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Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco

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Pernambuco_Mar 07

E xpediente

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EXPEDIENTE

SUMÁRIO

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EDITORIAL

A marca parisiense de Cícero Dias não ficou apenas na euforiaartística da agitação francesa. O pernambucano levou para lá osaudável costume nordestino do compadrio. Da amizade no peitoguardada a sete chaves e que ninguém - nem nenhum fato novo -pode quebrar. Por isso tornou-se compadre de Picasso, chamando-opara apadrinhar a filha. É este, portanto, o enfoque que o Pernam-buco dá, nas página quatro e cinco, à homenagem que presta ao pin-tor brasileiro, no instante em que se comemora o seu centenário. Paratanto procurou o texto requintado de Fernando Monteiro e da jornal-ista Mariana Oliveira, também críticos de arte, além da competênciade Jaíne Cintra, na diagramação renovadora. Um enfoque que fogeao ensaio costumeiro e linear.

Na capa, onde a logomarca do jornal apresenta-se flutuante,oferecendo-se não somente como uma simples logomarca, mas com-pondo a própria diagramação, de forma a provocar o leitor - nadafixo, nada estático, tudo em movimento - um autógrafo de Picasso nobilhete rápido que escreveu a Dias, numa prova da intimidade e dasimplicidade que marcaram a amizade entre ambos. Na página três, aanálise de Luzilá Gonçalves Ferreira sobre o romance da pop-starFernanda Young.

Mas as surpresas desta edição não param aí: Micheline Verunsckiescreve, na página onze, uma interpretação das letras de Cordel deFogo Encantado, banda que conquista cada vez mais a admiraçãopopular sem perder de vista a qualidade. Sobretudo a literária. Lite-ratura, aliás, que sempre apaixonou o paranaense Rogério Pereira, edi-tor do jornal Rascunho, de Curitiba, um dos publicações mais polêmi-cas do Brasil. Ele concede, na página dez, entrevista ao editor-executi-vo Shineider Cappergianni. E tem mais ainda, para o leitor exigente: oespecialista Rodrigo Carreiro escreve, na página nove, matéria muitocuriosa sobre a mexicanização do cinema americano. Na página oito,Haymone Neto, da banda Mellotrons, repensa o clássico álbum OkComputer, do Radiohead.

Nas páginas seis e sete, uma verdadeira provocação com matériaassinada por Renata Amaral sobre os nossos hábitos alimentares, àsvezes com desorganização e indisciplina. Lembrando a inda o contoelaborado de Joana Rozowykwait, na décima segunda página. Noencarte Saber ++, editado por Marilene Mendes, o jornal lembra aRevolução de 1817, com enfoque na obra de Paulo Santos.

Nota: Por equívoco, na edição de fevereiro.2 o Pernambuco grafou a pa-lavra �assessor� com �c�, quando na verdade exigia os dois �ss�.

Boa leitura,Raimundo [email protected]

Irritante- Luzilá Gonçalves Ferreira desmontao relançamento da estréia literária da escrito-ra-popstar Fernanda Young

Compadre Picasso - O que Picassoensinou ao pernambucano Cícero Dias

Das razões dosabor - Ensaioanalisa como ogosto é condiciona-do pela cultura epor afetos

Ainda temos medo - Após uma década, oCD OK Computer do Radiohead continuaretratando as paranóias da sociedade

Tu me acostumbrastes - Como o mexicano passou a dar as cartas noimpério de Hollywood

�Computador, impressora e uma pilhade livros - Uma conversa com o editordo Rascunho, Rogério Pereira

Se ela quer voar, é porque tem asas, éporque tem asas - Uma olhada pelasinúmeras referências do Cordel doFogo Encantado

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Inéditos - Carolina, conto da escritora JoanaRozowykwiat, do coletivo Vacatussa

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GOVERNADOR DO ESTADO

EEdduuaarrddoo CCaammppooss

VICE-GOVERNADOR

JJooããoo LLyyrraa NNeettoo

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL

RRiiccaarrddoo LLeeiittããoo

Alexandre Belém

SECRETÁRIO GRÁFICO

GGiillbbeerrttoo SSiillvvaa

REVISÃO

GGiillssoonn OOlliivveeiirraa

EQUIPE DE PRODUÇÃO

AAnnaa CCllááuuddiiaa AAlleennccaarr,, EElliizzaabbeetteeCCoorrrreeiiaa,, EEmmmmaannuueell LLaarrrréé,, EElliisseeuuBBaarrbboossaa,, JJoosseellmmaa FFiirrmmiinnoo,, JJúúlliiooGGoonnççaallvveess,, LLííggiiaa RRééggiiss,, MMiicchheelllleeVVaanneessssaa ee RRoobbeerrttoo BBaannddeeiirraa

Circulação mensal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Distribuído exclusivamente pela

Companhia EEditora dde PPernambuco -CCEPERua Coelho Leite, 530, Santo AmaroCEP 50100-140

Fone: (81) 3217.2500� FAX: (81) 3222.5126

PRESIDENTE

FFlláávviioo CChhaavveess

DIRETOR DE GESTÃO

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DIRETOR INDUSTRIAL

RReeggiinnaallddoo BBeezzeerrrraa DDuuaarrttee

GESTOR GRÁFICO

SSííllvviioo MMaaffrraa

EDITOR

RRaaiimmuunnddoo CCaarrrreerroo

EDITOR EXECUTIVO

SScchhnneeiiddeerr CCaarrppeeggggiiaannii [email protected]

EDIÇÃO DE ARTE

JJaaíínnee CCiinnttrraa

EDIÇÃO DE IMAGENS

NNéélliioo CChhiiaappppeettttaa

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C rítica

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a apresentação do livro avisa-se ao leitor " Prepare-se para rir e chorar ao mesmo tempo." E afir-ma que ele está diante de uma narrativa que tem efeito refrescante. Pois eu acho que me enganei

de livro. Não encontrei nada disso nesse Vergonha dos pés, editado em 1996 e reeditado, não sei porque razão, no ano passado. A autora, Fernanda Young, é roteirista de televisão e de filmes, jornalista,daí, imagino, o apoio da mídia, inter-net, imprensa.

Mas nem todo mundo se deixalevar pelo que dizem certos meios deinformação. Em artigo no jornalRascunho, editado em Curitiba, PauloPolzonoff Jr. aponta a jovem autoracomo personificação da "decadênciada literatura urbana e feminina noBrasil". Devagar com o andor, meu caroPaulo. Tem muita escritora lançandono mercado obras onde a genteencontra uma voz forte, um trabalhosério com a escrita, uma visão críticaou fraterna de mundo, uma re-criaçãodo real, de modo a causar em nósuma espécie de bem-estar, umimpacto, aquele espanto diante dealgo acrescentado ao mundo e quenos deu prazer. Nem vou citar os últi-mos livros de Marina Colasanti, deAdélia Prado, autoras consagradas eonde a gente sempre encontra alimen-to, como o exigia André Gide de umbom livro. Citaria apenas os nomes deLetícia Malard, Cíntia Moscovich ePaula Glenadel, exemplos da vivaci-dade, seriedade, criatividade, do queescrevem as mulheres brasileiras nosúltimos meses, no romance e na poe-sia.

Normalmente só escrevo sobrelivros que, de algum modo, me sur-preenderam, me tornaram feliz pelomenos no tempo de uma leitura, comaquela alegria de que falam Borges eÉrico Veríssimo diante de um textoliterário. Mas os redatores desteSuplemento me pediram para escreveralgo sobre esse romance de FernandaYoung, com quem não me interessacomprar uma briga, mesmo porque éalguém que investiu sua vida na litera-tura e afins, o que só pode suscitarnossa simpatia, num país onde somosrelativamente poucos a cuidar dessascoisas.

