pesquisa fapesp

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ABRIL DE 2015 WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR Análises de textos antigos e diferenças linguísticas atuais evidenciam a crescente separação do idioma de Portugal SÉRGIO BUARQUE Nova edição de Monções revela intenção do historiador de reescrever sua obra HORMÔNIO DO SONO Melatonina regula também a fome e o gasto de energia MAPAS DIGITAIS Criado no Brasil, Google Engine é usado como ferramenta científica ENTREVISTA THOMAS LOVEJOY Cinco décadas de estudos na Amazônia

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A identidade da língua portuguesa no Brasil

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Page 1: Pesquisa FAPESP

abril de 2015 www.revistapesquisa.fapesp.br

Análises de textos antigos e diferenças linguísticas atuais evidenciam a crescente separação do idioma de Portugal

sérgio buarqueNova edição de Monções revela intenção do historiador de reescrever sua obra

Hormônio do sonoMelatonina regula também a fome e o gasto de energia

mapas digitaisCriado no Brasil, Google Engine é usado como ferramenta científica

entrevistatHomas lovejoy Cinco décadas de estudos na Amazônia

Page 2: Pesquisa FAPESP

O que a ciência

brasileira produz você

encontra aqui

>>> revistapesquisa.fapesp.br >>> [email protected]

Page 3: Pesquisa FAPESP

PESQUISA FAPESP 230 | 3

Unidos até o fimParte da comunidade de minúsculas criaturas marinhas,

os dinoflagelados se reproduzem pela divisão em duas metades idênticas.

O grupo do Laboratório de Fitoplâncton da Universidade Federal de

Pernambuco (UFPE) flagrou o final desse processo na espécie

Ornithocercus quadratus, residente nas águas próximas ao arquipélago de

Fernando de Noronha. No primeiro registro do fenômeno para esse

gênero em mares brasileiros, os dois indivíduos em formação se mantêm

ligados por uma ponte estriada, a zona dorsal megacítica, até que todas

as estruturas estejam prontas. A junção então se dissolve. A imagem foi

obtida a partir de amostras fixadas em formol e analisadas ao microscópio

em aumento de 200 vezes.

Imagem enviada pela bióloga Eveline Pinheiro de Aquino, doutoranda do Departamento de Oceanografia da UFPE

FotolAb

Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para [email protected], com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

Page 4: Pesquisa FAPESP

CAPA16 Análise de textos antigos e de entrevistas expõe as marcas próprias do idioma no país

ENTREVISTA24 Thomas LovejoyBiólogo americano lidera projeto que tem ajudado a definir áreas de preservação

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

30 GêneroAs novas hipóteses que tentam explicar diferenças nas trajetórias de homens e mulheres na ciência

34 SociedadePopulação de São Paulo admira os cientistas e dá valor ao investimento em pesquisa, mostra Datafolha

38 CooperaçãoUnicamp cria centro dedicado ao estudo de enzimas presentes em células humanas e vegetais

40 ParceriaBrasil e Reino Unido iniciam cooperação em doenças tropicais

42 Políticas públicasGrupo divulga previamente resultados de pesquisas sobre Aids

CIÊNCIA

44 FisiologiaMelatonina regula a ingestão de alimentos e o acúmulo de gordura

50 NeurociênciaNovas conexões entre as células cerebrais se formam durante a fase dos sonhos

52 EvoluçãoComo seleção natural atua para

criar conjuntos de características que variam em uníssono

54 BioquímicaPlanta usada na produção da tequila se alimenta das bactérias que vivem em seu interior

58 AstronomiaLevantamentos identificam galáxias anãs em regiões extremas da Via Láctea

62 GeologiaParte da crosta do Nordeste se desloca alguns milímetros por ano

TECNOLOGIA

64 Ciência da computaçãoGoogle Earth Engine é utilizada na elaboração de mapas a partir de imagens de satélite

70 QuímicaPresença de cafeína em água tratada é indício da presença de substâncias nocivas

72 FotografiaNovo método facilita a transformação de documentos manuscritos históricos em arquivos digitais

HUMANIDADES

74 HistóriaNova edição de Monções, de Sérgio Buarque de Holanda, evidencia seu gosto por refazer suas obras

80 SociologiaMais de 1 milhão de brasileiros já participou de um ato ou uma tentativa de linchamento

84 CinemaAs aproximações e diferenças entre o road movie dos EUA e os filmes do gênero brasileiros

54

74

SEçÕES

3 Fotolab5 Cartas6 On-line7 Carta do editor8 Dados e projetos9 Boas práticas10 Estratégias12 Tecnociência88 Memória 90 Arte 93 Resenha94 Ficção96 Carreiras98 Classificados

CAPA O viOleirO, 1899, DE AlMEiDA JúniOR, ÓlEO sOBRE TElA 141 x 172 CM (ACERvO PinACOTECA DO EsTADO DE sP)REPRodução isABEllA MAThEus

ABRil.230

Page 5: Pesquisa FAPESP

PESQUISA FAPESP 230 | 5

reta da descoberta da bradicinina. Assim, que se faça justiça ao Instituto Biológico e ao Instituto Butantan. E longa vida à USP.Henrique Moisés Canter

Conselho de Cultura do Instituto Butantan

São Paulo, SP

PeriódicosOportuna a publicação da reportagem sobre as mudanças implementadas pelo SciELO (“Para ampliar o impacto”, edição 227), visando à maior internacionalização dos periódicos publicados no Brasil. Um ponto pode e deve ser modificado: aumen-tar o prazo de financiamento das revistas. No modelo atual do Programa Editorial MCTI/CNPq/MEC/Capes, anualmente tem que ser feita a solicitação de auxílio, cujo resultado sabemos apenas perto do início do ano seguinte, dificultando o pla-nejamento. Uma medida que poderia ser adotada imediatamente seria a ampliação para três ou cinco anos de financiamen-to, fazendo com que os editores possam programar melhor as atividades. Alexander W. A. Kellner

Anais da Academia Brasileira de Ciências

Museu Nacional/UFRJ

Rio de Janeiro, RJ

PaleolíticoParabéns pela reportagem “Convivên-cia incerta” (edição 228), ao focalizar a megafauna e sua convivência duvidosa com os paleoíndios e lançar luzes sobre o processo de datação de artefatos ar-queológicos na América. O processo de datação como é feito em Sergipe mistura artefatos líticos e vestígios de homens e animais, sendo confundidos pela se-dimentação. Na verdade, vestígios de trabalho humano no Paleolítico Superior muitas vezes considerados grosseiros po-dem até representar presenças humanas para além dos paleoíndios.Francisco J. B. Sá

Salvador, BA

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected] ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar - CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

CArtAS [email protected]

USP 80 anosEm nome do corpo docente do Departa-mento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP), gostaria de registrar nosso estranhamento diante da ausência de referências à antropologia como uma das três áreas que compõem o curso de ciências sociais da USP na reportagem “O peso da sociedade” (suplemento especial “USP 80 Anos”). Mencionar apenas os departamentos de Sociologia e Ciência Política como representantes das ciências sociais na USP não é uma escolha de “estudos mais apropriados”, como diz a Carta da Editora, pois omite a existência de toda uma área de conhe-cimento que responde, em larga medida, pela produção passada e presente das ciências sociais brasileiras. Sem dúvida, sociologia, ciência política e antropologia estabeleceram e seguem estabelecendo diálogos estreitos, mas várias também são suas contribuições específicas, desde o núcleo inaugural da FFLCH na USP até os dias atuais.Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer

Departamento de Antropologia-FFLCH-USP

São Paulo, SP

A respeito da edição especial “USP 80 Anos”, na legenda das páginas 26 e 27, há a figura da cabeça de uma serpente, acompanhada da seguinte legenda: “A identificação em 1965 de moléculas no veneno da jararaca que potencializam a ação da bradicinina é ainda hoje uma das descobertas mais importantes feitas por pesquisadores da USP”. É preciso dizer, também, que a base de tais estudos foi levada a efeito inicialmente por Maurício Rocha e Silva e Wilson Beraldo, no Insti-tuto Biológico, acompanhados por Gastão Rosenfeld, do Instituto Butantan, que foi quem lhes levou, em 1948, a amostra do veneno de Bothrops jararaca, trabalho publicado no American Journal of Phy-siology, em 1949. Foi esse o trabalho que possibilitou ao discípulo de Rocha e Silva, que se transferira à recém-criada Faculda-de de Medicina de Ribeirão Preto da USP, Sergio Henrique Ferreira, a contribuição ao desenvolvimento da primeira droga anti-hipertensiva como consequência di-

CONtAtOS

Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra. No site também estão disponíveis reportagens traduzidas e as edições internacionais da revista em inglês, francês e espanhol.

Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação pelo e-mail [email protected] ou para a rua Joaquim Antunes, 727 – 10º andar CEP 05415-012 São Paulo, SP

Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail: [email protected] Ou ligue: (11) 3087-4237 De segunda a sexta das 9h às 19h

Para anunciar Midia Office – Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 [email protected]

Classificados: (11) 3087-4212 [email protected]

Edições anteriores Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Envie e-mail para [email protected]

Licenciamento de conteúdo Para adquirir os direitos de reprodução de textos e imagens de Pesquisa FAPESP ligue: (11) 3087-4212 ou [email protected]

Page 6: Pesquisa FAPESP

6 | abril DE 2015

youtube.com/user/PesquisaFaPesP

on-linEw w w . r e v i s t a P e s q u i s a . F a P e s P. b r

x Pesquisadores da usP verificaram que a luminosidade emitida por fungos da espécie Neonothopanus gardneri segue um ritmo de cerca de 24 horas. em estudo publicado na Current Biology, eles mediram as quantidades das substâncias químicas responsáveis pela emissão de luz. os níveis dessas substâncias variam de acordo com o ciclo luminoso. segundo os pesquisadores, o fato de esse fungo apresentar uma regulação genética para produzir mais luz quando está mais escuro indica que o brilho tem uma função para o organismo: aparentemente, atrair insetos que podem disseminar os esporos.

xum grupo internacional de pesquisadores, coordenado por brasileiros da universidade do Novo méxico, nos estados unidos, e do a.c. camargo cancer center, em são Paulo, deu mais um passo na compreensão da angiogênese, que leva à formação de novos vasos sanguíneos. entre outras situações anômalas, na idade adulta esse processo pode estimular a evolução de tumores. Num estudo publicado na revista PNAS, eles observaram um conjunto de microrNas, um tipo de ácido ribonucleico (rNa). verificaram que essas moléculas desempenham um papel importante na regulação de dois rNas específicos que ajudam na formação de novos vasos: o HiF1a e o veGFa.

Exclusivo no site

Vídeos do mês

Mapas climáticos ajudam na revisão das estratégias de planejamento urbano em Campinas

Blocos de rochas seriam pedaço de continente que submergiu na separação da América do Sul e da África

léo

ra

mo

s

registro fotográfico feito pelo biólogo Rafael Oliveira, da universidade estadual de campinas (unicamp), explora a biodiversidade dos campos rupestres

Assista ao vídeo:

Assista ao vídeo:

Bioquímico fala sobre estudo que investiga entorpecentes vendidos sob o nome de ecstasy

Rádio

Galeria de imagens

A mais vista do mês no Facebook

CAPA

A morte explica a vida

35.328 visualizações

639 curtidas

178 compartilhamentos

entre 12 e 19 de março no perfil de Pesquisa FAPESP

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PESQUISA FAPESP 230 | 7

cArtA do EdItor

A língua portuguesa falada no Brasil sempre pareceu estranha, por ve-zes irreconhecível, aos naturais de

Portugal. O inverso também é verdadeiro. É comum encontrar visitantes brasilei-ros em sua primeira viagem à terra de Camões que, inicialmente, pouco enten-dem o português europeu. Em tom quase sempre jocoso, uns acusam outros de se expressar em um idioma sem sentido, de difícil compreensão. A discussão perten-ce àquele gênero em que todos têm gran-de parte de razão. A língua dos coloniza-dores portugueses no Brasil nunca parou de se transformar, embora se encontrem rudimentos do português antigo em al-guns poucos lugares do imenso território brasileiro. O idioma falado por aqui foi levado e disseminado para o Sul e Centro--Oeste do país desde o século XVI pelos bandeirantes paulistas, que imprimiram a ele aspectos regionais colhidos durante as longas viagens exploratórias. A repor-tagem de capa desta edição conta histó-rias como essa baseada em um extenso estudo realizado nos últimos 30 anos, que identificou características próprias do português brasileiro. A língua falada no nosso país hoje pode ser considera-da única, tal a diferença com o original europeu. Os especialistas estimam que, talvez, em mais 200 anos, ela se torne efetivamente autônoma, como explicado na reportagem do editor especial Carlos Fioravanti (página 16).

Os antigos paulistas foram também es-tudados pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda, que tratou das monções, ex-pedições fluviais que saíam de São Paulo em direção a Mato Grosso no período colonial. O pesquisador, autor de alguns clássicos da historiografia brasileira, pu-

blicou Monções em 1945 e trabalhou por vários anos em uma nova versão do livro com o intuito de reescrevê-lo, acrescido de novas pesquisas. Tudo indica que a obsessão por melhorar o que já estava pronto e impresso era uma característica de Sérgio Buarque. Vale a pena conhe-cer o caso da reedição de Monções em dois volumes – um com o texto original e outro com os capítulos alterados –, na reportagem do editor especial Marcos Pivetta (página 74).

O biólogo norte-americano Thomas Lovejoy não tem nada a ver com ban-deirantes paulistas, embora há 50 anos também tenha percorrido terras pou-co conhecidas pela ciência – no caso, a Amazônia. Ele começou seu trabalho na região em 1965 e perdeu a conta do nú-mero de vezes em que esteve em campo, quase sempre vindo dos Estados Unidos. Lovejoy tem fácil trânsito nos gabinetes de governo, o que ajuda na formulação de políticas públicas ambientais. Cinco décadas depois, ele continua empenhado em projetos para definir áreas e estra-tégias de preservação de florestas e em pensar o futuro da Amazônia, como ex-plicou em entrevista a Maria Guimarães e Carlos Fioravanti (página 24).

A política ambiental recebeu nos úl-timos anos um reforço tecnológico que teve a participação decisiva de pesqui-sadores brasileiros. A plataforma Earth Engine, do gigante da informática Goo-gle, nasceu no Brasil há pouco tempo e já se tornou importante na elaboração de mapas digitais em alta resolução a partir de imagens de satélite. O repórter Yuri Vasconcelos narra o processo de criação e os principais usos dessa ferramenta digital a partir da página 64.

O idioma em evoluçãoNeldson Marcolin | editor-chefe

celso laferPresidente

eduardo Moacyr Kriegervice-Presidente

coNSElho SUPErIor

celso lafer, eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, horácio lafer Piva, joão grandino rodas, Maria josé soares Mendes giannini, Marilza vieira cunha rudge, josé de souza Martins, Pedro luiz Barreiros Passos, suely vilela saMPaio, yoshiaKi naKano

coNSElho técNIco-AdMINIStrAtIvo

carlos henrique de Brito cruzdiretOr científicO

joaquiM j. de caMargo englerdiretOr AdministrAtivO

coNSElho EdItorIAlcarlos henrique de Brito cruz (Presidente), caio túlio costa, eugênio Bucci, fernando reinach, josé eduardo Krieger, luiz davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo leite, Maria hermínia tavares de almeida, Marisa lajolo, Maurício tuffani, Mônica teixeira

coMItê cIENtíFIcoluiz henrique lopes dos santos (Presidente), adolpho josé Melfi, carlos eduardo negrão, douglas eduardo zampieri, eduardo cesar leão Marques, francisco antônio Bezerra coutinho, joaquim j. de camargo engler, josé arana varela, josé roberto de frança arruda, josé roberto Postali Parra, lucio angnes, luis augusto Barbosa cortez, Marcelo Knobel, Marie-anne van sluys, Mário josé abdalla saad, Marta teresa da silva arretche, Paula Montero, roberto Marcondes cesar júnior, sérgio luiz Monteiro salles filho, sérgio robles reis queiroz, Wagner do amaral caradori, Walter colli

coordENAdor cIENtíFIcoluiz henrique lopes dos santos

EdItor-chEFE neldson Marcolin

EdItorES fabrício Marques (Política), Marcos de oliveira (Tecnologia), ricardo zorzetto (Ciência); carlos fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe ciais); Bruno de Pierro e dinorah ereno (Editores-assistentes)

rEvISão daniel Bonomo, Margô negro

ArtE Mayumi okuyama (Editora), ana Paula campos (Editora de infografia), Maria cecilia felli e alvaro felippe jr. (Assistente)

FotógrAFoS eduardo cesar, léo ramos

MídIAS ElEtrôNIcAS fabrício Marques (Coordenador) INtErNEt Pesquisa FAPESP onlineMaria guimarães (Editora)rodrigo de oliveira andrade (Repórter)

rádIo Pesquisa BrasilBiancamaria Binazzi (Produtora)

colAborAdorES alexandre camanho, ana lima, daniel Bueno, daniel das neves, evanildo da silveira, gilberto stam, igor zolnerkevic, juliana sayuri, larissa ribeiro, Márcio ferrari, Mariza, Mauricio Pierro, Mauro de Barros, negreiros, Pablo nogueira, raul aguiar, sandra javera, valter rodrigues, vinicius de figueiredo, yuri vasconcelos

é ProIbIdA A rEProdUção totAl oU PArcIAl dE tExtoS E FotoS SEM PrévIA AUtorIzAção

PArA FAlAr coM A rEdAção (11) [email protected]

PArA ANUNcIAr Midia office - júlio césar ferreira (11) 99222-4497 [email protected] Classificados: (11) 3087-4212 [email protected]

PArA ASSINAr (11) 3087-4237 [email protected]

tIrAgEM 43.200 exemplaresIMPrESSão Plural indústria gráficadIStrIbUIção dinaP

gEStão AdMINIStrAtIvA instituto unieMP

PESQUISA FAPESP rua joaquim antunes, no 727, 10o andar, ceP 05415-012, Pinheiros, são Paulo-sP

FAPESP rua Pio Xi, no 1.500, ceP 05468-901, alto da lapa, são Paulo-sP

secretaria de desenvolviMento econôMico,

ciência e tecnologia govErNo do EStAdo dE São PAUlo

issn 1519-8774

fundação de aMParo à Pesquisa do estado de são Paulo

Page 8: Pesquisa FAPESP

8 | abril DE 2015

DaDos E projEtos

temáticoscaracterização molecular de mecanismos envolvidos na patogenicidade e sinalização celular em fungosPesquisadora responsável: Nilce Maria Martinez Rossiinstituição: FMRP/USPProcesso: 2014/03847-7Vigência: 01/02/2015 a 31/01/2019

Genômica aplicada à produção de ruminantesPesquisador responsável: José Bento Sterman Ferrazinstituição: FZEA/USPProcesso: 2014/07566-2Vigência: 01/03/2015 a 28/02/2018

septinas: estudos comparativos visando correlacionar estrutura e funçãoPesquisador responsável: Richard Charles Garrattinstituição: IFSC/USPProcesso: 2014/15546-1Vigência: 01/02/2015 a 31/01/2020

indivíduos com alto risco para desenvolvimento de injúria renal aguda em contextos clínicos relevantes: estudo prospectivo sobre aspectos epidemiológicos, diagnósticos e prognósticosPesquisador responsável: Emmanuel de Almeida Burdmanninstituição: FM/USPProcesso: 2014/19286-4Vigência: 01/02/2015 a 31/01/2020

Decifrando os mecanismos moleculares envolvidos na localização subcelular de proteínas e na complexa interação planta-insetos-patógenos. (Bioen)Pesquisador responsável: Marcio de Castro Silva Filhoinstituição: Esalq/USPProcesso: 2014/50275-9Vigência: 01/02/2015 a 31/01/2020

Dimensões Us-Biota são Paulo: diversidade de interações multitróficas quimicamente mediadas em gradientes nos trópicos. (FAPesP-Biota-NsF Dimensions)Pesquisador responsável: Massuo Jorge Katoinstituição: IQ/USPProcesso: 2014/50316-7Vigência: 01/02/2015 a 31/01/2020

segurança alimentar e uso da terra: o desafio do telecoupling (FAPesP-Belmont Forum)Pesquisador responsável: Luiz Antonio Martinelliinstituição: Cena/USPProcesso: 2014/50628-9Vigência: 01/02/2015 a 31/01/2020

JoVem PesQUisADoR internalização e trágego intracelular de nanopartículas: atividade biológica e perfil nanotoxicológicoPesquisador responsável: Marcelo Bispo de Jesus

temáticos e JoVem PesQUisADoR ReceNtesProjetos contratados em fevereiro e março de 2015

instituição: IB/UnicampProcesso: 2014/03002-7Vigência: 01/03/2015 a 28/02/2019

Análise sistêmica do processamento n-terminal e diversidade de proteínas no secretoma de células tumoraisPesquisador responsável: Andre Zelanis Palitot Pereirainstituição: ICT/UnifespProcesso: 2014/06579-3Vigência: 01/03/2015 a 28/02/2019

sistema RANKL na regulação de macrófagos presentes na inflamação

do tecido adiposoPesquisadora responsável: Mariana Kiomy Osakoinstituição: FMRP/USPProcesso: 2014/11092-6Vigência: 01/02/2015 a 31/01/2019

o papel de diferentes domínios de atividade física no curso clínico da dor lombar não específicaPesquisador responsável: Rafael Zambelli de Almeida Pintoinstituição: FCT de P. Prudente/UnespProcesso: 2014/14077-8Vigência: 01/02/2015 a 31/01/2019

otimização e aumento de escala do processo de extração líquido-líquido com líquidos iônicos (Lis) como ferramenta de separação sustentável do biofármaco antileucêmico L-Asparaginase (AsPase)Pesquisador responsável: Jorge Fernando Brandão Pereirainstituição: FCF de Araraquara/UnespProcesso: 2014/16424-7Vigência: 01/02/2015 a 31/01/2019

Busca indireta de matéria escura com o detector Ams-02Pesquisador responsável: Manuela Vecchiinstituição: IFSC/USPProcesso: 2014/19149-7Vigência: 01/02/2015 a 31/01/2019

Patentes de invenção concedidas nos estados UnidosO crescimento de 80% no número de patentes de invenção concedidas pelo Escritório de Patentes e Marcas norte-americano entre os períodos considerados, além de resultar em número ainda bastante baixo, não evita queda do Brasil na classificação usando o número de patentes em relação à população (do 66º para o 69º lugar)

* Entre 124 países com patentes concedidas entre 2009 e 2013 ** Os países líderes em patentes per capita no período 1999-2003 são Liechtenstein e Mônaco *** O país líder em patentes per capita no período 2009-2013 é LiechtensteinFonte: United States Patent and Trademark Office - USPTO (patentes), Banco Mundial (população)

País/Região

Patentes de invenção concedidas (Pic) - média anual Pic/10 milhões de habitantes - média anualNúmero classificação* Número classificação*

1999-2003 2009-2013 1999-2003 2009-2013 1999-2003 2009-2013 1999-2003** 2009-2013***

MUNDO 162.674 228.492 – – 263 328 – –Estados Unidos 86.288 110.683 1 1 3.030 3.553 3 4Japão 33.199 45.810 2 2 2 .611 3.592 4 3Alemanha 1 0 . 7 1 1 12.523 3 3 1.301 1.535 10 11Coreia do Sul 3.629 12.095 7 4 767 2.433 14 6Formosa (Taiwan) 4.893 9.076 4 5 2.186 3.905 5 2Canadá 3.422 5.169 8 6 1.101 1.499 11 12França 3.917 4.7 18 5 7 638 722 19 2 1Reino Unido 3.725 4.556 6 8 630 725 20 20China 198 3.610 25 9 2 27 89 50Israel 946 2.138 13 10 1.473 2.752 8 5Itália 1.678 1.930 9 11 294 319 29 28Holanda 1.307 1.760 12 12 8 15 1.055 13 15Suíça 1.339 1.716 11 13 1.850 2.169 6 8Suécia 1.583 1.702 10 14 1.778 1.802 7 10Austrália 810 1.609 14 15 4 1 7 719 24 22Índia 202 1.425 23 16 2 12 84 66Finlândia 735 1.049 15 17 1.416 1.946 9 9Bélgica 681 829 16 18 661 752 18 19Espanha 275 5 1 1 20 22 67 111 36 35Rússia 200 303 24 25 14 2 1 50 55Malásia 43 189 33 27 18 66 47 41BRAsiL 105 189 29 29 6 10 66 69África do Sul 113 127 28 30 25 25 43 52Arábia Saudita 14 1 1 0 44 31 7 39 64 45México 82 106 30 32 8 9 62 7 1República Tcheca 30 1 0 1 35 33 29 96 41 38Hungria 51 95 32 34 50 96 37 39Polônia 15 60 42 35 4 16 78 60Argentina 53 55 31 37 14 14 49 65Tailândia 26 47 37 38 4 7 77 76Turquia 12 42 47 39 2 6 85 82Chile 12 34 46 43 8 20 61 57Colômbia 8 9 52 59 2 2 83 93Uruguai 2 6 75 65 5 19 69 58

Page 9: Pesquisa FAPESP

PESQUISA FAPESP 230 | 9

Um roteiro para lidar com denúncias

Padrão inadequado de revisão

Boas práticas

O que uma revista científica deve fazer quando recebe uma denúncia de má conduta relacionada a um autor ou a um editor? O Committee on Publication Ethics (Cope), fórum de editores de periódicos científicos sobre ética na pesquisa, tentou responder esta pergunta propondo um roteiro de recomendações para situações desse tipo. Segundo o documento de discussão, assinado por Tara Hoke, membro do conselho do Cope, e Heather Tierney, da American Chemical Society, é fundamental dar atenção a toda reclamação referente a supostas violações de ética, mesmo que a fonte da denúncia tenha feito anteriormente acusações frágeis ou infundadas – o importante é a consistência da denúncia, não sua origem. “Não obstante esse princípio, o Cope considera que investigações de reclamações superficiais, vagas ou sem base podem representar um desperdício de recursos da revista e prejudicar a comunidade acadêmica”, dizem as autoras do documento.

O Cope também recomenda que cada revista tenha critérios claros e conhecidos publicamente (em forma impressa e on-line) para lidar com denúncias, bem como instâncias internas capazes de encaminhá-las com rapidez. Um ou mais indivíduos devem ser destacados para avaliar as reclamações recebidas. Também deve ser definido um nível mínimo de evidências para que uma investigação formal seja aberta. Esse limiar deve incluir, em primeiro lugar, a identificação de um ato específico de má conduta profissional ocorrido durante a pesquisa ou o processo de publicação. Divergências

de opinião e disputas pessoais ou coletivas não são motivo para abrir uma investigação, diz o Cope. A quantidade e a natureza da documentação apresentada são cruciais para avaliar se há base para apurar a denúncia. A acusação deve ser arquivada se envolver dúvidas já resolvidas durante o processo de revisão. Se envolver artigos publicados há muito tempo, as investigações só devem ser abertas em casos extraordinários e muito graves, em razão da dificuldade de encontrar pessoas e levantar evidências sobre fatos muito antigos. Caso a denúncia seja anônima, os editores devem encorajar o delator a se identificar, a fim de avaliar sua procedência.

O documento do Cope sugere que os denunciantes sejam informados claramente sobre as razões para não abrir uma investigação, quando isso ocorrer. Se o acusador insistir e não oferecer novos elementos, o periódico deve reiterar sua posição. Se ainda assim ele persistir na acusação sem

A editora Springer suspendeu temporariamente a publicação da revista Cell Biochemistry and Biophysics por manter “um padrão inadequado e comprometido” de revisão por pares. E abriu uma investigação para apurar por que, no ano passado, a revista publicou 16 artigos sem nenhum sentido que haviam sido gerados por um programa de computador. Em agosto, outro paper, sobre gases utilizados em anestesia, teve sua publicação cancelada por plágio. “A integridade científica

do periódico não pode ser garantida”, explicou a editora, num comunicado oficial. A revista tem fator de impacto 2,3 e estava classificada em 124º lugar no ranking de 185 publicações de biologia celular da empresa Thomson Reuters. Ao site Retraction Watch, o editor-chefe da revista, Edward J. Massaro, negou a existência de problemas éticos na avaliação, fez críticas à editora e disse que a suspensão ameaça gravemente o futuro da revista.

fundamento, o caso deve ser encaminhado para aplicação de sanções legais contra difamação. A instituição a que o reclamante pertence também deve ser avisada. Autores de denúncias feitas de modo ofensivo e ameaçador devem ser notificados de que alegações com esse tipo de linguajar não são consideradas.

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Estratégias

O Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP) lançou um livro que reúne 62 reportagens e entrevistas publicadas por Pesquisa FAPESP entre 2001 e 2013 que envolvem pesquisas com participação do instituto. A obra, intitulada Do centro da Terra às fronteiras do Universo – Um compêndio de pesquisas em astronomia, geofísica e ciências atmosféricas, será distribuída a alunos, professores e funcionários da USP e colaboradores do IAG. Também será disponibilizada uma versão on-line no site do instituto. O objetivo do projeto foi coletar e organizar todas as reportagens que envolveram trabalhos realizados pelo IAG financiados pela FAPESP nesse período. A iniciativa faz parte do programa IAG 2020, que busca planejar o futuro da pesquisa no instituto.

Reportagens compiladas

“Decidimos compilar o material de Pesquisa FAPESP para mostrar que é possível divulgar assuntos ligados à astronomia, meteorologia e outras áreas numa linguagem simples, agradável e de qualidade”, diz Augusto José Pereira Filho, professor do IAG e um dos organizadores da coletânea. Ao longo de 12 anos, foram produzidas mais de 240 páginas de conteúdo jornalístico relacionado a diversos temas pesquisados no IAG em projetos apoiados pela FAPESP. Para a astrônoma Beatriz Barbuy, professora do IAG, a divulgação científica é fundamental para o reconhecimento da pesquisa na sociedade. “Ter contato com esse tipo de jornalismo, mais comprometido com o aprofundamento do assunto, é bom não só para alunos de física e astronomia, como também para aqueles que ainda estão na fase de decidir qual profissão seguir”, diz ela.

O livro lançado pelo IAG-USP: seleção de textos publicados em Pesquisa FAPESP Suporte para biotérios

O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) anunciou a criação de uma rede nacional de biotérios – viveiros onde são criados e conservados animais empregados em experiências de laboratório. O objetivo da Rede Nacional de Biotérios de Produção de Animais para Fins Científicos, Didáticos e Tecnológicos (Rebiotério) será estimular a produção e a qualidade de biotérios de ratos, camundongos e coelhos para atender de forma adequada e organizada à demanda nacional. “O entendimento é de que o uso de animais ainda é

imprescindível nos testes in vivo e que hoje existe um desequilíbrio entre a oferta e a procura no país, em razão do aumento considerável da produção científica nacional”, informou o CNPq em comunicado. A instituição, vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), irá mapear, monitorar e dar suporte à produção de animais, além de cadastrar todos os biotérios no país. De acordo com Marcelo Morales, diretor da área de Ciências Agrárias, Biológicas e da Saúde do CNPq e coordenador da Rebiotério, atualmente a produção de animais para fins de pesquisa é feita em apenas alguns biotérios, que trabalham para atender as próprias necessidades e não dão conta de auxiliar outras instituições. Segundo ele, há pesquisadores que têm de esperar de dois a cinco meses para receber animais de qualidade e que possam ser utilizados em experimentos científicos.

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Rede busca estimular produção de animais de laboratório para atender à demanda nacional

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Viagem à magnetosfera

A missão Magnetospheric Multiscale (MMS), da Nasa, agência espacial norte-americana, foi levada ao espaço no dia 12 de março. Horas após o lançamento, realizado na base Cabo Canaveral, na Flórida, as quatro sondas espaciais idênticas que compõem a missão se separaram do foguete Atlas V e entraram na órbita terrestre, onde trabalharão em conjunto, navegando numa formação semelhante a uma pirâmide e fazendo medições elétricas e magnéticas. A missão vai estudar o que acontece no espaço quando linhas do campo magnético se

separam e se reconectam violentamente, liberando energia. Essas reconexões perturbam a magnetosfera, escudo protetor da Terra, permitindo que partículas altamente energéticas que fluem do Sol interfiram e eventualmente derrubem sistemas tecnológicos modernos, como redes de comunicações, navegação GPS e redes de energia, durante tempestades solares. “As sondas vão literalmente voar na magnetosfera da Terra”, explica Jeff Newmark, diretor da divisão de Física Solar da Nasa, segundo o site Space.com.

Parcerias com a União Europeia

Representantes da União Europeia e da FAPESP assinaram no dia 18 de março uma carta de intenção em que se com-prometem a apoiar pesquisas realizadas em parceria com pesquisadores de ins-tituições em São Paulo e nos estados--membros da União Europeia por meio do Horizonte 2020, o maior programa de apoio à pesquisa e à inovação da Eu-ropa. Em vigor desde 2007, o programa tem orçamento de € 80 bilhões aprova-do para projetos até 2020, além de in-vestimentos privados – os recursos estão abertos à comunidade científica inter-nacional. “Há grande potencial para ampliarmos nossa parceria científica, especialmente a partir desse compro-misso de cooperação mútua firmado com o estado de São Paulo, de onde emerge o maior número de pesquisas do país e de nível extremamente elevado”, disse à Agência FAPESP Ana Paula Zacarias, embaixadora da União Europeia no Bra-

sil. Celso Lafer, presidente da FAPESP, destacou o interesse mútuo por colabo-rações científicas. “A FAPESP apoia uma série de pesquisas realizadas em con-junto por pesquisadores do Brasil e de todo o mundo, e a parceria firmada com a União Europeia vai ao encontro desse trabalho de internacionalização da ciên-cia brasileira fortemente promovido em São Paulo. Por meio do Horizonte 2020, pesquisadores do Brasil e da Europa te-rão acesso facilitado a novas redes de colaboração científica”, afirmou.

“Em vez de construir um laboratório, vamos usar esse ambiente ao redor do planeta como um laboratório natural. Estamos indo para onde a reconexão magnética realmente ocorre.”

As quatro sondas antes do lançamento: trabalho em conjunto

O físico Venkatraman Ramakrishnan, diretor do Laboratório de Biologia Molecular do Medical Research Council, na Inglaterra, é o novo presidente da Royal Society, uma das primeiras e até hoje mais importantes sociedades científicas do mundo, sediada no Reino Unido. Ele ganhou o Prêmio Nobel de Química em 2009 pelo seu trabalho sobre a estrutura e a função dos ribossomos. Nascido na Índia, Ramakrishnan desenvolveu boa parte de sua carreira nos Estados Unidos e, em 1999, mudou-se para a Inglaterra. Por conta disso, tem as cidadanias britânica e norte-americana. Sua guinada para as ciências biológicas ocorreu após seu doutorado em física. “Espero que essa amplitude possa me ajudar daqui para frente”, disse o novo presidente em entrevista à revista Nature.

Novo líder daRoyal Society

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Utilizar aparas de papel para compor a cerâmica monoporosa e fabricar azulejos é a novidade de um estudo realizado na pós-graduação da Faculdade de Engenharia Química da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A proposta tem duas preocupações ambientais que são o aproveitamento das aparas de papel, material comum na indústria papeleira, e a diminuição do uso do calcário na produção da cerâmica, um ingrediente mineral não renovável. A porcentagem máxima de aparas na composição da cerâmica chegou a 20%. Acima desse nível haveria trincas ou quebras no processo de fabricação dos azulejos. A pesquisa conduzida pelo mestrando Rodrigo Daros e pelo professor Humberto Gracher Riella também mostrou que o uso das aparas é viável economicamente. O resíduo de papel custa no máximo R$ 0,02 o quilo (kg) enquanto o preço do calcário é de R$ 0,13 o kg.

Nos últimos 15 anos, especialistas descreveram seis novas espécies de macacos do gênero Callicebus, atualmente com 31 espécies. Agora, vem a público mais uma: o Callicebus miltoni, assim chamado em homenagem ao primatologista Milton Thiago de Mello. Descrito por pesquisadores do Instituto para a Conservação dos Carnívoros Neotropicais (Pró-Carnívoros), do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e do Museu Paraense Emílio Goeldi, o Callicebus miltoni possui uma faixa grisalha na

Macacos de rabo dourado

testa, costeletas e garganta ocre-escuras e cauda laranja (Papéis Avulsos de Zoologia, março). Caracterizados pela capacidade em delimitar território próprio e pelas vocalizações, principalmente nas manhãs, como forma de manter a distância entre os grupos, os animais dessa espécie foram avistados pela primeira vez em 2010 por Júlio César Dalponte, do Pró-Carnívoros, e parecem viver apenas em uma área de Floresta Amazônica limitada pelos rios Roosevelt e Aripuanã, nos estados de Mato Grosso e Amazonas.

