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Gestos de Leitura

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Gestos de leitura

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universidade estadual de campinas

Reitor Fernando Ferreira costa

coordenador Geral da universidade edgar Salvadori de decca

conselho editorial Presidente

Paulo Franchetti Alcir Pécora – Arley Ramos Moreno José A. R. Gontijo – José Roberto Zan

Marcelo Knobel – Marco Antonio ZagoSedi Hirano – Yaro Burian Junior

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Gestos de leiturada história no discurso

organização

Eni Puccinelli Orlandi

S. Auroux, J. Authier-Revuz, A. Collinot, J. Dubois, F. Gadet, J. Guilhaumou, P. Henry, J. Leon, D. Maldidier, J.-M. Marandin,

F. Mazière, Cl. Normand, M. Pêcheux, R. Robin

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Índices para catálogo sistemático:

1. Análise do discurso 415 2. Leitura – estudo e ensino 372.4 3. Linguística 410

copyright © by eni Puccinelli Orlandi et al.copyright © 2010 by editora da unicamp

1a edição, 19942a edição, 1997

Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada emsistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos

ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.

isbn 978-85-268-0894-2

G335 Gestos de leitura : da história no discurso/ eni P. Orlandi (org.) [et al.] 3a ed. – campinas, sp: editora da unicamp, 2010.

1. Análise do discurso. 2. Leitura – estudo e ensino. 3. Linguística. I. Orlandi, eni P. II. Título.

cdd 415 372.4 410

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp

diretoria de tratamento da informação

editora da unicampRua caio Graco Prado, 50 – campus unicamp

cep 13083-892 – campinas – sp – BrasilTel./Fax: (19) 3521-7718/7728

www.editora.unicamp.br – [email protected]

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À memória de Denise Maldidier

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Sumário

Introdução: uma amizade firme, uma relação de solidariedade e uma afinidade teórica (Eni Puccinelli Orlandi) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

I. Elementos para uma história da análise do discurso na França (D. Maldidier) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

II. A história não existe? (P. Henry) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

III. Ler o arquivo hoje (M. Pêcheux) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

IV. Discurso e ideologia: bases para uma pesquisa (D. Maldidier, Cl. Normand, R. Robin) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

V. Lexicologia e análise de enunciado (J. Dubois) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

VI. Sintaxe, discurso: do ponto de vista da análise do discurso (J.-M. Marandin) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125

VII. o discurso político e a guerra da Argélia (D. Maldidier) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151

VIII. Efeitos do arquivo. A análise do discurso no lado da história (J. Guilhaumou, D. Maldidier) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169

IX. A língua francesa: pré-construído e acontecimento linguístico (A. Collinot, F. Mazière) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193

X. observações sobre a estabilidade de uma construção linguística — A completiva (F. Gadet, J. Leon, M. Pêcheux) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207

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XI. A hiperlíngua e a externalidade da referência (S. Auroux) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249

XII. Falta do dizer, dizer da falta: as palavras do silêncio (J. Authier-Revuz) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261

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introdução

uma amizade firme, uma relação de solidariedade e uma afinidade teórica

Organizar um livro coloca o organizador em um estado de op-ções que já é em si um recorte teórico e um compromisso com a interpretação. Certamente isso está presente neste meu gesto de homenagem a Denise Maldidier.

Esse gesto nasce do que conheci de Denise como analista do discurso e como avaliadora da produção que constitui esta mesma análise de discurso da linha francesa. Assim, quando digo “conheci” estou me referindo à minha própria avaliação do que Denise prati-cava em sua inscrição na análise do discurso, seja como analista, seja como historiadora dessa forma de reflexão sobre a linguagem.

Mas, antes de falar dessa afinidade teórica que praticamos juntas, cada uma a seu modo, quero me referir ao sentimento de amizade e a essa sensação já quase indescritível em nossos tempos, que é a solidariedade. Política e teórica.

