pesquisa indica que, mesmo após a separação da sinagoga da

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84 . JULHO DE 2002 PESQUISA FAPESP 77 Pesquisa indica que, mesmo após a separação da sinagoga da Igreja Católica, as duas religiões mantinham relações bilaterais I HUMANIDADES CIÊNCIAS DA RELIGIÃO ROBINSON BORGES COSTA ~ esar de cristão, o provérbio "diga-me com quem andas que te direi quem és" não poderia ser aplicado nos pri- mórdios do cristianismo. Pesquisa desenvolvida na Uni- versidade Metodista de São Paulo (Umesp) mostra que, ao contrário do que muitos historiadores indicam, os passos de judeus e cristãos continuaram a seguir trilhas comuns mesmo após a separação da Igreja Católica da sinagoga. O projeto, financiado pela FAPESP, revela que as duas religiões promoveram intercâmbios de símbolos, narrativas e tradições religiosas, pelo me- nos até o segundo século. Ou seja: continuaram a andar juntas, mas sendo de crenças distintas. "Nossa questão é saber se os elementos contínuos entre o judaísmo e o cristianismo primitivo desempenha- ram um fator determinante apenas nos primeiros impulsos e elabo- rações cristãs ou se houve intercâmbio mesmo após o cristianismo conquistar autonomia e identidade, motivados por padrões de expe- riência e linguagem religiosa comum': diz Paulo Augusto de Souza Nogueira, coordenador do projeto temático Estruturas Religiosas Convergentes no Judaísmo e no Cristianismo do Primeiro Século. Constituído de sete pesquisadores que trabalham em torno de três eixos, o estudo vai publicar os resultados em livro a ser editado no próximo ano. O ponto de partida é a compreensão de que o nas- cimento do cristianismo não é fruto de rompimento radical com o judaísmo, versão difundida ao longo dos tempos. Com base em do- cumentos literários, em especial das tradições apocalípticas, os pes- quisadores identificaram intensas relações bilaterais do cristianismo com o judaísmo. Segundo Nogueira, a religião de Jesus, seus segui- dores e das gerações seguintes de cristãos tem de ser compreendida a partir de práticas e crenças religiosas judaicas. "Boa parte das análises de história pressupõe que o uso das tra- dições judaicas teria ocorrido nos estágios de formação da tradição religiosa cristã primitiva em via única. Ou seja, fica descartada a possibilidade de que os cristãos e judeus estivessem se influencian- do mutuamente por períodos maiores", afirma. A pesquisa cami- nha na contramão da visão hegemônica de que não houvesse mais influências após a separação. "Perguntamos se as diferenciações institucionais implicaram um corte nos intercâmbios de tradições religiosas': diz. "Não pode-

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84 . JULHO DE 2002 • PESQUISA FAPESP 77

Pesquisaindica que,mesmo apósa separaçãoda sinagoga daIgreja Católica,as duas religiõesmantinhamrelaçõesbilaterais

I HUMANIDADES

CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

ROBINSON BORGES COSTA

~

esar de cristão, o provérbio "diga-me com quem andasque te direi quem és" não poderia ser aplicado nos pri-mórdios do cristianismo. Pesquisa desenvolvida na Uni-versidade Metodista de São Paulo (Umesp) mostra que,ao contrário do que muitos historiadores indicam, os

passos de judeus e cristãos continuaram a seguir trilhas comunsmesmo após a separação da Igreja Católica da sinagoga. O projeto,financiado pela FAPESP, revela que as duas religiões promoveramintercâmbios de símbolos, narrativas e tradições religiosas, pelo me-nos até o segundo século. Ou seja: continuaram a andar juntas, massendo de crenças distintas. "Nossa questão é saber se os elementoscontínuos entre o judaísmo e o cristianismo primitivo desempenha-ram um fator determinante apenas nos primeiros impulsos e elabo-rações cristãs ou se houve intercâmbio mesmo após o cristianismoconquistar autonomia e identidade, motivados por padrões de expe-riência e linguagem religiosa comum': diz Paulo Augusto de SouzaNogueira, coordenador do projeto temático Estruturas ReligiosasConvergentes no Judaísmo e no Cristianismo do Primeiro Século.

