

    modo diferente, a execuc,:aotao acabada que parece ser exclusivamente sobre si

    mesma   (0   trabalho do formidavel Josef Lhevinne vem   a   mente) empurra   0

    ouvinte para longe e isola   0 pianista naquele ambiente esteril reservado para os

    "profissionais':

    o tipo de interpretac,:ao que me cativa e aquela que, par assim dizer, medeixa entrar:   0  pianista, pela intimidade de sua execuc,:ao,faz com que eu queira

    tocar daquela forma tambem. 0 trabalho de Dinu Lipatti, que produziu inter-

     pretac,:oesveementes e puras de Mozart e Chopin, exsuda esse sentimento, assim

    como a obra de uma escola relativamente obscura de pianistas ingleses que

    abrange Myra Hess, Clifford Curzon,   0   grande Solomon e  0   igualmente 6timo

    Benno Moiseiwitsch. Hoje, Daniel Barenboim, Radu Lupu e Perahia dao segui-

    mento a essa linhagem.

    Alguem poderia argumentar que aessencia social do pianismo e exatamen-

    te  0   oposto: ele  tem   de alienar e distanciar    0   pllblico, acentuando assim as con-

    tradic,:oessociais que deram origem ao pianista virtuose - uma con sequenciaabsurda do excesso de especializac,:ao da cultura contemporanea. Mas tal argu-

    mento ignora algo que e igualmente 6bvio e nao men os resultado da aliena~ao

     produzida pdo consumismo:   0   efeito   ut6pico   das interpretac,:oes pianisticas. 0

    interprete transita entre   0  compositor e  0   ouvinte. E, na medida em que fazem

    issode um modo que envolve a n6s, ouvintes, na experiencia e nos processos da

    cxecuc,:ao,os interpretes n.os convidam para uma esfera ut6pica de consciencia

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    aguda que,   de outro modo,   nos ser ia inacessivel.   Em suma,   0  pianismo inter es-

    sante derruba as barreir as   entre plateia e interpr ete e  0  faz sem violaI'   0 silencio

    essencial da musica.

    Uma apresentas:ao musical   se tr ansforma em alg o m ais   do  qu e  du as   hor as

    de born entretenimento   quando   ela penetra no  tempo subjetivo   da plateia, enr i-

    quecendo-o e tornando-o mais complexo. Penso  que  es sa e a essencia   do inter es-

    se pOl'piano epianistas.   Cada ouvinte traz  par a   0 concerto   lembr ans:as de outras

    apresentas:6es, uma hist6ria   de relas:6es pessoais   com a musica, uma r ede de afi-

    lias:6es; e tudo isso e ativado pela execus:ao do momento.   Cada   pianista faz isso

    de forma diferente.   Gould parecia inventar    a si mesmo e a sua execus:ao: er a

    como   se nao tivesse antecedentes.   0 contraponto   par ecia   f alar conosco direta-

    mente, de forma inteligente, vivida, fors:ando-nos   a deixar em  s uspenso   nossas

    ideias e experiencias.   Pollini, pOl' outro lado,   possibilita que escutemos em   seu

    Schumann nao somente   0   genio epis6dico do compositor , como   tambem as

    interpretas:6es de outros pianistas- Michelangeli,   por exemplo   -com os quais

    Pollini aprendeu e os quais super ou . 0 r igor   intelectual   de ambos os pianistas e

    companivel, em fors:a e po del' de convics:ao,  a  pr osa de um discur so   primoroso.Desse modo, os maiores pianistas conseguem   esta belecer uma   ponte   entr e

    o mundo rarefeito,   refinado e pouco natur al do  p alco   de recitais e  0   mundo da

    musica na vida humana.   Certamente todos   ja nos emocionamos   profundamen-

    te com uma musica e imaginamos   como   seria sentir -se compelido   a executa-la,

    arrastado a ex pressa-Ia de forma audivel, obrigado a articula- Ia nota pOl' nota,

    frase pOl' frase.  E  essa exper iencia que  os melhor es pianistas saD ca pazes   de su s-

    citar: a convics:ao da execus:ao, abeleza e a nobreza   do s om f azem -me vislumbrar 

    o que eu experimentaria se conseguisse   tocar como   eles tocam.