Um romance se estrutura por umfio condutor, personagens bem deline-ados, a recriação coerente de umespaço, um tempo, mesmo imagi-nários. A impressão que se tem aqui éque a autora não sabe para onde vai e para lá quer levar o leitor. Uma pena. É verdade que a própriaautora confessa, no primeiro capítulo do livro, que é difícil narrar uma personagem tão extrema quan-to Ana. Mas o desafio de qualquer romance é esse mesmo: narrar personagens extremos. Verdade tam-bém que, sob os desajeitamentos um tanto ingênuos, vez em quando se sente a possível existência deum autor - como na carta que Ana, a personagem feminina, escreve a Jaime no final do romance.Espero que nos romances posteriores Fernanda tenha podido se livrar do lugar comum, da banalidadede imagens, da tolice de certas frases, de comparações que buscam ser originais mas que nada indicamalém do mau gosto. Falar da alma de quem se decepcionou com o amor como de "uma blusa de sedafurada por um broche" é de matar. Como é tola a aproximação da imagem de um grande amor a "umboneco suspenso por fios de náilon.". De Ana bêbada escreve a autora: "A cabeça dela girava, acelera-da, em círculos de raciocínios negativos". Uff! E nem falo dos cacófatos, tropeços de estilo a que não sedá hoje muita importância, mas que têm seu peso, e incomodam o leitor exigente. Aqui abundamexpressões como " ela tinha", ou " como ela", traços a evitar, e para os quais chamavam atenção nossasprofessoras, nos distantes tempos em que a " escola era risonha e franca".

Há tanto belo livro por aí afora aguardando e merecendo uma reedição. Mas talvez seus autores nãosejam tão "midiáticos" quanto a romancista desse Vergonha dos pés. Aliás, não entendi bem a relaçãodo título, do capítulo em que se fala dos pés e o resto do romance. Enfim...

Na apresentação do livro avisa-se ao leitor " Prepare-se para rir e chorar ao mesmo tempo." E afirma que ele está diante de uma nar-rativa que tem efeito refrescante. Pois eu acho que me enganei de livro. Não encontrei nada disso nesse " Vergonha dos pés", edita-do em 1996 e reeditado, não sei por que razão, no ano passado. A autora, Fernanda Young, é roteirista de televisão e de filmes, jor-nalista, daí, imagino, o apoio da mídia, internet, imprensa.

Mas nem todo mundo se deixa levar pelo que dizem certos meios de informação. Em artigo no jornal Rascunho, editado emCuritiba, Paulo Polzonoff Jr. aponta a jovem autora como personificação da "decadência da literatura urbana e feminina no Brasil".Devagar com o andor, meu caro Paulo. Tem muita escritora lançando no mercado obras onde a gente encontra uma voz forte, umtrabalho sério com a escrita, uma visão crítica ou fraterna de mundo, uma re-criação do real, de modo a causar em nós uma espé-cie de bem-estar, um impacto, aquele espanto diante de algo acrescentado ao mundo e que nos deu prazer. Nem vou citar osúltimos livros de Marina Colasanti, de Adélia Prado, autoras consagradas e onde a gente sempre encontra alimento, como oexigia André Gide de um bom livro. Citaria apenas os nomes de Letícia Malard, Cíntia Moscovich e Paula Glenadel, exemplosda vivacidade, seriedade, criatividade, do que escrevem as mulheres brasileiras nos últimos meses, no romance e na poesia.

Normalmente só escrevo sobre livros que, de algum modo, me surpreenderam, me tornaram feliz pelo menos no tempode uma leitura, com aquela alegria de que falam Borges e rico Veríssimo diante de um texto literário. Mas os redatores desteSuplemento me pediram para escrever algo sobre esse romance de Fernanda Young, com quem não me interessa comprar uma briga,mesmo porque é alguém que investiu sua vida na literatura e afins, o que só pode suscitar nossa simpatia, num país onde somos rel-ativamente poucos a cuidar dessas coisas.

Um romance se estrutura por um fio condutor, personagens bem delineados, a recriação coerente de um espaço, um tempo,mesmo imaginários. A impressão que se tem aqui é que a autora não sabe para onde vai e para lá quer levar o leitor. Uma pena. Éverdade que a própria autora confessa, no primeiro capítulo do livro, que é difícil narrar uma personagem tão extrema quanto Ana.Mas o desafio de qualquer romance é esse mesmo: narrar personagens extremos. Verdade também que, sob os desajeitamentos umtanto ingênuos, vez em quando se sente a possível existência de um autor - como na carta que Ana, a personagem feminina, escrevea Jaime no final do romance. Espero que nos romances posteriores Fernanda tenha podido se livrar do lugar comum, da banalidadede imagens, da tolice de certas frases, de comparações que buscam ser originais mas que nada indicam além do mau gosto. Falarda alma de quem se decepcionou com o amor como de "uma blusa de seda furada por um broche" é de matar. Como é tola a aprox-imação da imagem de um grande amor a "um boneco suspenso por fios de náilon.". De Ana bêbada escreve a autora: "A cabeça delagirava, acelerada, em círculos de raciocínios negativos". Uff! E nem falo dos cacófatos, tropeços de estilo a que não se dá hoje muitaimportância, mas que têm seu peso, e incomodam o leitor exigente. Aqui abundam expressões como " ela tinha", ou " como ela",traços a evitar, e para os quais chamavam atenção nossas professoras, nos distantes tempos em que a " escola era risonha e franca".

Há tanto belo livro por aí afora aguardando e merecendo uma reedição. Mas talvez seus autores não sejam tão "midiáticos" quan-to a romancista desse Vergonha dos pés. Aliás, não entendi bem a relação do título, do capítulo em que se fala dos pés e o resto doromance. Enfim...Um romance se estrutura por um fio condutor, personagens bem delineados, a recriação coerente de um espaço,um tempo, mesmo imaginários. A impressão que se tem aqui é que a autora não sabe para onde vai e para lá quer levar o leitor.Uma pena. É verdade que a própria autora confessa, no primeiro capítulo do livro, que é difícil narrar uma personagem tão extremaquanto Ana. Mas o desafio de qualquer romance é esse mesmo: narrar personagens extremos. Verdade também que, sob osdesajeitamentos um tanto ingênuos, vez em quando se sente a possível existência de um autor - como na carta que Ana, a person-agem feminina, escreve a Jaime no final do romance. Espero que nos romances posteriores Fernanda tenha podido se livrar do lugarcomum, da banalidade de imagens, da tolice de certas frases, de comparações que buscam ser originais mas que nada indicam alémdo mau gosto. Falar da alma de quem se decepcionou com o amor como de "uma blusa de seda furada por um broche" é de matar.Como é tola a aproximação da imagem de um grande amor a "um boneco suspenso por fios de náilon.". De Ana bêbada escreve aautora: "A cabeça dela girava, acelerada, em círculos de raciocínios negativos". Uff! E nem falo dos cacófatos, tropeços de estilo a quenão se dá hoje muita importância, mas que têm seu peso, e incomodam o leitor exigente. Aqui abundam expressões como " ela tinha",ou " como ela", traços a evitar, e para os quais chamavam atenção nossas professoras, nos distantes tempos em que a " escola erarisonha e franca".

Há tanto belo livro por aí afora aguardando e merecendo uma reedição. Mas talvez seus autores não sejam tão "midiáticos" quan-to a romancista desse Vergonha dos pés. Aliás, não entendi bem a relação do título, do capítulo em que se fala dos pés e o resto doromance. Enfim...Um romance se estrutura por um fio condutor, personagens bem delineados, a recriação coerente de um espaço,um tempo, mesmo imaginários. A impressão que se tem aqui é que a autora não sabe para onde vai e para lá quer levar o leitor.Uma pena. É verdade que a própria autora confessa, no primeiro capítulo do livro, que é difícil narrar uma personagem tão extrema

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Luzilá Gonçalves Ferreira

A jovem escritora Fernanda Young na lente da análise literária

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Irritante!!

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ícero Dias e Pablo Picasso foram mais do que amigos com interesses afins, deadmiração e amizade elevada ao compadrio.

Os dois se conheceram em 1937, quando o pernambucano de Escada procuravaalcançar, em Paris, os degraus mais altos do gosto moderno firmado pela chamada��Escola de Paris��

Logo ao chegar à capital francesa, o ainda jovem Cícero (tinha 30 anos) acusaria,de imediato, o impacto de Guernica, o vigoroso painel - que viria a se tornar mundial-mente conhecido - no qual Picasso faz a denúncia da brutalidade da guerra em gerale, em particular, do bombardeio massivo de uma cidade tomada como alvo de treina-mento das forças aéreas fascistas.

