peter kreeft - o diálogo

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  • .

  • O DiO Dilogologo

    Peter Kreeft

    UM DEBATE ALM DA MORTE ENTRE

    JOHN F. KENNEDY, C. S. LEWIS E ALDOUS HUXLEY

    mundo cristo

    Ttulo do original em ingls:BETWEEN HEAVEN AND HELL

    Originalmente publicado pela Inter-Varsity PressDowners Grove, Illinois, E.U.A.

    Copyright 1982 por Inter-Varsity Christian Fellowship (E.U.A.)

    Traduo de Wanda de Assumpo1 edio brasileira em agosto de 1986

    Impresso na Imprensa da F, So Paulo, SP.

    Publicado no Brasil com a devida autorizaoe com todos os direitos reservados pela

    ASSOCIAO RELIGIOSA EDITORA MUNDO CRISTO

    Caixa Postal 21.257, 04698 So Paulo, SP, Brasil

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  • PRLOGONo dia 22 de novembro de 1963, trs grandes homens

    morreram com intervalo de poucas horas um do outro: C. S. Lewis, John F. Kennedy e Aldous Huxley. Todos eles criam, de diferentes maneiras, que a morte no representava o fim da vida humana. Suponha que tivessem razo e suponha que se tivessem encontrado aps a morte. Como teria sido a sua conversa? Esta teria feito parte do "Grande Debate" que tem ocorrido por milnios, pelo fato de representarem estes trs homens as trs filosofias de vida mais importantes de nossa histria humana: o antigo tesmo ocidental (Lewis), o moderno humanismo ocidental1 (Kennedy) e o antigo pantesmo oriental (Huxley).

    Estes trs homens representavam tambm as trs verses mais influentes do cristianismo em nossa cultura moderna: o cristianismo tradicional, mais disseminado ou ortodoxo (que Lewis chamava de cristianismo puro e simples ou "mero cristianismo"), o cristianismo moderno ou humanstico (Kennedy), e o cristianismo orientalizado, ou mstico (Huxley).

    Lewis aceitava o cristianismo de forma pura, ou simples. Ao invs de reinterpret-lo luz de qualquer outra tradio, antiga ou moderna, oriental ou ocidental, ele interpretava essas tradies luz do cristianismo. Assim, a exemplo dos filsofos cristos medievais, ele usava muito da antiga cultura ocidental, especialmente Plato e Aristteles, para firmar sua apologtica crist.

    Kennedy, conquanto no fosse um filsofo ou telogo, provavelmente era, de forma geral e vaga, um cristo humanista, no sentido em que esse termo foi definido atrs. Embora no expressasse publicamente suas convices religiosas pessoais (o que , em si, uma atitude mais humanista que tradicional: confinar a religio vida particular), temos provas suficientes para o classificarmos como tal. De qualquer forma, tomo a liberdade literria de

  • supor que Kennedy tenha sido um cristo moderno tpico para estabelecer este trio completo e representativo. O propsito deste dilogo no a exatido histrica; o argumento tudo, como o para o Scrates de Plato.

    O fato de ser Lewis protestante (anglicano) e Kennedy catlico irrelevante aqui. Cristos tradicionalistas e modernistas podem ser encontrados nas duas igrejas, e as diferenas existentes entre eles muito mais importante do que a diferena entre o protestantismo e o catolicismo. Bem menos importante do que a infalibilidade ex cathedra dos pronunciamentos do Papa, e se so sete ou dois os sacramentos, a literalidade da divindade de Jesus e a sua ressurreio de entre os mortos.

    Nosso terceiro homem, Aldous Huxley, expressou suas crenas religiosas mais profundas em uma antologia de sabedoria mstica, The Perennial Philosophy ("A Filosofia Perene"), embora seja mais conhecido pelos romances que escreveu. Como Kennedy, ele s vezes usava categorias crists para conter uma substncia diferente, ao invs de fazer como Lewis, que usava categorias gregas ou modernas para conter substncia crist. No caso de Huxley, a substncia era o pantesmo, e ele reinterpretou o cristianismo como uma forma de filosofia universal, "perene", do pantesmo. uma verdade histrica o fato de estar o gnosticismo de Huxley mais prximo do centro de sua religio do que seu pantesmo; mas tomo novamente liberdades literrias de nfase para favorecer o argumento no dilogo.

    Os eventos de 22 de novembro de 1963 quase parecem ter sido providencialmente arranjados para estabelecer a situao que imaginei neste dilogo: um microcosmo da histria intelectual tripartida da humanidade bem como do corrente debate tripartido entre os telogos cristos. O trilogo centraliza-se no Centro, a dobradia de nossa histria: seu problema principal a identidade de Jesus.

  • O DILOGO

    Dia: 22 de novembro de 1963Local: Entre o Cu e o InfernoPersonagens:

    C. S. Lewis ...................................Testa

    John F. Kennedy .........................Humanista

    Aldous Huxley ..............................Pantesta

    Kennedy: Que lugar dos diabos este?Lewis: Voc deve ser catlico!Kennedy: Foi o sotaque de Massachussetts2 que me

    denunciou?

    Lewis: Foi sim. Ora essa voc no o Presidente Kennedy? Como foi que voc veio parar aqui onde quer que aqui seja?

    Kennedy: Ex-presidente, acho: parece que me assassinaram. Quem voc? E voltando minha pergunta original que lugar dos diabos este?

    Lewis: Sou C. S. Lewis. Acabei de morrer, tambm, e tenho certeza de que voc est enganado a respeito deste lugar. Est bom demais aqui para ser a moradia do diabo. Por outro lado, no vi nenhum Deus, voc viu?

    Kennedy: No.

    Lewis: Ento tambm no pode ser o cu. Ser que estamos encalhados no limbo?

    Kennedy: Ugh! Voc realmente acha isso?Lewis: Para falar a verdade, estou achando mais que

    o purgatrio, especialmente se acabarmos saindo daqui e

  • indo para o cu. Como escritor, especulei um pouco a respeito de lugares assim, principalmente no livro O Grande Abismo. Ser que o leu por acaso? No... bem... Mas voc deveria conhecer bem esses conceitos, j que catlico romano.

    Kennedy: Bem... Eu era mais um catlico moderno; nunca esquentei a cabea com mistrios transcendentais ou mitologia. Estava ocupado demais tentando cuidar do mundo em que vivia para ter tempo para pensamentos escapistas. "Um mundo de cada vez", como disse Thoreau.

    Lewis: J deu para perceber que voc estava errado, no deu?

    Kennedy: O que quer dizer com isso? Lewis: Ora, primeiro que no mitologia. real. Onde quer que estejamos, c estamos ns, no h dvidas quanto a isso. E segundo, que a regra no "um mundo de cada vez". Eis-nos aqui, num outro mundo, falando sobre a nossa vida passada na terra. Pelas minhas contas, isso dois mundos de uma vez. E enquanto estvamos na terra, podamos pensar sobre este mundo; isso tambm dois mundos de uma s vez, no ? E por ltimo, no escapismo. Na realidade, no se ter preparado para esta jornada enquanto estvamos vivendo na terra que teria sido escapismo, no acha?

    Kennedy: Hmm... Suponho que tem razo. Mas olhe! Vem vindo mais algum. Voc consegue ver quem ?

    Lewis: Ora, Huxley! Aldous Huxley. Aldous, seja bem-vindo. Como foi que chegou aqui?

    Huxley: Do mesmo jeito que vocs, pelo visto. Acabei de morrer. Ora viva! Kennedy e Lewis! Que boa companhia para se morrer ou viver, se isso o que estamos fazendo. De qualquer forma, que lugar este?

    Kennedy: isso que estamos tentando descobrir. Lewis acha que pode ser algum tipo de limbo ou purgatrio. S espero que no seja o inferno.

  • Huxley: Bem, esto errados, os dois. o cu. S pode ser o cu.

    Kennedy: Por qu?

    Huxley: Porque o cu est em toda parte, se apenas seus olhos estiverem abertos para enxergar.

    Lewis: Mesmo no inferno?Huxley: Oh! isto vai ser divertido! Lewis, voc no

    perdeu nem um pouquinho daquele seu pendor impertinente pela investigao socrtica, perdeu? Lembro-me de que costumava transformar a universidade de Oxford em um senhor vespeiro quando debatia l na terra, e agora voc despachou suas vespas para o cu. um belo desafio.

    Lewis: Ento, responda. Se o cu est em toda parte, segue-se que ou o inferno no existe, ou faz parte do cu. Como que fica a coisa, Aldous?

    Kennedy: Por favor, esperem! Antes de decolarem, poderiam oferecer-me algumas garantias quanto a este tipo de debate? Eu tambm fui polemista, mas ns, os polticos, nos confinamos ao concreto e ao tangvel. No estou nada convencido de que se possa fazer mais do que falar asneiras se se discutir coisas que nunca se viu.

    Lewis: Ento, voc quer alguma espcie de garantia de que existe um mtodo pelo qual realmente se descobre a verdade acerca de coisas que no podemos ver.

    Kennedy: Sim. Antes de se decolar, a gente precisa se assegurar de ter um avio que possa voar, e voltar novamente terra e pousar. Lewis, voc disse ter escrito um livro acerca do cu e do inferno. Cus, homem! Que inferno! Como que pode saber qualquer coisa acerca do cu e do inferno? Por acaso j esteve em algum deles?

    Lewis: Estive, sim. J entrei e sa pelas portas dos fundos dos dois muitas vezes.

    Huxley: Sabe, Sr. Presidente...Kennedy: Por favor, me chame de Jack.

  • Lewis: Isso vai dar confuso. Jack como meus amigos me chamavam.

    Huxley: Vamos dar prioridade posio. Importa-se se o chamarmos de Lewis?

    Lewis: Por favor. O importante aqui a clareza, no os ttulos.

    Huxley: timo. Agora, Jack, Lewis falou aquilo acerca do cu e do inferno no sentido espiritual, no literal.

    Kennedy: Ah! bom, se s isso que voc quer dizer...Lewis: No, espere. No vamos chafurdar nos atoleiros

    dos "sentidos espirituais". Usemos as palavras to literalmente quanto possvel. Eu no estive no cu nem no inferno de maneira literal.

    Kennedy: Est certo. Sendo assim, como lhe possvel saber o que quer que seja acerca deles?

    Lewis: Me contaram.Kennedy: O qu? Que significa isso?Lewis: Voc sabe alguma coisa sobre Tibet?Kennedy: claro.

    Lewis: J esteve l?Kennedy: No.

    Lewis: Ento, como sabe qualquer coisa acerca dele?Kennedy: Ah! entendi. Contaram-me. Mas isso

    conhecer apenas se voc acreditar no que lhe contaram.

    Lewis: Exatamente. isso que se chama de "f".Kennedy: E voc simplesmente acredita,

    passivamente, irracionalmente?

    Lewis: No, acredito por boa razo, e depois exploro aquilo em que creio com boa razo.

    Kennedy: Certamente no desejo impugnar a sua f, mas acho que a minha f bem diferente da sua.

  • Lewis: Diferente como?Kennedy: Voc um desses conservadores teolgicos,

    no ?

    Lewis: Depende do significado que voc atribui a esse rtulo. Eu sempre achei que liberal e conservador fossem termos usados no para se pensar, mas para se evitar pensar. Voc pode classificar qualquer coisa de liberal ou conservadora, e depois simplesmente declarar-se encaixado em uma ou outra dessas categorias, e todo seu pensamento pelo resto da vida nada mais ser do que um movimento reflexo.