Faixa grisalha na testa e cauda laranja são características do Callicebus miltoni

TEcnociênciaPapel na cerâmica

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Metade dessa área encontra-se em terras protegidas (unidades de conservação ou reservas indígenas). Os animais desse gênero vivem nas árvores, reúnem-se em galhos entrelaçando as caudas e são chamados de zogue-zogue, ou rabo de fogo, pelos moradores das florestas em que vivem.

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Painel solar em camadasUm novo tipo de célula solar desenvolvido por pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, poderá facilitar a produção de células fotovoltaicas mais eficientes que as usadas hoje em painéis solares, cujas lâminas convertem a energia do sol em eletricidade. As novas células combinam dois materiais: uma camada de silício, que forma a base para a maioria dos painéis solares atuais, e outra camada semitransparente de um material semicondutor chamado perovskita, capaz de absorver partículas de luz de maior energia. Diferentemente das células solares anunciadas há alguns meses pelos mesmos pesquisadores, em que as camadas foram sobrepostas e cada uma tinha suas próprias ligações elétricas separadas, as novas células têm duas camadas conectadas como um único dispositivo controlado

por um circuito de controle (Applied Physics Letters, 24 de março). Para que o projeto avance, porém, um desafio ainda precisa ser superado: a baixa eficiência desses dispositivos. No caso de células feitas de silício, menos de um quarto da energia luminosa é convertido em energia elétrica. A versão inicial das novas células apresentou eficiência de 13,7%, enquanto as comerciais atingem 15%. Os pesquisadores dizem saber como aumentar esse número para 30%. A produção de energia fotovoltaica cresce, mas sua presença na matriz energética mundial ainda é pequena, de cerca de 1%. No Brasil é ainda menos expressiva, representa apenas 0,01% do total.

Tuberculose pela saliva

Pesquisadores das universidades de Washington, nos Estados Unidos, e da Cidade do Cabo, na África do Sul, desenvolveram um método alternativo, menos invasivo e seguro para o diagnóstico da tuberculose. Num estudo publicado na Scientific Reports (2 de março), eles avaliaram se as células ou o DNA do Mycobacterium tuberculosis, principal bactéria causadora da doença, se acumulariam na mucosa da boca de pessoas infectadas. Para isso, coletaram amostras de saliva de 40 voluntários — 20 saudáveis, para controle, e 20 contaminados. Os pesquisadores

detectaram a bactéria em amostras de saliva de 18 dos 20 indivíduos com tuberculose, enquanto nas pessoas saudáveis não havia sinal do bacilo. Para os autores, a detecção da tuberculose pela análise da saliva poderia representar uma solução simples para o diagnóstico da doença, hoje baseado na análise do escarro pulmonar. Para coletá-lo, os pacientes precisam tossir, muitas vezes arriscando contagiar os profissionais da saúde. A tuberculose ainda é um grave problema de saúde pública, sobretudo em países pobres. Em 2014, o Brasil registrou mais de 67 mil casos da doença.

Tela de plástico luminosa e flexível

Um novo método de produção de filmes plásticos baseados em Oleds, sigla em inglês para diodos orgânicos emissores de luz, desenvolvido pelo Centro de Pesquisa Técnica da Finlândia (VTT), vai ampliar o uso dessa tecnologia presente em telas de celulares e mais recentemente em te-levisores. Os pesquisadores liderados por Raimo Korhonen criaram um método que imprime, de forma semelhante à impressão

de gravuras e serigrafia, filmes plásticos flexíveis emissores de luz, o que possibilita amplas telas luminosas para iluminação, publicidade e informações variadas, e que podem ser instaladas em superfícies transparentes como vidros de janela e embalagens. Até agora, a tecnologia Oled só era implementada em superfícies de vidro usando métodos tradicionais da microeletrônica. A novidade permite a

utilização de Oleds sobre plásticos fle-xíveis, vidro e aço. A espessura do filme é de 0,2 milímetro e nesse espaço estão incluídos os eletrodos e polímeros que emitem luz. O único problema é a película ser muito sensível ao oxigênio e à umida-de, o que leva a duração da luminosidade a no máximo um ano. Mas a vida útil deve aumentar conforme avancem as pesquisas com protetores desse tipo de tela.

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Células solares combinam dois materiais e aproveitam melhor a luz do sol

Filmes plásticos com tecnologia

Oled podem ser usados em painéis

publicitários e embalagens

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Sonda monitora as águas

A poluição por chumbo causada pelo uso de combustíveis fósseis foi mais intensa nos últimos 50 anos do que em 2 mil anos de história de mineração da América do Sul. Pesquisadores da Universidade de Berna, na Suíça, chegaram a esta conclusão após medirem por espectroscopia de massa a concentração de chumbo – usado na produção de prata entre os anos de 450 e 1900 e de estanho no início do século XX – em uma amostra contínua de gelo retirada de um glaciar dos Andes da Bolívia (Science Advances, março). Depois de 1960, a quantidade de chumbo na atmosfera triplicou, em comparação com o nível de emissão resultante da atividade metalúrgica na região, provavelmente por causa do uso de

Chumbo na América do Sul

combustíveis fósseis. “Nosso estudo revela uma queda significante nos níveis de poluição por chumbo depois da proibição da gasolina com esse metal na região dos Andes bolivianos, embora ainda não tenha caído aos níveis naturais”, disse Anja Eichler, uma das autoras desse trabalho, em um comentário para o jornal inglês The Guardian. No Brasil, o chumbo começou a ser misturado à gasolina em 1922 para melhorar o desempenho dos motores, e os debates sobre sua remoção começaram na década de 1970, em vista dos danos à saúde humana. Proibido na gasolina desde 1992, o chumbo pode prejudicar o sistema nervoso e vários estudos já associaram a elevada contaminação desse metal ao aumento da criminalidade.

Uma sonda capaz de monitorar as águas de reservatórios e indicar a pureza, as concentrações de oxigênio dissolvido, temperatura, turbidez, condutividade elétrica e presença de clorofila foi desenvolvida por pesquisadores das universidades federais de Minas Gerais (UFMG), Juiz de Fora (UFJF) e viçosa (UFv). O dispositivo fica mergulhado na água em profundidades de até

30 metros e transmite os dados por uma rede sem fio baseada em ondas acústicas. Chamado de HydroNode, o equipamento mede os parâmetros que aferem a qualidade da água. Todos os dados seguem para uma central onde um software que funciona como um nó computacional reúne as informações e as disponibiliza na internet. A sonda serve também para uso na aquicultura, onde a medição do oxigênio dissolvido e pH é muito importante para a sobrevivência dos peixes, nas plataformas de petróleo, além de rios e lagos. A ideia da sonda partiu do laboratório de Gestão de Reservatórios do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, coordenado pelo professor Ricardo Motta Coelho, e a execução foi de um grupo de pesquisadores da área de ciência da computação que contou com os professores luiz Filipe vieira e Marcos vieira (UFMG), José Augusto Nacif (UFv) e Alex vieira (UFJF).

Experimento com equipamento

submerso para monitorar

reservatórios, lagos e rios 1

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Amostra de glaciar do monte Illimani, nos Andes, permitiu medir a concentração dometal na região

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O interior escuro do Sol

Uma equipe de astrofísicos comandados por Aaron vincent, da Universidade de Durham, na Inglaterra, propôs a existência de um novo tipo de matéria escura, armazenado nas entranhas do Sol (Physical Review Letters, 26 de fevereiro). Segundo a teoria defendida pelos pesquisadores, uma variante especial da matéria escura, componente misterioso que seria responsável por quase 27% da constituição do Universo, parece se acumular abaixo da superfície do Sol e desempenhar um papel importante no transporte de calor dentro da estrela. A eventual existência dessa forma de matéria escura explicaria, de uma maneira mais satisfatória do que o modelo solar em vigor, o transporte de energia do centro do astro para as suas camadas mais externas. Como em outros estudos, vincent e seus colegas assumem que a matéria escura seria composta de diminutas partículas de antimatéria.

O salto preciso do louva-a-deus

Exemplares jovens de louva-a-deus, que não têm asas, usam uma técnica toda especial para dar saltos precisos. Antes de se lançarem ao ar, balançam a cabeça de um lado para o outro, inclinam o corpo para trás e curvam o abdômen para cima, chegando a apontá-lo para a frente. Enquanto estão no ar, as patas traseiras, esticadas, são torcidas para cima enquanto o abdômen desce. Um grupo de pesquisadores da Inglaterra, liderado por Malcolm Burrows, da Universidade de Cambridge, analisou os saltos de seis exemplares jovens da espécie

Stagmomantis theophila – cada um deles pulou três vezes nos testes – e mostrou que as manobras são essenciais para garantir a precisão do pouso num poleiro vertical (Current Biology, 16 de março). Os pesquisadores analisaram vídeo gravado em alta velocidade, reproduziram o movimento com um modelo produzido em computador e mostraram que a torção do abdômen, das patas traseiras e das dianteiras, cada parte de maneira precisa, controla o salto e permite aterrissar com elegância.

Acordar e dormir como antigamente

Apesar de ter acesso à eletricidade como os vizinhos da cidade, moradores da área rural de Baependi, município com quase 20 mil habitantes no sudeste de Minas Gerais, preferem manter o ritmo de sono natural, perdido com a possibilidade de iluminação artificial nas casas depois da Revolução Industrial, e acordar cedo e dormir cedo (Scientific Reports, março). Em um estudo comparativo, pesquisa-dores da Universidade de Surrey, Aus-trália, e da Universidade de São Paulo perguntaram a 729 moradores da cida-de e outros 96 da zona rural a que horas costumavam acordar e dormir. Os mo-radores da zona rural preferiam pular da cama em média às 6h30 e deitar-se às 21h20, indicando um estilo de vida con-servador, enquanto os da cidade acor-davam às 7h15 e dormiam às 22h30. Em Londres, os horários médios de acordar

e dormir eram 8h30 e 23h15. Os pesqui-sadores acreditam que os moradores da cidade seguem menos o ciclo natural do sono, que implicaria acordar e dormir mais cedo, e dormem menos que os vi-zinhos do campo, por causa da influência da iluminação artificial.

Exemplar do gênero Stagmomantis: estratégia corporal para locomoção

Quando o abdômen é experimentalmente endurecido com cola, de maneira que o inseto não consegue se arquear, os saltos perdem a precisão: os louva-a-deus erram a mira, têm dificuldades de agarrar o alvo ou até batem a cabeça nele antes de pousar.

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Estudo para Partida da monção, 1897, de Almeida Júnior (Acervo Pinacoteca do Estado de SP). Os bandeirantes saíam de Porto Feliz rumo ao Centro-Oeste

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Análise de textos antigos

e de entrevistas expõe

as marcas próprias

do idioma no país, o

alcance do R caipira e os

lugares que preservam

modos antigos de falar

possibilidade de ser simples, dispensar elementos gramaticais teoricamente essenciais e responder “sim, comprei”, quando alguém pergunta “você comprou o carro?”, é uma das características que conferem flexibilidade e identidade ao português brasileiro. A análise de documentos antigos e de entrevistas de campo ao longo dos últimos 30 anos está mostrando que o português brasileiro já pode ser conside-rado único, diferente do português europeu, do mesmo modo que o inglês americano é distinto do inglês britânico. O português brasileiro ainda não é, porém, uma língua autônoma: talvez seja – na previsão de especialistas, em cerca de 200 anos – quando acumular peculiaridades que nos impeçam de entender inteiramente o que um nativo de Portugal diz.

A expansão do português no Brasil, as varia-ções regionais com suas possíveis explicações,

carlos Fioravanti

Estudo para Partida da monção, 1897, de Almeida Júnior (Acervo Pinacoteca do Estado de SP). Os bandeirantes saíam de Porto Feliz rumo ao Centro-Oeste

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que fazem o urubu de São Paulo ser chamado de corvo no Sul do país, e as raízes das inovações da linguagem estão emergindo por meio do trabalho de cerca de 200 linguistas. De acordo com estu-dos da Universidade de São Paulo (USP), uma inovação do português brasileiro, por enquanto sem equivalente em Portugal, é o R caipira, às vezes tão intenso que parece valer por dois ou três, como em porrrta ou carrrne.

Associar o R caipira apenas ao interior pau-lista, porém, é uma imprecisão geográfica e his-tórica, embora o R desavergonhado tenha sido uma das marcas do estilo matuto do ator Amá-cio Mazzaropi em seus 32 filmes, produzidos de 1952 a 1980. Seguindo as rotas dos bandeirantes paulistas em busca de ouro, os linguistas encon-traram o R supostamente típico de São Paulo em cidades de Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná e oeste de Santa Catari-na e do Rio Grande do Sul, formando um modo de falar similar ao português do século XVIII. Quem tiver paciência e ouvido apurado poderá encontrar também na região central do Brasil – e em cidades do litoral – o S chiado, uma caracte-rística hoje típica do falar carioca que veio com os portugueses em 1808 e era um sinal de pres-tígio por representar o falar da Corte. Mesmo os portugueses não eram originais: os especialistas argumentam que o S chiado, que faz da esquina uma shquina, veio dos nobres franceses, que os portugueses admiravam.

A história da língua portuguesa no Brasil está trazendo à tona as características preservadas do português, como a troca do L pelo R, resultando em pranta em vez de planta. Camões registrou essa troca em Os lusíadas – lá está um frautas no lugar de flautas – e o cantor e compositor pau-lista Adoniran Barbosa a deixou registrada em diversas composições, em frases como “frecha-da do teu olhar”, do samba Tiro ao Álvaro. Em levantamentos de campo, pesquisadores da USP observaram que moradores do interior tanto do Brasil quanto de Portugal, principalmente os me-nos escolarizados, ainda falam desse modo. Outro sinal de preservação da língua identificado por especialistas do Rio de Janeiro e de São Paulo, dessa vez em documentos antigos, foi a gente ou as gentes como sinônimo de “nós” e hoje uma das marcas próprias do português brasileiro.

Célia Lopes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), encontrou registros de a gen-te em documentos do século XVI e, com mais frequência, a partir do século XIX. Era uma for-ma de indicar a primeira pessoa do plural, no sentido de todo mundo com a inclusão necessária do eu. Segundo ela, o emprego de a gente pode passar descompromisso e indefinição: quem diz

a gente em geral não deixa claro se pretende se comprometer com o que está falando ou se se vê como parte do grupo, como em “a gente precisa fazer”. Já o pronome nós, como em “nós precisamos fazer”, expressa responsabilidade e compromisso. Nos últimos 30 anos, ela notou, a gente instalou-se nos espaços antes ocupados pelo nós e se tornou um recurso bastante usado por todas as idades e classes sociais no país in-teiro, embora nos livros de gramática permaneça na marginalidade.

Linguistas de vários estados do país estão de-senterrando as raízes do português brasileiro ao examinar cartas pessoais e administrativas, testamentos, relatos de viagens, processos ju-diciais, cartas de leitores e anúncios de jornais desde o século XVI, coletados em instituições como a Biblioteca Nacional e o Arquivo Público do Estado de São Paulo. A equipe de Célia Lopes tem encontrado também na feira de antiguidades do sábado da Praça XV de Novembro, no centro do Rio, cartas antigas e outros tesouros linguís-ticos, nem sempre valorizados. “Um estudante me trouxe cartas maravilhosas encontradas no lixo”, ela contou.

de vossa mercê para cêOs documentos antigos evidenciam que o por-tuguês falado no Brasil começou a se diferen-ciar do europeu há pelo menos quatro séculos.

Sem título da série Estudo

para bandeirantes, sem data, de

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Uma indicação dessa separação é o Memórias para a história da capitania de São Vicente, de 1793, escrito por frei Gaspar da Madre de Deus, nascido em São Vicente, e depois reescrito pelo português Marcelino Pereira Cleto, que foi juiz em Santos. Comparando as duas versões, José Simões, da USP, encontrou 30 diferenças entre o português brasileiro e o europeu. Uma delas é encontrada ainda hoje: como usuários do por-tuguês brasileiro, preferimos explicitar os su-jeitos das frases, como em “o rapaz me vendeu o carro, depois ele saiu correndo e ao atravessar a rua ele foi atropelado”. Em português europeu, seria mais natural omitir o sujeito, já definido pelo tempo verbal – “o rapaz vendeu-me o car-ro, depois saiu a correr...” –, resultando em uma construção gramaticalmente impecável, embora nos soe um pouco estranha.

Um morador de Portugal, se lhe perguntarem se comprou um carro, responderá com naturali-dade “sim, comprei-o”, explicitando o comple-mento do verbo, “mesmo entre falantes pouco escolarizados”, observa Simões. Ele nota que os portugueses usam mesóclise – “dar-lhe-ei um carro, com certeza!” –, que soaria pernóstica no Brasil. Outra diferença é a distância entre a língua falada e a escrita no Brasil. Ninguém fala muito, mas muinto. O pronome você, que já é uma redu-ção de vossa mercê e de vosmecê, encolheu ainda mais, para cê, e grudou no verbo: cevai?

“A língua que falamos não é a que escrevemos”, diz Simões, com base em exemplos como esses. “O português escrito e o falado em Portugal são mais próximos, embora também existam diferen-ças regionais.” Simões complementa as análises textuais com suas andanças por Portugal. “Há 10

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Extensão máxima da Capitania de São Paulo em 1709

Expedições contra reduções jesuíticas espanholas

Expedições de apresamento de outros grupos indígenas

Expedições mercenárias paulistas no nordeste

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anos meus parentes de Portugal diziam que não entendiam o que eu dizia”, ele observa. “Hoje, provavelmente por causa da influência das no-velas brasileiras na televisão, dizem que já estou falando um português mais correto.”

“Conservamos o ritmo da fala, enquanto os eu-ropeus começaram a falar mais rápido a partir do século XVIII”, observa Ataliba Castilho, professor emérito da USP, que, nos últimos 40 anos, plane-jou e coordenou vários projetos de pesquisa sobre o português falado e a história do português do Brasil. “Até o século XVI”, diz ele, “o português brasileiro e o europeu eram como o espanhol, com um corte silábico duro. A palavra falada era muito próxima da escrita”. Célia Lopes acrescenta outra diferença: o português brasileiro conserva a maioria das vogais, enquanto os europeus em geral as omitem, ressaltando as consoantes, e di-riam tulfón para se referir ao telefone.

Há também muitas palavras com sentidos diferentes de um lado e de outro do Atlântico. Os estudantes das universidades privadas não pagam mensalidade, mas propina. Bolsista é bolseiro. Co-mo os europeus não adotaram algumas palavras usadas no Brasil, a exemplo de bunda, de origem africana, podem surgir situações embaraçosas. Vanderci Aguilera, professora sênior da Univer-sidade Estadual de Londrina (UEL) e uma das linguistas empenhadas no resgate da história do português brasileiro, levou uma amiga portuguesa a uma loja. Para ver se um vestido que acabava de experimentar caía bem às costas, a amiga lhe perguntou: “O que achas do meu rabo?”.

o Soldado e a FIlha do FazendeIroNo acervo de documentos sobre a evolução do português paulista (phpp.fflch.usp.br/corpus), es-tá uma carta de 1807, escrita pelo soldado Manoel Coelho, que teria seduzido a filha de um fazen-deiro. Quando soube, o pai da moça, enfurecido, forçou o rapaz a se casar com ela. O soldado, po-rém, bateu o pé: não se casaria, como ele escreveu, “nem por bem nem por mar”. Simões estranhou a citação ao mar, já que o quiproquó se passava na então vila de São Paulo, mas depois percebeu: “Olha o R caipira! Ele quis dizer ‘nem por bem nem por mal!’”. O soldado escrevia como falava, não se sabe se casou com a filha do fazendeiro, mas deixou uma prova valiosa de como se falava no início do século XIX.

“O R caipira era uma das características da língua falada na vila de São Paulo, que aos pou-cos, com a crescente urbanização e a chegada de imigrantes europeus, foi expulsa para a periferia ou para outras cidades”, diz Simões. “Era a língua dos bandeirantes.” Os especialistas acreditam

que os primeiros moradores da vila de São Pau-lo, além de porrta, pulavam consoantes no meio das palavras, falando muié em vez de mulher, por exemplo. Para aprisionar índios e, mais tarde, para encontrar ouro, os bandeirantes conquista-ram inicialmente o interior paulista, levando seu vocabulário e seu modo de falar. O R exagerado ainda pode ser ouvido nas cidades do chamado Médio Tietê como Santana de Parnaíba, Pirapora do Bom Jesus, Sorocaba, Itu, Tietê, Porto Feliz e Piracicaba, cujos moradores, principalmente os do campo, o pintor ituano José Ferraz de Al-meida Júnior retratou, até ser assassinado pelo marido de sua amante em Piracicaba. Os ban-deirantes seguiram depois para outras matas da imensa Capitania de São Paulo, constituída em 1709 com os territórios dos atuais estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Ron-dônia, Tocantins, Minas Gerais, Paraná e Santa Catarina (ver mapa).

Manoel Mourivaldo Almeida, também da USP, encontrou sinais do português paulista antigo em Cuiabá, a capital de Mato Grosso, que permane-ceu com relativamente pouca interação linguís-tica e cultural com outras cidades depois do fim do auge da mineração de ouro, há dois séculos. “O português culto dos séculos XVI ao XVII ti-nha um S chiado”, conclui Almeida. “Os paulis-tas, quando foram para o Centro-Oeste, falavam como os cariocas hoje!” O ator e diretor teatral cuiabano Justino Astrevo de Aguiar reconhece a herança paulista e carioca, mas considera um traço mais evidente do falar local o hábito de acrescentar um J ou um T antes ou no meio das palavras, como em djeito, cadju ou tchuva, uma característica da pronúncia típica do século XVII, que Almeida identificou também entre morado-res de Goiás, Minas Gerais, Maranhão e na região da Galícia, na Espanha.

Almeida apurou o ouvido para as variações do português no Brasil por conta de sua própria his-tória. Filho de portugueses, nasceu em Piritiba, interior da Bahia, saiu de lá aos 7 anos, morou em Jaciara, interior de Mato Grosso, e depois 25 anos em Cuiabá, foi professor da universidade federal e se mudou para São Paulo em 2003. Ele reconhece que fala como paulista nos momen-tos mais formais – embora prefira falar éxtra em

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vez de êxtra como os paulistas –, mas quando descontrai assume o ritmo de falar baiano e o vocabulário matogrossense. Ele estuda o modo de falar cuiabano desde 1991, por sugestão de um colega professor, Leônidas Querubim Avelino, especialista em Camões, que havia verificado sinais do português arcaico por lá. Avelino lhe contou que um roceiro cego de Livramento, a 30 quilômetros de Cuiabá, comentou que ele estava “andando pusilo”, no sentido de fraco. Avelino reconheceu uma forma reduzida de pusilânime, que não era mais usada em Portugal.

“Os moradores de Cuiabá e de algumas outras cidades, como Cáceres e Barão de Melgado, em Mato Grosso, e Corumbá, em Mato Grosso do Sul, preservam o português paulista do século XVIII mais do que os próprios paulistas. Paulistas do interior e também da capital hoje falam dia, com um d seco, enquanto na maior parte do Brasil se diz djia”, observou Almeida. “O modo de falar pode mudar dependendo do acesso à cultura, da motivação e da capacidade de perceber e ar-ticular sons de modo diferente. Quem procurar nos lugares mais distantes dos grandes centros urbanos vai encontrar sinais de preservação do português antigo.”

De 1998 a 2003, uma equipe coordenada por Heitor Megale, da USP, seguiu a rota das ban-deiras do século XVI em busca de traços da lín-gua portuguesa antiga que tenham permanecido ao longo de quatro séculos. As entrevistas com moradores com 60 anos a 90 anos de quase 40 cidades ou povoados de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso trouxeram à tona termos esqueci-dos como mamparra (fingimento) e mensonha (mentira), uma palavra de um dos poemas de Francisco de Sá de Miranda do século XV, treição,

usada no interior de Goiás no sentido de surpre-sa, e termos da linguagem popular ainda usados em Portugal, como despois, percisão e tristura, comuns no sul de Minas. O que parecia anacro-nismo ganhou valor. Dizer sancristia em vez de sacristia não era um erro, “mas uma influência preservada do passado, quando a pronúncia era assim”, relatou o Jornal da Manhã, de Paracatu, Minas, em 20 de dezembro de 2001.

Ao norte, a língua portuguesa expandiu-se para o interior a partir da cidade de Salvador, que foi a capital do Brasil Colônia durante três séculos. Salvador era também um centro de fer-mentação da língua, por receber multidões de escravos africanos, que aprendiam o português como língua estrangeira, mas também ofereciam seu vocabulário, ao qual já haviam se somado as palavras indígenas.

Para impedir que a língua de Camões se des-figurasse ao cruzar com os dialetos nativos, Se-bastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, secretário de Estado do reino, resolveu agir. Em 1757, Pombal expulsou os jesuítas, entre outras razões de ordem política, porque estavam ensinando a doutrina cristã em língua indígena, e, por decreto, fez do português a língua oficial do Brasil. O português se impôs sobre as línguas nativas e ainda hoje é a língua oficial, embora os linguistas alertem que não possa ser chamada de nacional por causa das 180 línguas indígenas faladas no país (eram 1.200, estima-se, quando os portugueses chegaram). A miscigenação lin-guística, que reflete a mistura de povos forma-dores do país, explica em boa parte as variações

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Rua 25 de março, 1894, de Antonio Ferrigno (Acervo Pinacoteca do Estado de SP). A cidade de São Paulo tinha um sotaque próprio

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regionais de vocabulário e de ritmos, sintetiza-das em um mapa dos falares do Museu da Lín-gua Portuguesa, em São Paulo. É fácil encontrar variações em um mesmo estado: os moradores do norte de Minas falam como os baianos, os da região central mantêm o autêntico mineirês, no sul a influência paulista é intensa e a leste o modo de falar assemelha-se ao sotaque carioca.

a pandorga e o bIgatoHá 10 anos um grupo de linguistas estuda um dos resultados da miscigenação linguística: os diferentes nomes com que um mesmo objeto pode ser chamado, registrados por meio de en-trevistas com 1.100 pessoas em 250 localidades. Brasil afora, o brinquedo feito de papel e varetas que se empina ao vento por meio de uma linha é chamado de papagaio, pipa, raia ou pandorga – ou ainda coruja em Natal e João Pessoa –, de acordo com o primeiro volume do Atlas linguístico do Brasil, publicado em outubro de 2014 com os resultados das entrevistas nas capitais (Editora UEL). Já o aparelho com luzes vermelha, ama-rela e verde usado em cruzamentos de ruas para regular o trânsito é chamado apenas de sinal no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte e também de semáforo nas capitais do Norte e Nordeste. Goiânia registrou os quatro nomes para o mesmo objeto: sinal, semáforo, sinaleiro e farol.

Começa agora a busca de explicações para essas diferenças. “Onde nasci, em Sertanópolis, a 42 quilômetros de Londrina”, disse Vanderci Aguilera, uma das coordenadoras do Atlas, “cha-mamos bicho de goiaba de bigato por influência dos colonizadores, que eram imigrantes italianos vindos do interior paulista”. Segundo ela, os mo-radores dos três estados do Sul chamam urubu de corvo por influência dos europeus, enquanto os do Sudeste mantiveram o nome tupi, urubu.

Cada estado – ou região – tem seu próprio pa-trimônio linguístico, que deve ser respeitado, enfatizam os especialistas. Os professores de português, alerta Vanderci, não deveriam re-preender os alunos por chamarem beija-flor de cuitelo, como é comum no interior do Paraná, nem recriminar os que dizem caro, churasco ou baranco, como é comum entre os descendentes de poloneses e alemães no Sul, mas ensinar outras formas de falar e deixar a meninada se expressar como quiser quando estiver com a família ou com os amigos. “Ninguém fala errado”, ela enfatiza. “Todo mundo fala de acordo com sua história de vida, com o que foi transmitido pelos pais e de-pois modificado pela escola. Nossa fala é nossa identidade, não temos por que nos envergonhar.”

A diversidade do português brasileiro é tão grande que, apesar do empenho dos locutores de telejornais de alcance nacional em tentar criar uma língua neutra, despida de sotaques locais,

“não há um padrão nacional”, assegura Castilho. “Há diferenças de vocabulário, gramática, sintaxe e pronúncia mesmo entre pessoas que adotam a norma culta”, diz ele. Insatisfeito com as teorias importadas, Castilho criou a abordagem multis-sistêmica da linguagem, segundo a qual qualquer expressão linguística mobiliza simultaneamen-te quatro planos (léxico, semântica, discurso e gramática), que deveriam ser vistos de modo integrado e não mais separadamente. Ao lado de Verena Kewitz, da USP, ele tem debatido essa abordagem com estudantes de pós-graduação e com outros especialistas do Brasil e no exterior.

Também está claro que o português brasi-leiro se refaz continuamente. As palavras podem morrer ou ganhar novos sentidos. Almeida contou que Celciane Vasconcelos, uma das estudantes de seu grupo, verificou que somente os moradores mais antigos do litoral paranaense conheciam a palavra sumaca, um tipo de barco antes comum, que hoje não se constrói mais, tirando a antiga serventia da palavra que hoje nomeia uma praia em Paraty (RJ). Os modos antigos de falar podem ressurgir. O R caipira, asseguram os linguistas,

está voltando, até mesmo em São Paulo, e read-quirindo status, na esteira dos cantores de música sertaneja. “Hoje ser caipira é chique”, assegura Vanderci. Ou ao menos é aceitável e parte do estilo pessoal, como o da apresentadora de TV Sabrina Sato.

bIlheteS de amorOs linguistas têm notado a expansão do tratamen-to informal. “Tenho 78 anos e devia ser tratado por senhor, mas meus alunos mais jovens me tratam por você”, diz Castilho, aparentemente sem se incomodar com a informalidade, incon-cebível em seus tempos de estudante. O você, porém, não reinará sozinho. Célia Lopes, com sua equipe da UFRJ, verificou que o tu predo-mina em Porto Alegre e convive com o você no Rio de Janeiro e em Recife, enquanto você é o tratamento predominante em São Paulo, Curi-

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tiba, Belo Horizonte e Salvador. O tu já era mais próximo e menos formal que você nas quase 500 cartas do acervo on-line da UFRJ (www.letras.ufrj.br/laborhistorico/), quase todas de poetas, políticos e outras personalidades do final do sé-culo XIX e início do XX.

Como ainda faltava a expressão do falar das pessoas comuns, Célia e sua equipe exultaram ao encontrar 13 bilhetes escritos em 1908 por Robertina de Souza para seu amante e para seu marido. Esse material era parte de um processo--crime movido contra o marido, que expulsou de sua casa um amigo e a própria mulher ao saber que tinham tido um caso extraconjungal e de-pois matou o ex-amigo. Em um dos 11 bilhetes para o amante, Álvaro Mattos, Robertina, que assinava como Chininha, escreveu: “Eu te adoro te amo até a morte sou tua só tu é meu só o meu coracao e teu e o teu coracao é meu. Chininha e todinha tua ate a morte”. Já o marido, Arthur Noronha, que recebeu apenas dois bilhetes, ela tratava de modo mais formal: “Eu rezo pedin-do a Deus para você me perdoar, mas creio que voce não tem coragem de ver morrer um filho o filha”. E mais adiante: “Não posso me separar

de voce e do meu filho a não ser com a morte”. Não se sabe se ela voltou para casa, mas o mari-do foi absolvido, por alegar que matou o outro homem em defesa da honra.

Outro sinal da evolução do português brasi-leiro são as construções híbridas, com um verbo que não concorda mais com o pronome, do tipo tu não sabe?, e a mistura dos pronomes de trata-mento você e tu, como em “se você precisar, vou te ajudar”. Os portugueses europeus poderiam alegar que se trata de mais uma prova de nossa capacidade de desfigurar a língua lusitana, mas talvez não tenham tanta razão para se queixar. Célia Lopes encontrou a mistura de pronomes de tratamento, que ela e outros linguistas não con-sideram mais um erro, em cartas do marquês do Lavradio, que foi vice-rei do Brasil de 1769 a 1796, e, mais de dois séculos depois, em uma entrevista do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. n

ProjetoProjeto de história do português paulista (PhPP – Projeto Caipira) (nº 11/51787-5); Modalidade Projeto temático; Pesquisador res-ponsável manoel mourivaldo Santiago Almeida(uSP); Investimento r$ 87.372,10 (FAPESP).

Cena de família de Adolfo Augusto Pinto, 1891, de Almeida Júnior (Acervo Pinacoteca do Estado de SP).no final do século XIX o pronome você já era mais formal que o tu

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entrevista

Thomas Lovejoy parece igualmente à vontade ves-tindo roupas adequadas para andar no mato ou paletós e gravatas-borboleta de estampas varia-das. A versatilidade denota uma rara habilidade de transitar entre a selva, produzindo ciência, e

as salas de governo, discutindo políticas ambientais, que va-leu a esse biólogo norte-americano uma série de prêmios por suas contribuições à compreensão e defesa da biodiversidade. Lovejoy ganhou o reconhecimento da comunidade científica também por ter criado a expressão diversidade biológica, hoje de uso corriqueiro. “Falávamos sobre diversidade biológica, mas não tínhamos o termo”, ele contou.

Formado em biologia em Yale e professor na Universida-de George Mason desde 2010, Lovejoy foi à Amazônia pela primeira vez em 1965 para fazer o doutorado. Não saiu mais. Ao lado de pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), ele ajudou a criar e, desde os anos 1970, lidera um experimento de grande escala que investiga o fun-cionamento de fragmentos florestais e os efeitos do desma-tamento sobre a diversidade de espécies de animais e plantas (ver Pesquisa FAPESP n. 205). Desde o início, esse trabalho norteou o planejamento de áreas de preservação na Amazônia.

Lovejoy foi conselheiro para assuntos ambientais do Banco Mundial, do Instituto Smithsonian e dos governos Reagan, Bush e Clinton, vice-presidente executivo do Fundo para

Thomas Lovejoy

idade 73 anos

especialidade Ecologia

formação Biologia, Universidade Yale (bacharelado e doutorado)

instituição Departamento de Ciência e Política Ambiental, Universidade George Mason, Estados Unidos

produção científica 254 artigos científicos e 8 livros publicados

cinquenta anos de amazôniaBiólogo americano lidera projeto pioneiro que tem

ajudado a definir as áreas de preservação de florestas

maria Guimarães e carlos fioravanti

FoTo eduardo cesar

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a Natureza (WWF) e tem sido um in-terlocutor do governo brasileiro para a formulação de políticas ambientais. Para ele, é essencial planejar o gerenciamen-to da região de uma maneira integrada, reunindo cidades, floresta, transportes, energia e agropecuária numa mesma equação. Preocupado com o futuro da Amazônia, não pretende deixar de ser um protagonista na região, como ele contou, usando camisa azul listrada e gravata-borboleta vermelha, nesta en-trevista concedida a Pesquisa FAPESP, por skype, de Washington.

O que o levou à Amazônia, há 50 anos?No verão de 1965 [inverno no Brasil] ti-ve a oportunidade de trabalhar no Ins-tituto Evandro Chagas e na floresta nos arredores de Belém. Foi aí que decidi que queria fazer meu doutorado na Amazô-nia. Sempre fui fascinado por diversidade biológica e ima-ginava ter uma vida cheia de aventuras científicas. A Ama-zônia era esse mundo selva-gem inacreditável e tropical. Era como se eu tivesse mor-rido e chegado ao Paraíso. Era fascinante, e aos poucos passei de simplesmente fazer ciência a fazer ciência e con-servação ambiental. A Ama-zônia é um dos lugares mais importantes para trabalhar no mundo.

Pouca gente devia fazer pes-quisa por lá nessa época.A comunidade científica era realmente bem pequena. Em Belém havia o Museu Goeldi, com uma história muito distinta, e o Instituto Evandro Chagas, fa-zendo pesquisa em epidemiologia e saú-de. O Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) tinha acabado de ser criado em Manaus, mas só estive lá em 1976. Em ecologia florestal, área em que fiz meu doutorado, havia apenas duas ou-tras pessoas, uma na Amazônia peruana e outra na Venezuela.