Recém-chegado do Brasil bucólico, Dias pôde contemplar a grande obra ainda noatelier do catalão que ele havia encontrado, primeiro, no ambiente dos cafés parisien-ses daquela época, freqüentados por artistas e boêmios que participavam de ummomento único, de revelação e descobertas cuja intensidade nós hoje mal podemosimaginar, nestes tempos de diluição e pouco talento autêntico.

Tudo leva a crer numa afinidade, desde logo, pessoal e de temperamento, frater-na e artística, entre os dois pintores. Em 1938, Cícero teria o prazer de receber Picassocomo um dos mais ilustres visitantes da sua mostra (a primeira) na galeria JeanneCastel. O já consagrado Pablo deixou consignada a admiração das ��cores tropicais��docolega ��pintor e poeta��. E o que Cícero ficaria devendo à ��escola�� informal que foi,para ele, privar da amizade com o gênio espanhol (e com Matisse também), pode serperfeitamente constatado em algumas obras pintadas pelo brasileiro já no começo dosanos quarenta: ��Mulher Sentada com Espelho�� ��Mulher na Praia��etc.

Na concepção desses quadros, nas pinceladas e, sobretudo, nas cores, sente-se asclaras marcas do que Paris começava a, digamos, arrematar no espírito do artista cujaoriginalidade, no entanto, já se anunciara desde 1928 - com o painel de 15 metrosmergulhados em alumbramentos que é o magnífico Eu vi o mundo, ele começava noRecife. A influência do mestre espanhol permitiria a entrada do surreal de mistura com

o abstrato nas telas ��parisienses�� de Cícero: novas cores aparecem na sua paleta e,num sinal imediato, vermelhos e amarelos ��ritam��por sobre a luminosidade trazida dapátria.

O autor de Guernica era, naturalmente, muito mal visto pelos nazistas que seregiam pelo repúdio de Adolf Hitler - aquarelista medíocre, na juventude - à��moder-na arte degenerada��etc, e a ligação dos dois artistas atingiu o patamar do sentimen-to de solidariedade em torno da arte livre e renovada.

Ao ser preso e despachado para Baden-Baden, pelos alemães, em 1941, o aindadesconhecido Cícero Dias ganharia um desenho de presente do amigo e pintor céle-bre que as forças de ocupação não ousavam incomodar, naquela altura. Levado paraum campo de concentração (onde também se achava confinado o diplomata JoãoGuimarães Rosa), Cícero é posto em liberdade em troca de alguns alemães presos nolongínquo Brasil, e opta por se abrigar no Portugal neutro. E quando inaugura expo-sição em Lisboa, um retrato seu é enviado, de Paris, com a assinatura que se tornariao fetiche principal da arte moderna. Picasso tem saudades do brésilien de Pernambuco,e escreve (no livro O prazer agarrado pela cauda):��a presença de Dias em Paris énecessária��

Parecendo querer cumprir com tal vaticínio, Cícero irá se casar com a francesaRaymonde e fixar residência na ��capital das luzes��, pelo resto da vida. Picasso vem aser também padrinho de Sylvia - única filha do casal Dias - e, para fugir do assédio dosimportunos, o espanhol manterá arranjado com o amigo brasileiro que um númerode telefone seu (e que somente Pablo usa) figure como de propriedade de Cícero,durante anos, na lista de endereços, segundo se lê no livro Cícero Dias - Uma vida pelapintura (Simões de Assis Galeria de Arte, 2001). E sem a intervenção pessoal deste, oseminal Guernica dificilmente teria vindo abrilhantar a inauguração da segunda Bienalde São Paulo, no final de 1953.

Foi, portanto, uma amizade verdadeira, dos tempos em que elas eram ricas de tro-cas generosas, e podiam existir, sim, entre dois talentos seguros.

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Fernando Monteiro

Encontrei Cícero Dias, o brasileiro, na casa de Pablo Picasso,o espanhol. E era Paris que lhes conservava a luz, a razão de ser: a luz do Brasil, a luz da Espanha, a exuberância, o rigor.

Paul Éluard

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Mariana Oliveira

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!!

s modernistas brasileiros tinham um olho no país e outro em Paris. E não era por menos. Não se pode pensar a arte brasileira de princípiosdo século 20 sem voltar-se para a movimentação artística que tomava conta da Europa: o Cubismo de Pablo Picasso e o Fauvismo de Henri

Matisse, na França; o Construtivismo de Tatlin e o Suprematismo de Malevich, na Rússia; o Futurismo na Itália, o Surrealismo, o Dada... Apesar davariedade de correntes e idéias, as vanguardas artísticas do século 20 tinham em comum o desejo de quebrar paradigmas. Eram contra o acade-micismo, as escolas tradicionais de belas artes e as regras dos salões oficiais.

Foi em busca de novidades no campo da arte que, no final do século 19, muitos artistas brasileiros migraram para a capital francesa, lapidandouma formação artística mais completa, mais inovadora, mais moderna, que pudesse tirar a arte brasileira do provincianismo. Quem chegou ali sesurpreendeu, em 1906, com a tela A alegria de Viver, de Henri Matisse, que foi recusada no Salão Oficial de Paris, sendo exibida no Salão dosRecusados. Em 1907, ano do nascimento do pernambucano Cícero Dias, Picasso finalizava o quadro Les Demoiselles D'Avignon, que é tido comoa obra fundadora do Cubismo. Em 1917, foi a vez do �enfant terrible� Marcel Duchamp apresentar a sua Fonte, um urinário de louça com a assi-natura R. Mutt, que entrava para a História da Arte como um ready-made.

Não havia dúvidas: o centro cultural mundial era Paris. Intelectuais, escritores, pintores e escultores reuniram-se na cidade, criando uma atmos-fera revolucionária e liberal, favorável à reflexão. Os primeiros anos do século 20 foram tão marcantes na cidade luz que o escritor americano ErnestHemingway escreveu o livro Paris é uma festa para contar suas aventuras juvenis na cidade. Gertrude Stein, Paul Éluard, Pablo Picasso, HenriMatisse, Fernand Léger, Blaise Cendrars eram alguns dos nomes que circulavam por lá.

Boa parte dos artistas modernos brasileiros bebeu da fonte parisiense, conhecida como a Escola de Paris. Conviveram ali, num primeiro momen-to, Villa-Lobos, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Sérgio Milliet, cuja aproximação com Léger, Bracusi e Cendrars foi essencialna formação dessa primeira geração modernista. Anita Malfati passou o ano de 1913 estudando em Paris, pouco depois, em 1917, expôs suasobras no Brasil, incitando a ira de Monteiro Lobato.

Entre 1920 e 1950, o universo artístico brasileiro foi intensamente refrescado pelas propostas da Escola de Paris. Segundo a crítica de arte AracyAmaral, a influência francesa no Brasil culminou com modernismo dos anos 20. Em 1929, Candido Portinari ganhava a bolsa de estudosestrangeiros e partia para Europa. Em 1937, perseguido pelo Estado Novo, foi o momento do pernambucano Cícero Dias que desembarcou emParis, onde criou raízes e tornou-se, talvez, o maior pintor modernista brasileiro. De Pernambuco também passaram temporadas em Paris os pin-tores Vicente do Rego Monteiro, que permaneceu por um longo período, e Lula Cardoso Ayres, que passou apenas um ano, já que seu irmãonão se acostumara com o clima parisiense.

Conta-se, inclusive, que Vicente do Rego Monteiro trocou pelo menos 11 obras - hoje no acervo do MAMAM - por passagens para a capitalfrancesa com a Prefeitura do Recife. Em 1930, Rego Monteiro trouxe para o Brasil, leia-se Recife, Rio de janeiro e São Paulo, uma exposição comobras dos principais representantes da Escola de Paris, entre eles Picasso, Braque, Léger e Miró. As obras foram expostas no Teatro de Santa Isabele não contaram, digamos, com a empolgação do público local.

Se Rego Monteiro trouxe a Escola de Paris, Cícero Dias trouxe a Guernica. É curioso perceber que entre esses dois mestres pernambucanos,talvez aqueles que melhor conseguiram estabelecer o diálogo entre o regional com as tendências modernistas, que viveram em Paris, em perío-dos similares, não tenham vínculos próximos de relação. Ao que parece, havia na verdade certa animosidade entre eles, causada por posiçõespolíticas opostas.