Quando conheci Denise, ela me impressionou pela forma di-reta com que se situava na análise do discurso. Consciente do jogo institucional, ela sabia muito bem distinguir o que é política aca-dêmica restrita (e restritiva) e movimento de pensamento, ou melhor, prática reflexiva. E ela sabia, tanto quanto eu sei, que a análise do discurso, na sua prática disciplinar dos entremeios e das contradições, embora não se feche como uma ciência positiva, é o acontecimento teórico mais importante, depois do estruturalis-mo, na França. Claro que estou falando de teoria no domínio dos

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estudos da linguagem. E essa importância deriva do fato de que essa análise do discurso se propõe dar forma a um saber de lingua-gem que não deriva de aprendizagem, nem tem sua sede localiza-da seja num espaço da mente, seja num sistema fechado, seja na circunscrição do território social.

É sobejamente conhecido o fato de que a análise do discurso introduz, na reflexão sobre a linguagem, o sujeito e a história (toma-dos pela ideologia). Embora não se possa separar sujeito e história na produção dos sentidos, os estudos discursivos tomaram mais facilmente, depois da morte de M. Pêcheux, a direção das teorias do sujeito. Os que trabalhavam a questão do político recuaram para estudos gerais da civilização ocidental, ou retornaram à linguística de origem. Mesmo se tivesse conhecimento da necessidade de não se perder o político e a ideologia como dimensões definidoras da análise de discurso, não foram muitos os que conseguiram dar essa dimensão aos seus trabalhos, e a maioria derivou sobretudo para estudos sobre linguagem e sujeito, aliando, no campo da enuncia-ção, a linguística e a psicanálise, ou ainda, no mesmo campo da enunciação, voltaram-se para estudos que relacionassem sujeito e sociedade. Em relação ao que diz Gadet (La double faille, 1978), eu diria que foi o primeiro domínio, o relativo ao inconsciente — que se ocupa dos fatos problemáticos à descrição, mas que são visíveis à sintaxe, pondo em jogo o “eu” e tratando dos performativos, dos dêiticos, do discurso indireto etc. — o que se desenvolveu mais facilmente. E não é de estranhar, já que eles se inscrevem na relação com a linguística e com a psicanálise, campos de saber bem estabelecidos. O outro domínio, o da outra falha, que é o lugar da história, teve mais dificuldade em seu desenvolvimento. Porque tem de se confrontar com a diferença e com a inscrição do sujeito e da língua num processo histórico, trabalhando com fatos problemáticos que não são visíveis à sintaxe. Por seu lado, é aí que a especificidade da análise do discurso enfrenta o que produz necessariamente uma mudança de terreno teórica. É aí que a análise de discurso tem de trabalhar a opacidade do fato de linguagem não para eliminá-la, mas para compreendê-la. É nisto que reside fundamentalmente a diferença instalada pela análise do discurso

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introdução

em relação às outras teorias: ela pensa a compreensão (e não a des-crição finalista) do fato de linguagem, introduzindo explicitamente a noção de “funcionamento”. Essa minha insistência na noção de “funcionamento” foi um tema de longas conversas com Denise. Que pensava relacionar isso com a noção de “acontecimento”. De todo modo, como as noções de sujeito e de história, reinscritas nos estudos da linguagem, são os indícios do político e da ideologia, esses trabalhos produziram seus efeitos. Assim, os estudos sobre o sujeito, ainda que feitos com outra configuração, trazem, se postos na sua dimensão política e ideológica, desenvolvimentos importantes para a compreensão do discurso.

Denise insistiu, em sua produção, sobre o histórico no discurso. E daí, praticando tanto o seu conhecimento de analista do discur-so — em que a história se inscreve na língua para que ela funcione, isto é, produza sentido — como o de quem historiava a própria análise do discurso, ela tornou cada vez mais claro em seu trabalho o fato de que a noção de discurso, tal como é trabalhada na escola francesa, é uma noção fundadora. Isto, em meu trabalho, reverte para minha afirmação de que, na análise do discurso, a noção de ideologia é outra, a noção de história é outra, a noção de social é outra e assim por diante. Ou seja, a análise do discurso inaugura uma região teó-rica própria tanto em relação à linguística como em relação às ciên-cias sociais em geral. E dizer “própria” não significa negar suas rela-ções necessárias com esses outros campos disciplinares.