Como foi o processo de se instalar e en-contrar os caminhos?A gente vai improvisando. Todos foram muito solícitos e me apaixonei pelo Bra-sil na hora. Consegui levantar dinheiro para o trabalho de campo e minha base

era o Instituto Evandro Chagas, que ti-nha muito interesse em ecologia e histó-ria natural, para saber como as doenças se desenvolvem. Tentei fazer duas teses de uma vez: uma sobre a ecologia das aves e outra sobre epidemiologia de vírus transmitidos por artrópodes. Eu tinha uma quantidade de dados tão imensa que acabei fazendo a tese só na ecologia das aves e entreguei todos os dados de vírus e epidemiologia ao laboratório de vírus de Belém. Tive muita sorte porque nunca peguei nenhuma dessas doenças tropicais. Onde eu trabalhava não era área de malária, que é a mais assustadora.

Mas se perdeu na floresta, não? Algumas vezes, mas sempre encontrava o caminho. Não se deve se afastar mais de 5

metros da trilha, porque é muito fácil se perder. A regra mais importante para tra-balhar na floresta é nunca ir sozinho. No Projeto Dinâmica Biológica de Fragmen-tos Florestais [PDBFF], perto de Manaus, essa é a principal regra: ninguém entra na floresta sozinho. Por coincidência, hoje [20 de março] foi publicado um ar-tigo numa revista nova chamada Science Advances sobre fragmentação florestal no mundo. Tem cerca de 25 autores, que participam de projetos de fragmentação de hábitat. O projeto mais antigo é o que comecei, há 36 anos.

Como foi criar o PDBFF na década de 1970? A parte mais fácil foi conseguir a apro-

vação e a colaboração do Inpa e da Zona Agropecuária ao norte de Manaus. Con-segui no primeiro dia. A parte difícil foi conseguir o dinheiro. Em grande parte o projeto tirava proveito do Código Flo-restal da época, porque naquele período na Amazônia era preciso deixar 50% de qualquer propriedade como floresta. Ho-je é 80%, o que faz sentido por causa do ciclo hidrológico. Trabalhamos com três fazendas adjacentes antes que tivessem cortado qualquer árvore. Ajudamos a mapear as propriedades, de maneira que eles sabiam onde estavam os córregos e onde eram as partes planas. Foi uma grande vantagem para os fazendeiros. E foram eles que fizeram o desmatamen-to. O mais difícil foi conseguir jovens estudantes brasileiros para participar,

porque, naqueles dias, quem estivesse numa universidade no sul do país não pensava em ir para a Amazônia. Re-cebíamos uma enxurrada de estudantes da Europa e dos Estados Unidos, mas sabía-mos que era muito impor-tante ter brasileiros. Então fomos visitar universidades no sul do Brasil. Depois ficou cada vez mais fácil.

Alguém já tinha feito um pro-jeto assim antes, para estu-dar fragmentos florestais?Não. Esse foi o primeiro expe-rimento. Quando eu morava em Belém, durante o doutora-do, saiu um livro sobre a teoria da biogeografia de ilhas. Como ele falava de números de tipos

de espécies em ilhas, as pessoas começa-ram a pensar: “Bem, talvez fragmentos de hábitat também sejam como ilhas”. Nesse momento surgiu a questão sobre qual seria o tamanho ideal para uma área protegida de floresta: ter uma área grande ou várias pequenas? Àquela altura eu trabalhava para o Fundo Mundial para a Natureza [WWF] e percebi que isso era importante para to-dos os projetos enviados. Não sabíamos se eles seriam bem-sucedidos até entender-mos os efeitos da fragmentação de hábitat. Foi isso que levou ao projeto. Pensei que o deixaria correr por 20 anos e conseguiria minha resposta. Mas eu não tinha ideia das taxas de mudança e não estava prestando atenção ao valor de conjuntos de dados de longa duração, que são raros no mundo.

a amazônia era um mundo inacreditável. era como se eu tivesse morrido e chegado ao paraíso

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Eu não tinha avaliado como seria importante em termos de construção de capacida-de e também não imaginava que pudesse trazer pessoas para duas ou três noites na floresta, falar com estudantes, ter a experiência da flores-ta e entender sua importân-cia, entender biodiversidade. Sempre tento levar gente in-teressante para lá.

Você trouxe pesquisadores importantes para a Amazô-nia e ajudou na formação de muitos. Foram em torno de 150 douto-rados e mestrados, pelo menos metade deles era de brasilei-ros. Uma de nossas estudan-tes, Rita Mesquita, de Belo Horizonte, foi a primeira da família dela a ir à universida-de. Dois dias depois de se for-mar, para desgosto do pai, ela aceitou um convite para fazer um estágio no projeto e depois fez mestrado e doutorado lá. Ela chegou a ser responsável pela conservação ambiental de todo o estado do Amazonas. O pai ficou muito orgulhoso. Agora ela está no Depar-tamento de Ecologia do Inpa. É maravi-lhoso ver estudantes de nacionalidades diferentes trabalhando juntos como se não houvesse diferenças nacionais.

Qual foi sua conclusão sobre o tama-nho mínimo desejável para as reservas?Por inferência, já dava para imaginar que é importante ser grande. Porque uma an-ta, por exemplo, precisa de muito espaço. Se a área for menor que a de uma anta, não vai funcionar. Mas a forma como es-ses fragmentos – resultantes do desma-tamento – perdem espécies é dramática. Um artigo de 2003, cujo autor principal era Gonçalo Ferraz, de Portugal, agora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mostrou que um fragmento de 100 hectares perde a metade das espécies de aves em menos de 15 anos. E são aves que não gostam de sair ao sol. Elas dependem dos recursos desses 100 hectares e, com a fragmentação, a floresta não basta mais para sustentá-las. Olha que engraçado: o projeto, no minuto em que começou, já influenciou decisões no Brasil sobre a

criação de parques nacionais. Todos os que foram criados são muito grandes. Isso foi quando Maria Tereza Jorge Pá-dua estava à frente dos parques nacio-nais, e ela tinha muito interesse no que a ciência tinha a dizer. Ela sabia que o conhecimento científico deve chegar à tomada de decisão e o incorporava. O mesmo valia para Paulo Nogueira-Neto, o primeiro secretário da Sema [Secreta-ria Especial de Meio Ambiente].

Você sente abertura de autoridades do governo atual para ouvir o que a ciên-cia tem a dizer?O Ministério do Meio Ambiente está muito interessado em ciência. Eles têm cientistas de estatura mundial à frente de divisões importantes, como Roberto Cavalcanti na divisão de Biodiversidade e Carlos Klink na divisão de Mudanças Climáticas. A ministra Izabella Teixeira também tem formação em ciência.

Você fala diretamente com eles?Trocamos e-mails.

O PDBFF é o experimento de mais longa

duração em florestas tropicais. Vocês conseguiram as respostas que buscavam? Conseguimos uma resposta sim-ples para uma pergunta simples, sobre o tamanho mínimo das áreas de florestas a ser mantido. Mas também sabemos que esses fragmentos vão continuar a mu-dar por séculos. Os fragmentos pequenos mudam muito depres-sa, os grandes mais devagar e de modo mais complexo. Há todos os motivos para o trabalho con-tinuar, e estou tentando armar para que não termine comigo. Também começamos a estudar coisas que não estavam incluí-das no plano inicial. Uma delas é o impacto da matriz em torno dos fragmentos. Então, quan-do foram retirados os subsídios que sustentavam a pecuária, as fazendas foram abandonadas e a mata voltou a crescer. Isso co-meçou a diminuir o isolamento dos fragmentos. Começamos a estudar a sucessão vegetal nas áreas do entorno. Agora há a influência das mudanças climá-ticas. Ainda não temos um sinal

forte, mas algo parece estar acontecendo.

Agora se sabe o que fazer para recons-tituir a floresta em fragmentos aban-donados?Em termos de políticas mais amplas, o mais óbvio, sempre que possível, é reco-nectar fragmentos de maneira a se tor-narem parte de um sistema maior para que não percam tanta biodiversidade. Em geral acho que precisamos de pla-nejamento e gerenciamento da paisagem mais integrados. Em qualquer lugar do mundo, há várias partes em movimen-to que não são coordenadas. Que sejam na Amazônia ou em partes dos Estados Unidos, decisões de transporte são feitas separadamente de decisões de energia e decisões agrícolas. Precisamos pensar na escala da paisagem.

O que você faz hoje no PDBFF?Nos últimos 34 anos, mais ou menos, uma equipe em Manaus gerencia esse projeto, garantindo que os estudantes tenham o que precisam. Minha função agora é construir uma instituição com fluxo financeiro suficiente para que o

Nos anos 1980 na Amazônia com Mary o’Grady, do WWF

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projeto possa se perpetuar. Já temos uma sede no Inpa que construímos com fun-dos do governo norte-americano. Um deputado gostou da ideia e nos deu o dinheiro. Foi bom, não precisamos pedir que o Inpa construísse um prédio, sem-pre tivemos o cuidado de não pedir de-mais e reconhecer que somos hóspedes.

Você também dá aulas?Dou apenas um curso por semestre no ano porque, para a universidade, minhas outras atividades são suficientes. Uma delas é institucionalizar o projeto dos fragmentos, outra é a preocupação com o futuro da Amazônia. Há 30 anos traba-lho no que se chama biologia da mudança climática, as mudanças afetando a natu-reza. Mas também, nos últimos anos, em como a natureza pode contri-buir para resolver o problema da mudança climática. Há um projeto agora para produzir um mapa até a conferência do clima de Paris, um mapa global do potencial de restau-ração de ecossistemas mos-trando o que se pode fazer do ponto de vista da biologia. Provavelmente é cortar da at-mosfera meio grau Celsius da mudança climática antes que algo aconteça.

Como pode ser feito?Reflorestamento, restauração de pastos degradados, siste-mas agrícolas que acumulam carbono e restauração de ve-getação costeira. O excesso de CO² na atmosfera dos re-centes séculos de maus-tratos aos ecos-sistemas é bem grande, mas basta restau-rar para ganhar de volta todos os bene-fícios que esses ecossistemas fornecem.

Você lançou o termo diversidade bio-lógica nos anos 1980. Os biólogos não pensavam nisso?É bem interessante. Nos anos 1960, tínhamos a teoria da biogeografia de ilhas e começaram a sair muitos artigos sobre riqueza de espécies, mas não tínhamos um termo coletivo para falar da variedade de seres vivos na natureza. Eu me lembro, devia ser 1975 ou 1976, da primeira vez que encontrei Ed Wilson [Edward Wilson, biólogo americano]. Almoçamos juntos e falamos sobre diversidade biológica, mas

não tínhamos o termo. Discutimos onde o Fundo para a Natureza deveria se con-centrar e concordamos que deveria ser nos trópicos, porque há mais espécies lá do que no Alasca, por exemplo. Era biodiversida-de pura. O fascinante é que as pessoas co-meçaram a usar o termo. Eu usei em 1980, Ed Wilson usou mais para o fim do ano e depois muitas outras pessoas começaram a usar. Nem paramos para pensar de onde tinha vindo, e só mais tarde Elliot Norse voltou atrás e disse: “Sabe, acho que você foi o primeiro”. A contração biodiversidade veio depois, em 1987. Havia um simpósio organizado pela Academia Nacional e pelo Instituto Smithsonian e o termo foi con-traído para o simpósio. É um termo um pouco técnico, mas me disseram que o país em que ele é mais conhecido é o Brasil.

Você trabalhou por muitos anos para o WWF. Na sua opinião, quando e como um cientista deve ir além da atividade acadêmica? A academia não é um bom lugar para al-gumas coisas. Sou efetivado na universi-dade onde dou aulas. Se estivesse numa universidade fazendo um projeto de longa duração, nunca teria conseguido a efetiva-ção, porque demora muito para conseguir os resultados. Quando se olha para nossos desafios atuais — 2 bilhões de pessoas a mais e mudança climática —, às vezes dá vontade de fechar a porta e nunca mais se envolver, mas todos os dias vejo coisas muito boas sendo feitas, então fica fácil lidar com o lado negativo. Costumo dizer que o otimismo é a única opção.

Mas a atividade em um lugar como o WWF também requer um talento espe-cífico para ir do conhecimento científico às políticas na prática.Tem razão. Acho que há muitos mais que poderiam fazê-lo do que os que fazem agora. É preciso ser prático, mas tam-bém ampliar os horizontes. É assim que a mudança acontece. Mas o que consegui fazer em países como o Brasil foi sem-pre em parceria. A cada Natal telefono ao Paulo Nogueira-Neto, que vai fazer 93 anos. Ele é quase um pai, e bastam três frases para ele começar a falar de ambiente. A gente desenvolve amizades reais que transcendem completamente quaisquer fronteiras nacionais.

Você ainda vai à Amazônia?Vou! É muito interessante ter uma perspectiva de 50 anos. Em 1965 havia apenas uma estrada na Amazônia in-teira, que corresponde aos 48 estados contíguos norte--americanos. Era a estrada de Belém a Brasília, e as pes-soas falavam maravilhadas sobre a colonização espon-tânea acontecendo ao longo dela. Era como um anúncio de tudo o que estava por vir. Agora há centenas de milha-res de caminhos e estradas, 20% da Amazônia deve estar desmatada e é uma saga em andamento. Mas o que não é tão evidente para o público é o lado positivo do trabalho de conservação. Em 1965 só havia um parque nacional na

Amazônia inteira e era na Venezuela. Ha-via uma Floresta Nacional, no Brasil, no Tapajós, e uma área indígena demarcada, o Xingu. Hoje mais de 50% da Amazônia está sob alguma forma de proteção. É um feito extraordinário que nunca imagina-mos possível. Mas a história não acabou, não é? Sabemos agora que a Amazônia deve ser gerenciada como um sistema. Gerenciada de uma maneira que preserve seu ciclo hidrológico, que continue ca-paz de ser uma floresta chuvosa, que a região agrícola de Mato Grosso continue a receber chuva suficiente, que alguma água chegue até a Argentina e São Paulo.

Ainda não temos como saber se as se-cas atuais têm relação com o desma-

a cada natal telefono ao paulo nogueira- -neto, que vai fazer 93 anos. a amizade vai além das fronteiras

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pesQuisa fapesp 230 | 29

tamento, mas você acha que há dados nessa direção?Acho que há outras coisas acontecendo ao mesmo tempo. Uma delas é uma mu-dança climática real. Outra é a redução na quantidade de umidade que chega da Amazônia. Pode ser parte de flutuações climáticas normais, mas também porque 20% da Amazônia já foi desmatada. A ciência é imprecisa nesse aspecto, mas isso deve ser próximo do ponto de virada em que a floresta poderia se alterar para uma forma de vegetação diferente, como a savana nas partes sul e leste da Ama-zônia. Há também, é claro, as questões de desmatamento local nos mananciais de São Paulo. E há boas notícias aqui: é perfeitamente possível fazer um reflo-restamento significativo dessa destruição e reconstruir a margem de segurança contra a perda de floresta. Em termos de mudança global do clima, fazer esse tipo de coisa pelo mundo é de fato uma forma muito boa de reduzir a extensão de mudança no clima. Nem todos estão de acordo, mas vemos um crescente re-conhecimento da importância do ciclo hidrológico da Amazônia e a necessidade de mantê-lo. Na escala global, a ideia de restaurar ecossistemas e capturar CO2 da atmosfera está começando a receber muita atenção.

Sem essas medidas, a Amazônia pode estar perto de um ponto sem retorno?Sim. Não sabemos precisamente onde es-se ponto é em desmatamento, mas acho que é em torno de algo próximo do que já foi desmatado. Ninguém quer desco-brir exatamente qual é o ponto porque aí o ponto de virada terá sido virado. Os seres humanos são muito bons em usar um recurso até o limite, descobrindo que algum outro fator chega e os empurra para fora da borda. Neste caso faz senti-do recuar e, essencialmente, ter cautela.

Você tem acompanhado os grandes pro-jetos de hidrelétricas na Amazônia?Tenho, e acho que é importante desen-volver um novo plano de energia para a região. Alguns deles, como a barragem do rio Madeira, foram projetados, pelo que sei, para levar em conta a ecologia dos peixes, por exemplo. Mas outros se baseiam em modelos mais antigos. É hora de repensar isso tudo, daria para fazer com menos impacto. E claro que um grande problema na Amazônia é que,

quando se constrói uma estrada, se cria o acesso de que todo mundo falava quando fui lá pela primeira vez, com a Belém--Brasília. É muito difícil construir uma represa sem fazer estradas, certo? É pre-ciso uma maneira mais integrada de pen-sar sobre isso. Pode ser muito inovador. Na Amazônia peruana tem um projeto de gás e petróleo chamado Camisea, em que me envolvi bastante, que foi cons-truído e opera sem nenhuma estrada.

Como é possível?A primeira empresa que fez a explora-ção disse: “Não vamos construir estra-das”. Trouxeram tudo por ar e pelo rio. Os poços estão conectados por tubos subterrâneos com sensores. Se há um problema, sabe-se exatamente onde o sensor está e um helicóptero vai direto àquele ponto.

Esse exemplo poderia ser seguido aqui?Certamente, já que Urucu segue o mes-mo modelo de Camisea. Volto ao que disse antes, a Amazônia precisa ser ge-renciada como um sistema, o que signi-fica realmente um planejamento e um gerenciamento integrados.

Hoje existem ecólogos, ambientalistas, universidades e ONGs trabalhando na Amazônia. Qual sua avaliação?Para começar, acho notável a transforma-ção em termos de capacidade científica e da sociedade civil. Não há dúvida de que o Brasil é um líder importante nessas

questões. Não só o ambiente num sen-tido estreito. A capacidade da Embrapa na pesquisa em agricultura tropical é uma das melhores do mundo. O desafio é como encaixar todas essas coisas de maneira harmoniosa.

Como imagina o futuro da Amazônia?Este é meu sonho: que todos os países amazônicos trabalhem juntos para ge-renciar a Amazônia como um sistema e ter um planejamento e um gerenciamen-to realmente integrados. Não vale só para as florestas, mas também para as cidades. A qualidade de vida nas cidades amazô-nicas é uma parte muito importante para se atingir a solução ideal.

Isso significa organizar o desenvol-vimento das cidades para concentrar a qualidade de vida sem afetar os ar-redores?Sim. O exemplo interessante, claro, é Manaus, como uma zona franca com toda a indústria de montagem, de ma-neira que o estado do Amazonas tem uma taxa de desmatamento muito baixa. Pensar sobre a Amazônia como um todo requer considerar as cidades também. Em geral os verdes pensam na floresta e as pessoas com preocupações sociais pensam sobre os problemas nas cidades. Elas não juntam as duas coisas.

Esperamos que não tenha planos de se aposentar em breve.Vou me aposentar com as botas calçadas. n

Na década de 1970 na Amazônia, quando algumas áreas de estudo do PDBFF já haviam sido isoladas

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Estudos apresentam novas hipóteses para explicar

diferenças nas trajetórias de homens e mulheres na ciência

Bruno de Pierro

Política c&t gênEro y

A força dos estereótipos

Page 31: Pesquisa FAPESP

PESQUiSa FaPESP 230 z 31

E m janeiro de 2005, o então reitor da Uni-versidade Harvard, o economista Lawren-ce Summers, disse numa conferência que a reduzida participação das mulheres nas

ciências e na matemática se explicaria por uma natural inaptidão feminina para tais campos do conhecimento. A declaração sem respaldo cientí-fico rendeu a Summers uma avalanche de críticas que culminaram com sua destituição do cargo de reitor de uma das mais prestigiadas universida-des norte-americanas. Um estudo publicado em janeiro na revista Science enxerga uma relação entre a baixa participação feminina em certas áreas da ciência e a ideia de que talentos inatos determinam carreiras científicas, mas de uma for-ma muito diferente daquela que Summers propôs.

O trabalho colheu evidências de que certos campos do conhecimento, tais como matemáti-ca e física, combinam uma participação baixa de

mulheres no contingente de doutores com uma crença disseminada, dentro e fora de suas comu-nidades de pesquisadores, de que é necessário ter um talento natural para seguir tais carreiras. Os autores sugerem que as mulheres, bombardeadas desde cedo com a ideia de que lhes falta a apti-dão natural, simplesmente tendem a evitar tais carreiras, o que, isso sim, explicaria a participa-ção restrita. “Essa mensagem é combinada com estereótipos arraigados em nossa cultura que di-minuem a diversidade de gênero na ciência”, diz Sarah-Jane Leslie, professora do Departamento de Filosofia da Universidade Princeton e autora principal do artigo.

Para a pesquisadora, quando as mulheres inter-nalizam esses estereótipos, podem também deci-dir que tais campos do conhecimento não são para elas. Como resultado disso, acabam tendo pouca representação nessas áreas que exigiriam um

FontE sarah-janE lEsliE/princEton univErsity

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Visões distintasimportância atribuída à ideia de talento inato para ser pesquisador de uma área e o número de doutoras por disciplina em 2011 nos Estados unidos

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aPtidão natUral

a escala de 3,2 a 5,2 representa o grau de crença no talento inato. as disciplinas com valores mais altos são aquelas cujos pesquisadores dão mais ênfase a essa ideia

rEPrESEntação FEminina

participação de mulheres entre doutores em 2011 nos Estados unidos

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32 z Abril DE 2015

talento especial. Sarah-Jane teve um vislumbre dessa ideia após participar de uma conferência da Sociedade para Filosofia e Psicologia (SPP, na sigla em inglês). “Reparei que os filósofos davam muita importância para a ideia de aptidão inata, enquanto os psicólogos enfatizavam mais a de-dicação e o esforço”, diz ela. “Ao mesmo tempo, percebi que havia no local mais homens filóso-fos e mais mulheres psicólogas”, completa. A partir dessa observação, Sarah-Jane decidiu ver na prática se essa correlação entre o número de pesquisadores num campo do conhecimento e a crença no talento inato aparecia em outras áreas.

A resposta foi positiva. A crença em algum tipo de talento ou aptidão inatos foi identificada nas chamadas ciências duras, como a física, e as tec-nológicas, como as engenharias e a computação – campos cuja participação feminina geralmente é menor, principalmente no topo da carreira. Se-gundo o estudo, o fenômeno explica a variação da representação feminina em algumas disciplinas das ciências humanas, campo cuja frequência de mulheres é mais pronunciada. Nos Estados Unidos, por exemplo, há mais doutoras atuando em história da arte e psicologia (cerca de 70%) do que em economia e filosofia (menos de 35%).

Sarah-Jane e sua equipe aplicaram 1.820 questionários a estudantes de pós-gradua-ção e recém-doutores, de várias partes dos

Estados Unidos, que participaram de um levanta-mento feito em 2011 pela National Science Foun-dation (NSF), a principal agência de fomento à pesquisa dos Estados Unidos. Os entrevistados pertenciam a 30 disciplinas diferentes: 12 em ciências naturais e tecnológicas, incluindo enge-nharias e matemática, e 18 em ciências sociais e humanidades. Foi pedido aos participantes que respondessem a algumas questões. Uma delas perguntava: “Ser um pesquisador reconhecido na minha área exige uma aptidão especial que não pode ser aprendida?”. Os participantes tiveram que dizer se concordavam ou não com os enun-ciados e também supor o que outras pessoas de suas áreas diriam sobre isso.

Para medir o nível de “crença na importância do talento inato”, os autores da pesquisa utiliza-ram um modelo estatístico segundo o qual quanto menor o número na escala (de 3,2 a 5,2), menor é o número de pessoas que acreditam no talento inato em uma área do conhecimento. Em filosofia, por exemplo, esse índice chega a quase 5,2 – indican-do a grande ênfase que os profissionais dessa área dão para a ideia de talento inato. Não por acaso, diz o estudo, a filosofia apresenta um dos meno-res percentuais de doutoras nos Estados Unidos, aproximadamente 30% em 2011 (ver gráfico). Já a psicologia tem um índice de “crença” inferior a 3,7% e uma representação feminina superior a 70%.

As análises também incluíram dois grupos de minorias raciais – afro-americanos e descendentes de asiáticos. Segundo o estudo, o mes-mo fenômeno que acontece com as mulheres explicaria a escassez desses grupos étnicos em algumas disciplinas. No caso de doutores ne-gros, nota-se a sua baixa inserção (menos de 15%) em todas as áreas. “Pesquisadores que desejam diver-sificar suas áreas devem minimizar a ideia de que afro-americanos e mu-lheres são menos dotados e destacar

a importância do esforço pessoal”, concluem os pesquisadores no estudo.

Para Maria Conceição da Costa, pesquisa-dora do Núcleo de Estudos de Gênero Pa-gu, da Universidade Estadual de Campinas

(Unicamp), a pesquisa publicada na revista Science trata um problema complexo de uma forma que soa simplista. O trabalho, diz ela, carece de uma análise mais profunda que relacione diferentes fatores, como gênero, raça, condição econômica e condições regionais. “Falar apenas em mulheres e homens é muito genérico. Há uma diferença, por exemplo, entre mulheres negras do sul dos Esta-dos Unidos, com mais acesso à universidade do que as mulheres negras do norte do país”, diz ela. Conceição também chama a atenção para a falta de comentários críticos no artigo. “Ele funciona mais como uma declaração e não como uma crítica à crença no talento inato. Mais do que gráficos, é preciso apresentar os mecanismos e condições que levam as pessoas a crer que os homens são mais capazes que as mulheres”, afirma.

Diante dos resultados do estudo, é possível questionar o seguinte: a presença maciça de mu-lheres em áreas como psicologia e educação fa-

"a crença no talento inato diminui a diversidade na ciência", diz Sarah-Jane

Page 33: Pesquisa FAPESP

PESQUiSa FaPESP 230 z 33

vorece a valorização da ideia de esforço pessoal? Segundo a socióloga Gilda Olinto, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Informações em Ciência e Tecnologia (Ibict) e professora da Universida-de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pode ser que esteja em curso o desenvolvimento de uma cultura feminina na ciência, valorizando o esfor-ço pessoal. “Isso seria um aspecto positivo”, diz. Gilda ressalta que os próprios autores da pesqui-sa – ao examinarem a relação entre o sexo dos entrevistados e a valorização do talento inato em oposição à dedicação ao trabalho – verificaram que as mulheres valorizam mais a dedicação do que os homens. “A menor valorização do talen-to inato é também característica de disciplinas mais femininas. Assim, a menor valorização do talento inato pode ser consequência da cultura acadêmica característica das disciplinas mais femininas”, afirma Gilda Olinto. Portanto, diz ela, a maior representação de mulheres em uma área pode não ser consequência da valorização do esforço, mas sim o contrário: quanto mais mulheres numa área, menor importância se dá para o argumento do talento inato.

Para a física Marcia Barbosa, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a ideia de um talento inato está associada a uma imagem ultrapassada do cientista, que, contudo, ainda se faz viva nos dias atuais. “Figuras como as de Newton, Einstein e Galileu, dentre tantos outros, ganharam o imaginário popular, que relaciona a genialidade e o brilhantismo a esses homens.” No entanto, diz ela, essa imagem tende a perder força ao longo do século XXI. “Para fazer ciência hoje, é preciso mais a união de talentos do que a genialidade de uma pessoa só. A pesquisa é mais colaborativa e por isso casos como o de Einstein serão mais raros daqui para frente”, diz a pes-quisadora, para quem, no caso da comunidade científica no Brasil, a crença no talento inato é

um fator menos importante para explicar a baixa representação das mulheres em alguns setores.

Marcia Barbosa é uma das autoras de um estu-do que avaliou a participação feminina na ciência brasileira. O trabalho, publicado no livro Traba-lhadoras: análise da feminização das profissões e ocupações, de 2013, avaliou bolsistas de Produti-vidade em Pesquisa no Brasil do Conselho Nacio-nal de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) entre 2001 e 2011, nas áreas de física e medicina. A pesquisa mostra que mesmo no caso da medicina, em que o percentual de mulheres chega a quase 40% no nível 2 – o mais básico –, à medida que se sobe na carreira essa taxa di-minui e chega a 20% no nível 1A, que é dado a pesquisadores mais experientes na classificação do CNPq. Na física, os números são piores (ver gráfico). Embora as mulheres sejam maioria en-tre os discentes nas universidades brasileiras e já representem cerca de 50% dos docentes nas instituições públicas, segundo dados do Censo da Educação Superior de 2010, o estudo mostra que o acesso delas aos níveis mais altos da pes-quisa ainda é restrito.

Um estudo divulgado em março pela Organi-zação para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, mostra

que na faixa dos 15 anos o desempenho escolar de meninas em várias disciplinas, inclusive ma-temática, é superior ao de meninos. Nos Estados Unidos, dentre os alunos com baixo desempenho no colégio, 63% são meninos e 36%, meninas. No Brasil, a disparidade é menos acentuada: 52% para os meninos e 47% para as meninas. No total, foram avaliados 510 mil estudantes de 64 países participantes do Programa para Avalia-ção Internacional de Estudantes (Pisa, na sigla em inglês), que avalia a capacidade dos alunos para analisar, raciocinar e refletir sobre seus co-nhecimentos e experiências. A pesquisa também mostra que os pais são muito mais propensos a esperar que seus filhos homens sigam carreira em áreas tecnológicas do que suas filhas, mesmo que elas apresentem bom desempenho na escola. Em países como Chile, Hungria e Portugal, por exemplo, menos de 20% dos pais entrevistados esperam ver suas filhas atuando em áreas cien-tíficas. Uma das conclusões do estudo da OCDE é que as disparidades de gênero não resultam de diferenças inatas a ambos os sexos, mas sim das atitudes dos estudantes em relação à aprendiza-gem e do comportamento que tinham na esco-la. “Vários fatores contribuem para moldar tais comportamentos, entre eles a educação familiar, o trabalho de professores em sala de aula e a for-ma como os jovens passam o tempo de lazer. Os estudantes, sejam eles meninos ou meninas, têm o mesmo potencial”, diz o estudo. n

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mulheres longe do topopercentual de pesquisadores brasileiros nas áreas de física e medicina em dois níveis de bolsas de produtividade do cnpq

FontE Banco dE dados da plataForMa lattEs do cnpq, 2011

FíSica mEdicina

nível 2 nível 1anível 2 nível 1a

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34 z abril DE 2015

Conhecimento/ aprendizado/ aprender sobre esse assunto

Faz parte da vida/é importante

Gosta do assunto/acompanha as novidades

Diagnóstico, tratamento e cura de doenças

Trabalha na área/ atualização profissional

Facilita o dia a dia

Faz/pretende fazer um curso na área

Outras respostas

Grau de desenvolvimento do país em pesquisa científica

Investimento em ciência e tecnologia no país

avalIação da pesquIsa cIentífIca no brasIl

Avançado

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como os paulistas veem a ciênciaAlguns resultados da pesquisa Datafolha que entrevistou 3.217 pessoas em 138 cidades do estado de São Paulo (em %)

Interesse por cIêncIa e tecnoloGIa

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fonte DATAFOlhA

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25 a 34 anos

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Na formação das minhas opiniões

políticas e sociais

Na minha profissão ou

trabalho

Nas minhas decisões como

consumidor

Na preservação do entorno da minha casa

e do meio ambiente

Na minha compreensão

do mundo

No cuidado com a saúde e prevenção

de doenças

Fundamental

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Superior

Até 2 salários mínimos

Mais de 2 a 5 salários mínimos

Mais de 5 a 10 salários mínimos

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Não sabe/não respondeu

Interessado

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Page 35: Pesquisa FAPESP

População de

São Paulo admira

os cientistas e dá valor

ao investimento em

pesquisa mesmo

que ele não traga

benefícios imediatos,

mostra Datafolha

SOCIeDADe y

fabrício marques

Pesquisa feita pelo Instituto Da-tafolha mostra que 88% dos ha-bitantes do estado de São Paulo consideram muito importante o

investimento em ciência e tecnologia e 86% acham que o governo deve financiar a pesquisa científica mesmo que ela não traga benefícios imediatos. A profissão de cientista é a terceira mais admirada, perdendo apenas para a de professor e a de médico. Setenta e sete por cento dos entrevistados, porém, não souberam dizer o nome de nenhuma instituição de pesquisa, nem sequer o de universi-dades. A pesquisa foi encomendada pela FAPESP com o objetivo de mapear o interesse dos paulistas por ciência e tec-nologia e conhecer a percepção pública sobre os investimentos em pesquisa e o trabalho da Fundação. Ao serem apre-sentados a nomes de instituições, 26% disseram já ter ouvido falar da FAPESP, mas 69% não sabem ou não lembram o que faz a Fundação.

Foram realizadas 3.217 entrevistas em 138 cidades de todas as 15 mesor-regiões do estado de São Paulo. “A alta prioridade que a população dá ao apoio à pesquisa e o valor que dá à profissão científica ecoam o sentimento verificado em outros países e estimulam a comuni-dade científica paulista a obter cada vez mais e melhores resultados de impacto científico, social e econômico”, comen-tou Carlos Henrique de Brito Cruz, di-retor científico da FAPESP. “A pesquisa destaca também a necessidade de maior empenho das instituições na demons-tração e associação de seus nomes aos resultados.” Para o presidente da FAPESP, Celso Lafer, “a pesquisa feita pelo Data-folha mostra a importância que a popu-lação atribui à ciência e o respeito que tem pelos cientistas. Em segundo lugar, evidencia a clara percepção de que ca-be ao Estado apoiar a pesquisa científi-ca, mesmo quando ela possa não trazer benefícios imediatos, e que a iniciativa

apoio à atividade

científica

pesquIsa fapesp 230 z 35

Page 36: Pesquisa FAPESP

36 z abril DE 2015

confirmam o apoio do contribuinte pau-lista às atividades da FAPESP”, afirma Celso Lafer.

Nas entrevistas feitas com a população, o interesse declarado em assuntos cientí-ficos foi elevado: 67% se disseram interes-sados ou muito interessados em ciência e tecnologia. Mas 79% concordaram com a afirmação de que a ciência e a tecnologia são tão especializadas que a maioria das pessoas não consegue entendê-las. O ín-dice de muito interessados em ciência e tecnologia (26% do total) foi inferior ao de tópicos como medicina e saúde (51%), alimentação e consumo (45%), meio am-biente e ecologia (39%), religião (38%), esportes (32%) e cinema, arte e cultura (30%). Mas foi superior ao dos muito inte-ressados em moda (14%), política (12%) e curiosidades sobre pessoas famosas (7%).

gap ImportanteO descompasso entre o interesse e a difi-culdade de apontar o nome de uma ins-tituição de pesquisa não é uma novidade em estudos sobre a percepção pública da ciência, observa Luisa Massarani, pes-quisadora da Fundação Oswaldo Cruz, que já realizou diversos estudos desse tipo. Segundo ela, o panorama de São Paulo não é diferente do cenário nacio-nal, como mostraram enquetes realiza-das no país pelo Ministério da Ciência,

privada também pode aumentar seus investimentos no setor”.

Além da pesquisa com a população em geral, o Datafolha abordou outros dois públicos: 505 pesquisadores apoiados pe-la FAPESP e 30 formadores de opinião, como professores e jornalistas, foram entrevistados. Para a maioria (80%) dos pesquisadores, no Brasil, o investimento em ciência e tecnologia é menor do que o suficiente. Para 64%, as empresas de-veriam financiar mais a pesquisa; 75% citaram o governo como o principal fi-nanciador da atividade científica. “Me-lhores recursos financeiros” e “credibi-lidade” são os principais fatores para a escolha da FAPESP pelos pesquisadores apoiados, de acordo com a pesquisa. O apoio da FAPESP aos pesquisadores en-trevistados se dá por meio de Bolsas de Doutorado (36%), Bolsas de Pós-douto-rado (30%), Auxílio à Pesquisa – Regular (26%), Bolsas de Mestrado (26%), Bolsas de Iniciação Científica (22%), Auxílio à Pesquisa – Projeto Temático (5%), Pro-grama de Pesquisa Inovadora em Peque-nas Empresas, Pipe (3%), Jovem Pesqui-sador (2%) e outros (6%).