Constituído de sete pesquisadores que trabalham em torno detrês eixos, o estudo vai publicar os resultados em livro a ser editadono próximo ano. O ponto de partida é a compreensão de que o nas-cimento do cristianismo não é fruto de rompimento radical com ojudaísmo, versão difundida ao longo dos tempos. Com base em do-cumentos literários, em especial das tradições apocalípticas, os pes-quisadores identificaram intensas relações bilaterais do cristianismocom o judaísmo. Segundo Nogueira, a religião de Jesus, seus segui-dores e das gerações seguintes de cristãos tem de ser compreendidaa partir de práticas e crenças religiosas judaicas.

"Boa parte das análises de história pressupõe que o uso das tra-dições judaicas teria ocorrido nos estágios de formação da tradiçãoreligiosa cristã primitiva em via única. Ou seja, fica descartada apossibilidade de que os cristãos e judeus estivessem se influencian-do mutuamente por períodos maiores", afirma. A pesquisa cami-nha na contramão da visão hegemônica de que não houvesse maisinfluências após a separação.

"Perguntamos se as diferenciações institucionais implicaramum corte nos intercâmbios de tradições religiosas': diz. "Não pode-

A Epopéia da Civilização Americana, painel deJosé Clemente Orozco: para o pesquisador Paulo Nogueira, é precisoentender os textos do passado para compreender o presente

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riam esses ter coexistido em vários cír-culos mesmo após a separação dos cris-tãos da sinagoga?" Para responder àpergunta, os pesquisadores elaboraramestudo comparativo em textos apoca-lípticos nos Manuscritos do Mar Mor-to, na literatura judaica pseudepígrafa(produzida até 70 d.Cr), e na literaturado cristianismo primitivo (tanto do No-vo Testamento como dos apócrifos). Operíodo estudado vai desde o século .segundo a.e. até o segundo d.e. A es-colha desses textos ocorreu porque háindicações de que os primeiros cris-tãos eram judeus apocalípticos. "Tra-balhamos com uma compreensão dife-renciada de apocalíptica, para além daidéia de que o fim do mundo chegariaacompanhado de cataclismos cósmi-cos e da redenção dos justos", observa.

Os pesquisadores consideram que oelemento central da apocalíptica é a ex-periência religiosa visionária, provavel-mente de origem extática, que temcomo conteúdo principal visões sobreos céus, suas estruturas de poder, os an-jos e o culto místico ali desenvolvido. Oacesso a essas revelações é possível pormeio de viagens celestiais. "Em vez dedizer que Jesus era apocalíptico apenasporque acreditava no fim do mundo,apresentamos a religiosidade de Jesus ede seus seguidores como reflexo de uma

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complexa religiosidade visionana, naqual o próprio Jesus passou a ser com-preendido como alguém que revela ossegredos e os mistérios de Deus."

Para Paulo Nogueira, essaabordagem perrnite-recons-truir o quadro cultural e re-ligioso que torna possívelcompreender os parâmetros

religiosos dos primeiros cristãos e suasrelações com os judaísmo, assim comosincretismos com as religiões do Medi-terrâneo. Era por meio da experiênciavisionária que judeus e cristãos tinhamacesso às estruturas do cosmo, aos po-deres angelicais e ao mundo labirínticoem que Deus era imaginado. "A apoca-líptica é aqui interpretada como umaforma de misticismo judaico, muitoalém da sua tradicional compreensãocomo expectativa de fim do mundo ede crítica da história e do poder': afir-ma o professor. "O destaque dado aoaspecto extático-visionário permitecompreender a apocalíptica em relaçãoàs tradições populares e iletradas do ju-daísmo, representando os textos apoca-lípticos apenas o produto final de umacorrente mais ampla."

A acepção da apocalíptica como li-teratura de revelação visionária podeser encontrada, por exemplo, nas ela-

boradas descrições das hierarquias depoderes celestiais, tanto em textos ju-daicos como o Livro dos Vigilantes, daApocalípse de Enoque (Enoque Etíope),nos Cânticos do Sacrifício Sabático deQumran, assim como na Carta aos Efé-sios, nas disputas com anjos e seu cultoem Hebreus, e na busca por ascender àsmoradas celestiais e na preocupaçãocom a contemplação da glória de Deusno Evangelho de João, sem contar comsua recepção no Apocalipse de João e naAscensão de Isaías. Nogueira destacaque importa menos saber se essas expe-riências ocorreram de fato com Jesusou com Paulo de Tarso do que com-preender como esses grupos vivencia-vam esse modelo de religião visionáriaem seus cultos de êxtase.