Hoje, não há nada equivalente a Paris dos primeiros anos do século 20. Os artistas contemporâneos têm possibilidades maiores de entrar emcontato com as novidades que estão surgindo no mundo da arte através da internet e dos muitos meios de comunicação. Além disso, não hámais um centro hegemônico. As fronteiras entre o centro e a periferia estão borradas. De toda forma, ao olhar para trás, fica certa nostalgia.Histórias de uma cidade que pulsava pela agitação cultural. Uma Paris fundamental na formação dos melhores artistas brasileiros do período, queajudou o desenvolvimento de trabalhos como o de Cícero Dias, cuja obra, com maestria, consegue ser cosmopolita e, ao mesmo tempo, emi-nentemente pernambucana. Afinal: �Eu vi o mundo e ele começava no Recife�.

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G astronomiaRenata Amaral

Por que, afinal, comemos? Ao lado da óbvia resposta sobre a ingestãodos nutrientes necessários à vida, repousam muitos outros pontos que ele-vam a alimentação de tema periférico ao status de assunto essencial nacontemporaneidade. A gastronomia está na moda, mas será que paramospara pensar nos motivos pelos quais ela se faz cada vez mais presente emnosso cotidiano? Ou simplesmente seguimos nos alimentando, sem nosdar conta de tudo que esse simples ato envolve? Ou sabemos, ainda queinstintivamente, que cultura, afeto, encontro e arte fazem parte do pratonosso de cada dia?

�Muito antes de optar pela cidadania brasileira, aos 18 anos, já vinhadevorando o Brasil na forma da cocada, da goiabada, do arroz com feijão,do bife acebolado, tudo tão nosso�, conta a socióloga e psicóloga húngaraAnna Verônica Mautner, em uma das histórias do recém-lançado livro Céuda boca: lembranças de refeições da infância. Antropofagicamente, comoela mesma diz, a menina estrangeira ia assimilando nosso país pela boca.Por outro lado, o exílio nem sempre é deglutido com a desenvoltura dapequena húngara que chegou ao Brasil ainda criança e fez do país suapátria. Há pessoas que vivem em países estrangeiros e sempre acabamvoltando à �comida de casa�. Festa de brasileiro no exterior é sinônimo de

feijoada e brigadeiro, quase sempre adaptados - a contragosto, cabemencionar - com os ingredientes disponíveis no local. A identidadecom uns é também, afinal, a diferenciação em relação a outros, e aalimentação é uma das formas de reafirmar essa condição.

A seleção dos alimentos é culturalmente condicionada - come-mos aquilo que é considerado usual, ou mesmo lícito, em determina-

da sociedade. A simples menção de que se comem cães ou gafanhotos emcertos países asiáticos faz os brasileiros torcerem o nariz, a despeito depratos não menos exóticos, como tanajuras, constarem no cardápionacional. A sensação de pertencimento a um local, assim, passa pela boca.

As receitas, inclusive, se encaixam na noção de patrimônio cultural imate-rial, segundo designado pela Organização das Nações Unidas para aEducação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Trata-se de um conjunto de co-nhecimentos, práticas e representações considerados por grupos comoparte de sua herança cultural, transmitida de geração a geração para pro-mover um senso de identidade e continuidade. No Brasil, o acarajé, tradi-cional quitute baiano que consiste em bolos de feijão fradinho fritos emóleo de dendê com camarão seco e pimenta, foi certificado comopatrimônio cultural imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico eArtístico Nacional (Iphan) em 2004. No ano passado, foi a vez de a tapio-ca ser tombada como patrimônio cultural imaterial pela Prefeitura deOlinda e pelo Conselho de Preservação do Sítio Histórico. O objetivo daação é cuidar da preservação da iguaria, considerada a partir de agoracomo peça essencial da memória da cidade.

A sociabilidade é outro ponto que nos leva à comida. O filósofo gregoPlutarco costumava dizer que não nos sentamos à mesa para comer, maspara comer juntos. Claro que a festa sensorial que uma bela refeição provo-ca é, por si só, motivo suficiente para estimular a alimentação, mas são osencontros que ocorrem nas horas de comer que dão um sabor a mais aocotidiano. Além dos almoços e jantares familiares em casa, cada vez maisescassos devido aos desencontros de horários, boa parte das atividadessociais se dá em torno da mesa, que se torna local de trocas afetivas ouprofissionais. Ao espaço de agregação, mais uma vez, contrapõe-se oespaço de segregação, seja de quem não é considerado como membrodaquele grupo, seja daqueles excluídos socialmente, num contexto maisamplo. A alimentação passou a ser preocupação recorrente dos histori-adores da vida privada, que se ocupam de refazer os caminhos dassociedades não pelos grandes acontecimentos, mas pelo que acontece nodia-a-dia das pessoas comuns.

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Cultura, afeto e encontros no

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G astronomia

À pergunta �Qual o seu prato favorito?�, quem ousaria pensar em uma criação deum grande restaurante? Aqui, está em jogo algo que vai muito além da combinaçãoharmoniosa de sabores e aromas - é aquele ingrediente secreto que só existe na comi-da de casa (leia-se aqui, geralmente, casa dos pais ou dos avós) e que chegou a serdescoberto por uma antiga peça publicitária, mas que definitivamente não se compraem pacotinhos: amor. Na eterna mania de criar rótulos, os meios de comunicação demassa vêm chamando de confort food aquele tipo de comida cujos segredos moramem cadernos de receitas de páginas já amareladas pelo tempo. Mais doce e apropri-ada é a denominação da cronista Nina Horta, que cunhou a expressão comida dealma para todo alimento que desce carinhosamente pela garganta, de preferênciafeito para se comer de colher e recendendo a infância, como arroz doce, pudim deleite e purê de batata. Basta levar o talher à boca para encher os olhos com memórias.Às vezes, só o cheiro da panela no fogão basta.

Apreciação estética é uma definição ainda pouco aplicada à alimentação, mas quedeve também ser lembrada. O francês Antonin Carême, primeiro cozinheiro a setornar famoso em toda a Europa, servia a nobreza no século XIX e garantia que asbelas-artes eram cinco: a pintura, a escultura, a poesia, a música e a arquitetura, cujoramo principal era a pâtisserie. A frase tem jeito de piada ao colocar a doçaria comoárea da arquitetura, mas ele não estava para brincadeira quando preparava suassobremesas, monumentais em todas as acepções da palavra. Os cinco sentidos sãodespertados quando degustamos algo especial e não é por acaso que alguns grandeschefs são considerados verdadeiros artistas ou mesmo gênios. Quando se sabe que aalimentação é uma das áreas em que as pessoas são mais conservadoras e presas aseus hábitos, o valor da gastronomia como criação parece ainda maior, pois é precisoabrir-se para o novo, acatar experiências nunca antes sentidas, deixar preconceitos delado.

No livro que leva o sugestivo título de A razão gulosa, o filósofo francês MichelOnfray avisa que é preciso confiar nas impressões e ouvir o corpo para adentrar nocampo da gastronomia. �Trata-se de sermos sinceros com a emoção culinária e, por-

tanto, com nós mesmos; buscar sem necessariamente encontrar, de interrogar o pratoou o vinho, de deixar primeiro agir o nariz e a boca, de aceitar a emoção, e depoisdecodificar, classificar, isto é, praticar tal qual um amador de pintura ou de música emsua área e com os sentidos apropriados. Trata-se, enfim, de fazer emergir os sentido�,afirma. Não por acaso, o filósofo defende que a crítica gastronômica seja tratada, sim,como crítica de arte, pois a estimulação sensorial da degustação seria similar à experi-mentada na fruição de outras artes.

