pervertimento e outros gestos para nada

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 1 PERVERTIMENTO E OUTROS GESTOS PARA NADA De José Sanchis Sinisterra ESTÁ AÍ (Em cena, um objecto iluminado. O resto sombras.  Passos que se aproximam, respirações.  A Voz 1 soa da lateral direita.  A Voz 2 vem da lateral esquerda.  Antes de se ouvirem há um minuto de silêncio. E :) VOZ 1.- Aí está. VOZ 2.- Sim, aí está. Finalmente. VOZ 1.- Finalmente, sim. VOZ 2.- Encontramo-lo VOZ 1.- Já era tempo. VOZ 2.- Tanto procurar, e… VOZ 1.- Estava aí. VOZ 2.- Estava? VOZ 1.- Ao que parece. VOZ 2.- Desde quando? VOZ 1.- Que queres dizer? VOZ 2.- Antes não estava. VOZ 1.- É certo: não estava. (Silêncio.) Quem o terá posto aí? VOZ 2.- Eu não, desde logo. VOZ 1.- Nem eu naturalmente.

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Pervertimento

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PERVERTIMENTO

E

OUTROS GESTOS PARA NADA

De José Sanchis Sinisterra

ESTÁ AÍ

(Em cena, um objecto iluminado.

O resto sombras.

 Passos que se aproximam, respirações.

 A Voz 1 soa da lateral direita.

 A Voz 2 vem da lateral esquerda.

 Antes de se ouvirem há um minuto de silêncio. E:)

VOZ 1.- Aí está.

VOZ 2.- Sim, aí está. Finalmente.

VOZ 1.- Finalmente, sim.

VOZ 2.- Encontramo-lo

VOZ 1.- Já era tempo.

VOZ 2.- Tanto procurar, e… 

VOZ 1.- Estava aí.VOZ 2.- Estava?

VOZ 1.- Ao que parece.

VOZ 2.- Desde quando?

VOZ 1.- Que queres dizer?

VOZ 2.- Antes não estava.

VOZ 1.- É certo: não estava. (Silêncio.) Quem o terá posto aí?

VOZ 2.- Eu não, desde logo.VOZ 1.- Nem eu naturalmente.

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VOZ 2.- Então? (Silêncio.)

VOZ 1.- De certeza que não estava?

VOZ 2.- Passámos por aqui.

VOZ 1.- Quando?

VOZ 2.- Antes.

VOZ 1.- Sim?

VOZ 2.- Não te lembras?VOZ 1.- Os dois?

VOZ 2.- Os dois. E não estava.

VOZ 1.- Tens razão: passámos por aqui. Antes.

VOZ 2.- Não há muito.

VOZ 1.- E não estava. (Silêncio.)

VOZ 2.- Quem o terá posto aí?

VOZ 1.- Porque… é evidente que o puseram ali, não é verdade? VOZ 2.- Não acreditarás que tenha vindo sozinho!

VOZ 1.- Quero dizer… que alguém o colocou aí… e de forma tão… tão… 

VOZ 2.- Tão ostensível. 

VOZ 1.- Ostensível: a palavra é essa.

VOZ 2.- E ostentoso.

VOZ 1.- Ostentoso? Não é o mesmo?

VOZ 2.- Não exactamente. Ostentoso é mais …mais… 

VOZ 1.- Mais chamativo.

VOZ 2.- Provocativo, diria eu.

VOZ 1.- É isso: provocativo. (Silêncio.)

VOZ 2.- Mas… porquê?

VOZ 1.- Porquê?

VOZ 2.- Sim: porque é que nos parece… provocativo? 

VOZ 1.- Não sei: tu é que disseste.

VOZ 2.- Na realidade, só está aí.

VOZ 1.- Tu acreditas?

VOZ 2.- Olha-o bem.

VOZ 1.- Estou a olhar: e não creio que se limite apenas a estar aí.

VOZ 2.- Não?

VOZ 1.- Olha-o bem. (Silêncio.)

VOZ 2.- Que lhe encontras?

VOZ 1.- De repente, alguém o pôs… aí. 

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VOZ 2.- Sim, nisso estamos de acordo: mas… 

VOZ 1.- E pô-lo… assim. 

VOZ 2.- Tão… ostensível, queres dizer? 

VOZ 1.- E ostentoso, sim. (Silêncio.)

VOZ 2.- Desde logo, discreto não está.

VOZ 1.- Em absoluto.

VOZ 2.- É como se…(Silêncio.)

VOZ 1.- Quê?

VOZ 2.- Como se quisesse… dizer algo. 

VOZ 1.- Dizer?

VOZ 2.- Ou significar.

VOZ 1.- Algo assim como… um sinal? 

VOZ 2.- Um indício?

VOZ 1.- Uma mensagem?VOZ 2.- Um símbolo?

VOZ 1.- Não exageremos.

VOZ 2.- Não: tanto, não. (Silêncio.) Dizer algo… A quem? (Silêncio.) Diz: a quem?

VOZ 1.- Não sei.

VOZ 2.- A nós, talvez?

VOZ 1.- Porquê precisamente a nós?

VOZ 2.- Há mais alguém? (Silêncio.) Diz: há mais alguém ?

VOZ 1.- Não sei.

VOZ 2.- Dizer algo… Quem? (Silêncio.) Diz: quem?

VOZ 1.- Quem o pôs aí.

VOZ 2.- E quem é que o pôs?

VOZ 1.- Fazes umas perguntas, que… 

VOZ 2.- Perguntas… 

VOZ 1.- Quê?

VOZ 2.- É isso! Perguntas!

VOZ 1.- É isso, quê?

VOZ 2.- O que diz, o que significa, o que provoca…isso…aí. 

VOZ 1.- Perguntas?

VOZ 2.- O que é.

VOZ 1.- Não te entendo.

VOZ 2.- Não é outra coisa: uma pergunta… sólida. Com peso, com volume, com forma. 

VOZ 1.- Uma pergunta … isso? 

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VOZ 2.- Sólida, sim. Olha-o bem.(Silêncio.)

VOZ 1.- Vou-me.

VOZ 2.- Vais-te? Porquê? Já não te interessa?

VOZ 1.- Não.

VOZ 2.- Depois de tanto procurar?

VOZ 1.- Precisamente.

VOZ 2.- Não te entendo.VOZ 1.- Não me interessa uma pergunta. Não me interessam mais perguntas.

VOZ 2.- E se fosse… uma resposta? 

VOZ 1.- Uma resposta, a quê? (Silêncio.) Diz: a quê?

VOZ 2.- Não sei.

VOZ 1.- Vou-me. Isto está a degenerar.

VOZ 2.- Tens razão, tens razão… Estamos a andar a volta. Mas, espera… Voltemos ao

 princípio.VOZ 1.- Ao princípio?

VOZ 2.- Sim: não especulemos mais.

VOZ 1.- Especular… 

VOZ 2.- Estávamos à procura dele… 

VOZ 1.- Especular… 

VOZ 2.- E encontramo-lo.

VOZ 1.- Isso parece.

VOZ 2.- Então… 

VOZ 1.- Então, quê?

VOZ 2.- Que está aí.

VOZ 1.- Sim, está aí. Finalmente.

VOZ 2.- Finalmente, sim.

VOZ 1.- Simplesmente.(Silêncio.)

VOZ 2.- Simplesmente? (Silêncio.) Simplesmente? (Silêncio.) Simplesmente?

(A luz vai-se extinguindo sobre o objecto.