"É muito possível que algumas nar-rativas atribuídas a Jesus tivessem sidoinclusive experiências posteriores deseus seguidores atribuídas a ele ou en-tão que tivessem sido narradas nas co-munidades cristãs primitivas de formaparadigmática, para serem imitadas emoutras ocasiões", diz o coordenador dapesquisa. "Isso não tira a importânciado tema, ao contrário, mostra certa li-gação entre os pressupostos religiososde Jesus com seus seguidores posterio-res, uma vez que procedem de um âm-bito comum: a apocalíptica judaica."

Gólgota, de EdvardMunch (à esq.), eCristo no Deserto,de Ivan Krarnskoy:estudo permitereconstruir quadrocultural e religioso

o pesquisador Luigi Schiavo, quedesenvolve sua tese de doutorado den-tro do projeto temático, tem se dedica-do a estudar justamente a tentação deJesus de Lucas, considerado um dostextos mais importantes do documentoQ, também chamado de Fonte dos Di-tos, por apresentar uma narrativa emque Jesus luta contra Satanás pelo do-mínio cósmico. "Os temas do julga-mento, da oposição dualística, da espe-ra messiânica, do reino de Deus e daapresentação de sua ética nos levam apensar num documento de forte cará-ter escatológico, com elementos apo-calípticos de visão e revelação", diz apesquisa. "Nesse contexto, o relato dastentações de Jesus é aqui interpretadocomo um relato de viagem celestial,uma forma literária bastante conhecidana literatura apocalíptica e pseudepi-gráfica a partir do segundo século a.c.,cujo objetivo era descrever a experiên-cia extática do visionário."

Essa interpretação se baseia em vá-rios aspectos, como o termo técnico davisão "levado em espírito", o transportepara fora do corpo e a viagem pelo céu,o anjo que acompanha o visionário, olugar deserto que, com o jejum, repre-senta a condição para que tal experiên-cia possa acontecer, etc.A pesquisa ado-ta como modelo para a compreensão de

Jesus no seu embate com Satanás nesserelato, o mito do combate entre o anjoMiguel e Satanás, tal como é retratado,por exemplo, na Regra de Guerra deQumran e refletido no Novo Testamentoem Apocalipse 12.A pesquisa de Schiavoestá inserida em um eixo do projeto queanalisa figuras messiânicas da apocalíp-tica judaica que podem ter influenciado

. as primeiras elaborações cristológicas,ou seja, as primeiras afirmações sobre adivindade de Jesus e sua origem celeste.

Outro eixo da pesquisa pretende re-lacionar esses textos apocalípticos cris-tãos primitivos com o culto celestial co-mo era idealizado por círculos judaicosmísticos do período. A hipótese, neste

o PROJETO

Estruturas Religiosas Convergentesno Judaísmo e no Cristianismodo Primeiro Século

MODALIDADEProjeto temático

COORDENADORPAULO AUGUSTO DE SOUZANOGUEIRA - UniversidadeMetodista de São Paulo

INVESTIMENTOR$ 83.871,00

caso, é que esse mundo místico se inse-re no culto das casas dos primeiros cris-tãos, permitindo formação de identida-de religiosa e organização social emtorno da experiência religiosa.

Além dessa discussão da relação docristianismo com judaísmo, o projetocontempla mais um eixo de pesquisaque analisa também a recepção de te-mas apocalípticos na religião populardo Mediterrâneo, mais especificamentenos papiros mágicos e nos amuletos etalismãs antigos. Afinal, judeus e cris-tãos estavam por sua vez inseridos nomundo religioso greco-romano.

Para o coordenador, os textos sele-cionados para a pesquisa estabelecemtambém conexões com os dias atuais,pois se referem a um novo milênio, aodesejo de mudança libertária, da reali-zação de utopias e sonhos. "Os estudosbíblicos são de relevância no Brasil,uma vez que se trata de um país comvertentes de sua cultura popular e deum grande número de grupos religio-sos que se alimentam de símbolos bí-blicos", justifica. "Em uma sociedadeplural cultural e religiosamente como anossa, análises estanques que não con-sideram também a complexidade dostextos fundantes correm o risco de nãocompreenderem o passado e, tampou-co, o presente", conclui. •

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