Essas nossas afinidades trouxeram uma forte relação de tra-balho em que tivemos a ocasião de não raros momentos de plena satisfação teórica. Tanto aqui no Instituto, na Unicamp, quando ela ministrou seus seminários como professora convidada (em que partilhou seu tempo com Francine Mazière), como em Paris, em situações menos formais ou em seminários.

Não posso deixar de evocar aqui duas situações em que Denise mostrou uma de suas mais firmes qualidades: a solidariedade teórica e política. A primeira vez foi em uma conferência que proferi na Maison des Sciences de l’Homme, a convite de P. Achard, com o tema “L’analyse de discours: un rapport au langage”, em 1987. Eu não conhecia Denise e ela foi assistir a minha conferência como

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especialista capaz de dizer o que é e o que não é análise do discurso. Era um pouco esta sua função nesse dia. Não foi uma conferência fácil. As pessoas se ressentiam já do desejo de que não houvesse mais o político, de que se apagassem as exigências (ferozes) teóricas de M. Pêcheux. E eu vinha falar justamente dessas coisas que as pessoas queriam esquecer para se darem a reflexões menos tensas. Pêcheux já havia morrido, o neopositivismo já se instalara e o neo-liberalismo se anunciava. Minha fala trazia a marca da América Latina, da análise do discurso de Pêcheux, das transformações do político. No final, depois de animada discussão, lá estava Denise, que se levantou para dizer que o que eu fazia era, sim, a análise do discurso da escola francesa. Essa fala reconhecia em meu trabalho uma posição legítima dessa forma de conhecimento. Em uma outra ocasião, esta na Universidade de Paris VII em um encontro sobre cidadania na França e no Brasil, que organizamos junto a Michelle Pernot e Pierre Ansart, Denise disse em um final solene que, com nossos trabalhos, mostrávamos que a análise do discurso não tinha que sofrer a banalização que vinha sofrendo na França e que podia ser, como tínhamos mostrado claramente em nossas pesquisas, um instrumento de descoberta para o historiador.

Mas nem tudo são afinidades. A análise do discurso tem caracte-rísticas muito definidas a esse respeito. Cada analista tem sua (ou suas) especificidade(s). Assim como a análise do discurso — porque toca a relação do sujeito com os sentidos e com o mundo — não é um lugar sem crises na instituição, também os analistas do discur-so têm uma relação crítica com o conjunto dos saberes discursivos. E isso se reflete no trabalho de cada um.

E aqui, sem dúvida, nossa diferença era a de como considerar, tanto na análise como na história da análise do discurso, a noção de formação discursiva. Esta é uma noção formadora da análise do discurso, na França, seja para a filosofia de M. Foucault seja para a proposta de análise de M. Pêcheux. Para mim, é a noção que permite ultrapassar as posições estritas do estruturalismo e guardar, no entanto, a perspectiva não conteudística, seja relativa ao sentido, ao sujeito ou à história. As formações discursivas, ao mes-mo tempo em que determinam uma posição, não a preenchem de