    Kennedy: Bem, que tal fundamentalista, ento?Lewis: E o que que isso quer dizer? Muita gente

    associa esse termo a "No beber, no fumar, no dizer palavres". Por esse molde, eu no fui fundamentalista.

    Kennedy: Acho que para mim significa: Voc acredita literalmente em tudo o que est na Bblia?

    Lewis: claro que no. Quando Jesus diz: "Eu sou a porta", no vou ficar procurando a maaneta dele.

    Kennedy: E quando ele fala do cu e do inferno, voc procura anjos e demnios de verdade?

    Lewis: Sim.

    Kennedy: Por qu? Por que no interpretar isso poeticamente?

    Lewis: Porque quem falava no o fazia poeticamente.Kennedy: Como que voc sabe?Lewis: Ora, uma questo de bom senso. Veja bem:

    voc acha que algum, fosse Jesus ou algum dos seus ouvintes, procurou tocar uma maaneta literal quando ele disse: "Eu sou a porta"?

    Kennedy: No.

  • Lewis: E quando ele falou acerca do cu e do inferno, voc acha que seus ouvintes interpretaram isso poeticamente?

    Kennedy: No. Eles provavelmente no eram sofisticados o bastante para tanto.

    Lewis: Jesus era um bom professor?Kennedy: Claro que sim.Lewis: Um bom professor leva em considerao as

    pessoas a quem se est dirigindo, e a provvel interpretao que daro s suas palavras?

    Kennedy: Sim, claro.Lewis: E ser que um bom mestre usa linguagem

    potica deliberadamente sabendo que os seus ouvintes se enganaro e a interpretaro ao p da letra?

    Kennedy: No.

    Lewis: Percebe o que se segue? Era sua inteno que o interpretassem literalmente quando falava da existncia do cu e do inferno. Esses lugares so reais. certo que vamos para um deles por toda a eternidade. Faz uma diferena infinita para qual deles vamos. Certamente, isso o que ele tencionava que todo mundo apreendesse do que ensinou acerca do cu e do inferno.

    Kennedy: Assim, voc realmente acredita em um lugar cheio de diabos com chifres e cascos e tudo

    o mais? Voc, um homem do sculo vinte?

    Lewis: Conforme escrevi em um dos meus livros, no estou certo quanto ao que o tempo tem a ver com isso, e no fao muita questo dos chifres e cascos.

    Kennedy: Mas, tirando isso, acredita? Lewis: Sim.Kennedy: Pois olhe, eu acho muito mais fcil acreditar

    na bondade do homem do que na maldade de Deus.

    Lewis: A maldade de Deus?

  • Kennedy: Sim; voc pode imaginar um Deus pior do que o que lana seres humanos no inferno por toda a eternidade?

    Lewis: Sim, posso imaginar um Deus muito pior que esse.

    Kennedy: E qual ?Lewis: Um que pusesse no inferno pessoas que no o

    merecessem. Um Deus injusto. Mas o Deus no qual creio no apenas est acima da injustia, mas tambm acima da justia. Ele puro amor.

    Kennedy: Que maravilha! Ento, no existe inferno.Lewis: No isso o que se segue.Kennedy: Por que no? Como poderia puro amor criar

    o inferno?

    Lewis: No acho que Deus cria o inferno: acho que somos ns que o fazemos, ou talvez os espritos malignos.

    Kennedy: Mas Deus quem coloca voc l.Lewis: Outra vez, no. Ns mesmos nos colocamos l,

    por livre escolha.

    Kennedy: Por que haveria algum de fazer isso? Quem iria preferir o inferno ao cu se dependesse de sua livre escolha?

    Lewis: Todo aquele que achasse Deus incmodo, insuportvel. Todo aquele que no suportasse a luz, a verdade.

    Kennedy: Voc quer dizer que no uma questo de boas obras de um lado e obras ms do outro, uma espcie de contabilidade moral?

    Lewis: De forma alguma. Veja o ladro na cruz. Ele foi para o paraso muito embora em sua vida os dbitos pesassem bem mais que os crditos.

    Kennedy: Jamais pensei em nosso destino de outra forma que no fosse uma contabilidade moral.

  • Lewis: por isso que jamais acreditou no inferno.Kennedy: Talvez. Mas ainda no entendo como

    algum possa preferir o inferno ao cu.

    Lewis: O que voc acha que o inferno ? E o que voc pensa que o cu ?

    Kennedy: Como acabei de lhe dizer, nunca pensei muito sobre isso. Suponho que pensava neles do jeito como todo mundo pensa, como recompensas e castigos, prazeres e dores, ventura e tormento.

    Lewis: E voc no podia compreender por que algum iria, por livre escolha, preferir o tormento ventura.

    Kennedy: isso mesmo.Lewis: Suponha que a ventura no seja uma

    recompensa anexada a uma vida boa da mesma forma que uma nota anexada a um curso da escola, mas sim a prpria vida boa em sua consumao. Suponha ainda que o castigo tambm no seja algo externo e anexado, mas interno: a consumao do prprio mal. Percebe aonde isso nos leva?

    Kennedy: Penso que sim. Escolhemos o cu ou o inferno em toda escolha do bem ou do mal.

    Lewis: Exatamente.Kennedy: Ento, era isso o que queria dizer ao falar

    que j esteve no cu e no inferno muitas vezes. S que agora voc est interpretando o cu e o inferno bblicos poeticamente, no literalmente. Ao invs de ruas de ouro e fogo e enxofre, ao invs de castigos e recompensas fsicos, seu cu e seu inferno so estados espirituais. Pensei que voc fizesse questo de interpretar o cu e o inferno literalmente.

    Lewis: A existncia deles precisa ser aceita literalmente, da mesma forma que a existncia de Deus. Mas a sua natureza somente pode ser apreendida por smbolos, do mesmo modo que a natureza de Deus s pode ser apreendida atravs de smbolos.

  • Kennedy: Isso mais faz lembrar o meu modernismo que o seu tradicionalismo.

    Lewis: Se voc conhecesse os escritos dos santos e dos msticos, saberia que minhas interpretaes so bastante tradicionais. Vocs, modernistas, tendem a descartar o tradicional sem saber direito do que se trata.

    Kennedy: Ainda no estou convencido de que um ser humano normal, racional, iria parar no inferno.

    Lewis: Leia o romance, Descent into Hell ("Descida ao Inferno"), do meu amigo Charles Williams.

    Kennedy: E onde que vou encontrar uma livraria neste lugar?

    Lewis: Touch! Voc marcou um ponto! Eu tenho mesmo a tendncia a ficar meio distrado s vezes.

    Kennedy: Bem, no vamos nos esquecer de onde estamos. Voltando minha pergunta original, onde estamos? E por que estamos aqui, se isto no nem cu nem inferno?

    Huxley: Talvez seja uma segunda oportunidade.Lewis: Acho antes que o lugar e a hora para nos

    conscientizarmos de nossa primeira oportunidade.

    Kennedy: O que voc quer dizer com isso? Que primeira oportunidade?

    Lewis: As escolhas que fizemos antes na terra.Kennedy: No ouvi voc dizer que achava que isto era

    o purgatrio?

    Lewis: E acho. O que voc que dizer com purgatrio?Kennedy: Voc realmente gosta de fazer perguntas,

    no?

    Huxley: Ele o prprio Scrates reencarnado.Lewis: Esquea o elogio e responda pergunta, faa o

    favor isto , se voc realmente quer descobrir onde estamos e o que estamos fazendo aqui. Sabe, eu tambm

  • no estou certo, e estou fazendo essas perguntas para esclarecer minhas prprias idias e descobrir a verdade, e no apenas para vencer um debate com voc ou para ensinar-lhe algo que sei e que voc no sabe.

    Kennedy: Aldous tinha razo. Voc parece mesmo Scrates. Est bem, tentarei responder sua pergunta. O que quero dizer com purgatrio? Nunca pensei muito sobre isso. Mas a maioria dos catlicos acreditava que era um lugar aonde se tinha de ir para sofrer pelos pecados. O que voc acha?

    Lewis: Tenho a impresso que essa idia no est totalmente errada, mas tambm no est totalmente certa. Acho mais provvel que o purgatrio seja antes um lugar de instruo do que de sofrimento uma espcie de "aulas de recuperao" de sua vida terrena. Como tal, realmente a antecmara do cu, no um outro lugar. Assim, acho que estamos sendo preparados para as profundezas do cu, se isto o purgatrio.

    Kennedy: Espero que voc esteja certo.Lewis: Por qu? Voc est com medo de que estejamos

    naquele outro lugar?

    Kennedy: Francamente, no estou to preocupado com a possibilidade de estarmos no inferno como com o fato de voc crer no inferno. Para mim, a primeira parece bem remota, mas o segundo, parece bem presente e ameaador.

    Lewis: Por que voc acha o fato de eu crer no inferno ameaador se voc no acha o inferno em si ameaador?

    Kennedy: Pela mesma razo que voc acharia ameaadora a crena em bruxas mesmo que no acreditasse nisso.

    Lewis: Entendo. Isso perturba sua mente ou suas emoes?

    Kennedy: O que quer dizer?Lewis: Quero saber se o que o perturba o meu erro

    intelectual ou meus motivos para acreditar no inferno.

  • Kennedy: O segundo. Lewis: Foi o que pensei.Kennedy: Como pode um homem correto, inteligente e

    bondoso como voc acreditar em um lugar de tormento eterno? Ser que um sdico disfarado? Lewis: Se a me grita para o filhinho sair da rua porque vem vindo um caminho, ela sdica?

    Kennedy: Claro que no.Lewis: Mas ela acredita no caminho na ameaa que

    ele representa.

    Kennedy: Sim, mas ela no deseja que ele ameace seu filhinho. Ela no inventa uma coisa apavorante dessas.

    Lewis: Exatamente. E ns no queremos que o inferno exista. Ns no o inventamos.

    Kennedy: Ento, por que voc acredita?Lewis: uma doutrina da f. A igreja sempre a

    ensinou. A Bblia a ensina. Jesus a ensinou de maneira inequvoca.

    Kennedy: Ento, voc aceita esta coisa terrvel pela f.Lewis: Sim.

    Kennedy: Simplesmente porque foi o que lhe disseram.

    Lewis: No comeo, sim. Mas depois, investigando o que me disseram o que nos disseram, Jack com minha mente e minha imaginao, descobri que algo que se impe minha razo e um desafio explorao por parte de minha imaginao racional.

    Kennedy: "A f em busca da compreenso".Lewis: Sim, um empreendimento muito antigo.

    Agostinho, Aquinas, Dante, Milton...

    Kennedy: E voc principia com a f.Lewis: Sim.

  • Kennedy: E voc acredita primeiro simplesmente com base na autoridade, e somente mais tarde tenta provar parte disso.

    Lewis: Sim.

    Kennedy: Em outras palavras, voc entrega sua mente igreja.

    Lewis: No, por dois motivos. Antes de tudo, no a minha mente, mas a minha vontade, e no igreja, antes de tudo, mas a Deus. Mas o Deus a quem digo: "Seja feita a tua vontade", replica: " minha vontade que voc creia naquilo que lhe revelei."

    Kennedy: Por meio da igreja?Lewis: Por meio da igreja e das Escrituras, qualquer

    que seja seu inter-relacionamento apropriado. Eu preferia no entrar em toda essa problemtica catlico-protestante agora.

    Kennedy: Por qu? Para evitar magoar algum?Lewis: Puxa! No nada disso. Espero que somos

    todos pelo menos amadurecidos o bastante para no termos de nos preocupar com isso. Estamos tentando descobrir a verdade, e no humilhar um ao outro.