     Nao se trata, de forma   alguma, de  0  interpr ete satisf azer as ex pectativas do

    ouvinte.   E exatamente   0 oposto:   0  interpr ete deve provocar novas ex pectativas,

     possibilitar urn encontro com a mem6ria que   possa ser expresso   somente   na

    musica   executada dessa   forma, agora,   diante d o ouvinte.

    Ha  muitos   anos, na  Europa,   assisti   a uma apr esentas:ao   do  gr ande pianista

    alemao Wilhelm K empf f .  Pel o que sei, ele tocou nos Estados Unidos apenas   uma

    vez, recentemente, num r  ecital no Carnegie   Hall, faz dez ou  doze anos,   que   nao

    foi   muito bem-sucedido. Ele nao e muito f estejado aqui   - talvez obscurecido

     pOl'co ntempor aneos   menor es, tais como Wilhelm Back haus e Serk in. A mLlSicJ

    ~e Kempf f ter n ur n tom mel6dico Lmico,e sua execus:ao,  tal   como a de Gould, e

    lllcomu~ pOl' nao tr azer   a mar ca   de seus  p rof essores ou de outros   pianistas.   0

    qu~ OUVlmosquando ele toca e uma interpretac,:ao que se desdobr a.   K empf f  e UI11

    ar tl~ta  p ara quem   a tecnica esta su bor dinada   a desco ber ta, p ar a quem   0 piano e

    um lllstr umento que  agus:a a  perce ps:ao, em  vez  de of er ecer   sons  p erf eitamente

    mod~lados.   Isso e valido   para toda a sua obra, do rigor o so contr a ponto da  fuga

    termlllal no   Opu s   10  de   Beethoven   a   ener gia fantastica e f r  agmentada   da

     Krezsl enana   de Schumann.

    A execuc,:aode Kempff   jamais   nos  i m pr essiona   pOl' seu car ater assertivo   ou

     pOl' sua   forc,:a.Ao c ontr ario,   temos consciencia   de que   eJe faz uma   leitura liter al

    das notas, levando-as a sua r ealizas:ao  p lena,   do  mesmo modo como   n6s,  dur an-

    te   um longo   per iodo   de   tempo,   aprendemos lIma   pec,:amusical,   conseguimos

    compr eende-Ia   e, pOl' fim, passamo s a sa be-Ia   - como   dl'Za  bela  e   -" "     •   J     x pr essao _ 

    de cor ,   ou  s e)a, de corac,:ao.

    Par a entender    0 que  estou dizendo, ouc;:am~ inter  pretac;:ao   que K empf f   gr a-

    vou   em 1976 de "Jesus,   alegr ia d os   homens"   de   Bach   A mal'orl'a   dh   ( .   as p essoas

    con ece essa pes:.apo~ meio   da gr avac;:ao tr ans parente e  pura de   Dinu Lipatti.

    Mas, enquanto Llpattl usa  a  tr anscrirao   de  My r a   Hess   Kempf f t'l'   I'r ,   U I Iza a que e e

    mesmo fez, realc;:ando a intimidade de sua execurao. A o bra de Bacl   '   I b   .   - ,   'r (   1e uma e a-

    or ac;:aoser ena   de  um a   l11eJodlacoral   COI11UJl1   sinuoso ter cilho   obblz'    t .L'   . .   g a   0, que

    Ipattllllterpr et~ e~   .um ~egato que a bar ca   vozes internas   infaJivelmente expos-

    tas..Essa   execuc;:ao e  lllve)ada   pela   maioria   dos outros   pianistas. Contudo,   0