Entre os formadores de opinião, o grau de satisfação com a pesquisa científica no Brasil foi regular. Eles citaram a falta de investimento e a baixa tradição em pes-quisa como aspectos negativos. Também

concordaram que o ensino de ciências nas escolas precisa melhorar. Há falta de estímulos e capacitação, tanto para os professores quanto para os alunos. Porém há o reconhecimento de algumas iniciativas positivas, como, por exemplo, a Virada Científica, as Feiras de Ciências e o programa Ciências sem Fronteiras. A FAPESP é pouco conhecida pelos forma-dores de opinião, mas os que conhecem a Fundação guardam uma imagem po-sitiva, a de instituição séria. “O público mais diretamente envolvido reconhece a contribuição da FAPESP e ressalta a sua credibilidade. Em resumo, os dados

“o público mais diretamente envolvido reconhece a contribuição da fapesp e ressalta sua credibilidade”, diz celso lafer

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pesquIsa fapesp 230 z 37

ação humana, mas apenas 50% dos lei-gos concordaram com isso. Da mesma forma, 88% dos cientistas afirmaram que alimentos geneticamente modificados são seguros para o consumo, diante de apenas 37% dos cidadãos. A pesquisa do Datafolha também registrou algumas per-cepções diferentes. O grau de desenvol-vimento da pesquisa científica do país foi classificado por 44% dos paulistas como intermediário e por 39% como atrasado. Já para os cientistas, os índices foram de 67% para intermediário e 26% para atra-

Tecnologia e Inovação e pelo Museu da Vida da Fundação Oswaldo Cruz. “O que observamos é que as pessoas expressam interesse por temas de ciência, mas há um gap importante entre afirmar que tem interesse e, de fato, buscar se infor-mar sobre temas de ciência e tecnologia”, afirma. “Outro ponto que ficou evidente em estudos qualitativos que fizemos é que muitas vezes não há uma correla-ção direta entre ciência e fazer ciência no nosso país. Ou seja, as pessoas ainda sabem pouco que o Brasil faz ciência e há cientistas brasileiros.” Na avaliação da pesquisadora, ter uma população que se interessa por ciência é um passo im-portante, mas há muito mais a fazer. “A começar por uma noção mais concre-ta e realista do que é ciência, quem faz ciência, onde se faz ciência e qual a as-sociação entre ciência e sociedade”, diz.

É comum que pesquisadores e público leigo tenham percepções diferentes sobre a atividade científica. Nos Estados Uni-dos, uma pesquisa divulgada em janeiro pelo Pew Research Center comparou as opiniões de cientistas ligados à Associa-ção Americana para o Avanço da Ciência (AAAS) e um grupo de cidadãos do país. Em alguns tópicos, as divergências eram grandes. Oitenta e sete por cento dos pes-quisadores afirmaram que as mudanças climáticas devem-se principalmente à

“as pessoas sabem pouco que o brasil faz ciência e que há cientistas brasileiros”, afirma luisa massarani

percepções dos cientistasrespostas dos 505 pesquisadores apoiados pela FAPeSP a algumas perguntas do levantamento (em %)

fonte DATAFOlhA

razões por ter escolhIdo a fapesp

Oferece os melhores recursos financeiros

Credibilidade da instituição

Processos burocráticos mais rápidos e acessíveis

Melhor valorização da pesquisa/pesquisador

Organização da instituição

localização

Outras respostas

Apoio a áreas específicas de pesquisa

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É um dos atributos da carreira profissional

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Por vocação

Desenvolver a carreira profissional

Formação acadêmica despertou interesse

É o que gosta de fazer

Produzir conhecimento/desenvolver novas tecnologias

Por ser profissional de instituições que trabalham com pesquisa

Contribuir para o desenvolvimento científico

motIvos para fazer pesquIsa cIentífIca

sado. No público de pesquisadores, 60% consideraram que o país tem muito des-taque em agricultura e pecuária e apenas 6% acham que tem muito destaque em desenvolvimento de tecnologias.

Se os paulistas têm uma impressão menos favorável sobre a qualidade da pesquisa brasileira, isso não afeta a ad-miração que têm pelos cientistas. A taxa de admiração chega a 61%, superior à de engenheiros, jornalistas, juízes, empre-sários e artistas. Já os pesquisadores têm uma imagem mais crítica de sua ativi-dade profissional. A maioria considera a profissão de cientista pouco atrativa para os jovens por ter “baixos salários e pouco prestígio”. Mas 80% consideram a profissão muito gratificante do ponto de vista pessoal e 58% consideram que é a vocação para o conhecimento a principal motivação dos cientistas. E 55% disseram estar satisfeitos com o desenvolvimento científico da área de atuação, diante de 44% que se declararam insatisfeitos – 1% não respondeu. Dos que se mostraram satisfeitos, 31% apontaram como prin-cipal motivo o “reconhecimento ou des-taque internacional” e 29%, “avanços e desenvolvimento na área de pesquisa”. Praticamente todos os pesquisadores entrevistados (99%) acreditam na con-tribuição da pesquisa científica para o crescimento do país e defendem a in-dependência dos cientistas.

O conhecimento científico e tecnoló-gico foi considerado de “muita utilida-de”, principalmente no “cuidado com a saúde e prevenção de doenças” (70%), na “compreensão do mundo” (51%) e na “preservação do entorno de minha casa e do meio ambiente” (47%). O campo da saúde também se destacou entre os for-madores de opinião: a maioria dos profes-sores e jornalistas entrevistados afirmou que, quando pensa em ciência, lembra da área da saúde. Os temas mais relacionados à ciência, para eles, são células-tronco, vacinas, cura de doenças e laboratórios de ciência. “Há vários estudos em ou-tros países e no Brasil que mostram que grande parte da cobertura de ciência é na área da saúde”, observa Luisa Massara-ni. “Já fizemos, inclusive, essa pergunta a editores e jornalistas, que colocam que a pesquisa em saúde tem uma associação muito forte com o cotidiano das pessoas. É na área da saúde que se percebe o im-pacto da ciência, com os medicamentos, as vacinas etc.”, explica. n

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Unicamp cria centro segundo modelo de inovação

aberta dedicado ao estudo de enzimas presentes

em células humanas e vegetais

Cooperação y

Do homem à planta

a Universidade Estadual de Cam-pinas (Unicamp) anunciou a criação de um novo centro de pesquisa básica dedicado ao

estudo de um grupo de enzimas cha-madas quinases, responsáveis pela re-gulação de processos metabólicos em células de seres humanos e de vegetais e com potencial para gerar fármacos. Além de avançar nessa área, o Centro de Biologia Química de Proteínas Quinases pretende aproveitar o conhecimento e a tecnologia gerados em parceria com a indústria farmacêutica para impulsionar pesquisas sobre biologia de plantas. O objetivo é descobrir como tornar cul-turas essenciais para a agricultura mais resistentes à seca. O centro, cujas ativi-dades devem começar em julho, faz parte da rede Structural Genomics Consortium (SGC), uma parceria público-privada criada em 1999 que reúne mais de 10 empresas do setor farmacêutico, enti-dades de apoio à pesquisa e cientistas em outros dois centros de pesquisa lo-calizados nas universidades de Oxford, na Inglaterra, e de Toronto, no Canadá.

O consórcio adota os modelos de open science (acesso aberto ao conhecimento) e inovação aberta, que garantem o com-partilhamento de resultados de pesquisa. Nesse sistema, também é liberado o aces-so a moléculas, métodos e técnicas para que pesquisadores de outras instituições e laboratórios farmacêuticos possam ge-rar novos produtos e, principalmente, partilhar soluções capazes de reduzir o tempo e os custos das pesquisas. O acor-do que selou a parceria foi assinado em março na sede da FAPESP em São Paulo. Ele prevê um aporte de US$ 4,3 milhões da Fundação, por meio do Programa Par-ceria para Inovação Tecnológica (Pite), US$ 1,9 milhão da Unicamp e US$ 1,3 milhão do SGC.

Na cerimônia de assinatura da coope-ração, Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, afirmou que a iniciativa deve incentivar pesquisas cujos resultados podem ter alto impacto na sociedade. “Ela oferece oportunidade de fomentar pesquisas que vão levar a re-sultados de alto impacto intelectual, so-cial e econômico. Além disso, cria opor-

tunidades de colaboração internacional para pesquisadores de São Paulo. Por último, cria uma oportunidade para os pesquisadores paulistas trabalharem em parceria com empresas”, afirmou Brito Cruz. Com o novo centro em Campinas (SP), o SGC contará com mais de 230 pesquisadores em suas três unidades, que mantêm parcerias com mais de 300 grupos de pesquisa em mais de 40 países e grandes laboratórios farmacêuticos, como GlaxoSmithKline (GSK), Pfizer, Bayer e Novartis.

De acordo com Aled Edwards, funda-dor e presidente do consórcio, o projeto do Genoma Humano mostrou que exis-tem cerca de 500 tipos de quinases, mas apenas 40 foram estudadas em detalhe até hoje. Segundo Edwards, o problema é que o processo para descobrir como uma qui-nase funciona é demorado. “Cria-se uma molécula, uma espécie de sonda química, que se liga à enzima-alvo e inibe seu fun-cionamento. Depois, injetamos a molécula em animais e observamos o resultado dis-so. Uma sonda dessas pode levar até dois anos para ser desenvolvida, a um custo alto”, diz ele. Não apenas o estudo das quinases é caro. Na última década, pes-quisadores ligados ao SGC conseguiram descrever a estrutura de mais de 1.200 proteínas, com implicações para o incre-mento de terapias contra câncer, diabetes, obesidade e transtornos psiquiátricos. No entanto, a estimativa é de que o custo das pesquisas necessárias para desvendar cada uma das proteínas seja de aproximada-mente US$ 1 milhão. Para compartilhar custos e riscos, o consórcio passou a ado-tar os modelos de open science.

Celso Lafer, presidente da FAPESP, salientou que essa estratégia poderá também ajudar a acelerar a busca por novos medicamentos para câncer e mal de Alzheimer. “A partir da divisão de tarefas entre universidade e empresas, será formado um grande mutirão em prol do avanço do conhecimento”, dis-se ele. Bill Zuercher, representante da GSK, uma das empresas que investem no consórcio, destacou que atualmente fo

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pesQUIsa fapesp 230 z 39

plantação de milho em serrinha dos pintos, no rio Grande do norte: cultura resistente à seca será um dos alvos do novo centro da Unicamp

culas candidatas a medicamentos não têm sucesso na etapa de ensaios clínicos, inviabilizando sua ida para o mercado.

O braço brasileiro do SGC será o único do consórcio a desenvolver estudos so-bre quinases em plantas. Segundo Paulo Arruda, professor de genética no Ins-tituto de Biologia da Unicamp e coor-denador do centro no Brasil, existem

atualmente poucos grupos de pesquisa ocupados com esse tipo de investiga-ção. “Há alguma coisa no Instituto Max Planck, na Alemanha, e na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. Mas o que se estuda hoje sobre quinases em plantas não chega a 1% do que se co-nhece sobre as quinases em humanos”, disse ele. Para Arruda, outro mérito do modelo de inovação aberta será colocar “debaixo do mesmo teto” pesquisado-res das áreas de biomedicina e biologia vegetal. A ideia, disse ele, não é utilizar extratos de plantas para produzir fárma-cos, como usualmente ocorre, mas sim usar técnicas especialmente desenvol-vidas para estudar quinases humanas e aplicá-las na pesquisa de problemas da biologia de plantas.

sem ágUaUm desses problemas é a falta de co-nhecimento sobre como as plantas res-pondem ao estresse hídrico. “Nos pró-ximos 30 anos, por conta das mudanças climáticas, a seca poderá ter impacto na oferta de alimentos. É necessário com-preender como as plantas se comportam diante da falta d’água”, completou. A ideia é estudar o mecanismo pelo qual as plantas respondem à seca e às altas temperaturas. “Esses vegetais têm em suas membranas receptores que modi-ficam o metabolismo celular, ajudando a planta a enfrentar o estresse hídrico. E esse processo envolve as quinases”, explicou Arruda.

Sabendo como isso acontece, diz ele, será possível desenvolver moléculas ca-pazes de ativar as quinases de plantas com baixa resistência à seca. Segundo Arruda, há pesquisadores brasileiros interessados em colaborar nesse campo de estudo. O centro deverá firmar parceria com o Ins-tituto de Biologia da Unicamp e grupos de pesquisa da Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais, e da Universida-de de São Paulo (USP). “Queremos formar uma grande rede no país, para avançar numa área bastante inédita no mundo”, disse ele. n Bruno de pierro

o estudo de cerca de 500 quinases hu-manas depende do trabalho colaborativo entre empresas e centros de pesquisa. “O modelo de pesquisa fechada e individual, no nosso caso, leva a um desperdício de recursos. Dividir etapas de pesquisa faz com que diminua o risco de fracasso no desenvolvimento de novas drogas”, disse. Hoje, aproximadamente 95% das molé-

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Especialistas em olfato e imunidade

de mosquitos dão início a rede de

cooperação sobre doenças tropicais

entre o Brasil e o Reino Unido

PaRcERia y

Expertises complementares

Um workshop programado para acontecer entre os dias 13 e 14 de julho, em Botucatu, interior paulista, vai reunir pesquisado-

res de universidades e instituições do estado de São Paulo, uma delegação da Universidade de Keele, do Reino Unido, e provavelmente um representante da fundação de apoio à pesquisa biomédica britânica Wellcome Trust para discutir como ampliar colaborações científicas no campo das doenças tropicais. O en-contro acontecerá em Botucatu porque ali surgiu um fruto pioneiro dessa coope-ração: a parceria entre os biólogos Jayme Souza-Neto, do Instituto de Biotecnologia (Ibtec) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e Julien Pelletier, do Centro de Entomologia e Parasitologia Aplicada da Universidade de Keele, no âmbito de um acordo de cooperação celebrado entre a FAPESP e a universidade britânica em 2013. “O objetivo é que, ao fim dos dois dias de discussão, saiamos dali com al-gumas ideias consolidadas para projetos de pesquisa em parceria que possam ser submetidos a agências de fomento do Brasil e do Reino Unido”, diz Souza-Neto.

A parceria estabelece visitas anuais de cada um dos pesquisadores ao laborató-rio do parceiro, ao longo de um período de três anos. Atualmente, Souza-Neto es-tá passando uma temporada de três me-ses em Keele. Lá, aprende com Pelletier a trabalhar com uma ferramenta criada recentemente, denominada CRISPR--Cas9, que permite silenciar genes espe-cíficos de vetores e já resultou, por meio da manipulação de embriões, na criação de insetos mutantes. Um dos focos da pesquisa de Pelletier é compreender, analisando o comportamento de insetos mutantes, como genes ligados ao siste-ma olfatório dos insetos influenciam a atração pelo ser humano. Atualmente, ele está desenvolvendo colônias de mosqui-tos mutantes, dos tipos que transmitem malária na África (Anopheles gambiae), para realizar ensaios funcionais. Ao mes-mo tempo, o brasileiro compartilha sua expertise sobre respostas imunes do mosquito da dengue com o colega, cuja experiência é mais calcada em vetores como o mosquito causador da malária. Vai ajudá-lo a estabelecer, em seu labo-ratório em Keele, um sistema de infecção

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pESQUISA FApESp 230 z 41

Aedes aegypti: dos estudos sobre a microbiota intestinal do mosquito da dengue à ambição de gerar insetos com genes silenciados

para trabalhar em sinergia com um gru-po de Keele – a dupla seria precursora de colaborações mais amplas no futuro. “A ideia era encontrar dois grupos com linhas de pesquisas sólidas e comple-mentares”, diz Souza-Neto. Os nomes de Souza-Neto e Pelletier despontaram justamente porque atuam em áreas com bom potencial para intercâmbio de co-nhecimento. Nascido na França, Pelle-tier estuda a fisiologia de insetos desde que se graduou na Universidade Paris 6. Doutorou-se em biologia no Institut Na-tional de la Recherche Agronomique, em Versailles, trabalhando com a caracteri-zação de proteínas olfatórias envolvidas com a recepção de feromônios pelas antenas da mariposa do bicho-da-seda. Em 2013, depois de fazer pós-doutorado na Universidade da Califórnia, Davis, nos Estados Unidos, e na Sveriges Lantbruks Universitet, na Suécia, recebeu um con-vite para trabalhar em Keele.

Também em 2013, Jayme Souza-Neto foi contemplado pelo programa Jovens Pesquisadores em Centros Emergen-

tes, da FAPESP, depois de ter feito um pós-doutorado de três anos no Institu-to de Pesquisas em Malária (JHMRI) da Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health (JHSPH), onde se dedicou a estudos com foco nas respostas imu-nes dos mosquitos vetores a patógenos como dengue e Plasmodium. Como Jo-vem Pesquisador da FAPESP, retornou à Unesp, onde concluiu o doutorado em genética em 2006, para montar um la-boratório voltado para estudos sobre o Aedes aegypti, com foco na interação entre as bactérias que habitam o intes-tino dos mosquitos e o vírus da dengue. O Laboratório de Genômica Funcional e Microbiologia de Vetores (Vectomics), liderado por Souza-Neto, é dotado de aparelhos para aplicações básicas em biologia molecular e câmaras para cria-ção e infecção de mosquitos. Também irá trabalhar com um sequenciador de nova geração Illumina MextSeq recém--adquirido pelo Ibtec. Agora, vai ganhar uma plataforma de mutagênese para ma-nipular embriões de mosquitos.

Souza-Neto vai usar essa tecnologia para nocautear genes do Aedes aegypti relacionados ao processo de infecção, na tentativa de torná-lo refratário ao vírus da dengue. Sabe-se que algumas respos-tas naturais do Aedes ao vírus são me-diadas de alguma maneira por bactérias presentes no intestino dos mosquitos. “A microbiota intestinal influencia o de-senvolvimento do patógeno no intestino do mosquito. Queremos entender quais são essas relações entre o sistema imu-ne do inseto, a microbiota e o vírus da dengue e como isso afeta o desenvolvi-mento desses patógenos do mosquito”, diz o pesquisador.

Além de semear novas colaborações, a dupla também vai envolver-se com o ensino de graduação, com o objetivo de estimular o fluxo de estudantes entre os dois países. n Fabrício Marques

de Aedes aegypti com vírus da dengue. Em breve, Pelletier deverá passar uma temporada no Brasil. “Do meu ponto de vista pessoal, a cooperação entre a FAPESP e a Universidade de Keele re-presenta uma grande oportunidade de desenvolver um programa de pesqui-sa ambicioso combinando expertises do Brasil e do Reino Unido”, diz Pelletier. “Ao reunir dois componentes da biologia de vetores, que são o olfato e a imuni-dade, acredito que podemos realmente contribuir para uma melhor compreen-são de como patógenos são transmitidos para os seres humanos. A rede também se beneficiará com o compartilhamento de tecnologias entre o meu laboratório em Keele e o do doutor Souza-Neto em Botucatu”, afirma.

IntErcâMbIo dE conhEcIMEnto A chamada de projetos no âmbito do acordo de cooperação entre a FAPESP e a Universidade de Keele previa o recru-tamento de um pesquisador brasileiro, atuando na área de doenças tropicais,

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Projetos1. caracterização dos mecanismos de ação antidengue mediados pela microbiota intestinal de populações na-turais do mosquito Aedes aegypti (2013/11343-6); Mo-dalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável Jayme augusto de Souza-Neto (Unesp); Investimento R$ 1.042.766,71.2. a rede de cooperação FaPESP-Unesp-Keele: promo-vendo interações Brasil-Reino Unido através de ativida-des acadêmicas recíprocas conjuntas (2014/25287-3); Modalidade Bolsa no Exterior; Pesquisador responsável Jayme augusto de Souza-Neto (Unesp); Investimento R$ 45.905,38.

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Grupo divulga previamente resultados de pesquisas sobre

Aids para colaborar com a prevenção

PolíticAs PúblicAs y

Em primeira mão

Um grupo de pesquisadores li-gados à área da saúde pública tem adotado uma estratégia in-comum em outros campos para

divulgar resultados de pesquisa. Após a conclusão de um estudo segundo o qual a prevalência de infecção pelo vírus HIV permanece elevada (15,4%) entre homos-sexuais e travestis que frequentam bares, boates e outros locais de sociabilidade no centro de São Paulo, os pesquisadores resolveram divulgar os resultados desse trabalho para a população e órgãos públi-cos antes mesmo de publicá-los em artigo científico. A iniciativa faz parte do projeto SampaCentro, que reúne pesquisadores da Faculdade de Ciências Médicas da San-ta Casa, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade de São Paulo (USP), Instituto Adolfo Lutz, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e or-ganizações não governamentais.

“Assim que analisamos os dados e or-ganizamos as informações, fizemos reu-niões com as pessoas que participaram do estudo, com organizações da socieda-de civil e com agentes de saúde pública para alertá-los sobre as altas taxas de in-fecção e sobre a necessidade de políticas de prevenção dirigidas para o grupo de pessoas estudado”, conta Maria Amélia de Sousa Mascena Veras, professora da Santa Casa e coordenadora do estudo, realizado entre 2011 e 2012 e só publi-cado na revista Aids and Behaviour em novembro do ano passado. “Difundimos

os resultados em eventos científicos e por meio de redes sociais”, diz ela.

Um dos motivos para apressar a apre-sentação do estudo é que boa parte dos participantes não sabia que estava infec-tada com o vírus da Aids. Após a realiza-ção das entrevistas, os 1.217 homens que fazem sexo com homens foram convida-dos a realizar a coleta de sangue para o teste de HIV. Desse total, 771 aceitaram participar do exame, dos quais 118 (15%) estavam infectados pelo vírus. Destes, 54 disseram que já sabiam que eram posi-tivos para Aids – os demais (64) não ti-nham conhecimento disso. “O processo para publicação de um artigo pode levar meses. No caso da saúde pública, quanto mais precocemente disponibilizamos in-formações para a população pesquisada e para a saúde pública, maiores são as chances de influenciar aqueles que to-mam decisões e elaboram políticas de combate à Aids”, diz Maria Veras. O le-vantamento, realizado entre 2011 e 2012, teve o objetivo de estimar a prevalência do vírus HIV na população de homosse-xuais e travestis e saber se eles têm acesso à prevenção, se sofrem discriminação e quais locais de sociabilidade frequentam.

O estudo mostra que a proporção de infectados entre as pessoas estudadas no centro de São Paulo é alta (6,4%) entre os mais jovens (homens de 18 a 24 anos) e entre os de mais baixa renda. Outras informações ajudam a compor o quadro: 63% dos entrevistados consideram-se brancos; 57% não têm o segundo grau

completo; 60% disseram já ter sofrido algum tipo de preconceito e 30% relata-ram já ter tido relação sexual sob efeito de drogas, o que aumenta o risco de ex-posição a doenças sexualmente trans-missíveis. Com base nos dados obtidos, diz a pesquisadora, é possível conhecer melhor essa população e agir de forma mais eficiente e assertiva no momento de desenhar políticas preventivas.

dEsdobramEntosOutra iniciativa conduzida pelo grupo é o Projeto Muriel, que pretende estudar o quanto está vulnerável a população de travestis e transexuais femininos e mas-culinos. São avaliados dados sociodemo-gráficos e de acesso a direitos e serviços de saúde e educação. O projeto está em andamento e deverá ser concluído no próximo ano. Até o momento, foram en-trevistadas 259 pessoas, das quais 77% possuem até o segundo grau completo e 23% afirmaram ser portadoras do HIV. Essas e outras informações estão sendo divulgadas como resultados preliminares no site do projeto (www.projetomuriel.com.br) e fomentando reuniões com inte-ressados, organizações não governamen-tais e órgãos de governo para melhorar o atendimento a esse público.

“A falta de informações precisas sobre travestis e transexuais impede a elabo-ração de políticas mais específicas para esse grupo”, diz Brunna Valim, 40, ati-vista do movimento LGBT/Aids e fun-cionária do Centro de Referência e De-

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fesa da Diversidade de São Paulo. Além de participar do grupo estudado pelo Projeto Muriel, Brunna ajudou a equipe de pesquisadores a elaborar o questio-nário aplicado em várias cidades de São Paulo. “Os dados até agora nos mostram que travestis e transexuais demandam outros cuidados que vão além do trata-mento da Aids, isso quando têm a doen-ça. Trata-se de uma população que pre-cisa de melhor acolhimento na atenção básica à saúde”, completa Brunna.

Para Ana Maria Costa, presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), iniciativas como estas realizadas em São Paulo estão no cerne da pesquisa em saúde coletiva. “É um campo cientí-fico que nasce do compromisso com o direito à saúde”, diz Ana Maria. Segundo ela, muitas pesquisas em saúde coletiva feitas no Brasil costumam gerar relató-rios, avaliações, livros e anais de congres-sos – tipos de publicação que nem sempre chegam às revistas científicas. Isso é ou-tro fator que contribui para que os pes-quisadores optem por outras formas de divulgação de resultados parciais e finais. Para acompanhar esse conjunto de infor-mações que tangencia os periódicos tra-dicionais, um grupo de pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (UFBA) criou recentemente o Observatório Na-cional de Políticas de Saúde. Ele irá ras-trear e disponibilizar estudos que num primeiro momento não foram publicados na forma de artigo científico, mas que contêm dados importantes para a gestão pública da saúde. n bruno de pierro

Projetos1. comportamentos e práticas sexuais, acesso à prevenção, prevalência de HiV e outras infecções de transmissão sexual entre gays, travestis e homens que fazem sexo com homens (HsH) na região central de são Paulo (nº 09/53082-9); Mo-dalidade Auxílio à Pesquisa – PPsUs; Pesquisadora respon-sável Maria Amélia de sousa Mascena Veras (santa casa de são Paulo); Investimento R$ 326.835,63 (FAPEsP). 2. Vulnerabilidades, demandas de saúde e acesso a ser-viços da população de travestis e transexuais do estado de são Paulo (nº 13/22366-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Maria Amélia de sousa Mascena Veras (santa casa de são Paulo); Investimento R$ 330.016,70 (FAPEsP). Foto

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Questionário aplicado pelo Projeto

Muriel a travestis e transexuais que

vivem no estado de são Paulo

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Hormônio que indica ao corpo a hora de dormir também

regula a ingestão de alimentos e o acúmulo de gordura

ciência FISIOLOGIA y

Uma conexão entre

o sono e a fome

a melatonina, hormônio produzido pela glândula pineal, situada no centro do cérebro, é conhecida há tempos por seu papel na regulação do sono. Agora, surgem evidências de que ela também exerce uma ação fundamental no controle da

fome, no acúmulo de gorduras e no consumo de energia. “Na ausência da melatonina, ratos desenvolveram doenças me-tabólicas e se tornaram obesos. Já a reposição do hormônio favoreceu a perda de peso”, conta o fisiologista José Cipolla Neto, da Universidade de São Paulo (USP). Ele coordenou uma série de experimentos com animais, realizados em parceria com outros pesquisadores de São Paulo, da França e dos Es-tados Unidos, que estão demonstrando como a variação nos níveis de melatonina ao longo do dia afeta a ingestão e o gas-to de energia, o chamado balanço energético do organismo.

Cipolla e seus colegas começaram a identificar a influência desse hormônio sobre a fome e o acúmulo de energia usando uma estratégia clássica da fisiologia. Segundo essa estratégia, para se conhecer a função de determinado componente em um sistema, é preciso eliminá-lo e observar o que acontece. Por meio de uma cirurgia, eles extraíram a glândula pineal dos animais, extinguin-do a produção do hormônio, e acompanharam as mudanças que

surgiram. Depois, como se colocassem de volta a peça retirada, reverteram o efeito fazendo a reposição de melatonina via oral e registrando como era afetado o funcionamento de diferentes órgãos e tecidos sobre os quais a melatonina atua. Os experimentos revelaram que o metabolismo energético tem uma organização temporal diária sincronizada pela melatonina.

À medida que escurece, a pineal passa a liberar o hormônio até alcançar uma concentração máxima, inundando o corpo com melatonina. A partir desse pico, que ocorre por volta do meio da madrugada, a concentração de hormônio diminui e permanece baixa durante a manhã e a tarde – os níveis são 10 vezes menores do que à noite. No caso dos seres humanos e de outros mamíferos de atividade diurna, as concentrações mais baixas coincidem com o período de maior atividade. É durante o dia que esses animais se alimentam – ou, ao menos, comem em maior quantidade do que à noite – e estocam mais energia do que gastam.

A energia armazenada na forma de gordura ou de estoques de açúcares durante o dia garante que o organismo continue funcionando à noite, em geral o período de descanso, quando os níveis de melatonina estão altos e o corpo passa horas em je-jum. Uma parte significativa dessa energia é usada pelo tecido

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adiposo marrom – esse tipo de gordura gasta ener-gia, enquanto a gordura branca a armazena – para produzir calor e manter o corpo aquecido num pe-ríodo em que há pouca contração muscular (outra fonte de calor). O consumo de energia pela gordura marrom é tão elevado à noite que, no balanço geral, compensa o que havia sido estocado de dia. Como resultado, o peso praticamente não muda.

“Do ponto de vista evolutivo, essa organização temporal do metabolismo energético deve ter sido fundamental para a sobrevivência dos ma-míferos”, diz Cipolla, um dos pioneiros no país dos estudos em cronobiologia, área da ciência que investiga como os fenômenos biológicos va-riam no tempo. Produzir reservas energéticas no período de atividade, conta, pode ter permitido sobreviver em segurança à noite, quando se es-tá em jejum e se dorme, em geral, em ambiente isolado e menos suscetível à ação de predadores.

Nos testes em laboratório Cipolla observou que, depois de algum tempo, os ratos que não produ-ziam melatonina apresentaram distúrbios meta-bólicos associados ao desenvolvimento da obesi-dade. Os níveis de açúcar (glicose) e de gorduras (lipídios) no sangue eram mais elevados do que o normal, o que favorecia a estocagem de energia na

forma de gordura no tecido adiposo branco e no fígado. Além de ter mais energia disponível para guardar, os animais também passaram a comer mais e fora de hora, além de gastar menos ener-gia. Segundo Cipolla, essas mudanças são efeitos diretos da redução da melatonina, hormônio que, como ele vem demonstrando, auxilia no controle da fome e estimula o tecido adiposo marrom (con-centrado ao redor do pescoço, sob as clavículas e ao longo da coluna vertebral) a gastar energia.

cROnORRUpTURaSem a melatonina, os animais perdem o padrão de organização rítmica diária do metabolismo. “Ocorre a chamada cronorruptura”, explica Cipolla. Como consequência, o cérebro deixa de perceber a sacie-dade e o apetite aumenta. Assim, come-se mesmo que fora de hora. Para piorar, o organismo gasta menos energia. Se antes os animais acumulavam energia quando estavam acordados e a gastavam durante o repouso, alternando os períodos de esto-cagem com os de queima de gordura, agora passam a acumular energia o tempo todo e engordam.

Cipolla notou ainda que era possível reverter os efeitos da cronorruptura – que também pode ocorrer pela exposição excessiva à luz (em espe-cial à luz azulada de telas de computador, tablets, celulares e TVs de LED) e, nos seres humanos, pelo trabalho no turno da noite – ao dar melatonina via oral para os animais. “Os roedores que receberam reposição do hormônio perderam peso”, conta o pesquisador. Aqueles tratados com melatonina logo após a remoção da pineal não sofreram al-terações no metabolismo energético.

A administração do hormônio também gerou um efeito protetor em roedores idosos e obe-sos, que produzem menos melatonina do que os animais mais jovens e sadios. Num dos tes-tes, os ratos que receberam melatonina por oito semanas ganharam o equivalente a 1,3% de seu peso, enquanto os que receberam apenas água e alimentação usual engordaram 4,7%. Quando o tratamento foi mais longo, as diferenças se acen-tuaram. O grupo tratado por 12 semanas com uma mistura de água e melatonina perdeu 2% do peso corporal, enquanto o que tomou apenas água pesava em média quase 8% a mais no final do período, segundo estudo publicado em 2013 no Journal of Pineal Research.

Esse trabalho, que Cipolla vem desenvolvendo em parceria com colegas da USP, da Universida-de Federal de São Paulo (Unifesp), do Instituto Butantan e dos Estados Unidos, indica que uma redução importante nos níveis de melatonina, como a observada nos ratos, aumenta a fome e favorece o ganho de peso por duas vias diretas e uma indireta. Níveis mais altos de melatonina, como os liberados à noite, atuam diretamente sobre uma região cerebral chamada hipotálamo

Ganhos e perdasNíveis de melatonina regulam a ingestão e o gasto de energia

FOnTE jOSé cIpOLLA NetO / uSp

De dia, a luz que chega aos olhos envia à pineal um comando para interromper a produção de melatonina

No escuro, a pineal aumenta

a síntese e a secreção de melatonina

Níveis baixos desse hormônio ativam centros do hipotálamo que despertam a fome

em níveis mais altos, ela inibe no hipotálamo

os centros ligados à fome

O fígado e o tecido adiposo branco armazenam energia na forma de gordura

A energia estocada no tecido adiposo e

nos músculos é consumida para manter o corpo

funcionando

Os músculos estocam energia na forma de glicogênio, reserva de consumo rápido

O tecido adiposo marrom

converte parte das reservas energéticas

em calor

Glândula pineal

pâncreas

Tecido adiposo branco

Músculos

Fígado

Hipotálamo

Tecido adiposo marrom

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a melatonina ativa nas células os clock genes, que desencadeiam eventos moleculares que duram quase 24 horas

FOnTE jOSé cIpOLLA NetO / uSp

Já se sabia que a retina, tecido fotossensível que recobre o fundo do olho, envia sinais para o reló-gio biológico existente no hipotálamo. Este, por sua vez, estimula a pineal a produzir melatonina de noite e inibe a síntese durante o dia. Mas como

a melatonina sincroniza o metabolismo ao longo das 24 horas do dia, se ela só é secretada à noite?

Cipolla e seus colegas verificaram que, uma vez lançada no sangue, a me-latonina ativa nas células de diferentes partes do corpo um conjunto de genes –os chamados clock genes ou genes do relógio – que agem como sincroniza-dores periféricos. Eles transmitem a informação do relógio central para to-das as células do organismo.

Nas células, esses genes disparam uma cadeia de eventos moleculares que duram cerca de 24 horas e sinalizam o momento em que as diferentes reações metabólicas devem acontecer. Esse me-canismo pode ajudar a entender o pa-drão de funcionamento dos diferentes órgãos e tecidos do corpo.

acERTandO OS pOnTEiROS“A melatonina já é usada para tratar distúrbios do sono e talvez possa ser adotada para ajudar a restabelecer o padrão circadiano de liberação de outros hormônios”, diz o endocrinologista Marcio Mancini, da Faculdade de Medicina da USP. É que

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melatonina nORMal

melatonina REdUzida

GanHO de peso

ManUTEnçãO do peso

Gangorra energéticaequilibrados sob condições normais, o acúmulo (A) e o gasto (G) de energia mudam com a falta de melatonina

inibindo a fome. Portanto, menos melatonina significa um apetite maior. Outro efeito direto da diminuição desse hormônio é uma redução da queima de energia pelo tecido adiposo marrom.

De modo indireto, a redução da melatonina des-regula a produção e a ação do hormônio insulina e reduz a produção de leptina pelo tecido adipo-so – dois hormônios que também atuam sobre o hipotálamo inibindo a fome. Sem melatonina, ou com níveis muito baixos dela, perdem-se dois dos freios cerebrais do apetite e se gasta menos ener-gia. Estudos experimentais indicam ainda que, na ausência da melatonina, o corpo produz mais gre-lina, hormônio que induz a fome.

Existe a suspeita de que essa alteração na pro-dução e na ação da insulina inicie um processo de retroalimentação, gerando um círculo vicioso. Animais que produzem menos insulina também secretam menos melatonina, mostrou um experi-mento usando ratos com diabetes tipo 1, doença que causa uma diminuição importante na produção de insulina. A redução nos níveis de insulina, porém, explicou apenas 20% da queda na produção de me-latonina. O que mais influenciou a diminuição nos níveis do hormônio do sono, constataram Cipolla e seus colegas, foram as altas concentrações san-guíneas de glicose (hiperglicemia), comum quan-do o diabetes não está controlado. Testes feitos com seres humanos já demonstraram que, quanto menor a produção de melatonina à noite, maior a glicemia em jejum.

Esse resultado também levanta a hipótese de que algo semelhante possa ocorrer no diabetes tipo 2, uma forma bem mais frequente da doença – calcula-se que cerca de 10% dos adultos desen-volvam diabetes tipo 2, uma das consequências da obesidade, já considerada uma epidemia no mundo ocidental. Testes feitos com ratos que ti-nham diabetes tipo 1 e com ratos com diabetes tipo 2 indicaram que a suplementação de mela-tonina ajudou a sincronizar o metabolismo nas fases de atividade e de repouso, melhorou a ação da insulina e ajudou a regular a ingestão e o me-tabolismo de lipídios.

Em estudos a serem publicados em breve, Ci-polla e sua equipe demonstraram que tratar com insulina e melatonina animais com diabetes tipo 1 permitiu regularizar o ritmo de variação diária da temperatura corpórea, indicando, indireta-mente, a superação da cronorruptura e melhoria do quadro geral dos animais. Para Cipolla, esse conjunto de resultados indica que a suplementa-ção de melatonina pode, em determinados casos, desempenhar um papel importante na prevenção e na melhora desses problemas metabólicos. “Em especial se estiverem em uma fase inicial”, diz.