 Respirações, passos que se afastam.

Silêncio. Escuridão.)

AO LADO

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Vocês tiveram muito azar, porque realmente o mais interessante vai acontecer aqui

ao lado.

É o mal do palco à italiana: é uma caixa mágica que abre no espaço uma nova

dimensão, sim.

Pode ser um “fatia” de vida –   um “pedaço”, como dizia o outro  –   ou um reino

imaginário, de acordo.Mas pode acontecer que o espaço aberto ao desaparecer a “quarta parede” … seja

um espaço patético.

Ou seja, um espaço no qual não acontece absolutamente nada que valha a pena ser

visto.

Como este, por exemplo.

 Não sei de quem terá sido a falha, mas asseguro-lhes que aqui não vão ver nada

interessante.O interessante vai acontecer aqui ao lado.

Digo-o para que não tenham ilusões.

A mim, ao fim e ao cabo, tanto se me dá como se me deu.

Estou aqui de passagem e não tenho nenhuma obrigação de vos entreter, mas já

que soube da coisa estou a preveni-los.

E é uma pena, porque parece que ali se prepara algo espectacular.

De facto: aí chega ela, vem furiosa, com um enorme ramo de flores e um cartão.

Parece que arma… 

Que barbaridade, parece como se… 

Ou não?

Sim, sim… Pobre mulher. 

Mas, que está ela a fazer?

Ah, agora o telefone…Vocês ouviram? 

Porque se põe assim?

E o que é que está a dizer?

Fala num sussurro, não se lhe entende nada… Que pena. 

Alejandro? E quem é Alejandro?

Como está nervosa.

Olha para todos os lados como se… 

Suspendeu bruscamente… Porquê? 

É alguém que chega talvez? Escutou passos?

Este lugar, além de patético, tem péssima acústica: não se ouve nada.

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As flores… Ah, claro: esconde-as.

E agora… Olha que bem… Despe-se?

Está a despir-se, sim… É uma peça bastante atrevida. 

Meu Deus, que mulher… Que corpo… 

Faz-me não sei o quê, estar aqui, a olhar… 

É uma pena que vocês não possam… 

Mas, que tem na barriga?Parece… sim: uma f lor… Uma flor tatuada na barriga.

Uma flor de lótus, creio.

Que estranho, não lhes parece?

Uma flor de lótus tatuada justamente na barriga.

E essas corridas de cá para lá… Estará a procura de alguma coisa? 

Mas, porque não se veste? Porque não põe qualquer coisa por cima? Vai ter

frio… O que é que procura nos caixotes?

E que maneira de atirar tudo para o chão… tão arrumada que estava a sala… 

 Não lhes disse como é a sala?

Uma coisa digna de se ver, asseguro-lhes: realmente sumptuosa.

 Não foram nada modestos ali ao lado.

Enquanto aqui… Que pouca coisa, não? Que desalinho… 

A sobriedade está bem, de acordo, mas isto… isto raia a penúria. 

Estou a falar a sério: eu, se fosse a vocês, reclamava.

Trazê-los aqui para ver isto… 

 Não digo que montassem a grandiosidade daquela sala, com colunas,

envidraçados, candeeiros, móveis lacados, tapeçarias… mas, não sei, ao menos… 

Deus meu! Um homem! Entrou um homem!

Pelo menos ela está já vestida com um elegante roupão de seda preta.

Deve-o ter vestido enquanto eu… 

Mas que aspecto tão inquietante, o desse homem.

Que diz?... Nada

É ela que fala sem parar, e sorri, parece insinuar-se para ele… Mas está a fingir,

sem dúvida.

Vejam como a sua mão se crispa, nervosa, sobre o encosto da…? 

 Não… Que vão ver vocês, aí sentados, diante desta caixa… de uma estúpida

caixa de sapatos?

Que grande cena estão a perder!

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Ela está magnífica na sua dissimulação, e ele… ele é um puro enigma. 

Aquele olhar frio, aquele gesto sardónico, o porte altivo, a mão no bolso… e um

silêncio indecifrável… 

Algo assim… para que vocês façam uma ideia… 

Mas, claro: sem comparação com ele.

Certamente que é o tal Alejandro.

Que faz essa mulher? Enlouqueceu? Não posso crer.

De onde terá sacado essa pistola?

Agora é ele quem sorri, mas… que sorriso, senhores! 

Diz-lhe algo, creio… quase sem mexer os lábios. 

Este homem é de gelo: ela está a conduzi-lo, excitadíssima, e ele parece uma

estátua.

Avança para ela, a mulher recua com a arma apontada ao seu peito, ambosdescrevem um largo círculo em volta… 

Que bem feita está esta cena!

A luz vai contornando os seus movimentos… 

É pena não poder ouvir o diálogo: deve ser magnífico.

Claro que vocês… Não, não estou a brincar… Mas não consigo compreender o

que é que pensavam vir ver aqui.

É ali ao lado onde… 

(Soa um disparo. Leva as mãos ao peito, cambaleando. Olha com um gesto de

assombro para o lado, depois o público e, por fim, o palco vazio. Volta a olhar

o público e murmura, com expressão atónita:)

Era… isto? 

(Perde o equilíbrio e cai imóvel no chão.)

MONOLÓGICO 

O primeiro e principal é encontrar uma boa desculpa para dizer um monólogo

 precisamente aqui onde haja alguém que o possa escutar. Porque se não houver ninguém

 para o escutar, que sentido faria estar a incomodar-me em dizer um monólogo? É uma

questão de bom senso e não vale a pena tentar dar-lhe mais voltas. Sem entrar em

detalhes do porque sim ou porque não, este parece-me um sítio adequado, de modo que

só me falta encontrar uma desculpa razoável para vir aqui… Ainda que, na realidade,

nem sequer seja preciso, uma vez que já aqui estou. Ou não?... Mas não importa: que

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ninguém vá dizer depois que o monólogo era fraco porque não estava bem justificado

em todos os seus…

Já está, já a encontrei! A desculpa, quero dizer. Ou melhor, o motivo. Vim aqui

 por um motivo muito razoável, inclusivamente mais que razoável: imperioso. Vim aqui

 porque aí ao lado a situação estava a ficar insuportável. O meu sistema nervoso já não

aguentava tanta tensão e precisava de estar sozinha, isto é: sozinha comigo mesma e

com os meus pensamentos. Toda a gente precisa um pouco de solidão de vez emquando, digo eu, para por em ordem as suas ideias. Que ideias? Estas por exemplo. Ou

 por acaso não é verdade que estou a pôr algumas ideias em ordem?

Bem, este ponto já está resolvido, e não está mal de todo… Mas, agora que penso

nisso, necessito urgentemente outra coisa para o meu monólogo: alguém a quem o dizer.

Porque uma coisa é haver quem te escute, por casualidade, no sitio onde foste dizer o

teu monólogo, e outra é que tu o digas a alguém. Parece o mesmo mas não é o mesmo.

Por exemplo: se eu me ponho a falar sozinha no meu quarto e há um ladrão debaixo dacama, ele ouvirá o que digo, sim, mas eu não o estou a dizer para ele. É claríssimo.