Ao contrário do que preconizavam obras de ficção científica de décadas atrás, ofuturo da alimentação não estava em cápsulas repletas de nutrientes e zeradas desabor. Não poderia ser de outra forma, pois ingerimos alimentos por muitos motivosalém da mera sobrevivência. Continuamos comendo e não pensamos em largar essehábito tão cedo - e hoje é justamente a volta da simplicidade e a redescoberta dopoder dos bons ingredientes que têm imperado. No gorduroso rastro da fast food, eisque surge como contraponto a slow food, que nada mais prega do que o prazer dese reunir à mesa calmamente para experimentar produtos naturais, de preferênciaplantados próximos à região do consumidor. Por mais utópico ou ingênuo que possaparecer, esse movimento não deixa de ser uma bandeira na contramão da industriali-zação, em que alimentos frescos são substituídos por outros tão processados que malconseguimos identificar.

Permitir que se sinta o gosto de cada elemento no prato - em vez do uso de técni-cas mirabolantes que reinou em outras fases da alta gastronomia - também é o quepretendem, cada um à sua maneira, boa parte dos grandes chefs atuais. A cozinha mo-lecular ou fusion food, cujo nome mais conhecido é o espanhol Ferrán Adriá, levou aspanelas para o laboratório para transformar os alimentos, explorando todas as suas pos-sibilidades. O resultado são ingredientes conhecidos em formas nunca antes vistas, comdireito a espumas, extratos, concentrados e explosões na boca. Desconstruir para re-construir. Se a cozinha é mesmo arte, pode-se dizer que eles são artistas de vanguarda,cujas influências começam a se espalhar pelo mundo. A criatividade de cada chef é fes-tejada como nunca, mas quem reina de verdade é a comida. Como deve ser.

prato nosso de cada dia

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M úsica

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eitgeist. Meu dicionário Langenscheidt de bolso diz que isto significa �espí-rito da época�. Se fosse possível definir em uma única palavra o OK Com-

puter, álbum da banda inglesa Radiohead lançado há dez anos, seria esta. Ne-nhuma banda ou artista pop conseguiu traduzir tão bem o espírito dos anos 90quanto aquele quinteto de Oxford, que, com este disco, atingiu o estrelato glo-bal. Traduzir o sentimento de um determinado momento histórico parece seruma característica comum aos álbuns clássicos do rock, e é a sua presença emforma de letra e música que coloca OK Computer neste panteão.

O Zeitgeist do fim dos anos 60 estava no Revolver (1967), dos Beatles, quan-do John Lennon cantava �desligue sua mente, relaxe e flutue pela correnteza� noauge do flower power. Ou quando o Clash chamava a juventude dos subúrbiosde todo o mundo a atender ao chamado de Londres e declarar guerra ao estab-lishment em London Calling (1979), no começo da Era Thatcher. E tambémquando Thom Yorke, tentando descansar da sua paranóia urbana, pede ao vi-zinho que, por favor, pare com o barulho, antes de ameaçar fuzilá-lo no paredão.

Era junho de 1997 quando o Radiohead lançou OK Computer, o álbum derock mais influente, mais comentado, mais discutido, mais importante e um dosmais ouvidos daquela década, mas podia ser 2007. Quase dez anos depois dechegar às lojas, é difícil aceitar que um disco ainda soe tão contemporâneo. Estaatualidade, contudo - característica das grandes obras de arte - demonstra tam-bém o tamanho do estrago causado pela obra-prima do quinteto de Oxford,Inglaterra: há dez anos a música pop não nos traz um trabalho comparável emtermos de sucesso de crítica e público. Depois dele, os anos 90 não seriam osmesmos. Nem o rock. Tampouco a banda.

Poucos meses após seu lançamento, OK Computer já figurava nas incansáveislistas de melhores discos de todos os tempos elaboradas pela imprensa interna-cional, ao lado de medalhões como Beatles, Beach Boys e David Bowie.Imitadores de toda espécie surgiram, emulando o vocal em falsete de Thom Yorkee o ataque agressivo à guitarra de Jonny Greenwood. Eles estão por aí até hoje,estampados nas capas das revistas de música mais badaladas e vendendo mi-lhões de discos, enquanto o Radiohead zarpou em busca de novos oceanosmusicais. O som que a banda desenvolveu não mais a ela pertenceria.

OK Computer foi inovador em todos os aspectos: nas composições, na abor-dagem e incorporação de novos instrumentos, na produção do então desco-nhecido Nigel Godrich, nos temas das letras e até no projeto gráfico de StanleyDownwood - uma colagem esquizofrênica de fotografias, mapas, placas, dese-nhos feitos à mão, logomarcas, textos e palavras em esperanto. Talvez tudo issojá tivesse sido feito, mas a mágica do OK Computer está justamente no balançoperfeito de todos esses elementos naquele momento. Que parece durar até hoje.

O álbum começa com um acidente de carro. As notas tocadas no violoncelo,acompanhadas pelas cordas graves da guitarra e seguidas da bateria sincopada,anunciam a freada súbita, o cantar dos pneus, o grito, o descontrole do veículogirando no ar e sendo destruído pelo impacto com o asfalto. Nós fechamos osolhos e, por um instante, tudo parece ter terminado: escuridão. Mas o ar aindaatravessa os pulmões; o coração, acelerado, continua a bater, e então os olhosvoltam a se abrir: nascemos de novo. �Estou surpreso de ter sobrevivido/Umairbag salvou minha vida�, canta Thom Yorke.

Em seguida, um violão dedilhado nos leva ao quarto de um cidadão aparen-temente comum, que tenta em vão pegar no sono, mas é perturbado por vozesque ecoam em sua cabeça - dos amigos, dos colegas de trabalho, dos parentes,dos transeuntes, dos rapazes sentados no balcão do bar. Ele dorme. No sonho,sob um riff caótico de guitarra, segura o presidente da empresa pela gola comuma mão, e o facão com a outra. �Você não lembra do meu nome?/Aposto quesim!�, ameaça. Toca o despertador, a guitarra dá lugar a um coral: suado, com ocoração em disparada, nosso herói acorda. É mais um dia de trabalho. Com suaestrutura esquizofrênica, suas explosões e subseqüentes calmarias e seus mais de6 minutos (até hoje, a música mais longa da banda), esta é Paranoid Android,carro chefe do OK Computer e primeira música de trabalho do álbum - talvez porser a mais emblemática.

Depois disso, nós ainda passamos por decepções, somos presos pela políciado carma, trancafiados num porão escuro, ignorando o chamado do chefe deEstado, assistimos ao comício de um político corrupto, e respiramos um poucode monóxido de carbono. Mas, como num filme de Tarantino, antes do final doálbum, bem na última faixa, o Radiohead nos leva para o momento anterior aoacidente. A mil pés por segundo, um passageiro questiona: para onde diabosestamos indo? Antes de gritar, em desespero: devagar, idiota! É o fim. O mundopode ter mudado substancialmente desde então, com os atentados terroristas de11 de setembro de 2001 e a ameaça cada vez mais próxima das conseqüênciasdo efeito estufa. O zeitgeist pode não ser exatamente o mesmo. Mas nós aindaestamos com medo. E ninguém, na música, captou tão bem este espírito e soubetransformar isto em sons e palavras quanto o Radiohead.

Após dez anos de lançado o CD OK Computerdo Radiohead ainda aponta as angústias dohomem contemporâneo

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or tradição, o anúncio dos nomes dos candidatosao Oscar é feito em Los Angeles (EUA), em uma

cerimônia discreta que acontece durante alguma ma-drugada de janeiro, todos os anos. O presidente daAcademia de Artes e Ciências Cinematográficas, insti-tuição que oferece a estatueta mais famosa do cinemainternacional, é o encarregado do anúncio, e o fazsempre acompanhado de algum ator famoso, invari-avelmente norte-americano. No dia 23 de janeiro pas-sado, curiosamente, esta tradição foi quebrada. Aolado do veterano Sid Gaines, estava a atriz mexicanaSalma Hayek. No momento, muita gente percebeu quea presença da estrela latina naquela cerimônia não eragratuita. Hayek estava ali para sinalizar uma fortetendência contemporânea à latinização em Hollywood.

Uma olhada rápida na lista de indicados ao prêmiodeixa este fenômeno flagrante. Sozinho, o Méxicoabocanhou dezesseis indicações a troféus importan-tes, inclusive melhor diretor (Alejandro González Iñár-ritu). Não demorou mais do que algumas horas paraque críticos de cinema em todo o mundo fizessem ascontas e analisassem a razão da presença de SalmaHayek - se o Oscar 2007 fosse entregue a um país, estanação seria o México. Como sempre acontece nos in-trincados bastidores da indústria cinematográfica, po-rém, este cenário é bem mais complexo do que sepode supor em uma análise apressada. A blitzkrieglatina (não apenas mexicana) em Hollywood é fatoconcreto, mas deve ser vista apenas como a ponta deum iceberg cultural que merece uma análise maiscuidadosa.