Uma das contribuições fundamentais do grupo foi elucidar como a melatonina ajuda o organismo a manter a sincronia temporal com o ambiente.

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projetoO papel da melatonina no controle do metabolismo energético: ações centrais, periféricas e a regulação circadiana da função metabólica. pineal, diabetes, obesidade e envelhecimento (nº 2009/52920-0); Modalidade projeto temático; pesquisador responsável josé cipolla Neto (Icb-uSp); investimento r$ 1.849.483,52 (FApeSp).

Artigos científicoscIpOLLA-NetO, j. et al. melatonin, energy metabolism and obesity: a review. Journal of pineal Research. v. 56, p. 371-81. 2014.AmArAL, F. G. et al. environmental control of biological rhythms: effects on development, fertility and metabolism. Journal of neu-roendocrinology. v. 26, p. 603-12. 2014.AmArAL, F. G. et al. melatonin synthesis impairment as a new dele-terious outcome of diabetes-derived hyperglycemia. Journal of pineal Research. v. 57, p. 67-79. 2014.

ela regula o ciclo de produção de hormônios como o cortisol, liberado em situações de estresse; a lep-tina e a grelina, que regulam a fome; e o hormônio do crescimento, que auxilia na reparação de danos celulares. “Mas ainda é necessário demonstrar que o que se observou em ratos também ocorre em se-res humanos”, enfatiza Mancini.

Nos últimos anos começaram a surgir evidências de que a melatonina pode auxiliar no controle da glicemia e dos níveis de lipídios e colesterol em se-res humanos. Um estudo clínico feito nos Estados Unidos e publicado em 2011 na revista Diabetes, Metabolic Syndrome and Obesity: Targets and The-rapy indicou que, em pacientes com diabetes tipo 2 e insônia, a melatonina melhorou o sono após três semanas e auxiliou o controle glicêmico após cin-co meses. Outro teste clínico, descrito no Journal of Pineal Research, também em 2011, demonstrou que, após dois meses de tratamento com melatonina, pes-soas com distúrbios metabólicos apresentaram redu-ção na pressão sanguínea e nos níveis de colesterol.

Mesmo diante desses resultados, Cipolla é cau-teloso e ressalta que não existe solução fácil para os problemas metabólicos. “A melatonina pode se tornar um coadjuvante no tratamento desses distúrbios e talvez tenha um papel especialmente importante na prevenção deles”, diz. “Após tantos anos de estudos experimentais, chegou a hora de realizar estudos clínicos bem planejados e ade-quadamente controlados para testar o papel da melatonina na fisiopatologia metabólica humana.”

Ainda há muito trabalho a ser feito. É preci-so, primeiro, verificar a eficácia e a segurança da melatonina para tratar esses problemas em seres humanos. Caso de fato funcione, também será necessário alterar a regulamentação sobre a venda desse hormônio no país. Por causa do uso indiscriminado nos anos 1990, a Agência Na-cional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proibiu a comercialização da melatonina, embora seu uso esteja liberado. O próprio Cipolla importa o sal dos Estados Unidos e manipula aqui para seus experimentos – e compra também alguns com-primidos para uso pessoal. n

n as últimas semanas de março o dia foi mais longo que o normal no laboratório da far-macologista Regina Markus na Universi-

dade de São Paulo (USP). À frente de uma equipe de 12 pessoas, ela própria chegava à universidade bem cedo pela manhã e só retornava para casa tarde da noite. “Estou trabalhando 24 horas por dia”, escreveu em um e-mail enviado no dia 24 às 2h46 da madrugada. Mais tarde no mesmo dia, em uma conversa por telefone, ela contou que nessas fases de trabalho mais corrido estava ha-bituada a passar dias quase sem dormir, tirando apenas cochilos estratégicos. A pressa era para concluir a redação de oito artigos que mostram uma possível conexão entre a inflamação leve e persistente observada na obesidade e em alguns casos de câncer e a desativação da pineal, glân-dula localizada na região central do cérebro e principal fonte de melatonina para o organismo.

Na mensagem de e-mail, Regina chamava a atenção para um trabalho que enviava em anexo. Uma semana antes ela e sua equipe haviam pu-blicado no Faseb Journal as primeiras evidências de que os oligômeros beta-amiloide, compostos tóxicos que se acumulam no cérebro nos estágios iniciais da doença de Alzheimer, alteram o funcio-namento da glândula pineal e bloqueiam a sínte-se de melatonina. Produzido por quase todos os seres vivos, esse hormônio de múltiplas funções ajusta o ritmo de fenômenos fisiológicos como o sono, a fome e a temperatura corporal. No final dos anos 1990 o pesquisador italiano Salvatore

Inflamação associada

à doença neurodegenerativa

inibe a produção de

melatonina, hormônio

que evita a morte celular

desprotegido contra o alzheimer

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pESQUiSa FapESp 230 z 49

projetoeixo imune-pineal: integrando a biologia do tempo em condições fisio-lógicas, fisiopatológicas e patológicas (nº 2013/13.691-1); Modalidade projeto temático; pesquisador responsável regina pekelmann markus (Ib/uSp); investimento r$ 1.833.122,85 (FApeSp – para todo o projeto)

Artigos científicoscecON, e. et al. Amiloid peptide directly impairs pineal gland melatonin synthesis and melatonin receptor signaling through the erK pathway. Faseb Journal. 10 mar. 2015.pINAtO, L. et al. Selective protection of the cerebellum against in-tracerebroventricular LpS is mediated by local melatonin synthesis. Brain Structure and Function. 22 dez. 2013. cecON, e. e mArKuS, r.p. relevance of the chronobiological and non-chronobiological actions of melatonin for enhancing therapeutic efficacy in neurodegenerative disorders. Recent patents on Endocrine, Metabolic & immune drug discovery. v. 5, p. 91-9. 2011.

Cuzzocrea, da Universidade de Messina, demons-trou também que a melatonina funciona como um importante agente anti-inflamatório. Desde então, Regina e sua equipe trabalham para com-

preender melhor como a inflamação afeta a produção do hormônio e como as variações na secreção da melatonina influenciam a inflamação. O objetivo do grupo é identificar alvos específicos sobre os quais compostos, já existen-tes ou a serem desenvolvidos, possam agir e evitar os danos indesejáveis da inflamação persistente.

Com o estudo do Faseb Journal, o grupo de Regina parece ter chegado a uma possível explicação para os efeitos limitados de uma das poucas classes de medicamentos – os compostos antico-linesterásicos, como a rivastigmina e a galantamina – disponíveis contra o Alzheimer. Também pode ter aberto um caminho novo para o desenvolvi-mento de fármacos que, usados em as-sociação com os anticolinesterásicos,

talvez consigam melhorar o desempenho deles e permitir a administração de doses mais baixas, reduzindo os efeitos colaterais.

Erika Cecon, bióloga da equipe de Regina, realizou uma série de experimentos com ratos em que tentava simular a inflamação causada pelos oligômeros beta-amiloide no Alzheimer. Primei-ro, ela injetou uma pequena dose dos oligômeros em uma das câmaras do cérebro dos roedores e depois analisou, tanto em nível molecular como celular, o que acontecia.

Na pineal, os oligômeros aderiram a uma mo-lécula da superfície das células chamada toll-like receptor 4 (TLR-4), especializada em detectar sinais de danos ou de perigo, como a presença

de fragmentos de células mortas e de pedaços de microrganismos invasores. Uma vez ativado, esse receptor desencadeou uma sequência de reações químicas que, nas células produtoras de melatonina (pinealócitos), cessou a síntese do hormônio – efeito semelhante já havia sido observado pelo grupo ao causar uma inflamação cerebral em roedores usando lipopolissacarídeos (LPS), moléculas da parede de bactérias. “Estu-dos internacionais sugerem que as pessoas com doença de Alzheimer não produzem melatoni-na”, conta Regina.

A redução inicial dos níveis de melatonina é desejável e até fundamental para que células do sistema de defesa se dirijam ao local danificado, destrua as células mortas ou os microrganismos invasores e depois elimine os restos, numa es-pécie de faxina celular. Mas, prolongada, ela se torna danosa porque começa a destruir também os tecidos sadios.

No sistema nervoso central, a diminuição dos níveis de melatonina deixa as células vulne-ráveis. Em 2013 Luciana Pinato e Regina de-monstraram que a baixa da melatonina matou neurônios em diferentes regiões do cérebro. Só foram poupados os neurônios do cerebelo, órgão associado ao controle dos movimentos, que, por razões desconhecidas, apresenta uma produção local do hormônio.

Sem ele, ocorre também outro efeito no tecido cerebral. Os neurônios, células que transmitem e armazenam informação, deixam de expressar em sua superfície os receptores sobre os quais agem os anticolinesterásicos, os medicamentos contra o Alzheimer, observou o grupo de Regina em par-ceria com o pesquisador francês Ralf Jockers. “A restauração dos níveis de melatonina no sistema circulatório e a recuperação da função dos recep-tores de melatonina podem ter um valor terapêu-tico, especialmente por meio da administração de melatonina nos estágios avançados do Alzheimer”, escreveram no Faseb Journal. Esse efeito ainda precisa ser comprovado em humanos. n

Ação anti-inflamatória: no cerebelo de rato, astrócitos (amarelo), micróglias e neurônios (verde) produzem melatonina ante sinais de dano celular

compostos tóxicos que se acumulam no cérebro nos estágios iniciais do alzheimer alteram a atividade da glândula pineal

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Novas conexões entre as células cerebrais se

formam durante o sono REM, a fase dos sonhos

É durante o sono, sabe-se há algum tempo, que o cérebro consolida a memória de acontecimentos re-centes e importantes. É preciso

estar acordado e atento para registrar uma informação nova. Mas as mudanças nos circuitos cerebrais que vão fixá-la e permitir que seja recordada tempos depois só ocorrem mais tarde, enquanto se dorme. Até aí os especialistas em so-no e memória parecem estar de acordo. As opiniões divergem, porém, no que diz respeito à maneira como ocorre a consolidação da memória e em qual das fases do sono isso acontece. Um estudo recente conduzido por pesquisadores brasileiros elimina uma parte das dúvi-das e questiona a ideia mais aceita até o momento de como as memórias se tor-nam robustas durante o sono.

Em uma série de experimentos reali-zados com ratos, animais-modelo para o estudo do sono e da memória, pesquisa-

NEUROCIÊNCIA y

Os relevos da memória

dores de São Paulo e do Rio Grande do Norte demonstraram que no sono ocorre, sim, a eliminação ou poda das conexões (sinapses) mais débeis entre as células cerebrais, como haviam proposto em 2003 dois pesquisadores italianos. Mas os brasileiros verificaram que, enquanto o animal dorme, também ocorre o re-forço das sinapses. “O modelo sugerido por Giulio Tononi e Chiara Cirelli não está errado, mas é insuficiente porque dá conta de apenas parte da realidade”, afirma o neurocientista Sidarta Ribeiro, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e coorde-nador do novo estudo.

No trabalho, publicado na revista Neu-robiology of Learning and Memory, Ri-beiro e seus colaboradores criaram em laboratório uma situação que simula o aprendizado e depois acompanharam o que acontecia no cérebro dos animais. Nos experimentos o biólogo Julien Calais

Ricardo Zorzetto

colocava os ratos (um por vez) em uma caixa com a qual já estavam familiariza-dos e os deixava explorar o ambiente à vontade. Depois acrescentava quatro ob-jetos – feitos por ele próprio com escovas de sapato, pedaços de cano e tachas – com os quais os animais jamais haviam tido contato. Como ratos são animais curiosos e de hábitos noturnos, Calais usou uma câmera que capta infravermelho e permi-te filmar no escuro para se certificar de que o animal se interessava em conhecer os novos brinquedos.

Ele esperava o roedor passar um tem-po tateando os objetos com as vibrissas (bigodes) e depois o mantinha acordado pelos 90 minutos seguintes. Na sequên-cia, deixava o animal dormir três horas, enquanto acompanhava o seu sono com equipamentos que registram as altera-ções elétricas do cérebro. Com ajuda da geneticista Elida Ojopi e do neurologis-ta Koishi Sameshima, Calais observou

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que durante o sono REM – a mais curta das quatro fases do sono, na qual ocor-rem os sonhos – certos genes codifica-dores de proteínas que formam as sinap-ses estão ativos no hipocampo, a região cerebral que funciona como porta de entrada da memória.

É um resultado que nem todos espera-vam observar. Alguns anos atrás Tononi e Cirelli haviam demonstrado que, de modo geral, esses genes são progressi-vamente desligados à medida que os roe-dores adormeciam e se aprofundavam no sono. Com base nesses dados e nos de outros estudos, eles propuseram a chamada hipótese da homeostase sináp-tica. Segundo essa ideia, uma informação nova – uma música que jamais se havia ouvido, por exemplo – é transformada em lembrança por meio de uma sequên-cia de eventos químicos iniciada durante a vigília que cria conexões novas entre os neurônios. Durante o sono, as cone-xões mais frágeis, dos acontecimentos que serão esquecidos, são desfeitas. É como se o sono podasse as informações menos importantes, como um jardineiro que desbasta a árvore das recordações.

Sidarta Ribeiro, porém, não estava convencido. Para ele, os italianos ha-viam se baseado em experimentos que não eram suficientes para dar apoio à hipótese da homeostase sináptica. Ribei-ro começou a estudar o sono durante o doutorado sob a orientação de Claudio

Vianna de Mello e Constantine Pavlides, na Universidade Rockefeller, nos Esta-dos Unidos. Em 1999 demonstrou que na fase REM havia aumento da expressão de alguns genes. Mas isso não ocorria sempre. A ativação só ocorria se o ani-mal tivesse sido exposto a informações novas – em outras palavras, se tivesse aprendido algo – antes de dormir.

entalhamentOEssa razão o levou a planejar os expe-rimentos realizados por Calais, que de-monstraram a desativação de genes li-gados à formação de sinapses durante o sono de ondas lentas e a reativação de alguns deles num estágio posterior, o sono REM – também conhecido como sono paradoxal porque nele o cérebro se encontra tão ativo quanto na vigília. Esses resultados complementam os es-tudos feitos por Ribeiro ao longo dos últimos 15 anos e favorecem a hipóte-se formulada por ele em 2004, quando ainda trabalhava com Miguel Nicolelis, na Universidade Duke.

De acordo com essa proposta, a fixa-ção da memória envolve tanto a ativação de alguns genes e reforço de conexões quanto a desativação de outros e elimina-ção de sinapses durante o sono. Ribeiro compara esse processo, que começa no hipocampo e depois atinge o córtex, ao entalhar de uma imagem em uma peça de madeira. “A informação nova, que fica

registrada, é como a parte em alto-relevo de uma figura”, diz.

Débora Hipólide, bióloga e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que estuda os efeitos da priva-ção de sono sobre a memória e a apren-dizagem, conta que esses dados agregam informações importantes à explicação de como se dá a fixação da memória do ponto de vista molecular. Mas ainda não permitem saber qual das duas hipóteses descreve melhor o fenômeno.

“É necessário investigar tanto parâme-tros eletrofisiológicos quanto molecula-res para se ter uma gama de informações que vão se fortalecer para corroborar ou não a hipótese”, diz. Segundo Débora, uma das contribuições do novo estudo é reforçar a ideia de que o sono REM é crucial para a consolidação da memória. “Os genes que estavam ativos durante a vigília são ativados de novo no sono REM. É como se nessa fase o cérebro revisitasse a informação”, conta. n

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ProjetoExpressão gênica durante o sono após a exposição a um ambiente enriquecido (n. 2006/05436-8); modalidade Bolsa de mestrado (julien Braga Calais Correia Pinto); Pesquisador responsável Elida Paula Benquique Ojopi (FM-UsP); investimento R$ 32.864,04 (FAPEsP).

Artigo científicoCALAIs, j. B. et al. Experience-dependent upregulation of multiple plasticity factors in the hippocampus during early REM sleep. neurobiology of learning and memory. 2015.

PesQuisa FaPesP 230 z 51

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Modelo explica como seleção natural

atua para criar conjuntos de

características que variam em uníssono

Evolução y

Teoria em construção

Quando uma notícia de jornal traz a ilustração de um di-nossauro recém-descoberto, talvez caçando em meio a uma

floresta pré-histórica, é difícil acreditar que o ponto de partida para reconstruir o animal tenha sido um único dente. Mas é o que muitas vezes acontece. Isso é possível, em parte, porque as proporções entre as diferentes partes do corpo se mantêm bastante fixas nos mais dife-rentes organismos como resultado de uma ação em concerto de certas carac-terísticas. “A evolução brinca com tijo-los e vai remodelando a construção dos seres, como se fosse um Lego da vida”, compara o biólogo Gabriel Marroig, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP).

Seu grupo, do Laboratório de Evolu-ção de Mamíferos, está esmiuçando co-mo esse jogo acontece por meio de estu-dos sobre como esses blocos podem ser transmitidos de uma geração para outra em diferentes espécies de animais. Mas o avanço mais recente, que de certo mo-do serve de fundamento para os demais projetos, não se concentrou em espécies reais: foi obtido a partir de simulações teóricas em computador. Os resultados

Maria Guimarães

do mestrado do biólogo Diogo Melo mos-tram que, para que surjam esses tijolos evolutivos que agrupam feições, é neces-sário um empurrãozinho da seleção na-tural – que os evolucionistas chamam de seleção direcional, segundo mostra artigo publicado em janeiro na revista PNAS.

Marroig dá como exemplo a relação estável de tamanho e forma que existe entre a mandíbula e a maxila, respecti-vamente os ossos que servem de suporte para os dentes inferiores e superiores da maioria dos mamíferos. Esses ossos precisam ser proporcionais para per-mitir que o animal obtenha e mastigue os alimentos de modo eficiente. Como a função – no caso, comer – é essencial para a sobrevivência do organismo, va-riações no tamanho de uma parte neces-sariamente provocam mudanças na ou-tra. Mandíbula e maxila formam, então, um bloco de construção. “A não ser que de repente começasse a chover papinha de bebê”, imagina o pesquisador. “Nesse caso poderia ser melhor o animal ter a mandíbula maior do que a maxila para, sem esforço, recolher o alimento que cai do céu.” Retomando a analogia do Lego, a evolução precisaria criar novos blocos, em vez de remanejar os que existem.

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pESQUISA FApESp 230 z 53

Apesar de fantasioso, o exemplo se assemelha à realidade. Assim como a forma das peças de Lego mudam pou-co, a estrutura do crânio de mamíferos é extremamente estável. O trabalho da dupla mostra que, quando há uma pres-são seletiva forte – como a mudança no tipo de alimento disponível e na forma de obtê-lo –, o módulo se rompe e um novo se estabelece em poucas gerações.

A tal modularidade existe porque a re-lação entre os genes e as características raramente é simples como se aprende na escola. Em geral, há uma relação direta entre um gene e uma característica. Mas pode haver variações em qualquer dire-ção conectando grupos de genes e blocos de características – seriam os módulos.

coMplExIdAdECom as simulações rodando por semanas a cada vez, Melo conseguiu o que ainda não tinha sido feito na busca por entender co-mo surgem esses blocos: criar um cenário em que ao longo de 10 mil gerações uma população é submetida a tipos distintos de seleção natural ou isenta de pressão seletiva. Mais importante: essa evolução teórica age sobre mais de mil genes que determinam uma dezena de característi-cas. “Até agora só existiam trabalhos com duas características”, conta Melo. Eles

resolveram investir num cenário multi-dimensional, mais próximo da realidade, apesar de exigir um esforço computacio-nal incrivelmente maior. Isso foi possível porque um quarto do financiamento para o projeto de Marroig foi destinado à aqui-sição de um potente servidor para uso compartilhado com outros pesquisadores.

Ao testar tipos diferentes de seleção natural, além da situação em que genes aparecem ou se perdem ao acaso (pro-cesso conhecido como deriva genética) na população, as simulações mostraram que só é possível reproduzir o que se vê na natureza por meio de uma combina-ção de dois tipos de seleção natural: a direcional, seguida da seleção estabiliza-dora. A primeira favorece a sobrevivên-cia de organismos que apresentam uma característica vantajosa num ambiente em alteração – por exemplo, a boca com queixo projetado para a frente quando a comida passa a cair do céu. Só assim surgiram, nas populações fictícias, os novos blocos de características.

Depois de um período em que vigorou a seleção direcional, no entanto, a sele-ção estabilizadora entra em cena. Ela possibilita que os organismos que pre-servam uma determinada característica ao longo das gerações se saiam melhor. O que era novidade se torna regra.

Apesar de ser um experimento con-duzido em populações simuladas em um programa de computador, suas conclusões reproduzem os resultados empíricos que Marroig obteve em trabalhos anteriores, como o que explica a evolução do tama-nho dos macacos encontrados nas Amé-ricas (ver Pesquisa FAPESP nº 141), assim como nos projetos atuais do laboratório.

O trabalho de Melo reforça a impor-tância de uma ideia que costuma receber pouca atenção na biologia evolutiva: a epistasia, ou a influência que alguns ge-nes exercem sobre outros. “A epistasia é o patinho feio da genética e da evolução, mas agora começa a assumir importância central”, afirma Marroig. Esse conceito vem sendo discutido apenas nos últimos 20 anos, tempo insuficiente para ganhar espaço nos livros didáticos da área. Mas, para Marroig, explica a maior parte da variação genética encontrada hoje na natureza. Faz sentido: um conjunto de mil genes é limitado se cada um deles afeta uma característica. Mas se o efeito se der por meio de combinações entre as peças desse repertório genético, as pos-sibilidades se tornam muito mais nume-rosas. É por isso que a evolução consegue reagir em poucas gerações a mudanças no ambiente, quebrando os blocos de construção e fazendo novos, mais ade-quados. “As coisas não são tão lineares quanto os biólogos estão acostumados a imaginar”, conclui o pesquisador. n

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projetoModularidade e suas consequências evolutivas; Modali-dade projeto Temático; Pesquisador responsável Gabriel Marroig (usp); Investimento r$ 1.006.189,94 (FapEsp).

artigo científicoMElo, D. e MarroiG, G. Directional selection can drive the evolution of modularity in complex traits. pNAS. v. 112, n. 2, p. 470-75. 13 jan. 2015.

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Em condições extremas, planta usada na produção da

tequila se alimenta das bactérias que vivem em seu interior

a tequila, famosa bebida destila-da mexicana, é feita da polpa de uma planta de folhas longas, duras e espinhosas, o agave-

-azul (Agave tequilana). Típica do de-serto, essa planta cresce em solos pobres e arenosos em parte graças aos nutrien-tes produzidos por bactérias que vivem harmoniosamente no interior de suas células. Mas, em momentos de necessi-dade extrema, como longos períodos de

BIOQUÍMICA y

Na hora do aperto

seca ou sol intenso, o agave-azul sacrifica essas bactérias e se alimenta delas para sobreviver. “A planta literalmente conso-me suas bactérias para se manter viva”, explica o bioquímico Paolo Di Mascio, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP).

Ele participou de uma equipe inter-nacional que fez uma série de experi-mentos no IQ-USP e na Universidade Rutgers, nos Estados Unidos, e demons-

Igor Zolnerkevic

trou que o agave-azul digere a bactéria Bacillus tequilensis, normalmente en-contrada em suas células. Essa estraté-gia permite à planta absorver ao menos parte dos nutrientes de que necessita para atravessar períodos de privação. Os resultados desse trabalho, publicado em novembro de 2014 no periódico Scienti-fic Reports, revelam ainda que, mesmo quando há abundância de nutrientes, o agave-azul se beneficia da parceria com a

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pESQUISA FApESp 230 z 55

B. tequilensis: a presença da bactéria faz o agave crescer mais rápido, chegando a triplicar sua produção de biomassa.

Outras pesquisas recentes já haviam indicado que certas espécies de bacté-rias colaboram para o crescimento de plantas e o controle de pragas agrícolas. “Buscamos microrganismos que substi-tuam ou reduzam o uso de fertilizantes e pesticidas”, diz Miguel Beltrán-García, pesquisador da Universidade Autônoma

de Guadalajara, no México, que liderou os estudos com o agave.

Beltrán-García conduziu esses expe-rimentos em 2013, quando passou um ano no IQ-USP a convite de Di Mascio, seu colaborador há mais de uma déca-da. Em conjunto com outra equipe in-ternacional, eles identificaram uma via bioquímica pela qual o fungo Mycos-phaerella fijiensis danifica as bananeiras. Os experimentos, descritos ano passado

no periódico PLoS One, indicaram que a luz solar, ao incidir sobre o pigmento melanina produzido pelo fungo, desen-cadeia reações fotoquímicas que geram moléculas de oxigênio excitado e levam à morte das células nas folhas da planta, deixando-as escurecidas. Os pesquisa-dores continuam a investigar a praga, conhecida como sigatoka-negra, agora para entender melhor como uma solução líquida desenvolvida por Beltrán-García e seus colaboradores conseguiu controlar a doença em plantações comerciais no México. A solução é feita de uma mis-tura de bactérias obtidas das próprias bananeiras e, além do efeito pesticida, serve como fertilizante.

Em paralelo à pesquisa sobre a praga das bananeiras, Beltrán-García segue preocupado com o futuro do agave-azul, um dos principais produtos agrícolas do estado mexicano de Jalisco, onde ficam a cidade de Guadalajara e o vilarejo de Tequila. A forte bebida destilada não é o único derivado do agave-azul fabrica-do em escala industrial. Dele também se extrai, depois da cocção, um xaro-pe mais doce que o mel e a inulina, um açúcar usado na produção de alimentos. “A produção do agave-azul está sofren-do com doenças causadas por fungos e bactérias e com o ataque de insetos”, explica Beltrán-García.

FomE dE NItrogêNIoNa tentativa de aumentar a produtivida-de, os agricultores aplicam quantidades excessivas de fertilizantes – um fenô-meno mundial na agricultura –, o que também traz consequências indesejáveis. Os fertilizantes contêm sais de nitrato e de cloreto de amônio, fonte de um dos nutrientes mais essenciais às plantas, o nitrogênio. Esse elemento químico entra na composição das proteínas, do DNA e da molécula de clorofila, pigmento res-ponsável pela reação de fotossíntese que alimenta os vegetais. O problema é que lé

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Agave-azul: típico de regiões com solo pobre e arenoso e matéria-prima da tequila

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56 z abril DE 2015

apenas metade do nitrogênio dos fer-tilizantes é absorvida pelas plantas. O restante vai para o ambiente e pode pre-judicar a qualidade do solo e contaminar ecossistemas distantes, quando é levado para longe pelo vento e pela água.

Por causa desses efeitos, buscam-se al-ternativas aos fertilizantes. Uma delas são bactérias que ajudam as plantas a extrair nitrogênio. Elas transformam o nitrogê-nio do ar (inerte para a maioria dos seres vivos) e de outros compostos em molécu-las que as plantas podem absorver, como a amônia. Outras bactérias decompõem organismos mortos e disponibilizam com-postos à base de nitrogênio para as plantas.

Mais recentemente se percebeu que as plantas também adquirem nitrogênio com a ajuda de outro tipo de microrga-nismo: as bactérias endofíticas, como o Bacillus tequilensis, que vivem no inte-rior das células da planta em harmonia com a sua hospedeira. Ninguém sabe,

porém, como os nutrientes produzidos por essas bactérias – estejam elas no solo, nas raízes ou nas células vegetais – são aproveitados pelo agave.

“É difícil estudar o fluxo de nutrientes dos micróbios para as plantas”, afirma James White, especialista na interação entre plantas e microrganismos da Uni-versidade Rutgers, um dos colaboradores de Beltrán-García e Di Mascio no estudo da sigatoka-negra. “Provavelmente por isso ninguém realizou esse tipo de ex-perimento”, conta White, que, com sua colega Monica Torres, também partici-pou do trabalho com o agave-azul.

White estuda gramíneas que abrigam bactérias endofíticas e acredita que as plantas podem digerir os microrganis-mos por meio da produção de água oxi-genada (H2O2). Com fórmula química semelhante à da água, a água oxigenada contém um átomo de oxigênio extra, que tende a reagir com outras moléculas. O pesquisador imagina que a água oxige-nada liberada pela planta destrói as bac-térias endofíticas e decompõe suas mo-léculas grandes em moléculas menores, que podem ser aproveitadas pelas células vegetais. “Temos evidência de que isso ocorre em algumas espécies, mas acre-ditamos que esse processo pode aconte-cer em todo o reino vegetal”, diz White. “A questão em aberto é saber quanto o nitrogênio proveniente das endofíticas é importante para a planta.” A resposta provavelmente deve variar de uma es-pécie de planta para outra e conforme as circunstâncias em que se encontra.

Em um dos experimentos, White e Monica observaram ao microscópio célu-las da raiz do agave-azul lançarem água oxigenada sobre bactérias B. tequilensis inoculadas na planta. O teste, porém,

No laboratório: folhas são maceradas (acima) e cortadas (ao lado) para passar por dois tipos de análise que avaliam a incorporação de nitrogênio 15

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Água oxigenada produzida pelo agave pode digerir as bactérias endofíticas e decompor suas moléculas

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pESQUISA FApESp 230 z 57

Projetos1. Oxigênio singlete e peróxidos em química biológica (nº 2012/12663-1); Modalidade Projeto Temático; Pes-quisador responsável Paolo Di Mascio (IQ-UsP); Inves-timento r$ 3.408.783,02 (FAPEsP).2. redoxoma (2013/07937-8); Modalidade Cen-tros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pes-quisador responsável Ohara Augusto; Investimento r$ 22.604.697,96 (FAPEsP – para todo o projeto).

Artigo científicoBElTrÁN-GArCÍA, M. J. et al. Nitrogen acquisition in Agave tequilana from degradation of endophytic bacteria. Scientific reports. v. 4, n. 6.938. 6 nov. 2014.

5

deixava uma dúvida: a liberação de água oxigenada seria uma reação de defesa da planta contra o excesso de bactérias ou uma forma de obter nutrientes?

SEgUINdo o ISótopoDi Mascio teve então a ideia de cultivar a B. tequilensis em laboratório, alimen-tando as bactérias com um nitrogênio especial, que poderia ser rastreado e, mais tarde, detectado em moléculas produzidas pelas plantas. Eles deram às bactérias um tipo de nitrogênio que pesa 15 unidades de massa atômica, diferente da maioria dos átomos de nitrogênio en-contrados na natureza, que têm peso 14.

No IQ-USP, Fernanda Prado, Kátia Prieto e Marisa Medeiros, do Departa-mento de Bioquímica, e Lydia Yamagu-chi e Massuo Kato, do Departamento de Química Fundamental, alimentaram plântulas de agave-azul cultivadas em condições controladas com as bactérias contendo nitrogênio 15. Em um dos ex-perimentos, as plântulas eram retiradas da estufa uma vez por semana, lavadas e esterilizadas. Depois passavam algumas horas em um vaso contendo apenas areia estéril e uma solução de B. tequilensis, o que simulava um ambiente pobre em ni-trogênio. Os pesquisadores aumentavam o estresse do ambiente ao deixar o agave sob uma luz muito intensa.

Depois de seis meses, os pesquisado-res coletaram as folhas que brotaram nesse período e as analisaram com o au-

xílio de espectrômetros de massa, equi-pamento capaz de distinguir os dois tipos de nitrogênio. Eles encontraram nitrogê-nio 15 tanto em aminoácidos (blocos for-madores de proteínas) quanto no DNA e na feofitina, molécula derivada da cloro-fila. “A feofitina é típica da planta e não existe na bactéria”, explica Di Mascio. “Encontrar feofitina com nitrogênio 15 é a prova de que átomos das bactérias absorvidas pelas raízes foram parar em uma molécula criada pela planta.”

Em outro experimento, os pesquisa-dores compararam o crescimento das plântulas que não receberam doses se-manais de B. tequilensis com aquelas que receberam as bactérias, vivas ou mortas. As plântulas alimentadas com bactérias vivas cresceram duas vezes mais do que as que receberam bactérias mortas e três ve-zes mais do que as alimentadas com uma solução mineral contendo nitrogênio. O resultado sugere que, além de fornecer nitrogênio, as B. tequilensis que vivem no agave-azul produzem hormônios de cres-cimento vegetal chamados de auxinas.

Estudos brasileiros feitos com cana--de-açúcar já haviam demonstrado que a inoculação de bactérias endofíticas pode acelerar consideravelmente o crescimen-to da planta. Em parceria com Antonio Figueira e Layanne Souza, da Escola Su-perior de Agricultura Luiz de Queiroz da USP, Di Mascio e Kátia Prieto planejam realizar com a cana experimentos se-melhantes aos feitos com o agave-azul.

“Trabalhar com a cana é mais difícil, por-que em laboratório as mudas crescem com adição de muito açúcar”, explica Di Mascio. “O açúcar aumenta o risco de contaminação por outras bactérias e fun-gos, o que pode arruinar o experimento.”

Chanyarat Paungfoo-Lonhienne, pes-quisadora da Universidade de Queens-land, na Austrália, afirma que o resultado obtido com o agave “encoraja a investigar se esse também é um modo de nutrição para outras plantas”. Em 2010, ela liderou o primeiro estudo a mostrar que plantas – nesse caso, o tomate e a Arabidopsis thaliana, uma planta-modelo usada em pesquisas – são capazes de digerir bac-térias e fungos invasores. Para Chanya-rat, entender como funciona a interação dessas bactérias com as plantas e associar essa combinação a outras técnicas orgâni-cas pode levar a resultados interessantes: “Pode reduzir o uso de fertilizantes, se não substituí-lo totalmente”. n

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No campo: plantação de agave

em Tequila, no México, e colônia

da bactéria Bacillus tequilensis

encontrada sobre a raiz das plantas

(destaque)

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Levantamentos identificam galáxias anãs

e berçários de estrelas em

regiões extremas da Via Láctea

Oretrato já bem sedimentado da Via Láctea, a galáxia que abriga o sistema solar, mostra um disco onde braços coalha-

dos de estrelas, poeira e gás se espalham espiralados a partir de um núcleo central alongado como uma barra. Com o sur-gimento de meios de observação mais precisos e potentes, essa imagem está se tornando mais nítida e complexa, como mostram três trabalhos divulgados em fevereiro e março deste ano que anali-saram regiões remotas da Via Láctea.

Em um deles, um grupo do Departa-mento de Astronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) identificou dois aglomerados estelares incrustados em uma nuvem de gás si-tuada cerca de 16 mil anos-luz abaixo do plano da galáxia. Os aglomerados foram batizados como Camargo 438 e Camargo 439, em referência a Denilso Camargo, um dos membros da equipe, formada ainda por Charles Bonatto, Eduardo Bica e Gustavo Salerno. Em trabalhos ante-riores, eles haviam identificado outros

ASTRONOMIA y

A visão da periferia

437 aglomerados. Todos, porém, mais próximos do plano da galáxia.

Um dos novos aglomerados abriga 33 estrelas e o outro, 42. Ambos são muito jovens para os parâmetros astronômicos: têm 2 milhões de anos (o Sol tem 5 bi-lhões e a Via Láctea, cerca de 13 bilhões). Isso mostra que a nuvem de gás onde estão inseridos é um berçário, no qual continuam surgindo novas estrelas. “É a primeira vez que se detecta a formação de estrelas a uma distância tão grande do disco da galáxia”, conta Camargo.

Os aglomerados foram identificados a partir de imagens do telescópio espacial Wise, da Nasa, lançado em 2009 para fazer observações em infravermelho. “Não é fácil detectar estrelas em nuvens de poeira porque a radiação ultravioleta emitida pelas estrelas de massa elevada é absorvida pela poeira, que a reemite no infravermelho”, diz Camargo. “Esses detectores estão fazendo contribuições importantes para a astronomia.”

A maioria das estrelas nasce em aglo-merados estelares, dentro das nuvens

Pablo Nogueira

moleculares gigantes que povoam o disco da galáxia, em especial os braços. Essas nuvens geralmente estão em equilíbrio. Mas perturbações – como colisões com outras nuvens, ondas de choque da ex-plosão de supernovas e encontros com os braços espirais – podem desestabilizá-las e provocar seu colapso sob a influência de sua própria gravidade. Durante o co-lapso a nuvem se fragmenta e gera re-giões mais densas, com massa elevada, nas quais se formam estrelas e planetas.