    Kennedy: Por qu, ento?Lewis: Por dois motivos. Primeiro, porque sempre que

    escrevi qualquer tipo de apologtica l na terra, evitei cuidadosamente essa questo por crer que Deus me colocara para trabalhar nas linhas de frente, onde o cristianismo enfrenta o mundo, e no por trs delas, onde uma guerra civil assola os cristos. Minha tarefa era a de defender o "cristianismo puro e simples", e no qualquer igreja em particular. Segundo, porque nenhum de ns dois uma amostra representativa: eu sou mais catlico que a maioria dos protestantes, especialmente no que toca igreja, tradio e autoridade; e voc mais protestante do que a maioria dos catlicos, desenfatizando justamente essas coisas se no estou enganado.

  • Kennedy: No, no est enganado. E acho que devemos discutir a autoridade como tal ao invs do inferno, pois com base na autoridade que voc acredita no inferno bem como em muitas outras coisas.

    Lewis: Est bem.Kennedy: Mesmo assim, sinto que realmente estou-me

    arriscando, debatendo com um telogo profissional.

    Lewis: Eu no sou um telogo profissional. Mas um debate real, um debate para se chegar verdade e no para vencer o oponente, parece ser a coisa certa para se fazer aqui como se tivssemos sido trazidos aqui justamente para esse fim. Voc tambm no est com essa sensao?

    Kennedy: Estou sim, e bem forte. Lewis: Aldous, estamos deixando voc de fora. Voc tambm tem essa sensao?

    Huxley: Sim, e gostaria de continuar s ouvindo mais um pouco, se vocs no se importarem. No que diz respeito autoridade, acho que estou com o Jack Kennedy; mas estou com voc, Lewis, por ser um tradicionalista. Minha tradio, contudo, mais ampla que a sua. Ela abrange tudo o que chamo de "a filosofia perene"...

    Lewis: Furtando assim um epteto aos cristos medievais...

    Huxley: Que no merecem direitos exclusivos sobre ele! A verdadeira filosofia perene se reporta aos Vedas hindus. Mas eu gostaria de guardar ainda um pouco o meu s e ver como Jack se sai contra voc, Lewis. Entrarei um pouco mais tarde, e estou quase certo que ser do lado do Jack.

    Lewis: Isso me deixa duplamente feliz: que os dois debatero comigo e que os dois debatero comigo.

    Kennedy: So dois contra um. Isso no o assusta?Lewis: A vantagem est sempre do lado da verdade.

  • Huxley: Cuidado com esse homem, Jack. Ningum jamais conseguiu intimid-lo em debate. Ele um G. K. Chesterton, um George Bernard Shaw.

    Lewis: Agradeo, mas a comparao duplamente inexata.

    Huxley: Pronto! L vai ele de novo! Lewis: Primeiro, que Shaw e Chesterton foram gigantes; segundo, que eles eram espirituosos. Eu no sou nem uma coisa nem outra.

    Kennedy: O que voc , nesse caso?Lewis: Apenas um cristo comum, tentando pensar

    com clareza.

    Huxley: Est vendo s, Jack? Ele um Scrates. Falsa humildade!

    Lewis: Falsa, no.Huxley: Ento voc humilde de fato, hein? E

    orgulha-se disso, sem dvida!

    Kennedy: Vocs ingleses no poderiam parar com essa graa e comear o debate? Estou ansioso para ouvir a defesa que Lewis far da autoridade.

    Huxley: Pode comear, Lewis. Prometo ser um ouvinte silencioso por algum tempo.

    Lewis: Por favor, pode entrar hora que quiser. Bem, eu prefiro no defender a autoridade em geral; somente a autoridade pela qual creio no cu e no inferno, que foi a questo com a qual comeamos. Essa autoridade a autoridade de Jesus Cristo. No a autoridade e sim Cristo que o centro de minha f, e se chegarmos a sair deste lugar e ir para o cu, ser Ele o caminho para sairmos daqui e entrarmos l. Assim sendo, a questo de Cristo tem a primazia, tanto terica quanto praticamente.

    Kennedy: Eu tambm creio em Cristo, mas no me sinto vontade com o conceito de autoridade em relao a Ele. Ele no disse que a Sua nica autoridade era o amor?

    Lewis: Onde est registrado que Ele falou isso?

  • Kennedy: Bem... algo parecido, de qualquer forma. O ponto aqui que eu tambm sou cristo, mas de um tipo diferente do seu, e acho que mais amadurecido um que no requer tanta dependncia de autoridade como voc faz. Talvez se tivesse sido presidente alguma vez tambm viria a desconfiar da autoridade.

    Lewis: Voc j no desconfiava da autoridade antes de passar a t-la?

    Kennedy: Bem... sim.Lewis: Por que voc tem essa desconfiana em relao

    autoridade?

    Kennedy: Por parecer uma fuga, uma entrega de sua mente a outrem, um pulo s cegas no escuro, uma muleta, um retorno ao ventre materno. a maneira fcil de permitir que os outros lhe digam o que pensar.

    Lewis: Voc realmente acha que esse o motivo por trs de minha aceitao da autoridade de Cristo?

    Kennedy: No alego julgar voc e seus motivos pessoalmente, Lewis, mas, sim, esses me parecem, em geral, os motivos para o autoritarismo.

    Lewis: Vamos deixar isso de lado por ora, em lugar de nos aprofundarmos na psicanlise. Vamos supor que esses tenham sido os meus motivos (no estou dizendo que so); isso leva voc a concluir que minhas crenas antiquadas no so verdadeiras?

    Kennedy: Se essas forem as nicas razes pelas quais voc acredita, sim.

    Lewis: Isso no falcia gentica?Huxley: Isso significa determinar a veracidade ou

    falsidade de uma idia por sua origem, sua gnese.

    Kennedy: Eu sabia isso. Sabe, eu estudei na Universidade de Harvard. Nem tudo a oeste de Oxford terra de ndio.

    Huxley: Desculpe. Estava s tentando ajudar.

  • Lewis: E ento, voc no cometeu a falcia gentica?Kennedy: Para falar a verdade, no estou certo de que

    seja uma falcia. Se eu acreditasse em alguma coisa sem ter uma boa razo, no seria o bastante para que voc descontasse a minha crena?

    Lewis: Mas isso no a invalida. Uma idia falsa apenas por deixar de corresponder realidade, e verdadeira apenas por corresponder realidade, e no devido sua origem psicolgica. Eu posso chegar a uma idia verdadeira atravs de um meio no-racional.

    Kennedy: Ento, voc admite que a autoridade irracional.

    Lewis: No admito, no. Eu posso ter uma boa razo para confiar na minha autoridade.

    Kennedy: Tambm no gosto da simplicidade da sua definio da veracidade de uma idia. No acho que se possa definir a verdade de qualquer maneira simples, como "correspondncia realidade". Todo tipo de problema se esconde por trs dessas abstraes polissilbicas.

    Lewis: Quer que eu a coloque em palavras mais simples e concretas de uma s slaba?

    Kennedy: O qu? Lewis: A verdade.Kennedy: Voc quer dizer que definir a verdade com

    palavras monossilbicas?

    Lewis: Exatamente. No inveno minha, de jeito nenhum. Isso j vem desde Aristteles e no nada difcil.

    Kennedy: Est bem, vamos ver qual esta definio nada difcil da verdade em palavras de uma slaba s. Lewis: Aqui vai. Se algum disser que o que , , e o que no , no , essa pessoa fala a verdade; mas se algum disser que o que , no , e o que no , , essa pessoa no fala a verdade.

    Kennedy: Incrvel!Lewis: Porm verdadeiro.

  • Kennedy: E mesmo. Uma obra prima de simplicidade.

    Lewis: Alegro-me por ver que voc reconhece o toque de gnio. E a verdade.

    Kennedy: Mas mesmo que eu saiba o que a verdade, ainda no sei por que a falcia gentica uma falcia.

    Lewis: Porque uma idia verdadeira ainda pode ter uma causa no racional.

    Kennedy: D-me um exemplo.Lewis: Com prazer. A maioria das pessoas na Idade

    Mdia aceitava as duas idias de que a Terra era redonda e de que o universo era incrivelmente enorme apenas devido autoridade de Ptolomeu, da mesma forma que aceitavam a idia de que o Sol revolvia em torno da Terra, ao invs de a Terra revolver ao redor do Sol por causa de Ptolomeu, no por terem provado isso por si mesmos. No entanto, as duas primeiras idias eram verdadeiras, ao passo que a terceira era falsa.

    Kennedy: Espere um minuto. Esse exemplo no falso? Na Idade Mdia, todo mundo no pensava que a Terra era plana? E que o universo era pequenino e aconchegante? No foi a cincia moderna que devassou o universo e fez com que ficasse to difcil de acreditar num plano divino providencial para este planetinha remoto?

    Lewis: Desculpe, Jack, mas voc est simplesmente mal informado acerca disto. A maior parte do mundo moderno est, sabe? Quase todo aluno aprende o que ensinaram a voc, e isso simplesmente no verdade.

    Kennedy: Voc pode provar isso?Lewis: Sim. Leia o Almagest de Ptolomeu, Livro I,

    seo 5. Ele o texto de astronomia cuja autoridade, todo mundo aceitava na Idade Mdia.

    Kennedy: Olhe que isso um choque para mim, e eu estudei em Harvard. De qualquer forma, o ponto que este seu exemplo tenta provar ...?

  • Lewis: Que voc no pode decidir se uma idia verdadeira ou falsa simplesmente por saber que algum que a aceita o faz por motivo racional ou no racional. Mesmo voc achando que a autoridade um motivo no racional para se aceitar uma idia, a idia em si pode ser verdadeira, do mesmo modo que as duas primeiras idias de Ptolomeu eram.

    Kennedy: claro. Entendo. Mas o certo ainda parece ser desconfiar de sua fcil dependncia da autoridade. Acho que voc faz isso porque precisa de uma muleta intelectual uma me substituta, talvez. Voc no perdeu a sua quando ainda era bem jovem?

    Lewis: Sim, e eu poderia igualmente argumentar que voc detesta a autoridade devido exasperao de ter de viver sob a tutela de seu pai autoritrio. Est vendo, dois podem jogar esse jogo, e as suspeitas pessoais simplesmente se anulam mutuamente. Resta-nos apenas o assunto objetivo.

    Kennedy: Vamos a ele, ento. Justifique a argumentao baseada na autoridade.

    Lewis: Quero primeiro estabelecer a diferena entre a autoridade humana e a divina. Embora respeite a autoridade humana, no quero basear nela meu argumento como se fosse uma premissa incontestada. Um chavo entre os filsofos medievais era...

    Kennedy: Aqueles ditadores!Lewis: Muito pelo contrrio. O chavo era: "O

    argumento baseado na autoridade o mais fraco dos argumentos."

    Kennedy: Os medievais disseram isso?Lewis: Sim. Eles eram bastante racionais, ao contrrio

    da superstio popular corrente acerca deles.

    Kennedy: O que eles queriam dizer com autoridade?Lewis: No o que a maioria das pessoas hoje quer

    dizer, isto , poder. Obviamente, o uso do poder para

  • resolver uma discusso uma falcia. Isso chamado de o argumentum ad baculam, ou seja, o "argumento do bculo". O argumento baseado na autoridade pode ser fraco, mas um argumento e no uma falcia, porque autoridade no significa poder.