Ora bem: quero eu dizer o meu monólogo a quem, casualmente, me está ouvindo

aqui, sim ou não? Ou seja: supondo que haja aqui… ladrões debaixo da minha cama,

 passo a expressão, A coisa não é simples, porque, se falasse com eles, a primeira coisa

que tinha de lhes perguntar é o que fazem aí… debaixo da minha cama, passo a

expressão, e como é que aqui chegaram, e quem são, e o que querem de mim, e…

adeus meu monólogo! Além do mais, não vou pôr-me a explicar-lhes as minhas

intimidades, a uns senhores que não conheço de lado nenhum. Não teria lógica. Ou seja,

que não, vamos:

Que não quero falar com quem, casualmente, me esteja a ouvir aqui… Está claro? 

De maneira que não tenho outro remédio senão encontrar quando antes alguém a

quem dizer o meu monólogo. Alguém a quem não tenha de pedir explicações e muito

menos dar explicações. Alguém, além do mais, que não me interrompa enquanto falo,

 porque então não seria um monólogo; seria um diálogo, se não me engano. E alguém,

 por último, que possa escutar as minhas intimidades com discrição e respeito, ou seja:

que as não vá contar por aí a toda a gente mal eu vire as costas. Que saiba ter a boca

fechada, como um morto… 

Olha que casualidade! Um morto! A isto chamo eu ter sorte. Como se fosse posto

aqui de propósito. Porque um morto há que o reconhecer, é o mais indicado para a

minha situação. Vi-o em muitas peças de teatro, clássicas e até modernas. Sim, sim: um

morto tem todas as vantagens, e nenhum inconveniente… 

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Bom: quase nenhum. Porque, ainda assim, também acaba por ser um pouco

 patético falar e falar com alguém que sabes que não está a ouvir uma única sílaba. De

certeza que haveria logo alguém que diria que o monólogo era fraco porque não estava

 bem justificado em todos os seus… 

Mas, que estou eu para aqui a dizer? Se, por casualidade, acontecesse que o morto

era alguém muito querido, a dor e o desespero poderiam alucinar-me até ao ponto de me

fazer esquecer que os mortos não ouvem uma única sílaba sequer. Isso é uma coisa queacontece até em vida, olá se acontece!... E se acontece na vida, que é esse o sítio em que

a gente faz coisas normais e correntes, com maior razão no teatro, onde as coisas, às

vezes, são um pouco mais estranhas que na vida. Por exemplo: alguns monólogos.

Mas este meu não seria nada estranho se eu, agora, ajoelhando-me junto a este

corpo exânime… diz-se assim? … Pois isso: ajoelhando-me junto a ele exclamasse:

“ Társilo! És tu?...” 

Calma, calma… Não nos precipitemos… Se acontece que este cadáver, digamos por acaso, o de Társilo, e se admitimos que Társilo é alguém muito querido, por muito

que me alucinem a dor e o desespero, eu não lhe vou explicar as minhas intimidades

assim, logo às boas, como se me tivesse encontrado com a minha vizinha. Não seria

lógico. Primeiro teria que passar uma boa meia hora a chorar, a desgrenhar o cabelo e,

sobretudo, a falar de Társilo e do seu problema.

O seu problema, sim: porque morrer não é uma coisa qualquer…Quero dizer, que

não é um detalhe sem importância que se possa resolver com quatro exclamações e duas

frasezitas de circunstância. Não, não: há que falar no assunto longa e extensamente, e de

diversos modos e maneiras.

A saber: primeiro, com surpresa, assombro, incredulidade, etc. De seguida,

negando a evidência, como se costuma dizer, sem querer aceitar que está morto,

inclusivamente com tentativas de reanimação. Por fim, quando já não houver dúvidas,

vêm as perguntas sobre as causas e razões do trágico acontecimento. Isso dá para muito,

normalmente. Mas a coisa não termina aí, não. Depois das causas da morte, não há mais

remédio que falar das consequências, é lógico… 

E entretanto, do meu monólogo, que é feito? Até quando tenho que esperar para

falar eu das minhas intimidades, para ordenar as minhas ideias, e tudo isso? Muito falar

do morto, sim, está muito bem… mas, será que nós os vivos não temos problemas?

Uma pessoa tem que gastar todo o seu tempo lamentando o que ao fim e ao cabo, já não

tem remédio?

Creio que o melhor é que este Társilo não seja ninguém muito chegado, não, não.

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 Nem um bocadinho sequer, bolas: alguém totalmente indiferente. Um morto que

tanto se me dá como se me deu, enfim… Claro que, nesse caso, nem merece a pena

conhecê-lo. É isso: Társilo é um perfeito desconhecido para mim, um morto entre

muitos. É mais: atrevo-me a dizer que este cadáver não é sequer o de Társilo, é um

cadáver completamente anónimo… Por outro lado, quem é esse tal Társilo, pode -se

saber? Conheço eu, por acaso, alguém que se chame assim? E quanto a este cadáver,

vendo melhor, não só não é de nenhum Társilo mais ou menos desconhecido; suspeitoque nem sequer é realmente um cadáver, mas sim alguém que se está a fazer de morto

 por algum motivo que prefiro ignorar.

(O cadáver, ofendido, levanta-se e sai de cena.)

 Não estarei a exagerar um pouco? Ao fim e ao cabo, quem me manda a mim

 preocupar-me tanto em justificar o meu monólogo? Nem parece meu. Por mim, dizê-lo bem, rápido e com carácter já é fazer o meu papel.

Temo o pior: que todo este trabalho que estou a ter para que a coisa resulte

razoável e lógica, e para que ninguém diga depois que… Pois isso: que tudo isto seja na

realidade o meu monólogo e já não me reste nem tempo nem vontade de falar das

minhas intimidades, nem para por em ordem as minhas ideias, nem… Quais ideias?...

Quais intimidades?...

Qual monólogo?

Por mais que pense, não me ocorre nada… Como se alguém me tivesse posto aqui

com as palavras certas para dizer o que disse, e já está… 

 Nada: nem uma ideia, nem uma intimidade… Só as mesmas tontices do costume

dando voltas e voltas nisso a que a gente chama… memória… 

E fizeram-me vir aqui para isto?

INSTRUÇÕES (II)

Esta é uma cena muda, mas muito eloquente.

Por uma vez, o autor teve o bom senso de se calar. Ou seja: deixou de falar ele

 pela boca dos personagens, e pô-los aí, frente a frente, em silêncio: um homem e uma

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mulher. Melhor dito: uma mulher e um homem. Captais a cambiante?... Bem, não

importa: há uma cambiante.

Uma mulher e um homem, frente a frente, em silêncio. Isto sim é que é teatro…

Quando digo “frente a frente”, falo em sentido figurado. Na realidade, podem estar

fisicamente de costas, ou lado a lado, ou a quatro patas, não importa… Mas, no seu

interior, estão cara a cara, frente a frente, enfrentando-se e atraídos por uma paixão

devastadora, por um fogo que…  Não, calma, ainda não… A paixão, neste momento, está escondida no seu

interior, oculta no mais profundo do seu ser.

Tu, sobretudo, Rodolfo, estás convencido que a odeias. Olha-a bem por

momentos: Ludovina é uma mulher odiosa, má, abominável. Durante três actos e meio

não fez outra coisa que destruir tudo o que há de nobre e valioso à tua volta. E a ti

mesmo, não o esqueças, também tentou meter-te no lixo, arrastar-te para os seus

abismos de depravação. É uma criatura perversa, egoísta, cruel, hipócrita, déspota,corrupta… 

Quieta, Ludovina: deixa que seja ele sozinho a imaginá-lo. No teatro, é tudo

questão de imaginação… Por outro lado, com a tua astúcia sem limites, soubeste

construir uma máscara angelical. Aparentemente, és uma mulher adorável, terna, pura,

delicada, generosa, leal, submissa, toda bondade e sacrifício, capaz de qualquer acto

heróico para procurar a felicidade dos demais, ainda que seja à custa dos maiores

sofrimentos… 

 Não, Rodolfo: disse “aparentemente”. Esta é a sua máscara. Ela, na realidade, é

um bicho mau. Concentra-te no retrato que te pintei antes, e espera instruções.