    OUVlllteesta sempr e consciente de um efeito ou  o utro que   chamam   sua atenc;:ao

    1sso fica es pecialmente   claro quando comparamos a inter  pr etac;:ao d e   Lipatt~

    ~~m a de K empff .   Quando este chega  a  ex posis:ao  fin al do cor al,   obbligato   e melo-

    ~afO,ram,e~ pandidos   de ~odo a a branger uma vida   inteira de atens:ao do pia-llIsta a.musl~a de  Bach.  A llllha   disciplinada   da execus:ao  ch ega   a sua  conclusao

    sem tnu~fahsm~ devoto   ou melancolia   trivial.   A evidencia extern a da  mu sica   e

    s~u movlmento lllterno   sao ex perienciados como   duas   form as ar ticuladas entr e

    Sl.   ~  p erce bemos   que,  emb or a   muito d a atividade   pianistica - pOl' meio da exe-

    Cuc;:ao(se t~ca~os   p~ano) e da a udis:ao  -   acontes:a  n a esf er a  publica, a plenitude

    dp  s~u s efelto s esentIda   na esfera privada   da mem6ria e da associac;:ao pr 6pr ia do

    OUVlllte.Essa esf er a e moldada,   de UI11lado, pela esfera envolvente das  inter  pre-

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    ta~oes, dos padroes de gosto, das institi.li~oes culturais, dos estilos esteticos e das

     pressoes historicas, e de outro por prazeres muito mais pessoais.

    Estou falando aqui do vasto mundo musical explorado e iluminado por 

    Proust, em  Em busca do tempo perdido,   e por Thomas Mann, em  Doutor Fausto

    - monumentos extraordinarios Ii convergencia do modernismo literario,

    musical e social.   A poderosa intera~ao dessas tres esferas e indicada pelo fato de

    que   Glenn Gould parecia uma encarna~ao do Adrian Leverkuhn e que a vigoro-

    sa teatralidade de Artur Rubinstein da a impressao de vir diretamente dos saloes

    e musicales  do Hotel de Guermantes, no Faubourg Saint-Germain.

    Sem duvida, uma vez que   0 mundo empresarial dos neg6cios musicais

    substituiu a boemia e  0   beau mondecomo   ambiente para a musica de concerto,

    entramos no mundo das mercadorias comercializaveis, mas isso tambem teste-

    munha a durabilidade de uma tradi~ao servida e, com freqiiencia, enobrecida

     pelo pianista contemporaneo que, ao atuar no niycl atingido por Pollini, atcsta

    a variedade e a seriedade dessa tradi~ao.

    Asmaiores execu~oes musicais proporcionam as valiosas reafirma~oes e as

    vigorosas interpreta~oes do ensaio, uma forma literaria ofuseada pelas estrutu-

    ras mais grandiosas da epopeia e da tragedia. 0 ensaio, tal como   0 recital, e oca-

    sional, recriativo e pessoal.   E os ensaistas, assim como os pianistas, se preocupam

    com coisas dadas: aquelas obras de arte que sempre valem uma outra leitura cri-

    tica e reflexiva. Sobretudo,   0   pianista e  0   ensaista nao podem oferecer leituras

    finais, por mais definitivos que sejam seus desempenhos. A esportividade fun-

    damental de ambos os generos e  0   que os man tern sinceros, bem como vitais.

    Mas ha urn irredutivel fascinio na arte do pianista, sugerido pela melancolia sub-

     jacente Ii Humoresque   de Schumann e Ii Balada em fa   menor   de Chopin; pela

    autoridade remanescente de pianistas legendarios - Busoni, Eugen d'Albert,

    Franz Liszt, Leopold Godowsky- com nomes magicos; pela for~a sonora que

    vai do Beethoven mais solido ao mais leve Faure; pela curiosa e quase audivel

    mistura de dedica~ao e dinheiro que circula na atmosfera de um recital.

    Foucault  e a imagina