    Kennedy: Ento, o que significa?Lewis: A raiz da palavra quer dizer o que "certo,

    baseado na origem". o autor quem tem autoridade, os direitos autorais. A autoridade de Cristo ( a respeito dela que estamos falando, no ?) est baseada na identidade dele como Autor divino do mundo. O Autor entrou na histria como um de seus personagens.

    Kennedy: isso que no consigo engolir essa teologia fora de moda que diz que Deus desceu do cu como um meteoro.

    Lewis: Muito bem, ento. Vamos ser bem especficos. Quem Jesus, de acordo com a sua f?

    Kennedy: O homem-ideal; o homem to perfeito e sbio que seus seguidores diziam que ele era divino. No Deus que se fez homem, mas o homem que se fez Deus.

    Lewis: Um resumo, muito bem feito da cristologia humanista; mas voc achaque isso cristianismo?

    Kennedy: O cristianismo antigo, no; o cristianismo moderno, sim. A nica forma em que o homem moderno pode crer sem pr de lado sua honestidade intelectual. Ouvi certo pregador expressar esse dilema da seguinte maneira: voc pode ser um cristo honesto, ou inteligente, ou do tipo medieval, ou quaisquer dois desses trs, mas no os trs. O que me diz disso?

    Lewis: Brilhante, mas essa mesma farpa pode ser usada para ferir qualquer um. Posso dizer que se pode ser honesto, ou inteligente ou modernista, ou quaisquer dois dos trs, mas no os trs. A questo essencial, independente da sutileza do debatedor, a identidade de Jesus Cristo. Vamos nos concentrar sobre esse ponto.

  • Kennedy: Est bem. Quem Jesus?Lewis: Deus que se fez homem.Kennedy: Literalmente?Lewis: Sim.

    Kennedy: Como que pode, voc, um homem culto do sculo vinte, assumir uma posio assim to antiquada?

    Lewis: Diferente da sua, nova e moderna?Kennedy: Sim.

    Lewis: Por um lado, sua nova posio mais velha que andar para a frente. Ou, pelo menos to velha quanto rio.

    Kennedy: Quem?

    Lewis: rio, um herege do sculo quatro que carregou consigo metade da igreja, mesmo aps o Concilio de Nicia ter tratado do assunto, afirmando clara e vigorosamente a divindade de Jesus. A mesma coisa est acontecendo hoje de novo com o modernismo e o humanismo. Seu cristianismo, que voc chama de novo, nada mais que a antiga heresia ariana em roupagem moderna.

    Kennedy: Olhe aqui, no vamos comear a trocar insultos.

    Lewis: No o insultei de forma alguma; o que fiz foi dar nome certo sua posio.

    Kennedy: Gostaria que voc parasse de usar rtulos como esse de herege.

    Lewis: Usei o rtulo de heresia, no herege. A posio, no a pessoa.

    Kennedy: Ah! Entendi. A antiga distino entre "odiar o pecado e amar o pecador".

    Lewis: isso mesmo.Kennedy: Ainda assim, gostaria que pudssemos

    evitar esse rtulo.

    Lewis: Por qu?

  • Kennedy: Ele ... to... to antiquado. To retrgrado. To medieval. To primitivo.

    Lewis: Jack, para saber que horas so, voc usa um argumento?

    Kennedy: O qu?

    Lewis: O que eu disse foi: voc usa um argumento para saber que horas so?

    Kennedy: Mas o que que voc quer dizer com isso?Lewis: Quando voc quer saber que horas so, para

    que voc olha: um argumento ou um relgio?

    Kennedy: Um relgio, claro.Lewis: E para que que voc usa um argumento, se

    no para saber as horas?

    Kennedy: Para provar alguma coisa, ora essa. Ou, pelo menos, para tentar provar.

    Lewis: Algo falso ou algo verdadeiro?Kennedy: Algo verdadeiro.Lewis: Ento, voc usa o relgio para saber as horas e

    um argumento para saber a verdade.

    Kennedy: Entre outros meios, sim.Lewis: E no vice-versa?Kennedy: No.

    Lewis: Mas voc estava tentando usar o relgio para saber a verdade agorinha mesmo.

    Kennedy: O relgio para saber a verdade?Lewis: Quando quero refutar uma idia, tento provar

    que ela falsa. Seu argumento contra minha idia de que sua crena era heresia foi apenas o de que minha idia era antiga. Antiquada, foi o que disse. Medieval e primitiva foram outros dois termos que usou. Todas essas palavras esto ligadas ao relgio, ou ao calendrio. (Afinal de contas, os

  • calendrios nada mais so do que relgios grandes e compridos.)

    Kennedy: Estou vendo que Aldous fez bem em me prevenir contra voc! Muito bem, meu amigo.

    Se deseja ser to lgico, eu o desafio: prove logicamente para mim que Jesus Deus e no um mero homem.

    Lewis: Est bem.Kennedy: O qu?

    Lewis: Eu disse apenas: "Est bem." Por que tanta surpresa?

    Kennedy: Pensei que voc fosse dizer algo sobre mistrios e f e autoridade e a igreja. Quer dizer que vai tentar chegar velha f atravs da razo?

    Lewis: Eu no; eu j cheguei l. Mas levar voc, talvez.Kennedy: Voc chegou a ela atravs da razo? Voc

    chegou sua crena apenas atravs da razo?

    Lewis: Apenas da razo? Claro que no. Mas eu raciocinei antes de crer. E depois que eu tambm passei a crer isto , uma vez que acreditei, fui convencido pela forma como a razo confirmava a f. Ela no podia provar tudo, mas podia oferecer fortes argumentos para muitas coisas, e podia responder a todas as objees.

    Kennedy: Todas as objees?Lewis: Certamente.Kennedy: Isso me parece bem arrogante. Quem voc

    para responder a todas as objees?

    Lewis: No, no. No estou dizendo que eu posso responder a todas as objees, mas que a razo pode que todas as objees so refutveis.

    Kennedy: Por que pensa assim?Lewis: Se a verdade uma s, se Deus o autor de

    toda a verdade, tanto a verdade da razo quanto a verdade

  • da f (estou falando da revelao divina), ento no pode jamais haver um argumento contra a f que seja eficaz, irrefutvel. A f pode ir alm da razo, mas no pode jamais simplesmente contradizer a razo.

    Kennedy: Que posio mais estranha! Tanta f na razo!

    Lewis: Justino o Mrtir, Clemente de Alexandria, Santo Agostinho, Santo Anselmo, So Toms de Aquino... Kennedy: O que isto? Uma chamada? Lewis: Somente alguns nomes do passado que ensinam esta "posio mais estranha". Foi a posio principal por mais de mil anos, antes da atual perda de f em tudo, inclusive na razo.

    Kennedy: Estou simplesmente abismado. C estou eu, face a face com um dinossauro.

    Lewis: Voc vai argumentar pelo relgio de novo?Kennedy: No. Usarei a sua arma, a lgica, para o

    duelo. Pode argumentar vontade!

    Lewis: No minha arma. A lgica no tem dono. Nessa rea, nossos direitos so absolutamente iguais, Sr. Presidente.

    Kennedy: Mais um ponto para voc. Eu sabia que era suicdio argumentar com um polemista.

    Lewis: No para mim o ponto, Jack, mas para a verdade. Para mim, a nica razo para este debate no eu ou voc ganharmos, mas sim a verdade sair vencedora; no para ver quem verdadeiro, mas sim o que verdadeiro. De fato, no argumentarei " vontade" a menos que voc esteja de acordo comigo nisto.

    Kennedy: Estou sim.Lewis: Que bom. Eu sabia que tinha diante de mim

    um homem honesto.

    Kennedy: Naturalmente.Lewis: No, no "naturalmente". A honestidade

    muito difcil, e muito rara e muito preciosa.

  • Kennedy: Tenho de concordar. Conheo psicologia o bastante para saber que os mecanismos de auto-iluso so muito, muito hbeis. Mas vamos ao argumento essencial que voc prometeu. Voc disse que provaria que Jesus era divino.

    Lewis: Sim. O argumento no originalmente meu. A bem da verdade, a maior parte do que pensei e escrevi tambm no . Sou um ano em p sobre os ombros de gigantes, como diziam os medievais. Essa a chave para uma viso hipermetrpica: bons professores. Meus professores neste caso so alguns dos cristos primitivos, e este foi um dos primeiros argumentos que eles usavam em sua apologtica. Para mim, este o argumento mais importante em toda a apologtica crist.

    Kennedy: Por qu?

    Lewis: Porque prova a divindade de Cristo; e essa a doutrina centralmente importante por dois motivos.

    Kennedy: Que so...Lewis: Primeiro, o princpio da chave-mestra: ela abre

    todas as outras portas doutrinrias.

    Kennedy: Quer dizer que, uma vez que se creia nisso, todo o restante se encaixa?

    Lewis: No, tudo o que ele diz se encaixa. A maioria dos cristos ortodoxos como eu acredita em todas as doutrinas de sua f no por estarem calcados em seu prprio raciocnio ou por experincia pessoal de cada doutrina separada (pelo menos, no a princpio: a razo e a experincia podem confirm-las, ou algumas delas, mais tarde), mas calcados na autoridade de Cristo.

    Kennedy: Voc est falando daquela mania protestante? S eu e Jesus?

    Lewis: Isso uma digresso, e nem mesmo muito exata. Uma digresso do "cristianismo puro e simples" que estamos discutindo, e inexata porque a maioria dos protestantes no limita a religio ou a autoridade religiosa a

  • "s eu e Jesus". Eles acreditam que a autoridade de Cristo chega at eles primeiro atravs das Escrituras e depois atravs da igreja, ao passo que os catlicos invertem essa ordem, argumentando que a igreja escreveu as Escrituras. Mas assim estamos nos afastando de nossa questo principal.

    Kennedy: Isso mesmo. Voc falou de duas razes pelas quais a divindade de Cristo central. A primeira foi aquela da chave-mestra. Qual a segunda?

    Lewis: O destino da vida humana est em jogo.Kennedy: Como assim?Lewis: Este obviamente um enorme problema.

    Tentarei resumi-lo e simplific-lo. Comecemos com o princpio bsico da causalidade: voc no pode dar o que no tem ou, o que quer que seja que esteja presente no efeito, tem de se encontrar tambm na causa. Voc concorda com esse princpio?

    Kennedy: Claro. Saiba que eu tambm estudei filosofia.

    Lewis: Jamais subestimei sua capacidade mental. Bem, se Cristo no divino, no pode dar divindade ou vida divina, pode?

    Kennedy: No. Mas no essa a funo dele. Sua funo a de ser a vida humana perfeita.

    Lewis: E nesse caso, o destino humano simplesmente o de ser humano, e no o de ser transformado, levado nos movimentos da dana divindade-e-humanidade em uma.

    Kennedy: No d para voc dizer isso menos poeticamente?

    Lewis: Sim. Nascemos para nos tornarmos grandes homens ou pequenos deuses?

    Kennedy: Percebo o problema. Mas sou basicamente humanista; para mim, a idia de um ser humano atingir a

  • divindade mitologia, apropriada para um grego antigo mas no para um homem moderno. No. No estou argumentando pelo relgio de novo, mas voc ainda no provou que Jesus era divino.

    Lewis: "Era divino", no; " divino".Kennedy: Est bem. Uma questo de exatido

    gramatical.

    Lewis: No, a questo crucial. No mero problema de palavras, ou de tempos verbais certos.

    Kennedy: Explique.Lewis: A vida divina imortal. Um Cristo divino no

    est morto; ele no est no passado morto, mas vivo no presente vivo. Penso que os anjos que estavam no sepulcro vazio daquela manh de Pscoa falaram no somente s mulheres que foram procurar ali o corpo de Jesus, mas a todos os cristos modernos como voc desde ento at hoje ao perguntarem: "Por que buscais entre os mortos ao que vive?"