Vamos ver, Ludovina: que pensas tu de Rodolfo? Que sentes por ele? Olha-o aí,

com este ar abstraído, ausente. Parece ensimesmado, sumido em profundas reflexões,

em elevados pensamentos… Mas, na realidade, tu sabes que é um cretino, um estúpido,

um mole, um ti po medíocre e baboso, incapaz da menor decisão… Vez a sua figura

 balofa, mole, raquítica, o seu gesto vazio, imbecil, o seu aspecto adoentado e pouco

viril?

 Não te distraias, Rodolfo. Estou a motivar a Ludovina. Concentra-te no que te

disse dela, até que se converta em realidade para ti. No teatro, é tudo questão de

realidade.

Estás a seguir-me, Ludovina? Gravaste na tua mente essa imagem de Rodolfo?

Sentes como cresce o teu desprezo por essa ratazana disfarçada de homem? Não tens

vontade de lhe cuspir?

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Alto: nada de acções fáceis. Nesta cena, enquanto eu não disser outra coisa, tudo

tem de ser interior. Tereis que ferver por dentro sem mexer uma pestana, está claro? O

interior, um vulcão: por fora, um iceberg… Ou vice-versa. Captais a cambiante?... Fogo

e gelo… Gelo e fogo… Esse é o segredo do teatro. 

Que se passa contigo, Rodolfo? Rodolfo: não me estás a ouvir? Ficaste nervoso?

Relaxa-te, homem, relaxa-te… Há que estar concentrado, mas sem tensões… 

É isso… E tu também, Ludovina: relaxa-te… Vamos relaxar -nos todos… É isso:relaxação, relaxação… Muito bem… Não se pode representar sem estar relaxado. É esse

o segredo de… Nem tanto, Ludovina. Há que relaxar -se, mas sem perder a

compostura… nem a concentração…  É isso: concentração… relaxação…

concentração… relaxação… 

Já basta. Voltemos à cena. Acção. Tu, Rodolfo, estás no salão malva, alimentando

o teu ódio contra Ludovina. Como acabar com essa alimária antes que seja demasiado

tarde?... E tu, Ludovina, vens do jardim, maquinando a maneira de aniquilares esse anãodesprezível.

 No primeiro momento, não se vêem. Tu, Rodolfo, estás a olhar pela janela…

 Não: aí estará a chaminé. A janela está aí, mais ou menos… E tu, Ludovina, entras

olhando para trás, vendo como se afasta a tua pobre irmã… 

Cuidado! Disse “olhando”, e não andando para trás… Magoaste-te?... Bem,

sigamos… Já estais os dois em cena, no salão malva. Não vos vistes, mas deram-se

conta, sentiram-se, compreendeis? É como uma sacudidela, como uma vibração… 

Vamos ver se vos acostumais a saber quando falo no sentido literal, e quando falo

em sentido figurado. Por exemplo: se digo “Rodolfo tem dor de cotovelo”, estou a falar

em sentido literal. Ou seja, que te dói o cotovelo e pronto… Ora bem, se digo

“Ludovina arde de desejo”, não é necessário sacar de um isqueiro e pegar -se fogo.

Captais a cambiante?

Bem: voltemos à vibração. É um estremecimento interior, compreendeis?, um

sinal de alarme que vos faz captar a presença do outro, ainda antes de o ver. De acordo?

Andemos, pois. Rodolfo, à janela. Entra Ludovina, olhando para trás… Zás,

vibração!... Quietos aí. Já o temos: uma mulher e um homem, frente a frente. Nada

mais. Não há mais nada. O mundo não existe. O tempo parou. Apagam-se os ódios, o

desprezo desaparece, as velhas feridas saradas. Dois seres enfrentados, separados,

distantes, unem-se rapidamente no espaço interior. Brota uma chispa eléctrica e os seus

corações são como um só coração. O seu duplo silêncio expressa-se a uma só voz: “Que

é isto? Que se passa? Que é que sinto? Não pode ser… Aí está, sim… Mas, então,

 porquê? E o meu ódio? O meu desprezo? Como é possível? Não, não: é para lutar

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lutarei… Ou melhor, fugirei, sim, fugirei… Mas não posso. Algo me retém, me atrai,

me devora…” 

Que fazem aí os dois, a olhar para mim como dois idiotas? Os actores são vocês,

não eu. Tereis que representar. Eu só vos estou a dar a matéria prima. Vamos, vamos… 

Agora sim: vejam-se, olhem-se, que olhar! Que rios de luz nesse olhar! Como se

desvanecem todas as sombras que os ocuparam até a este momento da verdade! A

verdade de uma paixão oculta e proibida… Estás com lentes de contacto, Ludovina? Sim? Pois então, não compreendo por

que é que em vez de olhares para o Rodolfo, estás a olhar mais ou menos para o

roupeiro. Tens de cravar nele o teu olhar e descobrir, de imediato, a beleza da sua alma

e do seu corpo. Do seu corpo, sim: esse corpo felino, vigoroso, musculoso, excitante… 

Sim, já o sei… Mas, minha filha, já te tinha dito, é tudo questão de imaginação.

Imagina que , debaixo de isso, está um macho primitivo, selvagem, peludo, arrojado… 

 puro sexo, enfim.E tu também, Rodolfo… Já deste conta, da fêmea que é Ludovina? Adivinhas as

suas formas suaves e redondas? Notas como bate nela essa feminilidade profunda ,

ancestral, húmida? Cheiras o seu aroma cálido, os eflúvios densos da sua pele, das suas

zonas obscuras…? 

É isso, é isso… Uma força poderosa, irresistível, arrasta-vos um para o outro. É o

desejo, sim: a misteriosa chamada do desejo, mais sonora que todas as vozes, que todas

as palavras, que todos os princípios… é isso… arrasta-vos… atrai-vos pouco a

 pouco…pouco a pouco… um para o outro… um para… digo para o outro, Rodolfo, não

 para a porta… não tenhas medo, homem, que não te vai comer… é o desejo… tu deseja-

la… deseja-la… e ela também a ti… tu também Ludovina, tu também o desejas… esse

corpo… essas carnes… mas modera-te, mulher, controla esse arfar…é uma cena muda,

mas o público não está surdo… assim… assim… tudo muito contido… o vulcão e o

iceberg… é isso… realidade, muita realidade, é tudo uma questão de realidade… há que

sentir tudo muito dentro…deixar -se levar… sem medo… pouco a pouco… um até ao

outro… uma mulher e um homem… nada mais… nem mundo, nem tempo, nem… 

Oh! Como é possível, já tão tarde! Temos que terminar por hoje. Mas não

importa: a cena está resolvida. Boa música, a luz vai mudando para tons púrpura… e a

neve, que começa a cair pouco a pouco sobre vós… Isto sim, que é teatro!... 

Até à manhã, à mesma hora.

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O OUTRO

X.- Amanhece. Algo parecido à claridade, algo que ainda não é luz, mas que já a

anuncia, a promete quase e se insinua diante dos meus olhos de insónias… A noite foi

longa e não me perdoou nem um só dos seus minutos acordados, mas eu…

Y.- Um momento, um momento… Isso que estás a dizer, quem o diz? 