A Via Láctea abriga duas populações estelares. A primeira contém a maioria das estrelas da galáxia, concentradas no

58 z abril DE 2015

Page 59: Pesquisa FAPESP

plano do disco, numa faixa que mede cerca de 100 mil anos-luz de extensão por 3 mil anos-luz de espessura. Ali as estrelas se formam continuamente. A se-gunda população estelar povoa o halo – uma região mais externa, que envolve o disco. No halo, as estrelas se encontram em aglomerados globulares. Essa popu-lação é formada por estrelas velhas, com idade da ordem de bilhões de anos, e de baixa metalicidade, características que sugerem que tenham se formado quan-do a galáxia era jovem – há indícios de que a Via Láctea abriga estrelas quase tão antigas quanto o próprio Universo.

Os pesquisadores da UFRGS identifi-caram os novos aglomerados estelares se formando numa região onde não se espe-rava que houvesse formação estelar. Essa descoberta traz um paradoxo: como po-dem surgir novas estrelas na região que abriga as mais antigas da galáxia? “Uma possibilidade é que esteja ocorrendo o que chamamos de canibalismo”, explica Walter Maciel, da Universidade de São Paulo (USP), que investiga a composição química das estruturas da Via Láctea e não participou desse estudo.

O tal canibalismo é a absorção de es-trelas e nuvens de gás que pertencem a fo

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Grande Nuvem de Magalhães

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La Silla, no Chile: a Via Láctea (faixa

luminosa à esquerda) e duas

galáxias vizinhas, a Grande e a

Pequena Nuvem de Magalhães

PESQUISA fAPESP 230 z 59

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60 z abril DE 2015

outras galáxias e estão sendo puxadas para a Via Láctea pela atração gravita-cional. Segundo Maciel, essa hipótese começou a ser aventada no início deste século para explicar a observação de que estrelas da Via Láctea se deslocavam a velocidades para as quais não parecia ha-ver explicação. “Hoje existe pelo menos meia dúzia de casos bem documentados nos quais se acredita que a Via Láctea canibalizou outras galáxias”, diz.

Há outra hipótese. No passado, estre-las do plano da galáxia podem ter segui-do o processo de evolução estelar e al-cançado o estágio de supernova. Quando isso acontece, segue-se uma violenta ex-plosão que dispersa gás e poeira a distân-cias imensas. Parte do material ejetado é atraída pelo empuxo gravitacional e se reaproxima da Via Láctea. Esse mecanis-mo recebe o nome de chaminé ou fonte galáctica. “Essa seria uma possibilidade mais frequente, enquanto os casos de ca-nibalismo são raros”, diz Maciel.

Ele destaca, porém, uma particulari-dade nos resultados do grupo de Camar-go. “Os casos de canibalismo já observa-dos envolvem galáxias anãs. Ele [Camar-go] encontrou aglomerados estelares, que são estruturas muito menores.” É possível, então, que a nuvem onde estão os dois aglomerados esteja associada a alguma galáxia ainda desconhecida.

Camargo concorda que as duas hi-póteses podem explicar a origem dos aglomerados e que não é possível, no momento, indicar qual é a correta. Mas ressalta que, mesmo que a poeira tenha vindo de fora, as estrelas, por serem tão jovens, só podem ter se formado na Via Láctea. “É possível que haja mais galá-xias anãs orbitando a Via Láctea do que as que conhecemos”, afirma. “Acho que nossa galáxia se formou engolindo outras menores, que estavam em sua periferia, e que esse processo ainda não acabou.”

DE olho No EScUroOutra descoberta na periferia da galáxia trouxe os resultados do primeiro ano do Dark Energy Survey (DES), projeto que reúne cerca de 120 pesquisadores de cin-co países. Eles anunciaram em março a identificação de oito novos sistemas es-telares a pelo menos 100 mil anos-luz do Sol, orbitando a Via Láctea como satélites.

Em operação desde 2013, o DES deve mapear um oitavo do céu com grande de-talhe, a fim de lançar novas luzes sobre

a energia escura. O braço brasileiro do projeto, o DES-Brazil, colaborou para a descoberta, e o astrônomo brasileiro Ba-sílio Santiago, também da UFRGS, coor-dena o grupo de trabalho internacional que lida com a Via Láctea (DES-MW).

A detecção no espectro da luz visível de objetos situados a distâncias tama-nhas foi possível graças à câmera usada no projeto. A DECam, instalada no Ob-servatório Inter-americano de Cerro To-lolo, no Chile, tem resolução equivalente a 570 milhões de pixels, quase 10 vezes maior do que a das câmeras fotográfi-cas mais potentes do mercado. Ela é ca-paz de capturar quantidades ínfimas de luz, permitindo a observação de estrelas muito distantes. “É o instrumento mais eficiente para a produção de imagens de

alta sensibilidade em funcionamento no mundo”, diz Santiago. A DECam come-çou a operar em 2013 e no ano passado divulgou para a comunidade científica o primeiro catálogo dos objetos celestes emissores de luz identificados pelo DES.

Ainda não está claro se os oito siste-mas satélites novos são aglomerados es-telares ou galáxias anãs. O mais provável é que a maioria, ou mesmo todos, inte-grem a segunda opção. Se isso acontecer, o número de galáxias anãs que orbitam a Via Láctea pode passar de 27 para 35.

Os pesquisadores apostam que o estu-do das galáxias anãs pode ajudar a conhe-cer a natureza da matéria escura, um dos mistérios da astronomia contemporânea. Além do tamanho, uma importante di-ferença entre aglomerados de estrelas e

Modelos cosmológicos atuais sugerem que a Via láctea deveria ter milhares de sistemas estelares ao seu redor

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Artigos científicosCHAkRAbARTI, S. et al. Clustered cepheid variables 90 kiloparsec from the galactic center. Astrophysical Journal. No prelo.CAMARGO, D. et al. Discovery of two embedded clus-ters with Wise in the high galactic latitude cloud HRk 81.4−77.8. Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. v. 448, p. 1930-6. 2015.The DeS Colaboration. eight new milky way companions discovered in first-year Dark energy Survey data. http://arxiv.org/abs/1503.02584.

galáxias anãs é o fato de que as últimas são ricas em matéria escura. “São galáxias de baixa densidade. Se toda a matéria que possuem se limitasse à das estrelas, já deveriam ter se desmanchado há mui-to tempo, por conta das forças de maré que a nossa galáxia exerce sobre elas. Isso mostra que há mais matéria ali, mas não na forma de estrelas”, diz Santiago.

A lista de questões em aberto é maior. Os modelos cosmológicos atuais sugerem que a Via Láctea deveria ter milhares de galáxias anãs ao seu redor, e não apenas as três dúzias já identificadas – isso se as recém-descobertas integrarem essa classificação. “Essa aparente discrepân-cia precisa ser resolvida. Há quem ache que há centenas delas por serem encon-tradas e que apenas tocamos a ponta do iceberg”, diz Santiago.

Os dados a serem coletados pelo DES nos próximos anos podem ajudar a con-firmar ou refutar essas expectativas. Se-rão centenas de terabytes de informa-ções a serem armazenadas apenas nos catálogos de fontes extraídos das ima-gens. Para analisar tal quantidade de

dados, o DES-Brazil desenvolveu um portal científico com apoio do Labora-tório Interinstitucional de e-Astronomia (LineA). O LineA tem como missão aju-dar grupos brasileiros a participarem de levantamentos como o DES e de experi-mentos mais ambiciosos, como o Large Synoptic Survey Telescope (LSST), que captará imagens de mais da metade do céu austral em maior profundidade. “É fundamental que brasileiros continuem a participar de levantamentos interna-cionais como o LSST”, afirma Santiago.

Outra pesquisa que mirou na discre-pância entre o número de galáxias anãs previsto e detectado nos arredores da Via Láctea identificou quatro estrelas do tipo variável cefeida a 180 mil anos--luz do centro da galáxia. O trabalho, do qual participou Roberto Saito, da Uni-versidade Federal de Sergipe, foi feito com dados do Vista, o maior telescópio em infravermelho do mundo, que fun-ciona no Observatório Europeu do Sul (ESO), no Chile.

O estudo, aceito para publicação no Astrophysical Journal, buscou objetos

a altitudes baixas em relação ao plano da galáxia. É uma abordagem difícil, já que a poeira e o gás do disco dificultam as observações. As cefeidas estavam a 4 mil anos-luz de altura em relação ao pla-no da galáxia. “Também nesse caso foi o infravermelho que permitiu enxergar os objetos”, diz Maciel.

Foi o estudo dessas estrelas que per-mitiu descobrir que havia outras galáxias no Universo e que ele está em expansão. Periodicamente, essas estrelas aumen-tam e diminuem de volume. Essa pulsa-ção é acompanhada por uma oscilação no brilho percebido na Terra. Estabelecida a relação entre o período da estrela e as variações no brilho, é possível saber a que distância está da Terra.

Para Saito e os demais autores, a gran-de distância sugere que as cefeidas en-contradas agora pertençam a alguma galáxia anã, de dimensões ignoradas. “É uma hipótese boa, mas não há por ali nenhuma galáxia conhecida. É preciso fazer outros estudos para que ela possa ser comprovada”, avalia Maciel.

Uma decisão estratégica para que os brasileiros continuem a estudar a peri-feria da Via Láctea é a adesão do país ao ESO, hoje ameaçada por falta de verbas. “Projetos importantes propostos por brasileiros não são contemplados com tempo de observação nos telescópios, por isso essa adesão é fundamental para o crescimento da astronomia no país”, afirma Camargo. “Está aí uma oportu-nidade para o Brasil deixar a periferia e se instalar no centro da produção de conhecimento científico de ponta.” n

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Vizinha próxima: à esquerda, a galáxia anã Reticulum II, satélite da Via Láctea identificada pelo DeS; ao lado, as estrelas que integram a Reticulum II

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62 z abril DE 2015

Medições com GPS indicam que parte

da crosta do Nordeste se desloca alguns

milímetros por ano nessa direção

Fragmentos que compõem um terço da crosta terrestre do Nordeste estão deslizando lentamente nas direções norte e oeste, a uma velo-

cidade máxima de 5,6 milímetros ao ano, de acordo com artigo científico publicado por pesquisadores brasileiros em mar-ço no Journal of South American Earth Sciences. A movimentação de setores da Província Borborema – nome dado pelos geólogos ao bloco rochoso que abrange cerca de 540 mil quilômetros quadrados e engloba grande parte dos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Sergipe – pro-voca sutis estiramentos e contrações em diferentes pontos da superfície e eleva o risco de ocorrência de tremores locais. “A província sofre pressão por todos os lados”, diz o geofísico Giuliano Sant’Anna Marotta, do Observatório Sismológico da Universidade de Brasília (UnB), principal autor do estudo. “É uma situação seme-lhante à que ocorre quando apertamos uma borracha.” Alguns pontos encolhem enquanto outros se esticam, certas partes afundam ao passo que outras se erguem.

Não há, no entanto, motivo para alar-me. O deslocamento de pedaços da pro-

GeoloGia y

Rumo ao noroeste

víncia geológica, que concentra a maior parte das atividades tectônicas do país, é um fenômeno esperado. Seu ritmo de lo-comoção é relativamente modesto, cerca de 12 vezes menor do que o verificado na famosa falha geológica de San Andreas, perto do litoral da Califórnia, a região com maior risco de grandes terremotos nos Estados Unidos, e nove vezes menor do que a verificada em setores dos Andes, outra zona de fortes tremores de terra. “Sabíamos que a Província Borborema se mexia e agora conseguimos quantificar a velocidade máxima desse tipo de ocor-rência”, diz o geólogo Francisco Hilário Bezerra, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que também assina o artigo científico.

A medida foi obtida a partir de dados fornecidos por um conjunto de estações receptoras de sinais de Sistema de Posicio-namento Global, o popular GPS, instaladas em 12 pontos distintos da província (ver mapa ao lado). Nove estações fazem par-te da Rede Brasileira de Monitoramento Contínuo dos Sistemas GNSS (RBMC), mantida pelo Instituto Brasileiro de Geo-grafia e Estatística (IBGE), e três perten-cem à Rede GPS Potiguar, iniciativa do De-

Marcos Pivetta

partamento de Geologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Com baixíssima margem de erro, da ordem de 1 milímetro, cada receptor GPS registra de forma quase ininterrupta sua localiza-ção em um plano horizontal em conjunto com um eixo vertical. Em outras palavras, mede se a crosta, sobre a qual está fixado o equipamento de GPS, moveu-se para ci-ma, para baixo ou para os lados ao longo do tempo. Um ponto do globo totalmente imóvel – que não afunda, não se soergue e não se desloca horizontalmente – apresen-ta sempre as mesmas coordenadas em um determinado intervalo temporal.

inteRioR da Placa tectônicaNo caso do trabalho com a Província Borborema, as informações sobre a lo-calização das estações foram registradas por no mínimo dois anos consecutivos. Como a série temporal analisada é pe-quena, não é possível dizer se a veloci-dade máxima de deslocamento encon-trada no estudo indica uma tendência contínua de movimentação de setores da província ou reflete um fenômeno efêmero. “O ideal é que tenhamos infor-mações de ao menos três anos seguidos”, fo

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PesQUisa faPesP 230 z 63

Província borborema

afirma João Francisco Galera Mônico, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Presidente Prudente, especialista em estudos geodésicos com GPS, outro pesquisador que participou do estudo.

Não há grandes terremotos no Brasil porque o território nacional, inclusive o Nordeste, se situa na parte interna da placa tectônica sul-americana, um dos enormes blocos de rocha que formam a superfície terrestre. Os tremores de maior magni-tude ocorrem em áreas localizadas nos arredores das bordas das placas, onde há grandes falhas geológicas, rachaduras na crosta que marcam a zona de contato entre

o fim de uma placa e o começo de outra, como ocorre nos Andes, perto do Chile e Peru (limite entre a placa sul-americana e a de Nazca), e no litoral da Califórnia (fronteira entre a placa norte-americana e a do Pacífico). Devido aos movimentos da crosta, a borda de uma placa colide com os confins do bloco de rocha contiguo.

A Província Borborema dista milhares de quilômetros da zona de contato mais próxima entre duas placas tectônicas, a cordilheira submersa denominada dorsal mesoatlântica, que estabelece o limite entre a placa sul-americana e a placa africana. Ainda assim, esse pedaço do

Nordeste sente os efeitos do distancia-mento paulatino da placa sul-america-na, que se move na direção oeste, em relação ao bloco rochoso que engloba a África. “A Província Borborema tem muitas zonas de cisalhamento”, explica Marotta. Esse tipo de estrutura geológica corresponde a antigas zonas de fraqueza, sujeitas a instabilidades. Movimentos da crosta podem provocar tremores em lugares assim. A região vizinha à zona de cisalhamento Senador Pompeu, falha que corta o interior do Ceará e chega à bacia Potiguar, foi a que apresentou as maiores variações de deslocamento na direção noroeste, segundo os dados da rede de GPS. Setores da bacia Potiguar, a meio caminho entre Natal e Fortaleza, deslocaram-se 4 mm por ano na direção oeste e 4,1 mm na direção norte dentro da placa sul-americana. A bacia apresen-ta temores de terra de média intensida-de, com magnitudes de até 5,2 graus. n

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estação de recepção GPS (à esq.) em João câmara (RN) e paisagem da região de Senador Pompeu (ce): Província borborema tem zonas de cisalhamento sujeitas a instabilidades

artigo científico

MaRotta G. S. et al. Strain rates estimated by geodetic observations in the borborema Province, brazil. Journal of south american earth sciences. v. 58, p. 1–8. mar. 2015.

Rede GPS potiguar estações da RbMc

n bacias sedimentares zonas de cisalhamento

Senador Pompeu

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2

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64 z abril DE 2015

Nascida no Brasil, a plataforma

Google Earth Engine é utilizada na

elaboração de mapas sobre vários temas a

partir de imagens de satélite

tecnologia CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO y

Colaboração do céu

Yuri Vasconcelos

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peSQUiSa FapeSp 230 z 65

em novembro de 2013, o cientista Matthew Hansen, da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, publi-cou na revista Science o primeiro mapa digital em alta resolução da cobertura

florestal de todo o planeta e as transformações sofridas por ela entre 2000 e 2012. No fim do ano passado, foi a vez de pesquisadores do Joint Center Research da União Europeia revelarem um mapeamento completo das fontes de água da Terra, feito a partir de imagens de satélite em um nível de detalhamento nunca visto. E, a partir de 2012, o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), uma organização ambiental com atuação na região Norte do país, passou a di-vulgar alertas mensais de desmatamento e degra-dação da Floresta Amazônica. As três iniciativas usam uma plataforma tecnológica desenvolvida pelo gigante norte-americano Google, chamada

Earth Engine, cujo projeto nasceu no Brasil e teve participação decisiva de pesquisadores nacionais.

“O Google Earth Engine é uma plataforma tecnológica para análise de dados ambientais em escala planetária. Ela disponibiliza imagens de satélite produzidas nos últimos 40 anos, atua-lizadas diariamente, e fornece as ferramentas necessárias e um massivo poder computacional para cientistas e outros interessados detectarem mudanças e tendências na superfície terrestre, nos oceanos e na atmosfera”, explica a cientista da computação Rebecca Moore, líder da equipe Earth Engine, na sede do Google em Mountain View, nos Estados Unidos. “A plataforma é uma ferramenta que democratiza o acesso a dados de satélite, transformando pixels em conhecimento. É justo dizer que o Earth Engine foi concebido no Brasil e guiado por cientistas brasileiros, no-tadamente os pesquisadores Carlos Souza Júnior,

Região agrícola da cidade de Bakersfield,

na Califórnia, nos Estados Unidos:

máscara vermelha mostra plantações

de algodão

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Page 66: Pesquisa FAPESP

66 z abril DE 2015

do Imazon, e Gilberto Câmara, do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais].”

Versão mais sofisticada, avançada e robusta do que o Google Earth – o popular programa computacional que permite a visualização de modelos tridimensionais do globo terrestre –, o Earth Engine também possibilita a elaboração de detalhados mapas do planeta, agregando ima-gens de satélites, mas vai além. Uma vantagem da plataforma é permitir aos pesquisadores fa-zer cálculos e processamento de dados na pró-pria nuvem de computadores do Google, o que facilita a extração de informações das imagens. Para se ter uma ideia da facilidade oferecida por esse sistema, Hansen, da Universidade de Mary-land, dispôs de 10 mil computadores do Google trabalhando em paralelo, totalizando 1 milhão de horas de processamento. Esse exército computacio-nal analisou 700 mil ima-gens do satélite Landsat, o equivalente a 20 trilhões de pixels, para produzir o mapa global das florestas do mundo com uma reso-lução de apenas 30 me-tros. “Uma tarefa que te-ria levado mais de 15 anos para ser concluída em um único computador foi fi-nalizada em poucos dias com o Google Earth Engi-ne”, ressalta Rebecca.

Hoje, mais de 3 mil cien-tistas e instituições ao re-dor do mundo empregam a plataforma em suas pesquisas. “Com o Earth Engine, pretendemos en-frentar desafios globais em áreas como segurança alimentar, disponibilidade de água, saúde pública, mudanças climáticas e gestão de recursos natu-rais escassos”, diz Rebecca. A ideia de criar uma ferramenta com esse potencial surgiu em 2008, quando a pesquisadora do Google esteve em Bra-sília para lançar o Google Earth Solidário, projeto que coloca os sistemas Earth e Maps à disposição

de organizações sem fins lucrativos para que pos-sam dar visibilidade às suas causas. “Num inter-valo de uma apresentação sobre como os índios suruís usavam tecnologias Google para proteger suas terras (ver quadro na página 68), Carlos Sou-za Júnior se aproximou e disse que, apesar de o Earth e o Maps serem fantásticos, ele sentia uma carência por novas tecnologias de mapeamento que suportassem um monitoramento ambiental em larga escala – um sistema que fosse capaz de mapear, medir e monitorar o desmatamento da Amazônia, por exemplo”, recorda-se Rebecca. O Imazon tinha habilidade técnica e científica para fazer isso, mas estava limitado pela enorme quan-tidade de imagens de satélite e recursos compu-tacionais exigidos – levava semanas para rodar a análise de desmatamento da organização em um

único computador. “Foi, então, que percebemos que este era um desafio em ‘escala Google’.”

a partir daí intensificaram-se os contatos do pesquisador brasileiro e sua equipe com

o Google e várias reuniões foram realizadas no Brasil e na Califórnia, nos Estados Unidos, onde fica a se-de da companhia. Em 2009, a em-presa norte-americana e o Imazon mostraram durante a Convenção do Clima em Copenhague, a COP-15, um protótipo do Google Earth En-gine. No mesmo ano, o pesquisador Gilberto Câmara, que na época era responsável por vários produtos do

Inpe relacionados ao monitoramento da Floresta Amazônica, foi convidado a participar da criação da plataforma. “Câmara nos orientou sobre uma série de características e configurações de dados que o Earth Engine deveria ter, como, por exem-plo, a capacidade de realizar análises temporais. E recomendou que apoiássemos os pesquisado-res a fazerem análises de mudanças na cobertura terrestre ao longo do tempo”, diz Rebecca, que estará em João Pessoa, na Paraíba, no fim deste

o google engine reduziu o tempo para gerenciamento de dados e imagens de satélite

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Análise temporal do desmatamento na Amazônia: ocupação humana entre 1984 e 2012 ao longo da rodovia BR-364 em Rondônia

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peSQUiSa FapeSp 230 z 67

mês de abril para participar do XVII Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto. Ela irá falar sobre as tecnologias de mapeamento Google na sessão especial “Big Data em observação da Ter-ra: infraestruturas e análises espaço-temporais”.

o primeiro projeto operacional a usar o Goo-gle Earth Engine foi um sistema de moni-toramento florestal criado pelo Imazon.

Em 2012, quatro anos após o contato inicial com o Google, a organização lançou no Rio de Janeiro, durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, seu novo Sistema de Alerta de Desmatamento alimentado pelo Earth Engine (SAD-EE). “O Google tornou as coisas mais simples. A integração de nosso Sistema de Alerta de Desmatamento, lançado em 2008, com o Google Earth Engine reduziu dras-ticamente o tempo despendido por nossa equipe para fazer o gerenciamento de dados e imagens de satélite. O SAD-EE representou uma revolução na forma de monitorarmos nossas florestas. Com ele, conseguimos produzir alertas de desmatamento por meio de boletins de forma rápida, permitindo um combate mais eficaz contra o desmatamento ilegal”, diz Souza Júnior, que é geólogo e pesqui-sador do Imazon, que tem sede em Belém (PA).

A primeira grande vantagem oferecida pelo SAD-EE, segundo o pesquisador, é que os dados e as ferramentas de processamento de imagens de satélites, edição de mapas digitais e validação do mapeamento estão disponibilizados e rodam

nos computadores do Google. Com isso, o tempo necessário para pré-processamento, análise, di-vulgação dos dados e geração dos alertas reduz--se consideravelmente. A segunda vantagem é a possibilidade de integração com sistemas de comunicação móvel, com smartphones e tablets, e com a rede de computadores da internet. “Isso facilita o acesso aos alertas de desmatamento e de degradação florestal por parte dos usuários”, res-salta Souza Júnior. Ele destaca, ainda, o enorme potencial colaborativo do SAD-EE, que permite a qualquer pessoa fornecer dados e informações coletados em campo e em tempo real.

Além do Imazon, pelo menos uma dúzia de pesquisadores e instituições brasileiras usam o Earth Engine. Uma delas é o Instituto Centro da Vida (ICV), organização não governamental am-bientalista sediada em Cuiabá (MT), cujo foco são projetos que conciliem a produção agropecuária e florestal com a conservação e a recuperação do ambiente. “Um diferencial dessas tecnologias é agilidade no acesso e no processamento de dados de sensoriamento remoto”, conta o engenheiro florestal Ricardo Abad, coordenador do Núcleo de Geotecnologias do ICV. O instituto possui di-versas atividades em campo, como experimentos de restauro de áreas de preservação permanentes (APPs) e nascentes, além de trabalhos com inten-sificação de pecuária. Dados desses experimentos são adquiridos, armazenados e compartilhados por meio de ferramentas que têm como base as tecnologias Google Geo.

Primeiro mapa digital das florestas existentes no planeta feito com imagens de satélite

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68 z abril DE 2015

“Depois de coletarmos em campo imagens de alta resolução – seja com balões, pipas ou vants [veículos aéreos não tripulados] –, nós as arqui-vamos no Maps Engine, uma plataforma voltada ao armazenamento e compartilhamento de dados geoespaciais. Paralelamente, usamos smartphones com sistema Android que acessam formulários eletrônicos para realizar a coleta de informações em campo usando o Open Data Kit. Esses dados, por sua vez, são armazenados na nuvem Google, permitindo que sejam acessados de qualquer lugar do planeta onde exista internet”, diz Abad. Open Data Kit, ou simplesmente ODK, é um aplicativo que permite a coleta de dados e o envio deles a um servidor on-line com dispositivos móveis Android.

Técnicos e pesquisadores do ICV também em-pregam as ferramentas Google para verificação de imagens dos alertas de desmatamento emiti-dos pelo Imazon e Inpe. “A facilidade de acessar

imagens muito recentes possibilita grande agili-dade na geração de relatórios que podem subsi-diar ações de fiscalização. Usamos a plataforma Google Earth Engine para gerar classificações multitemporais de uso e cobertura do solo e, as-sim, constatar o avanço de culturas, pastagens e reservatórios de usinas hidrelétricas, entre ou-tros, que acabam provocando desmatamento”, diz Abad. “Recentemente, utilizamos essas imagens para verificar o enchimento de um reservatório de uma recém-construída hidrelétrica no rio Teles Pires, que faz a divisa dos estados do Pa-rá e Mato Grosso, constatando o alagamento de extensas áreas de florestas.”

O Earth Engine está também sendo empregado pelo pesquisador Lucas Schmidt Cavalcante, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Compu-tação da Universidade de São Paulo (ICMC-USP), para identificar e monitorar culturas agrícolas por

Cacique Almir suruí conheceu o Google Earth e percebeu o potencial para preservar as terras de seu povo (acima)

Suruís vigiam o próprio território

Os suruís, que só tiveram o primeiro contato com o homem branco em 1969, também aprenderam a usar smartphones para vigiar seu território e registrar casos de extração ilegal de madeira. Dessa forma, atuam na proteção da reserva florestal onde vivem. Com o celular, eles capturam fotos e vídeos com marca de localização por GPS, fazem o imediato upload no Google Earth e alertam as autoridades para o desmatamento. Eles também utilizam o Open Data Kit para monitorar o estoque de carbono de sua floresta e negociar no mercado de crédito de carbono. “Os suruís foram o primeiro povo indígena do mundo a vender créditos de carbono com certificação internacional”, afirma Rebecca.

Em janeiro deste ano, a equipe do Google Earth Solidário participou de um encontro com mais de uma dezena de líderes indígenas em Cacoal (RO), interessados em replicar em seus territórios a bem-sucedida experiência dos suruís no manejo das tecnologias de mapeamento Google. O treinamento de índios dessas tribos dos estados de Rondônia, Pará e Amazonas deve ocorrer ainda este ano, segundo o Google.

Além de ser relevante para cientistas em universidades e instituições de pesquisa do Brasil, as tecnologias Google Geo também são um instrumento vital para os suruís, grupo indígena que vive nos estados de Rondônia e Mato Grosso. A aproximação entre os indígenas brasileiros e a gigante da computação teve início em 2007, quando, ao visitar uma lan house, o cacique Almir Suruí conheceu o Google Earth e viu seu potencial para preservar o patrimônio e as tradições de seu povo.

Em seguida, Almir, agraciado como “Herói da Floresta” pelas Nações Unidas em 2013, convidou a equipe do Google Earth Solidário, comandada por Rebecca Moore, para visitar sua tribo e ensiná-los a usar as ferramentas de mapeamento Google para proteger a floresta e a cultura de seu povo. Os membros da tribo aprenderam a criar e postar vídeos no YouTube, marcar a localização de conteúdos e inseri-los no Google Earth, compartilhando sua história e modo de vida. Em 2012, com apoio do Google, os indígenas lançaram o Mapa Cultural Suruí durante o Fórum de Sustentabilidade Empresarial da Rio+20, a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável realizada no Rio de Janeiro.

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peSQUiSa FapeSp 230 z 69

meio de imagens de satélite. O objetivo final desse monitoramento é melhorar as estimativas de pro-dução. “Não sou da área de sensoriamento remoto e meu contato com esse campo se deu no ano pas-sado, durante um estágio de quatro meses que fiz no Google na Califórnia”, explica Cavalcante, que é formado em Ciências da Computação. “Naquela ocasião, percebi que o Earth Engine poderia ter uma aplicação interessante para os métodos de classificação que estava desenvolvendo em meu mestrado, com bolsa da FAPESP. A finalidade é estudar tecnologias capazes de detectar diferentes culturas agrícolas. Também planejo avaliar as áreas de plantação de cana-de-açúcar em São Paulo.”

Durante o período em que estagiou no Goo-gle, entre maio e agosto de 2014, Cavalcante trabalhou com o time responsável pelo de-

senvolvimento do Earth Engine. “Meu objetivo foi expandir a API do Earth Engine para possibilitar a análise de séries temporais nos dados de satélite. Fui responsável por implementar um algoritmo que faz a detecção de distúrbios e identificação de tendências em áreas de vegetação. Por exemplo, ele é capaz de detectar áreas de desmatamento e determinar quanto tempo durou esse processo.” API, sigla em inglês para interface de programação

de aplicativos, é um conjunto de rotinas e padrões de programação para acesso a um aplicativo de software ou plataforma baseado na web.

“A cultura da cana tem grande importância para o Brasil e o estado de São Paulo responde por cerca de 60% da produção nacional. Logo, ser capaz de estimar e acompanhar a produção canavieira é de fundamental importância”, diz ele, ressaltando que a iniciativa de buscar ferra-mentas de sensoriamento remoto para melhorar o monitoramento da produção agrícola no mundo foi uma das ações propostas durante reunião dos ministros de Agricultura dos países que integram o G20 – grupo de nações mais desenvolvidas do planeta – realizada em Paris em junho de 2011.

Na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Presidente Prudente, a engenheira cartógrafa Ar-lete Meneguette, professora do Departamento de Cartografia, tem amplo conhecimento das soluções Google Geo. Além de ensinar o uso dessas ferra-

mentas aos seus alunos, ela atua na capacitação de car-tógrafos, educadores e ou-tros profissionais que uti-lizam esses sistemas. Com doutorado em fotograme-tria pela Universidade de Londres, na Inglaterra, Ar-lete é voluntária do Goo-gle Maps, líder do Grupo de Educadores Google em Presidente Prudente e revi-

sora regional do Google Map Maker, que permite aos internautas adicionar elementos inéditos no Google Maps e no Google Earth.

“Há democratização de acesso porque os usuá-rios se tornam produtores e consumidores de informação georreferenciada”, destaca Arlete. “Quando contextualizada e significativa, a geoin-formação pode se transformar em conhecimento espacial. É nesse ponto que o Google se destaca, porque organiza as informações do mundo e as torna mundialmente acessíveis e úteis.”

Em suas pesquisas sobre geocolaboração – estratégia que permite que profissionais da área e voluntários gerem dados georreferenciados utilizando mapas cognitivos, navegadores GPS, sensores móveis e ferramentas de mapeamen-to na web –, a professora da Unesp tem valida-do plataformas de mapeamento colaborativo e participativo do Google. “Fiz uma escolha deli-berada por elas, porque são as mais difundidas e utilizadas, e eu percebia uma necessidade de fundamentação teórico-metodológica em seus adeptos”, diz. “A cartografia colaborativa ganha cada vez mais importância por dar oportunida-de aos usuários de contribuir com seu conheci-mento local para aprimorar os mapas usados por milhões de pessoas.” nFo

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profissionais da área e voluntários podem gerar e adicionar dados na plataforma google earth

40 anos

1 milhão

cientistas e instituições

empregam o google earth engine ao redor do mundo de imagens de

satélite são disponibilizados pela plataforma

de horas de processamento e 10 mil

computadores trabalhando em paralelo

imagens do satélite landsat foram usadas no

mapeamento da cobertura florestal do planeta

3 mil

700 mil

números do google engine

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70 z abril DE 2015

Presença de cafeína em água tratada é indício

da presença de outras substâncias nocivas

a escassez e o risco de raciona-mento não são os únicos pro-blemas que parte dos brasilei-ros enfrenta em relação à água.

O crescimento das cidades e o consequen-te adensamento populacional, aliados ao saneamento precário e a novos hábitos de consumo, têm contribuído para lançar nos mananciais (rios, lagos e depósitos subterrâneos) centenas de substâncias conhecidas como contaminantes emer-gentes (CE) resultantes das atividades hu-manas. Uma pesquisa recente, realizada na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), contribuiu para verificar a dimensão do problema ao estudar a pre-sença de cafeína na água. Essa substância serve de indicador da existência de outras em sistemas de abastecimento público.

O pesquisador Wilson de Figueiredo Jardim, vice-coordenador do Institu-to Nacional de Ciências e Tecnologias Analíticas Avançadas (Inctaa) e profes-sor associado do Instituto de Química da Unicamp, é um dos autores do livro Cafeína em águas de abastecimento pú-blico no Brasil, lançado no ano passado. Ele explica que o termo “contaminante emergente” é abrangente e pode reu-nir mais de mil compostos. Além de não

Química y

Contaminação emergente

estarem previstas na legislação, essas substâncias apresentam em comum o fato de serem detectadas em vários ti-pos de ambientes o que aumenta a expo-sição humana a elas. “Estamos falando de fármacos prescritos ou não, drogas ilícitas, nanomateriais, produtos de hi-giene pessoal, repelentes de inseto, pro-tetores solares, produtos de cloração e ozonização de águas, microrganismos, hormônios naturais e sintéticos, entre outros”, enumera. “Uma série de novas e de velhas substâncias que fazem parte da nossa rotina diária.”

Diante disso, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) declarou que este é um problema real e que merece a atenção dos governos para identificar fontes, rotas e recepto-res dos CE na natureza. De acordo com Jardim, já há numerosas evidências de animais silvestres, especialmente peixes, répteis e anfíbios, que vivem em locais com grande aporte de esgoto doméstico e possuem problemas de feminização, infertilidade e indefinição sexual. Isso ocorre porque, além dos hormônios na-turais excretados no esgoto sanitário, há uma quantidade considerável de simi-lares sintéticos provenientes principal-

Evanildo da Silveira

mente da pílula anticoncepcional e da terapia de reposição hormonal. “Além disso, inúmeras moléculas como o bisfe-nol A e vários pesticidas clorados, dentre outros, podem confundir nosso sistema endócrino”, diz o pesquisador.

altaS CargaSO problema se agrava porque, segundo Jardim, é inviável legislar sobre centenas de compostos, um dos grandes desafios em termos de políticas públicas. Por is-so, a comunidade científica trabalha na identificação de possíveis substâncias indicadoras, ou seja, um composto que possa apontar o risco da exposição a al-gumas classes de produtos. É aí que entra a cafeína, um excelente indicador por estar associado a compostos com ativi-dade estrogênica que podem alterar o metabolismo hormonal do ser humano.

Segundo Jardim, a cafeína encontra-da nos mananciais é quase toda oriunda do esgoto doméstico, porque é a bebida mais consumida no mundo depois da água. “Altas concentrações num manan-cial indicam que ele recebe altas cargas de esgoto sanitário”, explica. “Nas águas de abastecimento, uma desinfecção efe-tiva remove os indícios da contaminação

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pESQUISa FapESp 230 z 71

Grande, Manaus, Belém, São Luís, Te-resina e Salvador somente na segunda. As demais capitais foram estudadas nos dois períodos de amostragem, sendo que em São Paulo e no Rio de Janeiro hou-ve alteração de pontos de coleta entre a primeira e a segunda campanha.

SItUação gravESegundo Jardim, os resultados mostra-ram o que de certa forma já era esperado. “Mas nós não tínhamos noção de quão grave era a falta de saneamento e suas consequências tanto na qualidade dos mananciais como na água distribuída à população”, diz. “Primeiro, constatou-se que os mananciais de superfície (rios e la-gos) apresentam concentrações de cafeína da ordem de mil a 10 mil vezes maiores do que aquelas encontradas na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá e no Japão. Até mesmo as águas subterrâneas apre-sentavam concentrações mensuráveis de cafeína.” No cenário nacional, verificou-se que as condições não eram muito diferen-tes daquelas medidas no estado de São Paulo. Um dado curioso é que as capitais costeiras mostraram níveis menores de cafeína da água de abastecimento quando comparadas com as capitais interioranas. Isso se explica, segundo Jardim, pelo fa-to de que os emissários submarinos ou o simples descarte na orla de algum modo preservam os mananciais.