    Kennedy: Acredito que ele ainda esteja vivo, da mesma maneira que Scrates e Csar e Lincoln ainda esto vivos no esprito de todos os seus seguidores.

    Lewis: O cristianismo insiste em mais que isso. Ele est vivo da mesma maneira que voc e eu estamos vivos. To verdadeiramente vivo e presente quanto eu.

    Kennedy: Ento, onde est ele? Mostre-mo.Lewis: Voc acha que o guardo no bolso, que posso

    tir-lo dali para exibi-lo hora que voc quiser?

    Kennedy: Ento, como que voc vai poder provar que ele est vivo, e imortal e divino? Voc um mero homem, raciocinando com meras palavras acerca de uma pessoa ausente e invisvel que morreu h muitos sculos.

    Lewis: O problema do como outra digresso. toda a questo da metodologia. A maior parte da filosofia do sculo passado apegou-se a essa digresso, a "perguntas

  • secundrias", a perguntas acerca de perguntas, perguntas sobre como provar as coisas em lugar de perguntas acerca de coisas reais.

    Kennedy: Acho que minha pergunta honesta e legitima, e exijo uma resposta.

    Lewis: A nica resposta a prpria prova. A nica forma de mostrar que alguma coisa possvel, e como possvel, mostrando que realmente existe. A nica maneira de provar que algo pode ser provado provando.

    Kennedy: Prove, ento. Chega de digresses.Lewis: Aut deus aut homo malus.Kennedy: Que isso? Estamos falando em lnguas

    estranhas agora ou o qu?

    Lewis: essa a minha prova, ou pelo menos o seu resumo. latim e quer dizer...

    Kennedy: Eu sei. Estava s brincando. "Ou Deus ou um homem mau." Mas, como que isso uma prova?

    Lewis: Vamos examinar a lgica dessa assero. A primeira premissa a de que Cristo deve ser Deus, conforme ele diz ser, ou um homem mau, se no quem diz ser. A segunda premissa a de que ele no um homem mau. A concluso a de que ele Deus.

    Kennedy: A forma lgica parece ser correta, mas por que devo aceitar qualquer uma dessas premissas?

    Lewis: Quanto segunda premissa, at mesmo seus oponentes geralmente no dizem que ele era um homem mau. Eles tentam fazer parecer que ele foi apenas um homem bom a quem seus discpulos "divinizaram". Mas a primeira premissa declara que "apenas um homem bom" a nica coisa que ele no podia de forma alguma ter sido.

    Kennedy: Por qu? Prove a primeira premissa. A est o xis da questo. A segunda no to importante.

    Lewis: Certo. Considere isto: Cristo reivindicou ser o "Filho de Deus". Lembre-se do que est subentendido nisso.

  • Kennedy: O qu?

    Lewis: Qual a coisa mais importante que um pai d ao filho?

    Kennedy: Amor, eu acho.Lewis: Tente de novo.Kennedy: Educao? Cuidado? Tempo?Lewis: Tudo isso s pode ser dado se o dom principal

    tiver sido dado primeiro.

    Kennedy: Voc est falando da existncia.Lewis: Sim. E que tipo de existncia?Kennedy: Existncia humana, naturalmente.Lewis: Sim. Existncia humana, vida humana,

    natureza humana. Os pais humanos do humanidade aos filhos. E que os pais ostras do aos rebentos ostras?

    Kennedy: Natureza de ostra.Lewis: Uma deduo brilhante! E os pais lobos do

    natureza de lobo aos filhotes lobos. E os pais marcianos do natureza marciana. Assim, o filho de uma ostra o qu?

    Kennedy: Uma ostra.Lewis: E o filho de um lobo ...Kennedy: Um lobo. E o filho de um marciano

    marciano.

    Lewis: E o Filho de Deus?Kennedy: , estou vendo. O ttulo parece mesmo

    indicar divindade, no ?

    Huxley: Voc est entregando os pontos com muita facilidade, Jack. Na realidade, o termo filho de Deus usado s vezes na Escritura para referir-se s criaturas. Os anjos so chamados de filhos de Deus em alguns lugares, e todos os cristos so chamados de filhos de Deus.

  • Lewis: Vamos ver algumas das outras coisas que Jesus disse que mais claramente reivindicam divindade?

    Kennedy: Antes de examinarmos isso, gostaria de esclarecer bem a lgica do argumento. Suponhamos que Jesus realmente se tenha arrogado a divindade. Isso no prova que ele era divino. Muita gente reivindica coisas que no lhe pertencem.

    Lewis: Mas um mero homem que afirmasse ser Deus no seria um homem bom, voc no percebe?

    Kennedy: Hummm. O que ele seria, de acordo com o seu modo de pensar?

    Lewis: Um homem mau, exatamente como diz o argumento.

    Kennedy: Suponha que ele estivesse simplesmente confuso?

    Lewis: Ento ele seria intelectualmente mau. Veja, ou ele acredita em sua afirmao de que Deus, ou no acredita. Acredita-se, ento intelectualmente mau muito mau, de fato, porque essa uma confuso bem grande! E se no acredita no que afirma, ento moralmente mau: um impostor e blasfemador terrvel.

    Kennedy: Bom, e quais so todas as possibilidades?Lewis: Um homem intelectualmente mau, um homem

    moralmente mau, um bom homem ou Deus. Em outras palavras, demente, blasfemador, um cara bonzinho ou Deus. E a nica coisa dessas quatro que ele no pode ser, de forma alguma, a terceira delas. Mas isso o que voc e milhes de outros humanistas acham que ele foi.

    Kennedy: O argumento certinho demais. Simplesmente no consigo tolerar esse modo preto-e-branco de pensar.

    Lewis: Esse um fato psicolgico interessante acerca de seu temperamento pessoal, mas no refuta meu argumento, sabe? No se responde a um argumento

  • dizendo que no se gosta dele, ou que no se gosta de argumentos, ou que no se tolera a clareza.

    Kennedy: No a clareza que no tolero. o modo preto-e-branco de pensar.

    Lewis: Esse segundo no apenas uma maneira potica de se dizer o primeiro? O que voc quer dizer com modo preto-e-branco de pensar se no clareza?

    Kennedy: Que ele simplesmente no relevante para o mundo. O mundo real cinzento. No h absolutos, no h preto ou branco.

    Lewis: Voc no respondeu minha pergunta, mas deixarei isso passar. Aparentemente, voc est falando mesmo de "clareza" quando fala de "modo preto-e-branco de pensar". E dizer que "no h absolutos" parece uma assero bem absoluta. Finalmente, acho que posso convenc-lo de que h algumas coisas que so pretas ou brancas.

    Kennedy: Quero s ver. Diga uma.Lewis: Direi duas.Kennedy: Verdade?

    Lewis: Sim. O preto e o branco.Kennedy: Isso s um truque.Lewis: No , no. o mesmo que dizer que "no h

    absolutos". Uma coisa contradiz a outra. No pode ser verdade.

    Kennedy: Mas todos aqueles tons cinzentos...Lewis: O que o cinzento seno a combinao do

    preto e do branco?

    Kennedy: Mas estamos discutindo uma pessoa, no cores. A ilustrao no relevante.

    Lewis: Concordo.Kennedy: O qu?

  • Lewis: Concordo. Foi voc que a introduziu, no eu.Kennedy: O que quero dizer o seguinte: como pode

    falar acerca de uma pessoa em categorias to rgidas, extremas e alternativas?

    Lewis: No caso dele, a gente tem de fazer isso. Ele nos fora a tomar uma de duas posies extremas pela reivindicao que faz, a mais extrema jamais feita por quem quer que seja. Kennedy: Bem, eu no me sinto forado a chegar aos seus extremos.

    Lewis: Olhe: suponha que eu asseverasse ser o maior escritor do sculo vinte. O que pensaria de mim?

    Kennedy: Ora, que voc era intoleravelmente arrogante.

    Lewis: Sim. Mas no exatamente louco?Kennedy: No necessariamente.Lewis: Agora, suponha que eu asseverasse ser o mais

    notvel ser humano que jamais houvesse pisado a face da Terra mais sbio que Salomo, mais erudito que Buda, mais santo que qualquer dos santos. O que voc pensaria de mim nesse caso?

    Kennedy: Que era um tolo incrivelmente egosta.Lewis: Um pouco mais prximo da demncia, certo?Kennedy: Provavelmente mais para l do que para c. Lewis: Muito bem. Agora, suponha que eu afirmasse

    ser Deus o Deus que criou voc e todo este universo, a Mente csmica ou Logos que sempre existiu. Suponha que eu asseverasse ser seu Salvador, perdoar seus pecados, salvar sua alma do inferno e lev-lo para o cu, sendo que para isso voc s precisava crer em mim e me adorar. Suponha que eu dissesse ser absolutamente destitudo de pecado, e que ressuscitaria dos mortos, e que por eu ressuscitar, voc tambm o faria. O que pensaria de mim ento?

    Kennedy: Se voc dissesse isso?

  • Lewis: Sim.

    Kennedy: Que era louco varrido, se realmente acreditasse nisso. Qual o princpio que est tentando provar?

    Lewis: Que a diferena entre o que voc realmente e o que diz ser uma medida de sua insanidade.

    Kennedy: Entendo. Ento, isso teria de funcionar para as ocasies em que voc diz ser menos do que bem como nas que diz ser mais.

    Lewis: E funciona mesmo. Se eu dissesse que era o homem mais idiota e malvado do mundo, voc diria que eu estava sofrendo de um tremendo complexo de inferioridade. Se eu dissesse que na realidade era um macaco e no um homem, voc diria que eu estava louco. Se eu dissesse que era uma chaleira, acharia que eu estava mais louco ainda. Certo?

    Kennedy: Certo.

    Lewis: E a distncia que separa Deus das criaturas maior que qualquer outra, qualquer distncia que possa haver entre duas criaturas quaisquer, porque infinita. Certo?

    Kennedy: Certo.

    Lewis: Assim, segue-se que a maior loucura possvel seria a de dizer-se Deus.

    Huxley: Do licena de dar um palpitezinho aqui? Acho que posso ajud-lo a sair dessa, Jack. Sabe, a alegao de ser Deus no to chocante quanto parece para vocs ocidentais. No hindusmo...

    Kennedy: Aldous, ser que d para esperar um pouco mais antes de voc dar sua interpretao oriental de Jesus? Eu quero muito ouvi-la, mas sou ocidental e quero terminar o argumento em termos ocidentais primeiro, antes de voltar-me para o Oriente com voc.

  • Lewis: Muito bem, Jack. Eu estava com esperana que tivesse peito para dar continuidade ao argumento.

    Huxley: E espero que tenha peito para acompanhar o meu argumento tambm quando eu o apresentar, os dois.

    Kennedy: Estou certo de que ambos teremos. Mas, Lewis, ser que voc pode revisar para ns algumas das reivindicaes divindade feitas por Jesus? Acho que deveramos verificar a correo de nossa informao antes de interpret-la. O que foi, exatamente, que ele disse acerca de si mesmo?

    Huxley: E ser que ele disse mesmo essas coisas? A est um outro problema: at onde podemos confiar nos textos bblicos?

    Lewis: Vamos reunir nossos dados, sem dvida. O que disse ele? E quanto questo de se ele realmente disse isso, Aldous, no seria melhor tratarmos do problema da exatido dos textos separadamente? Uma coisa de cada vez.