X.- Não te estou a perceber … 

Y.- Sim: quem diz isso que estás a dizer?

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X.- Quem há-de ser? Digo-o eu.

Y.- Tens a certeza?

X.- Será que não me estavas a ouvir?

Y.- Sim, claro… Ouço o que dizes. Mas, di-lo tu… ou di-lo outro?

X.- Que outro?

Y.- O autor.

X.- Como?Y.- O autor, sim. O que escreveu isso que dizes. Não é ele quem o diz?

X.- O autor?

Y.- Naturalmente. Não me queres fazer crer que não sabes que há sempre um autor.

X.- Que queres dizer?

Y.- Alguém escreve sempre o que dizemos, não? Pois esse é o autor.

X.- Sempre?

Y.- Vamos, vamos… Não te faças tonto. Os teu olhos de insónia… a noite longa… seusminutos acordados… Tudo isso foi escrito por alguém antes. 

X.- Mas sou eu que o digo. Meus olhos… A noite não me perdoou nem um só dos … 

Y.- Podes dizer o que quiseres, e sentir ardor nos olhos, e sofrer todo o peso da noite no

crânio…É outro quem o diz. Além do mais, não está a amanhecer…

X.- Mas eu estou aqui, e estou a falar… 

Y.- Outro, outro… 

X.- E movo-me e ouço-te… 

Y.- Outro… 

X.- E estás tu.

Y.- Outro.

X.- Outro? Tu também?

Y.- Eu também.

X.- E isso que dizes?

Y.- Também.

X.- O diz outro?

Y.- Outro, sim.

X.- O autor?

Y.- Sim: o autor.

X.- É o autor quem diz o que me disseste, quem me enche de duvidas, de angustia…? 

Y.- E de insónia, sim.

X.- Porquê?

Y.- Também é seu esse “porquê”. 

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X.- Porquê?

Y.- Deve ser um pobre tipo com insónias, cheio de dúvidas, de angústia… Ou talvez,

nem isso sequer. É possível que seja tudo inventado por ele.

X.- Porquê?

Y.- É possível que brinque a escrever estas palavras por puro prazer, por capricho, por

tédio… 

X.- É ele quem diz isto que estás a dizer, certo?Y.- Naturalmente.

X.- E quem diz isto que eu estou a dizer.

Y.- Sim… E quem dirá o que vais dizer a seguir. 

X.- É horrível… 

Y.- Por exemplo… Como podia ter dito: Tem graça… 

X.- Mas não tem nenhuma.

Y.- Talvez por isso não o tenha dito.X.- Então…? 

Y.- Então, quê?

X.- Que podemos fazer?

Y.- Fazer?

X.- Sim… Que podemos fazer para… nos livrarmos disto? 

Y.- Chateia-te ?

X.- Dá-me raiva.

Y.- Porquê?

X.- Dá-me raiva abrir a boca sabendo que nada do que digo o digo eu.

Y.- Bom… a solução é fácil.

X.- Que solução?

Y.- Calar… 

X.- Calar… É verdade. Calemo-nos de vez. Fechemos a boca como mortos. Nem uma

mais destas suas palavras que já não posso prenunciar sem ódio… 

Y.- Só que… 

X.- Quê? Quê?

Y.- … Quando nos calamos, também é dele este nosso silêncio… 

A PORTA

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…Ao fim e ao cabo, que me importa? Não tenho estado sempre sozinho? Não

estava sozinho ontem. E o mês passado, e todos estes anos? Eles comigo, sim, perto de

mim, aqui mesmo, partilhando os meus dias e as minhas noites… Sim: as minhas noites

também… E, no entanto, tão distantes, tão estranhos, tão alheios a mim e ás minhas

ansiedades… Já estava sozinho ontem, e o mês passado, e todos estes anos. Que importa

que se vão, que se tenham ido todos? Eu fui-me muito antes, desterrei-me no silêncio, e

ali, atrás daquela porta, nutri de solidão o meu longo exílio. Assim, pois, nada mudou.Foram-se um pouco mais, isso é tudo… Eu continuarei lutando sozinho aí, atrás dessa

 porta, recordando talvez, como num sonho, suas vozes e seus passos… 

(Ao público:)

Há um pequeno problema… Eu saio por essa porta, efectivamente, e a peça

acaba-se. É um final muito belo e muito triste. A luz vai descendo lentamente, excepto aque sai pela minha porta. Começam a ouvir-se vozes e passos apagados, distantes…

“como um sonho”, sim… e vai caindo devagar, “ muito devagar”, diz o autor, o pano… 

Mas há um problema… Para mim, claro: não para vocês… Vocês aplaudem, ou

não, depende, limpam-se as lágrimas, sonham… os muito sentimentais, claro…

levantam-se e vão-se embora. Saem para a rua e vão  para suas casas… ou a tomar um

copo, depende. Mas não se passa nada convosco. Quero dizer que continuam a ser

vocês, os mesmos que entraram aqui há pouco, os mesmos que estiveram a assistir à

 peça… e que agora me olham desde aí, tão tranquilos, talvez estr anhando um pouco, ou

não, quem sabe… 

Enquanto que eu… se saio por essa porta… Quero dizer: quando sair por essa

 porta… Porque terei que sair, mais cedo ou mais tarde, isso é claro: não vou ficar aqui

eternamente… Que iria eu conseguir com isso? Quando vocês se forem… porque é

seguro que se irão, mais cedo ou mais tarde, não faltaria mais nada… Quando vocês

tiverem ido, que faço eu aqui, querem-me explicar? Que sentido tem ficar aqui, como

um… como um… Bom, já me estão a entender. 

Pois, como lhes estava a dizer: quando sair por essa porta, acabou-se. Acabou-se

tudo. Não me refiro à peça, refiro-me a mim. Ou seja, que, quando sair por essa porta,

acabei… se me permitem a expressão. C’est fini. Finish. Finito. Non plus ultra.

Sim, claro: fica o actor. O actor que interpreta o meu papel. Ou seja: este que está

agora aqui, e que vos fala como se fosse eu. Mas ele não sou eu. Por favor: não vão

vocês confundir-nos. O actor é o actor… e eu sou eu. Algo muito diferente. Não tenho

nada contra ele, pelo contrário… Se não fosse por ele… Mas, as coisas são como são: a

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César o que é de César e etc., etc. Ele interpretou o meu papel, é certo, e nada mal, há

que reconhecê-lo… Por outro lado, ninguém menos indicado que eu para julgar o seu

talento artístico… se é que o tem. Coisa que não ponho em dúvida, desde logo… Só

que, claro, um papel tão complexo como o meu, tão profundo, tão rico em matizes…

Mas, vamos ao assunto: quem os interessou com o seu drama, quem é que os

manteve suspensos –  digamos –  durante as duas últimas horas, quem é que os comoveu

com a sua tenacidade, com a sua discreta rebeldia, com o seu calado sacrifício… fui eu.Eu e não ele.