Para começar, uma invasão estrangeira em Hol-lywood não significa, de forma alguma, novidade. Aindústria do cinema nos Estados Unidos sempre foiparcialmente dominada por estrangeiros, desde as ori-gens, que remontam às primeiras décadas do séculoXX. No período de ouro de Hollywood (os anos 1930e 40), quando os fundamentos da linguagem cine-matográfica moderna estavam sendo criados, os gran-des estúdios receberam, de braços abertos, um enor-me lote de cineastas europeus talentosos, quase todosfugindo dos horrores provocados pela ascensão donazismo. A lista é longa, e inclui os austríacos BillyWilder, Otto Preminger e Fred Zinnemann, além dosalemães Fritz Lang, Josef von Sternberg, Erich VonStroheim, F.W. Murnau e Ernst Lubitsch, e do dina-marquês Douglas Sirk.

Mais recentemente, outra �invasão estrangeira� dedestaque em Hollywood ocorreu a partir do final dadécada de 1970, quando profissionais egressos doLeste europeu passaram a dominar a área da foto-grafia em Hollywood. Mestres da luz como VilmosSzigmond (Um Estranho no Ninho), Laslo Kovacs (Sem

Destino) e Janusz Kaminski (A Lista de Schindler), seestabeleceram nos EUA neste período. De fato, a listade diretores e técnicos estrangeiros que migraram paraHollywood é gigantesca. Via de regra, quando umdiretor se destaca fazendo bons trabalhos em casa,não demora muito a ir filmar em Hollywood, seduzidopelos orçamentos generosos e condições técnicas in-superáveis. Grandes autores, como o italiano Miche-langelo Antonioni e o alemão Wim Wenders, semprefizeram este caminho.

Em todos os exemplos citados, há uma seme-lhança: gênios ou �apenas� técnicos de talento, todosreceberam reconhecimento internacional, mas ne-nhum conseguiu impor a Hollywood sua própria ma-neira de trabalhar, incluindo uma visão de mundo não-americana. Pense bem: existe algum exemplo de cine-asta não-americano capaz de trabalhar livremente, nosintestinos da indústria cinematográfica, fazendo gran-

des filmes e apresentando neles exatamente aquilo quedeseja, sem a interferência de exe-cutivos vigilantes?

Pouco provável. Hollywood está sofrendo com aqueda de público nas salas de cinema desde o ano2000, e vem sendo acusada de incompetência nocombate à pirataria. Porém, no que trata de prote-ger a essência da ideologia do sonho americano, afábrica de sonhos continua impecavelmente efi-ciente. Por mais incendiárias e iconoclastas quealgumas obras possam parecer na superfície, elasnunca ameaçam o legendário �american way�, sem-pre intacto nas entrelinhas de cada filme. Estran-geiros sempre foram e sempre serão bem-vindosnos Estados Unidos, tanto em Hollywood quantoem qualquer outra área de interesse profissional. Seforem profissionais dedicados e talentosos, tantomelhor. Os recém-chegados, contudo, se integram àindústria do cinema como operários em uma linhade montagem. Chegam, trabalham, fazem bonsfilmes (ou ótimos, ou péssimos). Muitos ficam mil-ionários e famosos. Mas olhe o quadro de umaescala maior e verá que diretores ou profissionais docinema, em qualquer nível hierárquico, nunca inter-ferem nas engrenagens na fábrica de sonhos. A ide-ologia do sonho americano continua lá.

O raciocínio nos traz de volta à latinização de

Hollywood. As dezesseis indicações do México foramconquistadas por três filmes que, aparentemente,nada têm em comum: a ficção distópica Filhos doAmanhã, de Alfonso Cuarón; o melodrama Babel, deAlejandro González Iñárritu; e a mistura de cinemafantástico e filme de guerra O Labirinto do Fauno, deGuillermo del Toro. Três filmes interessantes, feitospor diretores jovens, talentosos e nascidos noMéxico. O elo de ligação mais importante entre ostrês está nas notas de produção - nenhum foi feitono México (à exceção de um pequeno trecho deBabel). Cuarón filmou e ambientou seu filme naInglaterra. Del Toro foi à Espanha para conseguirfinanciamento e atores. Iñárritu, que montou umaambiciosa e lacrimosa teia de eventos conectados emvárias partes do mundo, teve o astro norte-ameri-cano Brad Pitt como produtor executivo.

Nenhum destes filmes é sobre o México ou sobreo povo latino. A visão de mundo dos três é parecida- o olhar de um liberal morador de metrópole dosEUA. Um olhar globalizado (e, portanto, americano)de esquerda. Além disso, a invasão latina não come-çou realmente em 2007. A chegada dos brasileirosFernando Meirelles e Walter Salles para filmar por lá,há alguns anos, exemplifica perfeitamente como osgrandes estúdios absorvem o talento estrangeiro.Ambos receberam ofertas de trabalho após sedestacarem com filmes nacionais de força (Meirellescom Cidade de Deus, Salles com Central do Brasil).Tiveram bons atores e orçamentos decentes pararealizar filmes interessantes (respectivamente, O Jar-dineiro Fiel e Água Negra). Interessantes, mas semalma brasileira.

Obviamente, não se pode desprezar o fato de quea influência latina é culturalmente crescente nosEstados Unidos, sobretudo na costa oeste - a Califór-nia, como todos sabem, era território chicano noséculo XIX, e por lá existem mais emissoras de rádiotransmitidas em espanhol do que em inglês. É desupor que o sucesso dos profissionais mexicanos emHollywood (poderíamos citar, além dos três diretorese de Salma Hayek, também os nomes dos diretores defotografia Guillermo Navarro e Emmanuel Lubezki, emais um punhado de nomes ascendentes emposições secundárias) tenha relação com isto. Daí aimaginar o cenário hiper-otimista que alguns já dis-cutem, a suposta invasão latina, vai larga distância.Não se discute que Cuarón, del Toro, Salles, Meirellese outros são competentes e podem continuar fazen-do filmes maravilhosos nos Estados Unidos. Talento,todos têm de sobra. Mas, lá, eles jamais poderão criarum Cidade de Deus, um Central do Brasil, um E SuaMãe Também.

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A influência latina nocinema americano

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Rodrigo Carrero

De como chicanos e latinos estãoreformulando a técnica e a sensibilidade hollywoodiana

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L iteratura

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�Computador, impressora euma pilha de livros�

á sete anos, o jornal curitibano Rascunho vemcolocando de cabeça para baixo a crítica literária

do País: A cada mês a publicação não poupa acidez -quando necessária - num território que tradicionalmenteé cheio de polidez e �não-me-toques�. Escrever é dar acara a tapa, o papel impresso passa a idéia de um �semvolta� que a maioria dos autores brasileiros parece nãoquerer aceitar. O inferno são os outros, ou uma resenhanegativa no Rascunho, como muita gente já aprendeu.Nesta entrevista para o Pernambuco, o editor RogérioPereira comenta sua delicada decisão em não aceitar oesquemão da grande imprensa literária do país, discuteo que seria esse danado de jornalismo cultural e lembrapor que ousa �fugir das panelinhas literárias, das ami-zades com segundas intenções, dos grupinhos queinfestam a literatura brasileira�.

PERNAMBUCO - Nestes sete anos de existência, quediferencial o Rascunho trouxe para a crítica literáriabrasileira?