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introdução

sentido. Se, no início, essa noção foi compreendida — e continuo a pensar que este foi o caso dos discípulos, mas não o do próprio Pêcheux — como regiões fechadas e estabilizadas, logo se percebeu que elas são atravessadas (eu diria mesmo constituídas) pelas di-ferenças, pelas contradições e pelo movimento. Mas são um prin-cípio de organização para o analista e são parte da constituição dos discursos e dos sujeitos. As formações discursivas não são definidas a priori como evidências ou lugares estabilizados, mas como regiões de confronto de sentidos. Tem-se necessidade das formações discursivas como sítios de significância (na relação com a diferença), assim como se tem necessidade da noção de unidade, para a língua, apesar dos equívocos que a constituem. As formações estão em contínuo movimento, em constante processo de recon-figuração. Delimitam-se por aproximações e afastamentos. Mas em cada gesto de significação (de interpretação) elas se estabelecem e determinam as relações de sentidos, mesmo que momentanea-mente. E é isso que dá identidade ao sujeito e ao sentido. Esses pontos de “atracagem” — que não são apenas pontos, mas forma-ções — têm a forma histórica dos mecanismos ideológicos que se imprimem na relação com o simbólico. Não são jamais únicas, mas sempre plurais, diferentes. Desde o início, em meu trabalho, pro-pus que se considerasse, na constituição do sujeito e do sentido, como propriedade fundamental, a que liga paráfrase (o mesmo) e polissemia (o diferente) como forças que sustentam igualmente a relação com o simbólico. E fiz isso, inspirada no que M. Pêcheux diz da relação promovida pelas formações imaginárias entre as situações no mundo e as posições no discurso. E pelo fato de que no discurso há sempre um discurso outro, função da rela-ção de todo dizer com a ideologia (com a exterioridade, com o interdiscurso). O dizer, logo, nunca é só um. A noção de formação discursiva, tal como foi proposta por M. Pêcheux, a meu ver, nunca foi indiferente a isso. Ao contrário, é um modo de trabalhar essa multiplicidade e essa diferença inscrita na linguagem, uma vez que o múltiplo e o diferente se ordenam no discurso ao produzirem seus efeitos. E é dessa ordem que trata a análise do discurso.

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Também a noção de condições de produção nunca foi pacífica. E sofre(u) dos mesmos males positivistas e conteudísticos. O que são essas condições? Certamente não é a situação empírica que está em jogo, mas sua representação no imaginário histórico-social (mesmo sem perder de vista suas determinações concretas). A noção de arquivo e a de corpus, tantas vezes retomadas, são o traço dessa discussão. Em meu trabalho, distingui desde o início o contexto em sentido estrito (as circunstâncias imediatas) e o contexto em senti-do lato (as determinações histórico-ideológicas). E isso também podia ser lido em Pêcheux, que mostrava ser difícil pensar rigoro-samente a relação entre as condições e a ideologia. Não entendi os escritos da análise do discurso como instruções, mas como lugar de reflexão. Filiação teórica, no caso da análise do discurso pelo menos, não é aplicação. É movimento de pensamento e esforço teórico de construção de um objeto. O que Pêcheux estabeleceu com maestria foi um campo novo de questões, com extrema lucidez no campo da filosofia da ciência, e com alcance fecundo no território da reflexão sobre a linguagem, e no das ciências sociais. E isso, na maneira mesma com que esse autor escreveu, aparece sobretudo como um programa intelectual, em sua dimensão teórica, analítica e política. Sem esquecer que toda prática teórica é transformadora. O que significa muito particularmente quando a forma de conhecimento em questão é a própria linguagem, os sujeitos e os sentidos.

Em nossas diferenças, era esse gosto pelo programa de reflexão que nos unia. Que fez com que Denise me enviasse seu livro sobre Pêcheux (L’inquietute du discours) com a dedicatória: “Toujours Pêcheux, toujours l’analyse de discours, toujours l’amitié”.

Ao transcrever essas palavras de Denise, a tive mais perto, e talvez bastasse como forma de introdução a este livro em sua homenagem. Mas devo apresentar os textos que aqui se alinham. Textos dessas pessoas que se ligam, e se desligam, pela amizade, pela teoria, pelo político.

Este livro começa com um trabalho que apresenta a Denise Maldidier historiadora da análise do discurso. Ela aí define e ava-lia historicamente os percursos da análise do discurso, mostrando sua especificidade por propor aos linguistas um modo de abordar