Por favor não me interpretem mal. Estas palavras, ditas por mim, podem soar a

imodéstia, a vaidade, a orgulho… Nada mais afastado da minha maneira de ser: vocês

 puderam comprovar. Se alguma coisa me caracteriza é, precisamente, gostar pouco de

me gabar, dar pouco valor aos meus méritos… 

Porque ao fim e ao cabo, tais méritos não são meus, mas sim do autor que teve a

amabilidade de mos adjudicar. Eu, bem o sabe Deus, não fiz nada para os merecer.Encontrei-me com essas… digamos, sim, virtudes –  ainda que me fique mal dizê-lo -,

assim sem mais nem menos. Ora bem: o autor é o autor, e se ele me quis fazer assim,

quem sou eu para o contrariar? Lá terá as suas razões…que eu desconheço,

naturalmente. Já me custa bastante formular… que digo eu, formular?: imaginar

sequer… que só sou o fruto do talento do autor. E digo talento sem sequer me

considerar capaz de me pronunciar sobre a Arte Dramática, arte da qual não sou, ao fim

e ao cabo, mais que uma insignificante criatura… 

Dizia-lhes, pois, que eu não sou o actor… ainda que sem dúvida haja um ambíguo

 parentesco que nos une. Inclusivamente, atrevia-me a dizer, algo mais que um

 parentesco, mas… como chamá-lo? Que nome dar à nossa… simbiose? Enfim:

deixemos este espinhoso problema para os teóricos do teatro. Doutores há muitos, etc.

etc. E a mim preocupam-me problemas mais concretos, mais práticos. Tão concretos

como esta porta. Tão práticos como atravessá-la… ou não atravessá-la.

Porque o actor, claro… ou seja: este senhor que tão amavelmente me está

emprestando seu corpo e sua voz, suas inegáveis qualidades artísticas… O actor, digo,

não tem problemas. Ou, pelo menos, os seus problemas são, com toda a segurança, de

índole muito distinta. E certamente que, se lhes quer dar publicidade, pode dispor de

outros meios para isso. Enquanto que eu…se atravesso essa porta… se a tivesse

atravessado quando devia… 

O actor, sim, sai por aí, deixa a porta aberta para que entre a luz, respira fundo

e… Tão feliz! À espera que baixe o pano, que soem os aplausos… Porque de certeza

que vão soar, as pessoas gostam de aplaudir: depois de duas horas sem se poderem

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mexer… E então, que grande momento para o actor! Livre de mim, finalmente

desembaraçado desta embaraçosa e estranha identidade com quem, durante duas horas,

 partilhou os sapatos, voltando a entrar sorridente em cena, banhado pela luz. E essa

clamorosa crepitação de mãos, esse cálido trovão que o acolhe, esses olhares fervorosos

finalmente postos nele, nele, sem nenhuma dúvida já, sem miragens… 

Um pouco mais tarde, no seu camarim, suado ainda, esgotado e feliz, abraços,

 beijos, apertos de mão, palmadas nas costas… Posso imaginá-lo, senti-lo quase , vê-lotambém sentado diante do espelho, limpando do rosto a minha cor, as minhas feições, a

minha idade… as pegadas da minha passagem pela terra… 

E entretanto, eu, estou aonde? Que é feito de mim? Esta presença lúcida, ardente,

viva  –   ainda que deva reconhecê-lo, ferida já por uma espreitadela de agonia -, esta

espécie de ser que se agarra a vós mesmos para continuar existindo, que idade terá, qual

será a sua cor, que feições verá… e diante de que espelho? E no que toca aos sa patos, é

melhor nem falar : enormes… Isto é justo? Pode admitir -se alegremente tamanha falta deequidade? Dentro de umas horas, vocês dormirão tranquilamente em vossas casas; o

actor saboreará o mel do êxito entre os braços de uma doce amiga… ou amigo, cada um

com os seus gostos… E em troca, um vosso servidor, o meu sacrifício, a minha

rebeldia, a minha tenacidade, o meu desejo, a minha luta… toda esta rede subtil de

virtudes, de gestos, de palavras tão laboriosamente urdidas pelo autor  –   a quem

aproveito a ocasião para felicitar publicamente não só pelo êxito que, sem dúvida, vai

obter esta noite, mas também e sobretudo pelo primor e o rigor com que me criou a mim

e, devo reconhecê-lo, aos demais personagens desta peça, em especial ao Victor, meu

falso cunhado, e também ao velho mordomo, cujo solilóquio do segundo acto é um

 prodígio de … Mas, onde é que eu ia? 

Sim, sim: já sei… Falo e falo e falo para atrasar o inevitável: a minha saída por

essa porta e, com isso… a minha total dissolução, o meu imediato apodrecimento, o

meu naufrágio no pó do teatro.

Mas é humano, não? Que fariam vocês no meu lugar? Que fariam diante da porta

inexorável que vos os há-de aniquilar um dia qualquer, se pudessem recorrer a este

torpe, absurdo, ridículo, sim, e precário estratagema… para atrasar apenas por uns

minutos a sua fatal travessia ?

É humano, sim. Demasiado humano. E eu, por sorte ou por desgraça, também o

sou .À minha maneira, claro, que não é como a vossa. Que não é como a de ninguém,

nem sequer como a do actor, que esta noite misturou a sua vida com a minha para a

oferecer a vocês… 

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Esta noite? Disse esta noite? Sim, claro…. Mas quem diz esta noite, diz também

amanhã… E quem diz amanhã, diz depois de amanhã, sim… e o outro e o outro e dias e

semanas e meses…Dezenas , centenas de noites como esta, comigo aqui, tenaz, rebelde,

vitima e vencedor do sacrifício… E, quem sabe, talvez, logo, outro actor e outras

noites, outros dias, , e assim durante meses, anos, talvez séculos… E todos vocês terão

atravessado já a porta… E também este efémero actor, e sua doce amiga… ou amigo,

que mais dará já… E inclusivamente… inclusivamente… dói-me dizê-lo… o autor… Oautor, sim: também ele… também ele. 

Enquanto que eu… eu, à minha maneira, claro, à minha maneira, que não é como a

vossa… mas eu, ao fim e ao cabo… ao fim e ao cabo… 

(Sai, decidido, pela porta.)

MIRAGENS 

(Palco vazio. Dois personagens, X e Y, sentados em apertados bancos articulados

de lona, de costas para o público, um ao lado do outro. X vira-se discretamente

e olha o público.)

X.- (A Y.) Merda… Aí estão esses, outra vez. 

Y.- Tsssss! Nem olhá-los.

X.- Quê?

Y.- Que não os olhes.

X.- Por quê?

Y.- Queres levar com eles a noite toda?

X.- A noite? Como sabes que é de noite?

Y.- Ou lá o que for.

X.- E porque teríamos que levar com eles?

Y.- Vejamos… Tens a mente lúcida? 

X.- Mais ou menos.

Y.- Pois segue-me.

X.- Vamos.

Y.- Se os olhas, vê-los. De acordo?

X.- De acordo.

Y.- Se os vês, é porque estão aí. Positivo?

X.- Positivo.

Y.- Se estão aí, estão aí. Estás a seguir-me?

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X.- Estou a seguir-te, mas… 

Y.- Um momento. Estão aí, logo existem.

X.- Bom… Isso é já deduzir muito. 

Y.- Não me interrompas.

X.- Desculpa.

Y.- Existem… como nós. Mais ou menos. 

X.- Mais ou menos, sim.Y.- Ou seja, que estamos todos no mesmo barco, passo a expressão.

X.- Ya.

Y.- E, nesse caso, como não falar com eles?

X.- Tens razão.

Y.- E se lhes falamos, com que direito podemos recusar ouvi-los?

X.- Isso é verdade.