ROGÉRIO PPEREIRA - Nunca tive a pretensão de, como Rascunho, revolucionar a crítica literária no Brasil. Ojornal nasceu de uma brincadeira quase juvenil e de umainquietação - um certo enfado com os rumos da maio-ria dos cadernos literários. Não podemos esquecer que aliteratura é, há um bom tempo, tratada com desdémpela grande imprensa (o surgimento de algumas revistasespecializadas tem ajudado a melhorar um pouco estequadro). Praticamente todos os cadernos literários dosjornalões são deficitários economicamente. Por isso, boaparte deles não paga pelas colaborações. Isso tambémacontece no Rascunho, mas é um veículo independente,sem um grande grupo de comunicação a bancá-lo. Estasituação, me parece, fragilizou em demasia a críticaliterária nos jornais. Na maioria dos casos, virou umquintal para amigos se afagarem mutuamente, comnum churrasco de fim de semana. Se se levar em con-sideração a imensa maioria das resenhas publicadas nosjornais brasileiros, a literatura brasileira atual está repletade gênios, de obras-primas em cada esquina. É amigofalando de amigo quase o tempo todo. Ou então inimi-go destruindo inimigo. Basta um olhar mais atento paraperceber como são ocupadas as trincheiras. Quando oRascunho nasceu, eu expliquei que o jornal seria umamplo palco para discussões, publicando as mais diver-sas opiniões. Isso se mantém até hoje. É claro quemuitos amigos afagaram amigos no Rascunho e muitosinimigos destruíram o opositor nas páginas do jornal. Hásete anos editando o jornal, sei muito bem como ascoisas funcionam, mas tento o tempo todo colocar acasa em ordem. Acho que tenho conseguido. Se oRascunho fez algo pela crítica literária brasileira, ousodizer que foi tentar fugir das panelinhas literárias, dasamizades com segundas intenções, dos grupinhos queinfestam a literatura brasileira. Muitas vezes, con-seguimos; outras tantas, naufragamos.

PERNAMBUCO - Em várias edições do Rascunho há�lembretes� reclamando da falta de anunciantes. Com

essa dificuldade, como o jornal tem conseguido mantersua qualidade? E por que você acha que é tão difícil oRascunho atrair anunciantes?

ROGÉRIO PPEREIRA - O Rascunho só sobrevive se tiverdinheiro. Isso é óbvio. Muitas vezes, tirei dinheiro dobolso para bancar o jornal. Sempre valeu a pena.Mesmo com todas as dificuldades, hoje é relativamentefácil manter a qualidade do Rascunho: os colaboradoresespalhados por todo o país acreditam muito no projeto.Ninguém ganha um centavo sequer para escrever noRascunho, mas aceitam com entusiasmo as pautas quesugiro e participam ativamente das discussões sobre osrumos do jornal. Eu sou o único com dedicação exclusi-va ao jornal. Faço praticamente tudo: edito, diagramo,corro atrás dos anunciantes e cuido das assinaturas.Portanto, é um jornal com baixíssimo custo operacional.Mas não o teríamos se não fosse o empenho dos cercade 30 colaboradores a cada edição. Toda a arrecadaçãomensal (anúncios + assinaturas) é utilizada na manuten-ção do projeto. Mas também tocamos alguns projetosparalelos que ajudam na sobrevivência do jornal, comoa Oficina de Criação Literária Rascunho, com José Cas-tello, e o Projeto Paiol Literário. A dificuldade de o Ras-cunho conseguir verbas publicitárias é igual à dos cader-nos literários dos grandes jornais. Os anunciantes, sim-plesmente, não estão interessados. A literatura não é lev-ada a sério pelo chamado mercado publicitário. É pre-ciso ter uma tiragem monstruosa para um retorno satis-fatório para o anunciante. O Rascunho tem 5 mil exem-plares, com cerca de 10 mil leitores na versão papel.Contando o nosso site (www.rascunho.com.br), che-gamos a uns 20 mil leitores/mês. Para um jornal inde-pendente, acredito ser uma façanha, mas o mercadopublicitário não nos vê assim. Entre o Rascunho e a Folhade S. Paulo, por exemplo, uma editora vai optar por umveículo que venda o seu produto/livro. No entanto, em2006, o Rascunho contou com excelentes anunciantes:Itaipu, CPFL, Caixa Econômica Federal, Editora daUnicamp, Sesi, Fundação Cultural de Curitiba. Nadadesprezível para um jornal que, além da marca, doprestígio e dos inimigos, tem em seu patrimônio umcomputador, uma impressora e uma pilha de livros.

PERNAMBUCO - O Rascunho já travou inúmeraspolêmicas, como em relação a Sebastião Uchoa Leite oucom João Gilberto Noll. Como você avalia a dificuldadedo escritor brasileiro em receber críticas?

ROGÉRIO PPEREIRA - O brasileiro não gosta de crítica.O escritor brasileiro não sabe lidar com a crítica negati-va. Desmancha-se feito um boneco de neve na praia.Mas há boas exceções. Acho que, em geral, os escritoresestão muito mal acostumados com as benesses do cu-nhadismo, todo mundo falando bem de todo mundo,por pior que seja o livro. Como muitos dos resenhistasdos jornais são também escritores, eles normalmentenão escrevem críticas negativas, que eu considero muitoimportantes, com o receio do contra-ataque mortalquando lançar o seu livro. É uma estratégia muito pen-sada e simples: �eu falo bem do livro do sicrano e o sicra-

no fala bem do meu livro�. É ridículo. No Rascunho,acontece de muitos escritores mandarem críticas de seuslivros, escritas por amigos. É um absurdo. Eu, obvia-mente, evito publicar. Todos que estão no barco doRascunho sabem que mesmo sendo colaboradores dojornal podem receber críticas negativas a seus livros. Issojá aconteceu muitas vezes. Quem não gostar que puledo barco. Também temos uma questão que me parececentral em relação a esta discussão: há poucos críticospuros escrevendo nos jornais. A maioria é escritor queescreve resenha. Ou jornalista com ambição literária. Dápara contar nos dedos os críticos (aqueles que sededicam somente à crítica) com atividade permanentenos jornais.

PERNAMBUCO - Toda cidade tem seus mitosliterários, seus fantasmas. No caso de Curitiba, dois sãobem ostensivos - Leminski, Dalton Trevisan. Como ORascunho lida com esses �mitos�/�fantasmas�?

ROGÉRIO PPEREIRA - Não nos preocupamos com�mitos� e �fantasmas�. Estamos preocupados com umaampla discussão sobre literatura. No caso do Dalton, elejá recebeu críticas negativas e positivas no Rascunho; oLeminski já levou alguns �sopapos�, mas com algumaeducação. A iconoclastia foi muito cultuada no início doRascunho. Hoje, as coisas se tornaram mais brandas.Mas o jornal continua com olhar crítico afiado, mas semnunca perder a ternura.

PERNAMBUCO - Nos últimos anos, temos visto sur-gir inúmeros cursos e debates sobre o que seria jornalis-mo cultural. Daí, tiramos duas questões: O que seria jor-nalismo cultural? E mais importante: Qual sua avaliaçãodos cursos de jornalismo cultural que você já teve con-tato?

ROGÉRIO PPEREIRA - Não sou a pessoa mais adequa-da para responder esta questão. Há algum tempo,abandonei o jornalismo diário, deixei o cargo de chefede redação da Gazeta do Povo (principal jornal doParaná) para me dedicar exclusivamente ao Rascunho.Não acredito neste tipo de jornal impresso diário feitohoje em dia. Pouca coisa se salva. Sou contra o diplomapara jornalista. Há muitas universidades de comunicaçãocom um bando de professores que não tem nem idéiada profissão. Portanto, tenho me mantido distante dequalquer tipo de debates e cursos sobre jornalismo cul-tural. Não posso avaliar as especializações e cursos dejornalismo cultural. Não me interesso por isso. Agora, oque é jornalismo cultural? Tenho certeza de que o bomjornalismo cultural passa muito longe deste feito atual-mente na maioria dos jornais e revistas espalhados peloBrasil. Jornalismo cultural deve ser pautado por amplasdiscussões, discussões abertas, sem preconceitos ouamizades. O bom texto deve ser sempre prioridade. Oque vemos hoje é a redução gradual dos espaços, oencolhimento dos textos, o fim dos espaços para dis-cussão. Veja em que a Editora Abril transformou a revistaBravo! Mas esta discussão tomaria muito mais tempo eteria infinitos caminhos a serem tomados.