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introdução

a relação entre língua e história, e por fazer os marxistas saírem do discurso da filosofia marxista da linguagem. Segue-se a este trabalho um texto do fundador da análise do discurso da escola francesa, que é M. Pêcheux. Nesse texto, que desloca a noção de arquivo para o campo do analista do discurso, Pêcheux vai mostrar como, na me-dida em que a falha, o deslize e a ambiguidade são constitutivos da língua, é do interior da própria sintaxe que irrompe a questão do sentido. Paul Henry, que é o autor do texto seguinte, desloca, na perspectiva do discurso, o que se pode entender por história: como não há fato ou evento histórico que não faça sentido, que não peça interpretação, que não reclame que lhe achemos causas e conse-quências, é nisso que consiste a história: nesse fazer sentido. Em um artigo da década de 1970, consagrado à relação entre discurso e ideologia, R. Robin, Cl. Normand, junto com Denise, procuram explicitar essa difícil relação, criticando uma certa compreensão de ideologia como “ocultação” e esclarecendo a pertinência, para o discurso, da concepção de ideologia como indício, traço, efeito de problemas reais. Considerado por Denise como um dos fun-dadores da análise do discurso, temos em seguida o texto de J. Dubois, de 1968, que relaciona as noções de enunciado e discurso explicitando as suas relações com a situação. Este estudo é seguido por um trabalho bastante atual de J. M. Marandin sobre as relações entre sintaxe e discurso, do ponto de vista da análise do discurso, desta vez falando da autonomia do plano discursivo e da necessi-dade de sermos capazes de representá-lo. Outro texto de D. Mal-didier, este bem mais antigo — um dos que inauguraram esta forma de análise — trata dos discursos de jornais franceses sobre a guerra da Argélia: nele ela propõe como programa de estudos justamente que se trabalhe com o fato de que a linguística orga-niza a ideologia, mas o significado social de ideologia escapa ao seu alcance. Em companhia de seu parceiro mais constante para essa tarefa, que é J. Guilhaumou, Denise tem neste volume um outro texto que explora bem diretamente essa relação entre dis-curso e história e que retoma a noção de arquivo e de corpus como centro da discussão nos estudos discursivos. Segue-se a este o texto de A. Collinot e F. Mazière, que procuram dar forma à rela-

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eni puccinelli orlandi

ção entre pré-construído e acontecimento linguístico, duas noções limítrofes da relação linguagem–história. Em uma abordagem que aprofunda essa relação, mas tomando como objeto um fato de língua — as completivas — temos então o trabalho de F. Gadet, J. Leon e M. Pêcheux. Segue-se a este o estudo de S. Auroux, que, tratando de uma noção como a de hiperlíngua, procura dar-lhe uma abrangência que permita flagrar a relação entre língua e discurso. Finalmente, o texto de J. Authier-Revuz, que, trabalhan-do um assunto que introduzi na análise do discurso com a reflexão que fiz sobre silêncio e que considero fundamental para a com-preensão desse terreno, o leva para suas (dela) preocupações espe-cíficas e explora a fala do dizer (eu diria o silêncio), e o dizer da falta, no campo das não coincidências enunciativas.

E assim pretendemos, em conjunto, com a equipe de traduto-res, fazer uma homenagem a Denise Maldidier, que contribuiu fundamentalmente para que a análise do discurso não só existisse, mas fizesse um sentido particular no campo das teorias da lingua-gem. Esse sentido, que partilhamos em nossos trabalhos, define a análise do discurso singularmente: um dispositivo teórico que visa apreender (analisar) gestos de leitura.

Eni Puccinelli OrlandiCampinas, dezembro de 1��3.

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I. Elementos para uma história daanálise do discurso na França*

Denise Maldidier(Paris X – Nanterre)

Pareceu-me que um retorno sobre a história da análise do discur-so na França podia ocorrer num encontro centrado sobre linguís-tica e materialismo. Desse retorno, desejo apontar, de imediato, os limites e as posições tomadas. Longe de procurar abarcar a to-talidade de uma história, já longa e complexa, destacarei aqui o início da disciplina, que situo como o momento de uma dupla fundação por Jean Dubois e Michel Pêcheux�. Este intuito diz dos limites (minha intervenção está amplamente focalizada sobre os anos �968-70); ele justifica, também, o privilégio atribuído à aná-lise do discurso numa volta reflexiva sobre o passado. Ocorre que, no quadro da intensificação das atividades ligadas à linguística no curso da década de sessenta, a análise do discurso, ao contrário do que acontece com outras práticas disciplinares, pode atribuir-se uma origem própria. Isso lhe confere, do meu ponto de vista, um estatuto histórico próprio. A dupla fundação, que descrevo através das figuras de Jean Dubois e Michel Pêcheux, nada tem de indi-vidual, ela coloca a questão sobre as condições de possibilidade de um campo novo dentro da conjuntura teórico-política do fim da