Y.- E já envolvidos na dança do falar e do ouvir, porque não tocar-nos, empurrar-nos, beijar-nos, morder-nos, dançar, emprestar-nos dinheiro, queimar o teatro, planear

viagens, fundar sociedades anónimas, promover campanhas contra…? 

X.- Basta, basta! (Silêncio.) É uma perspectiva… aterradora. 

Y.- Por isso: nem olhá-los.

X.- Sim, é melhor.

Y.- Podemos arranjar-nos sozinhos.

X.- Podemos?

Y.- Podemos tentar.

X.- Sozinhos?

Y.- Com o que há por aqui.

X.- (Olhando à volta.)  Não há grande coisa por aqui… 

Y.- Depende como se olha.

X.- Que queres dizer?

Y.- (Tira uns binóculos do bolso e olha para uma lateral.) Ás vezes… 

X.- Ás vezes, quê? Vês alguma coisa?

Y.- (Olha para a lateral oposta.) Quando menos esperas… 

X.- Quê? Que acontece? Esperar, o quê?

Y.- (Deixa de olhar e guarda os binóculos.) Nada. Não acontece nada. Esperar, nada.

Ás vezes, nada.

X.- Não viste nada?

Y.- Deserto.

X.- Temia-o. (Pausa.) Deserto. (Pausa.) Não é grande coisa.

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Y.- Menos é nada.

X.- Tu acreditas? Menos?

Y.- Quero dizer que, outras vezes, havia menos.

X.- Claro… Outras vezes nem isso.(Vai voltar-se para olhar o público, mas Y

interrompe-o com um enérgico murmúrio.)

Y.- (Após uma pausa.) Ainda aí estão? 

X.- Suponho que sim. (Pausa. Olha para ambas as laterais.) Deserto… Já estivestealguma vez no deserto?

Y.- Quase sempre.

X.- Disseram-me que os desertos… crescem. 

Y.- De noite.

X.- Como?

Y.- De noite. Crescem de noite. Os desertos crescem de noite.

X.- Quase tudo acontece de noite.Y.- Gostava de ver se é verdade.

X.- Se é verdade, o quê?

Y.- Que acontece qualquer coisa.

X.- Quando?

Y.- Esta noite.

X.- Como sabes que é de noite?

Y.- Quando aqui chegámos estava a anoitecer.

X.- Já faz muito tempo que chegámos.

Y.- Pensas tu.

X.- Sim.(Pausa.) Poderia inclusivamente estar já à amanhecer.

Y.- Impossível. Não passou tanto tempo desde que chegámos.

X.- As noites são muito curtas aqui… dizem. 

Y.- Conversa.

X.- Muito curtas e muito intensas. Por isso acontece tanta coisa. Chamam-lhe,

condensação nocturna.

Y.- Condensação?

X.- Sim: nocturna.

Y.- Nesse caso… (Levanta-se e vai até à lateral.)

X.- Onde vais?

Y.- Só olhar.

X.- Queres ver o quê? Não disseste que não há nada?

Y.- Alguma coisa há-de acontecer, segundo as tuas teorias. Até num deserto acontecem

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coisas. Mas para as ver, há que olhar.

X.- Não é ao contrário?

Y.- Ao contrário? Como?

X.- Sim, ao contrário: para olhar há que ver. 

Y.- Não entendo. 

X.- Como podes olhar alguma coisa que não vês?

Y.- Podes repetir?

X.- Imaginemos que existe alguma coisa… 

Y.- Sim.

X.- Algo que não vês… 

Y.- De acordo.

X.- E se não o vês, como o podes olhar? Diz: como podes olhar alguma coisa que não

vês? É evidente: primeiro ver, depois olhar.

Y.- (Após uma pausa.) Então, o quê? Olho ou não olho?

X.- Faz o que quiseres. Eu vou beber. (Saca um cantil.)

Y.- Tem cuidado.

X.- Sim.

Y.- Isto pode demorar.

X.- Já sei.

Y.- Depois não me venhas pedir a mim.

X.- Não pedirei. (Bebe.)

Y.- (Volta-se e olha para a sala.) E esses já se foram.

X.- De certeza? (Volta-se e olha para a sala.)

Y.- Sinal de que vai amanhecer. (Olha com os binóculos.)

X:- Bem te dizia eu.

Y.- (Olhando com os binóculos.) É estranho…X.- O quê? (Guardando o cantil.)

Y.- Não ficou nem o rasto.

X.- Onde?

Y.- (Indicando a sala.) Aí. Nem rasto. Como se… (Silêncio.)

X.- Como se… quê? 

Y.- …Tivessem sido uma miragem. 

X.- Aqui quase tudo são miragens.Y.- (Deixa de olhar a sala.) Inclusivamente nós?

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X.- Estamos todos no mesmo barco. Passo a expressão.

Y.- Ya.

X.- (Olha para Y, que o está olhando.) Estás a ver-me?

Y.- Olho-te. (Pausa.) E tu a mim vês-me?

X.- (Após uma pausa.) Se te dissesse que não, deixarias de estar aí?

Y.- De certo modo.

X.- E onde estarias?Y.- Estaria noutro deserto, muito parecido a este, à espera do amanhecer para seguir o

meu caminho.

X.- Atrás dos nómadas?

Y.- Atrás de qualquer miragem.

X.- Sozinho? (Silêncio.) Estarias sozinho?

Y.- Até no deserto acontecem coisas… quando as olhas. 

X.- Estarias sozinho?Y.- (Olha para uma lateral.) O sol está a subir. Começa a fazer calor. (Fecha a

cadeira.) 

X.- Sozinho?

Y.- E as dunas moveram-se esta noite. (Dirige-se para a lateral com a cadeira.)

X.- Estarias sozinho? 

Y.- O deserto cresce. (Sai.)

FECHAR OS OLHOS

Para chegar ao fundo da questão  –   e digo “fundo” e sinto que não é isso, que

começo mal, que continuo prisioneira de palavras imprecisas, vagas, mas que hei-de

fazer?!

Para chegar, pois, ao –  digamos –  fundo da questão… se é que de uma questão se

trata, e não de um simples jogo, de um capricho, de uma vulgar quimera ou desvario…

há que fechar os olhos.

Fechar os olhos, sim: encostar as pálpebras, mantê-las unidas à borda inferior

de… Mas é parvoíce estar a dar explicações. 

Toda a gente sabe fechar os olhos: é outra vez o mórbido prazer de introduzir

 palavras e palavras, venham ou não a propósito, palavras imprecisas, desnecessárias,

inoportunas, impertinentes… 

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E agora trata-se precisamente de calar.

Calar e fechar os olhos.

E deixar que o silêncio e a escuridão tomem corpo, peso, figura, neste nosso

tempo, neste tempo partilhado.

Assim simplesmente.

Apenas vos peço, pois, que fecheis os olhos.

Esta luz que me envolve, este corpo que estais a ver, e que é o meu, apenas estãoaqui para desaparecer um momento da vossa vista, para que nos apagueis com o mais

 pequeno gesto de que sois capazes.

O mesmo que a minha voz e as minhas palavras: não têm outra finalidade que

abrir caminho ao silêncio… Um duplo silêncio, uma vez que vai ser cego. 

E o gesto que o instala será meu: um gesto ainda mais simples que o que vos

 peço: basta-me deter este pequeno movimento de lábios, dentes, língua, alento… 

Fechar a boca, enfim como se diz vulgarmente, sabiamente.Pequeno gesto duplo de clausura: vós fechais os olhos e eu fecho a boca.

 Não há que ter medo: será um breve silêncio.