    Kennedy: Isso mesmo. Uma coisa de cada vez. Mas j que tanto o Aldous como eu duvidamos da exatido histrica dos textos, qualquer um de ns dois poder atacar o problema da exatido dos mesmos quando este surgir. Acho que prefiro deixar o Aldous tratar disso como parte da argumentao dele. Ele sabe mais do que eu a respeito de textos.

    Lewis: Est bem assim. Tomando os textos assim como esto, vamos reunir as informaes. Aqui esto algumas citaes: "Eu e o Pai somos um." "Quem me v a mim, v o Pai." "Eu sou a ressurreio e a vida. Quem cr em mim, ainda que morra, viver; e todo o que vive e cr em mim, no morrer, eternamente." "Eu sou o po da vida." "Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ningum vem ao Pai seno por mim." "Perdoados esto os teus pecados."

    Kennedy: Espere um pouco. Como que essa ltima afirmao uma reivindicao divindade? Eu tambm haveria de querer perdoar os pecados dos outros. E ele no nos ordenou que perdossemos uns aos outros?

  • Lewis: Sim, os pecados cometidos contra a sua pessoa. Por exemplo, h pouco, voc perdoou ao Aldous um pequeno insulto sobre aquilo de Harvard e terra de ndio. Mas suponha que voc o perdoasse por ter insultado a mim!

    Kennedy: Seria rematada idiotice.Lewis: Concordo. Voc percebe o que esse tipo de coisa

    estaria implicando?

    Kennedy: A pessoa que perdoa supe que tem o direito de perdoar.

    Lewis: Sim, e quem tem o direito de perdoar o ofensor?Kennedy: Aquele que foi ofendido.Lewis: isso mesmo. Por isso, a reivindicao feita

    por Jesus de perdoar todos os pecados tomava por certo que ele quem havia sido ofendido em todos os pecados. E quem essa pessoa?

    Kennedy: Entendi. Deus. O autor da lei moral.Lewis: E depois temos a reivindicao suprema

    divindade, a que decide a questo: o sagrado Tetragrama.

    Kennedy: Desculpe, mas essa no entendi. O que o sagrado tetra no seio qu?

    Lewis: O sagrado Tetragrama, a palavra sacra de quatro letras, o nome que nenhum judeu jamais pronunciou por ser o nome de Deus, revelado a Moiss pelo prprio Deus segundo registrado em xodo 3:14. Ningum realmente sabe pronunci-la, porque ningum jamais se atreveu a pronunci-la exceto Deus, e no se escreveu a palavra toda, apenas as consoantes, o Tetragrama. Nas Bblias antigas ela aparecia escrita Jeov, e em algumas mais modernas, Jav. Significa "EU SOU". E Jesus a falou em Joo 8:58: "Em verdade, em verdade eu vos digo: Antes que Abrao existisse, EU SOU."

    Kennedy: No existem muitos nomes que se referem a Deus na Bblia? O que h de to especial com este que nenhum judeu se atreve a pronunci-lo?

  • Lewis: Todos os outros nomes de Deus so nomes que ns lhe damos; este o nome que ele prprio revelou. Todos os outros nomes traduzem o que ele e o que faz em relao a ns: Criador, Redentor, Rei, etc. Mas este fala daquilo que ele em si mesmo: o puro, absoluto ato de ser.

    Kennedy: Ento, por respeito, nenhum judeu o pronunciava?

    Lewis: Mais que respeito. Respeito uma conveno humana. Esta uma necessidade lingstica inerente a essa palavra e que no existe em nenhuma outra. Se Deus tivesse dito que seu nome era qualquer outra coisa Oscar, por exemplo, ou X poderamos pronunciar seu nome sem reivindicarmos ser Deus. Posso dizer: "Ol, Oscar", sem reivindicar ser o Oscar, ou "X" "Y" sem reivindicar ser X. Mas dizer "EU SOU" reivindicar ser esse "EU". o nico nome puramente de primeira pessoa, particular, subjetivo, singular.

    Kennedy: Entendi. Ningum pode diz-lo, exceto seu dono.

    Lewis: Sim. Posso expressar um nome de terceira pessoa, e posso dirigir um nome segunda pessoa, mas s posso possuir o nome de primeira pessoa.

    Kennedy: Pode dar um exemplo disso?Lewis: Expresso-me na terceira pessoa quando digo:

    "Oscar existe" ou "X bom". Dirijo-me na segunda pessoa quando digo: " tu, grande Oscar", "Caro X". Mas "Eu" a nica palavra que jamais podemos expressar ou dirigir, apenas possuir. Somente EU SOU pode dizer "Eu Sou". por isso que essas palavras eram a coisa mais chocante que a lngua humana podia pronunciar, e por essa razo os judeus que as ouviram dos lbios de Jesus tentaram mat-lo, apedrejando-o, e mais tarde conseguiram crucific-lo. A morte era a pena para a blasfmia segundo a lei mosaica. A reao deles foi clara e honesta.

    Kennedy: E a minha no ?

  • Lewis: Francamente, no. Eles enfrentaram o terrvel dilema de Jesus ser uma coisa ou outra. Voc o evita, evitando o raciocnio do tipo "preto-e-branco". Mas este tem de ser o prprio EU SOU falando, ou um homem muito, muito mau que mais do que qualquer outra pessoa, merecia ser morto, de acordo com a lei mosaica.

    Kennedy: Uma lei cruel, de uma poca cruel. No temos necessidade de ser governados por ela, e dizer que ele fez por merecer a execuo.

    Lewis: Mas diramos que ele fez por merecer o encarceramento. Chamaramos o pessoal do hospcio ao invs dos carrascos, no mesmo, se nos deparssemos com algum que verdadeira e literalmente pensasse ser Deus? Voc diria que um homem desses bom e sbio?

    Kennedy: Acho que no. Suponho que ele fosse louco. Eu, na verdade, no quero assumir a posio de que Jesus foi um louco gostaria de dizer que ele foi um homem sbio e bom mas no sei de que outra maneira poderia evitar a sua lgica.

    Lewis: No a minha lgica, est lembrado? E por que voc iria querer evit-la?

    Kennedy: Voc tem um pendor para fazer perguntas embaraosas. Bem, s para completar a lgica do seu argumento, pode provar a segunda premissa, a de que Jesus no era um homem mau, um louco?

    Lewis: Se eu fizer isso, voc sabe o que se segue, no sabe?

    Kennedy: O que quer dizer?Lewis: Ora, j provamos a primeira premissa: Jesus s

    pode ser Deus ou um homem mau. Se provarmos tambm a segunda premissa, a de que Jesus no um homem mau, ento voc precisa aceitar minha concluso de que ele Deus.

  • Kennedy: Acho que estou comeando a perceber por que desejo evitar a lgica. Mas continue. Prove a segunda premissa.

    Lewis: Est bem, mas a prova no vai ser do tipo "preto-e-branco", como voc diria. Depender de sua compreenso intuitiva da natureza e da personalidade humanas.

    Kennedy: Isso me est soando perigosamente vago e subjetivo.

    Lewis: H um minuto atrs, voc estava reclamando por eu usar prova do tipo oposto, um argumento definido, ou isto/ou aquilo, preto-e-branco. No h como agrad-lo!

    Kennedy: Acontece apenas que desconfio de alguns tipos de prova, em geral.

    Lewis: Ah! sim. Sabe, essa uma maneira fcil de evitar defrontar-se com uma prova especfica: impugnar "esse tipo de prova em geral" de maneira vaga. No seria mais justo ouvir a prova primeiro? Pode muito bem ser que haja algumas provas muito fortes baseadas na intuio. Como que pode ter certeza de que esta no uma delas a menos que a examine?

    Kennedy: Est bem, estou de olhos abertos. O que voc tem para mostrar?

    Lewis: Se se recorda dos Evangelhos, lembra-se de que Jesus no saiu reivindicando ser divino, clara e inequivocamente, desde o princpio. Ele permitiu antes que seus discpulos viessem a conhec-lo como pessoa humana. Ele apelou para seus detectores humanos de credibilidade.

    Kennedy: Seus o qu?Lewis: Esta a parte intuitiva. Todos ns temos

    aptides inatas, intuitivas, para detectarmos as pessoas dignas de credibilidade, ou confiveis, e as que no so.

    Kennedy: Isso eu compreendo.

  • Lewis: Jesus primeiro estabeleceu sua credibilidade humana junto a seus discpulos. S ento reivindicou divindade, dentro desse contexto de credibilidade. Assim, precisamos examinar tal contexto.

    Kennedy: Por que precisamos!Lewis: Para avaliarmos criticamente a reivindicao

    dele divindade.

    Kennedy: timo! isso mesmo o que quero fazer. Uma f crtica, e no cega; fao questo disso.

    Lewis: Muito bem. Agora, pense: se eu ou voc tivssemos reivindicado o que ele reivindicou, algum acreditaria em ns?

    Kennedy: claro que no.Lewis: Ento, por que tantos creram nele?Kennedy: Talvez por serem apenas camponeses

    ignorantes, pr-cientficos.

    Lewis: Voc j ouviu falar no termo esnobismo cronolgico?

    Huxley: Posso interromper um minutinho? Vamos evitar que o argumento se transforme em troca de insultos. Paulo de Tarso certamente no era um simples campons e Jack certamente no um esnobe.

    Kennedy, Lewis (juntos): No isso o que queremos dizer.

    Huxley: De qualquer maneira, vamos tentar responder indagao de Lewis: "Por que tantos acreditaram em Jesus?" examinando um caso paralelo. Por que tantos creram em Gautama Buda quando ele reivindicou algo igualmente incrvel?

    Lewis: Boa pergunta (embora eu no ache que sua reivindicao tenha sido to incrvel quanto a de Jesus).

    Huxley: Que me responde a isso, Jack?

  • Kennedy: Tem de ser a mesma que funcionou para Jesus: sua credibilidade como ser humano.

    Huxley: Vocs percebem os dois quo incrvel era o que Buda reivindicava? Suponham que lhes dissesse que acabara de receber a suprema revelao ao sentar debaixo de uma rvore e comer a primeira refeio decente em anos; e que o contedo dessa revelao foi de que todos ns estamos vivendo em iluso perptua e total; que tudo o que julgamos ser real , na verdade, irreal, sunyata, vazio o mundo, o prprio ser, o corpo, a alma, o ego, o outro; e que a nica realidade o Nirvana, "extino", que neti... neti... nem isto, nem aquilo, absolutamente indescritvel. Vocs acreditariam em mim se ouvissem isso pela primeira vez de meus lbios agora?

    Kennedy: Claro que no. No acredito nem quando o prprio Buda diz isso.

    Lewis: Se assim, por que algum chegou a acreditar?Huxley: Experincia, meu caro, experincia. Eles

    tiveram experincia prpria daquilo. Nada de autoridade, nem de revelao divina, nem f em Outrem, coisas essas a que vocs cristos recorrem to cegamente.

    Lewis: Mas os primeiros discpulos de Buda ainda no haviam experimentado o Nirvana quando acreditaram nele. Por que creram? E muitas geraes posteriores de discpulos acreditam primeiro e s bem mais tarde experimentam o Nirvana no qual crem. Por que o encontrariam se no o buscassem? E por que buscariam se no cressem em sua existncia?

    Kennedy: Ento, por que acreditaram? Lembrem-se que essa coisa de que estamos falando um ensinamento muito estranho, quase inacreditvel.

    Huxley: Certamente no calcados em alguma autoridade.

    Lewis: Talvez no na autoridade de palavras ou livros ou instituies, mas seguramente foi com base na

  • autoridade do prprio Buda, em sua personalidade e visvel credibilidade.