Entre as capitais estudadas, Porto Ale-gre foi a que apresentou a maior concen-tração de cafeína na água tratada para consumo humano, com um valor médio de 1.211 nanogramas por litro (ng/l), se-guida de Campo Grande, com 900 ng/l. Além do consumo de mate em Porto Ale-gre, rico em cafeína, os mananciais das duas cidades estão muito impactados por esgoto. Entre as capitais com os menores índices médios estão Porto Velho (3,0 ng/l), Fortaleza (4,0 ng/l), Recife (5,0 ng/l) e São Luís (8,0 ng/l). Outras cinco cidades estudadas registraram concen-tração média entre 100 e 200 ng/l: Vitória (101 ng/l), Cuiabá (114 ng/l), Belo Hori-zonte (119 ng/l), São Paulo (121 ng/l) e Teresina (188 ng/l). n

Projetoinstituto Nacional de ciências e Tecnologias analíticas avançadas – inctaa (nº 2008/57808-1); Modalidade Projeto Temático – iNcT; Pesquisador responsável cé-lio Pasquini (unicamp); Investimento R$ 375.421,77 e uS$ 531.453,87 (FaPESP).In

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Caminhos da cafeínao transporte é feito por várias vias até o consumo humano

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ESgoto SanItárIo

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fecal, mas a cafeína é um composto re-siliente e, por isso, é uma impressão di-gital química. Podemos dizer que onde existe cafeína, embora nas concentrações encontradas ela não seja tóxica, há uma grande variedade de outros compostos que não são monitorados, mas que podem trazer algum impacto à saúde humana.”

No trabalho que coordenou, Jardim coletou 100 amostras de água tratada em 61 pontos espalhados por 22 capi-tais (cinco em Brasília; quatro em São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza e Reci-fe; três em Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, Vitória, Cuiabá, Manaus, Be-lém e Salvador; dois em Goiânia, Campo Grande, Porto Velho, Natal, São Luís, João Pessoa e Teresina; e um em Flo-rianópolis e Palmas). Foram feitas cole-tas durante duas campanhas realizadas entre julho e setembro de 2011 e 2012. Porto Velho e Palmas tiveram amostras apenas na primeira, enquanto Campo

* concentração média de cafeína por capital dos seguintes estados:

1 10 100 1.000

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* nanogramas por litro (ng/l)

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72 z abril DE 2015

fotografia y

Carta do século XiX sobre Mesa Cartesiana. abaixo, transcrição em caracteres para estudo do português da época

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pESQUISA FApESp 230 z 73

a dificuldade em manusear do-cumentos históricos raros e manuscritos para análise dos textos levou um grupo de pes-

quisadores da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) a desenvolver um método de fotografia que facilita a transcrição e compreensão de fenôme-nos linguísticos de uma época. “Exis-tem documentos e livros antigos para os quais o método tradicional de obtenção da imagem por escaneamento pode pre-judicar ou até destruir o original porque é preciso, muitas vezes, dobrá-los ou desencaderná-los para uso no escâner”, diz o professor Jorge Viana Santos, do Laboratório de Pesquisa em Linguística de Corpus (Lapelinc) da Uesb. O objeto de estudo dos pesquisadores são livros e documentos cartoriais manuscritos do século XIX que já tiveram grande manuseio e cujo estado é bem frágil. “Diferentemente da fotografia, no esca-neamento o documento é que se adapta ao aparelho e não o contrário”, diz. Para a digitalização de documentos impressos, já existem softwares bem difundidos que levam o nome de reconhecimento óptico de caractere (OCR na sigla em inglês) e podem ler o documento a partir de es-câneres e transformá-lo em digital. Em documentos manuscritos não existe essa possibilidade.

O método criado pelo professor San-tos em colaboração com a professora Cristiane Namiuti Tempon, também da Uesb, começa com a captura da imagem em uma câmera fotográfica. Para isso, o documento é assentado em uma espécie

Marcos de Oliveira

artigoSantos, J. V. e Brito, g. S. fotografia técnica de docu-mentos para formação de corpora digitais eletrônicos: o método desenvolvido no Lapelinc. Letras & Letras. v. 30, n. 2, p. 421-30. jul./dez. 2014.FO

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Registro da escritanovo método facilita a transformação de documentos

manuscritos históricos em arquivos digitais

de placa plana de plástico de cor cinza e quadriculada milimetricamente, ca-racterística que serve para informar no computador a exata medida do papel. Denominada pelo grupo de Mesa Car-tesiana, sobre ela também são colocadas escalas de tom de cores, informações catalográficas, paginação e sequência. A página do documento pode tanto ser apresentada no computador com todas essas informações como também de for-ma recortada, apenas a parte manuscrita.

DEtALhES nA tELAA transposição do documento do mun-do físico, intermediado pela fotografia, para a formatação digital, é feita por um software desenvolvido também no Lape-linc. Ele permite interpretar esses dados e recuperar numa tela de computador os tons e cores originais de um documen-to. Assim, o método faz a transposição de documentos manuscritos históricos para a formação de conjuntos de textos eletrônicos com aspecto próprio para pesquisa científica.

As vantagens do Método Lapelinc se expandem também na facilidade de au-mentar o texto original na tela do com-putador para verificar detalhes ou tirar dúvidas em relação à escrita. Com o do-cumento digital é possível fazer várias consultas sem deteriorar o material his-tórico. Segundo Santos, o novo método contribui para a análise dos paleógrafos, especialistas que leem o texto para estu-dos de linguagem e fazem a transcrição e adaptação ao português atual se for o caso. A linguística de corpus (texto para

análise) necessita do original em carac-teres para a compilação de corpora (con-junto de corpus) para análise linguísti-ca automática. “Nosso método permite montar o corpus eletrônico que forma um banco de dados no qual é possível identificar cada palavra e etiquetá-la, facilitando o trabalho do linguista na busca pelo seu objeto de estudo; pode-se, assim, etiquetar substantivos e verbos, por exemplo”, diz Santos. “O historia-dor pode ler na linguagem de hoje, mas o linguista quer saber como o texto foi concebido naquela época para determi-nar o padrão e a evolução da linguagem.”

O trabalho de estrutura do Método Lapelinc começou em 2008 e ainda não terminou, faltando a finalização do soft-ware para fazer a transcrição e a edição do texto. Todo o sistema criado na Uesb também pode ser útil em outras insti-tuições acadêmicas e até em empresas. “Fazemos pesquisa e um apoio externo ou comercial não muda nosso trabalho, mas o protótipo pode levar a um produto, porque o método é passível de uma pa-tente. No momento estamos finalizando seu desenvolvimento”, explica Santos. O trabalho teve financiamento da Fun-dação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb), do Conselho Nacio-nal de Pesquisa Científica e Tecnológi-ca (CNPq) e da própria universidade. n

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74 z abril DE 2015

Nova edição do primeiro

livro de Sérgio Buarque

de Holanda como

historiador de ofício

evidencia seu gosto

por refazer suas obras

Um dos mais respeitados intelectuais brasileiros do século passado, Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) raramente ficava totalmente satis-feito com o que escrevia. Crítico literário que virou ou se assumiu como historiador de ofício

entre o fim dos anos 1940 e o início da década de 1950, gos-tava de reescrever suas obras e não raro dava novas formas e fins a textos antigos ou em preparação. Entre 1957 e 1958, viu-se, por exemplo, forçado a dedicar seis árduos meses à tarefa de produzir rapidamente uma tese para assumir a cá-tedra de História da Civilização Brasileira na Universidade de São Paulo (USP). Para cumprir com essa obrigação acadê-mica, expandiu a introdução de um livro em gestação sobre o barroco brasileiro dos séculos XVII e XVIII – parte desses escritos viraria a obra póstuma Capítulos de literatura colo-nial, lançada apenas em 1991 – e a transformou em Visão do paraíso. Defendida em 1958, a tese virou livro no ano seguin-te e se tornou uma de suas obras mais importantes, ao lado de Raízes do Brasil (1936), Caminhos e fronteiras (1957) e Do Império à República (1972).

Em 2015, faz 70 anos que Sérgio Buarque lançou seu pri-meiro livro na pele de historiador, Monções, que trata das ex-pedições fluviais saídas de São Paulo rumo ao Oeste durante o período colonial. O intelectual tentou, durante boa parte da vida, reescrever o livro, sem, no entanto, ter logrado por com-

Monções (quase) reescrito

humanidades HiStória y

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Page 75: Pesquisa FAPESP

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Sérgio Buarque sonhou por décadas em reescrever Monções, livro sobre a expansão paulista rumo ao oeste durante o período colonial

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76 z abril DE 2015

pleto esse objetivo. No início deste ano chegou às livrarias uma nova edição de Monções (Compa-nhia das Letras, 624 páginas), que, mais do que comemorar a efeméride, permite ao leitor espiar o refazer constante que o historiador imprimiu à sua obra. Organizada ao longo dos últimos dois anos pela historiadora Laura de Mello e Souza e seu ex-aluno André Sekkel Cerqueira, a nova versão reúne em dois volumes, de forma inédita, o que de mais significativo o pensador escreveu sobre a expansão paulista. Um tomo traz o texto original da obra, tal qual impresso em 1945. O ou-tro, denominado Capítulos de expansão paulista, coteja três capítulos de Monções reescritos por Sérgio Buarque, provavelmente nos anos 1960 e 1970, e os textos, por vezes inacabados, que com-puseram o livro O extremo Oeste, assim batizado em 1986 pelo historiador José Sebastião Witter (falecido em julho do ano passado), discípulo e amigo do intelectual. “Por décadas, Sérgio Buar-que sonhou em reescrever Monções, obra que foi sua companheira durante toda a vida”, diz Laura, que se aposentou da Universidade de São Paulo (USP) no ano passado e atualmente é titular da cadeira de História do Brasil na Universidade Paris-Sorbonne. “Provavelmente por ser perfec-cionista e rigoroso consigo mesmo, nunca pôs fim a essa tarefa.” Uma hipótese, mais remota, é o historiador ter se cansado do tema e desistido da empreitada no fim da vida.

Dos seis capítulos originais que compõem Monções, Sérgio Buarque chegou a reescrever o primeiro (“Os caminhos do sertão”), o segundo (“O transporte fluvial”) e o quinto (“As estradas móveis”). Além de mudanças de estilo, os três capítulos foram alongados, com mais dados e documentação colhidos pelo historiador. Ganha-ram, respectivamente, 40, 17 e 37 páginas a mais. Apenas a nova redação do capítulo inicial do li-vro, “Os caminhos do sertão”, que fora publicada como um artigo na Revista de História em 1964,

se mostra totalmente acabada, tendo inclusive notas bibliográficas completas. Em março do ano passado, perto do término da pesquisa, Cerqueira encontrou os originais de dois capítulos reescri-tos de Monções em meio aos documentos da Co-leção Sérgio Buarque de Holanda, na Biblioteca Central Cesar Lattes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Monções talvez seja o caso mais emblemático dessa busca incessante de Sérgio Buarque por atualizar e aprimorar seus livros à luz de novos documentos ou interpretações da história. Para-doxalmente, apesar de todos os esforços do histo-riador, a obra foi reescrita apenas parcialmente. “Nos anos 1970, depois de ter levantado muito material sobre a expansão paulista ao Oeste e de ter retrabalhado algumas partes de Monções, Sérgio optou por fazer outra obra sobre o tema em vez de reescrever esse livro”, afirma André Cerqueira. O esboço dessa outra obra foram os textos incompletos e inconclusivos que, reuni-dos, deram corpo ao já citado O extremo Oeste.

folhas de bloquinho escritasFilha de Antonio Candido e de Gilda de Mello e Souza, amigos da família de Holanda em São Paulo, Laura teve a oportunidade de frequentar a casa de Sérgio Buarque em razão dessa relação de proximidade. Ela se lembra de tê-lo visitado sozinha certa vez e, enquanto conversavam, o historiador, sentado em sua poltrona na sala de casa, tirou do bolso folhas de bloquinho escritas e reescritas à mão. “Mostrou-me as folhas e ex-plicou que era daquela maneira que escrevia”, recorda-se Laura. “Aproveitei a ocasião e per-guntei o que estava escrevendo. Ele respondeu que estava reescrevendo Monções.” Redigir não era um processo fácil para Sérgio Buarque, que podia demorar até uma semana para encontrar a forma final de um parágrafo, como conta Laura no prefácio da nova edição de Monções.

livro sobre os anos formativos de Sérgio Buarque (à esq.) e nova edição de Monções: produção revisitada do intelectual

1

Page 77: Pesquisa FAPESP

Pesquisa faPesP 230 z 77

A ideia de reescrever essa obra perseguiu Sér-gio Buarque por cerca de 40 anos, segundo Laura e Cerqueira. Em 1965, o já consagrado historiador e professor da USP, aos 62 anos, programou-se para levar adiante essa bandeira pessoal e forma-lizou uma iniciativa com esse intuito: enviou uma carta com duas páginas datilografadas à FAPESP, que três anos antes havia iniciado suas ativida-des e funcionava no 14º andar de um prédio na avenida Paulista. Laura e Cerqueira reproduzem a íntegra do pedido na nova edição de Monções, cuja divulgação foi autorizada após a FAPESP ter obtido o consentimento dos filhos de Sérgio Buarque. Datada de 29 de janeiro daquele ano, a missiva fazia a defesa de um projeto para co-letar mais dados e documentos sobre a navega-ção fluvial entre São Paulo e Cuiabá no período colonial, empreitada com duração prevista de 18 meses nos cálculos do historiador.

A proposta se destinava basicamente a custear os gastos com passagens, alimentação e estadia que o pesquisador teria em viagens ao Rio de Ja-

neiro – sede de importantes arquivos públicos, como os da Biblioteca Nacional e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – e a Cuiabá, onde faria “pesquisa acurada no acervo manus-crito da Biblioteca e Acervo Público do Estado do Mato Grosso”. Com essa nova pesquisa de campo, Sérgio Buarque acreditava que estaria em condições de produzir uma renovada segun-da edição de Monções. Havia urgência em editar uma versão atualizada do livro. No pedido de au-xílio, o historiador afirma que a primeira edição estava esgotada havia muito tempo. Ele mesmo dispunha apenas de um único exemplar do livro.

Na argumentação em prol do financiamento ao projeto, escrita com a ortografia em vigor na época, o historiador diz “que a projetada pes-quisa, tendente a esclarescer em alguns dos seus aspectos mais significativos a formação da uni-dade nacional atravez da ligação das bacias do Prata e do Amazonas, ajudaria ao mesmo tem-po a melhor conhecer-se a formação do Brasil, esclarecendo o presente atravez do passado”. fo

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trechos do pedido de auxílio à pesquisa de 1965 enviado à FapeSp pelo historiador: proposta obteve o equivalente a r$ 8.400

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O cronograma de trabalho apresentado por Sérgio Buarque é otimista. Diz que, “salvo imprevisto”, o trabalho de campo deveria ser feito ainda em 1965 e a redação da nova edição do livro estaria pronta em meados de 1966. A segunda versão de Monções sairia pela Livraria José Olímpio, na Coleção Documentos Brasileiros, segundo o historiador. Diante de tal arrazoado, o projeto de número 65/0223-4 foi aprovado em junho de 1965 e recebeu da FAPESP uma verba de 550 mil cruzeiros, cerca de R$ 8.400 em valores atuais, de acordo com conversão feita por meio do site do Banco Central do Brasil.

Mas houve imprevistos. Por razões até hoje não totalmente compreendidas, Sérgio Buarque nunca chegou a terminar a nova versão da antiga obra. Ele produziu, sim, escritos sobre a temática da ex-pansão paulista a partir de material coletado não só nas viagens à antiga capital federal e ao Mato Grosso como também em visitas ao Paraguai e a Portugal. Apesar de não ter sido reescrito como o historiador inicialmente queria, Monções ganhou novas versões. Uma segunda edição, praticamente com o mesmo texto de 1945, foi lançada em 1976. Uma terceira, composta novamente da versão original, acrescida de um apêndice com os três capítulos reescritos, chegou ao mercado em 1990. A atual edição representa a quarta versão da obra. “Quando morreu, acho que ele estava reescrevendo algo”, afirma Sérgio Buarque de Hollanda Filho, o Sergito, professor aposentado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, um dos sete filhos do historiador. “Mas ele não falava muito de trabalho com os filhos.”

anos formativos como crítico literárioHistoriador da nova geração que há 15 anos estu-da a obra de Sérgio Buarque, Thiago Lima Nicode-mo – que se formou e fez pós-graduação na USP e, desde o ano passado, é professor da Universidade

Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) – reforça a ideia de que o mestre esteve sempre a espichar, cortar e emendar seus textos. “Ele queria dar coerência ao seu projeto intelectual”, diz Nicodemo, de 35 anos. “E era perfeccionista mesmo.” Segundo o pesquisador, Sérgio Buarque procurava reforçar o caráter histórico de suas obras mais antigas, nas quais o tom dominante tinha sido dado pe-lo olhar de crítico literário e ensaísta, por meio da inclusão de notas e documentos retirados de novas leituras e arquivos. “Depois de publicar Monções, Sérgio Buarque refez Raízes do Brasil sob essa perspectiva”, afirma ele. “Nas versões posteriores do livro, ele procurou enfraquecer o caráter ensaístico de Raízes, dando coesão ao seu novo viés de historiador profissional.”

Em 2008, Nicodemo publicou um livro sobre o percurso intelectual de Sérgio Buarque duran-te a década de 1950 a partir da feitura de Visão do paraíso. Neste mês, lança outro título sobre o intelectual, Alegoria moderna – Crítica literária e história da literatura na obra de Sérgio Buarque de Holanda (Editora Fap-Unifesp, 384 páginas). O foco agora são os anos formativos – melhor seria dizer décadas – que pavimentaram os caminhos do crítico de livros e o empurraram, progressi-vamente, para as fronteiras da história. Alegoria moderna é fruto da pesquisa de doutorado que Nicodemo concluiu na USP, com bolsa da FAPESP, no início desta década. “Analisei a relação entre a produção de crítica literária e de história de Sérgio Buarque de Holanda tendo como núcleo documental seus escritos em periódicos, como o Diário de Notícias e Diário Carioca, e suas obras publicadas entre 1940 e 1961”, diz Nicodemo, também pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.

Antes de abraçar definitivamente o trabalho de pesquisa em arquivos e a busca por fontes e documentos que embasassem sua pesquisa his-

impresso da universidade de roma com chamada para conferência de Sérgio Buarque: historiador viveu de 1952 a 1954 na itália

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tórica sobre o Brasil, Sérgio Buarque atuou como jornalista, ensaísta e crítico de literatura. Desde os anos 1920, quando militou no modernismo paulista e se tornou amigo de Mário de Andra-de, interessou-se por escrever, atividade a que se dedicaria profissionalmente duas décadas mais tarde. “Nos anos 1940, ele fez crítica literária pa-ra sobreviver e o auge de sua produção foi entre 1948 e 1952”, comenta Nicodemo. Ao assumir a cátedra de História da Civilização Brasileira na USP em 1958, a atividade de crítico literário, que já vinha perdendo força nos últimos anos, cessa de vez, de acordo com Nicodemo.

Durante a realização da pesquisa, Nicodemo passou uma temporada na Itália, onde Sérgio Buarque residiu entre 1952 e 1954 e lecionou na Universidade de Roma. No país europeu, o críti-co de livros que se transmutava em historiador conheceu arquivos e fontes bibliográficas que lhe foram úteis para analisar os textos literários pro-duzidos na colônia lusitana. “Muitos dos modelos poéticos dos escritores na cultura luso-brasileira dos séculos XVII e XVIII eram originados da cultura italiana, como é o caso, por exemplo, do movimento árcade”, afirma o pesquisador da Uerj.

Novas edições dos livros de Sérgio Buarque e mais obras sobre o crítico literário e historiador

estão previstas para sair em breve. Pedro Meira Monteiro, professor titular na Universidade de Princeton, Estados Unidos, onde ministra cursos na área de estudos latino-americanos, com ênfa-se em literatura brasileira, prepara uma biogra-fia sobre o intelectual. Monteiro, que editou um livro com a correspondência de Sérgio Buarque e Mário de Andrade em 2012, também trabalha, ao lado da antropóloga Lilia Schwarcz, da USP, na confecção de uma edição crítica e anotada de Raízes do Brasil. A obra mais conhecida de Sérgio Buarque completará 80 anos em 2016. Se Monções mereceu uma edição caprichada ao chegar aos 70 anos, as oito décadas do clássico mais clássico de um dos mais importantes pensadores brasileiros são um bom pretexto para conhecer ou passar em revista sua vida e obra. n

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caderno de pesquisa de Sérgio Buarque do período italiano: fase importante para conhecer arquivos e fontes bibliográficas

projetos1. o senso do passado: história e crítica literária na obra de Sérgio Buarque de Holanda (1940-1961) (2006/50659-5); Modalidade Bolsa no país – doutorado; Pesquisador responsável raquel Glezer (FFlcH-uSp); Bolsista thiago lima Nicodemo (FFlcH-uSp); Inves-timento r$ 133.153,80 (FapeSp).2. a navegação fluvial entre São paulo e cuiabá nos séculos XiX e XX (65/0223-4); Modalidade auxílio à pesquisa – regular; Pesquisador responsável Sérgio Buarque de Holanda (uSp); Investimento 550 mil cruzeiros, cerca de r$ 8.400 em valores atuais (FapeSp).

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Novo trabalho de José de Souza Martins revela

que mais de 1 milhão de brasileiros já participou

de um ato ou uma tentativa de linchamento

Dias de fúria

Era 2 de janeiro de 1998: um pe-dreiro de 58 anos teve os braços amarrados com arame farpado e foi linchado por uma multidão

em Caboto, Região Metropolitana de Salvador, depois de discutir e ferir dois vizinhos a golpes de foice. Era 14 de feve-reiro de 2008: um adolescente de 15 anos foi espancado por outros internos na Fundação Casa de Franco da Rocha, na Região Metropolitana de São Paulo, que pensavam que o garoto delatara outros infratores. Era 3 de maio de 2014: uma mãe de 33 anos foi brutalmente agre-dida na praia do Guarujá, litoral sul de São Paulo, confundida com uma suposta sequestradora de crianças que praticava “magia negra”. Nas páginas dos jornais, essas histórias viraram estatística.

Nos últimos 60 anos, mais de 1 milhão de brasileiros já participou de um ato ou uma tentativa de linchamento – um sin-toma de uma enfermidade da sociedade brasileira. A análise é do sociólogo José

de Souza Martins, que dedicou mais de três décadas ao estudo dos linchamen-tos no país. “A frequência dos lincha-mentos no Brasil pede que se conheça o fenômeno do justiçamento popular, que é endêmico entre nós”, diz o autor de Linchamentos: a justiça popular no Bra-sil (Contexto, 2015), pesquisa realizada com apoio da FAPESP e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH--USP), Martins iniciou suas investiga-ções sobre os linchamentos na década de 1970, quando pesquisava os conflitos e as tensões nos movimentos sociais no interior do país, especialmente na fron-teira amazônica, identificando surtos de saques e práticas de justiçamento popu-lar. Incorporou ao estudo muitas outras ocorrências, minutadas inclusive no noti-ciário jornalístico, e três estudos de cam-

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Juliana Sayuri

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po, realizados no interior de São Paulo, no oeste de Santa Catarina e no sertão da Bahia. Indexou, ao longo dos anos, 2.028 casos, concentrados especialmente entre 1945 e 1998: nesses, 2.579 indiví-duos foram alcançados por tentativas e linchamentos consumados; apenas 1.150 (44,6%) foram salvos, em mais de 90% das oportunidades pela polícia. Outros 1.221 (47,3%) foram engolidos pela fúria popular, espancados, atacados a paula-das, pedradas, pontapés e socos, nessa ordem e nessa progressão, até casos ex-tremos de extração dos olhos, extirpação das orelhas e castração. Entre eles, 782 (64%) foram mortos e 439 (36%) feri-dos, segundo revela o estudo pioneiro. Para Martins, os números indicam que o linchamento se tornou um componente da realidade social brasileira, perdendo gradativamente sua caracterização como um fato anômalo. Em outras palavras, um dia excepcional de fúria se transformou num ato cotidiano conjugado no plural: dias de fúria.

Paralelamente a esse corpus, o soció-logo acompanhou outros 2.505 episó-dios, que atualizam as informações até 2014, um procedimento experimental de monitoramento diário das ocorrências. Também enriqueceu o estudo a partir de pesquisas no exterior em diferentes momentos, especialmente em biblio-tecas e arquivos na Inglaterra, Itália e França. Revisitou ainda a produção bi-bliográfica americana, o principal mo-delo teórico nessa área – as raízes do linchamento, afinal, remetem à Lei de Lynch, que originou a palavra “lincha-mento” no século XVIII que cá aportou no século XIX. “No Brasil, o primeiro linchamento registrado data de 1585. Na época não era designado como ‘lin-chamento’, mas indicava uma prática já presente em diversos países que levava a multidão, por variados motivos, a ma-tar alguém”, afirma o pesquisador. “Os americanos reuniram o maior número de estudos, mas com campos limitados. Queriam saber essencialmente quem foi linchado, quem fez o linchamento e qual era a causa provável”, diz Martins, que ampliou a dimensão da análise com 189 campos para preencher com infor-mações de modo a aprofundar o âmbito sociológico dos linchamentos.

Enquanto sociólogo, Martins lembra que é preciso entrar nessa arena não para julgar, mas para conferir se o linchamen-

to é compreensível ou não, isto é, para compreender o ponto de vista dos par-ticipantes. “Linchamento é uma forma de justiçamento covarde. A vítima da vítima do linchamento já está morta ou violentada. Um grupo se reúne para fazer justiça em prol de uma vítima e reage a algo que, entre eles, se tornou moralmen-te insuportável”, explica. “Quem lincha intui que está cometendo um crime. Se o linchamento acontece durante o dia, o número de participantes é menor. À noite, porém, o número de linchadores quase dobra – e a crueldade aumenta –, pois há a expectativa de impunidade. É um envolvimento irracional, mas existe um fundo de consciência sobre o certo e o errado. As pessoas pensam que es-tão punindo alguém que, a partir de sua perspectiva, merece ser punido. Ao mes-mo tempo, têm consciência de que não são elas que deveriam punir.”

No FIo DA NAvAlhAPara Martins, os linchamentos expres-sam uma crise de desagregação social. “Os crimes que motivam os linchamen-tos são interpretados pelos linchadores como crimes contra a condição huma-na. Não são delitos banais, como roubar uma carteira”, diz. “Se alguém estupra uma criança, por exemplo, significa que as regras foram violadas e a polícia e a justiça falharam. A população se vê en-tre uma justiça cega e uma justiça cética. Uma justiça que a população não acei-ta mais e deslegitima a lei de enfrenta-mento ao crime. E leva às explosões de fúria popular.”

Martins situa o linchamento na arena do comportamento coletivo e, ao mesmo tempo, no âmbito do crime comunitário, entre a multidão e a antimultidão. “Sig-nifica que, nessa sociedade, os indiví-duos estão vivendo como marginais, no sentido do sociólogo Everett Stonequist. São pessoas vivendo no fio da navalha da transição social, numa sociedade basea-da em relações societárias de natureza contratual que explode eventualmen-te com comportamentos de multidão, mas também estruturada num mundo comunitário e familístico”, diz ele. Se-gundo Martins, as metrópoles São Paulo, Rio e Salvador lideram os casos de lin-chamento. A informação é a mesma de levantamento realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP que, entre 1980 e 2006, contou 580 linchamentos

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banana. Bastou para um morador a in-dicar como a “bruxa” do litoral e, em questão de minutos, milhares a cercaram alucinados e violentos. “As pessoas es-tão vivendo com mídias ultramodernas, mas num mundo inteiramente rústico. Acontece uma tentativa de linchamen-to por dia no Brasil. As normas estão ausentes. Assim, a população inventa normas ad hoc para fazer ‘justiça’ aqui e agora”, critica.

Aos 76 anos, José de Souza Martins publicou mais de 30 livros. Nos últimos tempos, também lançou Diário de uma terra lontana (Fundação Pró-Memória, 2015) e Desavessos: crônicas de curtas palavras (Com-Arte Editora Labora-tório, 2014). O autor agora se dedica à elaboração de outro livro, a respeito da dimensão ritual dos linchamentos, como rito de sacrifício e de sangue. Sociólogo com sensibilidade antropológica, Mar-tins pretende destrinchar o “protocolo” implícito dos linchamentos: “Há uma ordem. Primeiro, perseguir. De repente, 2, 3, 4 se transformam em 8, 9, 10, 100. Todos contra um. Se o acusado estiver longe, atiram pedras. Mais perto, partem para pauladas – uma bengala ou uma vas-soura, o que estiver à mão. Depois, para

para José de Souza Martins, os linchamentos expressam uma crise de desagregação social

no estado de São Paulo, 204 no Rio de Janeiro e 180 na Bahia. “É um fenômeno das grandes cidades, mas praticado em nome de valores da pequena comunida-de”, pondera Martins.

No novo livro, o so-ciólogo traz conside-rações inéditas a par-tir do cruzamento dos 189 campos investi-gados. Identifica, por exemplo, a “durabili-dade do ódio” – em 70% dos casos, dura aproximadamente 20 minutos; depois, po-de se estender por 24 horas; noutros casos, é possível se prolon-gar por mais de um mês ou um ano, tal o impacto do crime primeiro, provocador. “Em geral, o lincha-mento não é um crime premeditado. É come-tido ainda sob o esta-do de emoção provo-cado pelo crime origi-nário”, diz. Além disso, o autor aponta um “índice de crueldade”, ilustrado, por exemplo, no contraste entre negros e brancos: “Se a motivação for a mesma, o autor, branco ou negro, é alvo de lincha-mento. Entretanto, se o linchado for ne-gro, a crueldade é maior, incluindo ações como arrancar os olhos, as orelhas e o pênis do acusado”, afirma. Ao contrário do que se pode imaginar, porém, o fator econômico interfere pouco nesses casos: há ricos participando de linchamentos, assim como pobres; há ricos sendo lin-chados, assim como pobres.

toDoS coNtrA UMHá um imaginário imenso por trás dos linchamentos, agravado atualmente por ferramentas midiáticas. Tornou-se sim-bólico o caso de Fabiane Maria, lincha-da brutalmente no Guarujá, diante de câmeras de smartphones. Alastrou-se a “notícia” na internet de que uma loira sequestrava crianças para fazer feitiça-ria – e Fabiane, morena, tingiu os cachos de vermelho num sábado de sol, passou na casa de uma amiga para buscar a Bí-blia, passou na quitanda e, numa série de acasos, parou para consolar um me-nino chorando na rua, dando-lhe uma

o espancamento, com pontapés e socos. Não há ‘render-se’ na lógica do lincha-mento. Os linchadores atacam, mas pa-ram e esperam o sujeito ficar amolecido. Se o linchado despertar por um minuto, voltam a atacar”.

Até agora, Martins encontrou 7,8% dos casos como linchamentos de um inocen-te – um índice alto, na sua interpretação. Diante de uma sociedade fraturada, a im-pressão final é que qualquer um estaria sujeito aos impulsos violentos da multi-dão. “Em Santa Catarina houve tentativa de linchamento de um juiz do Superior Tribunal de Justiça, que lá estava em fé-rias, com a família, usando carro oficial. Um padre no Ipiranga, em São Paulo, foi cercado por pais furiosos, pois não que-ria que as crianças brincassem no pátio da igreja. No fim, ninguém está imune a um linchamento”, arremata. n

Projetos1. As condições do estudo sociológico dos linchamentos no Brasil (nº 96/09765-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – regular; Pesquisador responsável José de Souza Martins (FFLCH-USP); Investimento r$ 11.725,73 (FAPESP).2. Linchamentos no Brasil (nº 94/03202-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – regular; Pesquisador responsá-vel José de Souza Martins (FFLCH-USP); Investimento r$ 4.311,02 (FAPESP).

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Estudo revela aproximações e diferenças

entre o road movie norte-americano

e os filmes do gênero feitos aqui

O brasil na estrada

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Márcio Ferrari

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José Wilker em Bye, bye Brasil (1980): Brasil profundo, mas mecanizado, com distâncias encurtadas pela TV

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c Gênero habitualmente associado à filmo-grafia norte-americana, já a partir do nome em inglês, o road movie prolifera também em outras cinematografias, en-

tre elas a brasileira. Um nicho particularmente interessante se desenvolveu por aqui no período entre os anos 1960 e final dos 1970, com filmes como Iracema, uma transa amazônica (1976), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna; Bye, bye Brasil (1980), de Cacá Diegues; e ecos posteriores em Central do Brasil (1998), de Walter Salles; e Cine-ma, aspirina e urubus (2005), de Marcelo Gomes, entre outros. São histórias de deslocamento que o pesquisador Samuel Paiva analisou em seu projeto O filme de estrada no cinema de ficção do Brasil (1960-1980), desenvolvido no Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) entre 2012 e 2014.

O termo foi cunhado num ambiente de contra-cultura nos Estados Unidos, refletido em filmes emblemáticos como Bonnie e Clyde – Uma raja-da de balas (Bonnie and Clyde, 1967), de Arthur

Penn, e Sem destino (Easy Rider, 1969), de Dennis Hopper, numa época marcada tanto pelos efei-tos do pós-Segunda Guerra Mundial quanto da Guerra do Vietnã, então em curso. No Brasil, um dos momentos mais emblemáticos do gênero se deu durante a vigência da ditadura militar. Em ambos os casos, a presença da estrada se torna mais comum nas telas de cinema em parte como consequência da superação da fase dos estúdios, que marcou a produção industrial cinemato-gráfica até meados do século XX (mais precisa-mente, no Brasil o que houve foram tentativas de industrialização, sendo as mais conhecidas as representadas pelos estúdios Atlântida, no Rio, e Vera Cruz, em São Paulo). O surgimento de equi-pamentos mais ágeis e o advento do cinema de rua, entre outros movimentos estéticos em vá-rios países, disseminaram o uso de movimentos de câmera e o aproveitamento da luz natural.

Samuel Paiva considera importante notar, no entanto, que nos dois países se encontram exem-plos muito anteriores de filmes com caracterís-

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liar. Há a presença central do carro, que funciona ao mesmo tempo como um sím-bolo da cultura de consumo, usado para questionar os valores ideológicos dessa mesma cultura, e como uma máquina de destruição, no que guarda relações com as armas. Os deslocamentos espa-ciais estão impregnados de “uma busca que não se sabe exatamente do que é”.

“No Brasil, o filme de estrada do perío-do também é marcado pela contracultura, mas tem conotações específicas”, diz Pai-va. Um filme como Iracema, uma transa amazônica, proibido pela censura entre 1976 e 1980 (mas exibido no exterior), é carregado de sentidos políticos. A histó-ria mostra o encontro do caminhoneiro Tião Brasil Grande (Paulo César Peréio) e uma prostituta de 15 anos, Iracema (a atriz não profissional Edna de Cássia). A estrada é a Transamazônica, símbolo do desenvolvimentismo da ditadura e, para o olhar crítico do filme, da destrui-ção ecológica. “A degradação de Iracema ao se prostituir tão jovem é a chave para compreender um país que está sendo vio-lentado e destruído”, diz o pesquisador.

Um forte aspecto da produção brasilei-ra de filmes de estrada, presente em Ira-cema, é o de viagens que significam um descobrimento ou redescobrimento do Brasil, característica que marca também o projeto político e estético do Cinema Novo. Filmes inaugurais do movimen-to, como Vida secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963) e Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964), mesmo sem estradas, são histórias de personagens em deslocamento em que surgem “personifi-cações do Estado opressor”. Às imagens

No Brasil, o filme de estrada foi marcado pela contracultura, com conotações específicas

ticas semelhantes àquelas consideradas canônicas no road movie. No Brasil há exemplos tão distantes quanto os regis-tros cinematográficos das expedições chefiadas pelo marechal Cândido Ron-don, realizados pelo major Luiz Thomaz Reis nos anos 1910. Para o pesquisador, citando o teórico norte-americano Rick Altman, “os gêneros não têm identidades e fronteiras estáveis; são frequentemente híbridos, trans-históricos, não seguem evoluções predizíveis, ainda que sua na-tureza repetitiva muitas vezes possa nos levar a pensar dessa maneira”.