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Rogério Pereira, editor doRascunho, comenta o polêmico jornal literário curitibano

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A nálise

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uando surgiu há exatos 10 anos agregando expressões artísticas numa per-formance teatral, o Cordel do Fogo Encantado reinventou a roda dos anti-

gos gregos (especialmente os que se dedicavam aos ritos órficos) para quem a poe-sia era assumida em total corporalidade e o poeta, sacerdote ou xamã, oferecia aosmortais a escuta da voz dos deuses. Nesse sentido, a junção ritualistica entre teatro,música e poesia que o grupo pernambucano realiza, e que tanto encanta o públi-co, obedece a uma tradição cultural do Ocidente que conta alguns milhares deanos. Nada de novo debaixo do sol, dirão alguns. No entanto, ao optar pelo cam-inho da poesia, o grupo traça uma rota ou um círculo em torno de si mesmo.Delimita seu espaço, define sua identidade e identificações, apresenta seu daimon.

O acento marcadamente sertanejo das composições do primeiro disco, Cordeldo Fogo Encantado, denota um Nordeste rico em sonoridades, atento à naturezae seus ciclos, filho de uma saudade nostálgica de um antigo mundo de aedoscantadores, de lamentos mouros, de um batuque viril misto de índio e deafricano. Um Nordeste arquetípico e oscilante entre a realidade e a invenção. Umdiscurso construído dessa formanão poderia fugir do sotaque acen-tuado, visto que é ele que o legiti-ma. Assim, do nome do grupo àúltima faixa, o poema Ai se Sesse,de Zé da Luz, há um estabelecimen-to contundente de identidade quese repetirá nos trabalhos posteri-ores, O Circo do Palhaço sem Futuroe Transfiguração.

Para construir essa identidade,um dos recursos utilizados é a inter-textualidade que, feroz e minuciosa-mente, corta e costura referênciaspoéticas. No primeiro disco,elemesmo um grande textema, essascitações vão da poesia popular àobra de Harriet Beecher Stowe, ACabana do Pai Tomás, passando porfragmentos de cartas e discursos depersonagens históricos comoAntonio Conselheiro e Lampião. Nãopor acaso, o livro de Stowe e o discosão entrecortados por orações, como diferencial de que na saga de paiTomás a dicção é cristã por excelên-cia e em Cordel do Fogo Encantado,a Salve Rainha, litania católica, seagrega a pontos de umbanda e invo-cações indígenas. Em O Circo doPalhaço sem Futuro, o recorte é maiscontido e se sobressaem os alinhavos feitos com o Livro do Genêsis (em Os AnjosCaídos), Os Três Mal-Amados, da obra de João Cabral de Melo Neto, Os Sertões, deEuclides da Cunha, e a Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa.

Em Transfiguração, tudo muda, literalmente, de figura e o leque dereferências é ampliado passando de Manoel Filó (Tlank), representante da poe-sia popular nordestina, à Jack Kerouac (Na Estrada - ou quando encontreiDean pela primeira vez). Tlank, onomatopéia do bater de uma porta, éemblemático no que representa de abertura, passagem e, claro, conclusão.Funciona também como um aviso de que o grupo não se prende a fórmulas,nem mesmo às bem-sucedidas dos trabalhos anteriores. O disco é elaboradosob a prática de uma "cleptomania estilística", expressão de Armando FreitasFilho ao definir a poética de Ana Cristina Cesar, autora citada na música Eladisse assim (ou A Teus Pés). Os métodos de trabalho da poeta carioca e do

grupo pernambucano em muito se assemelham, o que torna a sua inclusãono disco uma atitude conceitual, uma assumida crença na morte do autorindividual e na premissa de que todo texto é fruto de uma criação coletiva. Asalusões que a música faz a Ana C. são biobibliográficas. Surgem, primeiro notítulo do livro da poeta carioca, depois no dado biográfico (seu suicídio) e,finalmente, no intertexto propriamente dito:

Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra cima semmedir as conseqüências (...)

(Mocidade Independente - Ana Cristina Cesar)

A inclusão de um outro autor, Italo Calvino, e seu O Barão nas Árvores, segue omesmo percurso conceitual. Nas Lições Americanas, em capítulo dedicado à multi-plicidade, Calvino fala de uma literatura enciclopédica, "rede de conexões entre os

fatos, entre as pessoas, entre as coisas domundo". Uma escritura que quanto maisse afasta do self do autor mais seenriquece, preconizando uma poética doinventário. No caso dessa música, em par-ticular, é explicitada a verve "cordelista" dogrupo, a partir do anúncio da história a sernarrada:

Contarei a história do barãoQue comia na mesa com seu paiEra herdeiro primeiro dos curraisMas gritou no jantar,não quero nadaNesse dia subiu num grande galhoNunca mais o barão pisou na terra.

(Sobre as Folhas - ou O Barão nasÁrvores/ Cordel do Fogo Encantado)

Quem conta um conto acrescenta, oucorta, um ponto. E o Cordel do FogoEncantado segue mencionando livros amancheia, propondo transfigurações deleitura. Advertindo, porém, que suas trans-figurações são pontos de vista ou, antes,leituras particulares.O uso do disjuntivo"ou" como alternativa a quase todos ostítulos das músicas indica uma abertura ainterpretações várias. O recorte está dado,mas ele não é único, é o que parece dizer.Evidentemente, Transfiguração exige um

leitor/ouvinte ideal que, municiado de um conhecimento de mundo literário e extra-literário, possa perceber sua polifonia e dele se tornar co-autor. Obviamente, estenão é um pré-requisito para a fruição do disco. Entretanto, nenhuma fruição serácompleta se não for devidamente contextualizada, sentida e, mais que isso tudo,conquistada.

Além dos títulos e autores já listados, podemos enumerar ainda João Cabral ( Mor-te e Vida Stanley) e Euclides da Cunha (Pedra e Bala - ou Os Sertões), circularmenterepetidos, Graciliano Ramos (Aqui - ou Memórias do Carcére), Nietzche (O sinalficou verde - ou Além do bem e do mal), Bertolt Brecht (Joana do Arco - ouAgitprop) , Patrick Ravignant (Louco de Deus - ou Perto de Você) Alberto da CunhaMelo (Canto dos Emigrantes). Entre outros. Porque aquele leitor meticuloso encon-trará também referências no interior de algumas letras se se ocupar do avesso dacostura. Fica o convite (ou desafio).

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Micheliny Verunschk

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néditos

Ela corre dentro de um labirinto, e não sua. Porque as meninas perfeitinhas não têm defeitose fazem o mundo parecer ainda menos certo. Passa por enormes muralhas de mármore, pelasquais não sobem as heras, nem passeiam as lagartixas.

Não deixa pegadas, nem vestígios, pois não quer ser compreendida. Só espera que ninguéma magoe, nem antecipe seu destino. Pouco importa se não irá a lugar algum, anda em círculoshá pelo menos dois segundos. Perdeu a noção do tempo, mas sabe que está atrasada. Sempre.

É feliz porque tem todas as encruzilhadas do mundo para descobrir e um cidade inteira denovidades pela frente. Precisa tomar decisões a cada instante e sorri seus dentes de lua.

Escolhe a saída errada e acha bom, vai tentar de novo e de novo, até dar vontade de dormir.Dobra à direita e continua, cruzando universos de areia e pedra. Nenhum cheiro ou ruído, mastodas as possibilidades de futuro.

Não tropeça, nem esbarra. Não olha para trás, nem para o céu. Tem os pés no chão e o olhoapontado para frente. No seu encalço, as sombras de seus medos e pessoas de estimação.

Então pisa numa armadilha e escorre para dentro de uma toca. O percurso é turbulento e ine-briante, até cair num tapete fofo de nuvens imaginadas. Passa, em vão, a mão na frente dos olhose não enxerga nada. Está calma e determinada a tatear o vento e prosseguir. Sente o cheiro damarcela que costuma habitar o interior de seu travesseiro.

De repente, um aconchego de braço forte a envolve, impedindo a correria e o descontenta-mento. Sente seu corpo apertado contra o dele e nem imagina quem seja ele. Mas não tem von-tade de gritar, parece ter sido muda a vida inteira.

E agora está metade flutuando, metade sendo sugada. Por fora, levita. Do outro lado, acon-teceu de ter ficado vazia. Voar é negócio para poucos. Coloca os pés para fora do lençol e decidenão sonhar mais esta noite.

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