    Huxley: Bem, verdade. Mas eu no gostaria de chamar isso de autoridade. Diria antes que santidade. Dizia-se que Buda era "um homem santo da cabea aos ps". Se o tivesse conhecido, poderia ter acreditado em qualquer coisa que ele dissesse.

    Lewis: Exatamente. Quer usemos o termo autoridade para isso ou no, uma simples questo de palavras. Mas esse termo foi usado acerca de Jesus tambm. "Porque ele as ensinava como quem tem autoridade, e no como os escribas." Voc acabou de concordar com o que eu disse, Aldous, embora no com a minha terminologia. Os discpulos de Jesus acreditaram no que ele disse porque primeiro acreditaram nele, da mesma forma que os de Buda acreditaram no que ele disse por terem antes acreditado nele.

    Kennedy: Mas ns nunca encontramos gente como Jesus ou Buda. Ser que isto realmente tem relevncia para nossa experincia?

    Lewis: Os princpios de credibilidade tm, isso eu garanto. Permita que d um exemplo tirado de um de meus prprios livros, que fala de uma pessoa comum, no algum como Jesus ou Buda. A situao fictcia, fantasiosa; no passaramos por ela (apesar de que no podemos ter absoluta certeza nem mesmo disso, podemos?). Mas a personagem a que me refiro uma menina normal. do livro O Leo, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, o primeiro volume das Crnicas de Nrnia. Algum de vocs leu? No? Bem, no pensei mesmo que qualquer um dos dois tivesse tempo para coisas srias tal como a fantasia infantil. Estavam demasiado ocupados com distraes fantsticas tais como diplomacia e erudio. ( s meia brincadeira, Jack. Pode abaixar essa mo! trs-quartos de brincadeira com voc, Aldous. Pode abandonar esse olhar escandalizado.) Ento continuemos. A histria comea com quatro crianas inglesas brincando de esconde-esconde num dia chuvoso, dentro de uma casa de campo antiga e

  • enorme, cujo dono era um tal velho e sbio Professor Ari. Lcia, a caulinha, esconde-se em um guarda-roupa que estava em um quarto vazio, e descobre que este no tem fundo, sendo uma entrada para todo um outro mundo, Nrnia. Ela passa pela abertura e envolve-se em algumas aventuras em Nrnia com um fauno e uma feiticeira

    malvada, antes de encontrar o caminho de volta, que passa pelo fundo do guarda-roupa. Quando ela conta aos dois irmos e irm o que aconteceu, eles encontram apenas um guarda-roupa comum com um fundo. Naturalmente, no acreditam nela, e a pequerrucha chora o dia inteiro. Finalmente, hora do jantar, o Professor soluciona o problema, perguntando a Pedro, o irmo mais velho de Lcia: Voc conhece bem a sua irm? (Muito bem.) E voc conhece assim to bem o universo? Tem tanta certeza de que coisas como essa no poderiam possivelmente acontecer? A cincia ou a histria ou a experincia j provaram que impossvel? (Bem, no.) Ora, ento est tudo muito claro: ou Lcia est doida, ou mentindo ou falando a verdade. Se voc a conhece o suficiente para saber que ela no est doida, nem mentindo, e voc no conhece o universo o suficiente para ter certeza de que ela no poderia de forma alguma estar dizendo a verdade, o melhor que tem a fazer acreditar nela. uma simples questo de lgica. "O que ser que lhes ensinam nas escolas hoje em dia?"

    Kennedy: Ensinam-lhes o mundo real, no fantasia. ( s meia brincadeira, Lewis.) Entendi o que quis dizer. Mas seguramente voc no acreditaria em quem lhe viesse contando uma histria dessas. Voc acharia muito mais provvel que a estivesse inventando, da mesma forma que voc inventou a histria toda. Coisas desse tipo simplesmente no acontecem no mundo real. Nem tampouco a descida literal de deuses, ou ressurreies literais dos mortos.

    Lewis: Eu poderia perguntar-lhe a mesma coisa que o Professor Ari perguntou a Pedro: Como sabe disso? A cincia j provou que milagres no podem acontecer? Mas

  • foi essa linha de argumentao que coloquei em outro de meus livros, Milagres ... No, no pensei que o tivesse lido... e agora prefiro seguir a linha psicolgica do argumento at a concluso. Referi-me a Lcia para mostrar que, semelhana de Lcia e de Buda, Jesus diz coisas incrveis, e, da mesma forma que Lcia e Buda, Jesus uma pessoa digna de crdito. Assim, temos de crer em sua inacreditvel reivindicao ou negar sua personalidade digna de crdito, sua credibilidade pessoal.

    Kennedy: Examinenos sua personalidade, ento, embora eu no saiba aonde isso nos levar. Eu tenho algum conhecimento sobre a natureza humana, e a histria humana, e grandes vultos do passado. Voc sabia que tambm escrevi um livro chamado Profiles in Courage ("Perfis em Coragem")? No? Voc tambm no leu o meu? Bem, ento estamos quites. Mas continue com o seu argumento.

    Lewis: Vamos dividir todas as pessoas em quatro categorias...

    Kennedy: Oh! oh! L vamos ns de novo, pensando em preto-e-branco.

    Lewis: Mas seguramente h categorias. A nica dvida a de se so apropriadas, de acordo com a realidade.

    Kennedy: No gosto de divises entre as pessoas.Lewis: Mas todas as categorias so divises,

    classificaes, esboos.

    Kennedy: Colocar as pessoas em classes tem causado um dano enorme em toda a histria humana.

    Lewis: Dividir as pessoas de verdade, sim. Mas no dividi-las mentalmente. Por exemplo, fazer mentalmente a distino entre masculino e feminino bom, e necessrio (como ficaramos confusos se no pudssemos ou no quisssemos fazer isso, como parece ser o que fazem alguns hoje em dia). Mas dividi-las de verdade, isol-las, geralmente ruim. De fato, para uni-las produtivamente a

  • gente precisa dividi-las mentalmente com muita nitidez: vive la difference e tudo o mais.

    Kennedy: Sim, entendo isso. Mas a sua classificao no vai ser assim to bvia e natural, vai?

    Lewis: Espere s para ver. Enquanto isso, no julgue precipitadamente. Voc tambm usa categorias. Por exemplo, voc escolheu apenas grandes vultos, ou homens de grande coragem ao invs de outros, sobre quem escrever seu livro, dividindo assim implicitamente as pessoas em duas categorias.

    Kennedy: Mas foi uma diviso flexvel e no rgida. No houve uma diferenciao simples, preto-e-branco, entre os corajosos e os covardes. As qualidades humanas existem em tons de cinzento, no em preto ou branco.

    Lewis: Concordo.Kennedy: O qu? Voc concorda?Lewis: Claro. Voc por acaso pensou que o fato de eu

    ser lgico me cegava, de alguma forma, para a realidade?

    Kennedy: Francamente, pensei.Lewis: Ser meramente lgico cega a gente para a

    realidade. Ser meramente qualquer coisa cega a gente para a realidade, porque a realidade no meramente uma s coisa, qualquer que seja. A realidade tudo.

    Kennedy: No h uma "simplicidade" especial na lgica? Ela forma pura, sem contedo, mas a realidade contedo.

    Lewis: Certo. E esta discusso tem a ver com o contedo, com personalidades humanas vivas e reais. Isso no impede que a discusso tenha uma forma lgica especial tambm.

    Kennedy: Continue, ento, divida. Evitarei tecer julgamento a respeito at que veja o resultado.

    Lewis: Obrigado. Dividamos a humanidade primeiro nas poucas pessoas tremendamente grandes e sbias,

  • pessoas como Jesus, Buda, Scrates, Lao-Tzu, Moiss, Maom, Confcio, Zoroastro...

    Kennedy: J entendi aonde quer chegar. No precisa continuar essa lista. Mas a linha divisria entre esses poucos e os muitos outros flexvel e no rgida, compreende?

    Lewis: Compreendo sim. Digamos que esses poucos so os sbios, e a vasta maioria da raa humana que sobra c composta dos no-sbios. Embora seja verdade o que voc disse acerca da flexibilidade da linha divisria, essa sabedoria mais uma questo de grau do que de qualidade do tipo preto-ou-branco, e no entanto podemos separar umas poucas pessoas como sendo extraordinariamente sbias, no podemos? E isso mesmo o que fazemos.

    Kennedy: Sim. Mas aconselho-o a definir sbio se quiser que sua argumentao seja lgica e objetiva em lugar de ser apenas uma projeo de suas preferncias pessoais.

    Lewis: Voc tem toda razo. Definirei e descreverei a sabedoria assim que terminar minha classificao.

    Kennedy: At agora, voc mencionou duas classes. E voc disse que ia dividir as pessoas em quatro delas.

    Lewis: Sim. Separemos as pessoas tambm em dois grupos: aquelas que reivindicam ser Deus e as que no fazem isso.

    Kennedy: uma diviso estranha, mas bem clara, penso eu, com exceo do termo Deus.

    Lewis: Sim. Vamos nos restringir ao Deus da Bblia.Kennedy: Isso no tacanhice?Lewis: No estou falando de realmente nos

    restringirmos ao Deus da Bblia embora pudesse argumentar que mesmo isso no restrio ou tacanhice, mas simples realismo, por ser ele o nico Deus verdadeiro. Mas deixemos isso para l. Estou falando de restringir logicamente a definio de Deus a um dos muitos

  • significados possveis do termo, para tornar mais claras as coisas.

    Kennedy: Ainda acho que assim estamos definindo o termo de forma muito restrita.

    Lewis: No queremos que nossos termos sejam ambguos, queremos?

    Kennedy: No.

    Lewis: E como fazer para evitar a ambigidade?Kennedy: Definindo.Lewis: E definir significa restringir, confinar, no

    significa? De-fino e con-fino significam quase exatamente a mesma coisa.

    Kennedy: Sim.

    Lewis: Ento, vamos estabelecer a diferena entre duas classes de pessoas: todas aquelas que reivindicam ser o Deus de que a Bblia fala, e aquelas que no o fazem.

    Kennedy: Voc est querendo dizer agora que s existe um membro da primeira classe? Apenas um homem que tenha reivindicado ser Deus? esse que vai ser o seu argumento?

    Lewis: De forma alguma. H um grande nmero de pessoas que fizeram isso, embora voc provavelmente jamais tenha conhecido qualquer uma delas.

    Kennedy: Quem so?Lewis: A maioria delas est nos hospcios.Kennedy: Ali! sim! O "complexo de divindade".Lewis: Pelo menos, suficientemente comum para

    merecer esse termo tcnico, e um ou dois pargrafos nos manuais das anormalidades psicolgicas. Na verdade, houve at um romance intitulado Os Trs Cristos de Ypsilanti, acerca de um hospcio onde havia trs pessoas que se diziam Deus encarnado.

  • Kennedy: Voc est percebendo, no est, que suas duas classificaes so bem diferentes? Uma das diferenas o fato de a primeira ser uma questo de grau e a segunda no.

    Lewis: Certo. Sabedoria uma questo de grau, mas reivindicar literalmente ser Deus no . Assim, uma das linhas divisrias ser indefinida e a outra no. Agora vamos combinar as duas divises para obtermos nossas quatro classes de pessoas. Na primeira, temos aquelas que no reivindicam ser Deus nem so extraordinariamente sbias: a vasta maioria de ns. Na segunda, temos aquelas que no reivindicam ser Deus e so extraordinariamente sbias: gente como Buda, Scrates, Confcio, Lao-Tzu, Moiss, Maom e os outros. Na terceira, temos aquelas que reivindicam ser Deus e no so extraordinariamente sbias: os dementes. Na quarta, temos aquelas que tanto reivindicam ser Deus como so extraordinariamente sbias.