* “Publicado originalmente em Cahiers de Linguistique Sociale, no �7. Direitos para publicação cedidos por CNRS.”

� Dois textos assinalam, na minha opinião, esse momento: o discurso de encerramento pronunciado por Jean Dubois no Colóquio de Lexicologia Política de Saint Cloud (abril, �968) e o livro Análise automática do discurso, de Michel Pêcheux (�969).

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década de sessenta. Assim, minha intervenção — sem pretender qualquer totalidade histórica — deseja elucidar a especificidade largamente reconhecida da análise do discurso francesa�.

Colocarei, inicialmente, a questão sobre a dupla emergência de uma disciplina Análise do Discurso (doravante AD), no campo francês de pesquisa, em torno de dois polos simbolizados pelos nomes de J. Dubois e M. Pêcheux. Essa emergência paralela tem sido frequentemente notada. Trata-se, ao retomar esta questão, de analisar as condições de um encontro intelectual que não passa por um encontro pessoal; de procurar, além do terreno próprio do linguista e do filósofo, aquilo que explica essa dupla fundação, no contexto da conjuntura teórico-política da década de sessenta.

Pretendo depois, num segundo momento, focalizar o que é comum, analisar os elementos constitutivos da nova disciplina. Sugiro aqui que, para além das divergências teóricas considerá-veis, alguma coisa “pegou” no terreno francês, que se denominou análise do discurso. Na virada da década de setenta, se formou e se impôs, dentro de um sincretismo notável, uma espécie de vulgata: a análise do discurso dita francesa.

Dessa análise do discurso, que se instala na França na primeira metade da década de �970, tentarei, enfim, fazer uma breve avaliação histórica. Coloco aqui, sem mais justificações, que após a grande virada da conjuntura teórico-política iniciada em torno de �975, assiste-se, entre outros fenômenos, a uma total recomposição do campo da análise do discurso francesa. As divergências iniciadas regulam, desde então, o modo de reconstrução-reconfiguração da disciplina. A análise de discurso está presente em toda parte, mas a análise do discurso francesa está, talvez, presente de forma mais intensa.

� Louis Guespin (Langages, 4�, �976) propôs “entender a escola francesa de análise do discurso como uma frente científica original”. Eu prefiro enfatizar a especificidade reconhecida para a análise do discurso francesa em todo lugar, o que se comprova pelo interesse que ela despertou em numerosos países da América Latina. F. Gadet, em L’analyse de discours et l’interprétation (à propos de therapeutic discourse), DRLAV, �7, �98�, apresenta um quadro contrastivo opondo a análise do discurso francesa e a análise do discurso anglo-saxã.

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elementos para uma história da análise do discurso na frança

Horizontes comuns

Nos anos que precedem �968-70, J. Dubois e M. Pêcheux, indepen-dentemente um do outro, elaboram o que vai se chamar análise do discurso. Ao tomarmos o viés de dupla narração, muito sucinta, é a diferença, antes de tudo, o que se destaca. Jean Dubois, linguista, é um universitário. Seu trajeto é o de numerosos linguistas franceses da época: estudos literários, gramática, depois passagem para a linguística. É já um grande nome da linguística francesa, um lexi-cólogo reconhecido. Ele participa de todos os empreendimentos que, na década de sessenta, manifestam o espírito de conquista da linguística: da elaboração de dicionários à criação de revistas (assim é criada Langages, em março de �966). Michel Pêcheux, por sua vez, é filósofo. Desde o meio do decênio, ele se encontra envolvido nos debates teóricos que se desenvolvem na rua Ulm, em torno do marxismo, da psicanálise, da epistemologia (cf. Althusser, Les cahiers pour l’analyse). Ele situa-se, de início, no terreno da história das ciências. Passando a pesquisador no CNRS num laboratório de psicologia social, sua reflexão se inscreve de imediato nas questões da época sobre as ciências humanas. Uma figura essencial aqui, que desempenhará posteriormente um papel importante no pensamento de M. Pêcheux, é a de Michel Foucault.