Passado um minuto, aproximadamente, tocarei esta campainha e podereis

recuperar a liberdade.

Emergir ao ar livre do olhar: abrir os olhos: ver-me.

Durante esse minuto de sombras não perdereis nada interessante: eu não vou fazer

nada, ninguém vai aparecer, não haverá nenhuma brincadeira de bom ou mau gosto

aproveitando o vosso desamparo.

Ora bem: como nos contos infantis, se alguém não cumprir o requisito mágico…

que se prepare para as consequências.

E o menos grave será, sem dúvida, não ter chegado ao  –   digamos  –   fundo da

questão…se é que de uma questão se trata.

Está tudo claro, não? Nenhuma dúvida, espero.

Então, vamos: fechai os olhos, por favor.

ABANDONOS

X.- Vamos, anima-te, reage. Não te ponhas assim.

Y.- Assim? Como?

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X.- Assim… prostrada, abatida, apática…

Y.- Pareço-te apática?

X.- Indiferente, insensível, adormecida.

Y.- “Dormir…” 

X.- Nada te afecta? Nada te estimula?

Y.- “…talvez sonhar.” 

X.- Antes não eras assim. Vibravas com a vida.Y.- “ E com um sonho…” 

X.- Tens de voltar a ti. Sair dessa apatia.

Y.- “… pensar que damos fim…” 

X.- Volta a olhar as coisas como antes.

Y.- Antes de quê?

X.- Recupera o desejo, a vontade de viver, de representar.

Y.- Antes de quê?X.- Antes.

Y.- Antes… Di-lo outra vez.

X.- Antes.

Y.- Outra vez.

X.- Antes.

Y.- Outra vez.

X.- Antes, antes, antes… 

Y.- Dás-te conta?

X.- De quê?

Y.- Essa palavra: antes. Dás-te conta?

X.- De quê?

Y.- Já não significa nada: antes… 

X.- Antes… 

Y.- Compreendes?

X.- Não há nada que compreender. Trata-se de viver.

Y.- Viver… 

X.- Sim: viver… E deixa quietas as palavras. 

Y.- Quietas?

X.- Dás-lhes voltas e voltas sem objectivo… até que as esvazias. É isso que se passa

contigo. E por isso te abandonas.

Y.- São elas.

X.- O quê?

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Y.- Elas, as palavras. Elas abandonam-me.

X.- Que queres dizer?

Y.- Chegam até mim submissas, sussurrantes, pedindo-me licença para entrar e ficarem.

Eu deixo-as aninhar, como pequenas larvas inocentes, crescem por todos os cantos

do meu corpo, alimentam-se com o meu sangue, com os meus sonhos, aprendem a

 brincar nos meus pulmões, navegam nos meus vasos linfáticos, assomam aos meus

olhos, aos meus lábios, saltam entre os meus dedos, fazem-me cócegas na pele,invadem-me a memória, enchem-na de ecos, de figuras, de aromas, revolvem-me

toda. Depois saem ao ar, ao sol, ao mundo, rodopiam à minha volta, vão e voltam

sem parar, catam no meio das coisas, mergulham fugazmente umas nas outras…

mas regressam sempre, saciadas, aos seus ninhos. Eu ouço-as murmurar ali,

contarem os seus segredos, rir ou entristecerem, inventar aventuras, ou melhor

exagerá-las; algumas mentem descaradamente, outras ficam caladas, retraídas, não

sei muito bem porquê. Mas há também as que voltam tarde: regressam quandoninguém as espera, armando grande escândalo ou, pelo contrário, quase

furtivamente, e estão excitadas, ou furiosas, ou atónitas, ou constrangidas,

ou exaustas, como se viessem de muito longe, como se tivessem sofrido algum

estranho encontro, alguma experiência constrangedora... E eu não as compreendo,

elas não me explicam nada, mas eu sinto que trazem o coração doente, que estão

cheias de raiva, de medo, de esperança, podres de abundância ou de miséria, que já

não são o que eram, que não se reconhecem entre si, que se evitam, fogem umas das

outras, atiram-se inclusivamente, tentam destruir-se, devorar-se, aniquilar-se, e

aniquilar-me a mim, sim, envenenam-me a alma, as vísceras, as fontes da

linguagem, o olhar… E pouco a pouco conseguem o seu propósito. A peste alastra,

invade as artérias, entra nos alvéolos mais secretos, irrompe nas

gengivas, infecta os desejos, os ossos, as promessas, os nomes, os pronomes…

Propaga-se por toda a parte a suspeita, o desalento, a gangrena, o pânico. E digo eu,

e sinto uma picada ; digo ponte, amanhã, e soa a oco; digo revolução, e cheira a

morto. Vão-se-me suicidando as palavras, sucumbem ao contágio sem a menor

resistência, atiram-se ao fogo, à loucura, ao vazio… Abro o dicionário e já

não há mais que milhares e milhares de pequenos féretros. Parece-te que falo, que

 pronuncio palavras? Não é assim: mastigo os seus cadáveres e cuspo-os de

seguida.

X.- Basta.

Y.- Não são palavras vivas: são só os seus cadáveres, compreendes? Ossos, penas,

escamas, carapaças, unhas… É isso que cuspo ao falar.

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X.- Basta, por favor.

Y.- E as que conseguem sobreviver, salvar-se do contágio, fogem em debandada.

Abandonam-me, por fim.

X.- Cala-te.

Y.- São elas quem me abandonam, me despovoam, me deixam deserta, rígida, morta… 

X.- Por piedade.

Y.- Prostrada, sim, abatida, sim, apática… Apática. X.- Tu assim o quiseste! (Sai.) 

Y.- Tu… outra palavra que me abandona.

PRESENÇA

Quando me for embora daqui, dentro de momentos, quando me for emboradefinitivamente, sentireis a minha falta.

Agora parece-vos pouca coisa a minha presença aqui, sem dúvida.

Os maquinistas desmontaram o cenário, levaram os móveis, os adereços, os

figurinos.

Isto quase já não é luz, comparado com o resplendor de há pouco, os subtis jogos

de cor e de sombra.

O palco está despido, vazio, inóspito. Uma caverna sem alma, um buraco oco

adormecido, não é verdade?

E, no entanto, ainda resto eu, e isso já é alguma coisa.

Falo-vos, movo-me, estou.

E ainda que me cale, ainda que me imobilize, continuarei a estar aqui, e isso já é

alguma coisa.

Quando me for embora, dareis conta.

Porque não só não haverá nada: como haverá além do mais, a minha ausência.

E dentro de muito pouco tempo, esta pequena ausência será enorme: dez ou cem

vezes mais impetuosa que a minha presença agora.

E o meu silêncio, mais forte que os meus gritos mais fortes: será um clamor

ruidoso aqui, na minha ausência.

Agora baixo a voz, falo-vos num murmúrio quase inaudível, faço  –   longas  –  

 pausas –  entre –  minhas –  palavras, digo pobres palavras, quase insignificantes: que, ele,

 parede, til, secar… 

E, no entanto, que apoteoses dos sentidos recordareis depois, com nostalgia.

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Viro as costas, movo apenas um dedo, o mais pequeno, saio quase de cena.

Bem pouca coisa é o que vos ofereço assim, receio eu.

Pois, com tudo isso, tenho a certeza: que plenitude de vida e sensações, que

espectáculo recordareis quando me for embora, dentro de momentos, quando me for

embora definitivamente.

Tradução Gil Salgueiro Nave

Outubro 20