    Kennedy: E quem voc coloca na Quarta Classe?Lewis: Uma nica pessoa.Kennedy: Foi o que pensei.Lewis: Voc pode se lembrar de alguma outra?Kennedy: No. Mas apenas esta classificao no

    prova que a reivindicao feita por Jesus de ser Deus verdadeira.

    Lewis: No, mas ela amplia e explica a prova da premissa aut deus aut homo malus. Apenas dois tipos de homem reivindicam ser Deus, e um dos dois um tipo de homem mau, no um sbio.

    Kennedy: Mas voc ainda no definiu o sbio. O que um sbio, e o que um complexo de divindade, e por que os dois so incompatveis? Voc precisa responder a essas trs perguntas, ou do contrrio simplesmente classificarei Jesus como sendo um sbio com um complexo de divindade.

    Lewis: Um sbio louco? Isso no quase uma contradio?

  • Kennedy: Preciso de definies concretas. Descries.Lewis: Est bem. Vamos tratar de suas trs perguntas,

    uma de cada vez. Primeira, o que um sbio? Voc quer dizer basicamente a mesma coisa quando fala em sbio, guru, mestre espiritual, santo, etc, certo?

    Kennedy: Certo.

    Lewis: Eu tambm.Kennedy: Ento, defina-os Lewis: Para mim, todos os sbios parecem ter trs

    caractersticas psicolgicas proeminentes. Primeiro, uma percepo ou sabedoria fora do comum.

    Kennedy: Acerca de qu? Qualquer coisa? Ser que um grande cientista fsico um sbio por conhecer a maneira como o tomo funciona?

    Lewis: No. Percepo do carter e corao humanos?Kennedy: Ah! bom. Eu tambm definiria a sabedoria

    dos sbios nessa forma humana. Que interessante. Achei que voc iria enfatizar algum tipo abstrato, especulativo, filosfico de sabedoria.

    Lewis: Os sbios so filsofos, mas filsofos prticos. Sua percepo abrange tanto o discernimento das verdades universais acerca da natureza humana que de certa forma voc poderia chamar de filosofia quanto a percepo das verdades e falsidades particulares do indivduo que voc poderia chamar de filosofia prtica.

    Huxley: Os budistas chamam essa combinao deprajna.

    Lewis: Nem todo mundo tem isso, tem?Huxley: Segundo os sbios orientais, todo mundo tem

    mas somente os iluminados a liberam, ou apercebem-se da sua existncia.

    Lewis: De qualquer forma, essa filosofia prtica somente se manifesta na vida do sbio.

  • Huxley: Certo.

    Kennedy: Existe qualquer maneira objetiva pela qual ns, os no-sbios, podemos encontr-la?

    Lewis: Em primeiro lugar, ela no se expressa por meio de lugares-comuns que todo mundo j conhece. Os sbios raramente proferem clichs. Seu ensinamento desafiador, surpreendente, muitas vezes inquietante. Sua sabedoria lhes granjeia inimigos.

    Kennedy: Sei do que voc est falando. Eles so muito avanados para sua poca, pioneiros, libertadores.

    Lewis: Ento, por que voc acha que so to malquistos? Por que granjeiam inimigos? Voc no acredita que as pessoas desejam ser liberadas?

    Kennedy: Bem, sim, mas... hummm. uma boa pergunta. O que voc acha?

    Lewis: Acho que as pessoas no desejam ser liberadas. No verdadeiramente liberadas, pois isso sempre doloroso.

    Kennedy: Por qu?

    Lewis: Porque a coisa mais necessria para toda verdadeira liberao geralmente muito dolorosa.

    Kennedy: E qual essa coisa?Lewis: A verdade.Kennedy: Mas a verdade uma necessidade humana

    bsica.

    l.ewis: Sim. . Mas nem sempre a desejamos. Os sbios nos dizem as verdades que ningum mais diz. as verdades de que mais carecemos e que menos desejamos.

    Kennedy: E eles so os pioneiros, os progressistas, os liberais que liberam.

    Lewis: No acho que podemos aplicar-lhes categorias polticas.

    Kennedy: Mas eles so pioneiros.

  • Lewis: Sim, mas os radicais de uma gerao tornam-se os conservadores da prxima. Seus ensinamentos inovadores tornam-se os antigos trusmos de sua tradio, da mesma forma que as primeiras estradas do oeste americano tornaram-se modernas rodovias mais tarde.

    Kennedy: Uma boa comparao. Deixarei minhas categorias debaixo do chapu por mais um tempinho. No estou to certo assim de que sejam totalmente inaplicveis aos sbios. Apesar de tudo, eles foram personalidades pblicas. Bem, de qualquer maneira, qual a sua segunda caracterstica para todos os sbios? Lewis: Amor, altrusmo, compaixo, generosidade.

    Huxley: Prajna e kuruna.Kennedy: Que isso?Huxley: Sabedoria e amor, as duas grandes virtudes

    para o budismo.

    Lewis: No somente para o budismo; universalmente, acho. Na Bblia e tambm na filosofia grega.

    Aristteles as chamava de virtudes intelectuais e morais.

    Kennedy: Voc pode descrever karuna mais especificamente?

    Lewis: Com prazer. Karuna o tipo de amor que brota naturalmente dentro da pessoa quando se tem corao grande e aberto. Ele torna a pessoa humilde.

    Kennedy: Humilde? Penso na pessoa humilde como sendo pequena. Voc disse "corao grande".

    Lewis: A palavra humilde vem de hmus, terra. Os sbios tm os ps na terra. Sentem-se vontade com a gente, e fazem a gente sentir-se vontade com eles. Esto com a gente; at mesmo o seu ser um ser paralelo; Marcel o chama de co-esse. Eles no ficam pensando em si mesmos, mas sim nos outros, preocupados com os outros. So altrustas, no por serem pequenos mas por serem

  • vazios, abertos, amplos; sempre tm muito lugar dentro de si para os outros e suas necessidades.

    Kennedy: Sei exatamente o que voc quer dizer. Ns, as pessoas comuns, tentamos ter essa qualidade, mas s conseguimos sucesso parcial, de vez em quando, e com algumas pessoas. Eles parecem ser totalmente abertos, o tempo todo, com todo mundo. uma qualidade muito rara e valiosa, especialmente para um lder pblico.

    Lewis: Se concordamos quanto ao karuna, vamos passar terceira qualidade peculiar aos sbios: a criatividade. No se pode program-los, imprens-los, predizer o que faro, nem control-los. No podem ser classificados em categorias conhecidas.

    Kennedy: Ora, esse tipo de admisso que gosto de ouvir: nada de categorias preto-e-brancas.

    Lewis: Mas cinzentas, que elas no so. No so uma mistura, uma trapalhada, uma confuso; no um pouquinho de sabedoria e um pouquinho de tolice, um pouco de bem e um pouco de mal. No so cinzentas mas coloridas. Outra dimenso.

    Kennedy: Isso mesmo. Esse tipo de criatividade est presente em todos os pioneiros. por isso que eu os chamaria de progressistas, ou liberais.

    Lewis: Ser que voc no acabou de se contradizer? Voc concordou h um minuto que eles no podem ser classificados cm categorias conhecidas. E que categorias so mais conhecidas do que liberais e conservadores, esquerda e direita, radicais e tradicionalistas? E quem eslava falando de raciocnio preto-e-branco? Mdico, cura-te a ti mesmo!

    Kennedy: Mas certamente ser criativo ser novo em vez de antigo, progressista ao invs de reacionrio?

    Lewis: Acho que est sendo uma vtima de sua prpria terminologia. Se fosse conservador, usaria termos tais como tradicionalista x radical em lugar de progressista x reacionrio. Ou eterno x efmero ao invs de estagnado x

  • dinmico. Mas esses termos falam da mesma coisa, sendo a nica diferena as indicaes emocionais de aprovao ou desaprovao.

    Kennedy: Examinemos as pessoas desses sbios em lugar de terminologia abstrata. A classificao de "liberal" surgir naturalmente dos fatos relativos sua personalidade e histria.

    Lewis: Sim, examinemos as suas pessoas. Mas acho que vamos descobrir que nenhum deles classificvel como de Direita ou Esquerda. Scrates, por exemplo, foi executado por uma conspirao na qual estavam reunidas a Esquerda e a Direita: dogmticos que favoreciam o Sistema e cticos anti-Sistema, os "amigos dos deuses" e os novos relativistas, os sofistas. Na realidade, cada grupo classificava o filsofo como sendo amigo do outro grupo, e portanto, seu inimigo. A mesma coisa aconteceu com Jesus, cujos inimigos incluram os dogmticos fariseus e os cticos saduceus.

    Huxley: No deveramos acrescentar que neste caso os dogmticos foram os revisionistas, e os cticos foram os tradicionalistas?

    Lewis: verdade, mas no vamos nos enredar em detalhes.

    Kennedy: Gostaria de ouvir falar deste "detalhe". Pode ser que ajude a superar classificaes rgidas.

    Lewis: Est bem. Resumindo, a questo introduzida por Aldous foi a de que os fariseus acreditavam em mais (especialmente mais leis) e os saduceus em menos, pois acreditavam apenas no Pentateuco, os primeiros cinco livros da Bblia, como tendo sido diretamente inspirados por Deus. por isso que no acreditavam na vida aps a morte, pois ela no mencionada seno mais tarde, em J, nos Salmos e nos profetas.

    Kennedy: De qualquer forma, a questo que Jesus igual aos outros sbios por no se encaixar nas classificaes existentes de Direita e Esquerda?

  • Lewis: Sim.

    Kennedy: Parece-me que em muitos dilemas, eles assumem a posio de Esquerda.

    Lewis: Voc acha que, em alguns dilemas, eles assumem a posio de Direita, ou dos Tradicionalistas?

    Kennedy: Bem, acho que sim. Em alguns. Lewis: E em alguns dilemas, eles no assumem nenhuma dessas posies?

    Kennedy: Sim.

    Lewis: E os dilemas mais importantes so aqueles nos quais eles no assumem posio alguma?

    Kennedy: Sim, tenho de concordar com voc nesse ponto. O estudo que fiz. dos grandes homens de ao deixou-me impressionado com a engenhosidade que demonstraram. Eles no vivem de acordo com as regras. No teriam sobrevivido se tivessem agido assim. Eles se adaptam. So criativos.

    Lewis: isso mesmo. Da a fascinao de se ouvir um dilogo entre eles.

    Kennedy: Acho que voc est pensando em pensadores criativos, ao passo que eu estou pensando em atores criativos, homens de ao. Mas como que os seus pensadores criativos so fascinantes ao dialogar?

    Lewis: Voc nunca sabe com antecedncia que resposta vo dar. Eles no do papinha pr-digerida ou chaves batidos. Pelo contrrio, do a resposta que a pergunta realmente pede. Percebem que a verdadeira pergunta raramente est nas palavras. A verdadeira incgnita no a pergunta em si, mas sim o indagador. Eles respondem a ele, e a resposta de alguma forma d uma reviravolta na situao, de modo que eles questionam o indagador. Este sente-se questionado, desafiado, ao invs de desafiador. por isso tambm que tanta gente sente-se ameaada pelos sbios.

  • Kennedy: Posso seguir at o fim sua linha de raciocnio nesta descrio psicolgica, e ela parece sustentar mais a minha classific