DIálogoSEssa abordagem da questão do gênero cinematográfico remeteu o pesquisador à metodologia historiográfica proposta pelo pesquisador e crítico Jean-Claude Bernardet no livro Historiografia clássi-ca do cinema brasileiro (1995), em que é feita uma crítica à tradição nacionalista e sociológica de análise fílmica no país e se propõe o estabelecimento de “linhas de coerência” entre filmes de nacionali-dades, épocas e contextos diversos.

Embora em situações históricas bem distintas (nos Estados Unidos, o eco das guerras, e no Brasil o regime autoritá-rio), é possível, para Paiva, criar diálo-gos entre as duas produções de filmes de estrada. Para o crítico norte-americano Timothy Corrigan, o road movie dos anos 1960 fala de uma “volta para casa” re-lacionada tanto ao retorno do soldado quanto à tradição da literatura beatnik, que tem entre os seus temas centrais os conflitos de geração e a diáspora fami-

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projetoo filme de estrada no cinema de ficção do Brasil (1960-1980) (nº 2010/05715-0); Modalidade auxílio à pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Samuel paiva (cEcH--ufScar); Investimento R$ 20.828,84.Fo

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1 peréio e Edna de cássia (dir.) em Iracema (1976)

2 fernanda montenegro e

Vinícius de oliveira em Central do Brasil

(1998)

3 peter Ketnath (motorista) e

francisco figueiredo em

Cinema, aspirina e urubus (2005)

desse sertão arcaico, Bye, bye Brasil, feito mais de uma década depois por um dos diretores do Cinema Novo, Cacá Diegues, contrapõe “uma espécie de reflexão da crise do movimento cinemanovista”. O país que se desvela no filme é ainda o Brasil profundo, mas mecanizado, com distâncias encurtadas pela televisão e em convivência com a cultura norte-ameri-cana. Numa produção bem mais recente, Cinema, aspirinas e urubus, os viajan-tes são um brasileiro e um alemão que veem na companhia um do outro uma proteção contra um sertão ameaçador. O mundo externo se personifica, numa espécie de revisão da exclusividade na-cional no gênero.

REvolUção E coNcIlIAçãoEm chave aparentada, Paiva toma do pesquisador e crítico Ismail Xavier a ex-pressão “sertão-mar”, criada para se re-ferir ao cinema de Glauber Rocha e sua estética da fome. Também nesse caso, a trajetória emblemática é a dos persona-gens centrais de Deus e o diabo na terra do sol, que se traduz numa jornada de conscientização rumo, possivelmente, a uma revolução. Nessa trajetória transfor-madora, o sertão é o ponto de partida e o mar, a libertação. Em Bye, bye Brasil, no entanto, a água do mar está poluída e a viagem se encaminha para o interior. Em Central do Brasil, a trajetória do menino em busca do pai começa à beira-mar,

no Rio, e vai até o interior do Nordeste. Ele não encontra o pai, mas conhece os irmãos. “No lugar de revolução, surge conciliação”, diz Paiva. “O reencontro é com um princípio ético, a fraternidade.”

A ausência do pai e a crise da figura masculina, que movem Central do Brasil, são traços do road movie norte-america-no que ressoam na produção brasileira. Em Mar de rosas (1979), de Ana Caroli-na, a protagonista é uma mulher (Norma Bengell) que mata o marido durante uma viagem de carro com a filha. E, oscilando entre a ausência e a presença autoritária do pai, a crise da figura patriarcal é tema-tizada em muitos dos filmes de estrada mais recentes, como Árido movie (2005), de Lírio Ferreira, e À beira do caminho (2012), de Breno Silveira.

Paiva encontra ainda reflexões sobre o road movie nos textos escritos pelo ci-neasta Rogério Sganzerla para o jornal O Estado de S.Paulo nos anos 1960. O pesquisador lembra que os filmes que ele faria, a começar por O bandido da luz vermelha (1968), estão repletos de “deambulações e perambulações automo-tivas”. Impressionado com o surgimen-to de um “cinema físico” no interior da Nouvelle Vague francesa e de momentos da produção brasileira como a cena de Os cafajestes (Ruy Guerra, 1962) em que a personagem de Norma Bengell, nua, é cercada na praia por um carro dirigido pelos personagens-título em contínuos

movimentos circulares, Sganzerla escre-veu um artigo intitulado “Cineastas do corpo”. Nele, o então crítico dizia que esses cineastas observam “a destruição dos homens pelos agentes externos, os meios criados pela nossa civilização (o avião; o automóvel; a metralhadora; o cinema, responsável pela morte dos per-sonagens de [Jean-Luc] Godard)”.

Destruição leva a pensar num aspec-to que Paiva destaca nos road movies do período 1960-1980: a presença da ideia de distopia. Tanto em Bonnie and Clyde como em Easy rider os personagens aca-bam destruídos. Nos filmes brasileiros, o pesquisador vê na estrada a manifes-tação de uma “incerteza em relação ao que se pode construir em termos de fu-turo”. Tomando emprestados conceitos do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, Paiva considera o road movie expressão da crise da modernidade sólida (em que o movimento supera o espaço), anterior à modernidade líquida (a época atual, das tecnologias que fazem o tempo se sobrepor ao espaço). Esses filmes mani-festariam uma “espécie de nostalgia da modernidade sólida” – isto é, do tempo dos trens e do próprio cinema. n

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Rodrigo de Oliveira Andrade

Instituto de

Belo Horizonte

iniciou no Brasil o uso

de radioterapia no

tratamento de

tumores

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Em agosto de 1926, após longa viagem vinda de Paris, a química polonesa Marie Curie desembarcou em Belo Horizonte para uma conferência na Faculdade de

Medicina da Universidade de Minas Gerais sobre a radioatividade e suas possíveis aplicações na medicina. Em sua mala, a prêmio Nobel de Física, em 1903, e Química, em 1911, trazia duas agulhas de rádio usadas na irradiação de tumores. Durante a visita, a cientista aproveitou para conhecer o Instituto de Radium de Belo Horizonte, primeiro hospital especializado no uso da radioterapia contra o câncer no Brasil — e para o qual doou as agulhas. As circunstâncias que permitiram sua criação quatro anos antes, em setembro de 1922, surgiram em meio a uma atmosfera de cruzada contra a doença, sobretudo na Europa, no início do século XX, que incentivou médicos brasileiros, como Eduardo Borges Ribeiro da Costa, a expandir suas pesquisas em radioterapia.

Em 1920, ao voltar de uma temporada de estudos na Europa, onde conheceu a cientista e a sua obra, o médico se viu diante do aumento dos números de casos de câncer em Minas Gerais. Frente à situação, Borges da Costa, especialista na extirpação de tumores com o bisturi, conseguiu apoio do então presidente

1 O médico Borges da Costa (de bigode) e a cientista Marie Curie (centro), durante sua visita ao Instituto de Radium de Belo Horizonte, em 1926

mineiros contra o câncer

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também uma área vasta de tecido sadio como forma de evitar o reaparecimento da doença, ou o destruíam com radiação. “Era uma escolha entre o raio quente e a faca fria”, comentaram as pesquisadoras em um artigo que detalha suas análises, publicado na revista História, Ciência, Saúde — Manguinhos.

Mantido com recursos públicos, o instituto comprava rádio da França, com certificados de dosagem assinados por Marie Curie. O edifício projetado para abrigar o hospital tinha corredores e portas largas e grandes janelas, que aumentavam a iluminação e ventilação dos ambientes. Em 1950, a instituição ganhou o nome Instituto Borges da Costa, em homenagem a seu fundador, morto naquele ano, e em 1964 foi outra vez renomeada, desta vez como Hospital Borges da Costa. O prédio foi restaurado e hoje funciona como ambulatório para pacientes com câncer. Atualmente, os tratamentos radioterapêuticos são feitos em outros hospitais da cidade. n

do estado, Arthur da Silva Bernardes, para a construção do Instituto de Radium. Erguido nos fundos da Faculdade de Medicina da Universidade de Belo Horizonte — hoje Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) —, o instituto tinha como objetivo o estudo e as aplicações terapêuticas dos raios X e do rádio, elemento químico identificado por Marie Curie e seu marido, Pierre, em 1898. Essas tecnologias, além de recentes, eram difíceis de ser manejadas. Na dose certa, a radiação era eficiente para matar o tumor, mas qualquer erro na dosagem poderia

médicos modernos, o instituto atraiu doentes de todo o Brasil”, observa. As historiadoras resgataram um pouco da história e da rotina do instituto analisando o livro de registro de pacientes que encontraram em uma de suas alas prestes a ser reformada.

Com 199 páginas, algumas bastante desgastadas, outras mordiscadas por traças e cupins, o livro contém nome, idade, local de nascimento, diagnóstico, data de óbito e detalhes do tratamento de 1.653 pessoas diagnosticadas com algum tipo de câncer entre 1923 e 1935. Nesses 12 anos, 481 pessoas morreram no hospital, das quais 45,3% em decorrência da doença, segundo dados encontrados no documento, hoje preservado no Centro de Memória da Medicina da UFMG. O livro registra ainda pessoas atendidas que enfrentaram longas viagens a partir de seus estados para se tratar no instituto. Os médicos não contavam com muitas alternativas à época: ou extirpavam o tumor cirurgicamente, retirando FO

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2 lançamento da pedra fundamental do edifício do instituto, em 1921

3 fachada do edifício que abrigava o hospital

4 livro de registro de pacientes

danificar os tecidos sadios próximos.

Em 1924, Belo Horizonte, com uma população de 75 mil pessoas, registrou 56 mortes por câncer, de modo que a inauguração do Instituto de Radium, em 1922, representou muito mais que a criação do primeiro hospital oncológico do Brasil, segundo a historiadora Ethel Mizrahy Cuperschmid, do Centro de Memória da Medicina da UFMG, que estudou os primeiros anos do hospital com sua colega Maria do Carmo Salazar Martins. “Com agulhas radioativas e outros equipamentos e

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Vera Hamburger

procura a essência da

direção de arte

Filmagem de Carandiru (2003),

de Hector Babenco, em que Vera

Hamburger fez a cenografia

Formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), Vera Hamburger desenvolveu

ao longo de três décadas uma sólida e consagra-da carreira de diretora de arte, cenógrafa e fi-gurinista no cinema, assim como no teatro e na montagem de exposições. A inquietação e a curio-sidade em relação a seu ofício, no entanto, só se intensificaram com o acúmulo de experiência. A partir de 2003, com três projetos paralelos, Vera mergulhou numa investigação profunda sobre a direção de arte, sem deixar de lado a criação pro-fissional. Nesse mesmo período, trabalhou como cenógrafa ou diretora de arte em filmes como Carandiru (2003) e O passado (2007), ambos de Hector Babenco, Não por acaso (2006), de Phi-lippe Barcinski, e Hoje (2010), de Tata Amaral.

“Eu percebia que a direção de arte era uma função muito pouco compreendida e em 2003

Márcio Ferrari

Arte

A criação do espaço1

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Equipe de pintura em um dos cenários de Castelo Rá-tim-bum, o filme (2000), de Cao Hamburger. Vera assinou a direção de arte com Clóvis Bueno

Cena de Kenoma (1998), de Eliane Caffé, com cenografia de Vera: anteprojeto realizado um ano antes de começar a filmagem

comecei a dar aulas com a intenção de discutir com os alunos e refletir sobre isso”, diz Vera. No mesmo ano, ela ganhou uma bolsa da Fun-dação Vitae para uma pesquisa sobre a direção de arte no cinema brasileiro. “Desde então não parei mais de juntar as duas vertentes, pesquisa e produção artística.”

Do trabalho de prospecção teórica e histórica nasceu o livro Arte em cena – a direção de arte no cinema brasileiro, publicado no ano passado pela Editora Senac em conjunto com as Edições Sesc, um compêndio sobre as práticas, atribuições e rotinas da direção de arte (que engloba funções como escolha de locações, cenografia, figurino, maquiagem e efeitos especiais) acrescido da tra-jetória de quatro nomes da área – Pierino Mas-senzi, Clóvis Bueno, Marcos Flaksman e Adrian Cooper – e descrições sobre o trabalho realizado em filmes específicos.

Na evolução paralela da atividade didática, “a experiência direta passou a ser mais rica do que as aulas expositivas”, o que resultou na criação do laboratório interdisciplinar Fronteiras Per-meáveis, realizado em 2013 na Escola de Comu-nicações e Artes (ECA-USP). “Tive a oportuni-dade, pela primeira vez, de ter o retorno de uma investigação que se desenvolveu exclusivamente no espaço da obra, sem a interferência de uma narrativa”, diz Vera. Essa observação inédita, vinda da “apropriação da recepção dos exercí-cios pelos alunos”, se desdobrou num terceiro projeto, a dissertação de mestrado O desenho do espaço cênico: da experiência vivencial à forma, defendida no fim do ano passado.

O convite para o curso, oferecido como disci-plina optativa no Departamento de Audiovisual da ECA, foi aberto a várias áreas. “Minha opinião é que seria ótimo se a universidade adotasse uma abordagem multidisciplinar em vez de investir apenas na especialização”, diz Vera. Selecionados a partir de cartas de intenções, os alunos vieram da FAU e dos departamentos de Artes Cênicas, Artes Visuais e Audiovisual da ECA. O ponto de partida foi organizar exercícios de intervenção no espaço, livres de qualquer roteiro narrativo, a partir unicamente dos elementos essenciais da conformação do lugar – como a linha, ponto, luz, matéria, cor, textura e imagens projetadas – em intervenções construtivas diretas.

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“Tanto no ensino quanto na prática artística, a questão narrativa e conceitual é colocada como primeiro objetivo, quando a aproximação inicial, na realidade, é do corpo e das sensações”, diz Vera, que toma emprestada do artista plástico teuto-americano Josef Albers a ideia de elaborar a teoria através da prática. O primeiro módulo constitui-se em desenvolver essas percepções em espaços delimitados. O segundo transportou a experiência para locações, ou seja, ambientes não controlados. E o terceiro se voltou para a teorização a partir do processo experimentado. “O que constatei foi uma relação distinta de cada participante com as diretrizes do curso”, diz Vera.

Um dos alunos, em seu relatório final, deu o seguinte depoimento: “Permaneci concentrado nos chamados elementos primordiais. E todo o trabalho coletivo entrou em foco. Passei a obser-var o que eu tinha interesse em fazer e aquilo que efetivamente conseguia realizar. (...) Foi como dar um giro de 180 graus em meu modo de ser. (...) De repente o mundo dos significantes superou o dos significados.” A própria professora absorveu a experiência de maneira semelhante e percebe a conexão entre a vivência pedagógica e a criação de novas dinâmicas de trabalho na elaboração de projetos cenográficos ou na prática corrida de um set de filmagem, exercícios permanentes de criação da obra coletiva. “Cada um tem um tempo e uma contribuição”, diz Vera.

O termo direção de arte só aparece pela pri-meira vez nos créditos de um filme brasileiro em 1985, em O beijo da mulher aranha, de Babenco.

Foi nessa época que Vera começou a trabalhar na área. Ela percebe, desde então, uma evolução na valorização e na concepção mais clara da direção de arte, que forma com o cineasta e o diretor de fotografia o tripé da concepção visual de um filme.

Dada a complexidade das funções de cada um, é da natureza do processo que todas as instâncias tragam consigo um conceito diferente da reali-zação. Como diz um dos entrevistados do livro, o diretor de arte Clóvis Bueno, faz-se um exercício de conquista do outro. “Vivemos o sofrimento e o prazer ao mesmo tempo, mas é sempre um exercício incrível”, diz Vera, que ainda tem uma parte de sua pesquisa a ser publicada. Trata-se da história da cenografia e da direção de arte no cinema ficcional brasileiro, desde seu nascimento na virada do século XIX para o XX. n

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o italiano Pierino massenzi projetou e construiu a primeira cidade cenográfica da américa latina para Tico-tico no fubá (1952), de adolfo Celi. ao lado, o circo montado por ele para o filme. o livro Arte em cena traz o depoimento do cenógrafo

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Nessa chave, F. Hutcheson (1694-1747) estende os prós da mediania para além do social; no âmbito psicológico-cognitivo, a mente que se mantém em um estado intermediário contorna todo tipo de uneasiness. A mediania traz benefícios não só para o indivíduo, como para o conjunto. Foi ten-do isso em vista que Hutcheson concebeu nossa felicidade como resultado do cálculo entre bens e malefícios, cujo êxito requer a administração das expectativas e da satisfação individual que leve em conta o bem comum. Se a ars vivendi requer autocontrole, é menos a título de usura que de equanimidade.

Conversação, mediania, acumulação e bem comum: essas ideias não seriam expressões do capitalismo em formação, especialmente no Reino Unido do século XVIII? A reconstrução que Su-zuki faz dos temas que vão de Shaftesbury (1671-1713) a A. Smith (1723-1790), passando por Hume, Hutcheson e Kames (1696-1782), levanta pistas nessa direção. Segui-las nos levaria à órbita em torno do clássico de Weber sobre o espírito do capitalismo, com a diferença de que, nos autores examinados aqui, a ascese intramundana já foi atenuada a ponto de incorporar, no ideal do gen-tleman, humor e crítica. O Deus transcendente dos reformados dá vez ao moral sense que guia nossas atitudes e admite o refinamento.

O que Kant, cuja presença atravessa todo o livro, tem que ver com isso, logo ele que fomos habituados a opor a Hume? Seguindo seus cursos de antropologia, Suzuki reconstrói a apropriação genuína que Kant fez dos britânicos, dos quais foi um leitor arguto e penetrante. E fornece, assim, uma tese original e instigante quanto à gênese do juízo estético e do “livre jogo” entre as faculdades da mente que, na Crítica do juízo, caracteriza a eminência da atividade filosófica. Mas logo nis-so Kant teria sido tributário dos “empiristas”? Quem aprendeu filosofia apoiando-se em oposi-ções rígidas, especialmente se for um kantiano, não deve ler este livro. A não ser que saiba rir de si mesmo. O que não seria pouco; como ensina Suzuki, o humor é coisa séria.

Um meio promissor de apresentar o novo livro de Márcio Suzuki é atentar ao sub-título: “Jogo, humor e arte de viver na fi-

losofia do século XVIII”. Como esses temas se articulam no século do Esclarecimento?

Comecemos pela “arte de viver” – uma ideia antiga, conforme a qual a filosofia é uma arte pa-ra atingirmos a tranquilidade da alma. Se a filo-sofia representou uma alternativa à religião, foi por nos assegurar contra os males deste mundo. Marco Aurélio dizia que participamos de um todo ordenado, o “cosmos”, cujas razões devemos ter em mente para desfrutar da vida com serenida-de, haja o que houver. A “natureza”, vista como organismo, deveria guiar a vida prática. Essa “ar-te de viver” irá reaparecer no século XVIII, só que com outra feição. Agora, a filosofia será útil aos homens, desde que os distraia de si mesmos. Com acuidade, Suzuki mostra que o “divertimen-to”, tematizado por Pascal como fuga de nossa miséria, reaparece de modo atenuado, mas cen-tral, no pensamento moral britânico setecentista (o protagonista do livro). O “jogo” do subtítulo torna-se metáfora da atividade filosófica, conce-bida como elemento lúdico que a emancipa de qualquer intuito salvífico como o da religião. A filosofia evita o tédio, é útil socialmente e apraz. Torna-se entretenimento.

Embora possamos entreter-nos a sós, é mais comum fazê-lo em grupo. Pensar, então, solicita o convívio social e dele toma sua medida. Exa-minando D. Hume (1711-1776), Suzuki explica por que o pensamento britânico setecentista fez tanto ensaísmo. É que o ensaio toma por modelo a conversação. Já no plano de sua forma exposi-tiva, pensar consiste no diálogo com os outros.

Outra implicação da ancoragem social da fi-losofia é o elogio à mediania. O diálogo requer que os interlocutores possuam afinidades e in-teresses comuns que vão além da promoção de sua mútua segurança (Hobbes). Imagine alguém que, admitido numa mesa de pôquer, perde uma mão após outra, sem que isso o aborreça – ele tem dinheiro de sobra. Fácil adivinhar o que sucede: a mesa desanda, pois o jogo, assim como o bom convívio, não admite assimetrias excessivas. Sua presença inviabilizaria não apenas a conversa-ção, como também o comércio e o bem comum.

Humor é coisa séria

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Vinicius de Figueiredo

Vinicius de Figueiredo é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).e

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A forma e o sentimento do mundo – Jogo, humor e arte de viver na filosofia do século XVIIIMárcio suzukieditora 34 / FaPesPrs 63,00 | 560 páginas

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Desde os oito anos acompanhava seu pai, e com doze João ganhou seu primeiro ser-rote.

“É teu, mas cuida, corta, e feio.”E assim passou de um mero observador a as-

sistente. Ele subia primeiro, amarrava uma cor-da num galho resistente, fazia o nó que seu pai lhe ensinara.

“Nem um navio a todo vapor acaba com es-se nó.”

E a corda entrava por um furo e saía por outro no colete de couro de vaca, que sua mãe fizera, e por fim era amarrada na outra extremidade da corda, por outro poderoso nó. Caso se descuidas-se, ficaria suspenso, e não desabaria como uma maçã podre. Com o serrote desbastava os galhos mais finos, se embrenhava na árvore e, como era leve e pequeno, conseguia chegar nos pontos mais altos das árvores, limpava a área para subida de seu pai. E não tinha medo, subia rapidamente, não sabia muito bem o que era a dor, o que era a morte. Ele apenas não gostava de subir em euca-liptos, pois quase não havia copa, e o chão estava sempre à vista: os galhos também eram distantes uns dos outros, e os eucaliptos mediam dezenas de metros de altura. E agora cada vez mais se plantavam eucaliptos, para fins industriais e tam-bém nas grandes residências: os ricos gostavam da opulência da árvore, naquele tempo.

O pai viera da região oeste do Paraná, do dis-trito de Cascavel, hoje município homônimo. Trabalhara durante muitos anos na extração de madeira nativa, para empresas madeireiras re-gionais, até que uma dessas empresas resolveu abrir uma filial no nordeste de Santa Catarina. Seus pertences couberam numa saca de feijão de cinquenta quilos: algumas roupas e uma bí-blia. Nunca mais viu seus pais ou algum dos seus treze irmãos, e era assim naquela época, quan-do alguém partia, realmente partia. Morou nos

fundos da madeireira, com outros peões, durante alguns anos, até que conheceu Salete, a filha da faxineira do escritório da madeireira.

Em pouco tempo se casaram, e ao lado da casa do seu sogro ele ergueu sua casa, toda em madei-ra, com ajuda dos cunhados e do sogro. A madeira era retirada da mata e trazida para o terreno com a carroça do Gerçon, o carroceiro do bairro. Com a casa pronta, saiu da madeireira e passou a tra-balhar sozinho, primeiro extraindo madeira da mata e vendendo às famílias do bairro e depois como aparador e cortador de árvores, o que se mostrou mais lucrativo, pois a extração da ma-deira era perigosa e demorada, numa época em que motosserras pesavam sessenta quilos e cus-tavam uma verdadeira fortuna. E com ele era na serra, no serrote e no braço.

“Quando se tem braço, pra que motor?”Chegaram os filhos: um, dois, três, quatro. Dois

meninos e duas meninas. Ao primogênito, João, nome de apóstolo, decidiu passar sua paixão pe-lo corte da madeira. E escondia o orgulho ao ver seu filho, ágil como um sagui, de galho em galho, serrando e serrando. E ensinara João a sentir o cheiro e a textura de cada árvore, a imaginar o peso do galho pela extensão e pelo tipo da ma-deira, e, principalmente, saber o tanto de traba-lho que cada tipo de árvore dava ao ser cortada ou desbastada ou transportada. Cortar é a parte mais fácil, difícil é prever para que lado o galho vai pender, qual o estrago que vai causar e onde vai cair. Em Cascavel já havia visto inúmeros aci-dentes: pernas e braços arrancados e todo o tipo de esmagamento. Membros pendurados, tripas à mostra, e certa vez um galho de pinheiro-brasi-leiro atravessou o Augusto, seu companheiro de trabalhos. E não importa a espécie, pau-brasil, ja-carandá, peroba, garupuvu, jequitibá-rosa, cedro, eucalipto, o barulho é o mesmo ao cair, um ruído assustador. Havia um prazer secreto no corte de

ficção

Serraterracarlos Henrique Schroeder

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carlos Henrique Schroeder é contista e romancista. Autor de Ensaio do vazio (2006, e adaptado para os quadrinhos em 2012) e As certezas e as palavras (2010, Prêmio Clarice Lispector da Biblioteca Nacional), dentre outros. www.carloshenriqueschroeder.com.br

sou a pontuar a relação dos dois e, como ambos eram de poucas palavras, o contato passou a ser cada vez mais estreito. Logo João saiu de casa, alugou um quarto numa pequena pensão próxi-ma da empresa e, como era dedicado, começou a prosperar, e logo ficou encarregado do setor de expedição, ganhando o dobro do que ganhava com seu pai. Conheceu Márcia, que seria sua esposa.

E o pai direcionou sua atenção para Matheus, seu filho caçula, o preferido da mãe e das irmãs do meio. Ensinou a plantar e matar árvores, um pou-co de marcenaria. Mas Matheus não era paciente como João, e mais uma vez ele viu um de seus abandoná-lo. O filho mais novo não queria saber de madeira, para ele estava claro que a alvenaria era o futuro, e tornou-se servente do Gumercindo, um dos bons pedreiros do bairro. Queria aprender, queria logo ser um pedreiro, tão bom quanto o viúvo Gumercindo, e por isso foi morar com o velho ranzinza, grosso e turrão, para aprender. Então o pai deu serrotes para as meninas, e as ensinou a serrar madeiras menos resistentes, pois na casa dele todos tinham serrotes, até Salete.

“Quem tem um serrote, tem tudo, pode cons-truir uma casa, se perder na mata que vai achar comida, pode se defender.”

Quando casou e mudou para uma pequena casa, João colocou seu último serrote numa moldura, e pendurou na parede de sua sala, para que sou-bessem que a sua família era de homens de serra.

“Quero que meu futuro filho herde este serro-te, e isto só vai sair da parede quando eu morrer.” Mas o serrote sairia da parede uma semana depois.

O pai de João soube pelo rádio, à noite, e chorou como criança, como nunca chorara. E repetia o quinto e o sexto mandamento, ininterruptamente.

“5 – Honra a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá.”

“6 – Não matarás.”O motivo da discussão teria sido a perda de um

prumo. Gumercindo e Matheus trocaram socos, e sabe-se apenas que o resultado final de tudo foi o corpo do primeiro, serrado em 11 partes, e jogado numa vala que Matheus tentara cavar no quintal da casa de Gumercindo. Matheus sumira, e nunca mais ninguém ouvira falar dele. O pai proibira a pronúncia do nome dele em casa, e a mãe rezava todas as noites, bem baixinho, um murmúrio, pa-ra que deus perdoasse seu filho, que era um bom menino, embora tivesse cometido um erro. O pai recolheu todos os serrotes da casa, pediu o de João também, fez um grande buraco e enterrou todos.

“Lugar de serra é na terra, a partir de agora.”

árvores, uma sensação de poder, a força do braço subjugando a natureza, e, quando o galho ia ao chão, uma sensação de vitória.

Ele ensinara seu ofício a João, e também a so-breviver na mata, a reconhecer os pássaros pelo cantar, e conhecer os costumes das cobras, prin-cipalmente das jararacas, que também subiam em árvores. Não havia como evitar as cobras, era preciso vê-las, afugentá-las, ou em casos mais ex-tremos matá-las. E treinou seu filho para perceber as cobras no meio das árvores, na vegetação fe-chada, onde fosse preciso. Mas João quis a cidade.

Aos dezoito anos comunicou seu pai que não queria mais cortar árvores, seus amigos iam, to-dos, trabalhar na Tigre, que até 1941 fabricava pentes de boi, mas desde 1950 começara a fa-bricar tubos e conexões de PVC. Iria ganhar o mesmo que ganhava com seu pai, mas o serviço era mais leve.

“Só digo uma coisa, na hora de cortar, você nunca sabe para que lado vai cair o galho.” Es-te ditado era usado para tudo por seu pai, um homem de uma frase. E foi o que disse quando João lhe comunicara que iria trabalhar na cida-de, e também quando Matheus destruiu a vida de todos, serrando.

Cada árvore tinha sua textura, seu peso, seu cheiro específico: não existe “madeira”, dizia seu pai, mas sim jequitibá-rosa, mangueira, peroba et cetera... Não devíamos generalizar, nunca, era como chamar todos de “gente”.

Embora parecesse aceitar bem, nunca digeriu muito bem a traição do primogênito, que trocou a arte de lidar com a madeira pela manipulação de produtos plásticos. Não entendia como João trocara a liberdade de trabalhar em horários al-ternativos, em meio à natureza, com algo que era realmente vivo, pulsante, como a madeira, para ficar trancafiado num depósito, cheirando plás-tico oito horas por dia. E este ressentimento pas-A

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Uma estrutura para aqueles que queiram experimentar e avançar em uma ideia ou projeto de um possível novo medicamento ou diagnóstico elaborado nos laboratórios da Universidade de São Paulo (USP) nas áreas de biomedicina e biotecnologia está disponível para professores, pesquisadores e alunos. O Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da universidade abriga um programa que acelera a formatação de ideias e projetos de novos produtos e os torna mais maduros, do ponto de vista científico e tecnológico, antes de se aventurarem no mercado. Chamado de Programa Supernova,

a iniciativa se baseia inteiramente na experiência do Spar, uma plataforma criada dentro da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, pela professora Daria Mochly-Rosen, química que atua na Escola de Medicina da mesma universidade.

“O Supernova é um acelerador de projetos dentro da academia que serve para agregar valor em uma possível aplicação em curto e médio prazo”, diz o professor Julio Cesar Batista Ferreira, do ICB e fundador do Supernova. Ele, por dois anos, enquanto fazia o pós-doutorado em Stanford, acompanhou o Spark, onde o foco maior está na descoberta de novos

medicamentos e diagnósticos. Criado em 2007, o programa norte-americano já acelerou 51 projetos. Desses, apenas oito foram paralisados porque apresentaram resultados insatisfatórios. Vinte e dois foram licenciados e estão em estudo clínico; outros sete foram licenciados, mas não passaram por testes. Treze estão prontos para interessados em licenciá-los. O Spark não recebe royalties, apenas a universidade e os pesquisadores.

Outro diferencial desse tipo de estrutura é que mesmo antes de formar uma empresa os professores, pesquisadores e

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Processo acelerado programa supernova torna ideias e projetos mais maduros dentro da universidade antes de entrar no mercado

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O engenheiro diferenteConsultor de p&d dá nome a critério de projeto na área de motores

Eduardo Tomanik é um engenheiro mecânico que trabalha na Mahle, multinacional de autopeças de origem alemã, faz pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP)

e batizou um parâmetro internacional em tribologia, área que estuda o atrito, o desgaste e a lubrificação. O Critério Tomanik de conformidade de anéis de cilindros de motores automotivos apresentado em artigo técnico em 2009 é citado por autores da área e utilizado em softwares de simulação por várias empresas no mundo. Tomanik tem 57 anos e começou a trabalhar na Embraer, em São José dos Campo (SP) logo depois da graduação na Escola Politécnica da USP. “Foi muito importante trabalhar lá por dois anos, como recém-formado aprendi a ter um rigor técnico, consultar bibliografia e normas técnicas”, diz. Depois, em 1984, por querer voltar para a capital paulista, ele entrou na Cofap, em Mauá, na Grande São Paulo, empresa que produzia autopeças e em 1997 foi comprada e dividida entre Mahle e Magneti Marelli.

“Na Cofap havia menor ambição tecnológica e eu gostava de um aprofundamento teórico e por isso era visto como estranho. Mas os gerentes e diretores também queriam que a companhia inovasse e aceitavam que pelo menos um engenheiro fosse diferente e aí concordaram que eu fizesse mestrado na USP, coisa que na indústria era algo fora do padrão

naqueles tempos”, lembra Tomanik. “Eles concordaram que eu passasse meio dia por semana na USP, onde tive o professor Francisco Nigro como orientador, que alinhava bem prática e teoria.” Depois, Tomanik fez o doutorado também com o mesmo orientador e começou a publicar em revistas científicas, sendo o primeiro doutor “produzido” na Cofap. “Até tiveram que arrumar o nome de pesquisador para cargos como o meu.” Em 1997, a parte de motores da Cofap ficou com a Mahle e tudo mudou. Nas empresas alemãs, o reconhecimento por títulos de pós-graduação é maior, assim como o rigor tecnico e o entrosamento com o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Mahle em Stuttgart, na Alemanha, foi muito rápido. “As minhas publicações ajudaram muito.”

Tomanik é consultor de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) do Centro de Tecnologia da Mahle em Jundiaí (SP) e apenas uma vez ocupou um cargo de chefia nos 30 anos de empresa. “Embora interessante, o cargo tinha a parte burocrática que não me atrai, preferi voltar para a pesquisa, tenho vários projetos com a USP, MIT [Instituto de Tecnologia de Massachusetts] e Universidade de Halmstad, na Suécia”, diz. Ele atua também na Sociedade de Engenheiros da Mobilidade (SAE) como coordenador do comitê técnico de motores Otto. No pós-doc participa de projetos como um do Programa Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) da FAPESP sobre tribologia em motores flex-fuel, em que a Mahle participa. n M. O.

alunos que tenham uma molécula ou uma substância com potencial para ser transformada em medicamento, por exemplo, têm à disposição a assessoria de um conselho formado por acadêmicos de instituições paulistas e internacionais e consultores da indústria. “Esse conselho recebe a cada três meses um relatório do que está acontecendo”, diz Ferreira. Um dos primeiros passos para a ideia ou projeto avançar é elaborar um plano de negócios voltado para o mercado e as possibilidades do futuro produto.

Hoje, quatro projetos estão selecionados no Supernova. “O tempo para a ideia ou projeto ser licenciado ou ganhar uma estrutura de empresa é de dois anos.” Principalmente nos candidatos a medicamentos, a formação da empresa favorece a captação de recursos financeiros para os testes clínicos que demandam muito investimento.

O acompanhamento de perto por especialistas traz vantagens evidentes. “Na área de descoberta de medicamentos, segundo a experiência do Spark, o custo de cada projeto cai 10 vezes em relação ao processo inicial na indústria”, diz Ferreira. Além do ICB, o Supernova também serve às áreas de biotecnologia da Escola Politécnica (Poli-USP), às faculdades de Medicina, Farmácia e Veterinária da USP. Entre os consultores, que são voluntários, estão profissionais do Instituto Butantan, das empresas Dow, Roche, Startup Design, Axonal, Recepta Biopharma, Cemsa e Pluricell, da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e do Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec). Mais informações no site http://sparksupernova. com.br/. n Marcos de OliveiraFO

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Page 98: Pesquisa FAPESP

98 | abril DE 2015

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Page 99: Pesquisa FAPESP

• Lançamento do Volume de Síntese “SCOPE Bioenergy &

Sustainability: bridging the gaps”, resultado de uma análise global sobre a expansão

sustentável da bioenergia no mundo, conduzida por 136 pesquisadores de 81 instituições e 24 países

• Discussão dos desafios, lacunas no conhecimento e da ciência necessária para que os múltiplos benefícios

da bioenergia sejam alcançados

• Apresentação dos últimos desenvolvimentos ao longo de toda a cadeia de produção da bioenergia, desde o uso da terra e produção

de biomassa, até as tecnologias de conversão para combustíveis líquidos, bioeletricidade, biogás e calor

• Recomendações para políticas públicas, considerando-se os impactos social, econômico e ambiental, em face das mudanças climáticas, segurança energética, alimentar e dos ecossistemas

na transição para a bioeconomia

O relatório apresenta soluções tecnológicas e novos conhecimentos gerados em iniciativas de produção e uso da bioenergia, em vários contextos e regiões do mundo.

Este é o primeiro de uma série de simpósios regionais a serem realizados no Brasil,

América do Norte, Europa, África e Ásia para divulgar os resultados científicos, soluções

e recomendações do relatório.

OBJETIVOS

Comunidade científica, representantes de

governos e ONGs, indústria, agências de fomento,

parceiros dos programas FAPESP de pesquisa em biodiversi-

dade, bioenergia e mudanças climáticas,imprensa.

PÚBLICO-ALVO

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)

Rua Pio XI, 1500 – Alto da Lapa05468-901 – São Paulo, SP

Mais informaçõeswww.fapesp.br/eventos/scope

10h às 17h30, na FAPESP

QUANDO

14.4.2015

SIMPÓSIO DE LANÇAMENTO DO VOLUME DE SÍNTESE

Projeto FAPESP-SCOPE Bioenergia & Sustentabilidade

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