O terreno, a situação, as preocupações os distinguem. J. Dubois e M. Pêcheux, entretanto, são tomados em um espaço comum: aquele do marxismo e da política. Na contramão das ideias dominantes, eles partilham as mesmas evidências sobre a luta de classes, sobre a história, sobre o movimento social. Não foi J. Dubois, por acaso, quem aplicou de uma maneira pioneira os métodos da análise estrutural a um dos episódios mais fortes da história da luta de classes na França, a Comuna? Como muitos intelectuais na época, sua participação no campo da política toma a forma de adesão ao Partido Comunista Francês. Tudo isso, sem excluir as diferenças profundas, desenha um horizonte comum.

Sobre esse fundo comum, o crescimento da linguística na con-juntura teórica desempenha um papel decisivo. Ela torna inteligível

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o paralelismo de seus projetos. Os anos �960, convém lembrar aqui, são os anos do estruturalismo triunfante. A linguística, promovida a ciência piloto, está no centro do dispositivo das ciências�. O otimis-mo é evidente: “A linguística [está escrito na apresentação do no � de Langages] chegou a esse momento feliz, em que já é uma ciência bem fundada, sem deixar, no entanto, de ser uma pesquisa viva, que enfrenta os problemas ainda sem solução”. O projeto da AD nasce dentro desse contexto. Limitando-nos estreitamente ao que um e outro dizem, o elo entre a expansão da linguística e a possibilidade de uma disciplina de análise do discurso é explícito. Podemos, até, ficar surpresos de vê-los ansiar, com diferenças consideráveis, por uma espécie de idêntica esperança científica. Esta esperança, nos anos em consideração, é estimulada pelo evento da chegada da gramática gerativa ao campo francês. Num momento em que emerge o sentimento dos limites e do relativo esgotamento do estru-turalismo, tudo se passa como se a revolução chomskiana trouxesse um segundo sopro e abrisse um futuro radioso para a linguística4. Se a AD ganha consistência, isto se dá tanto do lado de J. Dubois quanto de M. Pêcheux, sob o signo da ciência linguística.

Desse modo, marxismo e linguística presidem o nascimento da AD na conjuntura teórica, bem determinada, da França dos anos �968-70. Muito naturalmente o projeto se inscreve num objetivo político: a arma científica da linguística oferece meios novos para abordagem a política. Evidentemente com modulações diferentes, J. Dubois e M. Pêcheux despendem um ímpeto militante em suas empreitadas, eles são tomados pelo sentimento de uma urgência

� Os trabalhos dos historiadores da linguística fornecem elementos valiosos sobre esse perío-do. Citemos: Cl. Normand, Linx, 6, �98�; J. Cl. Chevalier et P. Encrevé, “La création de revues dans les années 60: matériaux pour l’historie récente de la linguistique en France”, in Langue Française, 6�, �984. Dentro de um domínio específico, o trabalho de D. Coste, cuja indicação agradeço a B. N. Grunig, constitui uma mina de informação: “Institution du français langue étrangère et implications de la linguistique appliquée”, thèse de doctorat d’État, Paris 8, �987. Uma abordagem mais geral foi proposta por Th. Pavel: Le mirage linguistique (Minuit, �988). Embora este livro constitua uma contribuição interessante, a história intelectual da França “estruturalista” fica ainda por fazer.

4 Cf. por exemplo: J. Dubois, “Struturalisme et linguistique”, in La Pensée, ��5, outubro, �967; M. Pêcheux, Anályse automatique du discours, �969, p. �� ss.